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O Programa Nacional de

Alimentação Escolar em
tempos de pandemia
O Programa Nacional de
Alimentação Escolar em
tempos de pandemia
F I C H A T É C NI CA

Este relatório é um documento do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ)

OBSERVATÓRIO DA ALIMENTAÇÃO ESCOLAR

Comitê Gestor
ActionAid

Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN)

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)

Comitê Ampliado
Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação - FINEDUCA

Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável

Articulação Nacional de Agroecologia - ANA

Articulação do Semiárido Brasileiro - ASA

Comissão de Presidentes de CONSEAs Estaduais - CPCE

Fórum Nacional dos Conselhos de Alimentação Escolar

FIAN Brasil

Federação Nacional dos Estudantes em Ensino Técnico - FENET

Levante Popular da Juventude

Movimento dos Pequenos Agricultores - MPA

Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional - RedePSSAN

Rede de Mulheres Negras para a Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional - REDESSAN

União Nacional dos Estudantes - UNE

União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação - UNCME

Organização referência de gênero e raça


Rede de Mulheres Negras para Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (REDESSAN)
Publicação
Coordenação e organização: Mariana Santarelli
Participam desta edição: Adriana Dragone Silveira, Andressa Pellanda, Cacilda R. Cavalcanti, Flávia Londres,
Gabriele Carvalho, Gabrielle Araujo, Guilherme Pimentel, João Paulo Marra Dantas, Juliana Casemiro, Marcele
Frossard, Mariana Santarelli, Mirena Boklis Berer, Morgana Maselli, Nalú Farenzena, Patricia Gentil, Patrícia Jaime,
Priscila Diniz, Rodrigo Azambuja Martins, Silvia Cristina dos Santos Carvalho, Simone Magalhães, Thais Iervolino,
Thiago Alves e Vanessa Schottz
Revisão crítica: Andressa Pellanda, Emmanuel Ponte, Jessica Siviero, Marcele Frossard, Simone Magalhães e
Vanessa Schottz
Revisão e edição: Ivna Feitosa
Diagramação: Talita Aquino
Ilustrações: Paula Dager, Sophia Andreazza
Apoio: Instituto Ibirapitanga

Observatório da Alimentação Escolar - ÓAÊ


Site: https://alimentacaoescolar.org.br/
E-mail: observatorio@alimentacaoescolar.org.br

DEZEMBRO 2021
Lista de siglas
Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional USAID
Articulação do Semiárido Brasileiro ASA
Articulação Nacional de Agroecologia ANA
Associação Agroecológica de Produtores Orgânicos de Paraty AAPOP
Associação Brasileira das Empresas de Refeições Coletivas ABERC
Associação Brasileira de Agroecologia ABA
Associação Brasileira do Agronegócio ABAG
Associação de Moradores do Quilombo do Campinho AMOQC
Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais APAE
Associação dos Bananicultores de Ubatumirim ABU
Associação dos Celíacos do Brasil Acelbra
Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação Fineduca
Associação Regional de Produtores Agroecológicos ARPA
Atendimento Educacional Especializado AEE
Base Nacional Comum Curricular BNCC
Cadastro Único para Programas Sociais CadÚnico
Centro de Referência de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional CERESSAN
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura CONTAG
Conselho de Alimentação Escolar CAE
Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional CONSEA
Conselho Nacional de Secretários de Educação CONSED
Conselho Regional de Nutrição CRN
Cooperativa Mista Triunfense dos Agricultores e Agricultoras Familiares COAFTRIL
Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro DP-RJ
Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos DIEESE
Direito Humano à Alimentação e Nutrição Adequadas DHANA
Educação de Jovens e Adultos EJA
Emenda Constitucional EC
Equipamento de Proteção Individual EPI
Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz ESALQ
Federação das Indústrias do Estado de São Paulo FIESP
Federação Nacional das Escolas Privadas FENEP
Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional FBSSAN
Frente Parlamentar da Agropecuária FPA
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica FUNDEB
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério FUNDEF
Fundo Monetário Internacional FMI
Fundo Nacional de Desenvolvimento Escolar FNDE
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE
Instituto de Defesa do Consumidor IDEC
Instituto de Medicina Social IMS
Instituto de Nutrição da Universidade INU
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada IPEA
Instituto Pensar a Agropecuária IPA
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento MAPA
Ministério da Educação MEC
Movimento dos Pequenos Agricultores MPA
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MST
Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde Nupens
Observatório da Alimentação Escolar ÓAÊ
Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina OTSS
Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura FAO
Organização de Controle Social OCS
Organização Mundial de Saúde OMS
Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico OCDE
Partido dos Trabalhadores PT
Partido Social Liberal PSL
Partido Trabalhista Brasileiro PTB
Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos PNCBA
Pesquisa Nacional de Saúde Escolar PeNSE
Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Dhesca Brasil
Programa de Aquisição de Alimentos PAA
Programa Mundial de Alimentos da Organização das Nações Unidas PMA
Programa Nacional de Alimentação Escolar PNAE
Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar PRONAF
Projeto de Lei PL
Proposta de Emenda Constitucional PEC
Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional RBPSSAN
Rede de Intercâmbio de Tecnologias Alternativas REDE
Rede de Mulheres Negras para Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional RedeSSAN
Secretaria Municipal de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania SMASAC
Secretaria Municipal de Educação SMED
Segurança Alimentar e Nutricional SAN
Sindicato dos Trabalhadores(as) Rurais de Morros STTR
Sistema de Gestão de Prestação de Contas SIGPC
Subsecretaria de Segurança Alimentar e Nutricional SUSAN
Supremo Tribunal Federal STF
Tribunal de Contas da União TCU
Tribunal de Contas do Estado TCE
União Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária UNICAFES
União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação UNDIME
Universidade de Brasília UNB
Universidade de São Paulo USP
Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ
Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ
Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro UFRRJ
12 Introdução

PA R T E 1 17
A pandemia e a alimentação escolar

Balanço do Programa Nacional de Alimentação Escolar


18
na pandemia: um alerta sobre a saúde do PNAE

Exigibilidade política e judicial da alimentação 26


escolar na pandemia: um olhar sobre o caso do
estado do Rio de Janeiro

Debates sobre a reabertura das escolas e o direito à 32


alimentação escolar durante a pandemia
37
PAR TE 2
Alimentação saudável e agricultura
familiar

38 ENTREVISTA: “Um programa capaz de acompanhar


a evolução do conceito de alimentação saudável”

Comida de verdade nas escolas do campo e da cidade:


46 um olhar sobre a inserção de alimentos da agricultura
familiar e agroecologia no PNAE

54 ENTREVISTA: “A comida é um ato revolucionário desde


a etapa da infância”

PA R T E 3 61
Desafios e ameaças ao PNAE

Reformas de Estado, redução de direitos e possíveis 62


repercussões sobre a alimentação escolar

Ameaça no Congresso Nacional: empresas do setor de 66


alimentos de olho grande no PNAE

O agro não é pop, mas até nas escolas quer ser 74

Alô, gostaria de falar com o Conselho de Alimentação 80


Escolar: desafios da transparência e exigibilidade do
direito à alimentação escolar

Financiamento do PNAE: uma proposta de 86


recomposição em face das perdas inflacionárias
I ntrodução

“Existem dois terços de pessoas que não aumento da fome. De acordo com o
dormem porque sentem fome, e um terço Inquérito Nacional sobre Insegurança
de pessoas que não dormem por medo Alimentar no Contexto da Pandemia
das que sentem fome”, assim afirmou da Covid-19 no Brasil, a situação
Josué de Castro (1908-1972), um dos vem piorando de forma acelerada. O
maiores pensadores da geografia bra- relatório aponta que, em apenas dois
sileira, responsável por mapear a fome anos, o número de pessoas em situação
no Brasil e analisá-la de forma crítica. de insegurança alimentar grave saltou
Em sua obra, Josué de Castro provou de 10,3 milhões para 19,1 milhões.
que a fome não é consequência da falta Nas áreas rurais, onde vivem agricul-
de alimentos, mas sim da má distribuição toras e agricultores familiares, quilom-
das riquezas, concentradas cada vez bolas, indígenas e ribeirinhos, a fome
mais nas mãos de menos pessoas. Por se mostrou uma realidade em 12%
isso, a fome só acabaria com a distri- dos domicílios. Voltamos ao mapa da
buição de recursos e da terra, para os fome não apenas pela crise econômi-
trabalhadores nela produzirem. ca e social que se agravou com a pan-
demia, mas pelo avanço das políticas
de austeridade e de um projeto claro
em apenas dois de redução do papel do Estado na
anos, o número de garantia dos direitos humanos.
pessoas em situação Falta comida de verdade no pra-
to dos(as) brasileiros(as), devido ao
de insegurança abandono das políticas de abasteci-
alimentar grave mento alimentar, reforma agrária e
fortalecimento da agricultura familiar;
saltou de 10,3 milhões isso enquanto o governo comemora
para 19,1 milhões safras recorde de exportação de mi-
lhões de toneladas de grãos. Crianças
e adolescentes passam fome, porque,
além de tudo, tiveram o acesso à ali-
Ao analisar o legado de Josué de mentação escolar comprometido du-
Castro, o geógrafo Milton Santos faz rante a pandemia de Covid-19.
um apelo: “(...) ainda é tempo de reto-
mar o caminho que ele nos mostrou e O Observatório da Alimentação Escolar
de ganhar a batalha”. Quase 50 anos (ÓAÊ) surge nesse contexto de crise e
após a morte de Josué de Castro e graves desmontes. Nasce em fevereiro
depois de sair do mapa da fome, em de 2021, a partir da convergência de
2014, o Brasil volta a conviver com o processos de mobilização e incidên-

13
A nuário ÓAÊ

cia de movimentos sociais e redes do especial atenção ao que nos contaram


campo da Soberania e Segurança Ali- os(as) sujeitos de direito do Programa,
mentar e Nutricional (SSAN) e da Edu- a partir dos estudos Conta pra Gente,
cação, com o objetivo de monitorar e Estudante e Conta pra Gente, Agri-
mobilizar a sociedade na defesa do cultor. Apresenta também uma das
Programa Nacional de Alimentação mais relevantes iniciativas de exigibi-
Escolar (PNAE). Se dedica à produ- lidade judicial pelo direito à alimen-
ção de conhecimento, comunicação e tação escolar, protagonizada por uma
organização para a incidência políti- ação colaborativa entre movimentos
ca. Seu comitê gestor é formado pela de mães e Defensoria Pública.
ActionAid, Campanha Nacional pelo Na segunda parte, há entrevistas e um
Direito à Educação, o Fórum Brasileiro artigo que nos ajudam a compreender
de Soberania e Segurança Alimentar como o PNAE, em sua história recente,
e Nutricional (FBSSAN) e o Movimen- foi capaz de acompanhar a evolução
to dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do conceito de alimentação adequada
(MST), contando ainda com um comitê e saudável, incorporar a perspectiva
ampliado. Busca, desde então, ampliar de fortalecimento da agricultura fami-
a escuta, as narrativas e o diálogo liar e agroecológica, além de práticas
com estudantes e suas famílias, agri- pedagógicas que tratam da complexi-
cultoras e agricultores familiares, além dade política dos sistemas alimentares.
de membros de conselhos que atuam
com a alimentação escolar. A terceira parte segue na linha das
muitas ameaças ao desenho, susten-
Este Anuário é resultado do nos- tabilidade e transparência do PNAE,
so primeiro ano de vida. Apresenta, que são parte mais ampla de refor-
na forma de artigos e entrevistas, os mas, desmontes e redução de direi-
principais debates sobre o PNAE e a tos. O ano de 2021 foi de disparada
alimentação adequada e saudável, de preço dos alimentos e de muitos
com os quais o ÓAÊ e seus parceiros ataques à lei do PNAE no Congresso
estiveram envolvidos em 2021. Desde Nacional, que expressam interesses
o início da pandemia, entendemos que privados sobre o gigante mercado
o PNAE era estratégico para o enfren- de compra de alimentos do Progra-
tamento da fome e o abastecimento ma. Por essa razão, mostramos como
popular, por essa razão nos dedica- o agronegócio está tentando interfe-
mos a monitorar como estava sendo o rir na educação pública brasileira, a
acesso de estudantes, agricultores e partir de uma ação ideológica orga-
agricultoras familiares ao Programa. nizada, e apresentamos um artigo que
A primeira parte do Anuário é dedica- desvenda a movimentação do Con-
da a um balanço com foco na pande- gresso Nacional na tentativa de re-
mia e no dilema da volta às aulas, com verter as muitas conquistas em termos

14
I ntrodução

de descentralização e direcionamento
das compras públicas para a agricul-
tura familiar, elaborado com base em
Nota Técnica produzida pelo ÓAÊ.
Compartilhamos também a experiên-
cia da equipe do ÓAÊ na tentativa
de acessar informações sobre os Con-
selhos de Alimentação Escolar (CAEs)
nos estados, como forma de reflexão
sobre os tortuosos caminhos para o
engajamento em defesa do PNAE. E,
por fim, apresentamos aquela que é
uma das principais agendas propositi-
vas do ÓAÊ: uma proposta de recom-
posição do per capita do PNAE, fruto
da colaboração com a Associação Na-
cional de Pesquisa em Financiamento
da Educação (Fineduca).
Boa leitura!

15
B loco 1

A pandemia e a
alimentação escolar
A nuário ÓAÊ

Balanço do Programa Nacional de Alimentação Escolar na


pandemia: um alerta sobre a saúde do PNAE

Mariana Santarelli1
Gabriele Carvalho2

Todos(as) os(as) governadores(as) e


prefeitos(as) tinham em suas mãos o PNAE
como ferramenta para o enfrentamento da
crise, mas poucos fizeram o devido uso, o que
chama a atenção para a falta de compromisso de
nossos(as) governantes com o combate à fome.

Em 11 de março de 2020, a Orga- março, as aulas das redes pública e


nização Mundial de Saúde (OMS) privada foram suspensas, uma deci-
decretou que o mundo passava por são acertada, mas que trouxe gra-
uma pandemia: o novo coronavírus ves impactos não só à educação e à
já se alastrava por vários países de alimentação da população, mas tam-
diferentes continentes. No Brasil, logo bém risco de desestruturação de uma
depois desse anúncio, no dia 16 de das mais antigas políticas brasileiras

1 Mariana Santarelli é pesquisadora no Centro de Referência de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (CERESSAN)
da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), relatora nacional para o direito humano à alimentação da Plataforma
Dhesca Brasil, membro do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar (FBSSAN) e coordenadora de projetos do
Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ).
2 Gabriele Carvalho é doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ), membro do núcleo executivo do FBSSAN e assessora do ÓAÊ.

18
B alanço do P rograma N acional de A limentação E scolar na pandemia

de Segurança Alimentar e Nutricional tão descentralizada de aquisição e


(SAN), o Programa Nacional de Ali- oferta de alimentos acumuladas nas
mentação Escolar (PNAE). últimas quatro décadas, ainda que
Com o fechamento das escolas, crian- consideradas as necessidades de
ças e adolescentes de todo o país adaptação, fazem do PNAE o mais
deixam de ter acesso a um espaço provável e eficiente caminho para
fundamental para a realização dos fazer chegar alimentos de qualidade
direitos à educação e à alimentação, às crianças e adolescentes no atual
o que afeta de forma mais severa as momento de grave crise alimentar.
famílias em situação de vulnerabili- Além disso, o PNAE estabelece um ca-
dade social e insegurança alimentar nal direto de comercialização com pro-
grave. Aprofunda-se o poço das desi- dutores locais, sendo também estraté-
gualdades sociais na medida em que, gico na dinamização de circuitos curtos
para muitos(as) estudantes, a exclusão de produção e consumo em um momen-
digital impede o ensino à distância e to de muitas inseguranças quanto ao
a falta da oferta regular de alimen- abastecimento e à carestia dos alimen-
tação nas escolas leva à fome. Agri- tos. Para completar, o programa conta,
cultores(as) familiares, quilombolas, em todos os estados e municípios, com
indígenas, povos e comunidades tra- a existência de Conselhos de Alimenta-
dicionais que tinham no mercado da ção Escolar (CAEs), espaços ideais para
alimentação escolar um importante diálogos e negociações com a comuni-
canal de comercialização são também dade escolar, que se fazem necessários
duramente afetados. para as adaptações necessárias em um
Em primeiro lugar, importa reconhe- contexto de crise.
cer o potencial do PNAE enquanto Todos(as) os(as) governadores(as) e
política pública estratégica para o prefeitos(as) tinham em suas mãos o
enfrentamento da fome durante a PNAE como ferramenta para o en-
pandemia. Em seus mais de 40 anos frentamento da crise, mas poucos fi-
de existência, o PNAE tornou-se a zeram o devido uso, o que chama a
mais consolidada e capilarizada po- atenção para a falta de compromisso
lítica de SAN, chegando a todos os de nossos(as) governantes com com-
5.570 municípios brasileiros. Trata-se bate à fome. Não há dúvidas quanto
de um programa que prevê atendi- ao enorme desafio que tem sido fa-
mento universal, o que significa que zer o PNAE acontecer sob condições
todos os mais de 40 milhões de es- de tantas adversidades, sobretudo
tudantes da rede básica de ensino no início da pandemia, quando pouco
têm direito à alimentação escolar. A se sabia sobre o contagioso e mortal
capilaridade e a experiência de ges- novo vírus. O Congresso Nacional e

19
A nuário ÓAÊ

o Fundo Nacional de Desenvolvimen- recursos financeiros através de cartões


to da Educação (FNDE/MEC) foram ou vale-alimentação.
ágeis nas autorizações e regulamen- Essas tendências se confirmam na voz
tações necessárias para a distribui- dos sujeitos de direito do PNAE. É a
ção de cestas de alimentos. Em 8 de partir de informações, percepções
abril de 2020 foi aprovada a Lei n° e relatos que nos trazem estudantes,
13.987/2020, que autorizou “em ca- agricultoras e agricultores em estudos
ráter excepcional, durante o período realizados nesse primeiro ano de exis-
de suspensão das aulas, em razão de tência do ÓAÊ que realizamos este
situação de emergência ou calamida- balanço do PNAE na pandemia.
de pública, a distribuição de gêneros
alimentícios adquiridos com recursos
do PNAE aos pais e responsáveis dos O que nos contam os(as) estudantes
estudantes das escolas públicas de
educação básica”. Estados e municí- Entre julho e agosto de 2021, o ÓAÊ
pios, por sua vez, demoraram a se mo- realizou uma pesquisa que ouviu, so-
bilizar e dar início à distribuição. Para bre a situação do direito à alimenta-
além das muitas inseguranças, o Go- ção escolar em suas escolas, 900 es-
verno Federal não garantiu orçamento tudantes da rede básica pública de
suplementar para que houvesse ade- ensino dos 26 estados do país e do
quação e ampliação do PNAE, quan- Distrito Federal. Esses estudantes vi-
do se sabe que o custo da distribuição vem em um total de 215 municípios.
da alimentação fora do ambiente es- Os dados revelam que, entre abril de
colar é muito mais alto, sem contar a 2020 e julho de 2021, 23% dos es-
necessidade de gastos adicionais com tudantes ouvidos pela pesquisa não
distribuição e fornecimento de Equipa- receberam nenhum tipo de assistência
mentos de Proteção Individual (EPI). alimentar do PNAE. A distribuição é,
de fato, irregular e insuficiente. Ape-
Algumas das principais tendências ob- nas 14% receberam cestas de alimen-
servadas logo que estados e municí- tos ou cartões-alimentação todos os
pios deram início à distribuição dos meses e 21% receberam assistência
alimentos, identificadas em missão de alimentar de suas escolas apenas uma
relatoria da Plataforma Dhesca Brasil, única vez desde o início da pandemia.
foram: i) a focalização do atendimento
em detrimento do atendimento univer- “Acho que deviam dar todo mês
sal; ii) a irregularidade, insuficiência e os kits de alimentação escolar.
falta de qualidade dos alimentos; iii) Com a pandemia fica difícil se
a interrupção das compras da agricul- alimentar em casa, a ajuda do kit
tura familiar; e iv) a transferência de alimentação escolar ajuda muito”.

20
B alanço do P rograma N acional de A limentação E scolar na pandemia

“Estou gostando das cestas, po- partes do país, por candidatos(as)


rém deviam ser entregues todos que buscavam a reeleição.
os meses”.
“Sobre a merenda escolar aqui no
meu município, só tem direito as
A gente não quer só merenda, crianças que recebem Bolsa Fa-
a gente quer alimentação mília. Os demais alunos não rece-
bem, não sei porquê, se todos são
escolar com qualidade
estudantes”.
Leia a reportagem que apresenta o PNAE Houve também uma enorme perda
por meio da voz e das experiências de cinco de qualidade na comparação com
estudantes de diferentes regiões do país. a alimentação que era servida nas
escolas. Os alimentos mais presentes
nas cestas distribuídas são o arroz
(92%), o macarrão (86%) e o feijão
Um dos motivos que explicam o não (81%), seguidos de açúcar (66%) e
recebimento de alimentos por parte óleo (54%). Poucos(as) estudantes
de escolares é a escolha por focali- receberam em suas cestas alimentos
zar o atendimento em estudantes cujas como carnes (23%), legumes e verdu-
famílias estão cadastradas no Ca- ras (29%) e frutas (19%). Durante a
dastro Único para Programas Sociais pandemia, os alimentos in natura per-
(CadÚnico) ou eram beneficiárias do deram espaço na alimentação diária
Bolsa Família, o que se caracteriza de crianças e adolescentes, em espe-
como violação do caráter universal do cial das famílias de mais baixa ren-
PNAE. Nos estados do Rio de Janeiro, da, com maior dificuldade de asse-
Paraná, Espírito Santo, Acre e Minas gurar uma alimentação diversificada.
Gerais, por exemplo, a distribuição de “Vem um kit escolar com poucos
kits/cestas foi direcionada a estudan- itens, mas já ajuda bastante, já
tes cujas famílias estavam cadastra- que as coisas ficaram muito caras,
das no CadÚnico ou em comprovada principalmente a alimentação nos-
situação de vulnerabilidade social. Na sa do dia a dia, como o arroz, o
capital paulistana, a opção foi pelo feijão e o óleo”.
cartão-alimentação que inicialmen-
te só atendia alunos cadastrados em “Na escola, antes da pandemia, era
programas sociais, tendo sido amplia- oferecida uma alimentação varia-
do a todos os estudantes em período da e, após a pandemia, recebemos
pré-eleitoral. Essa estratégia de con- uma cesta com poucos alimentos”.
quista de votos foi adotada em várias

21
A nuário ÓAÊ

Conforme apurado em missão de re- que optaram pela volta às aulas no


latoria da Plataforma DHESCA no es- primeiro semestre de 2021.
tado do Rio de Janeiro, as orientações
passadas às escolas pela secretaria “No primeiro mês de aula desse
de educação indicavam que as esco- ano, foi oferecido somente biscoi-
las, que adotam um modelo de gestão tos, achocolatados e pães. Fala-
descentralizada, deveriam comprar ram que era por conta do Covid”.
para compor suas cestas arroz, feijão, “O lanche é muito repetido. Sem-
óleo de soja, sal, açúcar, farinhas, ma- pre bolacha doce ou salgada. Às
carrão, biscoitos, leite em pó e enla- vezes tem pão ou bolinho. Antes da
tados. Em Santa Catarina, um estudo pandemia era muito mais variado”.
realizado pelo Tribunal de Contas
do Estado (TCE), além de identificar Com a reabertura das escolas e o re-
irregularidades na distribuição, ainda torno às atividades presenciais, novos
pontuou a baixa qualidade do que desafios se impuseram. Alguns esta-
estava sendo oferecido, com excesso dos como São Paulo, Amapá, Distri-
de carboidratos e falta de proteínas to Federal, Maranhão, Pará, Paraná,
e lipídios, além da baixa presença de Pernambuco e o município do Rio de
alimentos in natura. Janeiro condicionaram a alimentação
à presença do estudante na escola,
Em 2021, foi ainda menor o compro- ainda que o ensino esteja acontecen-
misso dos governos com a alimentação do de forma remota ou em modelo hí-
escolar. De acordo com a pesquisa, brido. Ao adotar essa postura, os ges-
37% dos estudantes não receberam tores fazem da alimentação escolar
das escolas nenhum tipo de assistência um objeto de barganha e, novamen-
alimentar. Muitos municípios deixaram te, incorrem em violação do direito à
de distribuir as cestas, o que pode es- alimentação dos(as) estudantes, tendo
tar relacionado tanto com a transição em vista que não é obrigatória a pre-
de gestão, quanto com as incertezas sença física nas aulas, uma vez que
relacionadas à volta às aulas. Há de se ainda estamos em pandemia.
mencionar que nenhuma dessas justifi-
cativas se sustenta, uma vez que segue
de pé a autorização para a distribui- O que nos contam os agricultores e
ção dos alimentos e a recomendação
agricultoras
de sua continuidade na adoção de
sistemas híbridos, que combinam au- Por sua vez, os agricultores, agricul-
las presenciais e remotas. Além disso, toras, povos indígenas, quilombolas,
há relatos que demonstram perda da assentados e assentadas da refor-
qualidade da alimentação nas escolas ma agrária foram também duramen-

22
B alanço do P rograma N acional de A limentação E scolar na pandemia

te afetados pelas adaptações feitas o que representa uma queda de 87%


no PNAE durante a pandemia. Dados no rendimento dessas famílias. Isso os
apresentados pelo FNDE em 2018 expõe a uma situação de vulnerabili-
para o Grupo Consultivo do PNAE, dade e insegurança alimentar e nutri-
sistematizados a partir do Sistema cional. Uma parceria do FBSSAN com
de Gestão de Prestação de Contas o Joio e o Trigo resultou em um mapa
(SIGPC), mostram que, em 2017, fo- de abandono da agricultura familiar,
ram adquiridos R$ 847 milhões em que revela algumas das histórias de
alimentos da agricultura familiar com grupos produtivos ouvidos na pesqui-
recursos do Programa. Não há dados sa que seguem à espera da volta das
atualizados para demonstrar os im- compras públicas.
pactos da pandemia na redução das Como resultado da interrupção das
compras públicas, mas os relatos de compras, houve desperdício de alimen-
agricultoras e agricultores do Seminá- tos e comprometimento no planejamen-
rio que abastecem o PNAE na região to da produção e colheita, justamente
jogam uma luz de alerta. em um momento em que os agricultores
O FBSSAN, em parceria com a Articu- já passavam dificuldades por conta do
lação do Semiárido Brasileiro (ASA), fechamento das feiras em várias loca-
realizou um levantamento durante lidades. Como forma de escoar a pro-
os meses de agosto e setembro de dução e como exercício de solidarie-
2020 junto a 168 grupos produti- dade, muitos (45%) dos grupos ouvidos
vos de agricultores familiares e pes- doaram alimentos, assim como fizeram
cadores artesanais fornecedores do muitas redes e movimentos sociais do
PNAE, presentes em 108 municípios campo, mediante a situação de calami-
da região Nordeste e/ou no Semiári- dade e aumento da fome.
do brasileiro. Os resultados apontam Mas há também muitas experiências
que 44% dos respondentes, que até exitosas, como aquelas que nascem a
2019 forneciam alimentos saudáveis partir do diálogo aberto e de nego-
e diversificados ao PNAE, não o fi- ciações entre governos e associações
zeram em 2020. A pesquisa também de produtores. A pesquisa mostra que,
mostrou que em 2019 esse conjunto de no Semiárido, 40% dos grupos que ti-
168 grupos, que representam aproxi- nham contratos de fornecimento vigen-
madamente 4,5 mil produtores de ali- tes foram chamados para negociação.
mentos, teve um rendimento de aproxi- Esse é o caso do Rio Grande do Norte,
madamente R$ 27 milhões e que, até que já mantinha uma boa relação de
o momento em que o levantamento foi parceria com as associações e coo-
realizado, em setembro de 2020, esse perativas da agricultura familiar. Es-
valor correspondia a R$ 3,6 milhões, tas foram imediatamente chamadas à

23
A nuário ÓAÊ

mesa de negociação. A partir de forte Em novembro de 2021, o ÓAÊ lançou


mobilização dos movimentos sociais do a pesquisa Conta pra Gente, Agricultor,
campo, o governo do estado logo en- que levantou informações mais recen-
tendeu o quão estratégico era o PNAE tes sobre as compras da agricultura
durante a pandemia, tanto para a ga- familiar na pandemia junto a 407
rantia da segurança alimentar, quanto agricultoras e agricultores e suas coo-
para o abastecimento alimentar e de- perativas e grupos informais. 19% vol-
senvolvimento rural do estado, e optou taram a fornecer alimentos ao PNAE
por priorizar as compras diretas, mes- apenas em 2021, enquanto 11% re-
mo com todas as adversidades. Essa lataram que ainda não voltaram a
decisão acertada resultou na aquisi- vender para o Programa, os demais
ção, em 2020, de 338 toneladas de forneceram alimentos pelo menos uma
alimentos, com arroz vermelho e fei- vez entre 2020 e 2021. A maior parte
jão macassar, entre outros alimentos (72%) dos alimentos adquiridos e dis-
regionais. O objetivo é que em 2022 tribuídos nas cestas foram hortaliças e
a compra da agricultura familiar no frutas frescas. O estudo mostra a dimi-
estado corresponda a 50% de tudo nuição e irregularidade nas compras,
que é fornecido através do Programa. mas confirma a possibilidade de solu-
Experiências como essa demonstram o ções conjuntas quando se estabelece
potencial que o PNAE tem quando há o diálogo e a negociação para o en-
diálogo com os movimentos e vontade frentamento da crise. Mesmo durante
política de governantes. a pandemia, e com todos os desafios
logísticos compartilhados entre agri-
cultoras(es) e poder público, milhares
Mesmo durante a de toneladas de alimentos saudáveis
pandemia, e com todos e não industrializados foram compra-
dos e distribuídos.
os desafios logísticos
compartilhados entre
Legado da pandemia para o PNAE
agricultoras(es) e poder
Para além das graves consequências
público, milhares de na alimentação, na saúde e no abas-
toneladas de alimentos tecimento popular, uma grande pre-
ocupação que fica é o legado dessa
saudáveis e não enorme desestruturação, que se acen-
industrializados foram tua com a pandemia. O PNAE já vinha
se enfraquecendo, por conta do ace-
comprados e distribuídos lerado desmonte das políticas de SAN

24
B alanço do P rograma N acional de A limentação E scolar na pandemia

e de fortalecimento da agricultura fa- limentação. Há um crescente interesse


miliar; da ruptura do diálogo com a das empresas de vale-alimentação,
sociedade, que se expressa principal- com associação das redes de super-
mente na extinção do Conselho Nacio- mercado e indústria de alimentos, em
nal de Segurança Alimentar e Nutricio- modelos de gestão experimentados
nal (CONSEA) e do Grupo Consultivo durante a pandemia; um tema que
do PNAE; e das perdas orçamentárias é abordado mais profundamente em
acumuladas, que, somadas à dispara- outro artigo desta publicação.
da de preço dos alimentos, fazem com Por outro lado, cabe comemorar a pro-
que o poder de compra de alimentos fusão de mobilizações da sociedade ci-
do PNAE seja cada vez menor. vil que surgiram ou se fortaleceram em
São muitos os alertas, entre os quais os exigência ao cumprimento do direito
relatos de estudantes que voltaram às humano à alimentação. Algumas des-
aulas e que dizem que em suas esco- sas mobilizações se destacam por dife-
las já não são mais servidas refeições, rentes razões. Por terem apresentado
como antes da pandemia, apenas lan- tendências e relatado casos emblemá-
ches. Falta vontade política e recursos ticos de violação, como a relatoria Vio-
públicos para que o orçamento desti- lações ao Direito à Alimentação Escolar
nado à alimentação escolar pelas três na pandemia de Covid-19: Casos do
esferas de governo possa, ao menos, estado do Rio de Janeiro e do Municí-
ser reajustado de acordo com a inflação. pio de Remanso (Bahia) conduzida pela
Há um enorme abismo entre os muitos plataforma de Dhesca Brasil. Por terem
avanços, principalmente do ponto de buscado a exigibilidade política e judi-
vista da regulamentação do Progra- cial colaborativa entre movimentos de
ma na direção de uma alimentação mães e defensoria pública no estado
adequada e saudável, em especial a do Rio de Janeiro, caso que também é
Resolução nº 6 do FNDE/MEC, e do relatado neste anuário. Ou ainda por
recurso disponível para viabilização terem incubado iniciativas de monito-
desses cardápios. Essa defasagem já ramento do PNAE, como é o caso do
está sendo duramente sentida pela co- próprio ÓAÊ.
munidade escolar com a volta às aulas.
Uma péssima novidade que despon-
tou na pandemia foi a adoção de
cartões- alimentação como forma de
transferir recursos financeiros do PNAE
diretamente às famílias. As famílias de
13% dos estudantes escutados pela
pesquisa tiveram acesso a cartões-a-

25
A nuário ÓAÊ

Exigibilidade política e judicial da alimentação escolar na


pandemia: um olhar sobre o caso do estado do Rio de Janeiro

Rodrigo Azambuja Martins1


Guilherme Pimentel2

É necessário revogar a decisão da mais alta


Corte do país, estabelecendo-se a ampla
judiciabilidade do direito humano à alimentação
adequada. E, enquanto houver uma criança
em situação de insegurança alimentar, não
podemos nos dizer vitoriosos

Desde o surgimento da pandemia pro- tivas da Defensoria, destacam-se as


vocada pelo novo coronavírus, a De- recomendações emitidas a todos os
fensoria Pública do Estado do Rio de municípios e ao próprio estado do Rio
Janeiro (DPE-RJ) iniciou várias ações de Janeiro, o ajuizamento de ações
para garantir a segurança alimentar civis públicas e uma constante articu-
dos estudantes da educação básica, lação com a sociedade civil, desde os
que tiveram as aulas suspensas como movimentos de mães, passando pelos
medida acertada para evitar o espa- estudantes e profissionais da educa-
lhamento da Covid-19. Entre as inicia- ção, até as entidades da sociedade

1 Rodrigo Azambuja Martins é Defensor Público do RJ, Coordenador de Infância e Juventude, Mestre em Direito
pela Universidade de Coimbra.
2 Guilherme Pimentel é Ouvidor-Geral Externo da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.

26
E xigibilidade política e judicial da alimentação escolar na pandemia

civil que compõem os Conselhos de Di- Em julho e agosto de 2020, a Ouvido-


reitos e os múltiplos espaços de defe- ria Externa da DPE-RJ abriu um canal
sa do direito à segurança alimentar. de denúncia com base em questionário
Importante pontuar que essa articula- sobre o fornecimento de alimentação
ção civil foi fundamental para, atra- escolar para estudantes das redes pú-
vés da participação social junto à De- blicas municipal e estadual do Rio de
fensoria Pública, gerar uma litigância Janeiro durante a pandemia. Mais de
estratégica popular, com fiscalização 3.000 pessoas, entre responsáveis e
capilarizada da implementação das estudantes, responderam. Desses, 53%
políticas públicas de alimentação es- disseram que até o momento não ha-
colar, garantindo uma atuação institu- viam recebido nenhum tipo de auxílio
cional dinâmica e fundamentada não referente à alimentação escolar, en-
só na técnica jurídica, mas sobretudo quanto 47% relataram o recebimen-
na realidade vivida pela população to de “algum tipo de auxílio, mas de
titular desse direito. forma insuficiente”. ​Em consonância
Antes mesmo da publicação da Lei com as informações levantadas pela
13.957, que inseriu o art. 21-A na Lei Ouvidoria e a realidade apresentada
11.947, para “durante o período de pelas mães, a atuação da DPE-RJ fun-
suspensão das aulas nas escolas públi- damentou a urgência na efetivação do
cas de educação básica em razão de direito a partir do reconhecimento de
situação de emergência ou calamidade que o Programa Nacional de Alimenta-
pública (...) [autorizar] em todo o terri- ção Escolar (PNAE), mais do que mera
tório nacional, em caráter excepcional, complementação da educação, é polí-
a distribuição imediata aos pais ou res- tica pública eficaz de combate à fome,
ponsáveis dos estudantes nelas matricu- servindo de modelo para a implanta-
lados”, a DPE-RJ solicitou às secretarias ção de programas sustentáveis de ali-
estadual e municipais de educação e mentação escolar em diversos países
de assistência social que encontrassem do mundo, como reconhecido pela Or-
alternativas para manter a segurança ganização das Nações Unidas para a
alimentar dos alunos enquanto durasse Alimentação e a Agricultura (FAO).
a suspensão das aulas. A urgência da Segundo o Programa Mundial de
demanda era nítida, já que diversos Alimentos da Organização das Na-
movimentos de mães de estudantes das ções Unidas (PMA):
redes públicas denunciavam o risco à a alimentação escolar é uma estra-
segurança alimentar de seus filhos, no tégia reconhecida para melhorar
contexto de diminuição da renda das a nutrição e a saúde, aumentar o
famílias e perda do acesso às refeições acesso à educação e a frequência
escolar, reduzir desigualdades na
realizadas na escola. educação e melhorar o desempenho

27
A nuário ÓAÊ

dos alunos. Quando está vinculada mente realizadas na escola, para to-
à agricultura local, a alimentação dos os alunos da educação básica da
escolar também fortalece as econo- rede pública municipal; ii) a distribui-
mias locais e ajuda as famílias rurais
a superar a pobreza e a fome. ção imediata, dando-se preferência
a alimentos in natura e minimamente
Nessa seara, o Brasil desponta como: processados; iii) a utilização de recur-
um dos poucos países do mun- sos provenientes do próprio município
do com um programa universal e, a título suplementar, dos recursos
de alimentação escolar. Todas as
crianças matriculadas em escolas federais provenientes do PNAE; iv) o
públicas recebem uma refeição nu- cumprimento da aquisição de gêneros
tricionalmente balanceada e par- alimentícios diretamente da agricultu-
ticipam de atividades de educa- ra familiar; v) a realização de infor-
ção alimentar e nutricional. Todos mes com indicação dos dias, horários
os dias, o Programa Nacional de
Alimentação Escolar alimenta 43 e locais nos quais os responsáveis po-
milhões de crianças no Brasil. derão comparecer para retirar a ren-
da ou os gêneros alimentícios; e vi) a
Com a publicação da Lei 13.957 e
adoção de medidas sanitárias.
o reconhecimento, pelo Poder Legis-
lativo, da necessidade da execução As prefeituras que não prestaram infor-
do PNAE com o fechamento das es- mações (sobre acolhimento ou não das
colas – e edição da Resolução FNDE medidas sugeridas) ou se recusaram ao
02/2020, criando parâmetros para fornecimento de kit merenda ou alter-
execução da política pública –, foram nativas que assegurassem o direito à
encaminhadas recomendações aos 92 alimentação dos alunos foram proces-
municípios do estado do Rio de Ja- sadas: Angra dos Reis, Areal, Barra do
neiro, além do governo estadual. A Piraí, Barra Mansa, Belford Roxo, Cabo
recomendação consiste, como diz o Frio, Cambuci, Cachoeiras de Macacu,
nome, numa sugestão de implementa- Duque de Caxias, Itatiaia, Itaboraí, Ita-
ção de determinado comportamento ocara, Japeri, Mangaratiba, Mendes,
pelo ente público, uma vez constatada Miracema, Nova Friburgo, Paraíba do
omissão. É um instrumento que objetiva Sul, Quatis, Queimados, São João de
solucionar, sem recurso ao Poder Judi- Meriti, São Pedro da Aldeia, Vassou-
ciário, a controvérsia. ras, Volta Redonda, Rio de Janeiro. No
caso do Rio de Janeiro, o governo do
A recomendação sugeria aos entes
estado também sofreu processo.
públicos, executores do PNAE, que as-
segurassem, dentre outras coisas: i) a Muitas das decisões favoráveis não fo-
distribuição de gêneros alimentícios e/ ram cumpridas, o que motivou reque-
ou transferência de renda, correspon- rimentos de execução, inclusive com a
dentes ao número de refeições normal- fixação de multa contra os administra-

28
E xigibilidade política e judicial da alimentação escolar na pandemia

dores públicos (prefeitos, governador, Infelizmente, o Supremo Tribunal Fede-


secretários de educação). Aqui vale ral (STF), acolhendo pedido das prefei-
destacar o papel decisivo cumprido turas e do governo estadual, suspendeu
pela sociedade civil, em especial pe- as liminares. Entendeu a Presidência da
los movimentos de mães de estudantes Corte que não cabia ao Poder Judiciá-
da rede pública. A partir do contato rio imiscuir-se na questão:
direto com a Ouvidoria Externa da Não se ignora que a crise sanitá-
DPE-RJ, esses coletivos enviavam infor- ria do novo coronavírus, ora viven-
mações precisas sobre o cumprimento ciada, atingiu o funcionamento de
ou descumprimento das decisões, que instituições tanto no setor privado
quanto público, e, nessa medida,
funcionaram como contraprovas para impôs alterações no cotidiano de
a atuação judicial. Essa relação gerou todos. Também não desconsidero a
um fluxo de fiscalização que permitiu relevância do direito cuja satisfa-
à Defensoria levar aos autos dos pro- ção a decisão ora objurgada pre-
cessos a realidade concreta das famí- tende garantir. Mas, exatamente
em função da gravidade da situ-
lias, muitas vezes diferente das ver- ação, exige-se a tomada de medi-
sões oficiais alegadas em juízo pelos das coordenadas acerca das po-
entes do poder público. líticas públicas a serem adotadas,
não cabendo ao Poder Judiciário
substituir os gestores responsáveis
Mães se organizam para pela condução dos destinos do Es-
garantir alimentação escolar tado, neste momento – SL 1342,
Min. Dias Toffoli.
durante pandemia
A questão não foi definitivamente jul-
Leia a reportagem que mostra a luta de mulheres gada, uma vez que foram apresenta-
que reivindicam distribuição de cestas de alimentos dos recursos contra a decisão da Pre-
para seus filhos e filhas e para todos(as) os(as) sidência do STF. Tentou-se demonstrar
estudantes. que estamos diante de direito humano
fundamental: a alimentação adequa-
da, que precisa ser prática e efeti-
Especificamente em relação à cidade va, de maneira que os governos não
do Rio de Janeiro e ao governo es- podem se eximir do seu cumprimento
tadual, a decisão concedeu dez dias com a mera alegação de insuficiência
para implementação da distribuição de recursos ou em razão de uma cri-
dos kits merenda ou transferência de se sanitária, como relembra o Comitê
renda a todos os alunos. A intimação Sobre Direitos Econômicos e Sociais,
aconteceu em 25 de maio de 2020. em seu comentário geral 12. Manter a
Assim, em 05 de junho apresentamos segurança alimentar da população é
o pedido de execução. estratégia eficaz contra a crise sanitá-

29
A nuário ÓAÊ

ria, uma vez que um corpo saudável é Outra importante contribuição para o
menos suscetível a adoecimentos. entendimento sobre o caso do estado
Não fosse isso, tentamos demons- do Rio de Janeiro foi a missão de re-
trar que os titulares do direito eram latoria feita no âmbito da Plataforma
crianças, que gozam da garantia de Brasileira de Direitos Humanos (Dhes-
prioridade absoluta, afinal precisam ca Brasil). A relatora, Mariana Santa-
se alimentar para se desenvolverem relli, revela que a omissão do estado
plenamente. Nesse quadro normati- se configura como grave violação de
vo, havendo autorização rectius de- princípios fundamentais relativos à
terminação de execução do PNAE, obrigação do Estado de promover e
era lícito a atuação judicial para prover o Direito Humano à Alimenta-
corrigir a omissão. Cabe destacar a ção e Nutrição Adequadas (DHANA),
manifestação pública feita por or- tais como: i) o princípio da prioridade
ganizações não governamentais, na- absoluta, do uso do máximo de recur-
cionais e internacionais, em denúncia sos disponíveis e da vedação do retro-
ao descaso do STF com o direito hu- cesso social referente à dimensão de
mano à alimentação. estar livre da fome; ii) o princípio da
legalidade de atendimento universal
A alegação da violação à Separa-
ção dos Poderes não pode ser invo- e da não discriminação; iii) os princí-
cada quando o Estado é omisso e pios da participação social, prestação
ineficiente na prestação da política de contas e responsabilização; iv) as
pública, deixando estudantes à mín- diretrizes de provisão de alimentação
gua de seu direito mais fundamen- adequada e saudável e da compra
tal de, inclusive, estar livre da fome.
A obrigação de comportamento do direta da agricultura familiar previs-
Poder Judiciário, perante a Constitui- tas na legislação do PNAE.
ção Federal e os Tratados Interna- Embora suspensas as liminares, e sem
cionais, é justamente a de garantir
direitos desta magnitude, quando os que tenha ocorrido julgamento definiti-
demais poderes falham ou mostram- vo das ações propostas, houve avanços
-se ineficientes. Não se trata aqui de na execução da política pública, a par-
se substituir ao Estado na realização tir de efeitos indiretos da propositura
da política pública, mas de compe- das demandas. Com efeito, a conquis-
lir o Estado do Rio de Janeiro para
que garanta efetivamente o direito ta normativa não encerra a luta pela
à Alimentação Escolar de Estudantes. sua implementação. O ajuizamento das
Se não for este o papel do Poder Ju- ações coletivas, com ampla cobertura
diciário, especialmente do STF, fren- da imprensa e mobilização social das
te aos Direitos Humanos Fundamen- famílias dos alunos, fez com que o esta-
tais Sociais, como a alimentação e a
educação, qual será? do de letargia, em muitas dessas cida-
des, fosse superado. Aqui destacamos

30
E xigibilidade política e judicial da alimentação escolar na pandemia

a importância da atuação da Passeata tante entre atuação judicial e mobiliza-


das Mães, Brigadas Populares, Movem, ção social, por outro lado não se pode
Mães de Itaboraí, Fórum Brasileiro de dizer ainda que a atuação logrou-se
Soberania e Segurança Alimentar e vencedora. É necessário revogar a de-
Nutricional, Ação da Cidadania, além cisão da mais alta Corte do país, esta-
de alguns Conselheiros Municipais e belecendo-se a ampla judiciabilidade
Estaduais de Alimentação Escolar. Es- do direito humano à alimentação ade-
ses foram os primeiros movimentos com quada. E, enquanto houver uma criança
quem a DPE-RJ construiu essa atuação em situação de insegurança alimentar,
estratégica. A repercussão dos resulta- não podemos nos dizer vitoriosos. En-
dos obtidos junto a esses grupos gerou tretanto, restou evidente que os proces-
um efeito mobilizador em outros municí- sos judiciais geraram efeitos para além
pios, agregando outros movimentos de dos autos, servindo, ao lado de outros
mães e entidades da sociedade civil meios de coerção social, para efetiva-
ligadas ao combate à fome. ção, ainda que parcial, do direito à ali-
Se por um lado, o efeito dessas ações mentação de muitas crianças.
tem catalisado um entrosamento impor-

31
A nuário ÓAÊ

Debates sobre a reabertura das escolas e o direito à alimentação


escolar durante a pandemia

Andressa Pellanda1
Marcele Frossard2

A reabertura das escolas e a devida oferta


da alimentação escolar são políticas
fundamentais para assegurar que crianças no
país todo tenham acesso à alimentação, mas
esse processo foi marcado pelo descaso do
poder público e pela ausência de ações que
garantissem uma reabertura segura.

Atualmente no Brasil existe uma rede mia de Covid-19, contudo, para seguir
de educação composta por 131.641 os protocolos de segurança e evitar o
escolas que, através do Progra- aumento do contágio, a distribuição
ma Nacional de Alimentação Escolar de alimentos também foi suspensa.
(PNAE), deveria disponibilizar alimen- A Campanha Nacional pelo Direito
tação saudável e de qualidade para à Educação se manteve atenta des-
seus estudantes. Desde que as aulas de o início desse processo, realizan-
foram suspensas em função da pande- do consultas públicas e produzindo

1 Andressa Pellanda é coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.


2 Marcele Frossard é assessora de políticas sociais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

32
D ebates sobre a reabertura das escolas

documentos junto com a comunidade Somado a esse processo, a distribui-


escolar para monitorar, acompanhar, ção da alimentação escolar através do
denunciar e recomendar soluções e es- PNAE também foi afetada, em um con-
tratégias para que o direito à educa- texto de aprofundamento da crise so-
ção pública de qualidade para todas cial, econômica, política e institucional,
e todos fossem assegurados, o que in- com consequências graves para o país,
clui a manutenção da distribuição de como o aumento da fome e do desem-
alimentos pelo PNAE. Nesse contexto, prego. Logo, cerca de 40 milhões de
foi formado o Observatório da Ali- crianças e adolescentes, estudantes das
mentação Escolar (ÓAÊ) – em parceria escolas públicas de educação básica
com a ActionAid Brasil, o Fórum Brasi- ficaram sem a alimentação escolar em
leiro de Soberania e Segurança Ali- algum momento do período.
mentar e Nutricional (FBSSAN) e o Mo- As mudanças nas gestões municipais,
vimento dos Trabalhadores Rurais Sem na virada para 2021, também agra-
Terra (MST) –, plataforma necessária varam o processo de distribuição de
para acompanhar o PNAE durante o alimentos e o debate sobre a rea-
momento de crise, colaborando para bertura das escolas públicas, pois os
garantir sua implementação. novos gestores não necessariamente
Quando a pandemia começou, em estavam familiarizados com o PNAE e
2020, passamos por diferentes fases com as atribuições de seus cargos, o
no entendimento de como acontecia a que se tornou um agravante no contex-
contaminação, a expectativa pela va- to de crise. Na esfera federal, em um
cina, o desenvolvimento de protocolos dos principais movimentos que coloca-
de biossegurança e o anseio pelo re- ram em risco o Programa, o Congres-
torno às atividades estudantis, consi- so Nacional discutiu a prorrogação do
derando a segurança possível em seus estado de calamidade pública, pro-
ambientes. Nesse sentido, o processo vocando insegurança jurídica sobre a
de reabertura das escolas foi intensa- falta de orientações claras por parte
mente debatido. O primeiro estado a do Fundo Nacional de Desenvolvimen-
promover o retorno foi o do Amazo- to Escolar (FNDE) em relação às bases
nas, mesmo em um contexto de aumen- legais que respaldam a continuida-
to dos casos e de novas variantes da de da autorização de distribuição de
doença, ainda em 2020. Desde então, cestas e as estratégias adotadas em
estados e municípios foram testando modelos híbridos – aulas presenciais e
formas de reabertura, apesar das crí- remotas. Em abril, o Senado aprovou a
ticas sobre as condições de segurança prorrogação do estado de calamidade
e o negacionismo científico em deci- até 31 de dezembro de 2021, após
sões de políticas emergenciais. forte incidência da sociedade civil.

33
A nuário ÓAÊ

No que se refere ao processo de re- cujas famílias estão no Cadastro Úni-


abertura das escolas, um dos momen- co para Programas Sociais (CadÚnico)
tos críticos foi a entrada em pauta do ou são beneficiárias do Bolsa Família,
Projeto de Lei (PL) 5.595/2020, que desconsiderando que muitas famílias
pretendia tornar a educação ativida- foram excluídas desse processo, já que
de essencial, forçando os trabalhado- o aumento da pobreza não segue o
res em educação a retornarem às ati- mesmo ritmo do cadastramento.
vidades presenciais. O PL foi sugerido O impacto nos pequenos produtores
em um momento de aumento expressi- também deve ser considerado, pois
vo dos casos de Covid-19, no mês de uma das escolhas realizadas pelos ges-
abril, quando atingimos a marca de tores públicos foi a de adquirir alimen-
3.123 vítimas diárias. E foi considera- tos por meio de cartão alimentação em
do por especialistas e pela sociedade grandes redes de distribuição e super-
civil uma irresponsabilidade, que aten- mercados. Pequenos produtores e cir-
tava contra a vida e a dignidade ao cuitos de abastecimento popular foram
invés de propor soluções para garantir prejudicados, visto que dependem de
os direitos dos estudantes. A proposta políticas como o PNAE e o Programa
foi barrada após intensa mobilização e de Aquisição de Alimentos (PAA). Essa
incidência feitas pela Campanha. opção ainda favoreceu tanto a concen-
Em termos das práticas desenvolvidas tração econômica das redes de abas-
durante a pandemia para distribuição tecimento alimentar e das compras pú-
de alimentos, apesar da falta de da- blicas, quanto a aquisição de alimentos
dos oficiais, observamos que a distri- processados e ultraprocessados, acen-
buição de alimentos não foi coorde- tuando a exclusão social.
nada e, consequentemente, não houve Apesar das ações e recomendações
uma homogeneidade nas soluções de- ocorridas ao longo do processo de rea-
senvolvidas pelos diferentes entes fe- bertura, o retorno às atividades presen-
derativos para a realização do PNAE. ciais não aconteceu em contexto sanitá-
Houve demora para mobilizar a dis- rio e de infraestrutura seguro. A oferta
tribuição dos kits de alimentação, de- de alimentação nas escolas está sendo
sigualdade na distribuição, tanto na restabelecida, mas continuamos sem
regularidade quanto na qualidade, dados suficientes para um diagnóstico
com interrupção das compras da agri- panorâmico e aprofundado sobre como
cultura familiar e ausência de diálogo está acontecendo.
com os conselhos de alimentação esco-
lar, que seguem fragilizados. Por fim, o que se percebe é que, assim
como nas demais políticas públicas, hou-
Nas mais diversas regiões, houve ten- ve falha imensa do governo federal em
dência de focalização nos estudantes

34
D ebates sobre a reabertura das escolas

coordenar e financiar processos e políti- são políticas fundamentais para asse-


cas para a garantia de direitos durante gurar que crianças no país todo tenham
a pandemia. O PNAE não ficou isento acesso à alimentação, mas esse proces-
do descaso do governo federal em sua so foi marcado pelo descaso do poder
execução. A reabertura das escolas e a público e pela ausência de ações que
devida oferta da alimentação escolar garantissem uma reabertura segura.

35
B loco 1

Alimentação saudável e
agricultura familiar
A nuário ÓAÊ

ENTREVISTA
“Um programa capaz de acompanhar a evolução do conceito de
alimentação saudável”

Por Gabrielle Araujo1

Para dialogar sobre a importância do Programa Nacional de Alimentação Es-


colar (PNAE) na promoção da saúde e alimentação adequada, os impactos na
diminuição da obesidade de crianças e adolescentes, além dos riscos da oferta
continuada de produtos ultraprocessados na dieta escolar, convidamos Patrícia
Jaime – nutricionista, professora titular do Departamento de Nutrição da Faculda-
de de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e membro do Núcleo
de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) também da USP –
e Mirena Boklis Berer – nutricionista, especialista em cardiologia pelo Instituto de
Cardiologia da Fundação Universitária de Cardiologia (IC-FUC) no Rio Grande
do SUL e em educação permanente pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS), além de mestre em Nutrição em Saúde Pública pela USP. Mirena
acaba de realizar um estudo que mostra o impacto positivo do PNAE na qualida-
de da alimentação das crianças participantes do Programa, a partir da análise
dos dados de mais de 12 mil estudantes.
Conversamos com elas para entender melhor alguns dados levantados na pesqui-
sa do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), que ouviu 900 alunos de 12
a 16 anos para saber como era a alimentação em suas escolas antes e depois
da pandemia. Dos estudantes entrevistados, 35% responderam que a oferta de
alimentos ultraprocessados é feita diariamente nas escolas, e 46% contaram que
recebem esses alimentos de uma a quatro vezes por semana. Como se vê, apesar
do longo caminho já trilhado, ainda são muitos os desafios.

1 Gabrielle Araujo é jornalista formada pela UFRRJ e atua com produção de conteúdo digital. No ÓAÊ, é Assessora de Comunicação Social.

38
E ntrevista

ÓAÊ - O Brasil e o mundo vivem um ÓAÊ - O que são os alimentos ultra-


grave problema de saúde pública, processados? Como afetam a nossa
que é o crescimento do sobrepeso e saúde?
da obesidade. Como esse problema Patrícia Jaime - Nasce de uma outra
se apresenta no Brasil, especialmen- forma de classificar os alimentos. Nas
te entre crianças e adolescentes? pesquisas do Nupens, nos dedicamos
Mirena Boklis Berer - O sobrepeso e muito aos estudos que avaliam os da-
a obesidade vêm preocupando cada dos de consumo alimentar ou de com-
vez mais, e a gente observa, nos últi- pras de alimentos nos inquéritos popu-
mos anos, um aumento desse número. lacionais. Usualmente, nós pegávamos
Não temos dados tão atuais das crian- os alimentos que as pessoas consumiam
ças e dos adolescentes, mas os dados e os nutrientes. Observamos se esta-
de 2015, que foram os que eu estu- vam consumindo açúcar, gordura, sódio,
dei, mostraram que 25% dos adoles- carboidratos e outros alimentos e ana-
centes apresentam sobrepeso ou obe- lisamos dados no Brasil, desde uns 30
sidade. No mundo houve um aumento, anos, que permitem que a gente faça
de 1975 a 2016, de 10 vezes desses comparações no tempo. Foi então que
números. Assim como vêm crescendo o nós começamos a observar que, quan-
sobrepeso ou a obesidade, também do a gente via o que tinha mudado em
vem aumentando o consumo de alguns termos de consumo de alimentos entre
alimentos que a gente chama de ul- um inquérito e o outro, não correspon-
traprocessados. E a preocupação é dia às mudanças no estado nutricional.
que o sobrepeso e a obesidade estão A obesidade estava aumentando mui-
associados, tanto em adultos como em to, só que na hora que a gente olhava
crianças e adolescentes, com doenças os dados de consumo, em especial de
crônicas que vão aumentar a mortali- compras de alimentos, nós víamos que
dade, e a gente sabe que nessa fai- as pessoas estavam comprando menos
xa etária, principalmente na adoles- óleo, menos açúcar. Então isso não ex-
cência, o estado nutricional adquirido plicava as hipóteses daquele momento,
tende a se manter na vida adulta. Por sobre os alimentos que estavam levan-
isso a fase escolar é um momento tão do à obesidade. Pensamos: será possí-
importante para se fazer alguma in- vel organizar essa informação e esse
tervenção e conscientização. dado de consumo de outra forma? A
gente começou a perceber que o que
mudava eram os padrões de consumo
alimentar que estavam muito relacio-
nados com a forma que esses alimen-
tos estão hoje disponíveis e como são

39
A nuário ÓAÊ

consumidos. Foi então que surgiu uma ÓAÊ - Queremos saber um pouco
nova classificação de alimentos, que é mais sobre a relação da alimentação
a chamada Classificação Nova, que com fenômenos como a sustentabili-
leva em consideração não a composi- dade dos sistemas alimentares e as
ção química do alimento, o que tem de mudanças climáticas?
nutriente lá dentro, mas sim a extensão Patrícia Jaime - Os estudos dos ultra-
e o propósito do processamento que processados começam com avaliações
esse alimento sofreu antes do consumi- relacionadas à qualidade da alimen-
dor adquirir, ou seja, antes das pessoas tação e sobre os desfechos de saúde,
comerem. Então essa classificação se como a obesidade. Já não há mais
divide em quatro grupos: o primeiro, dúvida na academia sobre o fato de
que são os alimentos in natura ou mini- que padrões alimentares baseados
mamente processados; o segundo, são em alimentos ultraprocessados aumen-
os ingredientes culinários; o terceiro, tam o risco em saúde para as doenças
são os alimentos processados; e o últi- crônicas não transmissíveis. Agora, um
mo grupo, e essa é a grande sacada, outro aspecto que ganha relevância
são os alimentos ultraprocessados, que na pesquisa científica é o entendimen-
permitem um olhar específico aos ali- to sobre o impacto dessas dietas ultra-
mentos industrializados. Esses alimentos, processadas na sustentabilidade.
que você não consegue reproduzir em
casa, utilizam muitos poucos ingredien- Esses alimentos nos levam a um modelo
tes extraídos de alimentos de verdade. de produção que é baseado em pou-
A eles são adicionados vários produ- quíssimas espécies, porque eles partem
tos e substâncias que vão dar sabor basicamente de uns três ou quatro in-
artificial e consistência. Esses alimentos gredientes para a produção, como soja
ultraprocessados são em geral de um ou milho, que são as grandes commodi-
perfil nutricional muito ruim, mas mais ties agrícolas. Então eles oferecem um
do que isso, eles alteram a nossa forma risco, que não é só mais para a saúde
de comer, eles substituem a comida, a humana, mas também para a saúde
refeição, eles são feitos para isso e são ambiental. Porque eles geram um im-
hiper palatáveis, induzem à gula. pacto na perda de biodiversidade, in-
duzem a um sistema alimentar voltado
para a produção de poucos alimentos.
Além disso, tem uma outra externalida-
de para ser considerada, porque eles
produzem muitos resíduos ambientais.
Quando falamos de sustentabilidade,
temos que falar nas diferentes dimen-

40
E ntrevista

sões; porque eu posso falar da perspec- mentar que é mais sustentável. Por ou-
tiva ecológica, ou seja, de quanto, por tro lado, modelos de sistema alimentar
exemplo, isso induz a um maior consu- hegemônico também levam a padrões
mo de água para produção de deter- alimentares ultraprocessados. É uma
minadas commodities agrícolas, o uso coisa de retroalimentação em termos
extensivo de terras com os agrotóxicos, de demanda e oferta.
que é muito presente nos sistemas de
produção dos quais derivam os alimen-
tos ultraprocessados. E hoje a gente já a regra de ouro
tem estudos que mostram essa pegada que é faça a sua
ecológica de dietas ultraprocessadas. É
possível também a gente estabelecer a alimentação a base
relação com a diversidade. Então, uma de alimentos in natura
dieta baseada em ultraprocessados,
ela demanda pouquíssimas espécies,
ou minimamente
tanto vegetais quanto animais. Já uma processados e
dieta mais diversificada induz um siste- preparações culinárias
ma alimentar que é mais variado em
termos de produção. Então entramos em detrimento
na dimensão social da sustentabilida- dos alimentos
de. Sistemas alimentares baseados em
poucos produtos geram ainda maiores ultraprocessados
desigualdades entre o pequeno pro- Patrícia Jaime
dutor e a grande indústria, que vai ser
a grande fornecedora de alimentos
ultraprocessados. Mirena Boklis Berer - E é justamente
aí que entra a alimentação escolar. Ela
Acho que todas essas recomendações tem o poder de atuar nos eixos globais,
que aparecem no Guia Alimentar da das mudanças climáticas, para além da
População Brasileira – na regra de desnutrição e obesidade. Porque com
ouro que é faça a sua alimentação a um programa estruturado, que vai ofe-
base de alimentos in natura ou mini- recer uma alimentação de qualidade,
mamente processados e preparações baseada em alimentos in natura e mi-
culinárias em detrimento dos alimentos nimamente processados, estimulamos
ultraprocessados –, elas buscam esta- uma alimentação mais saudável, en-
belecer esse nexo que quando a gen- tão acaba que ajudamos a combater
te tem a possibilidade de ter padrões a obesidade e a desnutrição, porque
alimentares baseados em alimentos in estaremos oferecendo menos alimentos
natura, isso organiza um sistema ali-

41
A nuário ÓAÊ

que são prejudiciais e também estimu- 6 FNDE/MEC, que já


lando sistemas alimentares adequados.
estabelece parâmetros
mais restritivos para
ÓAÊ - Como é que essa perspectiva
da alimentação adequada e saudá- aquisição de alimentos
vel foi ganhando e construindo es- ultraprocessados
paço dentro das políticas públicas
brasileiras até chegar ao PNAE? Patrícia Jaime
Patrícia Jaime - O PNAE é um progra-
ma canalizador das nossas práticas e Do ponto de vista de desenho operacio-
da reflexão sobre políticas de alimen- nal e de gestão, esse aperfeiçoamento
tação e nutrição no nosso país. Deve- foi possibilitando que o seu caráter, que
mos muito a esse programa, que é um era muito assistencialista, no sentido de
legado gigantesco para o Brasil. simplesmente ofertar alimentos, fosse
ganhando outras camadas até que che-
gasse na perspectiva do direito à ali-
A municipalização já mentação adequada e saudável.
produziu qualidade Quando você municipaliza, você au-
na alimentação menta o repertório de alimentos, por-
que você tira aquela coisa da compra
escolar. Depois centralizada, que são basicamente os
você vai alterando alimentos muito processados. A muni-
cipalização já produziu qualidade na
os parâmetros alimentação escolar. Depois você vai
nutricionais, quando alterando os parâmetros nutricionais,
quando a gente introduz a questão
a gente introduz a da compra da agricultura familiar. Isso
questão da compra produziu uma completa revolução. E
da agricultura familiar, mais recentemente, essa última mudan-
ça normativa, a Resolução nº 6 FNDE/
isso produziu uma MEC, que já estabelece parâmetros
completa revolução. mais restritivos para aquisição de ali-
mentos ultraprocessados. Acho que o
E mais recentemente, Programa, historicamente, mostrou que
essa última mudança é capaz de acompanhar a evolução do
conceito de alimentação saudável.
normativa, a resolução

42
E ntrevista

Mirena Boklis Berer - Acredito que foi que o consumo da alimentação escolar
mais ou menos a partir de 2009 que estava associado à melhor qualidade
se deram as principais mudanças. Para da dieta, que foram estudos conduzi-
mim, a Lei 11.946/2009 é o grande dos com os dados da PeNSE de 2012
marco. Contribui muito a obrigatorie- com alunos do nono ano; mas a gente
dade do profissional nutricionista como ainda não tinha esses dados relaciona-
responsável pela elaboração dos car- dos com a obesidade. E o PeNSE de
dápios e a fiscalização dos Conselhos 2015 teve uma segunda amostra que
de Alimentação Escolar, entre outros envolveu não só o nono ano, mas todo o
aspectos. Na minha dissertação, eu fiz ensino fundamental, e também coletou
uma linha do tempo e vejo que sem- os dados de peso e altura.
pre tem alguma coisa nova. O PNAE
acompanha muito as mudanças e os
avanços que temos tido na área de o que encontramos foi
nutrição. E quando comparamos a ali- o que esperávamos:
mentação que é ofertada hoje com a
alimentação que meus pais tinham na consumir alimentação
época da escola, que era muito aque- escolar todos os dias
les mingaus, aquelas misturas que todo
mundo tem trauma até hoje, a gente vê
está associado com
que realmente teve um avanço grande. o maior consumo
de alimentos
ÓAÊ - Quais são as evidências de saudáveis, como as
estudos que associam o consumo da
alimentação escolar oferecida pelo
frutas, hortaliças,
PNAE com a mudanças de dietas e feijão etc. e com
também a ocorrência de obesidade? um menor consumo
Mirena, você pode nos contar sobre
o seu estudo? de alimentos não
Mirena Boklis Berer - Estudei dados saudáveis, entre eles
de adolescentes a partir da Pesquisa os ultraprocessados
Nacional de Saúde Escolar (PeNSE) de
2015 para avaliar a associação entre Mirena Boklis Berer
o consumo da alimentação escolar, tan-
to na qualidade da dieta, quanto no
Analisamos dados de mais de 12.000
estado nutricional – principalmente a
estudantes de escolas públicas de todo
obesidade e o sobrepeso. Já existiam
o Brasil, olhando para a associação en-
alguns estudos brasileiros que sugeriam
tre consumir alimentação escolar todos

43
A nuário ÓAÊ

os dias, com a qualidade da dieta. E o uma política pública que dialoga com
que encontramos foi o que esperáva- as questões de nutrição e saúde, não
mos: consumir alimentação escolar to- só de educação, e ele pode ser supe-
dos os dias está associado com o maior rimportante para diminuir o problema
consumo de alimentos saudáveis, como de saúde pública que é a obesidade,
as frutas, hortaliças, feijão etc. e com um mas para isso a gente também tem que
menor consumo de alimentos não sau- entender melhor porque que essa ade-
dáveis, entre eles os ultraprocessados. são é baixa e então poder atingir todo
O nosso estudo mostrou que o PNAE é esse potencial.

Resultados do estudo

O estudo School meals consumption is associated with a better diet quality of Brazilian
adolescents: results from the PeNSE 2015 survey apontou que o consumo mais
frequente de alimentação escolar esteve positivamente associado à qualidade da
dieta de adolescentes de 11 a 19 anos. Além disso, o consumo mais frequente de
alimentação esteve diretamente associado tanto ao menor consumo de alimentos não
saudáveis quanto ao maior consumo de alimentos saudáveis. Nesse sentido, com a
maior frequência de oferta da alimentação escolar, os adolescentes apresentaram,
significativamente, maior ingestão regular de feijão e legumes ou verduras, além de
diminuir o consumo regular de refrigerante.

O consumo mais frequente de alimentação escolar apresentou uma associação do


que é chamado de dose-resposta inversa à obesidade. Dessa forma, a prevalência
de obesidade foi 24% menor entre os adolescentes com consumo mais frequente de
alimentação escolar. O efeito protetor foi encontrado apesar do baixo percentual
de alunos aderentes. Porém, um dado preocupante é que menos de 22% dos
alunos analisados na pesquisa relataram que consumiam a alimentação escolar
em todos os cinco dias letivos. Ao final, concluiu-se que o PNAE pode ser uma
importante estratégia para o enfrentamento da obesidade.

44
E ntrevista

45
A nuário ÓAÊ

Comida de verdade nas escolas do campo e da cidade:


um olhar sobre a inserção de alimentos da agricultura familiar
e agroecologia no PNAE

Vanessa Schottz1
Juliana Casemiro2
Morgana Maselli3
Flávia Londres4

O acesso continuado ao mercado institucional


ao longo dos anos é um dos fatores que tem
propiciado o fortalecimento das dinâmicas
organizativas da agricultura familiar, em
especial de grupos de mulheres e de povos
e comunidades tradicionais, assim como a
diversificação da produção e a ampliação da
capacidade de processamento de alimentos;
por exemplo, a estruturação de unidades de
beneficiamento de frutas nativas

1 Vanessa Schottz é professora no Curso de Nutrição da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)/Campus Macaé,
pesquisadora no CERESSAN, membro do Conselho Consultivo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança
Alimentar e Nutricional (RBPSSAN). Representa o FBSSAN no Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ).
2 Juliana Casemiro é professora adjunta no Instituto de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (INU/UERJ) e
membro do Núcleo Executivo do FBSSAN.
3 Morgana Maselli integra a Secretaria Executiva da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
4 Flávia Londres integra a Secretaria Executiva da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).

46
C omida de verdade nas escolas do campo e da cidade

O Programa Nacional de Alimentação de produtos da agricultura familiar6.


Escolar (PNAE) é considerado uma das Até o ano de 2012, metade dos muni-
mais relevantes políticas públicas brasi- cípios brasileiros não conseguiam efeti-
leiras de Segurança Alimentar e Nutri- var a compra da agricultura familiar no
cional (SAN) por sua capilaridade, lon- percentual mínimo estabelecido em lei7.
gevidade e concepção. O PNAE passou Em um cenário de desmonte sistemático
por processo de aprimoramento a par- das políticas públicas de SAN, iniciado
tir da publicação da Lei 11.947/2009 a partir de 2016 e agravado pelo
que desdobrou-se na obrigatoriedade contexto da pandemia de Covid-19
de cardápios saudáveis, culturalmente a partir de 2020, identifica-se um
referenciados e com inclusão de pro- aumento expressivo da insegurança
dutos da agricultura familiar. Diversas alimentar. Nesse cenário, em 2020, a
organizações da sociedade civil, redes incidência da sociedade civil junto ao
e movimentos populares participaram parlamento foi mais uma vez decisiva
ativamente desse processo5 e, passados para propor mudanças na legislação,
dez anos, foi proposta pela Articulação permitindo, com a aprovação da
Nacional de Agroecologia (ANA), pelo Lei 13.987/2020, a distribuição da
Fórum Brasileiro de Soberania e Se- alimentação escolar aos pais ou
gurança Alimentar e Nutricional (FBS- responsáveis por alunos da rede
SAN) e pela Associação Brasileira de pública de educação de todo o país
Agroecologia (ABA) a pesquisa-ação durante o período de suspensão das
apresentada aqui. aulas presenciais. Percebe-se, contudo,
Ao longo dos últimos anos, o Programa que muitos têm sido os entraves para
tem sido objeto de avaliações que re- execução dessa lei, fragilizando as
afirmam sua relevância, identificando, contribuições que o PNAE poderia
contudo, a necessidade de avanços no dar à garantia do Direito Humano à
que tange à atuação das(os) nutricio- Alimentação e à Nutrição Adequadas
nistas e dos Conselhos de Alimentação (DHANA) durante a pandemia de
Escolar (CAE), assim como na aquisição Covid-198.

5 SCHOTTZ, V; CASEMIRO, J. Lei da alimentação escolar: uma importante conquista da sociedade. In: ARAÚJO, MA; MARTINS,
JA; LACERDA, MB; TRAMARIM, E. A agricultura familiar e o direito humano à alimentação: conquistas e desafios. Brasília: Câmara
dos Deputados, Edições Câmara, 2015.
6 PEDREZA, DF; MELO, NLS; SILVA, FA; ARAUJO, EMN. Avaliação do Programa Nacional de Alimentação Escolar: revisão da
literatura. Ciência & Saúde Coletiva [online], v. 23, n. 5, 2018.
7 MACHADO, PMO; SCHMITZ, BAS; GONZÁLES-CHICA, DA; CORSO, ACT; GABRIEL, CG. Compra de alimentos da agricultura
familiar pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE): estudo transversal com o universo de municípios brasileiros.
Ciência & Saúde Coletiva [online], v. 23, n. 12, 2018.
8 CORRÊA, EN; NEVES, J; SOUZA, LD; FLORINTINO; CS; PORRUA, P; VASCONCELOS, FAG. School feeding in Covid-19 times:
mapping of public policy execution strategies by state administration. Revista de Nutrição [online], v.33, 2020.

47
A nuário ÓAÊ

Este texto apresenta a experiência de sição de gêneros da agricultura fami-


pesquisa-ação realizada com o ob- liar para o PNAE foram:
jetivo de analisar como as experiên-
cias de aquisição e fornecimento de 1. Compra da agricultura familiar para
alimentos da agricultura familiar e/ o PNAE funcionando com algum as-
ou agroecológica na alimentação es- pecto de êxito – por exemplo, ali-
colar podem fomentar a agroecolo- mentos variados, compra de ali-
gia nos territórios, promover processos mentos locais, relações institucionais
organizativos e incentivar ações de interessantes, estratégias inovadoras.
educação e comunicação. A pesquisa 2. Prefeitura ou Unidade Executora
também teve como propósito promo- aberta ao diálogo e com interesse
ver ações em rede, a partir das de- em ampliar a compra da agricul-
mandas e iniciativas identificadas na tura familiar.
pesquisa-ação, visando qualificar e 3. Recorte territorial: município inse-
ampliar a inserção de alimentos da rido em território com ações das
agricultura familiar e agroecológicos organizações da ANA.
na alimentação escolar e fortalecer a
capacidade de comunicar os benefí- 4. Ter uma escola parceira das orga-
cios da agroecologia na promoção da nizações locais.
alimentação saudável e na interação 5. Diversidade das iniciativas no as-
entre campo e cidade. pecto global do projeto inteiro: di-
O trabalho utilizou a abordagem da ferentes portes de municípios (ga-
Pesquisa-Ação, modalidade de pes- rantir o aspecto da metrópole); tipo
quisa qualitativa que se organiza a de gestão dos recursos (centraliza-
partir de uma perspectiva de supera- do e descentralizado); dinâmica or-
ção da separação entre pesquisador ganizativa dos fornecedores; sujei-
e sujeitos de pesquisa, uma vez que é tos da agricultura familiar variados;
construída e desenvolvida em torno de grupos de mulheres com protago-
ação em que “pesquisadores e os par- nismo na comercialização.
ticipantes representativos da situação A coleta e análise de dados foi desen-
ou do problema estão envolvidos de volvida entre os anos 2019 e 2021 e
modo cooperativo e participativo”9. contou com a participação de organi-
Os critérios para a seleção de experi- zações e redes articuladas à ANA e
ências municipais e estaduais de aqui- que atuam diretamente nesses territó-

9 THIOLLENT, M. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez,1988.

48
C omida de verdade nas escolas do campo e da cidade

rios. O trabalho foi coordenado por abrangeu municípios de grande porte


uma comissão de metodologia forma- (metropolitanos) e de pequeno por-
da pela Secretaria Executiva da ANA te. Foram contempladas experiências
e por duas pesquisadoras, da Universi- protagonizadas por povos indígenas,
dade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) povos e comunidades tradicionais e
e da Universidade do Estado do Rio de grupos de mulheres e de jovens, con-
Janeiro (UERJ), integrantes do FBSSAN. forme apresentado no quadro abaixo.
No âmbito da pesquisa-ação, também A análise preliminar dos dados nos leva
foram realizadas ações de incidência a algumas conclusões. Evidencia-se que
local para ampliação das compras e a atuação das redes e organizações
fortalecimento da agricultura familiar do campo da agroecologia exerce pa-
agroecológica nos territórios, além de pel relevante nos territórios no que diz
ações de comunicação popular para respeito à formação de atores político-
ampliar a visibilidade e a tomada de -sociais, à facilitação de processos e à
consciência sobre a importância da ali- atuação em espaço de concertação e
mentação adequada e saudável nas de reivindicação de direitos.
escolas e da agroecologia.
Constatou-se que a implementação do
Um total de nove municípios ou territó- PNAE, em especial no que se refere à
rios integraram a pesquisa-ação, que

Experiências de aquisição de produtos da Agricultura Familiar e Agroecológica envolvidas


na Pesquisa-Ação Comida de Verdade nas Escolas do Campo e da Cidade

Localização e organização parceira Experiência

Morros/MA Município da região metropolitana de São Luís (bioma


Cerrado), cuja base econômica é a agricultura familiar.
Associação Agroecológica Tijupá Forte atuação de agricultoras(es) assentadas(os) e
organizadas(os) no Sindicato dos Trabalhadores(as)
Rurais de Morros (STTR). Em 2019, cerca de 47%
dos recursos do PNAE foram gastos com a agricultura
familiar, que vendeu 43 tipos de gêneros alimentícios.
Desde 2010, a Associação Agroecológica Tijupá,
parceira da pesquisa-ação, desenvolve ações de
mobilização, formação, incidência política e assistência
técnica para o acesso da agricultura familiar ao PNAE.

49
A nuário ÓAÊ

Localização e organização parceira Experiência

São José do Egito/PE Localizado no Sertão pernambucano do Pajeú, com


predomínio do Bioma Caatinga. Registra cerca de
Diaconia/PE 5.000 estudantes matriculadas(os) em 20 escolas da
rede municipal de ensino. Desde 2010, a APOMEL, com
assessoria da Diaconia, fornece diversos gêneros para
a alimentação escolar de São José do Egito. Destaca-se
a atuação articulada de organizações da agricultura
familiar, a partir da Rede Pajeú de Agroecologia, para
fortalecimento do PNAE e das compras públicas nos
municípios que compõem o Sertão do Pajeú.

Remanso/BA Localizado no Semiárido (Sertão do São Francisco),


no bioma Caatinga. A experiência de fornecimento
Serviço de Assessoria a Organizações de alimentos agroecológicos para o PNAE e para o
Populares Rurais (SASOP) Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) envolve
diferentes grupos informais e associações da
agricultura familiar, de assentadas(os) da reforma
agrária e de pescadoras artesanais, assessorados
pelo SASOP, contando com um forte protagonismo de
mulheres. Em 2017, o município, a partir das ações de
mobilização e interlocução com esses grupos, incluiu
na chamada pública do PNAE alimentos de origem
animal, como a carne de bode e o pescado artesanal.

Cuiabá/MT Experiência de fornecimento de alimentos


agroecológicos produzidos pela Associação Regional
FASE de Produtores Agroecológicos (ARPA) e pelo CTA para
73 escolas estaduais localizadas na capital Cuiabá,
cuja gestão é escolarizada, e para os municípios
de Mirassol do Oeste e Pontes e Lacerda (Sudoeste
do Mato Grosso) através da chamada Rota de
Comercialização Território Caminhos da Agroecologia.
Envolve o protagonismo de assentadas(os) da reforma
agrária, grupos de mulheres e juventude rural.

Belo Horizonte/MG A experiência do PNAE em Belo Horizonte traz a


perspectiva sobre os desafios e potencialidades
Rede de Intercâmbio de Tecnologias da execução das compras públicas nas grandes
Alternativas (REDE) metrópoles. A rede municipal de ensino público conta
com 557 escolas e mais de 200 mil estudantes. A gestão
do PNAE é realizada de forma intersetorial, de forma
centralizada. Tem legislação própria que institui o
Programa Municipal de Alimentação Escolar e a Política
Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional.

50
C omida de verdade nas escolas do campo e da cidade

Localização e organização parceira Experiência

São João das Missões/MG Experiência de fornecimento contínuo de alimentos


produzidos por indígenas e pela agricultura familiar
Centro de Agricultura Alternativa do para escolas estaduais (gestão escolarizada)
Norte de Minas (CAA) localizadas na Terra Indígena Xacriabá. Esse território,
localizado no município de São João das Missões,
Norte de Minas Gerais (bioma Cerrado), reúne cerca
de 10 mil indígenas em 32 aldeias.

Ubatuba/SP Localizado no litoral norte de São Paulo, no bioma


Mata Atlântica. Desde 2014, a Associação dos
Observatório de Territórios Bananicultores de Ubatumirim (ABU) fornece alimentos
Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina agroecológicos, com destaque para as polpas de
(OTSS) frutas nativas do município de Ubatuba. Estimulada
pela participação no Programa, se formalizou como
Organização de Controle Social (OCS), sendo uma
das poucas organizações que vendem seus produtos
como orgânicos para o PNAE no município. Destaca-se
a atuação em rede através do Fórum de Comunidades
Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba.

Paraty/RJ Município localizado no litoral sul do Rio de Janeiro


(bioma Mata Atlântica). Desde 2014, a Associação
Observatório de Territórios Sustentáveis Agroecológica de Produtores Orgânicos de Paraty
e Saudáveis da Bocaina (OTSS) (AAPOP) fornece alimentos agroecológicos certificados
por meio de OCS para a alimentação escolar da
rede municipal de Paraty. Em 2020, a Associação
de Moradores do Quilombo do Campinho (AMOQC)
formou um grupo informal que passou a fornecer
alimentos para a alimentação escolar. Destaca-se a
atuação em rede através do Fórum de Comunidades
Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba.

São João do Triunfo/PR Município localizado no Sudoeste do Paraná (bioma


Mata Atlântica). Em 2017, foi aprovada uma lei que
AS-PTA Agricultura Familiar e criou um programa municipal de aquisição de alimentos.
Agroecologia A experiência se caracteriza pela forte atuação
da Cooperativa Mista Triunfense dos Agricultores e
Agricultoras Familiares (COAFTRIL), criada em 2014
com a intenção de diversificar a produção agrícola com
base na agroecologia – antes voltada majoritariamente
para a produção de tabaco. Desde 2017, a cooperativa
fornece para o PNAE e tem buscado, a partir do diálogo
com a gestão do Programa, adequar as chamadas
públicas à realidade local.

51
A nuário ÓAÊ

aquisição de produtos da agricultura suspensão ou redução das compras


familiar, obedece a lógicas e tempos da agricultura familiar pelo PNAE na
diferenciados em cada território, sen- maior parte dos territórios da pesqui-
do fortemente influenciada pela ca- sa-ação, mesmo nas experiências em
pacidade de organização de sujeitos que a aquisição acontecia de forma
de direito, sobretudo, as organizações continuada há vários anos, como no
da agricultura familiar e agroecológi- município de Remanso/BA. Ainda que
ca. Destaca-se, ainda, que a atuação não tenham sido disponibilizadas pelo
de servidoras(es) e gestoras(es) pre- Fundo Nacional de Desenvolvimento da
paradas(os) e engajadas(os) na de- Educação (FNDE) informações de âm-
fesa PNAE e abertas(os) ao diálogo bito nacional, esse retrocesso nas com-
impactou positivamente a efetivação pras da agricultura familiar tem sido
da incorporação de alimentos agroe- reportado por diversos movimentos so-
cológicos no cardápio escolar. ciais, redes e organizações da socieda-
O acesso continuado ao mercado institu- de civil, dentre os quais o Observatório
cional ao longo dos anos é um dos fato- da Alimentação Escolar (ÓAÊ).
res que tem propiciado o fortalecimento Dos municípios estudados, apenas Mor-
das dinâmicas organizativas da agri- ros/MA e São João do Triunfo/PR man-
cultura familiar, em especial de grupos tiveram a aquisição de alimentos pre-
de mulheres e de povos e comunidades vistos inicialmente na chamada pública.
tradicionais, assim como a diversificação Observou-se, nesses casos, diante dos
da produção e a ampliação da capa- desafios relacionados ao fornecimento
cidade de processamento de alimentos; dos kits de alimentos diretamente para
por exemplo, a estruturação de unida- os(as) estudantes e/ou seus respon-
des de beneficiamento de frutas nativas. sáveis, que o processo continuado de
Processos estes que valorizam a cultura diálogo entre a gestão do PNAE e as
alimentar e favorecem a biodiversida- organizações fornecedoras resultou em
de. A participação no PNAE tem ainda adequações na logística de entrega e
contribuído para a estruturação de cir- na diversidade e quantidade de gêne-
cuitos de comercialização que articu- ros, que tornaram possível a manuten-
lam o fornecimento para a alimentação ção da aquisição da agricultura fami-
escolar com acesso a outros mercados liar mesmo no contexto da pandemia.
institucionais, dentre os quais o PAA, a A pesquisa-ação, como conjunto com-
entrega de cestas agroecológicas e a plexo de técnicas de coleta e análise
participação em feiras. de dados, depende de engajamento
Todavia, o período de suspensão das dos diversos atores sociais envolvidos
aulas presenciais em função da pande- com o PNAE – o que representa gran-
mia de Covid-19 caracterizou-se pela de desafio, que se acentua no contex-

52
C omida de verdade nas escolas do campo e da cidade

to da pandemia. Espera-se, a partir possibilidades para a construção de


do aprofundamento das análises dos mecanismos mais justos e adequados
dados coletados, identificar (e com- de implantação do PNAE, contribuindo
partilhar) estratégias que represen- para a efetivação e a ampliação da
tam, a um só tempo, as expressões aquisição de alimentos da agricultura
das particularidades de processos lo- familiar e agroecológica.
cais de superação de obstáculos e as

53
A nuário ÓAÊ

ENTREVISTA
“A comida é um ato revolucionário desde a etapa da infância ”
Por Thais Iervolino1

Em entrevista exclusiva ao Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), Silvia


Cristina dos Santos Carvalho, professora de Educação Infantil do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Assentamento 13 de Maio da Fazenda
Pirituba, no município de Itapeva (SP), fala sobre o papel da escola na alimenta-
ção, a importância da prática docente na conscientização e promoção da reflexão
crítica sobre o direito à alimentação escolar e o papel político dos professores no
combate a iniciativas que buscam apagar os impactos do agronegócio e acabar
com a agricultura familiar.
Conversamos com ela sobre a importância da escola na garantia do direito à ali-
mentação escolar. Durante a entrevista, a professora dá exemplos de práticas pe-
dagógicas que tratam da alimentação escolar, mostra como a escola pode ter um
papel preponderante não só ao servir as refeições, como também na conscientiza-
ção dos estudantes e, principalmente, na participação e engajamento da cadeia
produtiva da alimentação escolar, promovendo participação social. Boa leitura!

ÓAÊ - Como você trabalha o tema do criança e é também uma forma de esti-
direito à alimentação escolar dentro mular as crianças a conhecer os saberes
da sala de aula? do mundo.
Silvia Cristina dos Santos Carvalho - A gente costuma pensar que a alimen-
Eu trabalho com a Educação Infantil e tação é uma questão sociopolítica.
então, para essa etapa de ensino, a ali- Enquanto professora, o engajamento
mentação é mais do que a refeição no político, o engajamento educativo, pe-
cotidiano escolar. Ela é um vínculo com a dagógico com o estudante se faz na

1 Thais Iervolino é jornalista e pesquisadora feminista com mestrado em sociologia. Atua há mais de 20 anos em organizações
e movimentos sociais que lutam pela garantia dos direitos humanos principalmente nas áreas de Educação, Meio Ambiente,
Gênero e questões LGBTQIA+.

54
E ntrevista

ação de envolvê-lo no tema da alimen- Em muitas situações o alimento perpas-


tação saudável, para que a criança crie sa pela questão política. A criança com-
uma criticidade para entender quando para o fato de sentir fome com a von-
o alimento faz bem para ela ou não. tade de comer: ela sente fome e quer
Nas atividades pedagógicas, realiza- comer, e essa é a primeira criticidade
mos essa prática de estimular a criança que trabalhamos com a criança, mos-
a comparar o que ela come com o que trando que ela tem o direito de comer
ela pode comer, com o que é saudável. e que é possível ela comer bem. Isso
mostra que a comida é um ato revolu-
cionário desde a etapa da infância.
A criança compara o
Nos trabalhos com a horta, no cotidia-
fato de sentir fome no ao servir o alimento às crianças, ao
com a vontade de fazer a criança participar da confec-
ção de algum alimento, fazemos pro-
comer: ela sente fome jetos nos quais as crianças participam
e quer comer, e essa é do processo de produção do alimento,
desde a colheita na horta, passando
a primeira criticidade pelo apoio na preparação de um bolo,
que trabalhamos com a por exemplo, até chegar o momento
da refeição na escola. Dessa forma,
criança, mostrando que
a gente vai praticando, na linguagem
ela tem o direito de da criança, o estímulo para que ela
comer e que é possível aprenda a comer bem e que entenda
que comer é um direito.
ela comer bem

Também fazemos muitos projetos em ÓAÊ - Como você vê os resultados


sala de aula. Como trabalho em uma desse trabalho no desenvolvimento
escola do campo, tenho a possibilidade da criança?
de trabalhar a horta com as crianças, Silvia Cristina dos Santos Carvalho -
temos experiências com canteiros de Os projetos são interdisciplinares. Quan-
plantas medicinais, por meio dos quais do trabalhamos o tema da alimentação,
a criança conhece o chá, o suco da pró- trabalhamos o movimento, a leitura –
pria planta, do próprio alimento, e as- que envolve histórias como a do jacaré
sim ela começa a internalizar que o ali- que é comilão, por exemplo –, então te-
mento não é só uma refeição, mas sim mos a perspectiva do desenvolvimento
uma forma de ela sobreviver com saú- cognitivo da criança em sua amplitude,
de, de ela se desenvolver com saúde. a partir da interdisciplinaridade.

55
A nuário ÓAÊ

A criança vai recontar a história em tão de que o alimento não era apenas
uma roda de conversa, vai dizer o que uma refeição, mas um direito e tam-
pensa sobre a atividade na horta, e bém uma questão sociocultural.
assim a gente consegue receber esse Outra problematização surgiu quan-
retorno em relação ao desenvolvimen- do algumas famílias não concordavam
to cognitivo da criança no decorrer das com a qualidade dos alimentos servi-
nossas sequências didáticas e até mes- dos na escola. Nesse momento, pro-
mo o retorno das pessoas que moram curamos dialogar da melhor manei-
com ela, porque a criança comenta em ra com elas e chegamos a conversar
casa como foi a aula e o que aprendeu. com a secretaria de educação para
Antes da pandemia – e agora com recebermos alimentos com mais qua-
a reabertura das escolas –, tínhamos lidade, o que realmente aconteceu já
uma atividade em que a criança le- com as mudanças que chegaram com
vava para sua casa o alimento que o Programa de Aquisição de Alimen-
plantava na horta. Minha filha, inclu- tos (PAA) e o Programa Nacional de
sive, não comia beterraba e quando Alimentação Escolar (PNAE).
trouxe a beterraba da escola, ela co- Inclusive, muitas famílias da escola são
meçou a comer, porque ela ficou feliz fornecedoras de alimentos para o PAA,
e orgulhosa do fato de ter plantado o já que fazem parte da agricultura fa-
alimento. Então esse é um exemplo do miliar. Esse é um vínculo que temos cons-
que a criança vai levar de significativo truído para além da didática, o vínculo
para a sua aprendizagem futura. participativo da comunidade escolar
dentro da escola. Nesse sentido, a es-
ÓAÊ - Como vocês colocam a impor- cola passa a ser importante não só em
tância da escola em relação ao direi- relação à refeição do estudante, mas
to à alimentação? também para a sobrevivência das co-
munidades. As famílias garantem, des-
Silvia Cristina dos Santos Carvalho - sa forma, sua soberania financeira ao
Já tivemos situações nas quais proble- fornecer alimentos à escola.
matizamos o direito à alimentação na
escola por várias situações. Na horta,
por exemplo, conversamos não só com
o estudante, mas também com sua fa-
mília e a comunidade escolar, porque
precisávamos de um consenso da so-
ciedade para levar a criança a tra-
balhar na horta, a ter um manejo da
horta. Então problematizamos a ques-

56
E ntrevista

A chegada do PAA Isso fez com que todo o estímulo edu-


cativo e a participação da comunida-
e do PNAE fez de na escola mudasse. O olhar das fa-
com que todo o mílias na escola mudou muito, porque
elas criaram mais perspectivas com
estímulo educativo a escola quando puderam ver os ali-
e a participação mentos chegando até os estudantes.
da comunidade na Isso sem contar com a qualidade dos
alimentos. Antes da mudança, havia
escola mudasse. O muitos alimentos multiprocessados na
olhar das famílias na escola e depois, com a vinda das com-
escola mudou muito, pras da agricultura familiar, começa-
mos a ver um alimento mais saudá-
porque elas criaram vel, mais diversificado. Não há só um
mais perspectivas único alimento no prato e sim dois ou
três: arroz, feijão, legumes, proteína,
com a escola quando salada fresca, um suco natural. Esses
puderam ver os acréscimos que a alimentação escolar
recebeu vieram via parceria entre a
alimentos chegando comunidade escolar e o PNAE e PAA.
até os estudantes
ÓAÊ - Os estudantes têm consciên-
cia de que são os pais e mães deles
ÓAÊ - Em que medida há o reconhe- os responsáveis pela entrega de ali-
cimento, por parte da escola, da im- mentos na escola?
portância dos alimentos oriundos da Silvia Cristina dos Santos Carvalho -
agricultura familiar? Sim. Meus alunos são mais crianças,
Silvia Cristina dos Santos Carvalho - então a nossa forma de ampliar essa
Esse processo de reconhecimento é an- consciência é via didática, no coti-
tigo. Antes da vinda do PAA, as crian- diano escolar, como eu disse. Mas os
ças tinham a alimentação escolar, mas maiores sabem. Muitas vezes o es-
não sabiam a sua procedência. E com tudante está vendo a mãe plantar e
o PAA e o PNAE essa situação mudou: colher o alimento e depois, na escola,
a criança passa a saber que os ali- vê o alimento no prato. Ele faz essa
mentos vinham de seu próprio quintal. associação.

57
A nuário ÓAÊ

Do campo ao prato: a bem. Além disso, é importante que os


participação da agricultura professores e a gestão escolar traba-
familiar na alimentação escolar lhem o envolvimento das famílias agri-
cultoras com a escola.
Leia a reportagem que mostra a dimensão e importância Na escola onde trabalho, 90% dos
dos agricultores familiares e do PNAE no fornecimento alunos têm famílias trabalhando na
de alimentos para as escolas públicas do Brasil agricultura familiar. Os outros 10%
moram em sítios e fazendas de muni-
cípios vizinhos e podem desconhecer
essa realidade. Por isso temos que en-
volver mais os estudantes, fazer mais
ÓAÊ - Durante o primeiro semestre parcerias entre a escola e a comuni-
de 2021, o Observatório lançou uma dade para que possamos diminuir o
campanha para saber a situação da índice que você cita sobre o desconhe-
alimentação escolar no Brasil antes cimento da importância da alimenta-
e durante a pandemia. Os resultados ção saudável por parte dos alunos.
mostraram que 13% dos estudantes
que responderam a pesquisa não
sabiam o que era alimentação sau- ÓAÊ - Em contraponto a isso, há
dável; 30% não sabiam o que eram uma iniciativa promovida pelo se-
alimentos ultraprocessados e 35% tor do agronegócio chamado de
nunca tiveram atividades educativas Agro nas Escolas, que busca apagar
sobre a alimentação saudável. todos os impactos negativos que o
Silvia Cristina dos Santos Carvalho - agronegócio traz para a sociedade
Eu fico até espantada com esses nú- e o meio ambiente.
meros. Sabemos que não atingimos Silvia Cristina dos Santos Carvalho -
100% do objetivo que queremos com Em todas as esferas a gente enfren-
o trabalho sobre alimentação. Com a ta muitas lutas e oposições. Temos tido
faixa etária de estudantes que tra- muitas perdas concretas e subjetivas
balho é difícil mostrar tecnicamente no âmbito político. Essa situação do
o tema, mas temos despertado refle- agronegócio entrando nas escolas é
xões no cotidiano. um retrocesso muito grande.
Com alunos maiores, vejo a necessida- Tentamos prosseguir com as nossas
de de realizar mais projetos na escola práticas, intensificando nossa postura
para que os estudantes possam parti- crítica em relação ao agronegócio já
cipar desde o processo de produção que, como professores, temos o direi-
do alimento, para que eles possam to de ter um posicionamento político
entender a vitalidade que é o comer e de ser professores não só na sala

58
E ntrevista

de aula, com também no refeitório, no Atualmente vemos o agravamento da


pátio, no portão da escola, na rua, em fome. O geógrafo Josué de Castro,
casa. Nossa postura contrária a esse em sua obra Geografia da Fome, fa-
retrocesso precisa estar presente 24 lava que existem dois tipos de fome:
horas de nossos dias. a epidêmica e a endêmica. Sempre
temos que lidar com a fome endêmi-
ca, que é a fome oculta, disfarçada
no alimento industrializado. Mas hoje
O comer hoje é um vivemos uma situação mais agravan-
te, já que estamos lidando com a
ato revolucionário, fome “pandêmica”. A pandemia veio,
político, e o Agro nas a desigualdade cresceu a ponto de
Escolas veio para pessoas procurarem comida no lixo,
resgatando ossos para substituir a
reforçar a questão da carne na alimentação.
desigualdade, para O comer hoje é um ato revolucioná-
enganar a fome. Comer rio, político, e o agro nas Escolas veio
para reforçar a questão da desigual-
de maneira saudável dade, para enganar a fome ao dizer
não é comer com o que a barriga está cheia, para dis-
farçar ou camuflar o ato de comer.
Agro dentro da escola Comer de maneira saudável não é
comer com o Agro dentro da escola.

Há um jogo político muito grande cuja


intenção é fazer com que os peque-
nos agricultores que pertencem a um
movimento social, de um assentamen-
to, percam seu espaço e poder polí-
tico. Nos contrapomos a esse governo
e temos que diariamente lutar para
existir, para resistir, para sobreviver,
para viver, para comer.

59
B loco 1

Desafios e ameaças
ao PNAE
A nuário ÓAÊ

Reformas de Estado, redução de direitos e possíveis


repercussões sobre a alimentação escolar

Andressa Pellanda1
Marcele Frossard2

A análise das medidas implementadas e


em debate no país nos últimos anos nos
permitem inferir um projeto de desmonte do
Estado brasileiro, colocando em risco direitos
historicamente conquistados, entre eles, o
direito à educação e à alimentação escolar

A atual crise política e socioeconômica mento às desigualdades e de garan-


que vivenciamos, agravada pelo con- tia de direitos de maneira universal.
texto da pandemia de Covid-19, evi- As políticas de austeridade constitucio-
dencia algo que Darcy Ribeiro apon- nalizadas a longo prazo, a supressão
tava faz tempo: não é uma crise, é um de garantias de financiamento para as
projeto. As tomadas de decisão por áreas sociais, as reformas trabalhista,
parte dos setores executivos do Esta- tributária e administrativa fazem parte
do e seus órgãos demonstram que não de um projeto de redução do papel do
existe uma perspectiva de enfrenta-

1 Andressa Pellanda é coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.


2 Marcele Frossard é assessora de políticas sociais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

62
R eformas de E stado , redução de direitos e possíveis repercussões

Estado na garantia dos direitos huma- odo de desmonte de políticas sociais,


nos e dos preceitos constitucionais. Essas cujo marco principal foi a aprovação
políticas têm sido levadas a cabo nos da Emenda Constitucional (EC) 95,
últimos cinco anos no Brasil, a partir do conhecida como Teto dos Gastos. A
governo de Michel Temer, com aprofun- partir dela, outras medidas alinhadas
damento a partir de 2019, já no gover- a uma perspectiva de reforma para
no de Jair Messias Bolsonaro. Pautadas enxugamento do Estado avançaram.
pelo antiquado Consenso de Washing- Além da EC 95/2016, o presente es-
ton, que ainda encontra fôlego na agen- tudo contempla uma análise sobre a
da do Fundo Monetário Internacional EC 109/2021 e a Proposta de Emen-
(FMI), são um atestado do que estamos da Constitucional (PEC) 13/2021, em
falando. A pandemia de Covid-19 trou- tramitação, alinhadas à limitação de
xe à superfície os efeitos devastadores investimentos públicos e que desobri-
do desinvestimento em saúde, educação gam o cumprimento do piso de investi-
e assistência social, entre outras áreas mento constitucional, além da Reforma
estruturais, e da política neoliberal que Trabalhista (Lei nº 13.467/17), das
vem sendo implantada. Propostas de Reforma Tributária (PEC
Foi por isso que a Campanha Nacional 110/2019 e PEC 45/2019) e de Re-
pelo Direito à Educação – como par- forma Administrativa (PEC 32/2020)
te de um estudo internacional levado – estas três últimas também em tra-
à cabo pela ActionAid Internacional, mitação. Nossa análise parte do ma-
parceira de décadas, sobre os efeitos peamento desse cenário legislativo,
das políticas regressivas nos serviços adotando como recorte analítico os
sociais e seus trabalhadores – desen- impactos dessas ações na educação.
volveu dois estudos para refletir a re- Uma das principais críticas e motiva-
lação entre crise e projeto. Os estudos ções para essas reformas se refere ao
tiveram por objetivo não somente ana- tamanho e custo do serviço público;
lisar os efeitos dessas reformas para desconsiderando que o gasto per ca-
o direito à educação e dos trabalha- pita em áreas como saúde e educação
dores da área, como também alertar é muito inferior aos patamares veri-
para a sincronia e complementaridade ficados em outros países emergentes,
delas, em uma deformação do Estado especialmente em relação à média da
de Bem-Estar Social, e para a ameaça Organização para a Cooperação e o
de curto e longo prazo para a socie- Desenvolvimento Econômico (OCDE).
dade e a democracia brasileiras. Os países da OCDE, a título de com-
Em 2016, com a mudança de governo paração, gastam 2,2 vezes mais do
pós-impeachment da então presiden- que o Brasil com servidores.
ta Dilma Rousseff, iniciou-se um perí-

63
A nuário ÓAÊ

O argumento de que o Estado brasileiro Manutenção e Desenvolvimento da Edu-


é inchado não se sustenta. No setor pú- cação Básica (FUNDEB), o piso salarial
blico, o percentual de vínculos se man- para professores, a expansão do perí-
tém estável em torno de 5,8% desde odo de educação básica para 12 anos
2012. Portanto, é incorreto afirmar que obrigatórios e ainda a expansão e valo-
houve uma explosão do serviço público rização do ensino superior. Esse avanço
brasileiro nos últimos anos, pois a gran- progressivo foi interrompido, em 2015,
de maioria dos empregos gerados no pelos cortes na educação promovidos
Brasil está no setor privado. O salto real por Joaquim Levy. A interrupção do
se deu em termos de qualidade, com a avanço foi aprofundada de forma abis-
entrada de trabalhadores e trabalha- sal a partir de 2016, com a aprovação
doras com alto grau de escolarização. do Teto de Gastos e, ao longo dos últi-
A expansão da capacidade de atendi- mos anos, com as demais reformas.
mento do Estado brasileiro ocorreu atra- Os estudos demonstram que as medi-
vés de vínculos públicos com ensino supe- das estudadas não promoveram cres-
rior completo que, entre 1986 e 2017, cimento econômico, geração de em-
cresceu de pouco mais de 9 mil para 5,3 prego ou distribuição de renda. Em
milhões. No entanto, o aumento da esco- relação ao funcionalismo público, elas
larização nesse período não foi acom- pavimentam, entre outros ataques, a
panhado por valorização em relação à redução salarial, a diminuição da jor-
renda. A média real salarial no serviço nada de trabalho e a precarização
público municipal, posto que cerca de das condições de trabalho, atingindo,
60% das e dos funcionários(as) públi- na ponta, a garantia do atendimen-
cos(as) do Brasil são do âmbito munici- to à população, o que se torna ainda
pal, teve aumento médio real de 1,1% mais grave em contexto de pandemia.
ao ano no mesmo período, passando de
R$ 2.000 para R$ 2.800. O resultado é o aprofundamento das
múltiplas desigualdades que estrutu-
Embora as desigualdades brasileiras ram a sociedade brasileira e que atin-
sejam estruturais e históricas, alguns gem, com mais intensidade, as popula-
avanços sociais foram perceptíveis nos ções historicamente vulnerabilizadas,
primeiros 15 anos do século XXI, gra- como a população negra e as mulhe-
ças à implementação de diferentes po- res. A análise das medidas implemen-
líticas complementares, como a política tadas e em debate no país nos últimos
de valorização do salário mínimo, o anos nos permitem inferir um projeto
Bolsa Família, a evolução do Fundo de de desmonte do Estado brasileiro, co-
Manutenção e Desenvolvimento do En- locando em risco direitos historicamen-
sino Fundamental e de Valorização do te conquistados, entre eles, o direito à
Magistério (FUNDEF) para o Fundo de educação e à alimentação escolar.

64
R eformas de E stado , redução de direitos e possíveis repercussões

65
A nuário ÓAÊ

Ameaça no Congresso Nacional: empresas do setor de alimentos


de olho grande no PNAE

Mariana Santarelli1
Vanessa Schottz2
Patricia Gentil3

Os avanços nas diretrizes do PNAE, que apontam


para a redução do consumo de alimentos
ultraprocessados, a democratização das compras
públicas como forma de promover sistemas
alimentares saudáveis e sustentáveis, encontram-
se sob forte ameaça

Não é de hoje que as escolas públicas mentares pela indústria de alimentos


dos países ditos “em desenvolvimento” e pelo agronegócio. Nas primeiras
são percebidas como meio de esco- décadas da política de alimentação
amento da produção e espaço para escolar no Brasil (1954 a 1971), as
a padronização de novos hábitos ali- escolas eram abastecidas com pro-

1 Mariana Santarelli é pesquisadora no Centro de Referência de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (CERESSAN)
da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), relatora nacional para o direito humano à alimentação da Plataforma
Dhesca Brasil, membro do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar (FBSSAN) e coordenadora de projetos do
Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ).
2 Vanessa Schottz é professora no Curso de Nutrição da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)/Campus Macaé,
pesquisadora no CERESSAN, membro do Conselho Consultivo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança
Alimentar e Nutricional (RBPSSAN). Representa o FBSSAN no ÓAÊ.
3 Patrícia Chaves Gentil é mestre em Nutrição, consultora do Programa Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto de
Defesa do Consumidor (IDEC) e membro da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável.

66
A meaça no C ongresso N acional

dutos ultraprocessados derivados do havia contribuído de forma muito sig-


excedente de supersafras de grãos, nificativa para a consolidação de um
sobretudo dos Estados Unidos, doados segmento industrial especializado na
como parte de estratégias de ajuda produção de alimentos cujo grande
humanitária internacional, interme- cliente era o governo brasileiro4.
diadas por organismos e agências in- Nesse mesmo período, as políticas rela-
ternacionais com a Organização das cionadas à agricultura e ao meio rural
Nações Unidas para a Alimentação e eram exclusivamente voltadas para o
a Agricultura (FAO) e a Agência dos aumento da competitividade do agro-
Estados Unidos para o Desenvolvimen- negócio. Foi somente na virada para
to Internacional (USAID). Leite em pó, o século 21, como resultado da luta e
farinhas industrializadas com adição organização dos movimentos sociais do
de nutrientes e formulados como so- campo, que agricultoras e agricultores
pas e mingaus, que requeriam apenas familiares passam a ser sujeitos(as) de
a adição de água em seu preparo, políticas públicas, com a criação do
eram inicialmente doados, passando Programa Nacional de Fortalecimen-
em décadas seguintes (1972 a 1993) to da Agricultura Familiar (PRONAF),
a serem adquiridos com recursos na- em 1995, culminando com a promulga-
cionais de um pequeno número de ção da Lei da Agricultura Familiar (Lei
grandes empresas que importavam 11.326/2006) dez anos depois.
matéria-prima de multinacionais.
De lá para cá, foram muitas as mu-
Nas quatro décadas que iniciam danças, que aconteceram em um
a história do Programa Nacional contexto de descentralização de
de Alimentação Escolar (PNAE), o programas como o PNAE, que pas-
atendimento ainda não era univer- saram a transferir recursos e respon-
sal, a alimentação era de má qua- sabilidades de gestão para os esta-
lidade e culturalmente inadequada dos e municípios, e de consolidação
e as compras públicas, concentradas de um conjunto de políticas voltadas
na mão de um pequeno número de para o fortalecimento da agricultura
empresas de grande porte. Em 1993, familiar e da Segurança Alimentar
um parecer dado pelo Tribunal de e Nutricional (SAN). Entre elas, têm
Contas da União (TCU) afirmava que destaque as que reconhecem a vo-
o programa de alimentação escolar cação da agricultura familiar para

4 A tese de doutorado de uma das autoras deste texto, Vanessa Schottz, denominada Programa Nacional de Alimentação Escolar
(PNAE): controvérsias sobre os instrumentos de compra de alimentos produzidos pela agricultura familiar, defendida em 2017
na UFRRJ, pode ser acessada em: https://tede.ufrrj.br/jspui/bitstream/jspui/2375/2/2017%20-%20Vanessa%20Schottz.pdf

67
A nuário ÓAÊ

abastecer, com alimentos adequa- Congresso Nacional. A aprovação da


dos e saudáveis, as escolas e demais Lei do PNAE foi possível graças a um
equipamentos públicos. contexto de governo que priorizava
No desenho do PNAE, este reconhecimen- tanto o enfrentamento da fome quanto
to se materializa na Lei.11.947/2009, a a intersetorialidade e a participação
Lei do PNAE, quando se estabelece que social, além do apoio de uma atuan-
um mínimo de 30% dos recursos finan- te coalizão de atores organizados em
ceiros repassados pelo FNDE, devem ser defesa da proposta.
utilizados na aquisição de gêneros ali- Em 2009, a resistência ao PL do PNAE
mentícios diretamente da agricultura fa- vinha principalmente de empresas que
miliar e do empreendedor familiar rural abocanhavam o mercado da alimen-
ou de suas organizações, priorizando-se tação escolar, fornecendo serviços
os assentamentos da reforma agrária, terceirizados e alimentos ultraproces-
as comunidades tradicionais indígenas e sados; uma ação de incidência políti-
comunidades quilombolas. ca que tinha a Associação Brasileira
das Empresas de Refeições Coletivas
(ABERC) como sua principal porta-voz.
Descentralização e democratização: A ABERC manifestou-se publicamente
reversão da lógica das compras públicas em contrária aos artigos que autoriza-
favor da agricultura familiar vam a compra direta da agricultura
familiar e que propunham a proibição
A ousada proposta de um Projeto de da gestão do Programa por empre-
Lei (PL) que revertia o modus operandi sas terceirizadas, argumentando que
convencional, determinando uma cota representavam graves riscos à saú-
mínima obrigatória de compras da de, uma vez que as empresas tercei-
agricultura familiar com dispensa de rizadas teriam maior capacidade de
procedimentos licitatórios, não acon- garantir o controle higiênico sanitário
teceu sem tensões e resistências. Teve das refeições e evitar a corrupção.
como precedente a experiência com o Naquele momento, o mercado era tão
Programa de Aquisição de Alimentos concentrado em alimentos ultraproces-
(PAA) e um amplo processo de diálo- sados que a disputa que acontecia no
go e formulação, em que o Conselho Congresso não chamou a atenção da
Nacional de Segurança Alimentar e bancada ruralista, que ainda não per-
Nutricional (CONSEA) foi espaço pri- cebia o potencial de oferta direta de
vilegiado de proposição e mediação, seus produtos ao mercado institucional
o que resultou em uma proposta de PL da alimentação escolar.
para o PNAE, então encampada pelo
governo federal e encaminhada ao Muitos dos atores que foram funda-
mentais nas articulações pela aprova-

68
A meaça no C ongresso N acional

ção da lei do PNAE em 2009 são os frequência de municípios realizando


mesmos que hoje seguem mobilizados a compra (95,5%), e a região Cen-
em sua defesa. Organizações e redes tro-Oeste, com a menor (67,9%). Inte-
da sociedade civil, articuladas prin- ressante notar que são justamente as
cipalmente pelo FBSSAN, cumpriram regiões com características de produ-
importante papel tanto na formulação ção agrícola voltadas à agroindústria
do PL, quanto na incidência política em exportadora as que mais dificuldades
parceria com a Frente Parlamentar de têm em cumprir com a obrigatorieda-
Segurança Alimentar e Nutricional, en- de da compra da agricultura familiar.
tão presidida pelo Deputado Naza- Dados sistematizados a partir do Siste-
reno Fontelles do Partido dos Traba- ma de Gestão de Prestação de Contas
lhadores (PT), que foi também relator (SIGPC) do FNDE, apresentados pelo
do PL. Movimentos sociais do campo e FNDE em 2018 junto ao então operati-
organizações representativas da agri- vo Grupo Consultivo do PNAE, revelam
cultura familiar, como o Movimento dos que, em 2010, 4,9% dos recursos do
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), PNAE transferidos aos entes federados
o Movimento dos Pequenos Agricultores eram aplicados em compras da agri-
(MPA), a Confederação Nacional dos cultura familiar, chegando a 21,6% em
Trabalhadores na Agricultura (CON- 2017. Mais da metade (54%) das fru-
TAG) e a União Nacional das Coope- tas e hortaliças fornecidas ao Progra-
rativas da Agricultura Familiar e Eco- ma em 2017 haviam sido fornecidas
nomia Solidária (UNICAFES), tiveram pela agricultura familiar, sendo esses
uma atuação intensa no Congresso Na- alimentos os mais adquiridos através
cional, à qual se somaram entidades da compra direta. Alguns alimentos re-
que representam gestores municipais gionais da biodiversidade brasileira
e estaduais, como a União Nacional foram adquiridos exclusivamente da
dos Dirigentes Municipais de Educação agricultura familiar, como jabuticaba,
(UNDIME) e o Conselho Nacional de umbu, graviola, pequi e farinha de ba-
Secretários de Educação (CONSED). baçu, entre muitos outros.
Um estudo de Patrícia Machado e out- Cabe destacar que o Grupo Consul-
ros(as) autores(as), financiado pelo tivo, espaço de participação no qual
Fundo Nacional de Desenvolvimento participavam organizações da socie-
da Educação (FNDE) em 2011, dois dade civil, não se reúne desde 2018
anos após a aprovação da lei, mos- e que dados fundamentais para o mo-
trou que 78,5% dos municípios bra- nitoramento do PNAE não estão mais
sileiros afirmavam realizar compras disponíveis desde então. Apesar da
diretas da agricultura familiar, desta- ausência de dados, o que se percebe
cando-se a região Sul, com a maior como tendência nos últimos dois anos

69
A nuário ÓAÊ

é a redução das compras da agricul- indústria de alimentos, e com isso o nú-


tura familiar, sobretudo, mas não ex- mero de PL que respondem aos inte-
clusivamente, por conta da pandemia. resses daqueles que estão de olho no
Um avanço importante na legislação gigante mercado da alimentação es-
do PNAE aconteceu em 2020. Fruto colar, que adquire, anualmente, ape-
de um grupo de trabalho organizado nas com recursos do Governo Federal,
pelo FNDE com a participação de enti- cerca de R$ 4,6 bilhões em alimentos
dades e especialistas, foi publicada a em todo o território nacional.
Resolução n.º 6/2020 que atualiza as
regras do Programa frente às diretri-
A criação de uma
zes do Guia Alimentar da População
Brasileira, reduzindo e limitando a cota para a compra
compra e a oferta de alimentos ultra- de leite fluido cria um
processados. O PNAE, além de ser um
dos maiores programas de combate à perigoso precedente
fome, passa a ter também grande po- de reserva de
tencial de prevenção e controle do so-
brepeso e obesidade e de promoção
mercado, tornando o
da saúde no ambiente escolar. PNAE vulnerável aos
múltiplos interesses
Riscos de retrocesso: atropelos da boiada e lobbies da indústria
no congresso nacional de alimentos, que
Rever o histórico de conquistas e resis-
veem no Programa um
tências relacionadas à perspectiva de
democratização das compras públicas canal de escoamento
da alimentação escolar é fundamental de seus produtos
para o entendimento das disputas que
acontecem atualmente no Congresso
Nacional. A conjuntura é de um gover-
no federal que não tem compromisso Em 2021 proliferou uma série de PL
com a garantia do direito humano à que buscam modificar a lei do PNAE,
alimentação e à educação e que vem sendo grande parte das propostas re-
sistematicamente desmontando as po- lacionadas a artigos que regulamen-
líticas de SAN e de fortalecimento da tam as compras públicas, o que de-
agricultura familiar. No Congresso, monstra a multiplicidade de interesses
cresce o poder da bancada ruralista, de setores econômicos. O carro chefe
cada vez mais associada ao lobby da desses projetos é o PL 3.292/2020,

70
A meaça no C ongresso N acional

de autoria do Deputado Major Vitor sua cultura alimentar e favorecer ainda


Hugo, do Partido Social Liberal (PSL/ mais sua desnutrição.
GO), que obriga a compra de leite Durante a tramitação do PL 3.292/2020
fluido na alimentação escolar e reti- na Câmara dos Deputados, ficou
ra a prioridade da aquisição de ali- claro que a intenção do Deputado
mentos de povos indígenas, comunida- Vitor Hugo não era a de beneficiar a
des quilombolas e assentados(as) da agricultura familiar, tal qual alegado
reforma agrária. Cabe destacar que por ele. Foi expressiva a mobilização
tramitam no Congresso, ainda, mais dos movimentos sociais representativos
de 10 PL de natureza similar, que pro- da agricultura familiar, a partir de
põem, por exemplo, obrigatoriedades posicionamento contrário ao PL.
e cotas de oferta de carne suína, café Ainda assim, o deputado, com apoio
com leite, entre outros. da base de governo e da bancada
A criação de uma cota para a compra ruralista, defendeu e conseguiu, em
de leite fluido cria um perigoso pre- maio de 2021, aprovar o PL, seguindo
cedente de reserva de mercado, tor- sua tramitação para o Senado Federal.
nando o PNAE vulnerável aos múltiplos Dados de 2017, apresentados pelo
interesses e lobbies da indústria de FNDE ao Comitê Consultivo do PNAE,
alimentos, que veem no Programa um mostram que apenas 16,9% do lei-
canal de escoamento de seus produtos. te e seus derivados são adquiridos
Ao criar essa possibilidade, a respon- através da compra direta da agri-
sabilidade de definição do cardápio cultura familiar. Ao contrário do que
da alimentação escolar é transferida alegam aqueles que defendem o PL
para o Congresso Nacional, ferindo a 3.292/2020, não são os(as) agricul-
autonomia de estados e municípios na tores(as) familiares os que mais for-
definição da compra e dos cardápios, necem leite para a alimentação esco-
que devem ser elaborados por nutri- lar, e sim laticínios de médio e grande
cionistas e pautados pela oferta local, porte, e é justamente a essa base de
sazonalidade, diversificação agrícola apoio que pretende agradar o de-
da região e na promoção da alimenta- putado de Goiás e bancada do boi.
ção adequada e saudável. Além disso,
ao retirar a prioridade de aquisição Outro projeto de lei que representa
concedida aos assentamentos da re- grande ameaça ao atual desenho de
forma agrária, comunidades indíge- gestão do PNAE é o PL 284/2021, de
nas, quilombolas e tradicionais, o PL autoria da Deputada Luísa Canziani
3.292/2020 amplia a exclusão des- do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB/
ses povos no acesso aos mercados e às PR). Desde o começo da pandemia de
políticas públicas, além de prejudicar Covid-19, tenta-se, por meio de lei,

71
A nuário ÓAÊ

autorização para que, durante o pe- o programa Merenda em Casa para


ríodo de suspensão das aulas presen- atender os 920 mil estudantes da rede
ciais, em razão de situação de calami- estadual, com um investimento mensal
dade pública, possa haver não apenas de R$ 50,6 milhões, operado por meio
a distribuição de gêneros alimentícios do aplicativo PicPay. Nesse contexto,
diretamente às famílias, mas, de modo não surpreende o engajamento de go-
alternativo, a distribuição dos recursos vernadores, prefeitos e secretários de
do PNAE, através de transferências algumas grandes cidades na tentativa
financeiras feitas diretamente às fa- de aprovação do PL em questão. Em
mílias. Até o momento essa proposta entrevista dada à agência de jorna-
não foi aprovada pelo Congresso Na- lismo investigativo O Joio e o Trigo, a
cional, mas alguns governos estaduais coordenadora geral do PNAE no FNDE
e prefeituras de capitais, utilizando-se relatou a forte pressão feita por re-
apenas de orçamentos próprios so- presentantes de secretarias de educa-
bre os quais têm autonomia para le- ção estaduais para que a legislação
gislar, adotaram cartões alimentação, do PNAE fosse modificada.
operados por empresas terceirizadas, Como pode se observar, as compras
como forma de repassar os recursos públicas da alimentação escolar des-
da alimentação escolar. pontam como mercados milionários
Do início da pandemia até agosto de que já estão sendo explorados em
2021, a prefeitura de São Paulo já novos ensaios de gestão, aproveitan-
havia investido um total de R$ 1 bilhão do-se do contexto da pandemia. Um
no programa denominado Vale-Me- negócio que interessa não apenas às
renda, destinado aos mais de 1 mi- empresas de cartão alimentação, mas
lhão de alunos(as) da rede municipal. também às grandes redes de super-
O programa consiste em transferên- mercado e à indústria de alimentos
cias financeiras mensais feitas através ultraprocessados, que é onde se con-
de um cartão alimentação operado centrariam as compras. Uma vez abo-
pela empresa Alelo, que pode ser canhado, é difícil imaginar que essas
usado em mercados cadastrados. Se- empresas vão abrir mão do merca-
gundo informação publicada no jor- do conquistado durante a pandemia.
nal Folha de São Paulo em fevereiro Além disso, corre-se o risco de que o
de 2021, em despacho publicado no modelo experimentado, “em caráter
Diário Oficial da cidade, a prefeitura excepcional”, venha a se consolidar
detalha a contratação do serviço de como nova forma de gestão, seguindo
transferência financeira ao custo de a tendência ultraneoliberal de trans-
R$ 76,84 milhões. O governo do es- ferência de renda via aplicativos e de
tado de São Paulo, por sua vez, criou privatização de serviços de educação.

72
A meaça no C ongresso N acional

O abastecimento popular da alimen- mentação escolar. Esses caminhos não


tação escolar e seus cardápios cada podem ser interrompidos por interes-
vez mais orientados por diretrizes de ses de mercado. Os avanços nas di-
alimentação adequada e saudável retrizes do PNAE, que apontam para
são os caminhos que cuidadosamente a redução do consumo de alimentos
vêm sendo coletivamente construídos ultraprocessados, a democratização
por agricultores(as) familiares, quilom- das compras públicas como forma de
bolas, povos indígenas, nutricionistas, promover sistemas alimentares saudá-
conselheiros(as) e gestores públicos veis e sustentáveis, encontram-se sob
comprometidos(as) com o direito à ali- forte ameaça. É preciso reagir.

73
A nuário ÓAÊ

O agro não é pop, mas até nas escolas quer ser

Priscila Diniz1
Simone Magalhães2

Assim acontece a entrada do agronegócio nas


escolas públicas brasileiras, com o intuito de
disputar uma narrativa ideológica, obstruir a
reflexão a respeito de sua ação devastadora
à sociedade e ao meio ambiente e dissolver
críticas, em um contínuo processo de
interferência para a formação e formatação da
consciência de estudantes desde a infância

Afirmações de que o Brasil alimen- pregos, parece ser a estratégia da dé-


ta o mundo são muito caras ao agro- cada para manter o agro prosperando
negócio. Vincular seus lucros es- rumo ao seu primeiro trilhão ainda
candalosos ao crescimento do PIB neste ano de 2021. Esses argumentos ti-
nacional, atrelando a imagem do ram o foco dos privilégios tributários do
setor como cada vez mais suste- qual o setor é beneficiário; das acusa-
ntável e responsável ecologicamente ções de conflitos e extermínio de povos
e como um grande gerador de em- originários e comunidades tradicionais;

1 Priscila Diniz é engenheira de alimentos e assessora de advocacy em políticas públicas para alimentação adequada e
saudável na ACT Promoção da Saúde. Compõe a Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável e o Conselho Estadual de
Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA-DF).
2 Simone Magalhães é educadora popular, faz parte do setor de educação e do grupo de estudos Terra, Raça e Classe do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Representa o MST no Comitê Gestor do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ).

74
O agro não é pop , mas até nas escolas quer ser

da intensificação da degradação do sido cada vez mais frequentes reuniões


meio ambiente, das queimadas e des- entre agentes privados, a portas fecha-
matamentos; e da relação direta com o das, com agentes públicos para discutir
aquecimento global, as mudanças climá- não somente o conteúdo dos materiais
ticas, tempestades de poeira e prolife- divulgados em sala de aula, mas tam-
ração de doenças. Mas, principalmente, bém sobre a formação de professores.
perde-se o senso de realidade diante Tendo a Base Nacional Comum Curricu-
da constatação de que o país retroce- lar (BNCC) como ponto de partida, es-
deu ao século passado em seus índices ses grupos tentam indicar abordagens
de fome. Paradoxalmente, 56% da po- para a elaboração do currículo da
pulação brasileira está implicada em educação básica, a serem trabalhadas
algum grau de insegurança alimentar, e especialmente nas disciplinas de Histó-
aproximadamente 19 milhões de brasi- ria, Geografia e Ciências.
leiros estão, realmente, passando fome. As investidas do agronegócio na edu-
Mas, para determinadas “mães”, a cação e sua presença nas escolas não
forma como o agronegócio é apre- são novidades para quem acompa-
sentado nos livros escolares deve se nha a educação e a entrada de novos
tornar o novo ponto de discórdia so- atores nesse campo. É preciso analisar
bre o conteúdo dos materiais didá- que a tentativa de revisionismo históri-
ticos no Brasil. Isso porque represen- co não é uma ação isolada, mas par-
tantes do grupo “Mães do Agro”, que te de uma estratégia que se iniciou no
lideram o Movimento De olho no final da década de 1990 e no início
Material Escolar, têm tido cada vez dos anos 2000, quando a imagem do
mais entrada no Ministério da Educa- agronegócio foi fortemente desgasta-
ção (MEC) por influência do Ministério da pela sua vinculação com o trabalho
da Agricultura, Pecuária e Abasteci- escravo e, principalmente, com o mas-
mento (MAPA), incidindo sobre mu- sacre de Eldorado dos Carajás.
danças em textos que “discriminam À medida que as críticas se acumulam,
o agronegócio” e desconsideram sua as empresas que compõem o setor em-
importância para o país. Entre as penham-se em melhorar sua imagem
críticas recebidas, como estão atu- e ganhar, prontamente, a opinião pú-
almente, alegam que os materiais blica. Assim acontece a entrada do
abordam exageradamente prejuízos agronegócio nas escolas públicas bra-
da pecuária ao meio ambiente, o tra- sileiras, com o intuito de disputar uma
balho escravo em lavouras e o uso de narrativa ideológica, obstruir a refle-
agrotóxicos. xão a respeito de sua ação devasta-
Em um profundo processo de inter- dora à sociedade e ao meio ambien-
ferência na educação brasileira, têm te e dissolver críticas, em um contínuo

75
A nuário ÓAÊ

processo de interferência para a for- sou a ser implementado a partir de


mação e formatação da consciência parcerias diretas com as secretarias
de estudantes desde a infância. municipais – tendo como foco o 8º e o
A Associação Brasileira do Agronegócio 9º anos do ensino fundamental –, com
(ABAG) foi pioneira nesse processo, com diretorias de ensino e com Escolas Téc-
o Programa Educacional Agronegócio nicas Estaduais (ETEC) e Faculdades de
nas Escolas, que realizou ações em di- Tecnologia (FATEC) do estado de SP.
versas escolas das redes municipais do De 2001 até 2020, segundo dados da
estado de São Paulo. No início de sua própria ABAG, o Agronegócio na Es-
criação, a ABAG atuava sobre 86 mu- cola atendeu 255.952 alunos e 3.397
nicípios das regiões administrativas de professores, realizou 2.299 visitas de
Araraquara, Barretos, Ribeirão Preto, alunos, fez 150 visitas de professores,
São Carlos e Franca. A região é polo foi desenvolvido em 111 municípios e
importante do agronegócio nacional, e está presente em 626 escolas. Números
Ribeirão Preto se destaca pela principal estes bastante expressivos.
produção canavieira no país. Além dessa iniciativa, destacamos uma
A ação do agronegócio nas escolas co- segunda investida mais recentemente
meçou em sete escolas dos municípios divulgada que acelera e intensifica
de Jaboticabal, Guariba, Pradópolis o trabalho ideológico realizado pelo
e Monte Alto, para 970 estudantes do agronegócio na educação por meio
primeiro ano do ensino médio. No ano de um novo aparelho de ideologiza-
seguinte, em 2002, a parceria com a ção, altamente permeável, denomina-
Secretaria da Educação do Estado de do Todos a Uma Só Voz. Lançado em
São Paulo foi alargada; o Programa 23 de fevereiro de 2021, o movimen-
envolveu mais cinco municípios e pas- to tem por objetivo unificar todos os
sou a atender 20 escolas, 500 profes- ramos e entidades do agronegócio no
sores e 6.208 estudantes. Nos anos se- país para construir narrativas e estra-
guintes, o Programa foi ampliando seu tégias de atuação capazes de “forta-
raio de atuação e englobando novos lecer a imagem e contribuir para que
municípios a partir da parceria com a o Agro seja admirado pelos brasilei-
Secretaria, de maneira que em 2007 ros e se torne uma paixão nacional”.
já estava sendo realizado em 141 es- Contando com o apoio não só da
colas, alcançando 1.800 professores e ABAG, mas também da Federação
24.500 alunos, como revela o estudo Nacional das Escolas Privadas (FENEP),
de Junqueira e Bezerra (2018). as Mães do Agro e o Todos a Uma Só
A partir de 2008, encerrada a cola- Voz lançaram o Programa De Olho no
boração com a secretaria estadual de Material Escolar e apresentaram suas
educação em 2009, o Programa pas- 10 propostas temáticas sobre o agro-

76
O agro não é pop , mas até nas escolas quer ser

negócio brasileiro, que visam tornar o lamentar da Agropecuária (FPA) jun-


agronegócio “interessante e atraente” to ao MAPA, para garantir que todos
para crianças e jovens, conforme as- estejam bem-informados neste trio há
sinalam os autores. O movimento e a muito tempo bastante coeso e articula-
cartilha contaram com um evento para do no que se refere a um canal perma-
seu lançamento e com diversos espe- nente de comunicação público-privada.
cialistas que se fizeram presentes em Já se identificou, inclusive, uma atuação
um painel para ressaltar a urgência via Conselho Superior do Agroneg-
de se discutir o tema. ócio da Federação das Indústrias do
Organizado em mais ou menos dez es- Estado de São Paulo (FIESP).
tados do Brasil, esse movimento agluti- Mas, ainda que essas ações nas es-
na dezenas de pessoas em seu núcleo colas não sejam exatamente uma
político, que atuam organizadas em novidade, interessa compreender, to-
comissões de trabalho, algumas com davia, as circunstâncias históricas e
atuação no nível local e outras em âm- os objetivos atuais que mobilizam os
bito nacional. Essas iniciativas buscam agentes do agronegócio a reposicio-
criar ou incentivar movimentos de ob- nar sua incidência na Educação e o seu
servação de materiais didáticos, reu- papel nas escolas, reorganizando as
nindo pessoas ligadas ao agronegócio suas estratégias para a consolidação
insatisfeitas com a imagem apresenta- de sua hegemonia na sociedade. Des-
da nas escolas. A proposta então é, sa vez, o alvo são os livros didáticos
de forma ordenada, receber mate- e, segundo seus críticos, trata-se de
riais para então se proceder com re- atender aos anseios do Movimento de
clamações e denúncias de professores. “mães e pais ligados à moderna pro-
Na esfera nacional, onde está o maior dução agropecuária”, para promover
fôlego da iniciativa pela sua abran- “atualização histórica e o embasa-
gência, encontramos articulações com mento técnico/científico nos materiais
escolas superiores de ensino, como a escolares”. Essa pretensa “atualização
Escola Superior de Agricultura Luiz histórica e fundamentada em crité-
de Queiroz (ESALQ), que formaliza a rios científicos”, entretanto, se ocupou
estratégia de que, enquanto não se de afirmar que os materiais didáticos
mudam os conteúdos a contento, se contêm “inconcebível viés político em
construa uma biblioteca virtual para textos relacionados à reforma agrá-
hospedar os conteúdos de contestação ria, ao trabalho rural e aos povos in-
que possam ser usados para serem mi- dígenas”. Como se o apontamento da
nistrados provisoriamente. Também há necessidade histórica da realização
articulação por meio do Instituto Pensar da reforma agrária no país fosse um
a Agropecuária (IPA) e da Frente Par- conteúdo descabido e, portanto, proi-
bido de se abordar nas escolas.

77
A nuário ÓAÊ

Ao optarem pela criação de uma nar- nhecimento de escolas que trabalham


rativa “positiva” do agronegócio, sob a o tema, intensificaram o verniz da
justificativa de seu papel tecnológico no “filantropia”. Mas atentemos: a pro-
campo brasileiro, os atores requentam posta nunca foi melhorar a escola ou
o mito da modernização do campo, a educação em si, trata-se, sob uma
legado histórico da Revolução Verde, fachada colaborativa, de difundir o
escamoteando todas as mazelas que o que intelectuais da Educação cha-
modelo agroexportador produz histo- mam de pedagogia da hegemonia –
ricamente no país. Por meio de pales- a conquista da adesão do conjunto,
tras, elaboração de cartilhas, visitas a primeiro da sua classe e, se possível,
agroindústria, fazendas, cooperativas, de toda a sociedade. A entrada des-
instituições de ensino e pesquisa liga- ses atores na educação expõe mais
das ao Agronegócio, estes Programas um grupo a disputar a escola pública.
fazem com que os alunos tenham con- Por meio de uma abordagem atra-
tato com uma história “diferente” sobre tiva, interativa e didática, na bre-
o agro. Isto é, tentam apresentar uma cha da precarização e sucateamento
versão distinta daquela vivenciada em- da escola pública, sob a justificativa
piricamente muitas vezes por seus avós, dos atuais índices ruins da educação,
parentes ou mesmo seus pais. acontece a captura permanente dos
Nas unidades educacionais onde as currículos e dos projetos político-pe-
cartilhas do agro e as suas formações dagógicos, no qual fundações e ins-
são realizadas, circulam ideias que titutos de interesse privado assumem
pretendem deslocar a percepção a formação dos educadores públicos
oriunda das experiências e vivências nos municípios, principalmente os mais
das pessoas na relação com as conse- interioranos, onde se encontram atores
quências danosas do agronegócio. E, dos movimentos sociais camponeses.
a partir daí, repercutem uma imagem É precisamente nessas realidades lo-
de progresso para a sociedade, es- calizadas, onde a escola por vezes é
pecialmente em cidades interioranas o principal equipamento público e o
com número de habitantes reduzido. livro didático exclusivo material peda-
Além disso, a realização de concur- gógico e único recurso de leitura dos
sos para estimular o engajamento filhos das camadas populares, que os
para produção criativa de estudan- aparelhos privados de hegemonia do
tes e professores sobre a temática do agronegócio atuam e buscam pautar
agronegócio, tendo destaque a ela- o que deve ou não ser ensinado, igno-
boração de desenhos, redações, pro- rando evidências científicas, tentando
jetos de conhecimentos, concurso do enfraquecer as lutas e desqualifican-
Prêmio Professor, bem como o reco- do denúncias feitas pelos movimentos

78
O agro não é pop , mas até nas escolas quer ser

sociais sobre as consequências desas- ser discutidas, trazendo luz às críticas a


trosas ao meio ambiente e para as qualquer atividade econômica. Se há in-
pessoas do campo e da cidade. cômodos, deve haver debate, e não uma
As táticas empregadas por esses mo- clara tentativa de pressionar órgãos pú-
vimentos são bem parecidas com as blicos a ponto de impor uma avaliação
do Projeto de Lei 7180/2014, do Es- unilateral que desconsidera evidências
cola Sem Partido, que clama por “ga- científicas, análises e pesquisas comple-
rantir o pluralismo de ideias no ensino xas sobre os impactos no agronegócio
e evitar que docentes prejudiquem os no Brasil e no mundo.
estudantes em razão de suas convic- O agro não é pop, mas quer ser. E es-
ções políticas, ideológicas, morais ou colheu a escola e os livros didáticos
religiosas”. Para especialistas em Edu- como veículos para propagarem suas
cação, no entanto, há facetas dissimu- ideias hegemônicas. Afirmamos, por-
ladas que acompanham esse discurso, tanto, que as escolas e seus professo-
revelando seu teor de censura e cul- res precisam ter direito à autonomia
pabilização de docentes. de ensino sobre este e quaisquer ou-
Tais movimentações são público-pri- tros temas, e os alunos devem ter aces-
vadas, mas exercidas por meio de so a informações que lhes possibilitem
uma grande variedade de entidades uma reflexão crítica e aprofundada
representativas que confluem na influ- sobre a complexidade das questões
ência e pressão diretas sobre cada que se colocam para, assim, formarem
uma das editoras, cujos materiais di- sua própria opinião.
dáticos causam desgostos aos donos
do agronegócio. Ainda, com as redes
de denúncia que aparentam inofensi-
vas, pulverizadas e desorganizadas,
acaba vindo uma imposição aos pro-
fessores: aderir ao agronegócio ou ser
denunciado por ele.
Como defensores de uma educação de
qualidade para todas e todos, que pro-
mova a justiça social, acreditamos que a
educação deve ser libertadora e apre-
sentar o que de fato acontece e como
essa realidade pode ser transformada.
Há várias questões sociais e ambien-
tais envolvidas que merecem e devem

79
A nuário ÓAÊ

Alô, gostaria de falar com o Conselho de Alimentação Escolar:


desafios da transparência e exigibilidade do direito à
alimentação escolar

Luana de Brito1
Thais Iervorino2
Mariana Santarelli3

e se esses(as) estudantes, seus responsáveis ou


outras pessoas da comunidade escolar quisessem
se engajar na defesa do direito à alimentação
escolar saudável e adequada em seu estado ou
município, como conseguiriam fazer contato com
os CAEs e encontrar as informações necessárias
para exigir esse direito?

1 Luana de Brito é membro da Rede de Mulheres Negras para Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (RedeSSAN) e
assessora de gênero e raça do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ).
2 Thais Iervolino é jornalista e pesquisadora feminista com mestrado em sociologia. Atua há mais de 20 anos em organizações
e movimentos sociais que lutam pela garantia dos direitos humanos principalmente nas áreas de Educação, Meio Ambiente,
Gênero e questões LGBTQIA+.
3 Mariana Santarelli é pesquisadora no Centro de Referência de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (CERESSAN)
da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), relatora nacional para o direito humano à alimentação da Plataforma
Dhesca Brasil, membro do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar (FBSSAN) e coordenadora de projetos do ÓAÊ.

80
A lô , gostaria de falar com o C onselho de A limentação E scolar

Poucas pessoas sabem que todos os de irregularidades, é possível, pelas


e todas as estudantes da educação respostas abertas, aferir que a gran-
básica da rede pública de ensino de maioria o faz na própria escola;
no Brasil têm direito de receber, du- mas costumam também acessar os
rante o período letivo, alimentação canais de contato das prefeituras e
adequada e saudável. Menores ain- secretarias municipais, e, em menor
da são a compreensão de que esse escala, os CAEs. A busca de informa-
direito pode e deve ser exigido e o ções é comumente feita pela internet.
conhecimento de que existem canais Nós, do ÓAÊ, nos perguntamos: e se
formais para seu monitoramento e esses(as) estudantes, seus responsáveis
fiscalização, como é o caso dos Con- ou outras pessoas da comunidade es-
selhos de Alimentação Escolar (CAEs). colar quisessem se engajar na defesa
Entre junho e julho de 2021, o Obser- do direito à alimentação escolar sau-
vatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) dável e adequada em seu estado ou
ouviu um total de 900 estudantes com município, como conseguiriam fazer
direito ao Programa Nacional de Ali- contato com os CAEs e encontrar as
mentação Escolar (PNAE), em uma informações necessárias para exigir
pesquisa que tinha, entre seus objeti- esse direito? A partir dessa pergunta,
vos, compreender o conhecimento e o trilhamos um percurso que mostra que
engajamento deles(as) na defesa da há muito o que se caminhar do ponto
alimentação escolar. Percebemos que, de vista da transparência e da cria-
apesar do reconhecimento e valori- ção de condições de monitoramento
zação da alimentação escolar, ainda do PNAE pela sociedade. Deriva des-
é baixa a percepção da alimenta- sa busca um estudo exploratório, que
ção escolar como um direito. Menos deverá orientar o trabalho do ÓAÊ
da metade (46%) dos(as) estudantes no fortalecimento da atuação da so-
sabe que o PNAE é uma política es- ciedade civil que compõe os CAEs nos
tabelecida em lei, e apenas 28% sa- estados e municípios.
bem da existência dos CAEs. A gran- Os CAEs são espaços formais de par-
de maioria dos(as) alunos(as) (69%) ticipação social do PNAE, que devem
não sabe onde buscar informações ser obrigatoriamente criados em to-
a respeito da alimentação escolar, dos os estados e municípios para mo-
nem tampouco como fazer denúncias nitoramento e controle social do Pro-
caso tenha alguma intercorrência em grama. Para além do monitoramento
relação ao fornecimento e/ou acesso da execução e da prestação de con-
a esse direito (84%). Entre os alunos tas, esses espaços têm a responsabi-
que disseram saber onde buscar in- lidade de comunicar as secretarias
formações e fazer denúncias no caso de educação sobre a ocorrência de

81
A nuário ÓAÊ

irregularidades em relação à qua- CAEs estaduais. Nosso trajeto metodoló-


lidade da alimentação e averiguar gico teve início na busca por informações
essas denúncias para encaminhá-las no Espelho do CAE, uma ferramenta do
aos órgãos de controle. Devem tam- Fundo Nacional de Desenvolvimento Es-
bém orientar a comunidade escolar, colar (FNDE) pela qual é possível consul-
as famílias e os estudantes sobre seus tar informações dos dados do Conselho,
direitos e responsabilidades. Essas como telefone, e-mail, situação do man-
tarefas só são possíveis quando as dato e composição. Para além do obje-
secretarias de educação asseguram tivo de mapeamento e disponibilização
as condições necessárias para a atu- das informações no site do ÓAÊ, pre-
ação dos Conselhos, o que nem sem- tendíamos também analisar o perfil das
pre ocorre de forma adequada. organizações representadas pelos(as)
Os Conselhos são formados por sete conselheiros(as) da sociedade civil. Logo
membros titulares e seus respectivos constatamos que não seria uma tarefa
suplentes, sendo eles representantes simples. No Espelho do CAE, é possível
do Poder Executivo, trabalhadores da encontrar apenas o nome dos conselhei-
educação, estudantes, representantes ros, mas não há informações sobre as
de entidades civis e pais de alunos. Os organizações que representam.
CAEs devem contar com pelo menos
dois representantes da sociedade ci- CAEs e o Direito à
vil, cuja convocação para candidatura
Alimentação Escolar
deve ser feita por meio de chamada
pública. Cada mandato tem duração Leia a reportagem investigativa que, por meio de
de quatro anos, sendo considerado um relatos de cinco conselheiros de diferentes regiões
serviço público não remunerado. Cabe do país, retrata a importância desses Conselhos, suas
valorizar a dedicação e o importante atribuições e desafios atuais.
trabalho voluntário que desempenham
nesses Conselhos os(as) representantes
da sociedade civil, das entidades de
trabalhadores(as) da educação e os Em um primeiro momento, enviamos a
pais e mães de alunos(as), como mos- todos os e-mails de contato dos CAEs
tra a reportagem feita pelo ÓAÊ. estaduais disponibilizados no sistema
A partir do desejo de gerar maior trans- do FNDE uma mensagem apresentan-
parência e facilitar o exercício de par- do os objetivos de nosso contato e so-
ticipação social das pessoas engajadas licitando os seguintes documentos: lei
na defesa do PNAE, entre julho e outubro e outras regulamentações do PNAE
de 2021, demos início a um processo de no estado, ata de eleição dos con-
busca por informações básicas sobre os selheiros(as) da gestão vigente, site

82
A lô , gostaria de falar com o C onselho de A limentação E scolar

ou página do Facebook do Conselho, cantins, Mato Grosso, Mato Grosso


e-mail e telefones a serem disponibi- do Sul, Distrito Federal, Minas Gerais,
lizados aos cidadãos. Dos 27 estados Rio de Janeiro, Espírito Santo e Rio
brasileiros, apenas oito retornaram Grande do Sul). No quadro abaixo,
nossas mensagens encaminhando al- apresentamos um resumo dos conteú-
guns dos documentos solicitados (To- dos das respostas recebidas.

Perfil dos CAEs que responderam à solicitação de informações


Estado Vigência Página do CAE Perfil da Sociedade Civil

TO 2021 a 2025 SIM Não cita organizações representadas


na ata de eleição, informação não
encontrada

MT --- SIM CRN1, CONSEA2, federação de agricultura


familiar

MS 2021 a 2025 NÃO Cooperativas da agricultura familiar

DF 2018 a 2022 SIM UNB3, Acelbra4, CRN

MG 2019 a 2023 SIM CRN, federações e cooperativas da


agricultura familiar, quilombola e indígena

RJ 2021 a 2025 SIM CRN, CRC

ES 2017 a 2021 SIM Informação não encontrada na ata de


eleição (ainda não há informações sobre
nova gestão)

RS 2021 a 2025 SIM APAE5 e CRN

1
Conselho Regional de Nutrição; 2Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; 3Universida-
de de Brasília; 4Associação dos Celíacos do Brasil; 5Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais.

83
A nuário ÓAÊ

Com base nas informações encontra- No que diz respeito especificamente


das, referentes a essa amostra de oito à alimentação escolar, a interrupção
estados, é possível constatar a forte das atividades do Comitê Gestor e do
representação dos CRNs nas vagas Grupo Consultivo instituídos em 2010
destinadas à sociedade civil, seguida pela Portaria n° 450/2010 do FNDE,
da presença da agricultura familiar, o para acompanhar em nível nacional
que demonstra a relevância da pers- as decisões que envolviam o PNAE, re-
pectiva de defesa da alimentação presentou uma enorme perda para o
adequada e saudável. Do ponto de Programa. Era através desses espaços
vista das condições de comunicação que acontecia o diálogo com os mo-
com os CAEs estaduais e de realiza- vimentos sociais e a sociedade civil
ção de denúncias por parte da socie- organizada sobre o desenho do Pro-
dade, são precárias as condições. A grama e a implementação da lei do
grande maioria dos e-mails fornecidos PNAE, o que possibilitava a exigibili-
pelo FNDE no Espelho do CAE não fo- dade de seu cumprimento adequado.
ram responsivos, além disso, grande A cartilha Como exigir o direito à ali-
parte das informações estava desatu- mentação e à nutrição adequadas no
alizada. Dos oito CAEs que responde- PNAE publicada pela FIAN Brasil defi-
ram e acabaram por formar a nossa ne exigibilidade como “o exercício do
amostra, observamos que sete deles direito a apresentar queixa e exigir a
têm páginas próprias no site das se- garantia de realização de um direito
cretarias de educação, mas nenhum ou de uma dimensão dele perante os
deles traz orientações ou disponibiliza órgãos públicos competentes – admi-
canais de denúncia. nistrativos, políticos ou jurisdicionais –, a
Do Governo Federal não há muito o que fim de prevenir, superar e/ou reparar
se esperar atualmente, pois não há dúvi- violações”. Orienta que estudantes e
das sobre o fato de que a transparência seus responsáveis busquem as escolas,
e o controle social não são prioridade. as secretarias de educação e os CAEs e
Em 2019, o Governo Bolsonaro rompeu afirma ainda que estes têm o direito de
formalmente o diálogo com a sociedade ter resposta e ação em tempo oportuno
civil, através de um decreto que deter- para reparação da violação por parte
minou a extinção de comitês e conselhos do poder público.
criados até o final de 2018. Antes mes- Para que o direito à alimentação es-
mo dessa antidemocrática canetada, já colar possa ser defendido, os governos
havia sido extinto, no primeiro dia de precisam disponibilizar acesso fácil aos
seu governo, o CONSEA, que ao longo mecanismos necessários para que os
da história teve papel fundamental na indivíduos tenham a possibilidade de
formulação e monitoramento do PNAE. exigir e reclamar os seus direitos. A au-

84
A lô , gostaria de falar com o C onselho de A limentação E scolar

sência de canais e estratégias de diálo- condições de trabalho e de canais de


go com a comunidade escolar faz com denúncia e formação dos conselheiros
que muitos CAEs acabem por ter uma para o exercício dessa função voluntá-
atuação muito restrita às análises da ria e não remunerada, que é de ex-
prestação de contas e execução finan- trema importância para a exigibilida-
ceira. É necessária maior transparência de do Direito Humano à Alimentação e
das informações, criação de melhores Nutrição Adequadas (DHANA).

85
A nuário ÓAÊ

Financiamento do PNAE: uma proposta de recomposição em face


das perdas inflacionárias

Adriana Dragone Silveira1


Cacilda R. Cavalcanti
João Paulo Marra Dantas
Nalú Farenzena
Thiago Alves

o congelamento dos valores per capita do PNAE


e o decréscimo nos montantes transferidos
põem em xeque a possibilidade de que a
assistência financeira da União possa de fato
contribuir com a SAN dos(as) educandos(as) por
meio da oferta de alimentação escolar. Ou seja,
põem em xeque uma contribuição mais efetiva
da União à garantia de condições adequadas de
permanência e de aprendizagem na escola

1 Adriana Dragone Silveira (UFPR), Cacilda R. Cavalcanti (UFMA), João Paulo Marra Dantas (UFG), Nalú Farenzena (UFRGS) e
Thiago Alves (UFG) são pesquisadores associados à Fineduca.

86
F inanciamento do PNAE

No contexto atual, em que a socieda- rais de ensino, além de instituições pri-


de brasileira enfrenta o aumento da vadas filantrópicas e comunitárias sem
pobreza, do desemprego e da fome, fins lucrativos, conveniadas com prefei-
lutar pela garantia e pela ampliação turas, governos estaduais ou com o DF.
de recursos financeiros para políticas Os recursos, exclusivos para compra de
públicas, como o Programa Nacional gêneros alimentícios para alunos(as) da
de Alimentação Escolar (PNAE), consti- educação básica pública, são repassa-
tui tarefa de primeira ordem. Este arti- dos em 10 parcelas mensais, referentes
go, que pretende ser uma contribuição a 10 meses de 20 dias letivos/mês, de
para a mesma luta, tem como base a acordo com as matrículas do Censo Es-
Nota Técnica da Associação Nacional colar do ano anterior.
de Pesquisa em Financiamento da Ed- A lei do PNAE determina que 30% dos
ucação (Fineduca) e do Observatório recursos transferidos deverão ser utiliza-
da Alimentação Escolar (ÓAÊ). Para dos na aquisição de gêneros oriundos
tanto, apresenta características atuais da agricultura familiar e do empreen-
dos mecanismos de financiamento do dedor familiar rural ou de suas organi-
PNAE e se dedica à análise e à apre- zações, priorizando-se os assentamentos
sentação de proposições de aumento da reforma agrária, as comunidades
de seus recursos, considerando as per- tradicionais indígenas e comunidades
das inflacionárias nos últimos anos. quilombolas. Essa medida, além de for-
Ao longo de sua existência, o PNAE talecer a agricultura familiar e a eco-
passou por diversas modificações, im- nomia local, impulsiona a garantia de
pulsionadas tanto por políticas do go- alimentação mais saudável.
verno federal quanto por demandas A atual normatização do PNAE garan-
dos governos estaduais e municipais e te ainda a participação das comunida-
das organizações da sociedade civil. des no acompanhamento do Programa
Essas alterações fizeram do Programa para o controle social e o apoio ao de-
uma importante política pública, de ca- senvolvimento sustentável. Tais diretrizes
ráter intersetorial, na garantia de con- evidenciam o caráter de intersetoriali-
dições adequadas de aprendizagem dade dessa política que, para cumprir
para milhões de estudantes brasilei- adequadamente seus objetivos, deve
ros(as), muitos deles(as) com sua princi- envolver políticas de educação, de Se-
pal refeição na escola. gurança Alimentar e Nutricional (SAN),
Atualmente, o PNAE é regulamenta- desenvolvimento agrário e saúde.
do pela Lei Federal nº 11.947/2009 Ao longo da existência do Programa,
e consiste na transferência de recursos a principal mudança ocorreu em 2009,
financeiros federais a estados, municí- com a alteração constitucional (art.
pios, Distrito Federal, instituições fede- 208, inciso VII, Emenda Constitucional

87
A nuário ÓAÊ

nº 59/2009) do dever do Estado para básica, pois o Programa era antes res-
o atendimento em todas as etapas da trito ao ensino fundamental.
educação básica por meio de “pro- A partir da maior abrangência do
gramas suplementares de material di- PNAE, ocorreram reajustes nos valores
dático escolar, transporte, alimentação per capita para os anos de 2010 (os
e assistência à saúde”. É de observar maiores entre os anos considerados),
que, antes do preceito constitucional, a 2013 e 2017, conforme se pode ob-
referida lei já havia previsto a exten- servar na tabela abaixo.
são do PNAE para toda a educação

Valores per capita do PNAE (2009, 2010, 2013 e 2017)

Categorias de matrículas e valor per capita 20091 20102 20133 20174

Creche 0,22 0,60 1,00 1,07

Pré-escola 0,22 0,30 0,50 0,53

Escolas indígenas e quilombolas 0,44 0,60 0,60 0,64

Ensino Fundamental 0,22 0,30 0,30 0,36

Ensino Médio 0,22 0,30 0,30 0,36

Educação de Jovens e Adultos (EJA) 0,22 0,30 0,30 0,32

Programa Mais Educação/Novo Mais Educação 0,66 0,90 0,90 1,07

Atendimento Educacional Especializado (AEE) - - 0,50 0,53


no contraturno

Tempo integral - - 1,00 1,07

Programa de Fomento às Escolas de Ensino - - - 2,00


Médio em Tempo Integral
Fonte: resoluções do FNDE sobre o PNAE
(1) Valores fixados pela Resolução MEC/FNDE/CD nº 38/2009
(2) Valores fixados pela Resolução MEC/FNDE/CD nº 67/2009
(3) Valores fixados pela Resolução MEC/FNDE/CD nº 26/2013
(4) Valores fixados pela Resolução MEC/FNDE/CD nº 01/2017, mantidos para o período subsequente.

88
F inanciamento do PNAE

Em 2019, o PNAE atendeu 40,2 mi- da metade dos(as) estudantes atendi-


lhões de estudantes. Consideradas as dos(as) em 2019 era do ensino funda-
redes públicas estaduais e municipais mental, seguido do ensino médio (17%)
em seu conjunto, o maior percentual de e a pré-escola (10%). Os demais seg-
alunos(as) atendidos(as) é o das redes mentos representam menos de 10%.
municipais de ensino, quase 60%, dada Os recursos transferidos pela União aos
a oferta municipalizada da educação entes subnacionais por meio do PNAE,
infantil e a predominância das redes no período de 2014 a 2019, tiveram
municipais no atendimento ao ensino uma queda entre 2014 e 2016, não re-
fundamental na maior parte das unida- cuperada nos anos seguintes de modo
des federativas. Entre as etapas/mo- a permitir o retorno aos patamares dos
dalidades especificadas no PNAE, mais dois primeiros anos da série.

Recursos do PNAE transferidos pelo FNDE aos entes federativos por dependência
administrativa (2014-2019)1

Fonte: Elaborado com base nos Dados Orçamentários e Financeiros do PNAE – Rede Federal – Por Entidade Executora
disponibilizados pelo FNDE.
(1) Valores pagos atualizados pelo IPCA Alimentação e Bebidas para dez/2020.

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A nuário ÓAÊ

No ano de 2019, comparado a 2014, IPCA Alimentação e Bebidas, o INPC


a diminuição dos recursos, em valores e o INPC Alimentação e Bebidas; tam-
reais, foi de 19%, proporção muito bém foram estudados os resultados
maior do que a redução no número da Pesquisa Nacional da Cesta Bá-
de matrículas no mesmo período (6%), sica de Alimentos (PNCBA), computa-
num contexto em que ainda há neces- dos pelo Departamento Intersindical
sidade de expandir a cobertura da de Estatística e Estudos Socioeconômi-
educação básica e em que os valores cos (DIEESE), dentro do mesmo perí-
per capita do PNAE nunca chegaram a odo. Optou-se pelo reajuste dos va-
níveis compatíveis com uma política de lores per capita do PNAE pelo ‘IPCA
assistência financeira da União pro- Alimentação e Bebidas’ de 2010 a
priamente supletiva. Cabe ainda des- 2020 (cujos valores acumulados anu-
tacar que o recurso da União é somen- ais foram 10,39%; 7,19%; 9,86%;
te um apoio para a maioria das redes 8,48%; 8,03%; 12,01%; 8,61%;
públicas estaduais e municipais, pois -1,87%; 4,03%; 6,36%; 14,11%,
essas arcam com uma boa parte das respectivamente). Os valores para
despesas. Além da redução do volu- 2022 foram estimados com base nas
me de recursos transferidos em termos projeções da inflação para 2021 e
absolutos, propriamente dito, o cená- 2022 divulgadas pelo Boletim Focus
rio do PNAE tem enfrentado uma ou- do Banco Central (de 20/08/2021)
tra problemática: a corrosão do poder e pela Nota de Conjuntura 17 do Ins-
compra dos gêneros alimentícios pela tituto de Pesquisa Econômica Aplica-
inflação crescente nos últimos anos. da (IPEA) (de 24/08/2021).
Foi realizado um estudo exploratório A tabela a seguir expõe os valores
dos principais índices de inflação e de per capita por categorias de matrícu-
custo de vida calculados pelo Instituto la: os valores praticados em 2021 –
Brasileiro de Geografia e Estatística os mesmos da Resolução nº 01/2017
(IBGE), considerando como referência – e os valores propostos, resultantes
o período compreendido entre 2009 da aplicação de fatores de correção
e 2020, a fim de elaborar uma pro- pelo IPCA Alimentação e Bebidas, em
posta de elevação dos valores per que a linha de base foram os valores
capita do PNAE para o exercício de fixados pela Resolução MEC/FNDE/
2022. Foram analisados o IPCA; o CD nº 67/2009 para o ano de 2010.

90
F inanciamento do PNAE

Valores per capita do PNAE de 2017 a 2021 e projeção para 2022 com base na
atualização/projeção de valores pela inflação

Categoria de Matrícula Valor 2017-2021 Valor Projetado 2022

Creche 1,07 1,89

Pré-escola 0,53 0,94

Escolas indígenas e quilombolas 0,64 1,47

Ensino Fundamental 0,36 0,74

Ensino Médio 0,36 0,74

Educação de Jovens e Adultos (EJA) 0,32 0,74

Programa Novo Mais Educação 1,07 2,21

AEE no Contraturno 0,53 0,94

Tempo Integral 1,07 1,89

Programa de Fomento às Escolas de 2,00 2,65


Ensino Médio em Tempo Integral

Fonte: Elaborada com base nas resoluções do FNDE e atualização/projeção de valores utilizando o índice IPCA/IBGE –
Alimentação e Bebidas.

A significativa defasagem dos valores com uma diferença de mais de 100%


per capita do PNAE ao longo dos últi- (escolas indígenas e quilombolas, en-
mos anos pode ser compreendida, em sino fundamental, ensino médio, EJA,
grande medida, pela corrosão do po- Novo Mais Educação).
der de compra gerada pela inflação No gráfico abaixo, aos valores efeti-
no período, bem como pelo congela- vamente transferidos aos entes fede-
mento discricionário dos per capita do rativos por meio do PNAE (de 2014
PNAE em 2010, 2013 e 2017 pela a 2019) é acrescentada a projeção
gestão do FNDE/MEC. Os valores per para 2022, a qual resultou da mul-
capita projetados para 2022 superam tiplicação do número de estudantes
muito os valores vigentes de 2017 a de 2019, por categoria considera-
2021, destacando-se cinco categorias da no PNAE, pelos valores per capita

91
A nuário ÓAÊ

atualizados (última coluna da tabe- tados para 2022. Para isso, foram
la acima)2. A projeção foi realizada utilizados os ‘Dados Financeiros do
recalculando os recursos efetivamen- PNAE – Redes Estadual, Distrital e
te transferidos (valores pagos) pelo Municipal – Por Entidade Executora’
PNAE aos estados e municípios em disponibilizados pelo FNDE.
2019 com valores per capita proje-

Recursos do PNAE transferidos pelo FNDE aos entes federativos por dependência
administrativa de 2014 a 20191 e projeção para 2022

Nota: (1) Valores pagos atualizados pelo ‘IPCA-Alimentação e Bebidas’ para dez/2020.

2 Para a projeção do orçamento para 2022 realizou-se uma análise dos valores repassados pelo FNDE em 2019, contendo
informações desagregadas das 12 ações de etapas e modalidades do PNAE e das unidades executoras (Distrito Federal, 25
redes estaduais e 5.501 redes municipais). O arquivo 2019 não contém informações da rede estadual do Amapá. Como não
foi informado no arquivo do FNDE o número de matrículas por cada ação, realizou-se um procedimento para calcular o número
equivalente de matrículas atendidas em 2019 em cada ação, utilizando a seguinte fórmula: ‘Matrículas equivalentes PNAE
2019 = [Valor pago ação / per capita ação / 200 dias letivos]’. Nesse procedimento, foram utilizados os valores per capita
vigentes em 2019. Depois, como último procedimento para projeção do orçamento do PNAE 2022 aplicou-se a fórmula ‘VT =
A x D x C’ para cada entidade executora.

92
F inanciamento do PNAE

Pela projeção gerada, o orçamento da por as perdas da inflação entre 2010


despesa do PNAE deveria ser de R$ e 2020. Por esse motivo, e tendo pre-
7,82 bilhões em 2022, o que represen- sente o direito à alimentação escolar
ta 63,1% a mais (R$ 3,0 bilhões) em e seu não retrocesso, se faz urgente
relação ao montante de 2019 e 31% maior aporte de recursos ao PNAE.
a mais (R$ 1,87 bilhões) em relação a Importa destacar que o congelamen-
2014 (maior valor da série). Em bene- to dos valores per capita do PNAE e o
fício dos(as) estudantes das redes esta- decréscimo nos montantes transferidos
duais, seriam R$ 955,05 milhões a mais põem em xeque a possibilidade de que
(67%) em comparação à despesa rea- a assistência financeira da União possa
lizada de 2019 do Programa; a mes- de fato contribuir com a SAN dos(as)
ma comparação temporal resultaria educandos(as) por meio da oferta de
em R$ 2,05 bilhões a mais (60%) para alimentação escolar. Ou seja, põem em
as prefeituras aplicarem na compra de xeque uma contribuição mais efetiva
gêneros alimentícios para os(as) estu- da União à garantia de condições ade-
dantes das redes municipais. quadas de permanência e de apren-
O estudo realizado pela Fineduca e dizagem na escola. Por isso, reafirma-
pelo ÓAÊ, utilizado neste artigo, evi- mos a defesa de reajuste nos valores
dencia que os valores per capita do per capita do PNAE e a alocação de
PNAE são baixos para contribuir mais um volume muito maior de verbas ao
efetivamente com as finalidades do Programa no orçamento da União, em
Programa e, de modo geral, não fo- 2022 e nos anos seguintes.
ram atualizados sequer para recom-

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F inanciamento do PNAE

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