Você está na página 1de 99

E. B.

PASUKANIS
1891-1937

A TEORIA. GERAL DO DIREITO


E O MARXISMO

Tradução, apresentaçao, índice e notas por ·


PAULO BESSA

RENOVAR
Todos os direitos reservados à
LIVRARIA E ·EDITORA RENO VAR LTDA.
Rua da Assembléia, 10/1.417 - 20011 - Centro SUMÁRIO
Rua Almirante Baltazàr, 56-A - 20940 - São Cristóvão
Tel.: 232-9205 -Rio de Janeiro - RJ

A Teoria Geral do Direito e o Marxismo


E. B. Pasukanis
© .da tradução: Paulo Bessa

Produção editorial Apresentação/ VII ·


Antonio Cordeiro Filho PREFACIO DA SEGUNDA EDIÇÃO RUSSA/ 1
Revisão tipográfica Introdução
José Adriano Monteiro de Moraes e AS TAREFAS DA TEORIA GERAL DO DIREITO/ 11
Cristina Lopes de Oliveira
Capítulo Um
Capa . OS MÉTODOS DE CONSTRUÇÃO DO CONCRETO
Júlio Cesar Gomes NAS CIÊNCIAS ABSTRATAS/ 31
Composição . Capítulo Dois
Linolivro S/C Composições Gráficas IDEOLOGIA E DIREITO/ 41
Capítulo ·Três
FICHA CATALOGRAFICA RELAÇÃO E NORMA/ 55
Capítulo Quatro
Pasukanis, Eugeny Bronislanovich, 1891-1937 MERCADORIA E SUJEITO/ 81
P291 A teoria geral do direito e o marxismo I
Capítulo Cinc.o
E. B. Pasukanis I trad., apres. e notas por Paulo
Bessa. - Rio de Janeiro, Renovar, 1989. DIREITO E ESTADO/ 109
Capítulo Seis
1. Direito, teoria geral. 2. Marxismo. DIREITO E MORÀL/ 127
I. Título. Capítulo Sete
CDU 340.11 DIREITO E VIOLAÇÃO DO DIREITO/ 143
lndice Onómástico/ 167
Proibida a reprodução (Lei n.0 5.988/73) Breve Notícia Biográfica de Alguns Autores Citaqos/ 171
Termos Latinos Citados/ 175
Impresso no Brasil
Printed in Brazil

l _ _ _ _ _セ@
,,,

r·•
セ@
f
APRESENTAÇÃO
.,,,

Dedicada a Edmundo Moni:z, marxista.

1. Introdução Geral- A Teoria Geral do Direito e o Mar-


xismo é uma das primeiras tentativas de compreensão do fenô-
meno ェオイセ、ゥ」ッ@ utilizando-se o instrumental te6rico fornecido
pelo Materialismo Hist6rico. Pasukanis, juntamente com Stuc-
c ka e Gojchbarg, buscou elaborar uma teoria científica do Di·
reito que servisse de ferramenta para · a construção do socia-
lismo, levando em conhl o papel· que o· Direito poderia desem-
penhar nesta nova ordem. Eugeny Bronislanovich Pasukanis
realiza sua investigação partindo ·do pressuposto que o Direito
é uma forma necessária da sociedade capitalista e que surge
em conseqüência de um determinado nível de desenvolvimento
das forças produtivas e das relações sociais daí decorrentes.
Vale observar que a formulação te6rica estruturada pelo juristlz
bolchevique foi realizada em período de intensa luta política
e no qual Pasukanis exercita o elevado cargo . de Vice-Comis-
;lj• sário do Povo 'para a justiça (Stucka era o Comissário do
I
Povo para a justiça) e, portanto, desempenhava relevante fun-
ção no organograma do novo Estado Soviético e na modela-
gem dos princípios e 'institutos de uma ordem jurídica revolu-
cionária. Assim, A Teoria Geral do Direito e o Marxismo
! .1 · possui um inequívoco sentido prático e de polêmica politica
contra os juristas burgueses e de discussão fraterna entre os
camaradas do partido que tinham tarefas a serem cumpridas
na área do Direito. Este duplice conteudo da obra que ora sé
apresenta torna-a extremamente viva e fascinante. Vale notar.•
em favor do livro, que este era destinado a ser um trabalho

l\

jl!
''
Vlll E. B. PASUKANIS
i APRESENTAÇÃO IX

pessoal de Eugeny Bronislanovich e não um documento para desdobrando em conformidade com a complexidade posta pelo
publicação ou destinado ao grande público. Apesar disto, as nível de desenvolvimento das relações econômicas e sociais.
edições do trabalho se têm sucedido através . dos tempos e A relação jurídica e as suas conseqüências têm, portanto, um
sempre alcançado incontestável êxito. papel fundamental na organização da Economia Capitalista,
Ainda que· com enfoques e objetos extremamente diver- que é exatamente o de permitir e estimular a circulação de
sificados, A Teoria Geral do Direito e o Marxismo está no mercadorias . · E· a partir das necessidades concretas postas pelo
mesmo nível que as grandes obras de doutrina política e jurí- Modo de Produção Capitalista que o Direito burguês irá cons-
dica, tais como as de Locke, Rousseau, Hobbes e outros. ' truir Úma de suas categorias fundamentais, que é a igualdade.
O método empregado é o que vai em busca das genera- O Capitalismo exige que todos se encont11em no mercado em
lidades do Direito e daquilo que há em comum entre os vários estrito pé de igualdade. A. igualdade jurídica é a contrapartida
sistemas jurídicos e as suas junções concretas no interior do lógica e necessária da desigualdade econ8mica. A diferença
Modo de Produção Capitalista. Marx, em relação à Econo- entre o Capitalismo e os outros sistemas econômicos é que;
mia Política, buscou as categorias econômicas, isto é, os ele- embora todos aqueles que o precederam tivessem; em sua ・ウセ@
mentos mais simples e que na sua simplicidade continham a fera produtora, situações ,desiguais, estas, ao nível político e
Bェオイセ、ゥ」ッL@ não eram encobertas. A desigualdade foi a tônica
condensação das leis principais da Economia. Foi a partir da
mercadoria, do valor, do preço que Marx pôde estabelecer do escravismo, do feudalismo, etc. fá no Capitalismo às coisas
e compreender as regras básicas e universais da Economia se operam- de fÓrma diferente, a proeminência do mercado e
Capitalista. Como Marx, Pasukanis buscou certificar-se das a necessidade de reprodução, ampliação e circulação do Ca-
leis fundamentais do direito na sociedade capitalista. Assim, pital impõem uma representação política totalmente diferen-
ele busca desvendar as categorias básicas do Direito, isto é, ciada daquelas dos modos de produção anteriores. A separa-
aquelas encontráveis em qualquer ordenamento jurídico bur- ção entre produtor direto (proletário) e produtor indireto (pro-
guês e não em um ordenamento específico. Avançando na prietário dos meios de produção) deve ser transformada juri-
dicamente em igua 1dade entre vendedor e comprador. O Modo
trilha aberta pelo autor de O Capital, Pasukanis desvenda as
categorias sujeito de direito, pessoa, contrato, etc., e a partir de Produção Feudal; com seus entraves à livre circulação de
da constatação do papel específico desempenhado por estas mercadorias - e mesmo a sua produção em escala-diminuta - ,
categorias no interior da ordem jurídica burguesa ele parte em dispensava inteiramente a igualdade entre os homens, uma
vez que as suas leis internas eram de outra natureza . A agi-
sentido de construir uma teoria do Direito Público, do Direito
lidade de aquisição e aliena--çáo não. era uma condição neces-
Penal, etc. Assim, em A Teoria Geral do Direito e o Mar-
sária à sobrevivência e reprodução do sistema. A · burguesia
xismo estão claramente tipificadas as implicaçóes que decor-
contestou a "propriedade feudal" não devido ao fato desta
rem para todo o direito no momento em que dois sujeitos de
ser "feu,dal" mas em razão de' que os gravames, taxas e ゥューッウセ@
direito se encontram no mercado para celebrar um contrato.
tos que -a marcavam tornavam-na extremamente petrificada e
O ato de contratar, este momento es!:encial para o Capitalis-
com escassa capacidade de rápida c;rculação. Para Pasukanis
mo, é, portanto, o ponto central do Direito burguês.
セ@ esta mobilidade e os institutos juridicos que a significam que
A forma jurídica tem por finalidade precípua estabelecer constituem o que ele denomina "forma jurídica". Entende o
e mediar os vínculos entre dois agentes econômicos que se jurista soviético que estas são características fup.damentais e
pdem em contato no mercado. Esta intermediação, efetuada essenciais .do Direito, sem as quais não. há Direito. Daí porque
pelo Direito, 'com o estabelecimento de regras ·e de garantias o autor em questão só reconhece a existência do direito no
reciprocas, é a relação jurídica que irá se desenvolvendo e Capitalismo, ou seja, o direito é uma forma essencialmente.
X E. B. PASUKANIS APRESENTAÇÃO Xl

burguesa e capitalista O Feudalismo, dispensando os meca- obras, ditas do "jovem Marx", começam a elaborar uma pro-
nismos -econômicos capitalistas, dispensava o direito; eiJZ con- posição teórica que será aprofundada e cristalizada em O Ca-
seqüência, o Estado, estrutura responsável pela sua articulaÇão pital. Em sua obra mais fundamental, Marx examina, em espe-
social, era, destarte, igualmente .desnecessário. Em realidade, cial, o contrato e os s.eus elementos constitutivos como· instru-
assiste plena razão ao autor, uma vez que falar-se em "Direito mentos básicos de reprodução do capital. Não escapou à
Feudal" é forçar determinado conceito ao extremo. Sabemos observação do autor do 18 Brumário de Luis Bonaparte a legis-
todos que, no Feudalismo, vários "or-denamentos jurídicos" se lação repressiva adotada pela Inglaterra,. visando a compelir
confundiam e que cada Estado social tinha as suas regras pró- os camponeses expulsos dos campos a se engajarem na produ-
prias, inaplicáveis aos outros Estados, além das diversas juris- ção industrial. Possivelmente é neste ponto de suas pesquisas
dições paralelas (Eclesiástica, Comercial, do Rei, dos Nobres, que Marx mostra com mais crueza e força o verdadeiro signi-
etc.). Por oposição, verifica-se que mttra característica do ficado do Direito burguês. E na legislação referente ao tra-
Direito burgu'ês é a existência de aparelho gerador e aplicador balho e ao operariado que se pode aquilatar o conteúdo con-
centralizado: o Estado. Tal questão ressai bastante óbvia na creto dos slogans burgueses de liberdade e igualdade.
construção dos Estados Nacionais e na própria incapacidade
Não resta dúvida que, não obstante as várias páginas que
do Estado absolutista em contémplar os anseios burgueses {po-
líticos e econômicos) de liberdade e sustentar a continuidade Marx dedicou aos temas jurídicos, foi em relação ao Estado
dos privilégios aristocráticos. A contradição interna do Estado que ele teve oportunidade de avançar com mais firmeza e dei-
absolutista foi resolvida com a maré revolucionária dos séculos xar uma teoria mais acabada. Foi a partir de sua intensa prá-
XVIII e XIX, e com a implantação do Estado burguês de tica política que Karl Marx pôde desvendar as características
Direito, que é a forma privilegiada da dominação burguesa. chaves do Estado como aparelho de classe destinado a assegu-
rsar uma determinada ordem política e um determinado padrão
2. Marx "jurista" - Tendo estudado em profundidade a de acumulação de Capital. A obra marxiana dedicada aos es-
Economia Capitalista, Marx não poderia ter deixado de exa- tudos do Estado é bastante vasta e nela podemos vislumbrar
minar um elemento que é conseqüência desta mesma economia, dois momentos extremamente importantes, que podem ser iden-
isto é, o Direito burguês. As análises que· Marx fez sobre o tificados com o 18 Brumário de Luis Bonaparte e com As Lu-
Direito· não foram sistemáticas, uma vez ·que ele jamais se de- tas de Classes em França. No primeiro trabalho é analisada
dicou especificamente a enfrentar o problema jurídico . O Di- em profundidade a ascensão de Napoleão li/ ao governo e a
reito para Marx é objeto de análise na medida em que os seus maneira pela qual ele jogou com as contradições de classe para
institutos se·rvem para organizar e reproduzir o Modo de Pro- colocar-se acima das mesmas, na forma de um árbitro, e em-
dução Capitalista. Assim, o autor ·de O Capital jamais se preo- polgar o poder com astúcia. já em As Lutas de Classe em
-cupou com filigranas ou questiúnculas tão 。ッセ@ gosto dos "ju- França não é mais para o Estado burguês que Marx dirige a
ristas". sua observação crítica, mas sim em ·direção à luta revolucio-
O Prefácio e a Crítica à Filosofia do Direito de Hegel, a nária do· proletariado da Comuna de Paris. Foi a partir da-
Crítica ao Manifeslo da Escola HistóriCa, as Anotações sobre quela experfência revolucionária concreta que Marx teve a. pos-
a Regulamentação da Censura Prussiana, A Crítica Moralizan- sibilidade de estabelecer as ltnhas básicas da futura organi- '
te e a Moral Crítica, a análise do Julgamento dos Lenhadores, zação do Estado socialista e de seus princípios fun-damentais.
a Ideologia Alemã (escrita em colaboração com Engels) são Também quanto às características básicas do. Estado socialista
leituras obrigatórias, dentre outras, para aqueles qúe queiram deve ser consultada a Crítica ao· Programa de Gotha, na qual
compreender o pensamento. marxiano sobre o Direito. Estas o corifeu da Práxis polemiza com os dirigentes do Partido So·
XII E. B. PASUKANIS APRESENTAÇÃO .XIII

cial Democrata Alemão quanto à natureza de suas consignas, xada à própria sorte, tende a levar à desestruturação da pró-
em especial as referentes ao Estado popular. Marx demons- pria atividade econômica. O Estado é, portanto, a violência
trou que o Estado popular postulado pelos socialistas alemães organizada de uma classe contra aquelas que lhe são subordi-
era ainda o Estado burguês, de pouco valendo a adjetivação nadas.
de popular que, por si só, não descaracterizava-o como insti- O autor de A Situação da Classe Trabalhadora na Ingla-
tuição tipicamente burguesa, por melhor ·que fossem os pro- terra escreveu, também, textos dedicados à análise do socialis-
pósitos do partido alemão. mo dos juristas· e outros, que podem ser encontrados no Anti-
Os enjrentamentos políticos no interior do campo socia- Dühring, onde versa sobre Direito e Moral, etc.
lista opuseram Marx a Proudhom naquilo que concerne à con- Lenin, em prosseguimento ao trabalho desenvolvido por
cepção da propriedade. O líder político francês, em seu opús- Karl Marx, também lançou suas preocupações em. direção ao
1

culo denominado O que é a Propriedade?, classifiCa-a como estudo do Estado (0 Estado e a Revolução) e da função a ser
um roubo, desenvolvendo inúmeras considerações sobre a pro-
desempenhada pelo Direito em um período revolucionário· e
priedade justa. Marx refuta as teses de Proudhom, sustentando
conseqüentemente de um elevado nível na luta de· classes. O
que reivindicar uma propriedade justa e classificá-la como Estado e a Revolução é a continuidade lógica do que foi teo-
roubo é ipso facto admitir como vál.i·dos os seus fundamentos,
rizado em As Lutas de Classé em França e em A Crítica do
pois o roubo é subtrair de alguém algo que lhe pertence, logo
Programa de Gotha, acrescido de toda a experiência teórica
reconhecer a propriedade enquanto tal.
e prática acumulada pelo proletariad,o internacional desde aque-
Como .se pode ver nestas rápidas passagens, o tema dゥセ@ las memoráveis lutas. Lenin, como dirigente máximo do Es-
reito sempre· esteve presente 11.a reflexão marxiana. Compete-
tado Soviético, fazia questão de ressaltar em todas as ocasiões
nos, a partir do legado do autor alemão, avançar em pontos possíveis que era fundamental para o êxito da construção do
e questões que foram apenas ventilados na obra do fundador
socialismo que os dirigentes partidários e as massas mantives-
da Economia Crítica.
sem a mais estrita observância à legalidade socialista.
Em geral, houve uma abordagem do tema Direito por
todos o.s teóricos do marxismo. O próprio Engels enveredou O Marxismo, ao contrário do que alega a crítica burgue-
pelo jurídico, dando especial ênfase ao exame ·da propriedade sa e liberal, não é refratário ao .direito e à sua investigação
privada como demonstra um de seus trabalhos mais conheci- científica. A Teoria Geral do Direito e o Marxismo é, incon-
dos e comentados, que é A Origem da Família, da Propriedade testavelmente, um salto de qualidade nesta área particular do
Privada e do Estado, cujas teses fundamentais são exposadas conhecimento mas, como não poderia deixar de ser, continua-
por Marx. Engels defende o ponto de vista, escudado em pes- dor de uma tradição já existente na Filosofia da Práxis. É,
quisas feitas por Morgan, de que o incremento da divisão so- em realidade, a mais completa e original análise marxista do
. cial do trabalho e a ·separação entre ·produtor direto e indireto Direito até hoje realizada .
deram origem à necessidade de aparelhos de coerção que fos-
sem capazes de assegurar a reprodução das _relações sociais de- 3. Alguns As.Pectos Fundamentais de A Teoria Geral do Di-
rivadas da nova ordem econômica. O afastamento progressivo reito e o Marxismo - O sujeito de Direito é o ponto ao redor
dç humanidade da economia "natural" implicou, portanto, no do qual circulam todas as categorias jurídicas. E mais, é no sen-
surgimento .·de superestruturas capazes de articular o ・」ッョ￴ュゥセ@ tido dq garantir um determinado tipo de "liberdade" que o Di-
co, o ideológico e o político em unia nova ordem. O Estado - reito tutela os interesses deste mesmo sujeito de Direito que; em
ou seus rudimentos - surge como uma racionalização da vio- essência, são interesses egoísticos que se contrapõem àqueles
lência que se encontra espalhada pela sociedade e' que, se dei- dos demais membros da sociedade. Em linguagem psicanalí-
XIV E. B. P ASUKANIS APRESENTAÇÃO XV

tica poder-se-ia dizer que o Direito prima pelo egocentrismo. exemplos e situações tais como as que acabaram de ser refe-
. O Direito é o reino do erga omnes, ou, em linguagem popular, ridas.
do salve-se quem puder. A burguesia, partindo de suas necessidades materiais con-
Do ponto de vista econômico, o sujeito de Direito encon- cretas, iniciou nas cidades a implantação de Tesouros Munici-
tra-se .situado no mercado como um agente econômico, isto é, pais, não mais geridos no benefício de um grupo ou pessoa,
como comprador e vendedor de mercadorias. E a repetição mas com a finalidade de assegurar o gerenciamento de ativi-
destes atos de compra e venda que constitui a circulação -capi- dades essenciais para a classe dos capitalistas, O Poder Pú-
talista de mercadorias. Pàsukanis parte deste ato simples de blico Municipal, com suas características de impessoalidade,
compra e venda e da circulação para ao longo dos capítulos de 6 o ponto culminante de um processo histórico que, mais
A Teoria Geral do Direito e o Marxismo demonstrar quão adiante, irá desembocar na edificação dos Estados nacionais.
importante é o Direito para assegurar a reprodução perpétua O Estado gendarme, irá marcar a sua intervenção no econômi-
destes mecanismos fundamentais do Capitalismo. O Direito co assegurando a "liberdade" de contratar e compelindo ao
é o Estado são, aos olhos de Pasukanis, constituídos com o trabalho as massas oriundas do campo, conforme nos dá um
intuito de dar. uma normatização á estas relações econôm_icas ótimo exemplo a legislação contra a mendicância que se espa-
e de arbitrar os conflitos entre os diversos sujeitos econômi- lhou por toda a Europa. Hugo van Groot (Grotius), ao longo
cos que, no instante em que passam a ser· motivo das preocupa- de seus diversos escritos, demonstrou cabalmente a necessidade
ções do Direito, transformam-se em sujeito .de Direito. da "liberdade" para a expansão capitalista urbi et orbi.
A ordem jurídica burguesa, ao resguardar os interesses
O Estado burguês na etapa do capitalismo concorrencial,
privados de um capitalista, tem por objetivo resguardar os dos
intervém no mercado como garante da propriedade privada e
Capitalistas. Pasukanis demonstra que é a partir desta neces-
gerente dos interesses comuns da burguesia. O interesse pú-
sidade concreta que se constrói aquilo que veio a ser chamado
blico é, em realidade, não criar obstáculos ·à expansão dos in-
pelos juristas de Poder Público, ou seja, um poder impessoal
teresses privados.
e independente de indivíduos particulares com a especifica
missão de resguardar a ortlem pública. O Poder Público existe A sociedade burguesa, como se sabe, não é formada só
para .garantir os interesses da classe dos_.capitalistas e não os pela classe .dos burgueses; ao contrário, é uma sociedade divi-
seus interesses privados. A noção de Poder Público, para Pa· dida e fragmentada em diferentes classes sociais, que ocupam
sukanis, era totalmente impensável nos quadros da ordem feu- funções diferenciadas no âmbito de produção. O Direito bur-
dal pois, naquela, o .senhor feudal era .a própria ordem era a
A
guês tem que formar mecanismos que possibilitem às diversas
encarnação pessoal de úm dado conjunto de instituições é prá- classes sociais negociarem no mercado. O · sistema político e
ticas. Destarte, era praticamente impossível uma diferenciação econômico feudal não conheceu o indivíduo, mas apenas e tão-
entre os interesses privados do senhor e o interesse público. somente ordens e Estados sociais; era um sistema fundado na
O exerctcio de tarefas que, hoje, se apresentam como tipica- desigualdade e em privilégios.
mente estatais, tais quais a administração e à aplicação da Jus- セ@ A rapidez necessária para a circulação da mercadoria só
tiça, era desempenhado pelos senhores feudais muito mais com pode ser conseguida com a desintegração do sistema de Or-
a finalidade de alcançar rendimentos do que de "prestar um dens e Estados e a construção de um ordenamento que não
serviço". O tesouro dos nobres er.a indiferenciado do tesouro sc fixasse nestes anacronismos feudais. O burguês é, em essên-
do Feudo ou da Marca. As penalidades aplicadas pelas Cortes cia, um sujeito de Direito,· Como já disse Marx, as idéias de
Feudais podiam, em certa medida, ser substitúídas por valores uma sociedade são as idéias de sua classe dominante, daí que
a serem pagos aos nobres. Pasukanis nos fornece · inúmeros a representação social dos indivíduos também deve set a re-
I

セGM ··---··
APRESENTAÇÃO XVII
XVI E. B. P ASUKANIS

presentação das classes dirigentes. Destarte, o proletário tam- mera constatação da natureza ideológica do Direito é insufi-
bém é juridicamente construído como sujeito .e, em um passe ciente para desvendar os seus mecanismos mais íntimos . As•
de niágica, burgueses e proletários transformam-se, ambos, em sim, para o jurista soviético, é fundamental que se estude a
suieitos de Direito. A desigualdade concreta que se verifica forma jurídica e não apenas o seu conteúdo .. Em nosso enten-
no mundo real para o Direito é inexistente . Assim, se reto- dimento, esta· é a principal ゥョッカセ ̄@ trazida pelo importante
mássemos a linguagem psicanalítica, não seria exagero fala1'- autor bolchevique. .
mos de esquizofrenia do Direito, uma vez. que o seu mundo Pasukanis parte do pressuposto de que o éonceito jurídico
não é o real, mas especificamente jurídico - burgueses e pro- é uma forma ideológica mas que, como a mercadoria que é
letários, tão diferentes, encontram-se no mercado em igualda- também uma forma ideológica, um "fetiche", foi estudada cien-
de de condições jurídicas. A· compra e venda que .ocorre entre tificamente, não há motivos para negar-se ao direito igual tra-
burgueses e proletários é sui generis, é o Contrato de Trabalho. tamento. Não é o fato de que o Direito seja ; uma ideologia
A Força de Trabalho .(mercadoria que o proletário põe que deve inibir o seu exame; ao revés, o que não é possível,
à venda no mercado), como qualquer mercadoria, precisa cir- e o que é metodologicamente incorreto, é examinar o Direito
cular, a fim de que o capital イ・。ャゥセ@ o seu Ciclo. O proletário apenas quanto ao seu conteúdo (dominação de classe) e aban-
vende a sua forfa de trabalho em . troca do salário, mediante donar a sua manifestação formal. Para o Direito a forma é
um "acordo de vontades". O capitalista somente tem por inte- essencial. Ao correr da leitura de A Teoria Geral do Direito
イセウ・@ assegurar .a reproduÇão desta mesma força de trabalho, e o Marxismo constata-se que o seu autor estava perfeitamente
I
sem ter qualquer compromisso com o pri'Jletário que vá além atualizado com as mais modernas teorias burguesas de sua
de garantir a relativa incolumidade de seu parceiro contra- época.
tual. A liberdade dos estandartes burgueses resume-se,. para o E usual atribuir-se a Pasukanis uma teoria jurídica .que
proletário, em poder vender a sua força de trabalho. A igual- propugna pelo imediato desaparecimento da forma jurídica
、。セ@ · burguesa, para o proletário, é a igtialdade, como parte, tout court. Nada mais falso. O Vice-Comissário do Povo para
no contrato de trabalho . · a Justiça do primeiro Governo Soviético, coerente com o seu
Os juristas burgueses, tomo anota Pa,sukanis, construíram entendimento de que a forma jurídica é da essência do capi-
a teoria jurídica da pessoa, tomàndo como ponto de partida talismo, esposava a tese de que só a partir do desaparecimento
. uma infinidade de c,onsiderações de natureza mor(ll e teoló- completo do capitalismo é que poderia ocorrer a desintegração
gica acerca da igualdàde "intrtnseca" entre o.s homens." Inda- do Direito. Assim, no período de transição (ditadura do pro-
ga, com clareza, o autor de A Teoria Geral do Direito e o Mar- letariado) seria extremamente precipitado e errôneo postular
. xismo onde fica a igualdade e a dignidade do capitalista levado um pleno fim do direito. O que Pasukanis não admite - e a
à rutna p1la concorrlncla de outro capitalista? ou mesmo a' .do nosso ;uízo o faz com razão - é que os institutos jurídicos se
operdrlo 、Qューイセァ。ッ@ que 6 obrigado a deixar sua' família transformem em institutos de Direito socialista. A manuten-
em dificuldades? Estas questões, observa Eugeny Bronislano• ção das relações de troca -: mesmo que entre entidades esta-
vlch; nao t8m respostas. a ser dadas pelos juristas burgueses. belecidas pelo poder soviético - .demonstra a permanência das
Do que vem de ser exposto, ressai que cJ Direito - e seus relações capitalistas na ditadura do proletariado. A NEP esta-
conceitos basilares - é uma racionalização ideológica, que tem belecida por Lenin confirma o acerto das teorias de E .. B.
por finalidade alcançar objetivos concretos perseguidos pela Pasukanis. Karl Renner, teórico fiiiado à Segunda Internacio-
burguesia. Em verdade, como fica claro na obra que se está nal, defendia a tese da permanência dos institutos jurídicos,
apresentando, o direito· dá tintas civilizadas à opressão de clas- com a modificação de seu conteúdo. As teses de Renner, com
se. PasUkanis, admitindo esta premissa inicial, entende que a algumas modificações, foram utilizadas por Stálin e seu Pro-
......
XVIII E. B. PASUKANIS
APRESENTAÇÃO XIX

curador Geral, Vishinsky, contra as concepções de Eugeny


A vingança de sangue é o marco zero do qual derivam
Bronislanovich. Este, juntamente com Marx, entendia que o
todos os desdobramentos possíveis e imagnários do tema, che-
simples jato do operariado apoderar-se do aparelho de Estado
gando-se às modernas teorias do Direito Penal burguês. .De
burguês não implicava em uma modificação metafísica de sua
todo o estudo desenvolvido sobre . a violação do Direito -
natut'eza.
incidência privilegiada da norma penal - verifica-se, com cla-
Stálin e Vishinsky, sustentando uma concepção volunta- reza indiscutãvel, que a repressão a condutas moralmente re-
rista do Direito, entendiam que o Direito socialista era a ex-
prováveis não· é, nem nunca foi, o centro de atuação da norma
pressão da vontade de classe do proletariado, o que - muta- penal. As condutas moralmente reprováveis passam a ser pe-
tis, mutandi - não está muito longe da doutrina idealista de nalmente reconhecidas quando implicam em um certo nível
Rousseau, que via na lei a expressão da vontade geral. Stálin de ferimento à o.rdem econômica.
e Vishinsky fizeram tábula rasa do marxismo e ipso facto per-
Como nos contratos, de maneira geral,· a cada prestação
deram de vista a realidade econômica. Não foi sem coerência corresponde uma cóntraprestação, in casu, no âmbito do Di.-
com este modelo de interpretação do Direito e do. mundo que reito Penal burguês, a cada violação da norma corresponde um
Stálin chegou a declarar que a União Soviética jd havia alcan- quantum de liberdade a ser perdido pelo criminoso, como 」ッョセ@
çado o comunismo! Hoje se sabe perfeitamente o custo social, trapresiação do seu ato. Esta nátureza contratual é igualmente
político e moral da prevalência da corrente stallnista no inte- encontradiça no processo penal, na medida em que é dada ao
rior do movimento socialista internacional. réu a possibilidade de defesa (obrigatoriedade mesmo) e a in-
4. O Contrato e o Direito Penal- Os temas fundamentais da dicação de advogado que tem por junção processual a de nego-
Filosofia do Direito são tratados com grande profundidade ciar o valor a ser pago pelo seu cliente, ou mesmo a .de con-
e firmeza em A Teoria Geral do Direito .e o Marxismo, e a vencer ao Tribunal de que o réu/ cliente não praticou qualquer
cada um deles é segura a sensação de que . o autor domina-os ilícito contratual. "Aliás, a Justiça burguesa zela cuidadosa-
com absoluta tranqülidade. Hauriou, Kelsen, Duguit, Kant e mente para que o contrato com o delinqüente seja concluído
Stammler não oferecem qualquer dljic.uldade para Pasukanis dentro de todas as regras da arte, de forma que cada um possa
que ·contesta-os com veemência e quando concorda com os convencer-se de que o pagamento é igualmente de_termintido
mesmos é para demonstrar as imensas contradiç"es internas da (publicidade do processo judicial) e de que o delinqüente pode
teoria jurídica burguesa. negociar livremente sua liberdade (o processo contraditório) e
que pode utilizar-se de um profissional tecnicamente preparado
Dentre todos os temas abordados pelo livro ora apresen-
(admissão de advogados de defesa), bem como que cada um
tando, parece-nos que um dos mais relevantes 6 o Direito Pe-
possa' controlar a aplicação :da lei. Em uma palavra, as rela-
nal, o seu papel especifico na ordem jurtdica burguesa como
ções entre o Estado e o delinqüente situam-se nos quadros de
garante da propriedade privada. Mas o que se destaca mais
um negócio comercial lealmente estabelecido. E nisto que con-
em sua análise, pela criatividade e ineditismo, 6 o exame do
sistem as garantias do processo penal." ·
processo penal como uma barganha, um contrato entre acusa-
ção e acusado, entre delinqüente e ordem e a performance A pena que, ap6s longa evolução e transformação, é um
do Estado-Juiz como interveniente 11este contrato atípico e que, instituto do Direito Público e não mais se confunde com vin-
no entanto, está. plenamente inserido na lógica do Modo de gança ârbitrária e desmesurada é, no capitalismo, uma grada-
Produção Capitalista. O Direito Penal merece atenção espe- ção escalonada que, com base no princípio da troca equiva-
cial de Pasukanis e, dentro dele, destaca-se a reflexão sobre lente, deve limitar a perda da liberdade do delinqüente. Para
a pena como reparação equivalente. · cada delito· existe um valor correspondente de liberdade a ser
perdida, valor este previamenttl determinado e, por presunção,
XX E. B. PASUKANIS APRESENTAÇÃO XXI

de conhécimento público. O contrato entre o dlllltfiJinll o o ciso: a volição. Justifica-se, conseqüentemente, a exclusão da-
Estado tem suas cláusulas adrede conhecida• (prlnofplo da re- queles que não sejam senhores de sua vontade do campo de
serva legal) e inafastáveis. Na esteira do qUI /OI tlál(fntado incidência da norma penal, exclusão esta que, por igual, é
por Pasukanis, é possível avançar o racloctnto 11ft dlrlçilo ao feita de tais indivíduos do círculo daqueles que podem con-
estudo de tema de fundamental importancltl plrt o mundo tratar validamente.
jurídico, que é a Ação Penal, que tem n01 dl'llfHOI 1l111mas A confissão do réu, nos sistemas nos quais o caráter ne-
jurídicos trátamento diferenciado. para o DINIIO ,..,,...,.,tca- gociai do Direito Penal é mais evidente, assume assim um
no. não há a indisponibilidade vigente rzô ord,.,.,.IO •Nillllro, aspecto muito mais relevante para o desfecho do processo.
sendo que ao Ministério Público é dcido um ''"""' Olimpo de Confesso o réu, dispensa-se toda a "confabulação" que signi-
opçÕes capazes de, por si só, confirmar a· ,_, R Mtureza fica a marcha do processo e passa-se diretamente a negociar a
contratual que Pasukanis defende com tanto' IIIUo 1 brilhan- contrapartida, ou seja, a pena a ser aplicada ao delinqüente.
tismo. já no caso brasileiro, a ação penal .llfd ,,.., a uma No Direito Processual Penal de origem romano-germânica, veri-
maior rigidez e, em conseqüência, é regida por .IM lfttcatll1mo fica-se que o procedimento, pelo seu caráter de indisponibili-
que se materializa na indisponibilidade 1 . . . .Idade. O dade, prossegue não obstante a confissão e, de fato, é como
que merece ser indagado é qual a poutv1l .., . . 111l1t1nte se os "seus mecanismos extremamentes complexos e eruditos
entre os princípios que regem a· Ação P1nal 1t0 fff04tlo Jurldlco estivessem postos com o intuito de dificultar ao máximo a apli-
norte-americano e a sua relação • com um *do ,.á
acumulação de capital, e daí verificar-SI Gl
tentes nos ordenamentos de raízes 。ョFャセ@
,.,.,,.,,.,d,..ao de
1xls·
cação da pena. Sem exagero, poder·se-ia afirmar que ao Có-
digo Penal 」ッョエイ。ーセ・Mウ@ o Código de Processo Penal, como em

dição romano-germânicas. Qual a ,.,z,.. 1 01 d1 tra-


lfflll dllpt:Jnlblli-
dade e indisponibilidade da persecuçao . , . , . , f 1 tllmocra-
um antagonismo dialético.
5. Breve Biografia de Pasukanis - já vai longe esta apresen-
tização de uma determinada sociedad1 "" ,.,.,,, 11111 ca· tação e, com efeito, achamos que a sua finalidade é única e
minhos ainda precisam ser trilhados p1l1 , . , , /tllltllctl mar· exclusivamente de ser o que, em geral, se espera que ela seja:
xista. uma breve notícia sobre o trabalho e a indicação de alguns
A extensa área do Direito Penal tam.,. セ@ . , . d1 atua- aspectos que parecem relevantes aos olhos do prefaciador.
ção das categorias jurídicas fundamtnMII, O lfl/1110 d1 Di- Julgamos que neste encerramento é necessário que sejam .ditas
reito, a igualdade, a pessoa e a vontadl diiiiiMt ltD Cddlgo algumas palavras sobre a biografia de E. B.. Pasukanis. Eu-
Penal com a mesma desenvoltura qui o ,_,. M Dlrtllo Civil. geny Bronislanovich Pasukanis nasceu em 1O de fevereiro de
Tal qual na legislação civil, o sujeito dl DlrfiiO "14 ltel c1ntro 1891, em uma família de camponeses lituanos, na cidade de
do Direito Penal, isto é, tanto aqui C01fl0 14, I 1141 pr111nça Starica. Foi membro do Partido Operário Social-Democrata
marca indelevelmenie tudo aquilo qui d,. ,.,,,, i aplica- Russp (bolchevique) desde 1912. Vice-Comissário do Povo pa-
ção da lei. A responsabiljdade no Dl,liO I'IMI hur11uls セ@ ra a Justiça na gestão de Stuka como Comissário.· A Teoria
pessoal, não passando, em. tese, da p111011 do ヲャLNアuセエイ@ - Geral do Direito e o Marxismo, sua principal obra, foi publi-
cada em 1924. Após a morte de Lenin, no mesmo ano, e a
princípip este que foi alçado ao nl111l dl '""''"' &'tlfllllltuc:io-
nal - , os conceitos de dolo e culptl llo, tlllltrll, セイャカエQ、ッウL@ ascensilo de Stálin ao poder absoluto na União Soviética, ini-
dos conceitos aplicáveis ao Dlr1ltt:J tm
vinculam-se à vontade juridzcam1n11 セQ@
I'"'11 ' ' " "'flctdal,
, Dll (/l&lflmt que
ciou-se uma perseguição política e ideológica a vários militan-
tes bolcheviques, dentre os quais se encontrava Pasukanis.
só há delito imputá1Jel a algulm ヲゥmエセo@ "' .,., h1t11 ulflutJm Além das atividades acima relacionadas, Pasukanis foi
possa ser encontrado um compOII111N "'INI-IH IIIIIUntl pre- diretor do Instituto Jurídico je Moscou e Vice-Presidente da
XXII B, 1. JAIUIANII

Academia ComunlsltJ I
ração de um novo cセLN@
r.,.... ."'"'"' . PCIIukCinls a elabo-
l'fMI IMrt 1 Untao das Repúblicas
Socialistas Sovl.t/QGI, talf /ti .,,,,.,, tJOn1ld1rado pela seção
jurídica da Acadtmt. c.,..""" I

A partir d1 lllfl IMfllf 1111/trldo por uma matéria do


PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO RUSSA
Pravda, em Zil11 ' " ' " ' " ' " " " 111 criticas a E. B. Pasukanis
até que ocorrtll 1 ..., """lfiGrtcimento". Pasukanis foi ata-
cado doutriMriMuNII 1 vitima d1 calúnias insidiosas que acusa-
カ。セ@ o 111lhiJ ""'UIIOrt4rlo d1 "inimigo do povo" e outros
eplt1t01 tio 10 10110 do 1tallnlsmo e de Vishinsky (o célebre
acusador dOI ,fOHIIOI d1 Moscou). Aos 8 de agosto de 1956,
foi dlcrtlldl 1 イh「ャエ。セッ@ de Pasukanis, tendo sido reconhe-
cldtll HlfiO /111111 "' acusações dirigidas contra o jurista bol- Quando da publicação do meu livro, não pensava ser
chtlllflUI. • d1 11 1sperar que em plena Perestroika as idéias necessária uma segunda edição, sobretudo decorrido tão pouco
d1 PtUukanl• po11am penetrar livremente nos círculos marxis- · tempo após a primeira. Aliás, me convenci hoje de que isto
til poli, 11m ddvida, elas têm muito que ensinar àqueles. que aconteceu em razão de este trabalho ter sido usado como ma-
11 d1dlcam ao estudo do Direito. nual - o que nunca imaginei! - quando, na melhor das hi-
póteses, deveria apenas servir de estímulo. Isto significa dizer
Porto Alegre, maio de 1988. que é muito insuficiente a ·literatura marxista referente à teoria
PAULO BESSA geral do direito. Do mesmo modo, de que outra forma poderia
ser, se, até muito pouco, os meioli marxistas se mostravam des-
crentes com relação à própria existência de uma teoria geral
do direito?
De qualquer maneira, o presente trabalho não pretende
ser de jeito nenhum o fio de Ariadne marxista no domínio da
teoria geral do direito; ao contrário, pois em grande parte foi
escrito objetivando o esclarecimento pessoal. De onde a abs-
tração e a forma concisa e mesmo assim apenas esboço de
exposição; de onde também o seu aspecto unilateral que se
deve inevitavelmente à concentração ·da atenção sobre deter-
minados aspectos do problema que se revelam essenciais. Todas
estas particularidades demonstram que este livro não pode
deste modo .servir de manual.
Ainda que perfeitamente consciente destes defeitos, rejeitei
a idéia de suprimi-los na segunda edição, e o fiz pela seguinte
razão: a crítica marxista da teoria geral do direito ainda está
no início. Por isso, qua(quer conclusão definitiva será preci-
2 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO D1REITO E O MARXISMO 3

pitada; é preciso, pois, um profundo estudo de cada ramo da pela primeira vez por Marx em O Capital". 1 Por conseguinte,
ciência do direito. Ora, neste campo há ainda muito o que faltavam ser compilados e unificados os diversos pensamentos
fazer. Basta dizer que a critica marxista ainda não abordou, de Marx e de Engels, e tentar-se aprofundar algumas conclusões
de nenhum modo, domínios tais como, por exemplo, o do daí decorrentes. Depois de Marx, a tese fundamental, a saber,
· direito ゥョエ・セ。」ッャN@ O mesmo se observa com relação à área de que o sujeito jurídico das teorias do direito se encontra
dos processos e também, se bem que em menor grau, com a do numa relação rnuito íntima com o proprietário das mercado-
direito penal. No domínio da história do direito dispomos rias, não precisava outra vez ser demonstrada.
apenas daquilo que a teoria geral marxista do direito nos ·le-
A segunda proposição também nada continha . de novo.
gou. Salvo o direito público e o direito civil, que constituem
eウエ。セ@ porém, enuncia que aquela filosofia do direito, cujo fun-
uma exceção relativamente feliz. P_or conseguinte,· o marxismo
damento é a categoria do sujeito corn a sua capacidade de auto-
se encontra apenas em condições de apropriar-se de um novo
determinação (já que, até o presente, a ciência burguesa não
domínio. E natural que, de início, tal aconteça sob a forma
criou outros sistemas coerentes de filosofia do direito), nada
de discussões, e de lutas entre diferentes concepções.
mais é, com certeza, do que a filosofia da economia mercantil,
Meu livro, que põe em discussão algumas questões da . que estabelece as condições mais gerais, mais abstratas, sob
teoria geral do aireito, objetiva, principalmente, preparar todo quais se pode efetuar a troca de acordo com a lei do valor e
esse trabalho. Resolvi, então, conservar o essencial do seu ter lugar a exploração sob a forma de "contrato livre". Este
antigo caráter, sem tentar. reestruturá-lo em forma de manual. pensamento embasa a crítica que o comunismo fez, e ainda
Fiz 。ー↑ョセウ@ complementações necessárias, devidas, em parte, às jaz, à ideologia burguesa da liberdade,· da igualdade e da de-
observações . da crítica. · mocracia burguesa formal, dessa democracia na qual "a repú-
blica. do mercado" procura mascarar o "despotismo da ·fábri-
Acho convenie11ie revelar, desde já; neste prefácio, algu- ca". .Este pensamento dá-nos a convicção de que a defesa dos
mas. observações prévias quanto às idéias fundamentais' do meu chamados fundamentos abstratos da ordem jurídica é a forma
trabalho. O companheiro P. I. Stucka definiu, muito corre- mais geral da defesa dos interesses ,da clas.se burguesa, ・セ」N@
tamente, a minha posição com relação à teoria geral do direito, Contudo, se a análise marxista da forma da mercadoria e da
como uma "!entativa de- aproximar a forma do direito da forma forma do sujeito, que àquela se liga, encontrou uma aplicação
da mercadoria". Na. medida em que o balanço final permite muito vasta como meio de crítica da ideologia jurídica bur·
julgar, esta idéia foi reconhecida ^セ・ュ@ ァ・イセャL@esalvo algumas guesa, de· modo algum tem sido utilizada para estudo da su-
reservas, como feliz e frutuosa. 1st() se deve, certamente, ao perestrutura jurídica como fenômeno objetivo. O principal
fato de eu não ter tido neste caso necessklade· de "descobrir obstáculo a este estudo está em que os raros marxistas que se
a América". Na literatura marxista e, em primeiro 'ugar, ·no ocupam das questões jurídicas consideram sem dúvida àlguma
próprio Marx, é pÓssível encontrar elementos suficientes para o momento da regulamentação coativa social como a caracte-
uma tal aproximação. Basta citar, além das passagens men- rística central e fundamental, a ·única característica típica dos
cionadas neste livro, o capítulo intitulado "A moral e o direito.
A igualdade",· do Anti-Dühring. Nele é dado por Engels uma
,,
I fenômenos jurídicos. Pareceu-lhes que somente este ponto de
vista sustentaria uma atitude científica, ou seja, sociológica e
formulação absolutamente precisa do vínculo existente entre
o princípio da igualdade e a lei do valor; numa nota ele afirma
1. Engels, Herrn Eugen Dührings Umwiilzung der Wissenschaft
que "esta dedução das. modernas idéias de igualdade, a partir (1878), 12." ed., Berlim, QYセSLN@ Tradução brasileira: Ed. Paz e Terra, Rio,
das éondições econômicas da sociedade .burguesa, foi exposta 1979.
4 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 5

histórica em face do problema do direito, em oposição à atitu- de que a ·vitória deste princípio não é apenas e tão-somente
de dos sistemas idealistas, puramente especulativos; à atitude um processo ideológico (ou seja, um processo da ordem das
;daquela filosofia do direito que tem por fundamento a イ・ーセᆳ idéias, das representações, etc.), mas antes um real processo
sentação do conceito de sujeito com a sua capacidade de auto- de transformação jurídica das relações humanas, que acompa-
determinação. Era, pois, absolutamente natural pensar que a nha o desenvolvimento da. economia mercantil e monetária (da
crítica marxista do sujeito jurídico, imediatamente derivada da economia capitalista, falando da Europa) e que engendra pro-
análise da forma mercantil, nenhuma relação guardasse com fundas e múltiplas modificações de natureza objetiva. Este con-
a teoria geral do direito, já que efetivamente a regulamentação junto de fenômenos compreende o surgimento e a consolida-
coativa, externa das relações recíprocas entre proprietários de ção da propriedade privada, a sua extensão universal tanto
mercadorias, representa apenas uma parte ínfima da regulamen- aos sujeitos como a todos os objetos possíveis; a libertação
tação social em geral. da terra das relações de domínio e servidão; a conversão de
Em outras palavras, sob este ponto de vista, tudo o que toda a propriedade em propriedade mobiliária; o desenvolvi-
poderia concluir-se da concepção marxistas sobre os "guardiães mento e preponderância das relações obrigacionais e, finalmen•
de mercadorias", "cuja vontade habita nas próprias coisas"/ te, a constituição de um poder político autônomo como parti-
parecia válido apenas para um campo relativamente restrito, cL(lar forma de poder - ao lado do qual tem lugar o poder
o do chamado direito comercial da sociedade burguesa,· sendo, puramente econômico do dinheiro - , assim como a subseqüen-
porém, totalmente inutilizável noutros campos do direito (di- te divisão, mais ou menos profunda, entre a esfera das rela-
reito público, direito penal, etc.) e no caso de outras forma- ções públicas e a das relações privadas, entre o direito público
ções históricas, como, por exemplo, o escravismo, o feudalis- e o direito privado.
mo, etc. Falando de outra maneira, o significado da ·análise Se a análise da forma mercantil revela o sentido histórico
marxista se restringia, por um lado, a um campo especial do concreto da categoria do sujeito e desvel'da os fundamentos
direito e seus resultados, e, por outro, à função de desmasca- dos esquemas abstratos da ideologia jurídica, o processo de
rar a ideologia burguesa da liberdade e da igualdade, à fun- evolução histórica da economia mercantil-monetárie< e mercan-
ção de criticar a democracia formal, mas não à função de expli- til-capitalista acompanha a realização destes esquemas sob a
car particularidades fundamentais e primárias da superestru- forma da superestrutura jurídica concreta . Desde que as re-
tura jurídica enquanto fenômeno objetivo. Deste modo duas lações humanas têm como base as relações entre sujeitos, sur-
coisas foram negligenciadas: uma esqueceu-se que o principio gem as condições para o desenvolvimento de uma superestru-
da subjetividade jurídica .(assim entendemos 'o prlnctplo formal tura jurídica, com suas leis formais, seus tribunais, seus pro-
da liberdade e da igualdade; da autonomia da personalidade, cessos, seus advogados, etc. ·
etc.) não é somente um meio dissimulatório e um produto da
hipocrisia burguesa na medida em que セ@ oposto à luta prole- Chega-se, então, à conclusão de que os traços essenczazs
tária pela abolição das classes, contudo. não deixando de ser do direito privado burguês são, ao mesmo tempo, os atributos"
também um princípio realmente atuante, que se acha. incorpo- característicos da superestrutura jurídica. Nos estágios primi-
rado à sociedade burguesa desde que essa nasceu da sociedade tivos de desenvolvimento, a troca de equivalentes, sob a forma
feudal patriarcal e a destruiu. A outra foi que esqueceu-se \. de compen.sação e reparação dos prejuízos, produziu esta forma
jurídica, muito primitiva, que se vê nas leis bárbaras: do mes-
mo modo, as sobrevivências da troca de equivalentes na esfera
2. Karl Marx, O Capital, Liv. I, Cap. II, Ed. Soclales, Paris, 1969,
p. 95. Tradução brasileira: Regis Barbosa e Flávio Kotkhe, Nova Cullu· da distribuição, que subsistirão igualmente numa organização
ral, São Paulo, 3.• ed., 1988, p. 79. socialista da produção (até\à passagem para o comunismo evo-
6 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 7

luído), obrigarão a sociedade socialista a se confinar, por al- da propriedade, áe bons tribunais, de uma boa política, etc.
gum tempo, "no horizonte limitado do direito burguês", tal Porém, se nos aprofundarmos, torna-se óbvio que não apenas
como o previra Marx. Entre estes dois pontos extremos ope- tal ou qual estrutura técnica do aparelho do Estado nasce no
ra-se o desenvolvimento da forma jurídica que atinge o seu terreno do mercado, como também que não deixa de existir
mais alto grau na sociedade burguesa capitalista. Podemos um vínculo interno indissociável entre as categorias da econo-
também caracterizar este processo como uma desagregação das mia mercantil, e monetária e a própria forma· jurídica. Numa
relações org&nicas patriarcais que são substituídas por relações sociedade onde existe dinheiro, e onde, por conseguinte, o tra-
jurídicas, isto. 4, por relações entte sujeitos que, formalmente, b·alho privado individual só se torna trabalho social pela me-
possuem os mesmos direitos. A dissolução da família patriarcal diação de um equ_ivalente geral, encontram-se já delineadas as
onde o pater familias tem a posse da força de trabalho da mu- condições de uma forma jurídica com as suas oposições entre
lher e dos filhos, e a subseqüente transformação desta numa fa- o subjetivo e o objetivo.
mília contratual onde os cônjuges celebrqm entre si um contrato E, pois, somente numa tal sociedade que se abre a pos-
que objetiva os bens e onde os filhos (como, por exemplo, na sibilidade de o poder político se opor ao poder puramente
propriedade norte-americana) recebem do pai um salário, consti· econômico, o qual se revela, o. mais distintamente, sob a for-
tui um dos ttpicos exemplos desta evolução. A qual, além disso, ma do poder do dinheiro. Ao mesmo tempo a forma da lei
se vê acelerada pelo desenvolvimento das relações mercantis torna-se igualmente possível. Chega-se, então, à conclusão de
e monetárias. A esfera da circulação, a esfera que se compre- que para analisar as definições fundamentais do direito não
ende pela fórmula Mercadoria-Din/:zeiro-Mercadoria, desempe- seja preciso partir do conceito de lei e utilizá-lo como fio con-
nha um papel predominante. O direito comercial exerce sobre dutor, já. que o próprio conceito de lei, enquanto decreto do
o direito civil a mesma função que este exerce sobre todos os poder político, pertence a um estágio de desenvolvimento onde
oUtros ramos do direito, isto é, indica-lhes o caminho do de- a divisão ,da sociedade em esferas civil e política já está con-
senvolvimento. O direito comercial é, portanto, por um lado, cluída e consolidada e onde, conseguintemente, já estão reali-
um. domtnio especial que só tem significação para as pessoas zaáos os momentos fundamentais da forma jurídica. "A cons-
. que fizeram da transformação da mercadoria em forma mone- tituição do Estado político, diz Marx, mediante a decomposi-
tária, ou inversamente, a própria. profissão; e, por outro, ele é ção da sociedade. burguesa em indivíduos independentes, cujas
() prdprio direito civil nd seu dinamism01. no seu movimento relações são regidas pelo direito, assim como as relações dos
em direção aos mais puros esquemas, nos quais não se en- homens das corporações e dos mestres eram regidas por privi-
contra qualquer traço de organicismo e onde o sujeito ェオイ■セ@ légios, conclui-se através de um único e mesmo ato'?
,,
dico aparece na. sua forma acabada, como complemento indis-' O que foi exposto até o momento não quer dizer, de modo
pensdvel e inevitável da mercadoria. algum, que eu considere a :/.IJi!:J:J.a. iw:iricfl como um "simples
Por este motivo, portanto, o princtplo da subjetividade reflexo de uma pura ideologia": 4 A este respeito penso haver
jurídica e os esquemas nele contidos, que para a jurisprudência usado expressões suficientemente claras: "o direito, considerado
b'urguesa surgem cpmo esquemas a priori da vontade humana,
derivam necessatiamente e. absolutamente das condições da
3. karl Marx, A questão Judaica (1844), Col. Le Monde, Paris,
economia mercantil e monetária. O modo estrltam1nt1 emptrico U.O.E., 1968, p. 43. Ed. brasileira: Ed. Moraes, São Paulo, p. 50.
e técnico de conceber o vínculo existente 1ntt1 IStls dois mo- ·4. Cf. Stucka, Revoljucionnaja rol'prava i gosudarstva (0 papel re·
mentos encontra a sua expressão nas reflBXIJIS r1lativas ao fato volucionário do Direito
.
Estado), prefácio' à primeira edição, Mos-
e do .....
de a evolução do comércio exigir algumas garantias, como seja, cou, 1921, p. v.
E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 9
8

como forma, não existe somente na mente das pe.ssoas ou nas privados. Não se pode atingir este objetivo buscando unica-
teorias dos juristas especializados; ele tem .uma história real, mente o auxílio de formas de consciência, isto é, através de
paralela, que tem seu desenvolvimento, não como um sistema momentos puramente subjetivos: é necessário, então, recorrer
conceitual, mas como um particular sistema de, relações".5 a critérios precisos, a leis e a rigorosas interpretações de leis,
Mais adiante falo de conceitos jurídicos que ."refletem teo- a uma casuística, a tribunais e à execução coativa das decisões
ricamente o sistema jurídico enquanto totalidade orgânica" 6 Judiciais. P: por este moÍivo que não podemos nos restringir,
Em outros termos, a forma jurídica, expressa por abstrações na análise da forma jurídica, à "pura ideologia", desconside-
lógicas, é um produto da 'forma jurídica real ou concreta (de rando mecanismo objetivamente existente. Todo fato jurídico
acordo com a expressão do companheiro Stucka), um produto por exemplo, a solução de um litígio por uma sentença é o que
da mediação real das relações de produção. Não só indiquei chamamos· de fato objetivo, situado tão fora da consciência
que a gênese da forma jurídica está por se· encontrar nas rela- dos protagonistas como o fenômeno econômico que, em tal
ções de troca, como também mencionei qual o 7;nomento que; caso, é mediatizado pelo direito.
na minha opinião, representa a realização completa da forma Concordo, com reservas precisas, com uma outra censura
jurídica: o tribunal e o processo . que me dirige o companheiro Stucka, a de reconhecer a exis·
E natural que no desenvolvimento de qualquer relação _ tência do direito somente na sociedade burguesa. Efetivamente
jurídica possa haver, na mente dos agentes, diferentes repre- tenho afirmado, e continuo a afirmar, que as relações dos pro-
sentações ideológicas mais ou menos pronunciadas, deles pró- ' dutores de . mercadorias entre si engendram a mais desenvol-
prios enquanto sujeitos, dos seus próprios direitos e deveres, vida, universal e acabada mediação jurídica, e que, por conse-
da "liberdade" das suas próprias ações, dos limites da lei. gz,ânte, toda a teoria geral do direito ·e toda a jurisprudência
A significação prática das relações jurídicas não se encontra, "pura" não são outra coisa senão uma descrição unilateral,
entretanto, nestes estados subjetivos . da consciênc:a. Enquanto que abstrai de todas as outras condições das relações dos ho-
o proprietário de mercadorias não tiver consciência de si como mens que aparecem no mercado como proprietários de merca-
proprietário de mercadorias, então ainda não aconteceu a rela- dorias. Mas, uma forma desenvolvida e acabada não exclui
ção econômica da troca, com o conjunto das conseqU8ncias formas embrionárias e rudimentares; pelo contrário, pressu-
ulteriores que escapam à suá consciência e à sua vontade. A põe-nas.
mediação jurídica só é concluída no momento do acordo. Po- ·As coisas apresentam-se, exemplificativamente, da seguinte
rém, um acordo comercial já nao se pode dizfJr um ヲ・ョセュッ@ maneira no que diz respeito à propriedade privada: só o mo-
psicológico; já não se pode dizer uma "idéia", uma "forma da mento da livre alienação revela plenamente a essência funda-
consciência", é um fato econômico objetivo, uma relaç4o eco- mental desta instituição, ainda que, indubi:tavelmente, a proprie-
.nômica indissoluvelmente ligada' à sua forma jurídica que é dade, como apropriação, tenha existido antes como forma, não
também objetiva. só desenvolvida, mas, também, muito embrionária da troca.
O objetivo prático da mediaÇão jurídica é o de dar ga- A propriedade como apropriação é a conseqüência natural de
rantias à marcha, mais ou menos livre, da produçao e da . todo modo dé produção; porém, a propriedade só reveste a sua
reprodução social que, na sociedade de produção mercantil, forma lógica mais simples e mais geral de propriedade privada
se operam formalmente através de vários contratos ェオイエ、ゥ」ッNセ@ quando se visa ao núcleo de uma determinada formação social
onde ela é determinada como a condição elementar da contín(J.a
· circulação dos valores, que se opera de acordo com a fórmula
5. Cf. id., ib,, p. 39.
Mercadoria-Dinheiro-Mercadoria.
6. Cf. id., ib ., p. 44.
10 E. B. PASUKANIS

E quanto à relação de exploração, sucede ·exatamente o Introdução


mesmo. Esta, entenda-se bem, em nenhum caso vê-se ligada
à relação de troca como sendo igualmente concebivel numa
economia natural. Porém, é apenas na sociedade burguesa 」。セ@
pitalista, em que o proletário surge como alguém que dispõe AS TAREFAS DA TEORIA GERAL DO DIREITO
da sua força de trabalho como mercadoria, que a relação eco-
nômica da ・クーャッセZ。￧ ̄@ e juridicamente mediatizada sob .a forma
de um contrato.
E justamente por isso que na sociedade burguesa a forma
jurídica, em oposição ao que ocorre nas sociedades edificadas
sobre a escravatura 'e 11 servidão, adquire uma significação uni-
versal; é por isso que a ideologia jurtdica se to{na a ideologia
A teoria geral do direito pode ser definida como o de-
por excelência e que também a defesa dos intt!resses de classe
senvolvimento dos conceitos jurídicos fundamentais, isto é, os
dos exploradores surge, com um sucesso sempre crescente,
mais abstratos. A esta categoria pertençem, por exemplo, as
como a defesa dos princípios abstratos da subjetividade . ju-
rídica. definições de "norma jurídica", de "relação jurídica", de "su-
jeito de direito'', etc. Estes conceitos são utilizáveis em qual-
Resumindo, minhas investigações não ti.'1ham de modo quer domínio do direito em decorrência de sua natureza abs-
algum a intenção de ·impedir à teoria marxisia da direito o trata; a sua significação lógica e sistemática permanece a mes-
acesso a estes pertodos históricos que não confieceram a eco- ma, independentemente do conteúdo concreto ao qual sejam
nomia capitalista mercantil desenvolvida. Pelo contrário, tenho aplicados; Ninguém contestará que, por exemplo, o conceito
me esforçado e ainda. me esforço por facilitar a compreensão de sujeito no direito civil e no direito internacional esteja
destas formas embrionárias que se encontram· ·nestes periodos subordinado ao conceito mais geral de sujeito de direito como
e por relacioná-las com as formas mais desenvolvidas de acor- tal, e que, em conseqüência, esta. categoria pode ser definida
do com uma linha de evolução geral. O futuro mostrará até e desenvolvida independentemente de tal ou qual conteúdo
que ponto minha concepção é frutuosa. n。エオイセャュ・ョL@ nesta concreto. Por- outro lado, também podemos constatar, se nos
breve tentativa, não poderia delinear os grandes .traços de evo- mantivermos nos limites ·de uma área particular do direito,
lução histórica e · dialética da forma jurídica. Para esse em- que as categorias jurídicas fundamentais acima mencionadas
preendimento servi-me, essencialmente, das ゥ、←セ。ウ@ que encon· não dependem do cÕnteúdo concreto das normas jur.idicas, isto
trei em Marx. Minha tarefa nã.o era a de resolver· em defi.nitivo é, que conservam sua significação mesmo que o seu conteúdo
todos os prQ.blerrz,as da teoria do .direito ou mesmo apenas al- material concreto se modifique· de umà maneira ou de .outra.
guns. Meu desejo era mostrar unicamente sob que angulo é .E evidente que estes conceitos jurídicos, os mais abstra-
possível abordá· los e como devem ser equacionados. Fico con- tos e os mais simples, são o resultado de uma elaboração ló-
tente em saber. que alguns ·marxistas tenham considerado que gica das normas de direito positivo e representam, em com-
a minha posição sobre as questões do .:Jireito é interessante e paração .com o caráter espontâneo das relações jurídicas e das
oferece perspectivas. E é isto o que ainda me conserva no " normas que os exprimem, o produto tardio e superior de uma
desejo de prosseguir este trabalho pela via iniciada.
criação consciente.
· Pa1ukanls Isto não impede .que os filósofos da . escola neokantiana
1926. considerem as categori"as jurídicas fundamentais como uma rea-
12 E. B. P ASUKANIS
A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 13

lidade que se situa acima da experiência e que ·torna possí-


nas lógica e gnoseologicamente; devemos, portanto, constatar
vel a própria experiência. Assim, por exemplo, em Saval'skijl
que a assim chamada filosofia crítica nos conduz, tanto neste
lê-se o seguinte: "o sujeito, o objeto, a relação e a regra das
como em muitos outros aspectos, à escolástica medieval.
relações representam o a priori da exper!ência jurídica, as con·
dições lógicas indispensáveis desta experiência, aquelas アオセ@ a. Podemos, portanto, ter por assente que o pensamento ju-
tomam possível". E mais adiante: "a relação jurídica é a con· rídico evoluído, independentemente da matéria à qual se re-
dição imprescindível e única de toda instituição jurídica e por- fira, .não pode ー。セウイ@ sem uma certa quantidade de definições
tanto, também da ciência do diteito; pois sem relação jurídica abstratas e gerais . Mesmo nosso direito soviético não pode
não existe igualmente ciência que a ela se refira, isto é, a ciên· prescindir delas, pelo menos enquanto permanecer como di-
cia do direito, assim como. sem o princípio da causalidade reito, cumprindo as suas tarefas ·práticas imediatas. Os con·
não pode existir natureza nem, conseqüentemente, ciência da ceitos jurídicos fundamentais, formais, continuam existindo em
natureza".2 Saval'skij, em suas reflexões, apenas reproduz as nossos códigos e nos seus comentários. O método de pensa-
conclusões de um dos neokantianos mais marcantes, .Cohen.3 mento jurídico ·com os seus procedimentos específicos exigem
O mesmo ponto de vista é encontrado em Stammler. seja na sua igualmente sua existência.
primeira obra fundamental; Wirtsçhaft und Reçht\ como em Mas o acima referido demonstra que a teoria científica
seu último trabalho, Lehrbuçh der Reçhtsphilosophie, onde se do direito deve se ocupar da análise de tais abstrações? Uma
lê: "é necessário distinguir, entre os conceitos jurídicosJ de um concepção bastante difundida atribui-lhes apenas valor pura-
lado, os conceitos jurí,dicos puros e, de outro, os conceitos mente técnico condicional. A dogmática jurídica, dizem-nos,
jurídicos condicionados. Os primeiros representam as formas de utiliza estas denominações por meras razões de· comodidade.
pensamento gerais dos conceitos fundamentais do direito; a Assim sendo, estas denominações, fora da dogmática jurídica,
sua intervenção nada pressupõe além da própria idéia de não teriam qualquer significação para a teoria e para o co-
direito. Assim sendo, encontram uma aplicação plena em todas nhecimento. O fato, portanto, de que a dogmática jurídica é
uma disciplina prática, e em certo sentido técnica, não nos
as questões jurídicas que possam surgir, pois não são mais do
permite concluir que os conceitos dogmáticos não possam evo-
que manifestações diversas do conceito formal do direito. Em
luir para o corpo de uma dh;ciplina teórica correspondente.
conseqüência devem ser extraídos das determinações constan- Podemos concordar com Karner (isto é, Renner), quando afir·
tes deste último". 5
ma que a ciência do direito começa onde termina a dogmática
Os neokantianos podem sempre nos assegurar quey se- jurídica.6 Mas daí não se conclui que a ciência do direito deva
gundo sua concepção, ''a idéia de direito" não precede a simplesmente lançar fora as abstrações fundamentais que ex-
experiência :geneticamente, isto é, cronologieamente, mas. ape- primem a essência teórica da .forma jurídica. A própria eco-
nomia política começou efetivamente o seu desenvolvimento
pelas questões práticas, extraídas sobretudo da esfera da cir-
l. Saval'skij, Osnovy filosofii prava v naucliom idealizme (Prlncf- culação do dinheiro. Ela também fixou, originalmente, a tare-
pios da filosofia do direito no idealismo cientifico), Moscou, 1908, p. 216;
2. Id., ib., p. 218.
3. Hermann Cohen, Die Ethik des reínen Willens, 2.• ed., Berlim,
" fa de mostrar "os meios de enriquecimento dos governos e

1907, p. 22.7 e segs.


4. Rudolf' Stammler, Wirtschaft und Recht, 1896. 6 . Josef Karner, Die soziale Funktion der Rechtsinstitute beson-
5. Id., Lehrbuch der Rechtsphilosophie, 3.• ed., 1928, p. 250. ders des Eigertums, cap. I, p. 72, in: 1rlarx-Stu4ien,. tomo I, 1904, tradu-
rl ção russa, 1923, p. 11 (Karner é um pseudômino de Karl Renner).

j
l_ l
A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 15
14 E. B. PASUKANIS

deves" concreto só pode ser fundamentado em relação a um


dos povos": Todavia, encontramos nestes conselhos técnicos os outro imperativo. Permanecendo nos limites da lógica não po·
fundamentos dos conceitos que, s.ob forma aprofundada e gene- demos, a partir da · necessidade, tirar conclusões acerca do
ralizada, passam a integrar os marcos teóricos da economia Dever-Ser, e inversamente.8
política.
Será a ciência do direito capaz de se desenvolver em uma
f• Em sua obra principal, Wirtschaft und Recht, Stammler
desenvolve em todas as nuances o mesmo pensamento, de que
teoria geral do direito, sem dissolver-se na psicologia ou mes- a conformidade às leis pode ser estabelecida por dois métodos
mo na sociologia? diferentes: o método causal e o método teleológico. A ciência
Haverá a possibilidade de uma análise das definições fun· · do direito adquiriu assim, ç;omo disciplina dogmática, uma base
damentais da forma jurídica, tal qual existe na economia po- metodológica sólida. De fato, as tentativas de aprofundamento
lítica uma análise das definições fundamentais e gerais da desta metodologia conduziram, por exemplo, Kelsen à convic-
forma mercadoria e da forma valor? Estas são as questões ção de que a ciência do direito é uma ciência essencialmente
cuja solução determinará se a teoria geral do direito pode ser normativa, pois pode, mel:tior do que qualquer outra ciência
considerada como uma disciplina teórica autônoma. da mesma classe, manter-se nos limites do sentido formal e
lógico da categoria Dever-Ser. Na realidade, tanto na Moral
Para a filosofia do Direito burguês, cujos representantes,
como na Estética, a normatividade está impregnada de ele-
em sua maioria se situam no terreno neokantiano, o problema
mentos psicológicos e pode ser qualificada como vontade qua-
aqui posto é resolvido pela simples oposição de duas catego-
lificada, isto é, como Fato, como Ente: o ponto de vista da
rias: a categoria do Ser e a categoria do Dever-Ser. Em .con-
causalidade .se impõe permanentemente e prejudica a· própria
seqüência admite-se a existência de duas modalidades de pon-
normatividade. Em oposição, no direito, cuja lei estatal é para
tos de vista científicos: o explicativo e o normativo. セᄋッ@ pri-
Kelsen a expressão mais elevada, o princípio do Imperativo
meiro enfoca os objetos sob o ângulo de seu comportamento
aparece sob uma forma inégavelmente heterônoma, rompendo
empírico, que ele busca tornar mais inteligível, relacionando-o
definitivamente com a facticidade do real. :É: suficiente para
com conexões internas dos objetos e .às suas características ex- Kelsen transportar a função legislativa para o terreno meta-
ternas comuns . O segundo considera os objetos sob o ângulo jurídico - e é o que faz efetivamente - para que a ciência
das normas precisas que se exprimem através deles, normas do direito reste a pura esfera da normatividade: a tarefa desta
que ele introduz em cada objeto singular como uma exigência. ciência do direito limita-se, portanto, exclusivamente a ordenar
No primeiro caso todos os fatos são valorizados da mesma lógica e sistematicamente os diferentes conteúdos normativos.
forma; no segundo são submetidos intencionalmente a uma l'
Não se pode negar a Kelsen um grande mérito. Pela sua lógica
apreciação valorativa, quer se faça abstração daquilo que con· intrépida; ele levou quase ao absurdo a metodologia do neo-
tradiz as normas estabelecidas, quer se oponha expressamente kantismo com as suas duas ordens de categorias científicas .
o comportamento normal, que -confirma as normas, ao compor- Efetivamente, a categoria científica "pura" do Dever-Ser, liber-
tamento contrário às normas" .7 ta de todos os aluviões do Ente, da facticidade, de todas as
Para Simmel, a categoria do Dever-Ser determina um mo- "escórias" psicológicas e sociológicas, não possui, e não pode
do particular de pensamento que está separado por um abismo
intransponível desta ordem lógica através da qual nós pensa- " possuir de forma alguma determinações de natureza racional.

mos o Ser, que se efetiva com uma realidade natural. O "Tu

-
8. Georg Simmel, Einleitung in die Moralwissenschaft, Stuttgart,
1910.
7. Wilhelm Wundt, Ethik, 1903, p. 1.

L
16 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 17

Para o imperativo puramente jurídico, isto é, incondicional- ca fora dos seus círculos de reflexões; em outros termos, elas
mente· heterônomo, a finalidade é, por si própria, secundária não percebem, pura e simplesmente, o problema que está pos-
e indiferente. "Tu deves a fim de que ... ", esta .formulação, to. Elas trabalham desde o começo com conceitos extrajuridi-
para Kelsen, não é mais o "Tu deves" jurídico. ' cps e ainda que eventualmente levem em consideração defini-
No plano do Dever-Ser jurídico nada há .mais que a 'Pas- ções jurídicas, somente o fazem para apresentá-las como "fic-
sagem de uma norma à outra segundo os graus de uma escala ção", "fantasmas ideológicos", "projeções", etc. .Esta atitude
hierárquica, no cume da qual encontra-se a autoridade sup_re- naturalista ou niilista inspira, à primeira abordagem, uma certa
ma. que dita as normas e que engloba ó todo - um conceito- simpatia, particularmente se a opusermos às teorias jurídicas
limite do qual a ciência do direito parte cbmo de um dado. idealistas totalmente impregnadas de teleologia e de ''mora-
Um crítico de Kelsen apresentou esta atitude relativa às tare- Esmo". Após frases pomposas sobre "idéia eterna do direito",
fas da ciência do direito, sob a forma de um diálogo carica- ou sobre a "significação absoluta da personalidade", o leitor
tura! entre um jurista e um legislador: "Nós não sabemos - e que procura uma explicação materialista dos fenômenos sociais
isto nem nos preocupa - que tipo. de leis os senhores devem se volta, com satisfação particular, em direção às teorias que
·decretar. Isto pftrtence à arte da .legislação, que nos é estra- abordam o direito como resultado de uma luta de interesses,
nha. Aprovem leis, como bem vos aprouver; tão logo os se- como manifestação da coerção estatal ou mesmo como um pro-
nhores o tenham feito, nós vos explicaremos, em latim, de que cesso desenvolvendo-se na psique humana real. A muitos mar-
tipo de lei se trata".9 · xistas têm. sido suficiente introduzir, nas teorias acima, o mo-
mento de luta de classes para se obter uma teoria do direito
Uma tal teoria geral do direito, que não explica nada,
que a pribri dá· as costas às realidades. de fato, quer dizer, à verdadeiramente materialista e marxista. Daí não resulta mais
vida social, e que se preocupa com as normas, sem se preo- do que uma histót:a das formas econômicas com uma tintura
cupar com as suas origens (o que é uma questão metajurídica!), jurídica, mais ou menos forte, ou uma história das instituições,
ou pe suas relações com quaisquer interesses materiàis, não mas em nenhuma hipótese uma teoria geral do direito. 10
pode pretender o título de teoria, senão o de teoria do jogo
de xadrez. Utna tal teoria nada tem a ver com a ciência. Esta
"teoria" não pretende analisar o direito, a forma Jurídica en- 10. Mesmo o livro de P. I. Stucka, Revoljucionnaja rol'ptava i
quanto forma histórica, pois não vísa a estudar a realidade. gosudarstva, já citado, que trata de toda uma série de questões da teo-
:e por isso, para empregar uma expressão カオャァセイL@ que não há ria geral do direito, não as reúne em uma unid.ade sistemática. O desen-
volvimento histórico da regulação jurídica, do ponto de vista de seu
muito que se possa tirar dela. · "' cónteúdo de classe, é colocado em primeiro plano em sua exposição em
:ediferente nas teorias jurídicas denominadas sociológicas relação ao desenvolvimento lógico e dialético da própria forma (é ne-
e psicológicas. Pode-se exigir-lhes muito mais, pois 'buscam, cessário assimilar, entretanto, que percebe-se naturalmente que o autor
dedicou em sua 3.• ed. comparando-a com a 1.• muito mais atenção às
com o auxílio de seu método, uma explicação do direito .en- questões da forma jurídica). Stucka, contudo, procedeu apenas em fun-
quanto fenômeno real, em sua origem e desenvolvimento . Mas ção de seu ponto de partida, isto é, em função de uma concepção de
também nos reservam outras decepções. As teorias jurídicas direito que faz da teoria geral do direito, essencialmente, um sistema de
sociológicas e piscológ:cas deixam usualmente a forma jurídi- relações de produção e troca. Se consideramos o direito inicialmente
como 11'--forma de qualquer relação social, pode-se dizer que, a priori,
as suas características passarão despercebidas. Ao contrário, o direito,
enquanto forma de relações de produção e troca, desvenda facilmente,
9. Julius Ofner; Das soziafe·.Rechtsdenken,·Stuttgart, 1923, p. '54. por força de U!Jla ànálise mais ou menos adequada, as suas caracterís·
ticas específicas.
18 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 19

Se os juristas burgueses, que têm tentado defender posi- social. Mas o próprio ordenamento jurídico permanece sem
ções próximas ao materialismo, como por exemplo Gumplo- ser analisado enquanto forma, apesar da riqueza do conteúdo
wicz, se sentiram obrigados a examinar em detalhes, digamos histórico que introduzimos neste conceito. Ao invés de dis-
de ofício, o arsenal de conceitos jurídicos fundamentais, quan- pormos de uma totalidade de determinações e de seus vínculos
do mais não fosse para explicar . que estas são construções internos, somos compelidos a utilizar, mais modestamente e
artificiais, meramente convencionais, os marxistas, que não apenas de forma aproximada, um esboço de análise do fenÔ·
possuem responsabilidades, particulares em relação à ciência meno jurídico. Este esboço é tão fluido que as fronteiras que
do direito, quedam silentes ante a definição formal da teoria i delimitam a esfera jurídica das esferas vizinhas são comple-
'I
geral do direito, consagrando toda a sua atenção. ao conteúdo r tamente enevoadas.U
concreto das normas jurídicas e à evolução histórica das ins-
tituições jurídicas. Em geral, é preciso anotar que os autores Tal maneira de proceder deve ser reconhecida como jus-
marxistas, quando falam de conceitos jurídicos, pensam essen- tificada até certo ponto. Podemos expor a história econômica
cialmente no conteúdo concreto do ordenamento jurídico carac- e negligenciar completamente as sutilezas e detalhes, por exem-
terístico de uma época dada, significa dizer, o que os homens plo, da teoria. da renda ou da teoria do salário. Mas o que
consideram como sendo o direito em uma determinada etapa diríamos de uma história das formas econômicas .na qual as
da evolução. B o que se verifica, por exemplo, na seguinte, categorias fundamentais da teoria da economia política, Valor-
formulação: "com base em um estudo determinado de forças Capital-Lucro-Renda, etc., fundamentam-se no conceito vago e
produtivas nascem determinadas relações de produção que en- indiferenciado de Economia? Não evoquemos a recepção que
contram sua expressão ideal nos conceitos jurídicos dos ho- receberia este tipo de tentativa visando a apresentar tal história
mens e nas regras mais ou menos abstratas, no direito 」ッウエオセ@ econômica como uma teoria da economia política. Entretanto,
meiro e nas leis escritas".U · no domínio da teoria marxista do direito, as coisas ocorrem
precisamente como descrito e não de maneira diferente. Po-
O conceito de direito é aqui considerado exclusivamente demos sempre consolarmo-nos pensando que os juristas ainda
do ponto de vista de seu conteúdo; . a questão da forma jurí-
buscam uma definição para o conceito de direito e não con-
dica enquanto tal não é colocada. Contudo não há. dúvida
seguem encontrá-la. Ainda que a maioria dos cursos sobre teo-
de que a teoria marxista não .deve apenas examinar o conteúdp ·
concreto dos ッイ、・ョセュエウ@ jurídicos nas diferentes épocas his- ria geral comecem habitualmente por esta ou aquela forma,
tóricas, mas fornecer também uma explicação materialista do estas, na realidade, não fornecem mais que uma representaçãc
ordenamento jurídico como fomia histórica determinada. Se ..lt, confusa, aproximativa e inarticulada do fenômeno jurídico.
renunciarmos à análise dos conceitos jurídicos fundamentais, Pode-se afirmar, de maneira axiomática, que as definições do
obteremos apenas uma teoria jurídica explieativa da origem direito não nos ensinam grande coisa acerca do que ele é
do ordenamento. jurídico a partir das necessidades materiais realmente, e que, inversamente, o especialista nos faz conhe-
da s.ociedade e, conseqüentemente, do fato de que as normas
jurídicas correspondem aos interesses de tal ou . qual classe r
12. O livro de Micail Nikolajeviê Prokrovskij, Ocerki po istorii
russkoj l(ultury (Ensaio sobre a história da cultura russa), onde a defini-
ção do clireito se limita às características de imobilidade e de inércia
11. N. Beltov, K voprussu ... (Sobre a evolução da concepção em oposição à mobilidade dos fenômenos econômicos, nos mostrá como
monista da história), Petersburgo, 1894. Beltov é um pseudônimo de a riqueza da exposição histórica se concilia com o mais breve esboço da
G. V. Plékhanov. forma jurídica: cf. op. cit., 2.• ed. M<l'!;cou, 1918, vol. I, p. 16.

L
20 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 21

cer tanto mais profundamente o direito corno forma quanto O erro fundamental deste tipo de formulação é que elas
menos se atérn à sua definição. não permitem captar o conceito de direito em seu verdadeiro
A causa deste estado de coisa é absolutamente clara: um movimento; naquilo que desvenda toda a riqueza das intera-
conceito tão complexo .corno o de direito não pode ser expli- ções e vínculos internos. de seu conteúdo. Em lugar de nos
citado, exaustivamente por urna definição feita segundo as .re- proporem o conceito de direito em sua forma mais acabada e
gras da·lógica escolástica, per genus et per differentiam speci- mais clara, mostrando-nos, em razão disto, o valor deste con-
ficam. ceito para urna época historicamente determinada, servem-nos
Infelizmente, aqueles poucos rnarx!stãs que se. ocupam-da unicamente um lugar comum, vazio, o de "ordenamento auto-
teoria do direito sucumbiram, igualmente, às tentações da ritário externo", que convém indiferentemente a todas as épo·
"ciência" escolástica. Renner, por exemplo, fundamenta a sua cas e a todos os estudos de desenvolvimento da sociedade
definição de direito no conceito de imperativo que a socie· humana. As tentativas feitas na economia política para en-
dade impõe ao indivíduo.U Esta construção pouco engenhosa contrar urna definição do conceito de economia que englobe
parece-lhe inteiramente suficiente para permitir-lhe seguir a todas as épocas históricas, assemelham-se a estas definições.
evolução passada, presente e futura das instituições jurídi· Se a teoria econômica consistisse apenas de tais generalizações
cas.14 estéreis e escolásticas, ela não merecia o nome de ciênéia.
Marx, corno se sabe, não começa as suas pesqu!sas pela
investigação da economia em geral, mas por urna análise da
13. Cf. J. Karner, op. cit., cap. I, p. 68 (pseudônimo de K. Ren-
ner). . mercadoria e do valor. Pois a economia, enquanto esfera par-
'-14. Cf., エ。セ「←ュL@ N. I. Ziber, Sobranie soCinenij (Obras comple- ticular de relações, somente se diferencia quando surge a tro-
tas), vol. Il, p. 134: "O direito é o conjunto de normas coercitivas ex- ca. Enquanto ainda não existem relações de valor, a ativi-
primindo um caso típico de desenvolvimento econômico, conjunto des· dade econômica só .dificilmente pode ser diferenciada das ou-
tinado a previnir e a reprimir os .desvios em relação ao curso normal dos
acontecimentos". O livro de N. Boukharine, lstoriceskij materializm (O tras atividades vitais, com as quais forma urna totalidade orgâ-
materialismo hist6rico), (2.• ed., p. 175) contém definições, de direito, nica. A( economia natural
.
não faz. parte da economia política
análogas: como conjunto de normas coercitivas decretadas pelo poder enquanto ciência independente. 15 Só as relações de economia
estatal. A diferença entre Boukharine e Ziber e particularmente Renner
consiste em que Boukharine insiste particularmente sobre o caráter de mercantil capitalista formam o objeto da economia política
. classe do poder de Estado e, em conseqüência, do direito, Podvolockij, corno disciplina teórica particular' que utiliza conceitos espe-
um discípulo de Boukharine, dá uma definição detalhada .do direito: "o cíficos._ "A economia política começa com a mercadoria, no
direito é um conjunto de ョッイ■。ウセDo」ゥ@ coercitivas que refletem as re·
lações econômicas e sociais de uma determinada sociedade e que são momento em que os produtoS-! são trocados • .I
uns pelo..s outros,
introduzidas e mantfdas pelo pbder estatal das classes dominantes· para
sancionar, regular e consolidar estas relações e conseqüentemente, 」ッョセ@
solidar a sua' dominação" (1. P. Podvolockij, Marxistskaja teorija prava
,[Teoria marxista do direito], 2.• ed., Moscou, 1926). Todas estas defini- 15. :e preciso, contudo; dizer que nãÓ reina a' オョ。ゥュ、セ・@ com·
ções sublinham o vínculo existente entre o conteúdo con't:reto do orde· pleta entre os marxistas no que diz respeito ao objeto da economia
namento jurídico e a economia; Ademais tentam simultaneamente esbo- teórica. :e o que prova a discussão relativa ao artigo de I. I. Stepanov·
çar a análise do direito como forma, concreti.zando-a pela coerção ex- Skvorcov publicado no Vestnik Kommunisticeskoj Akademii, 1925, n..• 12.
terior, organizada pelo Estado; em outras palavras, não ultrapassam, no A grande maioria dos nossos teóricos em economia· que ー。イエゥ」セ[ュ@ de
fundo, os procedimentos grosseiramente_empíricos da ciência do direito sua illscussão rejeitaram o ponto de vista de Stepanov 、セ@ que as cate·
prática e dogmática que o ·marxismo deveria ter' por tarefa .superar. gorias de economia mercantil capitalista em 11enhuma hipótese· formam
(Há edição brasileira do livro セ・@ Boukharine - N. do T.) . o objeto específico da economia teórica-:-
22 E. B. PASUKANIS
A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 23

quer seja pelos indivíduos, quer seja pelas comunidades pri-


principal, se esta for estabelecida de maneira a abraçar todas
mitivas".16
as épocas e todos os estágios da evolução social, compreenden-
Podemos tecer considerações an,álogas em relação à teoria
do-se neles aqueles que não conheceram, sob qualquer forma,
geral do direito. As abstrações jurídicas fundamentais que en-
gendram a evolução do pensamento jurídico, as quais repre- as oposições mencionadas .
sentam as definições mais próximas da forma jurídica como Só a sociedade burguesa capitalista criou todas as con-
tal, refletem relações sociais bastante precisas e complexas. dições necessárias para que o momento jurídico seja plena-
Qualquer tentativa para encontrar uma definição de direito mente determinado nas relações sociais.
adequada, não só a estas complexas relações, mas tam:bém à Mesmo se deixarmos de lado as culturas dos povos pri-
"Natureza humana'' ou à "Comunidade humana" em geral. mitivos - .onde só com grande dificuldade se consegue extrair
conduz inevitavelmente a fonnas puramente verbais e esco• o direito dentre a massa dos fenômenos sociais de caráter nor-
lástieas. mativo - percebe-se ,que as formas jurídicas são extremamente
Uma vez que é necessário passar desta fórmula inerte pouco desenvolvidas, mesmo na Europa medieval. Todas as
à análise da forma jurídica tal qual ela existe realmente, nos oposições mencionadas acima se fundem em um todo indi-
deparamos com uma série de dificuldades que não se .deí:Xam ferenciado. Não existe fronteira entre o direito como norma
subjugar senão com o auxílio de flagrantes artifícios. Assim, objetiva e o direito como justificação. A norma geral não se
aprende-se, rotineiramente, após ter estudado uma definição· distingue de sua aplicação concreta. A atividade do juiz e a
geral do direito, que existem propriamente duas formas de atividade do legislador, em conseqüência, confundem-se. A
direito: um direito subjetivo e um direito objetivo, um jus oposição entre direito público e o direito privado encontra-se
agendi e uma norma agendi. Mas a possibilidade desta dico- completamente obscurecida, tanto na comunidade rural, como
tomia não é prevista na própria definição; assim, ←セウ・@ cons- na organização do poder feudal. Falta, em geral, a oposição
trangido a negar uma das duas ヲッセュ。ウ@ de direito e a apre· tão característica que existe na época burguesa entre o indi-
sentá-la como uma ficção, uma quimera, ou, então, admitir víduo como pessoa privada e o indivíduo como membro da
dentre o conceito geral de direito e suas variáveis um vínculo sociedade política. Foi preciso um longo processo de desen-·
puramente exterior. A natureza dúplice do direito, sua divi- volvimento, no qual as cidades foram o principal palco, para
são em norma de um lado e faculdade jurídica de outro, ・ョセ@ que as facetas da forma jurídica pudessem cristalizar-se em
tretanto, possui uma significação tão importante quanto o des- toda a sua precisão .
dobramento da mercadoria em valor de troca e valor de uso. Assim. o desenvolvimento dialético dos conceitos jurídi-
O direito enquanto forma não pode ser captado fora de cos fundamentais não nos fornece apenas a forma jurídica eni
suas mais ウゥューャセ@ definições . Ele existe somente dentro de seu pleno desenvolvimento e em todas as suas articulações, mas
suas oposições: direito objetivo, direito subjetivo; direito pú- reflete igualmente o processo real da evolução histórica, que
blico, direito privado, etc. Porém todas estas distinções fun- não é outro senão o processo de evolução da sociedade bur-
damentais aparecerão mecanicamente vinculadas à formulação guesa.
· Não se pode objetar à teoria geral do direito, como a
16. F. Engels, Contribuição à Ciência da Economia Polftica de concebemos, que esta disciplina trate unicamente de defini-
Karl Marx em K. Marx-F. Engels, Obras escolhidas, tomo I, Edições ções {.ormais, convencionais e de construções artificiais. Nin-
Progresso; Moscou, 1955, p. 390 (ed. franc.) (art. publicado em Das
Wolk, Londres, 6 a 20 de agosto de 1859). (Há edição portuguesa: Edi-
guém duvida de que a economia política estuda uma realidade
torial Caminho - N. do T.) efetivamente concreta, ainda que _Marx: tenha chamado a aten-
ção a que fatos como o Valor, o Capital, o Lucro, a Renda,
E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 25
24

etc. não podem ser descobertos "com ajuda de microscópios Aliás não se pode contestar o fato de que grande parte
e de análise química". A teoria do direito opera com abstra- das construções jurídicas é, com efeito, bastante discutível e
ções que não são menos "artificiais": a "relação jurídica" ou arbitrária. Assim é com a maioria das construções de direito
o "sujeito de direito" não podem igualmente ser descobertos público. Tentaremos, nas páginas seguintes, explicar as ra-
pelos métodos de investigação das ciências naturais, embora zões deste fenômeno. Provisoriamente, contentar-nos-emas em
por detrás destas abstrações escondam-se forças sociais extre- observar que a forma valor torna-se universal nas condições
mamente reais. de uma economia mercantil desenvolvida e que reveste, ao
Do ponto de vista de um indivíduo que viva em uin lado de formas primárias, diversas formas de expressão deri-
regime de economia natural, a· economia baseada sobre rela- vadas e artificiais: surgem assim, por exemplo, sob o aspecto
ções de valor aparecerá comu uma deformação artificial de de preços dos objetos que não são produtos de trabalho
coisas simples e naturais, tanto como o modo jurídico de pen- (terra), ou que não têm absolutamente nada a ver com o
sar aparecerá ao indivíduo médio como contrário ao "bom processo de produção (por exemplo, segredos militares com-
senso". prados por um espião). Isto, contudo, não obsta o fato de
Deve-se observar que o ponto de vista jurídico é incom· que o valor, como categoria econômica, somente pode ser com-
paravelmente mais estranho à consciência do "indivíduo médio" preendido do ponto de vista do dispêndio do trabalho social-
do que o ponto de vista econômico, pois mesmo quando a mente necessário para a fabricação de um produto determi·
relação econômica se realiza simultaneamente como relação nado. Da mesma forma, o universalismo da forma jurídica não
jurídica é, na maioria dos casos, precisamente o aspecto eco- deve impedir-nos de pesquisar as relações que constituem o
nômico que é atualizado pelos protagonistas desta relação, seu fundamento real. Esperamos poder demonstrar adiante
enquanto que o momento jurídico permanece e111 plano secun- que estes fundamentos não são as relações que se denominam
dário e sq aparece coin clareza em casos excepcionais (proces- de direito público. ·
sos, litígios jurídicos). De outra parte os membros de uma casta Uma outra objeção à nossa concepção de tarefas da teo-
particular (juristas, juízes) surgem habitualmente como os de- ria geral do direito consiste em considerar que as abstrações
tentores do "momento jurídico" ao nível ·de sua atividade. :e que lhe servem de fundamento são próprias do direito bur-
por isso que o pensamento . atuá, para o indivíduo médio mai.s guês. O direito proletário, dizem-nos, deve buscar outras con-
freqüentemente com o auxílio de categorias econômicas do que cepções gerais, e a pesquisa de tais conceitos deve ser a tarefa
com o auxílio de categorias jurídicas. da teoria marxista do direito.
Se se acredita que os conceitos jurídicos, que exprimem
Esta objeção, à primeira vista, parece ser muito séria.
o sentido da forma jurídica, representam o produto de uma
No entanto, repousa sobre um equívoco. Esta tendência, exi-
qualquer intervenção arbitrária, cai-se no erro dos racionalis-
gindo para o direito proletário novos conceitos gerais que lhe
tas do século XVIII, denunciado por Marx. Aqueles, não
sejam própriós, parece ser revolucionária por excelência. Mas,
podendo explicar - como dito por Marx - a origem e o
em realidade, proclama a imortalidade da forma jurídica, pois
desenvolvimento das formas enigmáticas assumidas pelas re·
se esforça em extrair esta forma de condições históricas deter·
lações humanas, tentaram livrá-las de suas características in-
minadas que lhe permitam se expandir completamente, e a
compreensíveis explicando precisamente que era inventos hu·
。ーイセョエ@ como capaz de se renovar permanentemente. O
manos e que não haviàm caído do céu.l'
desaparecimento de certas categorias (de certas categorias, pre-
cisamente, e não de tais ou quais prescrições) do direito bur-
17. Karl Marx, O Capital, I, cap. I, op. cit., p. 92 e 93. Bel. braal·
leira: São Paulo, Nova Cultural, 1988, 3.• ed., p. 71/72. guês não significa em hipótese alguma a sua substituição por
E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 27
26

categorias do direito proletário. Igualmente o desaparecimento dade - depois de feitas as devidas deduções - 1Jrecisamente
das categor!as Valor, Capital, Lucro, etc., no período de tran- aquilo que deu".20
sição para o socialismo evoluído, não significa o aparecimento Marx insiste no fato de que, apesar da modificação radi-
de novas categorias proletárias de Valor, Capital, etc. cal da forma e do conteúdo, "impera o mesmo princípio que
no intercâmbio de mercadorias equivalentes: troca-se uma quan-
O desaparecimento das categorias do direito burguês sig· tidade de trabalho, sob uma forma, por outra quantidade igual
nificará nestas condições o desaparecimento do direito em de trabalho, sob outra forma diferente".21
geral, isto é, o desaparecimento do momento jurÍdico das rela- Enquanto a. relação entre os produtos individuais e a so·
ções humanas.
Mas o período de transição, como Marx demonstrou em
sua Crítica do Programa de Gotha, é caracterizado pelo fato
de que as relações humanas permanecem, durante um certo
' ciedade continua a conservar a forma de troca entre equiva-
lentes, esta relação continuará a manter igualmente a forma
de direito; pois "o direito só pode consistir, por natureza, na
aplicação de. uma medida igual". 22 Mas como, por isso, a
período, necessariamente no "horizonte limitado do direito desigua,ldade natural de aptidões entre os indivíduos não é
burguês". セ@ interessante analisar em que consiste, segundo a levada em consideração, o direito "no fundo é, portanto, como
concepção marxista, este horizonte limitado do .direito burguês. todo direito, o direito da desigualdade". 13 Marx não menciona
Marx pressupõe um sistema social no qual os meios de pro· a necessidade de um poder estatal que assegure pela coerção
dução pertencem a toda sociedade e na qual os produtores não a realização destas normas de direito "desigual", que mantêm
trocam os seus produtos . Ele supõe, em conseqüência, um ní- seus "limites burgueses", mas, evidentemente, isto subentende-
vel de desenvolvimento superior àquela da "Nova Política Ec.o- se. Lenin chega a esta conclusão: ··o· direito burguês em rela-
nômica", na qual vivemos presentemente. O Me'rcado já está ção à distribuição dos produtos de consumo pressupõe, como
completamente substituído por uma economia planificada e, em é natural, também inevitavelmente um Estado burguês, pois o
conseqüência, ''o trabalho investido' nos produtos não se apre· direito nada é sem um aparelho capaz de obrigar à observação
senta aqui, tampouco, como valor destes produtos, como uma das normas de direito. Daí decorre que no comunismo subsiste
qualidade material, por eles possuída, pois セアオゥL@ em oposição durante um certo tempo não só o direito burguês, mas tam-
ao que sucede na sociedade capitalista, os trabalhos individuais bém o Estado burguês - sem burguesia".24
já não constituem parte integrante do trabalho comum através Uma vez dada a forma de troca entre equivalentes, a for-
de um rodeio, mas diretamente" _18 Porém, mesmo アオ。ョ、セ@ o ma do direito, a forma do poder público, ou seja, estatal, é
mercado e a troca mercantil estiverem completamente abolidas, igualmente dada, e, em conseqüência, esta perdura por algum
como diz Marx, "apresenta ainda, em todos os seus aspectos, tempo, mesmo que a divisão de classes não mais exista. O
no econômico, no moral e no intelectual, o selo da velha so- desaparecimento do direito e, com ele, o do Estado não se
ciedade de cujas entranhas procede".19 produz, segundo a concepção de Marx, senão quando "o tra·
セ@ o que se revela igualmente no princípio da distribui7
ção, segundo o qual "o produtor individual obtém da socie- 20. Id ., loc. cit ., ed. brasileira (N. do T.).
21. 14,, p. 24, ed'. brasileira: p. 214 (N. do T.).
!· 22. ) 1-d., ed. brasileira, p. 214 (N. do T.).
18. Karl Marx, Crítica do programa de Gotha (1875), Ed. Sociales, 23. Id., ed. brasileira, p. 214 (N. do T.).
Paris·; 1950, p. 23. (N.. do T.: ed. brasileira, Marx-Engels, Obras esco- 24. Lenin, O Estado e a Revolução, 1911, ed. em línguas estran·
lhidas. Ed. Alfa-ón1ega, SP, [s.d.], vol. 2, p. 213.) geiras, Moscou, [s.d.], p. 117-118. (N. do T.: ed. brasileira, Obras es·
19. Id., loc. cit., ed. brasileira (N. do T.). colhidas, SP. Alfa-Omega, 1980, vol. 2, P: 289.)
I
I

l.I
I

t
28 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 29
balho não for somente um meio de vida, mas a primeira ne- Mesmo a criminologia burguesa progressista chegou teorica-
cessidade vital" ,25 quando com o desenvolvimento universal do mente à convicção de que a luta contra a criminalidade pode
indivíduo também as forças produtivas tenham aumentado; ser considerada em si mesma como uma tarefa medicinal e
quando todos os indivíduos trabal.hem 'voluntariamente segun- pedagógica, e que os juristas com os seus "corpos de delito",
do as suas capacidades ou, como diz. Lenin, quando for ultra- seus códigos, seus conceitos de "culpabilidade", de "respon-
passado "o horizonte estreito do direito burguês" que obriga sabilidade penal plena e atenuada", suas sutis distinções en-
a calcular com a insensibilidade de um Shylock: ''se não se tre cumplicidade, participação, instigação, etc. . . não podem,
trabalhou mais meia hora do que o outro?"/6 ém uma única absolutamente, fornecer qualquer auxílio para resolver a ques-
palavra, quando a forma da relação de equivalência tiver sido tão. E se estas concepções teóricas ainda não chegaram, até
definitivamente ultrapassada. o presente, à supressão dos códigos penais e dos tribunais, é,
A transição para o comunismo evoiuído não se mostra, evidentemente. porque a superação da forma jurídica está vin-
segundo Marx, como uma passagem a novas formas jurídicas, culada não só à transgressão dos quadros da sociedade bur-
mas como o desaparecimento da forma jurídica enquanto tal, guesa mas, também, a uma emancipação radical em relação
como uma libertação em relação a esta herança da época bur- a todas as sobrevivências.
guesa, destinada a sobreviver à própria burguesia. A crítica da ciência do direito burguês do ponto de vista
Marx mostra ao mesmo tempo a condição fundamental, do socialismo deve mirar-se no exemplo de crítica da economia
enraizada na estrutura econômica da própria sociedade, da política burguesa, tal qual Marx nos legou. Desta forma, tal
existência da forma jurídica, isto é, da unificação dos dife- crítica deve se colocar, antes de tudo, no terreno do inimigo,
rentes rendimentos do trabalho segundo o. princípio da troca isto é, ela não deve descartar as generalizações e abstrações
de equivalentes. Ele descobre, assim, o profundo vínculo in- que foram elaboradas pelos juristas burgueses, partindo das
terno existente セョエイ・@ a forma jurídica e a forma mercantil. necessidades de seu tempo e de sua classe, mas analisar estas
Uma sociedade que é constrangida, pelo estado de suas forças categorias abstratas e pôr em evidência o seu verdadeiro sig-
produtivas, a manter uma relação de equivalência entre o dis- nificado, em outros termos, descobrir os condicionamentos his-
pêndio de trabalho e a r.emuheração, sob uma forma que lem- エ￳イゥHセqsM」。N@
bra, mesmo de longe, a troca de valores-mercadorias, será Toda ideologia perece com as relações sociais que a en-
constrangida igualmente a manter a forma jurídica. Somente gendraram. Mas este desaparecimento definitivo é precedido
partindo deste momento fundamental é que se pode compre- por uma fase na qual a ideologia perde, sob os golpes desferi-
ender por que toda uma série de outras relações sociais reveste dos pela crítica, a capacidade de encobrir e velar as relações
a forma jurídica. Mas daí a concluir-se que· os tribunais e as sociais das quais nasceu. O pôr a nu as raízes de uma ideo-
leis deverão sempre existir, porque mesmo um estado de abun- logia é o sinal preciso de que o seu fim se aproxima, pois, como
dância econômica não fará desaparecer todos os delitos contra . dizia Lassalle, "o anúncio de uma nova época só se manifesta
a .pessoa, significa essencialmente tomar os momentos secun- através da aquisição da consciência do que até então era a
dários e derivados pelos momentos essenciais e fundamentais. realidade em si".27

25. Karl Marx, Crítica. . . op. cit., p. 25. (N. do T. : ed. brasi-
leira, p. 214.) ·
26. Lenin, O Estado e a Revolução, op. cit., p. 115. (N. do T.:
ed. brasileira, op. át., p. 287.)
27. F. Lassalle, System der erworb;nem Rechte, 1861.
Capítulo Um

OS METODOS DE CONSTRUÇÃO DO CONCRETO


NAS ciセnas@ ABSTRATAS

Toda ciência que procede a generalizações se endereça,


no estudo de seu objeto, a uma única e mesma realidade total
e concreta. Uma única observação de um corpo celeste pas·
sando pelo meridiano pode dar lugar tanto a conclusões astro-
nômicas quanto psicológicas. Um único fato, por exemplo, o
arrendamento da terra, pode constituir tanto o objeto de pes·
quisa de economia política quanto o de pesquisas jurídicas.
Em assim sendo, as diferenças existentes entre as diversas eiên·
cias repousam, largamente, sobre as diferenças existentes entre
os seus métodos de abordagem 、セ@ realidade. Toda ciência
possui o seu próprio plano segundo o qual visa a reproduzir a
realidade. E assim, toda ciência constrói a realidade concreta,
com sua riqueza de formas, de relações e correlações, como
resultado .da combinação de abstrações mais simples.
A psicologia pretende decompor a consciência em seus
elementos mais simples. A química executa a mesma tarefa
r

no que concerne à materia. Quando, na atividade l'rática, não


se pode decompor a realidade em seus elementos mais sim-
ples, a abstração socorre-nos. Nas ciências sociais o papel de
abstração é particularmente grande . A maturidade das ciên-
cias sociais é determinada pelo grau de perfeição de suas
abstrações. E o que セ。イク@ expôs magnificamente em relação
à economia política: parecia muito .natural - diz ele - . co-
meçar as pequisas pela totalidade concreta, pela população
que vive e produz em circunstâncias geagráficas deterniinadas,
mas, se deixarmos de lado as 」ャ。sAセウ@ que a compõem, esta não
:52 E. B. PASUKAN.IS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 33

passa de uma abstração vazia. Estas, por seu termo, não são Es.tas observaçqes, também, justificam-se quanto à teoria
nada sem as condições de sua existência, tais como o salário, geral do direito. Neste caso, igualmente, a totalidade concreta,
o lucro, a renda, etc. A análise destas últimas pressupõe as isto é, a sociedade, a população, o Estado, deve ser o resul-
çategorias mais simples do "preço", do "valor" e da "nierca· tado e a etapa final de nossas reflexões, mas nunca o seu
doria.". Partindo destas determinações mais simples, o teórico ponto· de partida. Quando procedemos do mais simples para
da ·economia política reproduz a mesma totalidade concreta,
c
o mais comp.licado, quando vamos da forma mais pura do. pro-
mas não mais como um todo caótico e difuso, e sim como cesso às suas formas mais concretas, seguimos um caminh(l
uma unidade rica de inúmeras determinações e inter-relações. metodológico mais preciso, mais claro e, portanto, mais correto
Marx acrescenta que o desenvolvimento histórico da ciência do . que. quando se avança tateando, tendo 'à frente apenas a
seguiu precisamente o caminho inverso: os economistas 'do imagem difusa e indiferenciada da totalidade concreta.
século XVII c<;>meçaram pelo concreto, pela Nação, Estado. A segunda observação metodológica que devemos aqui
População, pata, em seguida, chegar à Renda, ao Lucro, ao fazer refere-se. a uma particularidade das ciências sociais, ou,
Salário, ao Preço e ao Valor. Mas o que foi historicamente mais exatamente, aos conceitos que utilizam.
inevitável nã.o é metodologicamente correto.1 Se pegarmos um conceito qualquer· das ciências naturais,
. .
por exemplo, de energia, podemos estabelecer com precisão o
1 . Karl Marx, Contribuição à Crítica da ·Economia Política, São momento no qual ele aparece pela primeira vez na história.
Paulo, Martins Fontes (trad. M. H. Barreto Alves), 1977, p. 218. Pa' Contudo, tal data somente tem significação para a história
sukanis não seguiu o texto origirial de Marx, parecendo tê-lo citado de da cultura e das ciências. Na pesquisa, propriamente dita,
memória. O texto de Marx é o seguinte: "Parece que o melhor método
será começar pelo real e :pelo concreto, que セ ̄ッ@ a condição prévia e efe- das ciências naturais, a utilização deste conceito mio é res-
tiva: assim, em economia política, por exemplo, começar-se-ia pela popu- tringida por nenhum tipo de limite cronológico. A lei de
lação, que é a base e o sujeito do ato social de produção como um todo. transformação da energia agia muito antes do aparecimento
No entanto, numa observação atenta, apercebemo-nos de· que há aqui do homem sobre a terra e continuará a agir depois da extinção
um erro. A população é uma abstração se desprezarmos, por exemplo, . de toda forma de vida sobre a terra. Ela se encontra fora do
as classes de que se compõe. Por seu lado, essas classes são uma pala-
vra, ora se ignorarmos os elementos em que se repousam, por exemplo, tempo, é uma lei eterna. Certamente podemos colocar a ques-
sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem· o preço,· tão da data do descobrimento da lei da transformação da
etc. Não é nada. Assim,. se começássemos pela população, teríamos uma energia, mas seria absurdo perguntar-sec de que época datam
visão caótica do todo, e, através de uma 、セ[エ・イュゥョ。￧ ̄ッ@ mais precisa, atra- as relações, as circunstâncias das quais ela é expressão.
vés de uma análise, chegaríamos a conceitos cada vez mais simples; do
conceito figurado passaríamos a ábstrações cada vez mais delicadas àté • Se agora nos· voltarmos para as ciências sociais, como
atingirmos. âs determinações máis simples. Partindo daqui seria neces- por exemplo a economia política, e se considerarmos um de
sário caminhar em sentido contrário até s.e chegar finalmente de. novo seus ·conceitos fundamentais, por exemplo o do valor, logp
à população, que não seria, desta vez, a representação caótica de um se evidencia que tal conceito, enquanto elemento de nosso
todo, mas uma rica totalidade de determinação e de relações 'numerosas, pensamento, é/·um conceito não apenas histórico, mas igual-
A· primeira via foi a que, historicamente, a economia política adotou ao mente se evidencia que, como ウオ「エイセッ@ deste conceito, como
seu nascimento. Os economistas do século XVII, por /exemplo, começam
sempre por uma totalidade viva: populaçãó, Nação, Estado, diversos Es-
tados, mas .acabam sempre Pot: formular, através da análise, algumas
o
balho, a divisão do trabalho, a neJessiliade, o valor de troca, se eleva-
relações geràis abstratas determinantes, tais como a divisão do trabalho, ram até ao Estado, às trocas internacionais e ao mercado mu11dial. Este
o dinhefro, o valor, etc. A partir do momento em que estes futore's iso- segundo método é evidentemente o método científico correto. O concret()
ladoi;bfóralfi.. mais ou, menos fixados e teoricamente formulados, surgiram é concreto por ser a síntese de múltiplas determinações; logo, unidade da
ウェエA[ュ。Zセ@ . I?,COI:l;Ôpticps .que, partindo de noções simples, tais como o tra- diversidade" (N. do T.).. "
34 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 35

parte ela história da teoria da economia política, nós temos Tomemos um outro exemplo, mas desta vez fora dos do- .
uma história real do valor, isto é, uma evolução das relações mínios da economia política. Consideremos o Estado. Aqui
humanas que progressivamente fizeram deste conceito uma rea- \. podemos observar, de uma parte, como o conceito de Estado
lidade histór!ca. 2 adquiriu, .progressivamente, uma forma precisa . e acabada e
Sabemos exatamente quais são as condições materiais ne- desenvolve toda a riqueza· de suas determinações e, de outra
.. cessárias para que esta qualidade "ideal", "imaginária" das parte, como .o Estado nasce, em realidade, da sociedade gen·
coisas adquiram uma importância "real" e, mais ainda, decisi- tílica e da sociedade feudal, como ele "se abstrai" e se trans·
va em relação às suas qualidades naturais, logo que ela trans- forma em um poder ''que se basta a Si próprio". O direito
forma o produto. do trabalho de fenômeno natural em um fenô- -f igualmente, em suas determinações gerais, o direito enquanto
meno social. Conhecemos .assim o substrato histórico real des- forma, não existe apenas no cérebro e nas teorias dos juristas
tas abstrações conceituais que utilizamos, e poderemos verifi- ・ウー」ゥ。ャコ、ッセᄋ@ Ele possui J.Ima história real, paralela,_ que nã,o
car igualmente os limites nos quais a utilização destas abstra- se desenvolve como .um sistema de pensamento, mas como um
ções possui um sentido coincidente com os marcos da evolução sistema particular que os homens <tealizam não como uma es·
histórica real e são até mesmo determinados por ele. Um outro colha consciente, mas sob a pressão das relaçõeS de produção.
exemplo, citado por Marx, coloca este fato em particular evi· O homem torna-se sujeito de direito com a mesma necessidade
dência. O trabalho, como relação mais simples do homem com que transforma o produto natural em uma mercadoria dotada
a Natureza, se encontra em todos os estágios da evolução hu- das propriedades enigmáticas do valor.
mana; mas como abstração econômica aparece bastante tar- O pensamento que não ultrapassa os marcos das condi-
diamente (cf. a sucessão de escolas: mercantilistas, fisiocratas, çõe.; de existência burguesa não pode conceber esta necessi-
economistas clássicos). A evolução real. das relações econô-
dade de outra maneira ·do que, senão, como uma necessidade
micas que イセャ・ァッオ@ a segundo planq: as distinções entre os
natural; é por isso que a doutrina do direito natural é, .cons-
diferentes tipos de trabalho humano, para colocar. em seu lugar
o "trabalho em geral", .correspondem a esta evolução do con· ciente ou inconScientemente, o .fundamento de todas as teorias
ceito. A evolução dos conceitos, assim, corresponde à real dia- burguesas do direito. A escola do direito natural não foi ape-
lética do processo hist6rico3 • nas, a expressão mais marca:tl,te da ideologia burguesa em Uma
época na qual a burguesia surgiu como classe revolucionária
2. Contudo não é necessário crer que a evolução da forma valor e formulou as suas reivindicações de maneira aberta e conse-
c a evolução da teoria do valor efetuem-se de maneira sincrônica. Ao qüente, mas também nos forneceu o mais profundo e Q mais ,
contrário. Estes dois processos não ocorrem sincronicamente. Formas claro modelo de compreensão da fonna jurídica. Não é por
mal• ou menos desenvolvidas de troca e formas correspondentes de valor
cncontram·IC na antiguidade, enquanto que a economia política é, como acaso que o apogeu da doutrina do direito natural coincidiu,
ac aabo, uma daa clenclaa mala recentes (nota à :s.• edição). aproximadamente, com o aparecimento dos grandes clássicos,
3. K. Marx, op. ctt., p. 220. "Neste sentido, podemos dizer que os teores da economia política burguesa.. As duas escolas se
a categoria mal& simples podo exprimir rolaçllca dominantes de um todo p:t:opusetam por tarefa a de·· formular, sob a forma mais geral
menos · desenvolvido ou, pelo contrário, telaçllcs subordinadas de um I•
todo mais desenvolvido, relações que existam já historicamente antes e, por conseguinte, a mais abstrata) as cqndiçÕes fundamentais
que o todo se desenvolvesse no sentido que .encontra a sua expressão .de existência da sociedade burguesa que a eles pareceram ser ·
numa categoria mais concreta. Nestà medida, a evoluçilo do pensa- as condições naturais da existência de qualq;.ter sociedade ..
mento abstrato, que se eleva do maissimples ao mais complexo, corres-
ponderia ·, ao processo histórico イ・。ャBセ@ Parece-nps que Pasukanis quis se Mesmo um zeloso defensor do positivismo jurídico e ad·
referit à passagem ora reproduzida (N. do T.). versário do direito natural colilb Bergbohm reconhece os
36 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 37

méritos da escola do direito natural na fundação da moder- revolucionária da ordem social feudal. Em nossos dias, o pro-
na ordem jurídica burguesa. "Ele (o direito natural) quebrou feta do "direito natural" renascido, Rudolf Stammler, sustenta
os fundamentos da servidão feudal e das relações da sujeição a tese de que o "direito justo" exige, antes de tudo, submissão
em geral e abriu as vias para a supressão dos gravames que ao direito positivo estabelecido, mesmo que este último seja
recaíam sobre a terra; liberou as forças produtivas aprisiona- "injusto".
das nos grilhões de um regime corporativo petrificado por res- A escola psicológica em economia política se encontra pa-
trições comerciais absurdas ( ... ) obteve a liberdade de religião ralela à escola psicológica do direito. Todas as duas se esfor-
e de confissão, bem como a liberdade da ciência. Ele assegu- çam por transpor o objeto da ウオセ@ análise para a esfera dos
rou a proteção do direito privado de todos os homens, qual- estados subjetivos da consciência ("avaliação", "emoção impe-
quer que fosse a sua crença e a sua nacionalidade. Ele contri- rativa-atributiva") e não vêem que as categorias abstratas cor-
buiu para eliminar a tortura para orientar o processo penal respondentes exprimem, por suas regularidades científicas, a
nas vias regulares de um processo confome à lei" 4 • estrutura lógica das .relaçõe:; sociais que se ocultam por detrás
Sem ter a intenção de, neste ponto, examinar em detalhe dos indivíduos e que ultrapassam o quadro da consciência in-
a sucessão das diferentes escolas da teoria do direito, não po· dividual.
demos deixar de indicar um certo paralelismo ・ョセイ@ a evolução Enfim, o forma1isnio extremo da escola normativista (Kel-
do pensamento jurídico e a do pensamento econômico. Assim sen) exprime/ sem dúvida alguma, a decadência geral do
a ・ウセッャ。@ histórica, nos dois casos, pode ser セッョウゥ、・イ。@ como _mais ·recente pensamento científico burguês, que se dissipa em
uma manifestação da reação feudal aristocrática e, em parte, artifícios metodológicos e lógico-formais estéreis, ao glorificar
pequeno-burguesa corporativa. E mais, qesde que a chama seu total· afastamento da realidade .. Na teoria econômica os
revolucionária da burguesia extinguiu-se definitivamente na se- representantes da escola matemática ocupam uma posição
gunda metade do século XIX, a pureza e a precisão das dou- similar.
trinas clássicas deixaram por igual, de exercer sobre ela qual-
A relação jurídica é, para utilizar a expressão marxista,
quer atração. A sociedade burguesa aspira à estabilidade e a
uma relação abstrata, unilateral, mas que não aparece nesta
um poder forte. l! por isso que não é mais a análise da forma
unilateralidade como o resultado do trabalho conceitual de um
jurídica que se encontra no centro de interesses da teoria jurí-
sujeito pensante, mas como o produto da evolução social. "Em
dica, mas, sim, o problema dos fundamentos coativos das de-
toda ciência histórica e social, é preciso nunca esquecer, .a pro-
terminações jurídicas. Resulta, então, um amálgama singular
pósito da ·evolução das categorias econômicas, que o objeto,
de historicismo e positivismo jurídico, que se reduz à negação
neste caso a sociedade burguesa moderna, é dado tanto na
de todo direito que não seja o direito oficiaL
realidade como no cérebro; não esquecer que as categorias
O chamado "renascimento do direito natural" não signifi·
exprimem, portanto, formas de existência, condições de exis-
ca o retorno da filosofia do direito burguês às concepções re-
tência determinadas, muitas vezes de simples aspectos parti-
volucionárias do S'éculo XVIII. N6 tempo de Voltaire e de culares desta sociedade determh:tada, deste objeto ... "5
Beccaria, todo ju:z ''esclarecido" considerava que era um mé·
rito conseguir, sob o pretexto de aplicar a lei, realizar os pen- O que Marx diz das categorias econômicas é, também,
samentos dos filósofos, que não eram mais do que a negação totalmente aplicável às categorias jurídicas. Em sua universa-
lidade aparente elas exprimem um aspecto determinado da exis-

4. K. :eergbohm, furisprudenz und Rechtsphilosophie, t. I, Leipzig,


1892, p. 215. 5. K. Marx, id., ib., p. 224.
38 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 39

tência ·de um sujeito histórico determinado: a produção mer- interna e sem delimitação em relação aos círculos vizinhos·
cantil da sociedade burguesa. (costumes, religião). Foi somente. desenvolvendo-se progressi-
Encontramos, finalmente, na mesma Contribuição já bas- vamente que atingiu o seu estágio supremo, sua diferenciação e
tante citada, mais uma profunda reflexão metodológica de Marx. sua precisão máxima. Este estágio de desenvolvimento superior
Concerne à possibilidade de explicitar a significação das for· corresponde a relações econômicas e soeiais determinadas . Ao
mações anteriores pela análise das formas que as sucederam mesmo tempo este estágio é caracterizado pela aparição de um
e que são, conseqüentemente, superiores e mais desenvolvidas. sistema de conceitos gerais que refletem teoricamente o sistema
Desde que compreendamos a renda, diz Marx, compreendemos jurídico como totalidade orgânica.
igualmente o tributo, o dízimo e o imposto. feudal. A forma A estes dois ciclos de desenvolvimento correspondem duas
mais desenvolvida nos permite compreender os estágios passa- épocas de superior desenvolvimento dos conceitos. jurídicos ge-
dos nos quais ela apareceu de maneira simplesmente embrio- rais: Roma e seu sistema de direito privado e os séculos XVII
nária. A evolução histórica ulterior põe a descoberto as vir- e XVIII na Europa, desde que o pensamento filosófico desco-
tualidades que já se podiam encontrar em um passado lon- briu a significação universal da forma jurídica como poten-
gínquo. cialidade que a democracia burguesa foi convocada a realizar.
Em conseqüência, s6 podemos obter definições claras e
"A sociedade burguesa é a organização histórica da pro- exaustivas se basearmos nossa análise sobre a· forma jurídica.
dução mais desenvolvida e mais variada que existe. Por este inteirameitte desenvolvida, a qual revela tanto as formas jurí·
fato, as categorias que exprimem as relações desta soc:edade, e dicas passadas como as suas próprias formas embrionárias .
que permitem compreender a.sua estrutura, permitem a.o mesmo
セ@ apenas deste modo que poderemos captar ô direito, não
tempo perceber a estrutt,tra e as relações de produção de todas como um atributo da sociedade humana abstrata, mas como
as formas de sociedade desaparecidas, sobre cujas ruínas e ele- uma categoria histórica que corresponde a um regime sacia]
mentos ela se edificou, e que certos vestígios, parcialmente determinado, edifica9o sobre a oposição dos interesses · pri·
ainda não apagados, continuam a subsistir nela' 16 • vados.
Se quisermos aplicar à teoria do direito as reflexões me-
todológicas acima citadas, devemos começ.ar com a análise da
fortna jurídica em sua configuração mais abstrata e mais pura,
e,·· eín seguida, ir pela complicação progressiva ao concreto
histórico. Não· devemos esquecer que a evoluçlo diall!tica dos
ccmceitos, corresponde à evolução dia}ética do próprio pro· セ@

cesso histórico. A evolução histórica nlo implica apenas uma


mudança no conteúdo das normas jurídicas e uma modifica-
ção das instituições jurídicas, mas também um delenvolvimen-
to da forma jurídica enquanto· tal. Esta, depois de ter surgido
em um estágio determinado de civilização, permaneceu longa·
ínente em estado embrionário, com uma fraca diferenclaçilo

6. K. Marx, id., ib., p. 222. A Contribuição à Critica da Bconomla


Po.lítica e a Introdução Geral são a mesma obra (N. do T.)
--
Capítulo Dois

IDEOLOGIA E DIREITO

A questão da natureza ideológica do direito desempe-


nhou um papel essencial na polêmica entre P. I . Stucka e o
professor Rejsner1 • O profe&sor Rejsner tentou demonstrar
que Marx e Engels consideravam o direito como uma das
"formas ideológicas". e que muitos outros teóricos marxistas
tinham a mesma opinião. O professor Rejsner apóia-se em
um grande número de citações. Não há nada a objetar a tais
referências. Também não podemos contestar o fato de· que,
para os homens, o direito é uma viva experiência psicológica,
particularmente sob a forma de regras, de princípios ou de
normas gerais. Contudo, o problema não consiste em admitir
ou contestar a existência da ideologia jurídica (ou da psicolo-
gia)' mas em demonstrar que as categorias jurídicas não pos-
suem outra significação forà de sua significação ideológica.
:f: somente a partir desta demonstraçãd que poderemos admi-
tir como· inatacável a conclusão tirada pelo professor Rejsner,
a saber, de "que um marxista não pode estudar o direito senão
como uma espécie particular da Ideologia". Nesta pequena
fórmula "não pode. . . senão como'' reside o fundo de toda
questão. ];: o que queremos explicitar a partir de um exemplo
da economia política. As categorias mercadoria, valor e valor
de troca são, sem dúvida alguma, formações ideológicas, repre-
sentações deformadas, mistificadas (segundo expressões de

1. Cf. V estnik Socialisticeskoj Aksdemii, n.• 1. ·


A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 43
42 E. B. PASUKANIS
mos esclarecer a seguinte questão: representarão, efetivamen-
Marx), pelas quais a sociedade, baseada sobre a troca mer- te, as categorias juríd!cas essas categorias conceituais objetivas
cantiL concebe as. relações de trabalho dos diferentes produto- (objetivas para à sociedade historicamente determinada) e cor·
res. O caráter ideológico destas 'formas é provado pelo fato respondentes a relações sociais objetivas? Em conseqüência,
de que basta passar a outras estruturas econômicas para. que respondemos a questão da seguinte maneira: poderá o direito
categorias de mercadoria, valor, etc. percam toda a sua signi- ser concebido como ·uma relação social no mesmo sentido em
ficação. Eis por que, a justo título, podemos falar de· uma que Marx chamou o capital de uma relação social? ·
ideologia mercantil ou, como Marx a nomeia, de um ''feti- Tal problemática elimina, a priori, a referência à natu·
chismo da mercadoria", e pôr este fenômeno na conta dos reza ideológica do direito e recoloca a pesquisa em outro nível.
fenômenos psicológicos. Mas isto, absolutamente, não signifi· A constatação da natureza ideológica de um conceito não
ca que as categorias de ,economia política possuam exclusiva- nos dispensa,. de forma alguma, da obrigação de セウエオ、。イ@ a rea-
mente uma significação psicológica, que elas se refiram uni- lidade objetiva, quer dizer, a realidade existente no mundo
camente a experiências vivenciadas, a representações e outros exterior e não apenas na consciência. Por outro lado, toda a
processos subjetivos. Sabemos muito bem que a categoria mer- fronteira entre a realidade do "além", que também existe efe-
cadoria, por exemplo, apesar de seu evidente caráter ideológico, tivamente na representação de certas pessoas, e, digamos, o
reflete uma relação social objetiva. Sabemos que ᄋ。セ@ diferen- Estado se extinguiriam. · :1! isto precisamente o que ocorreu
tes estágios de desenvolvimento desta relação, sua maior ou com o professor Rejsner. Ele se apóia sobre a célebre citação
menor universalidade, .são real.idades de fatos materíais que de Engels a respeito do Estado como "primeira potência ideo-
devem ser tomados em consideração como tal ᄋセ@ ' não apenas lógica que domina os homens" e identifica, sem hesitar, o Es-
enquànto processos ideológicos e psicológicos. Daí que os tado com a ideologia do Estado.
conceitos gerais da economia política não são, então, simples "O caráter psicológico das manifestações do poder é tão
elementos ideológicos, mas abstrações graças às quais a reali- evidente, e o poder do Estado, que só existe no psiquismo.
dade econômica objetiva pode ser elaborada cientificamente, humano (sublinhado por mim, E. P.), é ele próprio, deste pon-
isto é, teoricamente. Para retomar a expressão de Marx, "as to de vista, desprovido de características materiais, que pode-
categorias da economia burguesa são formas do· intelecto que riamos acreditar ser impossível concebê-lo de forma diferente
possuem uma verdade objetiva, uma vez que refletem relações da .de uma idéia_ que somente se ュ。ョゥヲ・ウエセ@ na medida em que
sociais reais, mas estas relações ー・イエョ」セュ@ apenas. àquela épo- os homens fazem-na princípio de seu comportamento. " 3
ca histórica determinada, na qual a produção mercantil é 0

t
1
As finanças, o exército,· a administração, tudo isto é "des-
modo de produção social"2 , provido de características materiais", tudo isto apenas existe
O que te:mos a demonstrar não é que os conceitos jurí- no "psiquismo humano". Mas, então, o que sucede a esta
dicos gerais possam entrar, a título de elementos constituti- ''enorme" massa da população, segundo a expressão do prq-
vos, nos processos e sistemas ideológicos - o que nlo 6 de 1:',. prio professor Rejsner, que vive "fora de toda consciência do
forma alguma contestável - , mas que a realidade social, mas- !1 Estado"? Deve-se aparentemente excluir esta! massa; ela não
1'I
;,'I possui qualquer espécie de importância para a existência "real"
carada, em certa medida, por um véu místico, não pede ser tlt'
1
11 do Estado.
[Iセ@
descoberta através dessés conceitos. Em outros termCI, deve·

3. M. Rejsner, Gosudarstvo (0 Estado), t.• parte, 2." ed., Moscou


2. K. Marx, O Capital, L. I, cap. IV, op. cit., p. $8. Bel, br1111· 1918, p. XXXV.
leira: São Paulo, Nova Cultural, 3.• ed., p. 134. , .4· ......
\.-1'!
' '1!.; •
ゥ[、セ@
NLセZゥ@
[セTMイ@
ᄋGセ[@
GセNᄋェ@
.jl,
44 E. B. PASUKANIS
A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 45
Mas o que é o Estado do ponto de vista de sua unidade
econômica? As fronteiras alfandegárias são também um pro- a criação de uma organização administrativa, financeira e mi-
cesso ideológico e psicológico? Poderíamos formular diversas litar real com uma estrutura humana e material correspon-
questões similares, mas todas estas questões alcançariam o dente. O Estado não é nada sem os meios de comunicação,
mesmo ponto. O Estado não é apenas uma forma ideológica, sem a possibilidade de transmitir ordens e determinações e de
mas também, e simultaneamente, uma forma de ser social. mobilizar as forças armadas, etc. Será que o professor Rejsner
A natureza ideológica de um conceito não suprime a ·realidade acredita que os caminhos militares romanos ou os modernos
e a materialidade das relações das quais eie é expressão. meios de comunicação fazem parte do psiquismo humano? Ou
pensa que tais elementos materiais não devem ser computados
Pode-se compreender o neokantiano conseqüente que é entre os elementos de formação do Estado? Evidentemente,
Kelsen, quando ele afirma a objetividade normativa, isto é, então, só nos resta colocar no mesmo plano a realidade estatal
puramente ideal do Estado e quando abandona os elementos e a realidade da "literatura, da filosofia e de outras produções
objetivos e materiais da realidade, mas 'igualmente o real psi- espirituais do homem"5 • 1! pena que a prática da luta política,
quismo humano.· Mas, nós, renunciamós a construir uma teo- da luta pelo poder, contradiga radicalmente esta concepção
ria marxista, logo, materialista, que opere exclusivamente com psicológica e oponha a cada etapa elementos materiais e obje-
experiências subjetivamente vividas. Aliils, o professor Rejs- tivos.
ner, partidário da teoria psicológica de Petrazickij, que "de-
compõe" completamente o Estado em uma série de "emoções A este respeito é imperioso notar . que a conseqüência
imperativas-atributivas", não veria inconveniente, como mos- inevitável de tal ponto de vista psicológico, adotado pelo pro-
tram suas obras mais recentes, em vincular este ponto de vista fessor Rejsner, é úm subjetivismo sem alternativa. "O poder
à concepção neokantiana· lógica e formal de Kelsen4 • Certa- Estatal como criação. de múltiplas psicologias individuais, o
mente, tal tentativa faz honra à vasta cultUra de nosso autor, poder Estatal que se manifesta sob formas tão diversas quanto
mas é efetuada em detrimento da lógica e da clareza metodo- as necessidades do meio, os grupos e as classes, assumirá na-
lógica. Das duas uma: ou o Estado (segundo Petrazickij) é turalmente diferentes figuras na consciência de .um ministro
Upl processo ideológico, ou é (segundo Kelsen) uma idéia' regu- e de um camponês que ainda não chegou à idéia do Estado,
ladora que não tein nada a ver com quaisquer processos que no psiquismo de um homem de Estado, ou de um anarquista
se desenvolveram no tempo e que estão submetidos às leis por princípio, em uma palavra, em pessoas de situações sociais
da causalidade. Busçando compatibilizar estes dois pontos de diferentes, de profissões e de educações diferentes"6 • Sobres-
vista, M. Rejsner cai em uma contradição . que não é nada · sai claramente destas afirmações, se permanecermos no plano
dialética. psicológico, que não há qualquer razão em falar a respeito do
A perfeição formal dos conceitos de "território nacional", Estado como unidade objetiva. 1! somente quarido se considera
de "população", de "poder Estatal': não reflete apenas uma o Estado como uma organização real de dominação de classe
determinada ideologia, mas, também, a realidade. objetiva da (isto é, levando-se em consideração todos os momentos, não
formação çle uma esfera concentrada de dominação, e, mais, apenas os psicológicos, mas igualmente os materiais, estes em
primeiro lugar) que podemos situar-nos em um terreno sólido
e que, efetivamente, se pode estudar o Estado, tal qual ele é
4. M. Rejsner, "Social' naja psikologija i ucenie Frejda" (A psicologia
social e a teoria de Freud), in: Pecat i revoljucija (Imprensa e Revolu-
ção), vol. 11, Moscou, 1925. · 5. M. Rejsner, Gosudarstvo, op. cit., p. XLVIII.
6. ld., ib., p. XXXV.

--
46 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 47

em realidade, e não, somente, as formas subjetivas, inúmeras nomia política marxista ensina, como se sabe, que o capital
e diver111 nu quais ele se reflete e é vivido7 • é uma relação social. Como diz Marx, ele não pode ser desco-
Se, no entanto, estas definições abstratas da forma jurí- berto com um microscópio, mas ele não se deixa, de forma
dica nlo se referem apenas a processos psicológicos, mas, alguma, reduzir a uma experiência vivida, às ideologias e ou-
igualmente, representam conceitos que exprimem relações so-
tros processos subjetivos que se desenvolvem no psiquismo
ciais objetivas, em que sentido, então, diremos que o direito
regulamenta as relações sociais? Com efeito, não quereríamos, humano. :e
uma relação social objetiva. E mais, se observar-
então, dizer que as relações sociais regulam-se por si próprias? mos,· digamos, o círculo da pequena produção, uma passagem
Pois ao dizermos que tal ou qual relação social assume forma progressiva do trabalho destinado a um cliente consumidor
jurídica, não devemos expr'mir uma simples tautologia: que o parà o trabalho destinado a um comerciante, constatamos· que
direito possui uma forma jurídica. 8 as relações correspondentes. assumiram a forma capitalista.
Este argumento parece ser, à primeira vista, uma objeção Isto significa que sucumbimos à tautologia? De forma algu-
muito penetrante e que não nos deixa outra alternativa senão ma; apenas dissemos que a relação social, que denominamos
a de reconhecer o direito como uma ideologia. Todavia, que- capital, se comunicou a outra relação social, ou que transferiu
remos tentar acabar com esta dificuldade. Para facilitarmo-nos a sua forma para aquelá. Assim podemos considerar todos ps
nesta tarefa, recorremos, de novo, a uma comparação. A eco- fenômenos, exclusivamente do ponto de vista objetivo, como
processos materiais e, assim, eliminar totalmente a psicologia
7. O professor Rejsner busca justificar o seu ponto de vista (cf. os
ou a ideologia dos ーイッエ。ァョセウN@ . Por que não seria セァオ。ャ@ para
seus trabalhos sobre a psicologia social e a teoria de Freud) por uma o Direito? Como .ele próprio é uma relação social, pode se
carta de F. Engels a C. Schmidt, na qual Engels examina o problema comunicar mais ou menos com outras relações sociais ou trans-
das relações entre o conceito e o fenômeno. Tomando por exemplo o ferir-lhes sua· forma. Porém, jama!s poderemos abordar o pro-
sistema social feudal, Engels indica que a unidade do conceito e do
fenômeno se apresenta como um processo infinito em sua essência. "0 blema sob esta perspectiva, deixando-nos guiar por umà re-
feudalismo foi alguma vez, em um momento determinado, exatamente presentação confusa do Direito como "forma em geral", assim ;
igual ao seu conceito? Foi esta ordem social uma ficção porque ná sua como a economia vulgar não conseguiu captar a essência das
perfeição clássica só conseguiu ter uma curta duração na Palestina c relações capitalistas partindo do conceito de capital .como
assim mesmo (em grande parte) apenas no papel?" Estas considerações
de Engels não significam, entretanto, que o porito de vista adotado pelo "trabalho acumulado em geral". ·
professor Rejsner, que identifica o conceito e o fenômeno, seja justo. Assim evitaremos esta contradição aparente se chegarmos
Para Engels, o conceito de feudalismo e o conceito de sistema social
feudal não formam uma única coisa. Ao contrário, Engels demonstra a demonstrar, pela análise das definições fundamentais do Di-
precisamente que o feudalismo não correspondeu jamais a seu conceito, reito, que o Direito representa a forma, envolvida em brumas
sem que, contudo, deixasse de ser feudalismo. O conceito de feu- místicas, de uma relação social · especifica. Neste caso não
dalismo, em si, é uma abstração que está fundamentada nas ten- seria absurdo afirmar que ·esta relação transfere, em certas
dências reais do sistema social que nós denominamo• feudal. Na reali- hipóteses, sua própria forma para outra qualquer relação so-
dade histórica, estas tendências confundem-se e cruzam-1e com inumerá-
veis outras tendências e não podem, por este fato, ser observadas em cial ou mesmo à totalidade das relações . •
sua configuração lógica, pura, mas unicamente sob uma forma mais ou
menos aproximada. E o que afirma Engels, ao dizer que. a unidade do
:e exatamente assim para a segunda aparente tautologia,
segundo a qual o Direito regulamenta as relações sociais. Se
conceito e do fenômeno é no fundo um processo infinito.
. 8. Cf. o comentário do livro de P. I. Stucka feito pelo professor retirarmos desta fórmula um certo. antropomorfismo que lhe
Rejsner no Vestnik Socialistiéeskoj Akademii, n.• 1, p. 176. é inerente, ela reduzir-se-á à seguinte proposição: a regula-

l
4.& E. B. PASUKANIS
A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 49
ュヲセM d11 relações sociais em certas condições reveste·se estatais9 ; porém, reconheceu セー・ョ。ウ@ como integrante da dog-
'êl'9iJ.iu:D ,.,..,, Jurtdico. Tal formulação é, sem dúvida, mais · . mático jurídica as normas do primeiro grupo. Com efeito, .
.qpta I hlttoricamente mais justa. Não podemos contestar o núcleo mais sólido de universo ju;rídico (se assim posso
que, IDIImo entre os animais, existe uma vida coletiva e que exprimir-me) situa-se, precisamente, no domínio das relações
・。エセ@ •. resulamentada de uma maneira ou de outra. Mas não de direito privado. :1! lá, precisamente, que. o sujeito de di-
olitarlamoa afirmar que セウ@ relações entre as, abelhas e as for- reito, "a pessoa",- encontra uma encarnaÇão totalmente ade-
mijai 1lo regulamentadas juridicamente. Se passamos aos quada na personalidade concreta do sujeito econômico egoís-
povo,l primitivos, neles verificamos algumas características de ta, do proprietário, do titular de interesses privados. :1! pre-
um embrião de direito, mas a maioria das relações é regula- cisamente no direito privado que o pensamento jurídico mo.
mentada extrajuridicamente, por exemplo, sob a forma ·de man- カ・セウ@ com mais segurança e liberdade, e que as suas constru-
damentos religiosos. Finalmente, mesmo na sociedade burgue- ções assumem formas mais acabadas e mais harmoniosas. · A
sa, atividades tais como a organização d.e serviços postais, de sombra clássica de Aulus Aegerius e de Numerius Negidius, *
estradas de ferro, do exército, etc. só podem ser internamente esses protagonistas das questões do processo romano,· paira
relegadas ao campo da regulamentação jurtdica se as consi- contitiuamente sobre os· juristas que neles se in[;piram. :1! exa-
deramos muito superficialmente e se não nos deixarmos des- . tamente no d)reito privado · que as premissas e os princípios
a priori do pensamento jurídico se incorporam na carne e no
concertar pela forma externa das leis, estatutos e decretos.
s.angue das duas partes em litígio, que pela vingança privada
A planificação ferroviária regula o tráfego nas estradas de reivindicam o seh direito. O papel do jurista, enquanto teó-
(erro em um sentido inteiramente diverso daquele, digamos, rico, coincide, então, com a sua função social concreta. O
. que a lei regula sobre responsabilidade das estradas de ferro dogma do direito privado não é nada além de uma série in-
na entrega de mercadorias transportadas. O pririleiro tipo de finita ·de considerações a favor e contra reivindicações imagi-
regulamentação é sobretudo técnico, o segundo basicamente nárias ou demandas eventuais. Aliás, em cada parágrafo deste
jurídico. A mesma relação existe entre um plano de mobili· sistema esconde-se o cliente abstrato, invisível, pronto a utili-
zação e a lei sobre o serviço militar obrigatório, entre a inves- zar as teses em confronto como conselho jurídico. As.
tigação criminal e o código de processo penal. especializadas polêmicas doutrinárias dos juristas acerca
Nas páginas seguintes voltaremos a abordar as diferenças da significação do erro ou sobre part!lha do ônus da
existentes entre as normas técnicas e as normas jurídicas. As- prova' não se distingut(m das disputas análogas que ocorrem
ante os tribunais. A diferença não é maior do que a ex!s-
sinalaremos provisoriamente que a regulamentação das' rela-
tente entre os torneios de cavalaria e as guerras feudais. Os
ções sociais possui um relativo caráter jurídico, isto é, pode, torneios, como sabemos, por vezes, foram disputados encar·
em certa medida, fundamentar-se na relação fundamental, es- niçadamente exigindo tanto dispêndio ·de energia e fazendo
.pecífica, do direito\ tantas vítimas quanto os combates reais. Somente quando
A regulamentação ou normatização das relações ウッ」ゥセ@ a economia individualista for substituída por uma produção
só é homogênea e inteiramente jurídica quando se faz uma ·
reflexão superficial ou puramente formal. Efetivamente, par-
tindo-se deste ponto de vista, existe entre· a.s diversas atividades 9. Cf. L. Gumplowicz, Rechtsstaat und Sozialismus, Innsbntck,
humanas diferenças muito marcantes. Gumplowicz já estabele- 1881.
ceu um limite .muito preciso entre ..o direito privado * Célebres autor e réu, nas figurações clássicas do Processo ro·
. e as normas mano (N. do T.).

\1
50 E. B. P ASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 51

e uma distribuição social planificada, é que terá fill! este te, possuem caráter técnico. A aplicação destas regras pode
dispêndio improdutivo das forças intelectuais · do hoinem.\0 . estar vinculada ao exercício de uma coação sobre o doente.
Uma das premissas fundamentais da regulamentação ju- Porém, enquanto esta coação for considerada do ponto de vis-
rídica. é, portanto, o antagonismo de interesses privados. Este ta da finalidade médica, tanto para aquele que a exerce, como
antagonismo é tanto a condição lógica da forma jurídica para aquele que a s::>fre, ela não será nada mais do que uma ação
quanto a · causa real âa evolução de superestrutura jurídica. tecnicamente racional. O conteúdo desta regra é determinado no
O comportamento dos homens pode ser determinado pelas âmbito da ciência médica e evolui à medida que esta progride.
regras mais complexas, mas o momento jurídico deste regu- Aqui o jurista nada tem a fazer. A sua tarefa começa onde se
セᄋG@
lamento começa onde diferenças e oposições de interesses co- é obrigado a abandonar este terreno de unidade de objetivos
meçam. Gümplowicz diz: "o litígio é o elemento fundameJl· e assumir outra perspectiva, a perspectiva de sujeitos distintos
tal de todo fato 'jurídico". A unidade de objetivo, ao con- que se opõem 'e que possuem, cada qual, seus próprios inte-
trário, representa a condição' para a regulamentação técnica.
c resses privados. O doente e o médico transformam-se, então,
Eis por que as normas jurídicas relativas. à responsabilidade em sujeitos possuidores de direitos e deveres, e as regras que
das estradas de ferro pressupõem direitos pr:vados, interesses os unem, em normas jurídicas. Destarte, a coação não é mais
privados diferenciados, enquanto que .. as normas técnicas do considerada apenas a partir do ponto de vista da racionali-
tráfego ferroviário pressupõem um objetivo unitário, comO, por dade do objetivo,· mas, igualmente, do ponto de vista de seu
exemplo, o rendimento máximo. Tomemos outro exemplo: a caráter formal, quer dizer, juridicamente lícito.
cura de um doente pressupõe uma série de regras, tanto para Não é difícil constatar que a possibilidade de adotar um
o doente quanto para a equipe médica. Uma vez que tais ponto de vista jurídico corresponde ao fato de que as diferen-
regras são estabelecidas visando ao restabelecimepto do doen- tes relações na sociedade de produção mercantil se calcam so-
bre o tipo de relações de trocas comerciais e assumem, em
conseqüência, a forma jurídica. Por igual, é plenamente na-
10. O pequeno trabalho de T; Jabloclcov, Bsオウー・ョセゥカッ@ uslovie i tural, para os juristas burgueses, . deduzir esta universalidade
bremja dokazyvanija" (A condição suspensivll e o tempo da prova), in:
furidiceskij Vestnik, 1916, n:• 15, que expõe a história e a literatura da forma jurídica quer seja de· propriedades eternas e abso-
do problema jurídico particular e a partilha do ônus da prova entre as lutas da natureza humana, quer seja do fato de que os atos
partes desde que o acusado invoque uma condição suspensj.va, dará· do poder público aplicam-se a qualquer objeto em geral. Vale
uma idéia da extensão e da importância do dispêndio da inteligência a pena provar este último ponto. Não é verdade que houve
humana. O autor não cita menos do que cinqüenta especialistas que no código burguês do império russo pré-revolucionário um ar-
escreveram sobre esta questão. Ele observa "que a literatura sobre a
matéria vem desde os pós-glosadores e dá a conhecer que foram 」ッョウセ@ 'ti.go que. obrigava o homem a "amar sua mulher como seu
truídas "duas teorias" sobre a questão, que dividiram o meio jurídico próprio corpo?" Mas mesmo o jurista mais audacioso jamais
especializado em dois .campos mais ou menos iguais. Éle encantou-se ousaria construir uma relação jurídica correspondente e que
pela grande riqueza dos argumentoa avançadps, pelas duas partes, há possuísse possibilidade d,e processo judicial.
cem anos (o que manifestam(lnte não impediu pesquisadores posterior,es
de retornarem ao problema com os mesmos argumentos em diversas Ao contrário, por/mais cerebrina e irreal que possa pa-
nuances), rende homenagem à "penetrante análise" e à "perspicácia dos recer tal ou qual construção jurídica, ela repousará no entanto,
procedimentos metodológicos" dos polemistas especializl!dOs e da ·a co- sobre uma base sólida, se se mantiver nos limites do direito
nhecer que a polêmica inflamou de ial forma as paixões, que os adversá- privado, e em primeiro lugar do direito de propriedade - de
rios acusavam-se mutuamente, sob o fogo da ação, da difamanção ·e da
difÚsão de f,alsos rumores acusando reciprocamente às suas teorias de outra forma seria impossível compreender como as idéias fun-
imorais e desonestas. damentais dos juristas romanos guardaram sua significação até
52 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 53

nossos dias e permaneceram como o direito escrito de toda social específica destas relações, ele retornou à habitual defi-
a sociedade de produção mercant.il. nição formal, ainda que esta esteja circunscrita pelas carac-
Assim sendo, antecipamos, até um certo ponto, a res- terísticas de classe. Na fórmula geral de Stucka, o Direito não
posta da questão posta no início: onde buscar esta relação mais figura como uma relação social específica, mas como
social sui generis da qual a forma jurídica é o reflexo inevi- o conjunto de relações em geral, como um sistema de relações
tável. A seguir tentaremes demonstrar, em detalhe, que esta que correspondem aos interesses das classes dominantes e sal-
relação é a relação de proprietários de mercadorias entre si. 11 vaguarda tais interesses pela violência organizada. Por conse-
A análise habitual, que encontramos em qualquer filosofia do guinte, no interior deste sistema de classes, o Direito não
(l: \
direito, constitui a relação jurídica como relação por excelên- pode ser separado, enquanto relação, das relações sociais em
cia, como relação na vontade dos homens em geral. O pen- geral, e Stucka não está habilitado a responder à insidiosa
samento parte dos "resultados acabados do processo de pergunta do professor Rejsner: como as relações sociais trans-
evolução", das "formas de pensamentos corrent(fs", sem levar formam-se em instituições jurídicas, ou, então, <:orno o direito
em considera<;:ão suas origens históricas. Enquanto que, em tornou-se o que é?13
realidade, as premissas naturais do ato de troca tornam-se, A definição de Stucka, talvez porque provenha do Co-
em função da evolução da economia mercantil, as pre- missariado do Povo para a Justiça, está adaptada às necess!-
missas naturais, as formas naturais de qualquer relação hu- dades dos juristas práticos. Ela demonstra-nos os limites em-
mana, à qual ·imprimem sua marca, os atos de comércio apre- píricos que a história traça, a cada momento, à lógica jurídica,
sentam-se, ao contrário, na cabeça dos filósofos unicamente mas não põe a nu as raízes profundas desta lógica. Esta defi-
como casos particulares de uma forma geral que para eles nição desvenda o conteúdo de classe das formas jurídicas,
assumiu um caráter de eternidadeY mas não explica-nos por que este conteúdo assumiu tal forma.
O camarada Stucka, em nosso entender, colocou, corre- Para a filosofia burguesa do direito, que considera a re-
tamente, o problema jurídico como um problema de relações lação jurídica como uma forma natural e eterna de qualquer
sociais. Mas, em lugar de dedicar-se à pesquisa da objetividade relação humana, tal questão não está colocada. Para a teoria
marxista, que se esforça em penetrar nos mistérios das formas
sociais e de reconduzir todas as relações humanas ao próprio
11. V. V. Adorackij, O gosudarstve (Do Estado), Moscou, 1923, homem, esta tarefa deve estar colocada em primeiro plano.
p. 41: "A influência enorme da ideologia jurídica sobre todo o modo
de pensamento dos membros 'ortodoxos' da sociedade burguesa repousa
·sobre o enorme papel que desempenha a ideologia jurídica na vida
desta sociedade. A relação de troca completa-se sob a forma de atos
jurídicos de compra e venda, de empréstimo, de penhor, de locação, etc."
E:. "O homem que vive na sociedade burguesa é constantemente consi· 13. P. I. Stucka pensa ter respondido esta questão um ano antes
derado como sujeito de direito e de deveres. Ele efetua diariamente uma da publicação do meu trabalho (cf. Revoljucionnaja . .. , op. cit., 3.• ed.,
quantidade inumerável de atos jurídicos que produzem conseqUencias p. 112). O Direito, enquanto sistema particular de relações sociais, carac-
jurídicas as. mais variadas. Eis por que nenhuma sociedade possui tanta teriza-se, segundo ele, pelo fato de que assenta-se sobre a violência
necessidade da idéia. de direito; precisamente pelo seu uso prático quo- organizada, isto é, estatal, de uma classe. Naturalmente já· conhecia
tidiano nenhuma sociedade submete esta idéia a uma.. elaboraçllo tão esta opinião, mas continuo a sustentar, depois de uma segunda explicação,
cuidada, nenhuma a ·transforma em um instrumento tllo necessário às que, em um sistema de relações 'correspondentes aos interesses da classe
relações quotidianas, quanto a sociedade burguesa". dominante, erigida sobre a violência, podem e devem ser extraídos os
42. K. Marx, O Capital, I, cap. I, p. 92. Ed, braallelra: Slo Paulo, momentos que dão fundamentação material ao desenvolvimento da forma
Nova Cultural, 1988, 3.• ed., p. 70. jurídica.
Capftulo Três

RELAÇÃO-E NORMA

Assim como a riqueza da sociedade capitalista tem a for-


ma de uma enorme acumulação de mercadorias, a sociedade, ,
em seu conjunto, apresenta-se セッュ@ uma cadeia ininterrupta
de relações jurídicas. A trocarde · mercadorias pressupõe uma
economia atomizada. Os vínculos entre as diversas unidades
econômicas priv1;1das e isoladas são mantidos a cada vez ·que
os contratos são •firmados. A relação jurídica entre os Sujeitos
é o avesso da relação entre os produtos do trabalho tornados
mercadoria. Este fato não impede que certos juristas, como
por exemplo L. Petrazickij; coloquem as coisas de cabeça para
baixo. Este acredita que não é a forma mercantil アセ・@ engendra
a forma jurídica, mas que, ao contrário, os fenômenos econô-
micos estudados pela economia ーッャ■エゥ」セ@ "representam o com-·
·portamento ゥョ、カセオ。ャ@ e coletivo de hothens determinados por
modificações típicas, que possuem sua fonte no direito civil
(propriedade privada, obrigações e contratos, direito de famí-
lia e direito das sucessões)".1
A relação jurídica é a célula central do tecido jurídico e é
somente nela que o direito realiza o seu movimento real. Em\.
contrapartida, o direito enquanto conjunto de .normas é apenas
uma abstração sem vida.
· Por isso, muito logicamente, a escola nórmativista, com
Kelsen à frente, nega completamente a relação entre os sujei·
tos; reluta em co).isiderar o Direito sob o ângulo de sua exis-

1. L. Petrazickij, Vvedenie v izucenie .prava i nravstvennosti (In·.


tradução ao estudo do direito e da moral), t. 1, p •. 77.

\
56 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 57

tência real e concentra toda sua atenção no valor formal das das normas e "do que é conforme ao direito" apenas pode
normas. "A relàção jurídica é uma relação pertencente à or- manter a sua autonomia dentro de limites muito estreitos e.
. dem jurídica, mais exatamente ao interior da ordem jurídica, desde que a tensão entre· o fato e a norma não ultrapasse um
e não uma relação .entre sujeitos de direito que se opõem a determinado ponto. Na realidade material a relação prevalece
esta ordem" .2 Segundo a concepção corrente, o direito .objetivo sobre a norma. Se_ nenhum devedor quitar a sua dívida, então
ou a norma fundamentam a relação jurídica, seja logicamente, a norma correspondente deve ser considerada inexistente de
seja realmente. Segundo esta representação, a relação jurídi- fato. E_ se, assim mesmo, quiséssemos afirmar a existência
ca é gerada pela norma objetiva. "A norma do direito ao rece- desta regra, seria necessário, então, fetichizar a norma. Mui·
bimento de uma dívida não existe· porque os credores habi- tas teorias do direito empenham-se exatamente nesta tarefa
tualmente. façam esta exigência, mas, pelo contrário, os cre- e a fundamentam com 」ッョウゥ、・イ。￧セ@ metodológicas ·muito sutis.
dores cobram o débito porque a norma existe; o Direito não O Direito enquanto fenômeno social objetivo não pode
é criado a partir da abstração dos casos verificados, mas como esgotar-se na norma, seja ela escrita ou não. A norma; como
resultado de uma dedução efetuada a partir de uma regra tal, isto é, o seu conteúdo lógico.. ou é deduzida diretamente
formulada por alguém".3 · · · de relações preexistentes, ou, então, representa, quando pro-
A expressão "a norma gera a relação jurídica" pode ser mulgada como lei estatal, um sintoma-que nos permite prever,
compreendida em . duplo sentido: real· e lógico. Examinemos com uma certa verossimilhança, o futuro nascimento de rela-
a primeira hipóte,se. 1! necessário observar, de início - e os ções correspondentes. Para afirmar a existência· objetiva do
próprios juristas pesquisaram o suficiente para convencerem- direito não é suficiente ·conhecer o seu conteúdo normativo,
se reciprocamente - , que o conjunto de narinas escritas ou mas é necessário saber se este conteúdo normativo é realizado
não escritas pertence, em si, ao domínio da criaÇão literária.4 na vida pelas relações sociais. A fonte habitual de erros neste
Este conjunto de normàs adquire unia significação reaf, ape- caso é o modo de pensar dogmático que confere, ao conéeito
nas graças às relações que セ ̄ッ@ concebidas como derivando de norma vigente, uma significação .específica que não coin·
dessas normas e .que delas derivam efetivamente. Mesmo o cide -com aquilo que 0 sociólogo ou o historiador compreen·
partidário mais conseqüente do método puramente norma.tivo, dem por existência objetiva dó ·direito. Quando o jurista dog-
Hans Kelsen, teve que reconhecer que era necessário conferir, mático deve decidir se uma forma jurídica determinada está"
de uma formá ou de outra, um elemento de vida real, quer êm vigor ou não, ele não busca .estabelecer genericamente a
dizer,. de conduta humana efetiva/ à ordem normativa ideal.5 existência ou nãó de um fenômeno social objetivo 、・エイュゥセ@
Em realidade, aquele que considere as leis da Rússia czarista nado, mas, unicamente, a presença ou não de um vínculo lógico
como direito atualmente vigente . está prontQ para ser inter- entre a proposição normativa dada e as premissas normativas
nado em um hospício. ·O métqdo jurídico formal que só cuida mais gerais.6
Não existe, para o jurista dogmático, no interior dos es-'
2. H. Kelsen, Dás Problem der Souveriinitiit, 1920, p. 125. treitos limites de sua atividade puramente técnica, verdadei-
3. s←イセ・ョカゥ」L@ Obsi:aja teorija prava (Teoria geral do Direito), ramente, nada a1ém das normas; ele pode identificar, com
1910, p. 74. muita serenidade, direito e norma. No que. . 」ッョセュ・@ ao Di-.
4. ":e preciso levar em consideração que as leis apenas criam .o
'Direito', na medidà em que se realizam e que as normas saiam da 6.1 Na lítlgua russa utilizamos para designar o ditejto efetivo e o
'existência no papel' para se afirmarem na vida, humana como Poder" direito ,vigente termps · que possuem o mesmo radical. Em alemão a
(A. Hold V. .Femeck, Die Rechtswidrigkeit, Iéna, 1903, p. 11). diferenÇa lógica torna-se mais evidente pelo emprego de dois verbo$
5. H. Kelsen, Der soziologische und der juristische Staatsbegriff diferentes: "wirken" no sentido de ser efiéaz, e "gelten" no sentido de
Tübingen, 192!, p. 96. ser válido, ,isto é, vinculado a uma premissa normativa mais geral.
58 E. B. PASUKANIS . A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 59

.reito costumeiro, ele deve, queira ou não,. voltar-se para a rea- Mas, ainda que sob esta formulação modificada, esta tese
lidade .. Mas se a lei estatal é para o ェオセゥウエ。@ cj supremo prin- pode ser submetida a uma outra crítica. Se compreendermos
cípio normativo, ou, para empregar a expressão técnica, a por forças sociais reguladoras apenas estas mesmas relações
fonte do direito, as considerações do jurista dogmático acerca em sua regularidade e continuidade, caímos em uma simples
da existência do direito· vigente nada significam para O· his- tautologia; mas se por isto entendermos uma ordem particular,
toriador. que queira estudar o direito efetivamente existente. organizada conscientemente, que garante e preserva esta rela-
O estudo científico, vale dizer, teórico, só pode levar em ção, o erro lógico torna"se evidente. Não se po.de afirmar,
consideração realidades de fato. Se certas relações constituí- com efeito, que a relação entre o credor e o ·devedor é criada
ram-se em concreto,; isto significa que um direito correspon- pelo sistema coativo de cobrança de dívidas que existe no
dente nasceu; mas sé· umà iei ou decreto foran1 editados sem Estado . em tela. Esta ordem objetivamente existente, certa-
que nenhuma relaçãO correspondente tenha. aparecido, na prá- mente, garante a relação, preserva-a, mas não a cria de for-
tica, isto significa· que. foi feito um ensaio セ@ cdação de .、ゥセ@ ma alguma. A melhor prova de que não se trata de uma
rei to, mas sem nenhum sucesso. Este ponto de vísta não equi- querela verbal e escolástica é que se pode_ imaginar os mais
vale à negação. da vontade de classe como fator da evolução diversos graus de perfeição nó · ヲオョ」ゥッ。ュセエ@ desta regula-
ou à renúncia da intervenção consciente no curso do desen- mentação social, externa e coativa, e, em 」ッョウ・アセゥ。L@ os mais
volvimento ·social ou, . ainda, ao "economismo' 1; .ao fatalismo diversos graus na preservação destas relações, justificando to·
e outras coisas execráveis. A ação política. revolucionária pode· dos através de exemplos históricos, sem que estas relações sub-
superar muitas dificuldades; pode realizar a.mànhã aquilo que sistam à menor modificação na sua própria existência. Pode-·
não existe hoje;. :filas não pode fazer existir; subitamente, mos, igualmente, figurar um caso limite onde não exista, ao
aquilo que não existiu no passado. Assim, quand0- afirmamos lado de duas partes que entram mutuamente em relação, uma
que o projeto de edificar um prédio e a ·pr6pria planta deste terceira força capaz de estabeleéer uma norma e garantir a
prédio não representam o verdadeiro pFéqio, isto não . quer
sua observância: por exemplo, um contrato entre os Var e os
dizer _que a sua construção não necessita de pfOfeto e de plan-
Gregos. Mesmo neste caso, ainda que a relação subsista. 8 Mas
ta. Mas, se a decisão não ultrapassou o .plano.; :njo · podemos ·
basta supor o desaparecimento de uma das partes, quer dizer,
dizer ·que o prédio tenha '>ido construído •..
de um dos sujeitos enquanto portador de um interesse parti-
Podemos modificar a proposição acima,. e :C.plocar em pri·
cular autônomo, para que, de pronto, desapareça a possibili·
meiro lugar não mais a norma como tal, mas as forças obje·
dade da própria relação.
tivas reguladoras e atuantes na sociedade, .. Ç>U ·segundo a ex-
pressão dos juristas, a ordem jurídica pbjetiva.7
8. Todo o sistema jurídico feudal repousava sobre tais relações
7. Aqui é necessário obserirar .que uma atividade social reg1,1ladora contratuais não garantidas por uma "terceira força". Assim, também,
o direito internacional moderno não conhece qualquer coação organi-
pode igualmente dispensar normas estabelecidas a prlorl. :e o que prova
zada do exterior. Certamente tais relações jurídicas não garantidas não
a criação jurisprudencial do direito. Sua ーセッ、オ￧ャ@ foi part'icularmente
grande nos períodos que não conheceram a prodüçlio centralizada das se caracterizam pela sua estabilidade, mas isto não nos autoriza a negar-
leis. Assim,· por exemplo, O conceito de uma norma acabada, dada lhes existência. Um direito absolutamente constante não existe; por
exteriormente, era inteiramente estranho aos tribunais da antiga Germâ· outro _lado, a estabilidade das relações privadas, no Estado burguês mo·
nia. Todas as compilações de regras eram, para os jurados, meios auxi- demo "beiJl ordenado", não assenta-se unicamente sobre a polícia e os
liares que lhes permitiam formar suas próprias opiniões e não leis obri- tribunais. Os débitos não são pagos pelos indivíduos porque "de qual-
gatórias (S. Stinzing, Geschlcht1 der deutschen Rechtswissenschaft, tomo I, quer forma seriam pagos", mas, também, para que possam conservar o
J880, p. 39). .
crédito p;ua o futuro. セ@ o ·que ressai, no mundo dos negócios, das con-
seqüências práticas das letras de câmbio levadas a. protesto.

-......
60 E. B. PASUK.ANIS
A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 61
Podem replicar-nos que, se fizermos abstração da nor-
ma objetiva, os cc:>nceitos de relação jurídica e de sujeito de quer .perspectiva, como o momento primário, devemos então,
direito ficam flutuando no ar e não podem ·ser captados por antes de buscar uma determinada superestrutura jurídica, pres-
nenhuma definição. Nesta objeção exprime-se o sentido emi· supor a existência de uma autoridade estabelecedora de nor-
nentemente prático e empírico da dogmática jurídica moderna, mas, em outros termos, de uma qjZァ。Nエ|ゥz⦅ャセッ@ ⦅jLッャセエゥN@ Devemos -l-
a qual está 'permanentemente convencida de uma única verdade: concluir que a superestrutura jurídica é uma conseqüência da ·
superestrutura política.
a saber, a de que o processo estaria perdido se a parte que o
ajuizou não pudesse apoiar-se em um artigo de uma lei. O próprio Marx salienta que as relações de propriedade,
Teoricamente, contudo, a convicção de que o sujeito de direito que constituem a camada fundamental e mais profunda da
e a relação jurídica não existem fora da norma objetiva é tão superestrutura jurídica, se .encontram . em contato tão estreito
errônea quanto a convicção segundo a qual o valor não existe com a base, que aparecem como sendo as "mesmas relações
e não pode ser definido fora da oferta e da procura, por que de produção",· das quais são "a expressão jurídica". O Esta-
ele só se manifesta empiricamente nas ftutuações do preço. do, ou seja, a orgahizaçã::> da dominação política de classe,
O pensamento jurídico dominante, que coloca em pri- nasce sobre o terreno de relações de produção e ·de proprie
meiro plano a norma como regra de conduta estabelecida au- dade determinadas. As relações de produção e sua expressão
toritariamente, não é menos empírico, e da mesma forma, como jurídica formam o que Marx denominou, na esteira de Hegel,
podemos observar nas teorias econômicas, possui um forma- sociedade civiL A superestrutura política e notadamente a vida
lismo extremo, totalmente desligado da vida. política estatal oficial são momentos secundários e derivadÇ>s.
A oferta e a procura podem existir para todas as espé- O modo pelo qual Marx apresenta as relações entre a
cies de objeto, dentre os quais aqueles que não são produtos sociedade civil e o Estado está na seguinte citação: "O indi·'
do trabalho. Disto conclui-se que o valor pode ser determi- víduo egoísta ·da sociedade burguesa esforça-se, em sua repre-
nado por fora da relação entre o tempo de trabalho social- sentação não sensível e em sua representação sem vida, por
mente necessário à produção do objeto em questão. A apre- se engrandecer ao ponto de se tomar por um átomo, isto é, por
ciação empírica, individual, serve de fundamento à teoria for- um ser sem .a menor relação_, bastando-se a si próprio, sem
mal-lógica da utilidade marginal. Por igual, as normas ema- necessidades, absolutamente pleno, em plena felicidade, mas
nadas do Estado podem relacionar-se aos campos mais diver· a desafortunada realidade semivel não trata da imaginação
sos e possuir características as mais variadas. Conclui-se, entlo, deste indivíduq; e cada um dos seus sentidos constrange-o a
que a essência do direito esgota-se nas normas de conduta, pensar no significado do mundo e dos indivíduos que existem
ou em ordens provenientes de uma autoridade superior, e além de si próprio; e até o seu profano estômago lembra-lhe
que a própria matéria das relações sociais não contém os ele· diariamente que o mundo fora dele não se encontra vazio e que,
mentos geradores da forma jurídica. pelo contrário, é ele que verdadeiramente o enche.. Cada uma
A teoria formal-lógica do positivismo jurídico baseia-se de suas atividades e de suas. propriedades essenciais, cada um
no fato empírico de que as relações que se encontram sob a de seus instintos. vitais toma-se carência, uma neéessidade,
proteção do Estado são as que estão mais bem garantidas. que transforma seu egoísmo, seu interesse pessoál em interesse·
· A questão que examinamos reduz-se - para· usar a ter- por outras coisas e outros homens além dele. Mas, como a
minologia da concepção materialista da história - ao proble· セイ↑ョ」ゥ。@ de um dado indivíduo não tem por si mesma sentido
ma das relações recíprocas entre a superestrutura jurídica e a inteligível para b outro indivíduo egoísta que· possua os meios
superestrutura política. Se consideramos a norma, sob qual· de satisfazer essa. carência, cotno a 」。イセョゥ@ não ·tem pois
relação imediata eom a sua satisfação, todo o·· indivíduo se
A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 63
62 E. B. PASUKANIS

Assim sendo, o caminho que vai da relação de produção


encontra obrigado a criar esta relação fazendo-se igualmente à relação jurídica, ou relação de propriedade, é mais curto do
intermediário entre a carência de outrem e os objetos desta que pensa a autodertominada dogmática positiva, que não pode
carência. セ@ pois a necessidade natural (são as propriedades passar sem um elo intermediário: o poder de Estado e suas
セウ・ョ」ゥ。@ do. homem, por muito alienados que pareçam), é o normas. O homem que produz em sociedade é ·o pressuposto
·interesse que mantém unidos· os membros da sociedade· bur- do qual parte a teoria econômica. A teoria geral do direito,'
guesa cujo vínculo real é, portanto, constituído peia vida civil na medida em que trata de definições fundamentais, deveria
e não pela vida política. o que assegura a coesão dos átomos partir igualmente dos mesmos pressupostos. Destarte, por
da ウッ」ゥ・、セ@ burguesa não é, pois, o Estado, mas o fato de exemplo, é necessário que a relação. econômica de troca exista
tais átomos serem átomos apenas na representação, no céu para que a relação jurídica contratual de compra e venda possa
de sua imaginação, e o de, na realidade, serem seres prodigio- nascer. O poder político pode regulamentar, módificar, deter-'.
samente diferentes dos átomos: ·não egotsmos divinos, mas ho- minar, concretizar, de maneira muito diversa, a forma e o
mens egoístas. Nos nossos dias, apenas a superstição política conteúdo deste ato jurídico, com a ajuda das leis. A lei pode
imagina que a coesão da vida civil é produto do Estado, mas, determinar de maneira muito precisa o que pode· ser vendido
na realidade, a coesão do Estado, esta sim, é mantida como e comprado, bem como em que condiç9es e por quem.
fato da vida civil' 19 • ·
Em outro ensaio, A critica moralizante ou a moral criti- A dogmática jurídica conclui, então, que todos . os ele-
ca, Mat?t retoma ao mesmo problema. Ele polemiza com o mentos existentes na relação jurídica, inclusive o próprio su-
representante do セᄋウッ」ゥ。ャュ@ verdadeiro", Karl Heizen, e es· jeito, são criados pela norma. Na realidade, a existência de
creve: "Aliás se a burguesia mantém polit:camente, isto é, por uma economia mercantil e monetária é naturalmente a condi·
sua força política, 'a injustiça nas relações de propriedade', ção fundamental sem a qual todas estas normas concretas não
não foi ela que a criou. 'A ·injustiça nas· reláções de proprie- possuem qualquer significado. セ@ · somente sob esta condição
dade', tal qual é condicionada pela moderna divisão do traba· que o sujeito de direito possui um substrato material na _pes-
lho, a moderna forma de troca, a concorrência, a concentra- soa do sujeito econômico egoísta que. a lei não cria, mas que
ção, etc., de forma alguma possui a sua origem na supremaCia
poUtica da burguesia; ao contrário, é a supremacia política da
burguesia que possui sua fonte nestas modernas relações de representa uma deformação tanto mais grosseira quanto mais concluem
que uma revolução política do proletariado é ·impossível e inútil. Ein
produção, às quais os economistas burgueses proclamam como outras palavras, transformam o marxismo セュ@ オュ。セ@ doutrina fatalista e,
.r,
leis necessárias, eternas" 10 no fundo, contra-revolucionária. Em· realidade, estas mesmas relações 、セ@
produção, de onde decorre a dominação política da 「オセZァ・ウゥ。L@ 'engendram
9. K. Marx, A Sagrada familia (1845), trad. francesa de Ema naturalmente, no curso de seu desenvolvimento, as premissas .do· cresci·
Cogniot, Éd; Sociales, Paris,. 1963, pp. 146-147. Há edição portÜguesa mento das forças do proletariado e, em última instância, de sua .vitória
(N. do T.). política sobre a burguesia. Só podemos fechar os olhos a esta dialética
10. K. Marx, "A crítica moralizante ou a moral crítica", in: CEuvres se nos encontramos, conscientes ou inconscientes, ao lado ·da burguesia
philosophiques, tradução Molitor, Ed. Costes, Paris, 1947, tomo III, p. 130. contra a classe operária. Nos limitamos, nesta altura, a estas poucas
Seria um grande erro concluir, a partir de algUmas linhas, que a organi· observações, uma vez que a nos!)a tarefa não consiste em refutar falsas
zação política· não desempenha nenhum papel. e que o proletariado, em conclus.ões extraídas da teoria marxista das relações entre a base e a super-
particular, não possui necessidade de lutar _para chegar ao poder do Es· estruma (mesmo porque estas já foram brilhantemente refutadas pelo
tado, uma vez que, seja como for, isto não constitui a coisa essencial. marxismo revolucionário em sua luta contra o sindicalismo e o refor·
Os sindicalistas cometem este erro, fazendo-se campeões da "ação di- mismo), mas, sim, em. extrair desta teoria histórica certos ensinamentos
reta". A teoria dos reformistas, que estão convencidos do princípio de úteis à análise da estrutura ·jurídica.
que a dominação política da burguesia decórre das relações de produção,

<NM"HWt!;·t-#j.•"
64 E. B. PASUKANIS \ A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 65

eneontra .diante de si. Onde inexiste este substrato, a relação de que "todas as instituições fundamentais do direito privado
jurídica correspondente é, a. priori, inconcebível. rom1;1no" nascem, ''a título de privilégios da classe dominante.
O problema toma-se mais claro se o considerarmos .em como vantagens de direito público" destinadas a consolidar
sua dimensão dinâmica e histórica. Nesta hipótese vemos como o poder nas mãos de um grupo vitorioso.
a relação econômica é, em seu movimento real, á fonte da
relação jurídica que )lasce s0mente no momento do 、・ウ。」ッイセ@ Não se pode negar a esta teoria uma· força de conVIcçao,
Na lide, quer dizer, no processo, os sujeitos econômicos pri- na medida ém que ela destaca o momento da luta de c1asses
vados aparecem como partes, isto é, como protagonistas da e põe fim às representações idílicas sobre a origem da pro-
superestrutura jurídica. O tribunal representa, mesmo em sua. priedade privada e do poder de Estado. Mas Gumplowicz,
forma mais primitiva, a superestrutura jurídica por excelência. entretanto, comete dois grandes erros . ·Em primeiro lugar, ele
Através do pr<)cesso judiciário, o .momento jurídico separa-se atribui à violência, enquanto tal, um papel determinante e
do momento econômico e surge como um momento autônomo. esquece completamente que toda ordem social, igualmente a
Historicamente, o direito comeÇou com o. litígio, isto 'é, COJl! baseada na conquista; é determinada pelo. nível de forças· pro-
a ação judicial; foi somente mais tarde que o direito valeu-se dutivas sociais. Em segundo lugar, faz desaparecer, quando
de relações práticas ou puramente econômiÇas já preexistentes fala do Estado, toda a distinção entre as relações primitivas
que, assim, desde o início assumem um aspecto dúplice: eco- de dominação e a ''autoridade pública" no sentido moderno,
nômico e jurídico. A dogmática jurídica esquece esta suces- burguês, do termo .. ]! por isso que, em sua concenção, o direi-
são histórica e começa pelo resultado acabado, pelas· normas to privado originou-se do direito público. Mas, a partir da
abstratas pelas quais o Estado preenche, por assim dizer, todo mesma constatação, a saber, que as instituições essenciais do
o espaço social, ao conferir propriedades jurídicas a todas as jus civile romano antigo - propriedade, família, sucessão -
ações que se realizam. Segundo esta concepção elementar, não foram criadas pelas classes dominantes para consolidar o seu.
é o conteúdq material, econômico, das próprias rel1;1ções que poder, podemos chegar à -conclusão diametralmente oposta, a
,é O momento fundamental, determinante, nas relações de CQm· saber': ''todo direito público foi, em um tempo, direito priva-
· pra e. vendá, mas entre mutuante e mutuário, etc., mas o im- do". Isto é mais correto ou, mais exatamente: mais falso, na
perativo dirigido em nome do Estado às pessoas singulares; medida em que a oposição entre o direito privado e o direito
este ponto de partida do jurista prático é tão utilizável para público corresponde a relações muito mais desenvolvidas e
a análise e explicação da ordem jurídica concreta quanto para perde na significação quando é aplicada a épocas primitivas.
a análise da forma jurídica em suas determinações mais ge- Se as instituições de direito civil romano representam efeti-
rais. O poder de Estado confere clareza e estabilidade ·à es- vamente uma misturà. de relações jurídicas públicas e priva-
trutura jurídica, mas 'não cria as premissas que estão enraíza· das - para utilizar a tenninoÍogia moderna·-, elas 」ッョエ↑セL@
das nas reiações materiais, isto é, nas relações de produção. em igual medida, os elementos religiosos e, no sentido amplo
Gumplowicz chega, como se sabe, à 」ッョャオウセ@ estrita- do termo, elementos rituais. A este nível da evolução, por ·con-
mente oposta; ele proclama o primado do Estado, ou seja, da seguinte, o ·momento jurídico não poderia, ainda, distinguir-
dominação política11 • Ele se volta para a história do direito se dos outros e jortiori, encontrar uina expressão em um siste-
romano e crê ter provado que ''todo direito privado foi, em ma de conceitos gerais; O desenvolvimento do direito c0mo
um tempo, direito público". Isto provém, segundo ele,· do fato, セエ・ュ。@ não foi engendrado pela éxigência das relações de do-
minação, mas pela exigência das trocas comerciais entre as
pequenas populaçõés que, precisamente, não estavam subme-
11. Cf. Gumplowicz, Rechtstaat und sociqlismus, op. cit., § 35. tidas a uma esfera de poder ánico. A propósito, é o que re-
66 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 67

conhece o próprio Gumplowicz12 • As relações comerciais com raiz do sistema de ·direito privado. Ao contrário, a lógica das
as tribos estrangeiras, com os peregrinos, com os problemas e relações de dominação e de servidão, apenas em parte, cabe
com o conjunto de pessoas que, em geral, não faziam parte no sistema de conceitos jurídicos. E por isto que a concepção
da comunidade de direito público (segundo a terminologia de ,; jurídica do Estado não poderá . jamais tornar-se uma teoria e
Gumplowicz), deram vida ao jus gentiuni, modelo de superes- permanecerá, sempre, como uma deformação ideológica dos
trutura jurídica em sua forma pura. Contrariamente ao jui fatos.
civile e suas formas pesadas, o jus gentium rejeita tudo aquilo - Constatamos, portanto, em qualguer lugar que observa-
que não é ligado ao fim e à natureza da relação econômica mos uma camada primária de superestrutura jurídica, gue a
que o informa. Ele adapta-se à natureza desta relação e pare- relação jurídica é 、ゥイセ。ュ・ョエ@ gerada pelas relações materiais
ce, dessarte, ser um direito ''natural". Ele tenta reduzir .es.ta セ@ existentes entre os homens.
relação ao mínimo de premissas possível e se desenvolve, assim, Segue-se, então, que não é necessário partir do conceito
facilmente, em um sistema lógico, bem ordenado. Gumplowicz, · de norma, como lei autoritária externa 1 セイ。@ analisar a relação
sem dúvida, tem razão quando identifica a 19gica do civilista jurídica elll .. セh。@ JC2.t:l!lll.. !D.11E_simples. E suficiente fundamen-
à lógica especificamente jurídica13 • Mas ele se engana, quando tar a análise sobre uma relação jurídica "cujo conteúdo é f_ç>r-
acredita que o sistema de direito privado poderia se desen- necido pela própria relação econômica"15 e examinar, a se-
volver em razão da incúria de qualquer modalidade do poder guir. a forma "legal" desta relação jurídica como uma hipótese
de Estado. O seu raciocínio é mais ou menos o seguinte: dado particular . ,· ·
. 9ue os litígios privados não tocam direta e materialmente aos Posta ew sua perspectiva hi_s_!órica real, i!.__questão de saber
interesses do poder de Estado, este deixou, à casta dos juristas, se a norma deve ser considerada como a premissa da relação
inteira liberdade para aprofundar o seu espírito neste canwo 14 • ェセイ■、ゥ」。@ 」ッョ、コ]MウセA_ゥNイ・エZ ̄ヲGᆰp。@ ·exis-
No domínio do direito público, pelo contrário, os esforços dos !entes _entreMセNヲャAZpエイオL⦅ー￧■ゥ」。@ MセNィeエイオ。@ jurí-
juristas são geralmente arruinados sem comp!acência pela· rea- dica. Na esfera lógica e ウゥエ・ュ£」セlA⦅アャNh{q@ __セMᆰNキャ。@ das
. lidade, pois o poder estatal não tolera nenhuma intromissão relações entre o poder objetivo セMNP@ direito subjetivo.
em seus negócios e não reconhece a força toda-poderosa . da Em seu manual de direito constitucional, Duguit chama
lógica jurídica. a atenção para o fato de que uma única denominação "di-
:!! muito claro gue a lógica dos conceitos ju!'idlcos cor:\ reito" designa coisas ''que, sem dúvida, se interpenetram pro-
responde à lógica 、。セ@ relações sociais de uma socledi!fie. de fundamente, mas que se distinguem muito claramente umas
produção mercantil. E precisamente nesta relaçlo セ@ .. nlo na das outras"16 • Ele pensa no direito em sentido objetivo e em
concordância da autoridade pública que · devemos 「jNZセAᅦeゥイ@ . P. sentído subjetivo. Neste caso, abordamos, efetivamente, um
dos pontos mais obscuros e mais controvertidos da teoria geral
do direito. Estamos diante de üma estranha dualidade de con-
12. Op. cit., § 36.
13. O fato histórico de que as definlç15ca ウセイ。ャ@ _d() direito se
ceito. cujos ←ゥoウG¬ー」エセN@ sitüàndõem-nÍve'is'
aindâ'gue '8ê difé.
rentes. se condicionam reciprocamente. O Direito é simulta-
desenvolveram, durante muito tem o, como uma arte da teoria do neamente, sob um aspecto, a forma de regulamentação auto-
d'reito civil nos remete, igualmente, ao ro undo vínculo interno ex e-
tente entre a lo ica 'urídica como ta ca -o civilista. SÓ uma
reflexão muito superficial pode· fazer crer - como a de Kavelin - que
este fato deixa-se explicar apenas por um erro,, por um equívoco (cf. セᄋ@ 15. KarLMarx, O Capital, L. I, cap. 11, p. 95. Ed. brasileira: São
D.- Kavelin, Sobranie sッGセゥョ・ェ@ (obras), tomo IV, p. 338). Paulo, 1988, Nova Cultural, 3." ed., p. 79.
14. L. Gumplowicz, op. cit., ' 32. 16. L. Duguit, Estudos de direito público, Paris, 1901.
68 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 69

ritária externa e, sob outro, a forma de autonomia subjetiva Queremos, provisoriamente deixar de lado a escola psi-
privada. Em uma modalidade, é a característica da obrigação cológica e as tendências próximas, e ocupar-nos da opinião
absoluta, da coação externa pura e simples, que é fundamen- daqueles para os quais o. direito deve ser concebido .セク」ャオウゥᆳ
tal na outra, é a característica da liberdade garantida e reco- "-.._ vamente como uma norma objetiva.
nhecida no interior de certos limites. O direito surge seja Se partirmos desta concepção, tembs de um lado a regra
como o princípio da organ:zação social, seja como meio que imperativa autoritária como norma e de outro lado a obriga-
permite aos indivíduos "limitarem-se na sociedade". Em uma ção subjetiva correspondente a esta regra e por ela criada.
hipóte!3e', o direito funde-se, digamos, totalmente com a autori-
dade externa; em outra, opõe-se, totalmente, a toda autoridade
o dualismo parece radicalmente suprimido; esta supres-
são é, no entanto, meramente aparente. Tão lógo se queira
externa que por ele não é reconhecida. O direito como sinô- aplicar está fórmula, surgem as tentativas para reintroduzir,
nimo da existência oficial do Estado e o direito como porta-
mais uma vez, por vias transversas, todas as nuances indis·
voz da luta revolucionária: esta dualidade determina um cam· pensáveis à formaç.ão do conceito· de ''direito subjetivo". No-
po de controvérsias infinitas e de confusões Universais. vamente nos deparamos com estes• dois aspectos, apenas coni ·
o conhecimento desta profunda contradição susoitou inú· a seguinte diferença: um dos dois, a saber, o direito subjetivo,
meras ·tentativas de suprimir, de uma maneira ou de outra,
é representado por diferentes artifícios, como um tipo de som-
esta 、・セゥョエァイ。￧ ̄ッ@ desagradável de conceitos. Foram feitas nu-
bra; com efeito, nenhuma . combinação de imperativos e de
merosas tentativas de sacrificar um dos conceitos em favor obrigações pode fornecer-nos o conceito de direito subjetivo
do outro. O próprio Duguit, que qualifica, em seu manual,
em sua significação autônoma e plenamente real, em virtude
as expressões "direito objetivo e direito subjetivo" de ''felizes,
da quai ele é encarnado por todos os proprietários da .socie-
claras e precisas", esforça-se em provar, em outra obra, com
daçle burguesa. · Basta que tomemos a propriedade como exem-
toda a sua perspicácia, que o direito subjetivo apóia-se em
plo para nos convencermos de tal fato. Se a tentativa de re-
um mal-entendido, sobre "uma concepção metafísica .que, em
duzir o direito .de propriedade a uma série de proibições ende-
uma época de realismo e de positivismo como a nossa, não
reçadas a terceiras pessoas não é mais do que um processo
pode ser mantida.U
lógico uma construção mutilada e. deformada:, a apresentação
A corrente oposta, que é definida na Alemanha por Bier- do direito de propriedade burguês como uma obrigação social
ling. e entre nós pelos psicologistas, à sua cabeça Petrazickij, não ·passa de uma hipocrisia19 •
possui tendência, ao contrário, a apresentar o direito objetivo
como. uma ''projeção emocional", desprovida de significação
real, como uma criação da imaginaçlo, como um produto ·da forma d_e nossa representação do direito セ・@ que o próprio direito, na
objetivação de .processos internos, paicolóslooa, etc. 11 • · realidade, como todo produto da vida psíquica, só possui existência nos
espíritos, em espet;:ial, dos membros da mesma comunidade jurídica"
(E. R. Bierling, /TJristische Prinzipienlehre, Fribourgen e Leipzig, 1894,
17. L. ᄋョセァオゥエL@ As transformaçlJIIJ do dll'fllo prJbllco, Paria, 1913. tomo I, p. 145).
18. Cf. por exemplo em Bierling: ·"lato oorrtapondo 11 uma ten- · 19. Em comentário ao Código Civil da Rússia, Gojchbarg assinalá
dênCia geral do nosso espírito humano, que 6 a do panaar o direito, antes que os ェオイゥウエセ@ burgueses progressistas já começam a セ ̄ッ@ considerar nÍai$
de tudo, como alguma coisa de objetivo, isto 6, oomo um aor em si c a propriedade privada como um direito subjetivo 11rbitrário, mas como .
para si, situado acima dos membros da COD;lUnldado jurtdloa1 01te pen- um bem posto à disposição da pessoa. Gojchbarg refere-se, priricipal-
samento sem dúvida possui valor prático. M:as 6 neo111•rlo nlo oaquecer ·mente, a Duguit, o qual'afirma que o possuidor do capitatsó deve,êstar
que este "direito objetivo", mesmo quando esteJa IOb forma de direito protegido juridicamente· quando dá ao seu capital uma destinação com-
·escrito, uma forma ・クエイセッ@ própria, particular, não 6 mall do quo uma . patível com funções socialmente 'úteis.
70 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O. MARXISMO 71

Todo proprietário, inclusive seus auxiliares, compreende de produção de uma sociedade baseada na divisão do trabalho
muito bem que o direito que lhe assiste, enquanto proprietário, e de troca.
pouco tem a ver com a obrigação, a tal ponto que lhe é, em A organização social que dispõe dos meios de coerção é
realidade, diametralmente oposto. O direito subjetivo é o fato a totalidade concreta à qual devemos chegar- após termos con- ·
primário, pois assenta-se, em última instância, sobre interesses cebido, puramente, a relação jurídica sob sua forma a mais
materiais que existem· independentemente de regu!amentação · pura e a mais simples. A obrigação enquanto resultado de um
externa, consciente, da vida social. imperativo ou de um CQmando surge, em conseqüência, no
O sujeito como titular e destinatário de todas as. pteten- estudo da forma jurídica, como um momento que concretiza
> sões possíveis, a cadeia de sujeitos vinculados uns aos outros e complica as coisas. Em sua forma màis abstrata e mais ウゥュセ@
por pretensões recíprocas, esta é a estrutura jurídica funda- ' ples, a obrigação jurídica deve ser considerada como reflexa
mental que corresponde à estrutura econômica, às relações e correlata à pretensão jurídica subjetiva. Se analisarmos a
relação jurídica veremos, muito claramente, que a obrigação
Estas considerações dos juristas burgueses são certamente ゥョエ・イウ。セ@ não pode esgotar o conteúdo lógico da forma jurídica. E mais,
tes, pois significam um sintoma do declínio da época capitalista. Mas ela não é sequer um elemento autônomo desta forma jurídica.
a burguesia, de outra parte, somente tolera tais 」ッョウゥ、・イ。￧￵セ@ acerca
das funções sociais da propriedade porque elas não . a comprometem A obrigação surge sempre como reflexa e correlata a um direi-
em nada. A antítese real da propriedade, com efeito, não é propriedade to subjetivo. A dívida, de uma das partes, não é o't!Íra coisa
concebida como· uma função social, mas a economia planificada socia- além daquilo que pertence à outra e lhe é garantido. o que
lista; quer dizer, a supressão da propriedade privada, o seu subjetivismo, é um direito para o credor é uma obrigação para o devedor.
não cansiste em que "cada um coma o seu pr6prio pão, ou seja, não é
o ato de consumo individual, ainda que seja igualmente produtivo, mas
A categoria de direito só está logicamente ac,abada no mo-
na circulação, no ato de apropriação e alienação, na troca de mercadorias mento em que inclui o titular e o portador do 4ireito c::ujos
onde a. finalidade econômico-social não é nllda além do que o resultado direitos representam apenas as obrigações 」ッイ・ウーョ、エセ@ de
de fins privados e de decisões privadas 。オセ￴ョッュウN@ um terceiro para com ele. Esta natureza dúplice do direito é
A explicação de Duguit, segundo a qual o proprietário não deve particularmente 1lssinalada por Petrazickij, que lhe dá um fun-
ser proegido senão quando cumpra as suas obrigações sociais, não possui
nenhum significado ·quando posta nes.tes termos gerais. No Estado bur- damento bastante instável em sua .teoria psicológica ad hoc.
guês é uma hipocrisia, no Estado proletário é uma dissimulação dos :e necessário, contudo, obseryar que estas relações recíprocas
fatos.· Pois se o Estado proletário pudesse deixar que cada proprietário, entre o direito e a obrigação foram formuladas de maneira
foiir.ttmente, cumprisse sua função social, ele o faria privando dos ·pro- muito precisa para outros juristas rião suspeitos de psicolo-
prietários o direito de dispor de sua propriedade. Porém, se, economica· gismo20. · セ@
mettte, ele é incapaz disso, ele tem de proteger o interesse privado en-
アエセ。ョッ@ tjtl e fixar-lhe, apenas, os limites. Seria uma ilusão afi.rmar que Portanto, a relação jurídica não .. nos mostra apenas o di-
todo iMI'lvíduo que, no interior das fronteiras da União Soviética, acumu- 'reito em seu movimento real,. nias descobre, igualmente, as
leu UllWl . quantidade de dinheiro está protegldo pelas nossas leis e por propriedades características do direito enquanto categoria lógi-
nossos tribunais apenas porque encontrou, ·para o dinheiro acumulado,
uma utt:Uzação セッ」ゥ。ャュ・ョエ@ útil. Aliás, Gojchbarg parece ter esquecido.
··a propriedade do capital, sob a sua forma mais abstr!lta, monetária, e tratos firmados sob a égide do nosso C6digo Civil e transformar cada
raciocina cotriÓ se ·o capital s6 existisse sob a forma concreta de capital proprietário em uma pessoa exercente de uma função social. Uma tal\
ーイッアセLjエゥカN@ os· セウー・」エッ@ anti-sociais da propriedade s6 podem ser parali- supressão verbal da economia privada e do direito privado s6 pode obs·
sadQ8. de '}ato,· ou seja, pelo desenvolvimento da economia planificada so- curecer a perspectiva de sua supressão real.
cialista em detrimento da economia de mercado. Mas ョ・ィオセ。@ espécie 20. Cf. por exemplo, A. Merkel, Juristische Enzyclopi.idie, Leipzig,
de '{órinula mesmo se for extraída das obras dos juristas os mais pro- 1885, § 146, e N. M. Korkunov, Enciklopedija prava (Enciclopédia do
gressiStas da Europa Ocidental, pode tornar socialmente úteis os COll· Direito), Moscou, 19i8, p. 114.
A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 73
72 E. B. PASUKANIS

ca. · A norma, ao contrário, enquanto tal, quer dizer, enquanto de considerar com um certo cinismo o "direito sagrado de
coinando imperlitivo, é tanto um elemento da moral, da esté- propriedade". Basta nos reportarmos à!r lamentações de ャィ・セ@
tica, da técnica, quanto, ao mesmo título, um elemento do ring sobre a ''abjeta especulaÇão na bolsa e a agiotagem frau-
direito. dulenta" onde perece o "sentimento nàrmal do direitG"21 •
e
A diferença entre a técnica o &reito não consiste abso- Não é difícil provar que a idéia de s.ubmissão incondi-
lutamente, como .pensa I . Alekseev, em que a técnica pressu" cional a uma autoridade normativa externa não possui a mí-
põe uma finalidade exterior à sua própria matéria, enquanto nima relação com a forma ,jurídica. J! ··suficiente tomarmos <is
que na ordem jurídica todo sujeito constitui um fim em sF1 • exemplos limites que, devido a isto, são mais claros. Pegue-
Nas páginas seguintes mostraremos que para a ordem jurídica mos uma formação militar, na qual muitos homens são subor-
o "fim em si" nada mais é do que a circulaÇão de mercadà- dinados, em seus movimentos, a uma ordem comum, na qual .
.rias. No que concerne, todavia, à técnica do pedagogo ou o único princípio ativo e autônomo é a . vontade do coman-
do cirurgião; que têm, respectivamente, como matéria, um, o psi- dante. Ou, ainda, o exemplo da Ordem dos Jesuítas na qual ·
quismo da criança, o outro, o organismo do paciente operado, todos os irmãos da comunidade executam, cegamente e sem
ninguém poderá contestar que a matéria, também aqui, con- discussão, a vontade do superior. Basta que se aprofunde es,tés
tém igualmente o ein si, o fim. exemplos para se concluir que. quanto mais' o princípio da re-
A ordem jurídica. se distingue, precisamente, de qualquer gulamentação autoritária, que exclui toda referência a uma
outra espécie de ordem social no que cohcerne aos sujeitos vontade autônoma particular, seja aplicado de maneira conse-
privados isolados. A norma jurídica deve sua especificidade, qüente, tanto· mais se restringe o campo de aplicação da cate-
que a distingue da massa de outras regras morais, estéticas, goria direito. Isto é particularmente sensível na .esfera do
utilitárias, etc., precisamente ao fatp de que ela pressupõe assim chamado direito público. A teoria jurídica, nesta 'área,
uma pessoa munida de direitos, fazendo valer, セエイ。カ←ウ@ deles, . ressente-se de diticuldá.des muito grandes. De maneira geral,
ativamente, suas pretensões22 • ·
um único fenômeno, que Marx caracteriza como a separaÇão
A tendência a fazer da· regulamentação externa o momen- do Estado político, da sociedade civil, reflete-se na teoria gera]
to lógico fundamental do direito conduz a identificar o direito do direito sob a forma de dois problemas -distintos que pos·
com .·a ordem social estabelecida autoritariamente. Esta ten- suem, cada um, um ·lugar particular no sistema e uma solução
dência do pensamento jurídico refiete, fielmente, o espírito de específica. O primeiro problema teni um caráter ーオイセュ・ョエN@
nossa época, na qual a ideologia de Manchester e a livre con- abstrato e consiste na cisão do conceito fundamental em dois
corrência foram substituídas pelos grandes monopólios capi- aspectos que já ·expusemos acima. O direito JUbjetivo é a
talistas e pela política imperialista. càracterística do homem egoísta "membro da sociedade bur-
O capital financeiro aprecia mais um poder forte e a dis- guesa, do indivíduo auto-suficiente, sobre. seu interesse privado
ciplina do que ''os direitos eternos e intangíveis do homem e sua V-Ontade privada e separado da cmnúnidadé" . O direito
e do cidadão". O proprietário capitalista, transformado em objetivo é a expressão do Estado butguês como totalidade!
entesourador de dividendos e lucros .da bolsa, não pode deixar que "se releva como Estado político e .que só faz valer sua
generalidade ein opósição 。Hャᆰセ・ュョエッウ@ que o com.põem"
21. I. Alekseev, Vvedenie v _i:tucel'iie prava (Introdução ao estudo
do direito), Moscou, 1918, p. 114. ·
22. "0 direito não é dado gratuitamente a quem dele tem ne· 23. R. Iherirtg, D,er Kampf ums Récht, Wien, 1900;· Ed. brasileira:
cessidade". M. A. Muromcev, Obrazovanie prava (A formaçao do dl· A Luta pelo Direito; Rio, Ed. Liber Juris, 1987.
, reito), 1885, p. 33.
74 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 75

O problema do direito subjetivo e do direito objetivo é por sua simplicidade, clareza e perfeição, enquanto que as teo-
o problema, formulado de maneira filosófica, do homem .como rias de direito público contemplam diversas construções for·
indivíduq burguês privado e . do homem c()nío cidadão. O çadas, artificiais e unilaterais, ao ponto de tornarem-se até
mesmo problema surge, uma vez ュセゥL@ agora de ·forma mais mesmo grotescas. A forma jurídica com seu aspecto de 。オエッセ@
concreta, como problema do direito público e do direito · pri-
vádó. A tarefa, então; reduz-se à limitação 、セ@ alguns domí- I rização subjetiva nasce em uma sociedade composta de titu-
lares de ゥョエセイ・ウ@ privados egoístas e isolados. Dado que toda

I
nios jurídicos realmente. existentes, à •classificação em diferen- vida econômica edifica-se sobre o princípio da conéÓrdância
tes rubricas das instituições que nasceram historicamente. A entre vontades independentes, cada função social assume, de .
dogmática jurídica, com seu método formal lógico não pode, forma mais ou menos reflexiva, um caráter jurídico, isto é,
entenda-se bem, resolver nem o primeiro, nem o segundo pro- セョ ̄ッ@ é apenas uma função. sociai, mas, igualmente, .um direito
blema, nem ・セーャゥ」。イ@ o víncl:Jlo existente entre· os dois.
A div,isão do direito em direito público e direito privado,
I pertencente àquele. que exerce tais funções sociais. Mas, uma
vez que ·os interesses ーイゥカ。セッウ@ a
não podem, dada pr6pria, ョ。セ@
assim, já apresenta dificuldades específicas, pois o limite entre } tureza da organização política, alcançar nela um desenvolvi-
ó interesse egoístico do homem enquanto· membro da sociedade mento completo . e uma importância determinante como na
civil e o interesse geral abstrato da totalidade política somente economia da sociedade burguesa, os direitos públicos subjeti-
pode ser traÇado nà abstração. Na realidade tais momentos j, vos surgem, eles também, coino uma fotqna efêmera, desprovi-
interpretam-se reciprocamente. Daí a impossibilidade de indi- セ@ セ@
dos de verdadeiras raízes e eternamente incertos. Ademais, o
car as ·instituições jurídicas concretas nas quais este famoso Estado não é uma superestrutura jurídica, mas somente pode
interesse· privado esteja totalmente encarnado em sua forma ser pensado enquanto ta[24 •
pura.· A .teoria jurídica não pode identificar os direitos do Le-
Uma outra dificuldade é que o jurista ao traçar, com gislativo, os direitos do Executivo; etc., como, por exemplo,
maior ou menor sucesso, um limite empírico entre as insti- · o direito do credor à restituição da quantia emprestada, .pois
tuições de direito público e as de direito privado, 、・ヲイッョエ。セウ@ isto significaria substituir a ウエセイー・ュ。」ゥ@ do interesse estatal
novamente, no interior dos limites de cada · um destes domí· geral; e impessoal, )?resumido pela ideologia burguesa, pelo in-
nios, com um problema que parecia já estar resolvido, mas terese privado isolado. Mas, ao mesmo tempo,. cada jurista
desta vez a partir de uma outra problemática abstrata. O pro- est? .consciente do fato de que não pode dar a estes direitos
blema surge como uma contradição entre o direito subjetivo nenhum outro conteúdo fundamental, sem que a forma jurídica
e o direito objetivo. Os direitos públicos subjetivos repre- lhe est.:ape das mãos. O . direito público só pode existir ・ョセ@
sentam, de fato, de novo, os mesmos direitos privados (e em quanto refletir a forma jurídica privada na· esfera. da organi-
conseqüência os mesmos interesses privados) ressuscitados e zação política, ou então deixa de ser um direito. Tdda tenta-
apenas -levemente modificados, que se apresentam em uma tiva visando a apresentar a função social pelo que ela é, quer
esfera na qual deveria reinar o interesse geral impessoal, re- dizer, simplesmente. como função social, e a apresentar a nor-
fletido pelas normas .de direito objetivq. Mas,' enquanto que o ma simplesmente como regra organizàtiva, significa a morte da
direito civil, que trata da camada jurídica fundamental e pri-
\
mária, utiliza com abundância e segurança o conceito de direi- 24. "Para o conhecimento jurídico, trata-se exclusivame11te de res-
to subjetivo, a utilização deste conceito, no âmbito da teoria ponder a seguinte アオ・ウエ ̄ッセ@ como deve conceber-se juridicamente o
do direito público, gera regularmente contradições e mal-en- Estado?" (G. Jellinek, System der subjektiven offentlichen Rechte, Tü-
tendidos. Eis por que o sistema do direito civil caracteriza-se bingen, 1905, p. 13).
r
r
''.?'L,'-
í! I
76 E. B. PASUKANIS
A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 77
forma jurídica. A condição real da supressão da forma jurí-
dica e da ideologia jurídica é um estado social no qual a con- Lê-se em seu trabalho: "a divisão do direito em direito pú-
tràdição entre o interesse individual e o interesse social esteja blico e em direito privado jamais satisfez aos juristas e, pre-
superada. sentemente, só é reconhecida pelos juristas mais retrógrados,
Mas o que caracteriza a sociedade burguesa é precisamen- dentre os quais se encontram alguns de nossos juristas"26 •
te o fato de que os interesses gerais destacam-se dos interesses Gojchbarg, ademais, apóia esta idéia sobre a inutilidade
privados ea eles se opõem. E assumem, involuntariamente, da divisão do direito em direito público e d!reito privado nas
seguintes considerações: o princípio do livre cambismo, da não
nesta oposição a forma de interesses privados, a ヲッイョゥ。セᄋ@ de
direito. Além do mais, como era de se esperar, são precisa- v
ingerência do Estado nos assuntos econômicos está superado
lnente estes momentos que se deixam integrar completamente
I no século XX, diz, o arbítrio individual ilimitado na vida
no esquema dos interesses privados isolados e ópostos, que econômica prejudica os interesses do conjunto; existem, mes-
constituem o momento jurídico da organização estatal25 • mo nos países que não passaram por uma revolução proletá-
A. G. Gojchbarg contesta a própria necessidade de dis· ria, numerosas instituições nas quais misturam-se os domínios
tinguir os conceitos de qireito público e de direito privado. do direito privado e do direito público, e entre nós, final-
mente, onde a atividade econômica está concentrada princi-
palmente nas mãos dos organismos do Estado, a delimitação
25. Cf., por exemplo, as considerações de S. A. Kotljarevskij, sobre
o direito eleitoral: "no Estado constitucional o eleitor cumpre uma fun- do conceito de direito civil, em relação a outros conceitos, não
ção determinada que lhe é ditada pela ordem estatal transcrita na Cons- tem sentido. Parece-nos que toda esta 。イァオュ・ョエセ ̄ッ@ repousa
tituição. Mas do ponto de vista do Estado de direito é impossível atribuir sobre toda uma ,série de equívocos. A escolha desta ou da-
ao eleitor somente esta função sem -levar em conta o direito que a ela quela direção política prática não é determinante em relação
está relacionado". Acrescentamos que isto é tão impossível quanto a aos fundamentos .teóricos da distinção entre os diferentes con-
transformação da propriedade burguesa em função social. Kotljarevskij
sublinha, ainda, muito justamente que se negarmos, como Laband, o ceitos. Assim podemos estar convencidos de que a edificação
elemento de investidura subjetiva do eleitor, "a elegibilidade dos represen- das relações econômicas sobre a base de relações mercantis
tantes perde todo o seu sentido jurídico e reduz-se a uma questão de possui inúmeras conseqüências negativas. Mas não se depre-
técnica e de oportunidade". Aí, também, encontraremos a mesma oposi- ende daí que a distinção dos conceitos de "valor de uso" e de
ção entre a oportunidade técnica fundada sobre a unidade de fins e a
organização j,urídica construída sobre a separação e oposiçllo dos inte:
''valor de troca" seja teoricamente inconsistente. Em segundo
resses privados. E, finalmente, o sistema representativo deve toda sua lugar, a afirmação (que, de resto, não contém nada de novo),
característica jurídica à introduçllo de sarantla1 juríclicaa ou jurídico- segundo a ··qual os domínios do direito .público e do direito
administrativas doa direito• do1 eleltoret. O proce11o judiciário e a privado interpenetram-se, não tem nenhuma espécie de signi-
disputa entre os partido• 110, aqui, elemento• 0111nciai1 da luperestru- ficação se não pudermos distinguir estes dois conceitos. Efe-
tura jurídica (cf. S. A. Kotljarev1ltij, Vla1t' I pravo [Autoridade e direito],
Moscou, 1915, p. 25). O direito pllbllco 1m 11ral 16 10 torna objeto de
tivamente, como é que coisas que não possuem existência se-
elaboração jurídica enquan\o direito con1tltucional, ou 1oja, eomente com parada podem interpenetrar-se? As objeções de Gojchbarg l)s-
o aparecimento de forças que se combat1m mutuamente, como o rei sentam-se sobre as idéias de que as abstrações de "direito pó-..
e o parlamento, a câmara alta e a cAmara baixa, o aovorno o a represen- ' blico" e de "direito privado" não são .frutos do desenvolvi-
tação nacional. Assim também sucedo com o direito admlnl1tratlvo. Seu
conteúdo jurídico reduz-se, por um lado, l aarantla clo1 direitos da po-
I mento histórico, mas simplesmente o produto ela imaginação
pulação e, por outro, dos direitos dos repr11entanto1 da hierarquia buro- dos juristas. Contudç, é precisamente esta oposição que é a
crática. Ademais. o direito administrativo ou, como ora chamndo antiga-
mente, o direito de polícia representa uma ml1tura varl11cla de regras
técnicas e de preceitos políticos. etc. 26. A. G. Gojchbarg, Chozjajstvennoe pravo (O direito econômico).
p. 5.
A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 79.
78 E. B. PASUKANIS
da base do desenvolvimento precedente, que eu havia me pro-
propriedade .característica da forma jurídica. A divisão do posto por tarefa ''construir uma teoria da dogmática jurídica
direito em direito público e em direito ptivado caracteriza pura". Em seguida ao que, Il'inskij conclui que tal finalida-
esta forma jurídica, tanto do ponto de vista lógico, quanto do de não foi alcançada. Ele escreveu: ''o autor produziu uma
histórico. Se declaramos, simplesmente, inexistente esta opo- teoria do direito que é, em sua essência, sociológica, ainda,
sição, nós não estaremos acima destes. juristas práticos "retró- que tenha tido a intenção de construí-la como dogmática ju-
grados", mas, ao cpntrário, seremos obrigados a utilizarmo- rídica pura·".
nos destas mesmas definições formais e ・セ」ッャ£ウエゥ。@ com as Quanto a Razumovskij, ainda que ele .não exprima qual-
quais eles trabalham . quer opinião precisa sobre os meus objetivos, me atribui, con-
O conceito de "direito público" somente pode ser com- tudo, a intenção acima mencionada, e condena muito severa-
preendido em seu· desenvolvimento: pelo qual ele é continua- mente: ''o seu (isto é, o meu, E. P.) receio de velhas pesqui-
mente repelido pelo direito privado, na medida em que tende sas metodológicas transformarem a dogmática jurídica em So-
a se determinar come; oposto daquele e pelo qual a ele regressa ciologia ou em Psicologia revela, apenas, que ele possui uma
conio seu centro de gravidade . representação insuficiente do caráter da análise marxista".
A tentativa inversa, isto é, a tentativa de descobrir as "Isto é tanto mais estranho - espante-se o meu crítico -
definições fundamentais. do direito privado - que não são que o próprio Pasukanis vê uma certa discordância entre a
outras senão que as definições do direito em geral - , partindo verdade sociológica e a verdade jurídica e sabe que a concep-
do conceito de norma, só pode gerar construções incertas e ção jurídica é uma concepção unilateral". Com efeito,. isto é
formais, que, aliás, não estão ísentas de contradições internas. realmente estranho. Por um lado, eu temo que a dogmática
O direito, como função, deixa de ser direito desde q4e a per- jurídica não se transforme em Sociologia; por outro, reco-
missão jurídica transforma-se, sem o interesse privado que a nheço que a concepção jurídica é uma concepção "unilateral".
sustenta, em algo de inacessível, abstrato, que se transmuta De uma parte eu quero produzir uma teoria da dogmática ju-
facilmente em seu contrário, quer dizer a obrigação (todo 'di- rídica pura, de outra parte sobressai que eu produzi uma teo-
reito, público é, com efeito,. simultaneamente, uma obrigação). ria sociológica do direito. Onde está a solução desta contra-
Tão simples, compreensível e "natural" que seja "o direito do dição? A solução é muito simples. Enquanto marxista, eu não
credor" à restituição da dívida, tão precário, problemático e me atribuí a tarefa de construir uma teoria da dogmática jurí-
ambíguo é, digamos, o ''direito" do parlamento de votar o or- dica pura e eu não poderia, da mesma forma, enquanto mar-
çamento. Se no direito civil os ,litígios são tratados a nível xista, atribuir-me esta tarefa. Desde o início estava perfeita-
do que Ihering chamou de sintomatologia jurídica, aqui é o mente c6nsciente do fim ao qual segundo a opinião de Il'inskij,
próprio fundamento da dogmática jurídica que está sendo posto teria chegado inconscientemente. Este fim era de fazer uma
em dúvida. Nisto reside a fonte das· hesitações e das incerte- interpretação sociológica da forma jurídica e das categorias
zas metodológicas que ameaçam transformar a dogmática jurí- específicas que exprimem esta forma jurídica. :e precisamen-
dica em Sociologia ou em Psicologia. te por isto que subtitulei a meu livro "tentativa de crítica dos -.
Alguns de meus críticos, como por exemplo, Razumovs- conceitos jurídicos fundamentais". Mas a minha tarefa seria,
kij27 e T. Il'inskij 28 acreditaram, em parte, parece-me, a partir entenda-se, totalmente absurda se eu não tivesse reconhecido
a existência desta mesma forma jurídica e se tivesse rejeitado
as categorias que. exprimem esta forma como elucubrações
27. Cf. Vestnik kッュオョゥウエ」・セォェ@ Akademii, vol. VIII. ociosas.
28. Cf. Molodaja Gvardija, n.o 6.
80 E. B. PASUKANIS

Uma vez ·que eu estigmatizo a precariedade e a inade-


quação das construções jurídicas no domínio do direito pú-
I Capítulo Quatro
blico, falando das hesitações e das incertezas metodológicas ,,
que ameaçam transformar a dogmática jurídica seja em Socio-
. logia, seja em Ps!cologia, é estranho acreditar que quero pre- MERCADORIA E SUJEITO
caver-me contra a tentativa de uma crítica sociológica da dog-
mática jurídica feita do ponto de vista marxista: ·
Tal precaução endereçar-se-ia, em primeiro lugar, a mim
mesmo. As linhas que provocaram o espanto de Razumovskij,
e que ele explica pela minha representação insuficiente do
caráter da análise marxista, reportando-se, contudo, às conclu-
sões da dogmática jurídica .burguesa, que perde confiança na Toda relação jurídica é uma relação entre sujeitos. _O
estrutura de suas concepções desde que sé afasta da relação sujeito é o átomo da teoria jurídica, seu elemento máis sim-
de troca (no sentido amplo do termo). Talvez eu devesse mos- ples, indecomponível. Por isto começaremos nossa análise pelo
trar, por uma citação explícita, que esta frase relativa ao ''pe- · sujeito.
rigo que ameaça à dogmática jurídica" é uma alusão às lamen- I. Razumovskij não concorda comigo em que a análise
tações de um filósofo burguês do direito. Estas lamentações do conceito de ''sujeito" deva servir de fundamento ao estudo
não se relacionam, certamente, à crítica marxista (esta ainda da forma jurídica. Esta categoria da sociedade burguesa de-
não inquietava o espírito dos "juristas puros"), mas às tenta- senvolvida parece-lhe, primeiramente, muito complexa e, em
tivas da dogmática jurídica burguesa visando a mascarar a segundo lugar, não lhe parece que ela caracterize os períodos
estreiteza de seu próprio método com empréstimos de Socio- históricos anteriores. Segundo ele, é "o desenvolvimento da
logia e da Psicologia. Mas eu estava longe de pensar que relação fundamental de toda sociedade de classe" que deve ser-
algu·ém poderia ver em mim um "jurista puro", com a alma vir de ponto de partida.1 Esta seria, como diz Marx na sua In-
mortificada pelas ameaças que a crítica marxista faz pesar trodução Geral, propriedade que, ·a partir da apropriação,
sobre a dogmática jurídica burguesa. se· desenvolve de fato e, em comeqüência · desta, em proprie-
dade jurídica. 2 Razumovskij, todavia, ao mostrar as vias deste
.desenvolvimento, chegou à conclusão de que a propriedade
privada, como tal, somente forma no processo de desenvol-
vimento, só sé toma propriedade privada, no sentido moderno
do termo,. no interior deste processo, e. desde que esta pro-
priedade se acompanhe não apenas "da possibilidade de livre
posse", mas também ''da possibilidade de alienação".3 Mas
também significa que a forma jurídica, no seu estágio desen:-

1. I. P. Razumovskij, Problemy .marksistskoj teorii prava (Proble'


mas da teoria' marxista do Direito), Moscou, 1925, p. 18. Ver nota 6
do capítulo um.
2. Cf. K. Marx, Introdução Geral, op. cit., p. 212.
3. Razumovskij, op. cit., p. 114.
82 E: B. PÀSUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 83

volvido, corresponde ーイ・」ゥウ。ュョセ@ às relações sociais burgue- uma maneira puramente especulativa: ''o conceito fundamen-
sas· capitalista. E claro que as ヲッセュ。ウ@ particulares de イ・ャ。セ@ tal do direito é a liberdade ( ... ) O conceito abstrato de liber-
ções sociais não suprimem estas ·próprias relações e as leis V. dade é a possibilidade de se ·determinar a qualquer coisa ( ... )
que lhes servem· de fundamento. Assim, a apropriação de um O Homem é o sujeito de direito porque possui a possibilidade
produto no interior de uma dada formação social e graças de determinar-se, porque possui uma vontade" .5 Igualmente em
às suas formas é um,fato fundamental, du, se qu!sermos, uma Hegel "a personalidade contém principalmente a capacidade
lei fundamental. Mas esta relação só 。セウオュ・@ a forma jurí- de direito e constitui o fundamento (ele próprio abstrato) 、セ@
dica da propriedade privada em um determinado estágio de direito abstrato, em conseqüência formal. Q imperativo de
desenvolvimento das forças. produtivas e da divisão do tra- ゥセ@ direito é então: seja uma pessoa e respeite ós
outros como
balho que lhe é correspondente. Razumovskij crê que, -ao fun- pessoas".6 E mais adiante: "O que é imediatamente diferente
damentar a minha análise no conceito de sujeito, elimino, do espírito livre, e considerado este como em si, é a extrin-
desta forma, de meus estudos as relações de domínio e ser- sidade em geral: uma coisa, qualquer coisa de não livre, sem
vidão, enquanto que, em realidade, a posse e a propriedade personalidade e sem direito" .1
estão indissoluvelmente ligadas a estas relações. Não pretendo, Mais adiante veremos em que sentido セM oposição entre
de forma alguma, contestar este vínculo. Afirmo, apenas, que a coisa e o sujeito nos fornece a chave para compreender a
a propriedade somente se torna fundamento da forma jurídi- forma jurídica. A dogmática jurídica, ao contrário, serve-se
ca enquanto livre disposição de bens no mercado. A cate- deste conceito sob seu aspecto formal. Para ela o sujeito não
goria sujeito serve, então, precisamente, como expressão_ geral é nada mais do que um ''meio de qualificação jurídica dos
desta liberdadé. O que significa, por exemplo, a propriedade fenômenos, do ponto de vista de sua capacidade ou incapaci-
jurídica da terra? ''Simplesmente, diz Marx, que o proprie- dade em participar das relações jurídicas".8 A dogmática ju-
tário rural pode usar da terra como qualquer possuidor de rídica., por conseguinte, não coloca de forma alguma a ques-
mercadoria pode usar de suas mercadorias."4 Por outro lado, tão de porque o homem se transformou de indivíduo -zooló-
o capitalismo transforma precisamente a propriedade ·fundiária gico em sujeito de direito. Ela parte da relação jurídica como
feudal em propriedade fundiária moderna, ャゥ「・イ。ョ、ッセ@ intei- uma fórma acabada, dada a priori.
ramente das relações de domínio e servidão. O escravo é A teoria marxista, ao contrário, considera historicamente
totalmente subordinado ao seu senhor e é precisamente por toda forma social. Ela, portanto, se propõe por tarefa expli-
esta razão que esta relação de exploração não necessita de car as ' condições materiais, historicamente determinadas, que
nenhuma elaboração jurídica particular. O trabalhador assa- r tenham feito desta ou daquela categoria uma realidade. As
lariado, ao contrário, surge no mercado como livre vendedor premissas materiais dá comunidade jurídica ou das relações en-
de sua força de trabalho e é por isso que a relação e explo- tre os sujeitos de direito foram 、・ヲゥョ。ウセ@ pelo próprio Mar:N,
ração capitalista se mediatiza sob a forma jurídica de contrato.
Eu creio que estes exemplos são suficientes para colocar em
evidênc!a a importância decisiva da categoria sujeito na análise 5. G. F. Puchta, Kursus der.Institqtion,en, Leipzig, 1950, t. I, p. 4-9.
da forma jurídica. ·t) 6. F. Hegel, Princípios da filosofia do direito, Leipzig. 1821, trad._
francesa na coleção Idéias, Gallimard, Paris, 1940, p. 84. Há tradução
As teorias idealistas do direito desenvolvem o conceito portuguesa (N. do T.). . J
de sujeito a partir desta ou daquela idéia geral, isto é, de 7. Idem, p. 88. (N. do T.: Versão extraída da tradução portugue-
sa: Guimarães Editores, trad. Orlando Vitorino, [s.d.], p. 63.)
8. Cf. Rozhdestvenskij, Teorija sub'ektivnych publicnych pravo
4. Karl Marx, O Capital, L. III, cap. XXXVII, trad. francesa. (Teoria do direito público subjetivo), p. 6.
84 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 85

no primeiro tomo de O Capital, mas apenas en passant, sob· lização, uma relação particular entre os homens enquanto in-
a forma de indicações muito gerais. Estas indicações, con- divíduos que dispõem de produtos, enquanto sujeitos cuja
tudo, contribuem muito mais para a compreensão do momen- "vontade habita nas próprias coisas". 10 "O fato de que os bens
to jurídico nas relações humanas do que qualquer tratado econômicos contêm trabalho é uma propriedade que lhes é
volumoso sobre teoria geral do direito. A análise da forma inerente; o fato de que·eles podem ser trocados é uma segun-
sujeito, em Marx, decorre imediatamente da análise da forma da propriedade que só depende de seus proprietários, com a
mercadoria. única condição de que estes bens sejam apropriáveis e alie-
náveis."11 Eis por que, ao mesmo tempo em que o produto
A sociedade capitalista é antes de tudo uma sociedade
do trabalho reveste as propriedades da mercadoria e torna-se
de proprietários de mercadodas. Isto significa que as relações
portador de valor, o homem torna-se sujeito de direito e por-
sociais dos homens no . processo de produção possuem uma
tador de direitosY "A pessoa cuja vontade é declarada deter-
forma coisificada nos produtos do trabalho que se apresen-
minante é o sujeito de direito."13
tam; uns em relação aos outros como valores. A mercadoria
A vida social, ao mesmo tempo, se desloca, por um lado,
é um objeto no qual a diversidade concreta ·das propriedades
para uma totalidade de relações reificadas, nascendo espon-
úteis torna-se; simpl_esmente, o envólucro coisifiCado da pro-
taneamente (como o são todas as relações econômicas: nível
priedade abstrata do valor, que se exprime como capacidade
de preços, taxa de mais-valia, taxa de lucro, etc.), isto é,. re-
de ser trocada em uma proporção . determinada em relação a
lações nas quais os homens não têm outra significação senão
outras mercadorias. Esta propriedade se exprime como uma
que a de coisa e; por outro lado, para uma totalidade de rela-
qualidade inerente às próprias coisas, em virtude de um tipo ções nas quais o homem somente é determinado na medida
de lei natural que age indepe11dente dos homens, de maneira
em que se oponha a uma coisa, quer dizer, é definido como
totabnente indiferente às suas vontades.
sujeito. Esta é precisamente a relação jurídica. Tais são as
Mas se a merca.doria adquire o seu valor independente- formas fundamentais que, originariamente, distinguem uma da
mente. da vontade do sujeito que a produz, a realização do outra; mas que, ao mesmo tempo, condicionam-se mutuamente
valor, no processo de troca, pressupõe, ao contrário, um ato e estão estreitamente ligadas entre si. O vínculo social enrai-
voluntário, consciente, de parte do proprietário da mercado-. zado na produção apresenta-se simultaneamente sob duas for-
ria, ou, como diz Marx: "As mercadorias . não podem por si
próprias irem ao mercado. nem trocar-se entre si. PreCisamos, 10. K. Marx, O Capital, I, cap. 11, p. 95.
então, voltar a nossa atenção para os seus guardiães e condu- 11. R. Hilferding, Bohm-Bawerks Marx-kritik, Wien,. 1904, p. 54.
tores, isto é, para os. seus possuidores. As mercadorias são 12. O homem enquanto mercadoria, isto é, escravo, torna-se re-
coisas e, conseqüentemente, não opõem nenhuma resistência flexamente sujeito, desde que surja como indivíduo dispondo de coisas-
mercadorias e participe da circulação (cf. sobre o direito dos escravos,
ao homem. Se elas não estão com boa vc;mtade, ele pode em- quando da conclusão dos contratos no direito romano: I. A. Pokrovskij,
pregar a força, em outros termos, apoderar-se delas.' 19 Jstoriia rimskogo prava [Hist6ria do direito romano], t. 11, 2:- ed., Pe-
.Assim, o vínculo so.cial entre os homens no processo de trogrado, 1915, p. 294). Na sociedade moderna, ao contrário, o homem
livre, quer dizer, o proletário, quando procura·, enquanto tal, um mer-
produção, vínculo reificado nos produtos do trabalho e sob cado para vender sua força ·de trabalho, é tratado · como um ッセ@ e
a forma de uma legalidade elementar, exige, para a sua rea- cai sob a dependência das l.ek. de imigração, sob o golpe das proibições,
fixação de quantidades, etc., que regem as outras mercadorias introduzi·
das no interior das fronteiras estatais. ,
9. K. Marx, O Capital, l, cap. 11, p. 95. Ed. brasileira: Sito Paulo, 13. B. Windscheid, Lehrbuch des Pandektenrecht, t. I, Frankfurt,
Nova Cultural, 1988, 3.• ed., p. 79 El seg. 1906, § 49.
86 E. B. PASUKANIS. A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 87

mas absurdas, de um lado, como valor mercantil e, do outro, em compensação, agora, enquanto sujeito jurídico, Ulll- presente
COlDO càpacidade do homem ser sujeito de direito. singular: uma vontade juridicamente presumida que o toma
Assim como a. diversidade natural das propriedades úteis totalmente livre e igual entre os proprietários de mercadorias.
de um produto só aparece na mercadoria sob a forma de sim- "Todos devem ser livres e ninguém deve entravar a liberdade
ples invólucro de seu valor e como as variedades 」ッョイセエ。ウ@ dos outros. Cada um possui o seu corpo como livre instru-
do trabalho humano se dissÓlvem no trabalho humano abstra- mento de sua vontade.''15 Tal é o axioma do qual partem os
to, como criador de valor, igualmente a diversidade concreta t!!Qticos do direito natural; e esta idéia de isolamento, de vol·
da ,relação do homem com a coisa aparece como vontade tar-se .sobre si próprio, da pessoa humana, deste "estado na·
abstrata do proprietário e todas as particularidades concretas, J
tural", de onde decorre "o conflito da liberdade até o . infini-
que distinguem um representante da espécie Homo sapiens de to"; corresponde adequadamente à produção mercantil na quál
outro, se dissolvem na abstração do homem em geral, do ho· os produtores são formalmente independentes uns dos outros
mem ·como sujeito 、セ@ direito. e somente estão vinculados entre si pela ordem jurídica arti-
Se a coisa domina economicamente o homem, porque ela fieiálmente ·criada, Esta própria condição jurídicaj ou, para
coisifica, a título de mercadoria, uma relação social que não empregar as palavras do mesmo autor, "a existência .simultâ-
está subordinada ao homem, este, em resposta, reina juridi- nea de numerosas criaturas livres, que devem todas ser livres
camente sobre a coisa, porque, ele próprio, na qualidade de e cuja liberdade não pode entravar a liberdade dos outros",
possuidor e de proprietário, não é mais do que uma encar- não é mais do que o mercado idealizado, transposto para as
nação do sujeito de direito abstrato, impessoal, um puro pro- nuvens da abstração filosófica e liberado da grosseira empiria,
duto das relações sociais. Segundo os termos de Marx; ''Para .na qual se encontram os produtores independentes, pois, como
colocar estas coisas em relação umas com as oúiras, a título nos ensina um outro filósofo: "no contrato comercial, as duas
de mercadoria, os seus gÜardiães devem, eles próprios, se colo-- partes fazem o que querem e cada parte não exige para si
carem em relação entre si a título de pessoas cuja vontade mais liberdade do que aquela que .concede à otitra''Oi6
habita nestas mesmas coisas, de tal forma que a vontade de ·Um A crescente divisão do trabalho, a .melhoria das comu-
é também. a vontade do outro e que cada um se apropria da nicações e o consecutivo desenvolvimento da troca fazem do
mercadoria estranha, abandonando a sua, através de . um ato valor uma categoria econômica, quer dizer, a encarnação das
voluntário comum. Eles devem. portanto, reconhecer-se red- relações sociais de produção que dominam o indivíduo. Mas
T@
procamente como ーイッゥ・エ£■ウセカ。、Nュ Ísto necessita·· que os 、ゥヲ・イセョエウ@ atos acidentais de troca trans·
·Evidentemente que a evolução histórica _da propriedade
formem-se em uma circulação ampliada e. sistemática de mer-
enquanto instituição jurídica, compreendendo todos os diver-
cadorias. Neste estágio de desenvolvimento, o valor distin-
sos modos de aquisição e proteção da propriedade, todas as
gue-se das avaliações ocasionais, perde o seu caráter de fenô-
modificações relativas aos· diversos objetos, etc., não se coh·
meno psíquico individual e adquire uma significação econô-
sumou de maneira tão ordenada e coerente como á dedução
micá objetiva. As condições reais são necessárias, igualmentt,
lógica acima .mencionada. Mas somente esta dedução desven-
para. que o homem se transforme de indivíduo zooldgico em
da-nos o sentido geral do processo histórico. um sujeito de direito abstrato e impessoal, em uma pessoa
Após ter caído em uma dependência do escravo· face
jurídica. Estas condições reais são, .,de um lado, o estreita-
às relações econômicas que nascem à sua frente sob a forma
mento dos vínculos soc!ais e, de outros, a: crescente pujança\
de lei do valor, o s_!:tieito ・」ッョ￴ュゥセ@ recebe, por assim dizer,
15. J. Ô. Fichte, Rechtslehre, Leipzig, 1912, p. 10.
14. K. Marx, O Capital, I, cap. 11, p. 95. Ver nota 9. 16. H. Spencer, Social statics, Londres, ·1851, cap. XIII.
88 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 89

da organização social, isto é, da organização de classe que Neste estágio de desenvolvimento, a pretensa. teoria vo-
atinge o seu apogeu no Estado burguês "bem ordenado". A litiva dos direitos subjetivos começa a se revelar inadequada.
capacidade de ser sujeito de direito destaca-se, então, defini- à realidadeY Prefere-se definir o direito em sentido subjetivo
tivamente da personalidade concreta, viva, deixa de ser uma como "a parte de bens que a vontade geral atribui e garante
função de sua vontade consciente, eficaz, e torna-se uma sim- a uma pessoa". A capacidade de querer e de agir não é re-
ples propriedade social. A capacidade de agir se abstrai da quisitada nesta pessoa. A definição de Dernburg, bem enten-
capacidade jurídica, o sujeito de direito um doublé na pessoa dido, aproxima-se bastante do universo intelectual dos juristas.
de um representante é adquire ele próprio a significação de modernos que operam com a capacidade jurídica dos defi-
um ponto matemático, de um núcleo no qual se concentra cientes mentais, dos recém-nascidos, das pessoas jurídicas, etc.
um. certo número de direitos. A teoria da vontade, em compensação, equivale, em suas últi-
A propriedade burguesa capitalista deixa, conseqüentemen- mas conseqüências, à exclusão das categorias mencionadas, da
. te, ·de ser uma posse flutuante e instável, uma posse puramente relação dos sujeitos de direito.'? Dernburg está, sem nenhuma
de fato, que pode ser contestada a todo instante e que deve dúvida, muito mais perto da verdade, ao conceber o sujeito
ser defendida de armas na mão. Ela se transforma em um de direito como um fenômeno puramente social. Mas,· por
direito absoluto, estável, que segue a coisa em todos os luga- outro lado, vê-se muito claramente por que o elemento da·
res a que o acaso a atire e que, desde que a civilização bur- vontade joga, na construção do sujeito de direito, um ·papel
guesa estendeu a sua dominação sobre todo o globo, é pro- tão essencial. E. isto que Dernburg, em parte, também vê
.. tegida no mundo inteiro pelas leis, pela polícia e pelos tri-
bunaisP
quando afirma que "os direitos, em sentido subjetivo, existi-
ram historicamente muito antes da formação de um sistema
estatal consciente de si próprio . .Eles estavam fundamentados
17. O desenvolvimento do pretenso direito de guerra não é outra
ria personalidade dos indivíduos e sobre o respeito que eles
coisa além de" uma consolidação progressiva do princípio da inviolabi- souberam ganhar e impor pelas suas pessoas e seus bens . Foi
lidade da propriedade ·burguesa. Até a ·época da Revolução Francesa a somente pela abstração que se pôde formar progressivamente,
população civil era pilhada sem limites nem escrúpulos, tanto pelos seus a partir da concepção de direitos subjetivos existentes, o con-
próprios . soldados como pelos do inimigo. Benjamin Franklin foi o ceito de ordem jurídica. A concepção segundo a qual os di-
J'rimeiro a prociamar em 1785 o princípio político pelo quál nas guer-
ras futuras "os camponeses, os. artesãos e os comerciantes devem poder reitos, em seu sentido subjetivo, são apenas a emanação do
continuar pacificamente as suas ocupações sob a proteção das partes be- direito em seu sentido objetivo, é, portanto, não histórica e
ligerantes". Rousseau fixou, C()mo regra, no Contrato social que a guerra \ falsa". 20 Evidentemente, somente aquele que não possui ape-
deve ser travada entre os Estados, mas não entre os cidadãos destes nas uma vontade mas que detivesse também uma parte impor-
Estados. A legislação da Convenção punia muito severamente a pilha- tante do poder poderia "ganhar e impor o respeito". Contu-
gem praticada por soldados; tanto em seu próprio país como no estran-
geiro. Somente em 1899, em Haia, é que os princípios da Revolução Fran- do, como a maior parte dos juristas, Dernburg tem igualmente
cesa foram erigidos em direito internacional. A eqüidade nos obriga a a tendência a tratar o sujeito de direito enquanto "personali-
mencionar que Napoleão ·experimentou certos escrúpulos ao decretar o ·dade em geral", isto é, como uma categoria eterna situada
Bloqueio continental e que ele houve por bem justificar esta medida, em fora das condições históricas determinadas. Deste ponto de
sua mensagem ao Senado, "que em conseqüência das hostilidades entre
os soberanos faz sofrer prejuízo aos interesses de pessoas privadas" c
"lembra as barbáries dos séculos passados''; quando da última guerra 18. Cf. H. Dernburg, Pandeckten, t. I, Berlim, 1902, § 39.
mundial, ao contrário, os governantes burgueses lesaram abertamente, 19. Cf. em relação às pessoas jurídicas: Brinz, Pandeckten, t. 11,
p. '984.
sem nenhum escrúpulo, os direitos de propriedade dos cldadloa daa
duas partes beligerantes. 20. H. Dernburg, op. cit., § 39.
90 E. B. PASUKANIS
A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MAR)ÇISMO 91
vista, o que é próprio do homem, como ser animado e pro-
dica abstrata, em outras palavras, que ª_çapacidade geral de
vido de vontade racional, é ser sujeito de direito. Em reali-
possuir direitos se separa das pretensões jurídicas concretas.
dade a categoria sujeito do direito é evidentemente abstraída
Só a contínua transferência de direitos que ocorre no_ merca-
do ato âe ·troca que ocorre no mercado. ZァセqャBcゥ。Q・ョエ@ neste
do cria a idéia de um portador imutável destes direitos. No
ato de troca que o homem realiza praticamente a liberdade
mercado, aquele que obr!ga, obriga-se simultaneamente. A todo
formal de autodeterminação. A relação do mercado transfor-
momento ele passa da condição de credor à de. obrigado.
ma esta oposição entre o sujeito e o objeto em J,lm significado
Assim foi criada a possibilidade de abstraírem-se as diferen-
jurídico cparticular. o objeto é a mercadoria, o sujeito é o ças concretas entre os. sujeitos de direito e englobá-los sob um
proprietário de mercadorias .que delas dispõe no ato de apro- único conceito genético. 21
priação e de alienação. g precisamente no ato de· troca que
·o sujeito manifesta, primeiramente, toda a plenitude de suas Da mesma fbrma que os atos de troca da produção mer-
determinações. O conceito, formalmente mais acabado, de su- cantil ôésenvolvida foram precedidos por atos ocasionais e de
ieito, que doravante abrangerá apenas a capacidade jurídica; formas primitivas de troca, tais como, por exemplo, as
afasta-nos muito mais do significado histórico real desta cate- doações recíprocas; igualmente, o sujeito de direito, com
goria jurídica.:e por isso que é tão difícil aos juristas renun- a esfera de domínio jurídico que se estende à sua volta,
. ciar ao elemento voluntário ativo em suas .construções dos foi precedido historicamente pelo 'indivíduo armado, ou,
conceitos de "Sujeito" e de "Direito subjetivo". mais freqüentemente, por um grupo de homens (gens, horda,
tribo), capaz de defender no conflito, na luta, o que para
A esfera de domínio que .envolve a forma do direito sub- ele representa as suas próprias condições de existência. Esta
jetivo é um fenÔmeno social que é atribuído ao indivíduo da estreita relação morfológica criou um vínculo evidente entre
mesma forma que o valor, outro fenômeno social, é atribuído o tribuna) e o duelo entre as partes de um processe) e os pro-
à coisa enquanto produto do trabalho. O fetichismo da mer- tagonistas de uma luta armada. Mas com o crescimento das
cadoria é completado pelo fetichismo jurídico. forças sociais regulag()ras, o sujeito perde a sua concretização
As relações entre os homens no processo de produção material. Em lugar de sua energia pessoal, surge a força da
possuem em um determinado estágio de desenvolvimento, uma organização social, ou. seja, da organização de classe, que en-
forma duplamente enigmática. Elas parecem, por um lado, contra· a sua expressão ptais alta no Estado. 22 ·A abstração
como relações entre coisas (mercadorias) e, por outro lado,
como relações de vontade entre unidades independentes umas
'-....
das outras, porém iguais: como relações entre sujeitos de di-
21. Na Alemanha, isto ocorreu apenas no momento da implantação
reito. Ao lado da propriedade mística do valor surge uni do direito romano, como demonstra, a propósito, a ゥセ・クウエ↑ョ」。@ de um
fenômenb não menos enigmático: o direito. Ao mesmo tem- termo alemão· para os conceitos de "pessoa" e de "sujeito de direito''
po a relação unitária e total possui dois aspectos abstratos e . (cf. (). Gierke, d。エセ@ Peutsche Genossenschaftsrecht, 3 vol., Berlim, 1873;
fundamentais: um aspecto econômico e um 。セー・」エッ@ jurídico. vol. 2: Geschichte des deutschen Korperschajtsbegrijfs, p. 30).
No desenvolvimento das categorias jurídicas a capacidade de 22. A partir deste momento a figura do sujeito de direito começa
a não parecer mais o que ele é na realidade, isto é, o reflexo de uma
efetuar atos de troca é apenas uma das diversas manifestações
relação que nasce sob os olhos dos homens, mas parece ser uma, invenção
con<;retas da capacidade jurídica e da capacidade .de agir. His- artificial da razão humana. Mas as próprias relações tomou-se tão
toricamente, todavia, o ato de troca faz consolidar a idéia do habituais que parecem ser condições indispensáveis de toda comunidade.
sujeito como portador de todas as pretensões jurídicas possí- A idéia de sujeito de direito é uma construção artificial com a mesma
:e
veis . apenas na economia mercantil que nasce a forma jurí- significação para a teoria científica do direito, que possui a idéia do
caráter 。イエゥヲセ」ャ@ do dinheiro para a economia política. ·

l
92 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 93

impessoal de um poder estatal agindo no espaço e no tempo A igualdade dos sujeitos somente era pressuposta para
com regularidade e continuidade ideal corresponde, então, ao relações compreendidas em esfera relativamente pequena.
sujeito impessoal e abstrato do qual é ·o reflexo. Assim, os membros de um mesmo estado social, na esfera dos
. Este poder abstrato tem um fundamento bastante real na direitos dos estados, os membros de uma corporação eram
organização do aparelho burocrático, do exército permanente, iguais ·na esfera dos direitos corporativos. Nesta etapa o su-
das finanças, dos meios de comunicação, etc. A condição pré- jeito de direito só ·aparece como portador abstrato de todas
via de todo este conjunto é o desenvolvimento correspondente as pretensões jurídicas concebíveis na qualidade de titular de
das forças produtivas. Mas·, antes de se utilizar dos mecanis- privilégios c.oncretos.
mos· estatais, o sujeito apóia-se sobre a estabilidade e a conti· "No fundo, a proposição do direito romano, segundo a
nuidade orgânica das relações . Assim como a repetição regular qual a personalidade é, em si, igual e a desigualdade apenas
do ato de troca constitui o valor em uma categoria geral, que a conseqüência. de uma regra de exceção do direito positivo,
se eleva acima da avaliação subjetiva e de proporções ocasio- não se impôs atualmente, seja na vida jurídica, seja na cons-
nais de troca, assim também a repetição regular destas mes- ciência jurídica."24 ·
mas relações - o uso - confere um novo sentido à esfera Dado que na Idade Média não havia o conceito abstrato
· subjetiva de domínio, dando um fundamento à sua existência de. sujeito de direito, a idéia de uma norma objetiva endere-
por uma norma externa. O uso, ou a tradição, enquanto fun- çada a um círculo indeterminado e amplo de pessoas con-
damento supra-individual das pretensões jurídicas, corresponde fundia-se,. igualmente, com a instituição de privilégios e de li-
à estrutura. feudal com seus li).nites e rigidez. A traâição ou berdades concretas. No século XIII ainda não se encont.ta
o uso é por e!)sência qualquer coisa que está compreendida nenhum traço de representação clara da diferença existente
em uma área geográfica determinada, bastante restrita. Eis entre direito objetivo' e direito subjetivo, ou possibilidade ju-
por que cada direito só se relaciona com um sujeito concreto rídica. Nos privilégios e nos f orais concedidos pelos impera-
ou a um grupo limitado de sujeitos . .No mundo feudal, cada dores e príncipes às cidades, encontra-se, a cada momento, a
direito era um privilégio, diz Marx. Cada cidade, cada estado confusão erttre esses dois conceitos. A forma habitual do estabe-
social, cada corporação vivia segundo o seu próprio direito, lecimento de uma regra ou de uma norma geral é o reconheci-
o qual seguia o indivíduo onde quer que ele fosse. A idéia mento de qualidades jurídicas a um ãeterminado espaço terri-
de um estatuto jurídico formal, comum a todos os dd11dãos, torial ou a uma parte da população. A célebre fórmula:
a todos os homens, era completamente estranha àquela época. Stadtluft macht/rei (o ar citadino torna livte) tinha igualmente
セウエ。@ situação correspondia, no âmbito econômico, a unidades "-..
este caráter, e a supressão dos direitos judiciários foi também
econômicas fechadas, auto-suficientes, e à proibição de impor- realizada dà mesma forml:!. Ao lado de tais disposições, os
tação e de exportação, etc . direitos dos citadinos à utilização das florestas principescas ou
''Jamais a personalidade possuiu um conteúdo inteiramen- ·imperiais foram concedidos de maneira . semelhante.
te idêntico. Originalmente, o Estado, a propriedade, a profissão, No direito municipal pode-se observar a mesma mistura
o medo, a idade, o sexo, a força física, etc. levaram a uma de momentos subjetivos e objetivos. As cartas urbanas eram,
desigualdade tão profunda da capacidade jurídica quo nllo se em parte, regulamentos gerais e, em parte, a enumeração de
via, além destas diferenças concretas, nas quais a per1onulldade direitos ou privilégios particulares atribuídos a grupos de de-
permanecia, apesar de tudo, idêntica a ela mesma."11 . terminados cidadãos.

23. O. Gierke, op. cit., p. 35. 24. Id., ib., p. 34.


A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 95
94 E. bセ@ PASUKANIS

qoelação jurídica .é dada pela própria relação econômica". Uma


Apenas com o completo desenvolvimento das rellições vez nascida, a idéia de contrato tende a adquirir significação
..burguesas é que o direito assumiu um caráter abstrato. Cada universal. Os possuidores de mercadorias, antes de se reccr
-liomem torna-se um homem em geral, cada trabalho torna-se nhecerem mutuamente como proprietários, já eram proprietá-
trabalho social útil em geral, cada indivíduo torna-se um su- rios, mas em sentido diferente, orgânico, extrajurídiço. "O
jeito de direito abstrato.25 Ao mesmo tempo a norma assume, reconhecimento recíproco" é umà tentativa de explicar, com
igualmente, a forma lógica acabada de lei geral abstrat!!. a ajuda da fórmula abstrata do contrato, as forrp.as orgânicas
O sujeito de direito é, em conseqüência, um proprietá- de apropriação, que repousam セッ「イ・@ o trabalho, a conquista,
rio abstrato e transposto para as nuvens. Sua vontade,. em etc., que a sociedade de produtores, desde seu nascimento, já
sentido jurídico, possui seu fundamento real no desejo de encontra constituídas. A relação entre o homem e a coisa é,
alienar ,na aquisição e de adquirir na alienação. Para que em si, destituída de qualquer significação jurídica. E isto que
esse desejo se realize é necessário que os desejos dos proprie- os juristas percebem quando tentam dar à instituição da prcr
tários de mercadorias concordem reciprocamente. Jurídica· priedade privada o significado de uma relação entre sujeitos,
mente esta relação exprime-se .como contrato, ou como acordo ou seja, entre homens. Mas constroem essa relação de ma-
entre vontades independentes. I!. por isso que o contrato é um neira puramente formal e n€(_gativa, como uma proibição geral
conceito central no 、ゥイ・エッセ@ ·Dito de· maneira mais enfática: o que exclui, à exceção do proprietário, de todos os outros in-
contrato representa um elemento constitutivo da idéia de direi- divíduos o direito de usar é gozar dela.26 Certamente esta con-
to. No ·sistema lógico. de conceitos jurídicos, o contrato nada cepção é suficiente para os fins práticos da dogmática jurídica,
mais é do que uma variedade do ato jurídico em geral, isto é, mas é completamente inutilizável para a análise teórica. Nes-
nada além do que um dos meios de manifestaÇão concreta da tas proibições abstratas, o conceito de propriedade perde toda
vontade com a ajuda da qual o sujeito age na esfera ェオイ■、ゥ」セ@ a sua significação concreta e se separa de sua própria história
que o cerca. Histórica e concretamente, o conceito de ato pré-jurídica.
jurídico é, ao revés, extraído do de contrato. Fora do con- Mas se a relação orgânica, "natural", do homem com a
trato os conceitos jurídicos de sujeito e vontade não são mais coisa,· ou seja, a apropriação, forma o ponto de partida gené-
do que abstrações mortas. I! apenas no contrato que tais tico do desenvolvimento, a ·transformação desta relação em
conceitos existem autenticamente. Ao mesmo tempo, a forma uma relação jurídica ocorre sob a influência de necessidades
jurídica, em seu aspecto mais simples e -inais puro, recebe, ·
igualmente, no ato de troca, um fundamento material. ..._ 26. Neste sentido, por exemplo, B. Windscheid, Lehrbuch des
O ato de troca concentra, por conseguinte, como um Pendéktenrecht, Frankfurt, 1906, t. I, § 38, partindo do fato セ・@
foco os momentos essenciais da economia política e do que ci direito só pode existir entre pessoas e uma coisa, conclui: "o di-
direito. Na troca, como diz :rvfarx, "a relação de vontade ou reito real só conhece proibições. O contetído da vontade que determina
o direito real é um conteúdo negativo; aqueles que se encontram em
face do titular do direito devem abster-se de agir sobre a coisa e não
25. "Uma sociedade na qual o produto do trabalho geralmente devem, com seu comportamento, obstruir a ação do titular do direito
toma forma de mercadoria, e, onde, em . conseqüência, a relação mais sobre ・ャ。セ@ :A conclusão lógica desta mªneira de examinar o problema é
geral entre os produtores consiste em comparar os valores de seus pro- tirada por Schlossman (Der Vertrag), que considera o conceito de di-
dutos e, sob esta capa de coisas, em comparar os seus trabalhos privados reito real unicamente como um "meio terminológico auxiliar". _H. Dem-
com trabalho humano igual, uma tal sociedade encontra no cristianismo, burg (Pendektenrecht, tomo I, parágrafo 22, notas) sustenta, ao contrário,
com seu culto ao homem abstrato e, sobretudo, nos seus tipos burgueses, o ponto de vista segund<;> o qual "mesmo a propriedade, que se afigura
protestantismo. deísmo, etc., o complemento religioso mais conveniente" como o mais positivo de todos os direitos, juridicamente não é mais do
(Karl Marx, O Capital, I, cap. I, pp. 90-91. Ed. brasileira: Silo Paulo. que um simples conteúdo negativo".
Nova Cultural, 3.• ed., 1988, p. 45 e segs.).
96 E. Jl. PASUKANJS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 97

criadas pela circulação dos bens, ou seja, essencialmente pela (espoliação, violência, etc.), mas na sua imobilidade, na sua
contpra e venda. Hauriou chama a atenção para o fato de incapacidade de tornar-se uma garantia recíproca ao passar de
que o comércio marítimo e o comércio das caravanas criara uma mão à outra, pelo ato de alienação e aquisição. A proprie·
originalmente a necessidade de garantir a propriedade. A dis- dadé feudal ou corporativa . viola o princípio fundamental da
tância que separava os comerciantes era a melhor garantia con- sociedade burguesa: "igual oportunidade de acesso à desigual·
tra as pretensões abusivas. A formação de um mercado está- dade". Hauriou, um dos juristas burgueses mais perspicazes,
vel cr!ou a necessidade de JJIJla regulamentação do direito de coloca, justamente em primeiro plano. a reciprocidade como
、ゥセーッイ@ das mercadorias e, em conseqüência, do direito de pro· garantia mais eficaz da propriedade e a que exige a mínima
pí-iedade.27 violência exterior. Esta reciprocidade garantida pelas leis do
O título de propriedade . no antigo 、ゥイ・セエッ@ romano, man- p1ercado dá à propriedade a sua característica de instituição
cipatio per aes et libram, mostra que ele. nasceu ウゥセオャエ。ョ・ᆳ ''eterna". A simples garantia política dada pelo aparelho de
mente com· o fenômeno ·da troca interna. Igualmente a suces- セッ。￧ ̄@ estatal reduz-se, ao· revés, à proteção de uma deter·
são hereditária só foi instituída como título de propriedade no minada situação· pessoal dos proprietários, quer dizer, a um
momento em que as relações civis descobriram- um' interesse momento que não possui significação de princípio; Na histó-
em tal transferência de bens.28 ria, freqüentemente, a luta de classes provocou uma redistri·
Na troca, para empregar os termos de Marx, um dos pro- buiÇão da propriedade, bem como a expropriação dos usurá·
prietários da mercadoria só pode se apropriar da mercadoria rios e dos grand6s proprietários fundiários.29 Porém, estes con·
alheia e alienar a sua com o consentimento do outro proprie- tratempos 1 tão desagradáveis quanto possam ter sido, para os
tário. セ@ precisamente esta idéia que os representantes da dou- grupos e classes que os sofreram, não puderam abalar os fun·
trina do direito natural querem exprimir ao tentar fundamen- damentos da propriedade. privada: o vínculo, ·mediado pela
tar ·a propriedade sobre um contrato originário. Eles têm razão, troca, das esferas econômicas. Os mesmos homens que ,.se in-
não porque tal contrato tenha existido historicamente, mas no surgiram contra a propriedade, .a afirmaram no dia em que se
sentido de que as fbrmas naturais ou orgânicas de apropriação colocaram no mercado como ·produtores independentes. Tal
revestem-se de um caráter de "razão" jurídica nas ações_ イ・ゥセ@ foi o rumo de todas as revoluções não-proletárias. Tal é a
procas de aquisição e alienação. No ato de alienação, a reali- conclusão lógica do ideal dos anarquistas que rejeitam as ca-
zação do direito de propriedade como abstração torna-se uma racterísticas exteriores do direito burguês, a coerção estatal e
realidade. Qualquer emprego de uma coisa está ligado a seu as セ・ゥウL@ mas que delxani subsistir a sua essência interna, o
1tjpo concreto de utilização como bem de consumo oti bem de livre contrato entre produtores indepen'dentes.30
produção. Mas, quando a coisa atua como valor de troca, ela 29. "Tanto é verdade, lembra Engels em certa ocasião, que há
torna-se impessoal, um simples objeto jurídico, e o sujeito que dois mil e quinhentos anos a propriedade privada só pode manter-se
dela dispõe, um simples sujeito de direito. Deve-se procurar violando a propriedade." F. Engels, A origem da familia; da proprieda.de
a explicação na contradição existente entre a propriedade privada e do Estado. Stuttgart, 1884, trad:·rranc., Jeanne Stern, Ed. So-
feudal e a pmpriedade burguesa em suas respectivas relações ciales, Paris, 1954, p: 107. Há edição brasileira da Editora Civilização
Brasileira; 1975 (N. do T.). ,
com a circulação. A principal falha da propriedade feudal, 30. Neste sentido, por exemplo, Proudhon explica: "Eu quero o
para os olhos do mundo burguês, não reside na sua origem contrato, mas não as leis; para que eu seja livre, todo edifício social
deve ser construído sobre a base de um contrato recíproco" (P. J.
Proudhon, A idéia geral da Revolução do século XIX, 1851, p. 138).
27. M. Hauriou, Princípios de direito público, p. 286. Mas em seguida acrescenta: "A norma segundo a qual o contrato deve
28. ld., ib .• p. 287. ser celebrado não repousará exclusivamente sobre o jurista, mas, também,

l
98 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 99

Assim, apenas o desênvolvimento do mercado cria a ne- Karner percebe que "vem à idéia do proprietário exercer
cessidaqe e a possibilidade de transformação do homem, que a função jurídica da propriedade, alienando a coisa".32 Porém,
apropria-se das coisas pelo. trabalho (ou pela espoliação), em ele não vê, de modo algum, que o "jurídico" começa exata-
proprietário jurídico. Entre essas duas fases não existem fron· mente quando esta função .é ''exercida"; enquanto esta não
teiras claras. O "natural" passa imperceptivelmente para o existe, a apropriação não passa de simples apropriação natu-
"jurídico", da mesma maneira que o roubo à mão armada ral, orgânica.
está estreitamente ligado ao comércio. Karner reconhece que "a compra e venda, o empréstimo,
Karner tem outra concepção da propriedade. Segundo a o crédito, a locação também existiram outrora, mas com exten-
sua definição, "a -propriedade é, de jure, o poder que a pessoa são, subjetiva e objetiva, restrita".33 Com efeito, essas diversas
A tem de dispor da coisa N, a relação nua entre um indivíduo formas jurídicas de circulação dos bens existiram tão . precoce-
e uma coisa natural que não diz respeito a nenhuM outro mente que já se encontrava uma formulação precisa do emprés-
indivíduo (sublinhado por mim, E. P.) e a nenhuma outra timo e do empréstimo com garantia, antes mesmo da própria
coisa; a coisa é uma coisa privada, o indivíduo urn iadivfduo elaboração da fórmula jurídica da propriedade. Este simples
privado, o direito é um direito privado. E assim que igual- fato nos fornece a chave para compreender corretamente. a
mente se passam as coisas no período da produção mercantil natureza jurídica da propriedade.
simples".31 Karner, ao contrário, crê que o homem, antes mesmo de
Toda esta passagem demonstra uma falsa compreensão comprar, de vendér ou hipotecar coisas e independentemente dis-
do problema. Karner reproduz aqui as "robinsonadas" em to, já era proprietário. As relações que ele menciona parecem-lhe
vigor. Mas, pergunta-se, por que dois Robinsons, que ignoram ser apenas ''instituições auxiliares, acessórios que preenchem
m:utuamente as. suas existências, concebem suas relações com as lacunas da propriedade pequeno-burguesa". Em outros ter-
as coisas juridicamente, ao passo que esta relação é inteira- mos, ele parte da representação de indivíduos totalmente iso-
mente uma relação de fato . Este direito de homem isolado lados, aos quais veio a idéia (não sabe por quê) de criar uma
merece ser colocado .ao lado do famoso valor do ''copo d'água "vontade geral" e, em nome desta vontade geral, ordenar ·a
no deserto". Tanto o valor quanto o direito de propriedade todos que -se abstenham de tocar nas coisas que pertençam
são engendrados por um único e mesll1o fenômeno: pela Cir- a outrem'. Após o que, esses Robinsons isolados decidem -
culação dos produtos transformados em mercadoria. A pro- tendo recorilíecido que o proprietário não pode ser conside-
priedade jurídica nasce, não porque veio à idéia dos homens rado como ser universal, nem enquanto força de trabalho, nem
se atribuírem reciprocamente tal qualidade jurídica, inas ーッイセ@ enquanto 'consumidor - completar a propriedade com as ins-
que eles não podem trocar mercadorias sem vestirem a más- tituições de compra, venda, empréstimos, crédito, etc. Este
cara jurídica. "O poder ilimitado de dispor da coisa nada esquema puramente ·racional inverte a evolução real das coisas
mais é do que o reflexo da circulação ilimitada das merc.a• e dos conceitos.
dorias". Karner simplesmente reproduz o sistema de interpretação
do direito das Pandectas que leva o nome de Hugo Heyse e
sobre a vontade comum dos homens vivendo em comunidade. Esta ífi cujo ponto de partida é, igualmente, o homem que se submete
vontade, em caso de necessidade, contemplará o respeito ao contrato. ,,
セNᄋ@ ᄋセ@
aos objetos do mundo exterior (direito real), para, em ウ・ァオゥセ@
pela violêncja" (id., p. 293). Mセイ@
31. J. Kamer (pseudônimo de Karl Renner), Die soziale Funktion
der Rechtsfnstitute, beson.ders des Eigentums, in: Marx-Studien, t. I 32. Id .. ib .. p. 175.
1904, p. 173. 33. I d., loc. cit.

II
,t t'
100 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 101

. da, passar à troca de serviços (direito das obrigações) e final- mais confusão do que certeza. A propriedade fundiária capi-
mente 'às normas que .regulam a situação do homem como talista não pressupõe qualquer modalidade de vínculo orgâni-
membr-o de uma família e o destino de seus. bens após sua co entre a. terra e seu proprietário. Aliás, ela não é conce-
morte (direito de família e direito das sucessões). A relação bível sem a sua transferência inteiramente livre de uma mão
do homem com uma coisa que ele próprio produziu, ou fur- à outra.
tou, ou que constitui também uma parte de sua personalidade O próprio conceito de propriedade fundiária surgiu jun-
(jóias, armas), representa sem nenhuma dúvida, historicamen- tamente com a propriedade fundiária e alienável. Os fundos
te, um elemento do desenvolvimento da propriedade privada. de terra comuns das pastagens comunais não eram, em sua
Representa a forma originária, bruta e limitada dessa proprie- origem, propriedade de uma pessoa jurídica (tal conceito não
dade. Mas a propriedade privada somente assume um caráter existia) mas eram utilizados pelos membros da Marka enquan-
acabado e universal com a passagem à economia mercantil to pessoa coletiva.35
ou, mais exatamente, à economia mercantil capitalista. Ela, A propriedade capitalista é, no fundo, a liberdade de
então, torna..se indiferente ao· objeto e rompe todo o vínculo transformação do capital de uma forma à outra, .a liberdade
com as sociedades humanas orgânicas (gens, família, comuni- de transferência do capital de um círculo a outro, tendo em
dade) . Ela surge em sua significação universal como." círculo vista auferir o maior lucro possível sem trabalhar. Esta liber-
exterior de liberdade" (Hegel), quer dizer, como realização dade de dispor da propriedade capitalista é impensável sem
prática da capacidade ·abstrata de ser sujeito de direito. a existência de indivíduos despojados de propriedade, isto é,
Sob a forma puramente jurídica a propriedade, logicamen- de proletários. ·A forma jurídica da propriedade não está em
te, tem poucas coisas em comum com o princípi9 .orgânico e contradição com a exprqpriação de um grande número de ci"
natural de apropriação privada como o resultado de um des- dadãos, pois a condição de ser sujeito de direito é uma con-
dobramento da força pessoal ou como condição de tim con- dição puramente formal. Ela define todas as pessoas como
sumo e de um uso. pessoal. A relação do proprietário com a igualmente "dignas" de serem proprietáriàs, não obstante não
propriedade é - uma vez que toda a realidade econômica as torne proprietárias. Esta dialética da propriedade capi-
fagmentou-se no âmbito do mercado - abstrata formal, con- talista está exposta de maneira grandiosa em O Capital,
dicionada e racionalizada, agora .uma relação do homem com de Marx, seja quando ela assume a forma jurídica · "imu-
o produto de seu trabalho, por exemplo, um pedaço de terra tável", seja quando ela é fragmentada pela violência (no pe-
cultivada pelo seu trabalho pessoal, representa algo de ele- ríodo da acumulação primitiva). As pesquisas de Karner, sob
mentar e compreensível, mesmo para o pensamento mais pri- este ângulo, oferecem pouca novidade, se comparadas ao tomo
mitivo.34 I de O Capital. Mas onde Kamer quer ser original, semeia
Se estas duas instituições, a apropriação privada como con- a confusão. Já demonstramos a sua tentativa de abstrair a
dição do uso pessoal livre, e a apropriação privada como con- propriedade do momento que a constituiu juridicamente, da
dição da alienação ulterior no ato de troca, se unem uma à troca. Esta concepção, puramente formal, acarreta um outro
outra por um vínculo direto, elas constituem categorias dife- erro ao -examinar a .passagem da propriedade pequeno-burguesa
rentes, e o termo ''propriedade" cria, em relaç!o aos dois. para a propriedade capitalista, Karner declara que "a institui-
ção da propriedade conheceu um rico desenvolvimento em tem-
.34. Eis por que os defensores da propriedade privada gostam pllr· po relativamente curto, sofreu uma transformaçãó completa,
ticularmerite de apelar para esta relação elementar, pois sabem que a
força ideolÓgica dessa relação ultrapassa em muito sua significação eco-
nômica para a sociedade moderna. 35. O. Gierke, op. cit., p. 146.
102 E. B. PASUKANIS
A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 103

fõem que fosse modificada em sua natureza jurídica";36 e con-


clui, logo em seguida, que "a função social das instituições determinada, obtendo uma retirada sem trabalhar. Sua ati-
jurídicas muda, sem que se modifique a sua natureza jurídica". vidade econômica e jurídica enquanto proprietário é quase
inteiramente limitada ao consumo improdutivo. A massa prin-
Pergunta-se: a quais instituições se refere Karner? Se se
cipal do capital torna-se uma força de classe impessoaL Na
trata da fórmula abstrata do direito romano, nada poderia
medida em que esta massa de capital participa da circulação
mudar nela. Mas esta fórmula só regulou a pequena proprie-
mercantil, o que supõe a autonomia de suas diferentes partes,
dade na época das relações burguesas capitalistas.· Se, ao re-
estas partes autônomas aparecem como propriédade de pes-
vés, considerannos o artesanato corporativo e a economia ru·
soas jurídicas. Em realidade é um grupo relativamente restrito
ral da época da servidão, encontraremos uma série de ョッイュセウ@
de grandes capitalistas que dispõem de grande massa do ca-
restringindo o direito da propriedade. Certamente pode-se ッ「ェセᆳ
pital e que, ademais, não operam diretamente, mas por inter·
tar que estas restrições foram todas de natureza jurídico-públi-
médio de representantes ou procuradores estipendiados. A for·
ca e que elas não tocaram à instituição da propriedade como
ma· jurídica distinta da propriedade privada não reflete mais
tal. Mas, neste caso, a afirmação se reduz acy que se segue:
a real situação das coisas, sendo certo que, por métodos de
que uma fórmula abstrata determinada é igual a ela mesma.
participação e controle, etc. , a dominação efetiva se estende
Por outro lado, as formas de propriedade feudal e corpora-
tiva, ou seja, formas limitadas de propriedade, já manifesta- muito além dos quadros simplesmente jurídicos. Aproxima-
vam a sua função: a absorção do trabalho não pago. A pro- mo-nos, então, do momento em que a sociedade capitalista se
priedade da produção mercantil simples que Karner opõe à encontra madura para transformat-se no seu contrário. A con•
forma capitalista de propriedade é uma ábstração tão evidente dição política indispensável para tal transformação é a revo-
como a própria produção mercantil simples. Pois a transfor· lução de classe do proletariado.
mação de uma parte. dos produtos em mercadorias e o surgi- Porém, antes desta transformação, o desenvolvimento do
mento do dinheiro criam as condições para o surgimento do modo de produção capitalista, edificado sobre o princípio de
capital usurário que, segundo. a expressão de Marx, ''faz parte livre concorrênciá, transforma este princípio em seu contrário.
com o capital comercial, seu irmão gêmeo, das fonnas ante- O capitalismo monopolista cria . as premissas de um outro
diluvianas do capital, que precedem longamente o modo de sistema econômico no qual o movimento de produção e
produção capitalista e se reencontram nas · diversas estruturas da reprodução social se realiza, não por meio de con-
sociais mais diversàs, do ponto de vista econ0mico".37 Nós po- tratos particulares entre unidades econômicas autônomas, mas
demos concluir, em conseqU!ncia, contrariamente a Karner, · graças a uma organização centralizada e planificada. Esta
que as normas modificam-se, mas a funçlo social permanece organização é. criada pelos trusts, cartéis e outras uniões mo-
imodificada . · nopolistas. A simbiose, observada durante, a guerra entre as
Em razão da evolução do modo de produç,ão capitalista, orgaQ.izações capitalistas privadas e as organizações estatais,
o proprietário destaca-se, progressivamente. dàs funções téc· em uni podemso sistema de capitalismo de Estado burguês re-
. . '
nicas da· produção e, assim; perde o domínio jurídico total presenta uma realização destas tendências. Esta transformação
sobre o capital. Em uma sociedade comercial, o capitalista prática na vida jurídica não poderia passar despercebida na
individual só possui um título relativo à uma quota-parte teoria. Na aurora de seu desenvolvimento, o capitalismo in-
dustrial envolveu. o princípio de subjetividade jurídica em uma
certa auréola, exaltando-o como uma qualidade absoluta da
36. J.'Kamer, op. cit., p. J66.
37. Karl Marx, O Capital, L. li I, cap. XXXVI.
personalidade humana. Presentemente, começa-se a.conside-
rar este princípio como uma simples determinação técnica que
104 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 105

permite ''delimitar os riscos e as responsabilidades" ou entlo isto é, ele deveria .estar transformado em uma relação elemen-
11ão apresentados; unicamente, como uma hipótese especula· tar da prática social. Mas, assim, a forma jurídica em geral
tiva, ·destituída de qualquer fundamento· real. Como esta ten· ・ウエ。イゥセ[@ condenada à morte.40 Enquanto não for resolvida a
dênda -desfere seus golpes contra o individualismo, adquiriu tarefa de edificação de uma economia planificada única, en-
·a simpatia de diferentes marxistas que pensaram encontrar nela quanto perdürar o vínculo do mercado entre as diferentes em-
elementos de uma nova teoria ''social" do direito correspOlJ.· presas e grupos de ・ューイウ。セ@ a forma jurídica igualmente per- .
dente aos interesses do proletariado. Tal juízo certamente, tes- durará. Também não é necessário mencionar que (a forma da
temunha uma posição puramente formal em relação ao assunto,· propriedade privada dos meios de produção na pequena eco-
sem considerar-se ·que as teorias mencionadas não fornecem nomia camponesa e artesanal permanece praticamente intoca-
nenhum ponto . de partida para uma verdadeira concepção so- da no período de transição. Mas, igualmente, na grande indús-
ciológica das categorias individualistas do. direito burguês e tria nacionalizada a aplicação do princípio do ''cálculo econô-
que, alem do mais criticam este individualismo não do ângulo mico" significa a formação de unidades autônomas cujo vín·
da concepção proletária do socialismo, mas do ponto, de vista culo, com as outras unidades econômicas, é mediatizado pelo
da ditadura do capital financeiro .. A significação social destas mercado.
doutrinas é a justificação do Estado imperialista moderno e Na medida em que as empresas estatais estão submetidas
que este empregou especialmente . durante a última guerra.38 às condições da circulação, as suas inter-relações não assumem
Justifica-se assim, porque não é espantoso que um jurista ame- a forma de uma coordenação técniCa, mas a de contratos . E
ricano chegue,. sobre a base dos ensinamentos da última guerra a regulamentação puramente jurídica das relações torna-se, por-
mundial, a guerra mais reacionária e mais criminosa da his- tanto, igualmente possível e necessária. E mais, a direção
tória moderna, a conclusões de ressonância· "sociálista": "os imediata, a direção técniCo"administrativa, que indubitavelmen-
direitos individuais à vida, à liberdade, à propriedade · não te se reforça com o tempo, igualmente subsiste pela subordina-
possuem nenhuma espécie de existência absoluta ou abstrata; ção a um plano econômico geral. Assim nós temos, de um lado,
sãó direitos que só existem do ponto de vista legal, ーッイアオ・セ@ uma vida econômica que se desenvolve em categorias econômicas
o Estado garante-os, e que, em conseqüência, são inteiramente naturais e relações sociais entre unidades de produção que
subordinados ao poder do Estado" .39 surgem sob um forma racional, hão mascarada (isto é, sem a
A tomada do poder político pelo proletariado é a con- forma merzantil). A isto correspondem métodos de diretivas
imediatas, quer dizer, de determinações técnicas sob a forma de
dição fundamental do セッ」ゥ。ャウュN@ Mas a experiência mostrou
programas, de planos de produção, de distribuição, etc. Tais
que a·· produção e a distribuição organizadas e planificadas
diretivas são concretas· e mudam continuamente, à medida que
não podem substituir imediatamente, da noite para o dia, as
trocas mercantis e a ligação das diferentes unidades econômi- se transformam as condições. Por outro lado, temos mercado-
rias circulando sob a forma de valor. e, por conseguinte, uma
cas pelo mercado. Se isto fosse possível, a forma jurídica da
propriedade estaria, também, superada historicamente. Ela ligação entre as unidades econômicas, que se exprime sob a
forma de contrato. A isto corresponde, então, a criação de
teria encerrado o seu ciclo de desenvolvimento, retornando ao
seu ponto de origem: aos objetos de uso individual e imediato;
40. O processo ulterior de superação da forma jurídica limitar-se-ia·
à passagem progressiva da distribuição do equivalente (para uma certa
38. Trata-se da Primeira Querra Muqdial (N. do T.). soma de trabalho uma certa soma de produtos soCiais) à realização da
39. E. A. Hardman, "A propriedade inimiga na Am6rloa", 1111 Tltl fórmula do comunismo desenvolvido "a cada um segundo a sua capa-
American Journal of Internatiof}al_ Law, 1924, t. I, p, 202; cidade, a· cada um segÚndo a sua necessidade" .

. \'i.ÓJ·VfW -M't r
A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 107
106 E. B. PASUKANIS

não obstante a sobrevivência da troca de mercadorias, as opo-


limitações e regras formais jurídicas entre sujeitos autônomos sições de interesses são suprimidas no interior da indústria
(código civil e talvez o código comercial), e a criação de _ór- nacionalizada, e a separação ou autonomia dos diferentes or-
gãos que ajudem a realizar praticamente essas relações, regu- ganismos econômicos (segundo o modelo de autonomia da eco-
lamentando os litígios (tribunais, juízos arbitrais). B eviden- nm:nia privada) só é mantida como método. Desta maneira as
te que a primeira tendência não oferece qualquer perspectiva relações econômicas quase privadas que nascem entre a indús-
para o desabrochar. da disciplina jurídica. A vitória progres- tria estatal e as pequenas economias, assim como entre as dife-
siva desta tendência significará o desaparecimento da forma rentes empresas e grupos de empresas · no interior da própria
jurídica em geral. Pode-se objetar que um programa de pro- indústria estatal, são mantidas em limites muitos estritos, que
dução é, também, uma norma de direito público, uma vez são determinados a cada momento pelos sucessos obtidos no
que procede .do podêr estatal, que possui uma força de coerção âmbito da direção econômica planificada. B por isso que a
e que cria direitos e obrigações, etc. Certamente que, na me- forma jurídica enquanto tal não contém em nosso período de
dida em que a nova sociedade é edificada sobre os elementos transição estas possibilidades ilimitadas que a ela sé oferecem
da antiga sociedade, isto é, a partir de homens que concebem na sociedade burguesa capitalista em seu início. Ao contrário,
os vínculos sociais ape11as como meios para seus fins privados, fechamos temporariamente seu horizonte limitado; ela somente
as simples diretivas técnicàs racionais revestir-se-ão igualmente existe para esgotar-se 、・セゥョエカ。ュN@
da forma de uma força estranha ao homem e situada acima
dele. O homem político será ainda um ''homem abstrato, arti- A tarefa da teoria marxista consiste em verificar estas
ficial", segundo a expressão de Marx. Mas, quanto mais as conclusões gerais e em prosseguir o estudo dos dados históri-
relações mercantis e o incentivo do lucro forem sendo radi- cos concretos. O desenvolvimento não ocorre de maneira igual
calmente suprimidos da esfera da produção, mais rápido soa- na sociedade. Eis por que um trabalho minucioso de obser-
rá a hora desta libertação definitiva de que Marx falou em vação, de comparação 'e de análise é indispensável. Somente
seu ensino sobre A Questão Judaica: ''somente quando o ho- quando tivermos estudado a fundo o ritmo e a forma da su-
mem individual real recupera em si o cidadão abstrato e se pressão das relações de valor na economia e ao mesmo tempo
converte, como homem individual, em ser genérico, em seu o desaparecimento dos momentos jurídicos privados na éstru-
trabalho individual e em suas relações individuais; somente tura jurídica e finalmente a dissolução progressiva da própria
quando o homem tenha reconhecido e organizado suas forces superestrutura jurídica condicionadà por estes processos fun-
propres como forças sociais e quando, portanto, já não separa damentais, é que poderemos dizer que explicamos pelo menos
de si a força social sob a forma de força política; somente então um aspecto do processo de edificação da cultura ·sem classes
se processa a emancipação humana".41 do futuro.
Tais são as perspectivas de um futuro distante. No que
conceme ao nosso período de transição, devemos indicar o
que se segue. Se à época da dominação do capital financeiro
anônimo, as oposições de interesse entre os diferentes grupos
capitalistas (que dispõem de seu capital e do capital alheio)
subsistem, ao contrário, no capitalismo de Estado proletário,

41. Karl Marx, A Questão Judaica, São Paulo, Ed. Moraes, [s/d.],
p. 52 (N. do T.).
Capítulo Cinco

DIREITO E ESTADO .

A relação jurídica não pressupõe Bョ。エオイャュ・セ@ um es-


tado de paz; assim como o comércio não exclui em sua
origem o roubo à mão armada, mas, pelo contrário, caminha
de mãos dadas com ele. O direito e o arbítrio, estes dois con-
ceitos aparentemente opostos, em realidade, são estreitamente
vinculados entre si. Tal assertiva é correta não só para os
períodos mais antigos do direito romano, mas também para
os períodos ulteriores. O direito internacional moderno possui
uma parcela muito importante de arbítrio (retorsões, represá-
lias, guerras, etc.). Mesmo no Estado burguês "bem ordenado"
a materialização dos direitos, segundo a opinião de um jurista
tão perspicaz como Hauriou, tem lugar para cada ddadão,
por sua própria conta e risco. Marx formula este raCiocínio
de maneira ainda mais clara em sua Introdução geral à crítica
da economia política: "Faustrecht (o direito do mais forte) é
igualmente um direito."1 Não é um paradoxo,. pois o direito é,
como toda troca, um meio de ligação entre elementos sociais
apartados. O grau da separação pode ser historicamente maior
ou menor, mas não pode desaparecer inteiramente. Assim sen-
do, as empresas pertencentes ao Estado soviético cumprem
uma tarefa coletiva; mas como, em seu trabalho, devem ater-se
aos métodos do mercado, cada uma possui seus interesses par-
ticulares. Opõe-se entre si como セᅰューイ。、ッウ@ e vendedoras,

· 1. K. Marx, Introdução geral à. crítica da Economia política, 1857,


em Contribuição à crítica da Economia política, . trad. Maurice Husson
e Gilbert Badia, Ed: Sociales, Paris, 1967, p: 153. Ver ョ￳エセ@ 6 do cap. um.
110 E. :S. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 111

agindo por iniciativa própria e devendo, portanto, manter rela- dade era protegida contra o confisco arbitrário, enquanto que
ções juridicas. A vitória final dá economia planificada fará juizados especiais asseguravam a execução dos contratos .
de sua ligação recíproca uma ligação exclusivamente técnico· Assim nasceu um "jus mercantorum" especial ou um "jus fori",
racional e liquidará a "personalidade jurídica" delas. Quan· que se tomou o fundamento do direito municipal ulterior.
do apresentamos a relação jurídica como uma relação orga- Inicialmente as feiras e os mercados eram partes· inte-
nizada e bem regulada, identificando assim o direito e a ordem grantes dos domínios feudais e simplesmente serviam de fonte
jurídica, esquecemos que, em realidade, a ordem não é mais de lucros avantajados para o senhor feudal do local. Tão
que uma tendência e o resultado final (ainda imperfeito), mas logo era acertada a paz do mercado, em uma localidade qual-
nunca o ponto de partida e a condição da relação jurídica. quer, esta destinava-se apenas a encher os cofres do senhor
O próprio estado de paz que parece ser contínuo e uniforme feudal e, por conseqtiência, a servir aos seus interesses pri-
no pensamento jurídico abstrato não existia enquanto tal nos vados. Mas, na medida em que o poder feudal assumia o
estágios iniciais do desenvolvimento do direito. O antigo di- papel de garantidor da paz, indispensável aos 」ッョエセ[。ウ@ de
reito germânico . conheceu diferentes graus de paz: faz em troca, assumia, graças às suas novas funções, um caráter pú-
casa, paz no seu feudo, paz na vila. O grau deste estado de blico totalmente novo em relação às suas atribuições anterio-
paz exprimia-se pelo grau de gravidade da pena que atingia res. O poder de tipo feudal ou patriarcal não conhece fron-
aquele que a violava. ·
teiras entre o privado e o público. Os direitos públicos do
o estado de paz tornou-se uma necessidade quando a tro- senhor feudal em relação a seus servos eram ao mesmo tempo
ca tornou-se um· fenômeno regular. Dado que as garantias os seus direitos como proprietário privado; · inversamente os
para a manutenção da paz eram insuficientes, os trocadores seus direitos privados ーッ、ゥセュ@ ser interpretados, se assim
preferiam não se encontrar pessoalmente, mas examinar as o quisesse, como direitos políticos; ou seja, públicos. Igual-
mercadorias na ausência da outra parte. Contudo, em geral, mente, o "jus civile" da Roma ·antiga é interpretado· por
o comércio exige que não apenas as mercadorias se encontrem, muitos juristas {Gumplowicz, por exemplo) como direito pú-
mas que também as pessoas o façam. Na época da ordem blico, pois seus fundamentos e fontes estavam na integração
gentílica, tcdo estrangeiro era considerado inimigo; era uma do indivíduo a uma organização. gentílica determinada. · Na
presa entre os animais selvagens. Somente os costumes de realidade trata-se de uma forma jurídica embrionária que ain-
hospitalidade davam oportunidade a relações com tribos es- da não desenvolveu em si própria as determinações opostas
trangeiras. Na Europa feudal a Igreja tentou referendar as
guerras privadas ininterruptas ao proclamar a "trégua de
e correlativas, de "direito privado" e "direito público". :e
por isso que todo poder que porta os traços de relações pa-,
Deus".2
triarcais ou ヲ・オ、セゥウ@ é caracter;zado, também, pela predomi-
Ao mesmo tempo os mercados e centros comerciais come· nância do elemento teológico sobre o elemento · jurídico. A
çaram a gozar privilégios particulares. Os mercadores que se
interpretação jurídica, racional, do fenômeno do poder só é
dirigiam ao mercado obtinham salvo-conduto e a sua proprie· possível com o desenvolvimento da economia monetária e do
2. É interessante observar que a Igreja, pelo simples fato de pro. comércio. Apenas estas fornias econômicas enquadram a po-
clamar por alguns dias a "trégua de Deus", sancionou efetivamente o sição entre a vida pública e a vida. privada, que assume, com
guerra privada. No século XI foi proposta a supressão total da1 JUDrrn• o passar dos tempos, um caráter "eterno" e ''natural" e cons-
privadas. Gérard, bispo de Cambrai, protestou ・ョイァセ」。ュエ@ contrA 11 titui o fundamento da teoria jurídica do poder.
idéia, dizendo que a trégua de Deus permanente. contradizia 11 1 natUI'117.H
humana" (cf. S. A. Kotljarevskij, Vlast' i pravo [Autorldldl 1 、ャイセエッL@ o estado moderno, no sentido burguês do termo, nasce
Moscou, 1925, p. 189). · no momento em que a organização do poder de grupo ou de

,._......__________
A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 113
112 E. B. PASUKANIS

como direito, isto é, confunde-se totalmente com a norma


classe engloba relações mercantis suficientemente extensas.3 Em
\Roma o comércio com os estrangeiros, peregrinos etc., exigia セ「ェ・エゥカ。@ abstrata.6
Qualquer teoria jurídica · do Estado que queira alcançar
\o reconhecimento da capaéidade jurídica das pessoas que não todw; as funções do Estado é, no presente, necessariamente
pertenciam à organização gentílicà·. ISto já pressupunha à dis- inadequada. Não pode ser o reflexo fiel de todos os fatos
tinção entre o direito público .e o direito privado. da vida do Estado e apenas parece uma reprodução ideoló-
' O divórcio entre o princípio de direito público de sbbe" gica, deformada, da realidade.
rania territorial e o princípio de proptiedade privada da terra A dominação de classe, em sua forma organizada como em
consumou-se na Europa medieval mais cedo e mais plena- sua forma ,desorganizada, é muito mais ampla do que o do-
mente nos limites das vilas. Ali as obrigações reais e pessoais mínio que podemos ·designar como sendo a esfera oficia:! da
inerentes à terra se diferenciavam,- mais cedo do que ョッセ@ cam. dominação do poder estatal. A dominação da burguesia se
po, em impostos e encargos em benefício da comunidade オイ「。セ@ exprime tanto na dependência do governo aos bancos· e gru-
na, bem como em rendas auferidas sobre a propriedade pri- pos capitalistas quanto na dependência de cada trabalhador
vadá.4 · particular em relação ao seu empregador, e no fato de que
A dominação de fato ganha um caráter pronunciado de os funcionários do aparelho de Estado são intimamente vin-
direito público assim quer nascem a seu lado, e independentes culados à classe dominante. Todos estes fatos, cujo número
de si, relações vinculadas ao ato da troca, que são relações poderíamos multiplicar até o infinito, não possuem qualquer
privadas por excelência. Na medida em que a autoridade se expressão jurídica oficial mas concordam, em sua significação,
mostra como garante destas relações, ela transforma-se numa com os fatos que possuem expressão jurídica muito oficial;
autoridade social, em poder público, que representa o inte- tal como a subordinação dos mesmos operários às leis do Es-
resse impessoal da ordem.5 tado burguês, às ordens e decretos de seus organismos, ao
O Estado, enquanto organização do poder de classe e en- julgamento de seus tribunais, etc. Ao lado da dominação de
quanto organização destinada a realizar guerras externas, não classe direta e imediata constitui-se uma dominação mediata,
necessita de ·interpretação jurídica é não a permite .de forma refletida sob a forma do poder oficial do Estado enquanto
alguma. セ@ um domínio no qual reina a chamada razão de poder particular destacado da sociedade. Assim surgiu o pro-
Estado que não é outra coisa que simplesments::. o princípio blema do Estado que oferece tanta dificuldade à análise quan-
da oportunidade. Em sentido inverso: a atitpridade como ga- to o problema da mercadoria.
rante da troca mercantil só pode ser expressa na linguagem
qo direito, apresenta-se a si própria como direito e somente
6. De resto, a norma objetiva é apresentada como convicção ge-
ral dos indivíduos a ela ·submetidos. O direito seria a· convicção geral
das pessoas _que mantêm relações jurídicas. O nascimento de uma situa-
3. Cf. M. Hauriou, op. cit., p. 272. ção jurídica seria, por conseqUência, o nascimento de uma convicção
4. Cf. O. Gierke, op. cit., p. 648. geral que teria uma força coativa e que exigiria ser executada (G. F.
5. Na realidade os S!lnhores feudais ocidentais; tanto quanto os Puchta, Vorlesungen über das heutige rõmische .Recht). Esta fórmula em
príncipes russos, jamais foram· conscientes desta mis11ão e ocons!deravam uma aparente universalidade não é mais· do que o reflexo ideal das con-
as suas funções de guardiães da ordem, única e .exClusivamente, como dições de relações mercantis. Sem estas últimas, tal fórmula não· tem
uma. fonte de renda; . os ulteriores .historiadores burgueses', contudo, não qualquer sentido. Ninguém ousaria pretender que,. por exemplq, a situa-
deixaram ·de atribuir motivações imàgfnárias aos senhores feudais .e aos ção jurídica dos hilotas em Esparta fosse resultado das suas convicções
príncipes ·russos, pot's para estes historiaJfores as relações burguesas e o gerais tornadas força coativa (cf. Gumplowicz, Rechtsstaat und Sozialis-
caráter público do poder que daí advêm possuem' valor. como normas
mus).
eternas.

• 1 gt&n ..i;,:u. ------- ·-·-·-·-------


114 E. B. PASUKANIS セ@ TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 115

Engels, em seu livro A Origem da Famtlia, da Propriedadé esconde uma questão fundamental: porque a dominação de
Privada e do Estado, considera o Estado como a expressão classe não se apresenta tal qual ela é, a saber, a sujeição de
do fato de que a sociedade se encaminhou para contradições uma parte da população à outra? Porque assume a forma de
de classe insolúveis. "Mas, diz ele, para que os antagonistas, umá domin,ação estatal oficial ou, o que vem a ser o mesmo,
as classes com interesses econômicos apostes, não se consu- porque o aparelho de coação estatal não -se constitui como
mam, elas e a sociedade, em uma luta estéril, impõe-se a ne- aparelho privado das classes dominantes, porque ele se des-
cessidade de um poder que, na aparência, posto acima da so- taca destas últimas e assume a forma de um aparelhei de poder
ciedade, cesse o conflito, mantenha-o nos limites da 'ciJdem'; público impessoal, distante da sociedade?9
e este poder, nascido da sociedade, e que se coloca acima dela, Não podemos nos contentar com a explicação segundo a
e que cada vez mais se torna estranho à própria sociedade, qual é vantajoso para a classe dominante exigir uma tela ideo-
é o Estado".' Nesta exposição existe um ponto. que não está lógiCa· e esconder a sua dominação de classe atrás de barrei-
muito claro e que aparece, na seqüência, quando Engels diz ras do Estado. Pois bem, ainda que taf explicação seja, sem
que o poder de Estado deve- cair naturalmente nas mãos da dúvida, correta, ela não nos explica por que tal ideologia pode
classe ·mais forte que, ''graças a ele, toma-se a classe politi- nascer e, conseqüentemente, também, por que a classe domi-
camente dominante". 8 Esta frase nos de.ixa supor que :o poder nante pode servir-se dela. A utilização consciente das formas
de Estado não nasce· como uma I orça de classe, mas como ideológicas é, com efeito, diferente de suas origens, que são
algo situado aeima das classes, que salva a sociedade da de- geralmente independentes da vontade dos homens. Se quiser-
sagregação e que só se torna objeto da usurpação após ·um mos pôr a nu as raízes ·de uma determinada ideologia, ·devemos
golpe. Tal concepção contradiz as realidades ·históricas. Sa- buscar as relações reais das quais ela é expressão. Nos rende-
bemos que o aparelho do poder de Estado foi sempre_ criado remos então à diferença fundamental que existe entre a inter-
pela classe dominante. Acreditamos que o próprio Engels teria pretação teológica e a interpretação jurídica do conceito de
rejeitádo tal interpretação de suas palavras. Mas de qualquer ''poder de Estado". No primeiro caso, temos que constitui
forma a sua formulação não é muito clara. Segundo ela, o um fetichismo da mais pura espécie; é por isso que não tería-
Estado surgiu porque de . outrà forma. as·· classes se bateriam mos êxito em tentar descobrir nas representações e nos con-
em uma luta encarniçada na qual perigaria toda a sociedade. ceitos correspondentes outra coisa além do desdobramento
Em conseqüência, o Estado nasce desde que alguma das duas ideológico da realidade, ou seja, destas mesmas relações de
classes em luta não seja capaz de obter uma vitória decisiva. dominação e de servidão. A concepção jurídica, ao contrário,
Neste caso, das duas uma: ou bem o Estado estabelece esta rela- é uma concepção unilateral cujas .abstrações exprimem apenas
ção de equilíbrio e, então, seria uma força acima das classes, o um dos aspectos do sujeito realmente existente, isto é, da
que não podemos admitir; ou bem ele é o resultado· da vitória sociedade de produção mercantil.
de uma das classes. Neste caso, contudo, a necessidade do Em seu Problemy marksistskoj teorii prava, I. P. Razu-
Estado para a sociedade desaparece, uma vez . que, com a vi- movskij me recriminou por colocar sem razão as questões da
tória decisiva de uma classe,. o equilíbrio é restabelecido e a
sociedade é salvá. Por detrás de todás estas 」ッョエイセカ←ウゥ。@ se
9. Em nossa época, na qual as lutas revolucionárias intensificaram-
se, podemos observar como o aparelho oficial do Estado burguês cede
7. F. Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do lugar aos bandos fascistas, etc. Isto prova mais uma vez que, desde que
Estado (1884), trad. franc. Ed. Sociales, p. 156. Ed. brasileira: Civilização o equilíbrio da sociedade seja desestabilizado, esta não busca sua re-
Brasileira, Rio, 1975. cuperação na criação .de um poder situado acima das classes, mas na
8. Id., ib., p. 157. tendência maxima de todas as forças de classe em luta.
116 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 117

dominação e da servidão na esfera indeterminada do "desdo- à grande propriedade fundiária) . "A livre. concorrência, a li-
bramento da realidade" e de não enquadrá-las, na análise das berdade de propriedade 'privada 'a ゥァオ。A、セ・@ de direitos' セッ@
categorias do direito, local que lhe seria conveniente. O fato mercado, e a garanti;t da existência· da classe ·unicamente romo
de que o pensamento religioso ou teológico representa um tal, criavam uma nova forma de poder ・ウエ。セャL@ i a democracia,
"desdobramento da realidade" parece-me, após Feuerbach e que faz uma classe aceder coletivamente ao poder". 10
Marx, não é mais necessário ser posto em discussão. Eu não
B perfeitamente exato que "a igualdade de direitos" no
vejo nadá de indeterminado; ao contrário, a coisa é muito
mercado cria uma forma específica de poder, mas o vínculo
simples: a submissão do servo ao senhor feudal foi a conse-
entre estes fenômenos não se situa lá .onde Podvplockij crê
qüência direta e imediata do fato de que o senhor feudal era
que ele esteja. Em primeiro lugar, o poder, mesmo que não
um grande proprietário de terras e qu,é ·dispunha de umà fórça
esteja ligado a uni capitalista individual, pode permanecer um
armada. Esta .dependência imediata, esta relação de domina-
negócio privado da organização capitalista. As associações de
ção de fato, 'progressivamente adquiriu um véu ideológico:
o poder do senhor feudal · foi progressivamente deduzido de indústrias, com suas reservas financeiras em caso de conflito,
suas listas negras, seus lock-out e seus bandos de ''fura-greves"
uma autoridade divina e supra-humana: "nenhuma autoridade
são indubitavelmente órgãos de poder que existem a0 ]ado do
que não emane 、セ@ Deus". A subordinação do operário assala"
riado ao capitalista e sua dependência em relação ao patrão poder oficial, do poder estatal. Ademais, a autoridade no in-
existe igualmente sob a forma imediata: o trabalho morto terior da empresa continua assunto do capitalista individual.
acumulado domina o trabalho vivo. Mas a subordinação deste A ·instauração de uma ordem interna do trabalho é um elo
operário ao Estado capitalista não é idêntica à sua dependên- de regulamentação privada, isto é, um elemento autêntico do
cia em relação ao cap!talista singular que é simp!esmente dis- feudalismo, ainda que os juristas burg,ueses façam m)Jito es-
solvida sob uma forma ideológica. Não ·é 'a mesma 」oゥセ。L@ em forço para dar ao fato .um colorido moderno, construindo a
primeiro lugar, porque aqui existe um aparelho particular. sepa· ficção de um autodenominado contrat d'adhésim:z 11 ou de ple·
rado' dos representantes da classe· dominante,· situado acitl;la de nos poderes particulares que o capitalista teria pretensamente
cada. capitalista .singular e que figura como uma força iil,lpes- recebido dos órgãos do ·poder público a fim de "exercer com
soal. Não é ·a mesma coisa, em segundo lugar, porque esta fOrça sucesso a função social necessária e útil da empresa" .12
impessoal não intermedeia cada relação de exploração. Com Contudo, no presente caso, a analogia com as relações
efeito, o assalariado não é coagido política e juridicamente feudais não é forçosamente exata, pois, como cÜz Marx,· "a
a tr'abalhar para um ·empresá:rio determinado, mas vende-lhe a. autoridade do capitalista, no prccesso direto de produção, por-
força de trabalho mediante um contrato livre. Na medida etn que ele personifica o capital, a função social que lhe vale na
que a relação dé exploração se realiza fol'Qlalmente -como イ・セ@ qualidade de diretor e mestre da produção, difere essencial-
lação entre dois proprietários de mercadorias "independentes'' mente da autoridade baseada sobre a produção realizada por
e "iguais", onde um, o proletário, vepde sua força de trabalho .
e o outro, o capitalista, compra-a, então o poder político de
classe JX>de assumir a. forma de· um poder público. 10. I. P. Podvolockij, Marksistskaja teorija prava, op. cit.; 1923,
.p. 33.
O princípio da concorrência que dirige o mundo bur- 11. Em francês no original (N. do T.).
guês-capitalista não. permite, como já dissemos, nenhuma pos- 12. Tal', "Juridiceskaja priroda organicii i1i vnutrennego porjadka
sibilidade de vincular o poder político .ab empresário indivi- predprijatija" (A natureza jurídica da organização ou .a ordem interna
dual (como no feudalismo, onde este poder es1ava vinculado da empresa), in: Juridicerkij Vestnik, 1915, IX (I).

/)
118 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 119

escravos, servos, etc. No regime capitalista de produção, a 1cantil a subordinação ao arbítrio, pois isto significa a subor-
1, dinação de um produtor de mercadorias a outro. Por isso a
massa dos produtores diretos se encontra fac1 a face com o
caráter social de sua produção, sob a forma de uma autorida- coação não pode surgir sob sua forma não mascarada, como
de organizativa severa e de um mecanismo social perfeitamente um simples ato de oportunidade . Ela deve aparecer como uma
hierarquizado do processo de. trabalho (mas os detentores desta coação proveniente de uma pessoa coletiva abstrata e que não
autoridade não são mais, como nas anteriores formas de pro- é exercida no interesse do indivíduo do qual provém - pois
dução, senhores polítiCos ou teocráticos; se eles a detêm, é cada homem é um homem egoísta na sociedade de produção
simplesmente porque eles personificam os meios de trabalho mercantil - , mas no interesse de todos os membros partíci-
em relação ao trabalho)".13 As relações de dominação e servi- pes das relações jurídicas. O poder de um homem sobre um
dão podem igualmente existir nos quadros do modo de produ· outro homem é transposto para a realidade como o poder de
ção capitalista, sem se distanciarem da forma concreta com uma maneira objetiva,· imparcial.
que se apresentam: como dominação das relações de produção O pensamento burguês que toma o quadro da produção
sobre os produtores. Mas sendo dado precisamente que elas mercantil pelo quadro eterno e natural de qualquer sociedade
não surgem sob uma forma mascarada, como no escravismo considera o poder do Estado em abstrato como um elemento
ou no regime de' .servidão/4 explica-se por que passam desper- pertencente às sociedades em geral. Este pensamento foi ex-
cebidas aos olhos dos juristas. presso de maneira singela pelos teóricos do direito natural
que fundamentaram sua teoria do poder sobre a idéia de rela-
Na medida em que a sociedáde representa um mercado,
ções entre pessoas independentes e iguais e que pensavam tais
a máquina do Estado se realiza efetivamente como a vontade
princípios derivassem das próprias rdações humanas. Eles não
geral e in1pessoal, como autoridade de direito, etc .. No merca-
fizeram mais do que desenvolver, em suas diversas nuances,
do, como já vimos, cada comprador e cada vendedor é sujeito
a idéia de um poder que vinculasse entre si os proprietários
de direito por excelência. Onde as categorias valor e valor de
de mercadorias . セ@ isto que explica os traços fundamentais
troca entram em cena, a vontade autônoma dos trocadores é
desta doutrina, que já aparecem muito claramente em Grotius.
uma condição indispensável. O valor de troca deixa de ser
Para o mercado, os proprietários de mercadorias que partici-
valor de troca, a mercadoria deixa de ser mercadoria quando
pam das trocas são o fato primário, enquanto que a ordem
as proporções de troca são determinadas por uma autoridade
autoritária é algo derivado, secundário, algo que, do exterior,
situada fora das leis imanentes do mercado. A, coação, enquan-
se acresce aos proprietários existentes. Por isso, os teóricos
to uma função baseada na violência e endereçad;l por um in-
do direito natural não consideram que o poder estatal seja um
divíduo a outro indivíduo, contradiz as premissas fundamen-
fenômeno surgido historicamente e, por conseqüência, vincu-
tais das relações entre proprietários de mercadorias,. セ@ por
lado às forças que agem na sociedade em questão, mas enca-
isso que, em uma sociedade de proprietários de mercadorias
ram-no de maneira abstrata e racionalista. Nas relações entre
e no interior do ato da troca, a função da coação não pode
proprietários de mercadorias, a necessi>dáde de uma coação
aparecer como função social, dado que ela não é impessoal
autoritária surge "'quando a paz foi quebrada ou que os
e abstrata. A subordinação a um homem enquanto tal, como
indivíduo concreto, significa na sociedade de produção me:r- contratos não foram plenamente observados. Assim, a 、ッオセ@
trina do direito natural reduz a função do poder estátal à
manutenção da paz e reserva ao Estado a exclusividade de
13. K. Marx, O Capital, L. I li, cap. LI, op. cit., t. I li, p. 255/6. ser instrumento do direito. Enfim, no mercado, cada proprie-
14. Id., cap. XLVIII, p. 209. ' tário de mercadorias possui esta qualidade graças à vontade
120" E. B. P ASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 121

1dos outros .e todos são proprietários de mercadorias pela von- rais da lei que exprimem a vontade do Estado.16 Quanto a este
tade comum. B devido a isto que a doutrina do direito na- · ponto, a: doutrina do direito natural não é mais realista dq que
' tural faz derivar o Estado do contrato social havido entre qualquer outra doutrina jurídica do Estado, inclusive a dou-
r diferentes pessoas isoladas. Este é o esqueleto de toda dou-
trina que, segundo a situação histórica ou a simpatia política
trina mais positivista. O essencial ·da doutrina do ·direito na-
tural consiste em admitir,. ao lado das diversas formas de
e a capacidade dialética de tal ou qual autor, tolera as mais dependência de um homem em· relação a outro (dependência
diversas variações concretas. Ela permite desvios republica- que esta doutrina abstrai), um outro tipo de dependência, aque-
nos ou monarquistas e, em geral, os graus mais diversificados la em relação à vontade geral e impessoal do Estado.
de democratismo e revolucionarismo. Mas é precisamente esta construção que igualmente cons-
Afinal, esta teoria foi a bandeira revolucionária sob a titui o fundamento da teoria jurídica do "Estado como pes-
qual a burguesia. efetivou as suas lutas revolucionárias contra soa". O elemento de direito natural está situado mais pro-
a sociedade feudal. Isto igualmente determina: o destino da fundamente nas teorias jurídicas do Estado do que parece aos
doutrina. Desde que a burguesia se transformou em classe críticos da doutrina· do direito natural. Ele reside no próprio
dominante, o passado revolucionário do direito natural co- conceito de poder púbiicó, isto é, um poder que não pertence
meçou a gerar apreensões, e as teorias· dominantes .apressa- a ninguém em particular, que se situa acima de todos e que
ram-se em pô-lo de lado. Certamente a teoria do direito na- se dirige a todos. Orientando-se segundo este conceito, a teo-
tural não resiste a uma crítica histórica ou socialista, pois a ria jurídica inevitavelmente perde o contato com a realidade,
imagem por ela dada não corresponde em hipótese. alguma à A. diferença entre a doutrina do direito natural e o positivismo
realidade. Mas o mais singular é que a teoria jurídica do jurídico moderno consiste unicamente no fato de que a pri-
Estado, que substituiu a teoria do direito natural· e que イ・ェゥセ@ meira percebeu, muito mais claramente, o vínculo lógico exis-
tou a teoria dos direitos inatos e inalienáveis do homem e do tente entre o poder de Estado abstrato e o sujeito abstrato.
cidadão, dando-se a denominação de teoria "primitiva", igual- Ela toma as relações mistificadas da sociedade de produção
mente deforma a realidade.15 Ela é coagida a deformar· a rea- mercantil em sua conexão necessária e fornece, assim, um exem-
lidade porque toda teoria jurídica do Estado deve necessaria- plo de clareza clássica. O chamado positivismo jurídico, pelo
mente figurar o Estado como uma potência autônoma, sepa- contrário, não classificou suas própr!as premissas lógicas.
rada da sociedade.' :É exatamente nisto que reside o aspecto
jurídico desta doutrina. ' 16. Devemos pôr em relevo uma pequena contradição. Se não
são os homens que agem, mas sim o próprio Estado, por que insistir
Por isto, ainda ·que a atividade de organização estatal na submissão às normas deste mesmo Estado? Com efeito, é apenas a
tenha lugar sob a forma de ordens e decretos emanados de repetição da mesma coisa. Aliás, em geral, a teoria dos órgãos do
Estado é uma das pedras fundamentais da teoria jurídica. Uma vez
pessoas ウセァオャ。イ・L@ a forma jurídica admite em primeiro lugar
vinda a lume a definição do Estado, o jurista que quiser continuar a
que não são pessoas que dão as ordens, mas o Estado, e; em defender a tese encontra um novo amparo: o conceito de "órgão". Assim,
segundo lugar que estas ordens são submetidas às· normas ge- por exemplo, em Jellinck, o Estado não possui vontade, mas os órgãos qo
Estado a possuem. セ@ preciso indagar-se: como surgem estes órgãos?
Sem órgão não existe Estado. A tentativa de atenuar a dificuldade, cone
15. Não preciso provar detalhadamente esta proposição, pois posso cebendo o Estado como uma relação jurídica, apenas substitui o proble-
referir-me à crítica das teorias jurídicas de Laband, Jellinek, etc. feita por ma geral por uma série de casos particulares nos quais ela se desàgrega.
Gumplowicz (cf. os seus livros Rechtsstaat und Sozialismus e Gechschite Toda relação jurídica concreta de direito público contém, em si, o mesmo
dré Siaat$theorine) ou ainda ao mãrcante セイ。「ャィッ@ de V. V. Adorackij, elemento de mistificação que se encontra no conceito geral de "Estado
Gosudarstvo (O Estado), Moscou, 1923. como pessoa". •
122 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 123

O Estado jurídico é uma miragem, mas uma miragem a .teoria jurídica como. as relações anteriormente mencionadas.
muito conveniente para a burguesia, pois ele substitui a ideo- Sem dúvida, o jurista pode prever uma maior ou menor capa-
logia religiosa em decomposição e esconde, dos olhos das mas- cidade de adaptação aos fatos, pode, por exemplo, ao lado
sas, a realidade da dominação burguesa. A ideologia do Es- do direito escrito, considerar igualmente as regras não escritas
tado jurídico convém mais do que a ideologia religiosa, porque que surgem progressivamente da prática do Estado, mas isto
não reflete inteiramente a realidade objetiva, ainda que se nada muda em sua posição de princípio em relação à reali-
apóie sobre ela. A autoridade como "vontade geral", como dade. Uma certa discordância entre a verdade jurídica e a
''força do direito", se realiza nll' sociedade burguesa na me- verdade que é o objeto da pesquisa histórica e sociológica é
dida em que esta representa um mercado.17 Deste ponto de inevitável. Isto não provém apenas do fato de que o 、ゥョ。セ@
vista, os regulamentos baixados pela polícia podem figurar, mismo da vida social transborda as margens das formas jurí•
igualmente, como a encarnação da idéia kantiana de liberdade dicas e de que o jurista está condenado a estar sempre atra-
limitada pela liberdade do outro. sado em sua análise; pois se o jurista permanece, digamos,
Os proprietários de mercadorias, livres e iguais, que se à jour 18 com os fatos em suas afirmações, ele os reproduz de
encontram no mercado, não são como na relação abstrata de forma diferente da sociologia. O jurista, com efeito, se per-
manece jurista, parte do conceito de Estado como força autô-
apropriação e 。ャゥ・ョセ ̄ッN@ Na vida real, são vinculados por
noma que se opõe a todas as outras forçf!s individuais e sociais.
todos os tipos de relações de dependência recíproca; como, Do ponto de vista histórico e político, as decisões de uma
por exemplo, o pequeno 」ッュ・イゥセョエ@ e o comerciante ataca- organização de classe ou de um partido influentes possuem
dista, o camponês e o proprietário fundiário, o devedor arrui- importância tão grande e, às vezes, ainda maior do que as
nado e o seu credor, o proletário e o capitalista. Todas estas decisões do parlamento ou de qualquer outra instituição._ do
Mセ@ inúmeras relações concretas de dependência constituem· o fun- Estado. Do ponto de vista jurídico, pelo contrário, tal tipo
i';f damento real da organização do Estado. Contudo, para a teo- de fato não existe. Inversamente, se colocarmos entre parên-
GK|[セエ@ ria jurídica do Estado, é como se elas não existissem. E mais, tesis o ponto de vista jurídico, poderemos perceber em cada
セイ@| a vida do Estado consiste em lutas entre diferentes forças polí- decisão do parlamento, não um ato de Estado, mas uma deci-
セQ[@ ticas, de classes, de partidos, de todos os tipos possíveis de são tomada por um grupo ou clã determinados (que agem
|_Lセァイオー。ュ・ョエッ[@ é aí que se escondem os verdadeiros mecanis- tão movidos por motivos individuais egoísticos ou por motivos
M[セッウ@ do Estado. Estes permanecem tão incompreensíveis para de classe como qualquer outro grupo). O teórico mais exter-
nado do normativismo, Kelsen, conclui que, em geral, o Esta-
G[セ@ do só existe -eomo produto de pensamento, como sistema fe·
セャWN@ Lorenz Stein, como se sabe, opôs o Estado ideal, situado acima chado de normas ou de obrigações. Tal materialidade do obje-
da ウセ」ゥ・、。L@ isto é, segundo a nossa terminologia, ao Estado de classe. to da 'teoria do direito público deve certamente espantar os
CorlÍo tal ele designou o Estado feudal absolutista, que protege os privilé· juristas práticos. Estes percebem, por certo, se não racional-
gios 'âa grande· propriedade fundiária, e o Estado capitalista, que garante mente, pelo menos instintivamente, o valor indubitavelmente
os privilégios da burguesia. Mas, uma vez tenhamos compreendido estas prático de seus conceitos, precisamente neste mundo iníquo
realid!ldes históricas, não resta mais que o Estado como quimera de um
funciol:).áriD prussiano ou o Estado como garantia abstrata das condi- e não apenas no mundo de pura lógica. "O Estado" dos ju: .
ções das trocas fundadas sobre o valor. Na realidade histórica, contudo, ristas, apesar de sua "natureza ideológica'', é ligado a uma
o "Estado de direito", ou seja, o Estado situado acima da sociedade, só
se realiza de fato como o seu contrário, como "um comitê executivo dos
negócios da burguesia". .. 18. Em francês, no .. original: em dia, atualizado (N. do T.).
124 E. B. P ASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 125

realidade objetiva, assim como o sonho mais fantástico re- segundo o qual nenhum dos dois trocadores pode, no merca·
ーッオウセ@ sobre a realidade. do, regular as relações de troca por sua própria autoridade;
Esta realidade é, antes de tudo, o próprio aparelho de nesta hipótese, exige-se uma terceira parte que encarne a ga-
Estado c.om todos os seus elementos materiais e humanos. rantia recíproca que os possuidores de mercadorias acordam
Antes de criar teorias. acabadas, a burguesia construiu mutuamente, devido a sua qualidade de proprietários, e que
seu Estado na prática. O processo começou na Europa oci- personifique, em conseqüência, as regras das relações de troca
dental pelas comunidades· urbanas.19 entre os · possuidores de mercadorias .
Ainda que o mundo feudal ignorasse qualquer diferença A burguesia colocou este con.ceito jurídico de Estado na
entre as fontes pessoais de recursos do senhor feudal e as base de mais teorias e tentou transpô-lo à prática. Ela o fez dei-
1
fontes de recurso da comunidade política, o tesouro munici- xandO'-se guiar pelo famoso princípio ''tanto por tantom • Com
pal comum aparecia,· de início, esporadicamente nas cidades efeito, a burguesia jamais perdeu de vista, em nome da pureza
e posteriormente como instituição permanente.20 histórica, o outro aspecto da questão, a saber, que a sociedade
O espírito dos "negócios de Estado" adquire, então; seu de classe não é somente um mercado no qual se encontram
assento material.
A· criação de recursos estatais favoreceu o aparecimento
de homens que vivam destes recursos: empregados e funcio- 21. A burguesia inglesa, que assumiu antes que todas as outras
nários. Na época feudal, as funções administrativas e judi- burguesias a dominação do mercado mundial e que, dada a sua situação
ciárias eram preenchidas pelos vassalos do senhor feudal. Os insular, sentia-se invulnerável, pôde ir mais longe que todas as outras
burguesias na direção da realização do "Estado de direito". A realização
serviços públicos, no sentido próprio· do termo, só apareceram mais conseqüente do princípio jurídico nas relações recíprocas entre
nas- comunidades urbanas; o caráter público ·da autoridade o poder de Estado e o sujeito singular, como a garantia mais eficaz para
encontra então a sua encarnação material. A formàção, no que os detentores do poder não ultrapassem o seu papel, o da personi-
sentido de direito privado, de um mandato. dado para a reali- ficação de uma norma objetiva, são dadas pela subordinação dos órgãos
zação de negócios jurídicos, separa-se do serviço público. A estatais à jurisdição de um tribunal independente (que, entenda-se, não
é independente da burguesia). O sistema anglo-saxão é uma forma de
monarquia absoluta não fez mais do que tomar posse desta apoteose da democracia burguesa. Mas, em outras condições históricas,
forma de autoridade pública, que nasceu nas vilas, e aplicá-la a burguesia está igualmente preparada, digamos, no pior dos casos, a se
a um território mais vasto. Todo aperfeiçoamento posterior acomodar em um sistema que pode ser designado como a "separação· da
do Estado burguês, que se realizou mais por explosões revo- propriedade do Estado;' ou "cesarismo". Neste caso, a malta reinante,
lucionárias. do que .por uma .adaptação pacífica dos elementos com o seu arbítrio despótico ilimitado (que segue duas direções: ul]la
interna contra o proletariado e outra externa sob a forma de uma polí·
monárquicos feudais, pode ser remetido a um princípio único tica exterior imperialista), criou, aparentemente, o terreno para a "livre
autodeterminação da pessoa" na vida social. Destarte, segundo Kotlja-
revskij, "o individualismo jurídico privado concorda, no geral, com o
19. S. A. Kotljarevskij, Vlast' i pravo, op. cit., p. 193. despotismo político. O códigó civil nasceu em uma época que não só
20. A· antiga comunidade. alemã, a Marka, não ·era uma pessoa ju- é caracterizada pela falta de liberdàtie política na ordem estatal francesa,
rídica que dispusesse de propriedade. O caráter público .dos pastos mas igualmente por uma certa indiferença com relação a esta liberdade,
expiimia-se no fato de que eram utilizados por todos os membros da que já. se manifestava desde o 18 Brumário: Tal liberdade jurídica priva·
Marka. As contribuições destinadas às necessidades públicas só eram da não somente dá lugar a uma acomodação em referência a muitos
percebidas esporadicamente e. Sempre na estrita proporção da neces·si- aspectos do Estado, mas, também, confere a este último um certo caráter
dade. Se houvesse um excedente, este era destinado à subsistência co- de legalidade" (Vlast' i pravo, op;· cit., p. 171). Encontramos uma bri·
mum. Este uso mostra quanto era estranha a idéia de rendas 'públicas lhante caracterização das relações entre Napoleão I c a sociedade. civil
permanentes. na Sagrada Família, de Marx, p. 150.
126 E. B. PASUKANIS

os proprietários independentes de mercadorias, mas que é,


também; um campo de batalha de uma feroz guerra de classes, Capítulo Seis
na qual o Estado representa uma arma muito poderosa. Sobre
este campo de batalha, as relações não se formam no espírito
kantiano do direito como a restrição mínima de liberdade in-
dividual, indispensável à coexistência humana. Gumplowicz DIREITO E MORAL
tem plena razão quando explica que tal tipo de direito nunca
existiu, pois "o grau de 'liberdade' de uns não .depende do
grau de dominação de outros. A norma de coexistência não
é determinada pela possibilidade da coexistência, mas pela do-
minação de uns sobre os outros". O Estado como fator de
força na política interior e exterior: esta é a correção que a
burguesia deve fazer. à sua teoria e à sua prática do "estado Para que os produtos do trabalho humano possam rela-
jurídico". Quanto mais a dominação da burguesia for amea- cionar-se· uns com os outros como valores, os homens devem
çada, mais estas correções se tomam comprometedoras e mais comportar-se, uns em relação aos outros, como pessoas inde-
rapidamente o "Estado jurídico" se transforma em uma som- pendenies e iguais.
bra material, até que a agravação ·extraordinária da luta de Quando um homem se encontra subjugado. acr poder de
classes force a burguesia a rasgar inteiramente a máscara do um outro, isto é, quando é escravo, seu trabalho deixa de ser
Estado de direito e a revelar a essência do poder de Éstado \ criador e substância de valores. A força de trabalho do es-
como a violência· organizada de uma classe social contra as cravo só transmite ao produto, assim como a força de trabalho
outras. · dos animais domésticos, uma parte determinada dos custos
de sua própria produção e reprodução. Tugan-Baranovskij con-
clui daí que só se pode compreender a economia política par-
tindo . da idéia diretriz ética do valor supremo e, portanto,
da igualdade das pessoas humanas.1 Marx, como se sabe, chega
a concluRão .oposta: ele relaciona a idéia ética da igualdade
das pessoas humanas com forma mercantil, ou seja, fa:z derivar
esta idéia de equalização prática de. todas as variedades do
trabalho humano entre si.
Efetivamente, o homem, enquanto sujeito moral, quer
dizer, enquanto pessoa igual às· outras pessoas, nada mais é
do que a condição prévia da troca com base na lei <;lo valor.
O homem, enquanto sujeito· de direito, enquanto proprietário,
igualmente. representa tal condição. Finalmente, estas duas de-
terminações estão estreitamente ligadas a uma terceira, na qual
o .homem figura como sujeito econômico egoísta.

1. Tugan-Baranovskij, Osnovy politiceskoj eknomii (Princípios de


economia política), 1917, p. 60.
128 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO' E O MARXISMO 129

.Estas três determinações, que não são redutíveis umas jeito egoísta, o sujeito de direito e a pessoa moral são as ttês
às outras e que, aparentemente, são contraditórias, exprimem principais máscaras sob as quais surge o homem na sociedade
o conjunto de condições necessárias à realização da relação do de produção mercantil. A economia das relações de valor nos
valor, de uma relação na qual a relação dos homens entre si, fornece a chave para compreender a estrutura jurídica e mo-
no processo de trabalho, surja como uma propriedade coit>ifi- ral, não no sentido do conteúdo . concreto da norma jurídica
cada dos produtos trocados . ou moral, mas no sentido da própria forma do direito e da
Se destacarmos estas determinações das relações soc1a1s moral. A idéia do valor supremo e da igualdade de princípio
reais que exprimem, e se tentarmos desenvolvê-las como cate- das pessoas humanas tem uma longa história: da filosofia es-
gorias autônomas (pela via purameri.te especulativa), obtere- tóica ela passou aos usos dos juristas romanos, aos dogmas
mos por resultado um caos de contradições e proposições que da Igreja cristã e em seguida à doutrina do direito natural.
se renegam reciprocamente2 • Mas, na relação de troca real, A existência da escravidão na Roma antiga não impediu Sêneca
estas contradições se articulam dialeticamente em uma totali- de se convencer de que, "mesmo se o corpo pode ser escravo
dade. e pertencer a um senhor, a alma permanece sui juris". Kant,
O agente da troca deve ser egoísta, deve ater-se ao puro no fundo, não deu um .grande passo à frente em comparação
cálculo econômico, do contrário a relação de valor não pode a esta fórmula. Nele igualmente a autonomia prinéipal da
manifestar-se como uma relação social necessária. O agente pessoa se deixa conciliar muito bem com visões puramente
da troca deve ser portador de direitos, isto é, deve ter a possi- feudais sobre as relações entre o senhor e a vassalagem. Mas,
bilidade de tomar uma decisão autônoma, pois sua vontade qualquer que seja a forma que possa assumir esta idéia, redes-
deve, com efeito, "habitar as coisas,.. Finalmente, o agente cobrimos nela, unicamente, a expressão do fato de que as
da troca encarna o princípio da igualdade fundamental das diferentes variedades concretas do trabalho social útil redu-
pessoas humanas, pois as trocas de todas as -variedades de zem-se ao trabalho em geral, desde que os produtos do traba-
trabalho são assimiladas umas às outras. e reduzidas ao tra- lho são trocados como mercadorias . Em todas as outras rela-
balho humano abstrato. ções, a desigualdade dos homens entre si (desigualdade de
Assim, os três momentos acima mencionados, ou como sexo, de classes, etc.) salta aos olhos de maneira tão evidente
antes se gostaria de dizer, os três princípios elo egoísmo, da ao longo dà história, que causa espanto, não a abundância
liberdade e do valor supremo da pessoa, são indissoluvelmen- de argumentos, neste particular, que têm sido apresentados
te ligados uns aos outros e representam, em sua totalidade, a contra a doutrina da igualdade natural dos homens, pelos seus
expressão racional de uma só e mesma relação social. O su- diferentes adversários, mas, sim, que, antes de Marx, ninguém
tenha se interrogado sobre as causas históricas que favorece-
ram o nascimento deste preceito do direito natural. Pois, se
2. Os revolucionários pequeno-burgueses, os jacobinos, enredaram-
se tragicamente nestas contradições ..Eles quiseram submeter o desenvolvi- o pensamento humano, ao longo de séculos, sempre se tem
mento real da sociedade burguesa às. formas de virtudes cívicas empres- voltado com tanta obstinação à tese da igualdade dos homens
tadas da Roma antiga.· Már:X: disse a este propósito: "Ser obrigado a e a elaborou de mi\ maneiras, é porque deve haver por detrás
reconhecer e sancionar nOs direitos do homem a sociedade burguesa mo- desta tese uma qualquer relação objetiva. Sem nenhuma dú•
derna, a sociedade da indústria, da concorrência universal, dos interesses
privados que buscam. seus fins, este regime de anarquia, de individua-
Vida o conce:to de pessoa moral ou de pessoa igual é uma de-
lismo natural e esPiritual; アオセイ@ ao mesmo tempo anular, de um golpe. formação ideológica que, como tal, não é adequada à reali-
de tal ou tal indivíduo particular as manifestações vitais desta sociedade, dade. O conceito de sujeito ·econômico egoísta é igualmente
pretendendo apenas fazer à antiga a cabeça política desta sociedade: que uma deformação ideológica da verdade. Contudo, assim mes·
colossal .ilusão!" (A Sagrada Familia, p. 1.48).

l_
130 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 131

mo, estas duas determinações são adequadas a uma relação sua universalidade . A ética kantiana é a ética típica da socie-
social específica, mesmo que a exprimam de maneira abstrata dade de produção mercantil, mas, igualmente, é a forma mais
e, por conseqüência, unilateral. Já tivemos ocasião de indicar pura e acabada da ética em g»:ral. Kant conferiu a esta forma
que, em geral, o conceito ou a pequena palavra "ideologia" uma figura lógica acabada, que a sociedade burguesa atomiza-
não deveria impedir que a análise fosse efetuada em profun- da esforçou-se em transportar para a realidade, libertando a
didade. Simplificaríamos muito a nossa tarefa se nos. ウ。エゥヲセ@ pessoa dos liames orgânicos das épocas patriarcais e feudais. 3
zéssemos com" a explicação segundo a qual a noção de homem Os conceitos fundamentais da moral perdem sua significação,
igual a outro homem é unicamente ·Criação da ideologia. oウセ@ se os destacarmos da sociedade de produção mercantil e se
conceitos de "alto" e ''baixo" são conceitos que exprimem a tentarmos aplicá-los a uma outra estrutura. O imperativo cate-
nossa ideologia ''terrestre"; no entanto, são fundados na rea- górico não é, de forma alguma, um instituto social, pois sua
lidade efetiva, indubitável, da gravitação. Foi precisamente destinação essencial é ser ativo onde seja impossível qualquer
quando o homem reconheceu a causa real que lhe constrangia motivação natural, orgânica, supra-individual. Onde exista uma
a distinguir o "alto" do "baixo", isto é, a força de gravidade estreita ligação emocional entre os indivíduos, que trans-
dirigida em direção ao centro da terra; que ele captou igual- borde os limites do Eu individual, o fenômeno da obrigação
mente o caráter limitado destas definições que as impedem de moral não pode ter lugar. Se quisermos compreender está
serem aplicadas a todas as reaEdades cósmicas. Assim, a des- categoria, não devemos partir do vínculo orgânico existente,
coberta da natureza ideológica de um conceito não é senão o por exemplo, entre a mulher e seu filho, ou entre a família
reverso do estabelecimento de sua verdade. e cada um de seus membros, mas do estado de isolamento.
Se a pessoa moral não é outra coisa além do sujeito da O ser .moral é um cómplemento .necessário do ser jurídico, e
sociedade de produção mercantil, então a lei moral deve se os dois são modos de relações entre os produtores de merca-
manifestar como regra das. relações entre proprietários de mer- dorias. Todo o pathos do imperativo categórico kantiano re-
cadorias. Isto confere, inevitavelmente, à lei moral tim cará- duz-se a que o homem cumpra "livremente", ou seja, por con•
ter antinômico. De uma parte, esta lei deve ser social e. en- vicção interna. aquilo gue ele seria compelido a fazer no âm-
contrar-se, portanto, acima da pessoa individual; de outra par- bito do direito. Quanto a isto, os exemplos que Kant cita, para
te, o proprietário de mercadorias é por natureza o portador ilustrar o seu .pensamento, são muito característicos. Eles redu·
da liberdade (da liberdade de apropriação e de alienação), de zem-se. a simples manifestações de conveniência burguesa. O
sorte que a regra que determina as relações entre proprietários heroísmo e as proezas não encontram lugar nos quadros do
de mercadorias deve ser igualmente transportada à alma de imperativo kantiano. Não é necessário sacrificar-se, desde que
cada proprietário de mercadorias, ser à s.ua lei interna. O im- não exijamos do outro tal sacrifício. As ações "irracionais"
.perativo categórico de Kant uniu estas exigências contraditó-
rias. Ele é supra-individual, porque não tem nada a ver com 3. A doutrina ética de Kant deixa-se conciliar muito facilmente
impulsos naturais (temor, simpatia, piedade, sentimentos de com a fé eni Deus, tanto mais que ela é o último refúgio desta fé. Mas
um vínculo entre as duas não é logicamente necessário. Aliás, o Deus
solidariedade, etc.). Segundo as palavras de Kant, efetiva- que busca proteção na sombra do imperativo categórico torna-se uma
mente, ele não ameaça, não persuade, não lisonjeia. Está si- abstração muito tênue e pouco aprofundada para intimidar as massas
tuado fora de toda motivação empírica, isto é, simplesmente populares. Eis por que a reação clérico-feudal se fixou por tarefa pole-
humana. Ao mesmo tempo, ele se manifesta independente- mizar contra o formalismo inerte de Kant, de estabelecer um Deus mais
mente de qualquer pressão exterior, no significado direto e seguro, que "reina", por assim dizer, e que coloca no lugar do impera·
tivo categórico os sentimentos vivos de "vergonha, compaixão e de ve-
grosseiro da palavra . Age exclusivamente pela consciência de neração" (Vladimir Solov'ev).
132 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 133

de abnegação tanto quanto o desprezo de seus próprios inte- O universalismo da forma ética (e, por conseguinte, tam-
resses em nome da construção de uma vocação histórica, de bém da forma jurídica) -:- todos os homens são iguais, todos
sua função social, ações nas quais se manifesta a mais alta possuem uma mesma "alma", todos podem ser sujeitos de di-
tep.são do instinto social, sitUam-se fora da ética, no sentido reito,· etc. - foi imposto aos Romanos pela prática de rela.-
estrito do termo4 • - ções comerciais com os estrangeiros, isto é, com pessoas de
Schopenhauer e, depois dele, V. Solov'ev definiram o di- costumes, de línguas, de religiões diferentes. Talvez tenha sido
reito como um certo mínimo ético. Pela mesma razão pode por isto que, de início, ele teve alguma dificuldade em ser con-
se definir a ética como um certo mínimo social. A maior siderado como algo positivo, quanto mais não fosse porque
intensidade do sentimento social se encontra fora da ética, no implicava na rejeição dos próprios costumes romanos enrai-
sentido estrito deste termo, e é uma herança transmitida pelas zados: amor a si próptio e desprezo pelo estrangeiro. Maine
épocas orgânicas precedentes, notadamente pela ordem gentí- informa que o jus gentium era uma conseqüência do desprezo
lica, à humanidade atual. Engels, por exemplo, diz o que se que os Romanos dedicavam a todo direito estrangeiro. e da sua
segue ao comparar o caráter dos antigos Germânicos · e dos hostilidade em conceder aos estrangeiros os privilégios do jus
Romanos civilizados: "seu valor e sua bravura pessoal, seu civile de · seu país. Segundo Maine, a Roma antiga gostava
espírito de liberdade e seu instinto democrático, que via em tão pouco do jus gentium quanto dos estrangeiros para os quais
todos os. assuntos públicos um assunto pessoal, em resumo, este era feito. A palavra "aequitas" significava igualdade e,
todas as qualidades que os Romanos perderam, e que só eles talvez, nenhuma nuance ética fosse, de início, verdaJeiramen-
eram capazes de modelar com o barro do mundo romano Es- te inerente a esta expressão. Não existe nenhuma razão em
tados novos e de fazer crescer as novas nacionalidades; ora, admitir que o processo designado por esta expressão tenha sus-
o que é isto senão os traços característicos do Bárbaro do citado, no espírito de um Romano primitivo, outra coisa além
estágio superior, fruto da organização gentílica?"5 de Upl sentimento de aversão6 •
O único aspecto pelo qual a ética racion'alista eleva-se, Todavia, a ética racionalista de sociedade de produção
efetivamente, acima dos instintos sociais, poderosos e irracio- mercantil apresentou-se, ulteriormente, como uma grande con-
nais, é o seu universalismo que se estende a todos os homens. quista e um valor culturál muito alto, do qual temos o hábito
Ela tende a quebrar todas as estruturas orgânicas, necessaria- de falar unicamente em um tom de entusiasmo. :É suficiente
mente, estreitas da tribo, da gens, da nação e a エッイョ。セウ・@ uni- relembrar a célebre frase de Kant: "Duas coisas preenchem-
versal,. Ela, assim reflete as conquistas materiais determina- me o coração de uma admiração e de uma veneração sempre
das da humanidade, notadamente a transfowação do comér- novas e sempre crescentes à medida que minha reflexão sobre
cio em comércio· mundial. A fórmula "nem セイ・ァッL@ nem judeu" elas se volta e se aplica: o céu estrelado acima de mim e a lei
é reflexo de uma situação histórica real: a unificação dos moral em mim"7 •
povos sob o domínio de Roma. Contudo, quando o discurso cita um semelhante "livre"
cumprimento do dever moral, são sempre os mesmos exemplos
que entram em cena - esmolas dadas a um pobre ou nega-
4. セ@ por isto que o professor Magaziner, por exemplo, tem razão tiva de mentir quando seria possível fazê-lo impunemente. Por
quando qualifica a ética neste sentido de "moderacão e exatidão" e
opõe-lhe o heroísmo que empurra os homens para ações que ultrapassam
os seus deveres (J. M. m。ァセゥョ・イL@ Obscee ucenie o gosudarstve [Teoria 6: Summer Maine, Ancient Law, trad. russa de N. Belozerskaia.
geral do Estado], 2.•, ed., Petrogrado, 1922, p. 50). 1873, p. 40 e 47.
5. F. Engels, A origem da família ... , op. cit., p. 143. 7. I. Kant, Crítica. da Razão prática, 1788.
A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 135
134 E. B. PASUKANIS

tânea do 'fetichismo mercantil e do fetichismo jurídico. En-


outro lado, Kant observa muito justamente que a regra quanto este ·estágio de 4lesenvolvimento não for alcançado pela
''considera teu próximo como um fim em si" só tem sentido humanidade, ou seja, .enquanto a herança da época capitalista
onde o homem pode ser transformado praticamente em .um não. for superada, os esforços do pensamento teórico apenas
meio para outro homem. O pathos moral está ゥョ、ウッャオカ・セ@ anteciparão esta ·libertação futura, mas não encarná-là-ão pra-
mente ligado à moral da prática social e dela se alimenta. ticamente . Lembremo-nos das palavras de Marx sobre o feti-
As doutrinas morais têm a pretensão de mudar o mundo e chismo mercantil: "a descoberta científica, feita mais tarde,
melhorá-lo, mas, em realidade, não passam de um reflexo de que os produtos do trabalho, enquanto valores, são a ex-
deformado de um aspecto deste mundo verdadeiro ーイ・」ゥウ。ュョセ@ pressão pura e simples do trabalho despendido na sua pro-
·te o aspecto que mostra as relações humanas submetidas à lei dução marca uma época na história do desenvolvimento da
do valor. セ@ necessário não esquecer que a pessoa moral não humanidade, mas não dissipa a fantasmagoria que faz aparecer
é mais do que uma das hipóstases do sujeito trinitário; o ho- o caráter social do trabalho como uma qualidade das coisas,
mem como um fim em si· nada mais é do que um outro as- dos próprios produtos"8 •
pecto do sujeito econômico egoísta. Uma ação que é verdadei- Poderão retorquir-me que a moral de classe do proleta·
ra e única encarnação do princípio ético contém também a riado liberasse, desde o presente, de todos os fetiches. O que
negação deste princípio. O grande capitalista arruína de· "boa é moralmente uma obrigação e o· que ·é útil à classe. Sob tal
fé" o pequeno capitalista sem se importar com o valor abso- perspectiva., a moral não possui nada de absoluto, pois o que
luto de sua pessoa. A pessoa do proletário é "igual em prin- hoje é útil pode deixar de 'sê-lo amanhã; . e ela também não
cípio" à pessoa do capitalista; isto se exprime no "livre" con- tem nada de místico ou de supranatural pois o princípio de
trato de trabalho. Mas esta mesma ''liberdade materializada" u.tilidade é simples e racional. セ@ indubitável que a moral do
resulta, para o proletário, na possibilidade de morrer tran- proletariado, ou, mais exatamente, a moral de sua vanguarda,
qüilamente de fome. perde seu caráter de duplo fetichismo purificando-se, por exem-
Esta duplicidade da forma ética não ·é devida ao acaso, plo, dos elementos religiosos. Mas mesmo uma moral des-
e não é uma imperfeição exterior, determinada pelos defeitos vencilhada de qualquer impureza, notadamente de elementos
específicos do capitalismo. Ela é, ao contrário, um signo dis- religiosos, permanece- uma moral, uma forma de relações sociais
tintivo, essencial da forma ética como tal. A supressão desta nas quais nem tudo é direcionado .ao próprio homem. Logo
duplicidade de forma ética significa a passagem à economia que o liame vivo que liga o indivíduo à classe seja efetiva-
socialista e planificada; mas isto significa a edificação de um mente tão forte, que os limites de seu Eu, por assim dizer,
sistema social no qual os homens podem construir e pensar apagam-se, e que o interesse da classe torne-se, de fato, idên-
as relações sociais com a ajuda de conceitos claros e simples tico ao interesse pessoal, torna-se absurdo falar do cumpri·
de dano e utilidade . A abolição da duplicidade de forma ética mento de um dever moral, e então o fenômeno da moral será
no campo mais importante, no âmbito da existência material inexistente. Mas onde ainda não tenha ocorrido semelhante
dos homens, significa a abolição da forma ética em geral. fusão de interesses, sur]e inevitavelmente a relação abstrata
No seu esforço para dissipar as brumas metáfísicas que do dever moral com todas as formas que daí resultam. · A
envolvem a doutrina ética, o puro utilitarismo considera os regra: "age de tal forma que a máxima de tua vontade possa
conceitos de "bom" e ''mau" sob o ângulo do útil e do preju- ser erigida em princípio de uma legislação universal".
dicial. Mediante isto, ele suprime a ética, ou, mais exatamen-
te, tenta suprimi-la, superá-la, pois a supressão dos fetiches éti- 8. K. Marx, O Capital, L. I, op. cit., p. 86.
cos só pode se consumar, na prática, com a supressão simul-
136 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 137

Toda diferença consiste em que nós procedemos no pri- · de na direção do comunismo. Certamente, tal tarefa não é
meiro caso a uma restrição concreta e que damos à lógica apenas uma tarefa puramente ideológica ou pedagógica. O
· ética um enfoque de dasses9 ; novo tipo de relações humanas necessita da criação e da con-
Mesmo no interior deste quadto ela mantém todo o seu solidação de uma nova base material, econômica.
valor .. ·O conteúdo de classe da ética ·não aniquila a sua forma É preciso lembrar, conseqüentemente, que a Moral, o Di-
em si. Não pensamos apenas em sua forma lógica, mas igual- reito e o Estado são formas de sociedade burguesa. Mesmo
mente nas formas pelas quais ela se manifesta concretamente. que o proletariado seja obrigado a utilizar-se destas formas,
Igualmente, no interior do coletivo proletário, isto é, em isto não significa absolutamente que elas podem continuar a
tim coletivo de classe, nós podemos óbservar os mesmos mé- se desenvolver com um conteúdo socialista. Elas não podem
todos formais de cumprimento do dever moral constituídos por assimilar este conteúdo, e deverão desaparecer à medida que
duas motivações opostas. De uma parte, o coletivo não renun- este conteúdo se realize. Contudo, no atual período de transi-
cia a todos os meios de pressão posflíveis para incitar os seus ção, o proletariado deve explorar, em benefício de seus ipte-
membros a cumprirem seus deveres morais. De outra parte, o ),"esses, estas formas herdadas da sociedade burguesa, esgotando-
coletivo não caracteriza uma c.onduta como moral quando não as completamente. Mas para isto, antes de tudo, o proletariado
seja .esta pressão externa que· constitua .sua motivação. É precisa- deve ter uma representação muito clara, liberta do véu ideo-
mente por isto que, na prática social, a moral e a conduta moral lógico, da origem histórica destas formas. O proletariado deve
são tão estreitamente ligadas à hipocrisia. Certamente as con- ter uma visão friamente crítica, não apenas em relaç,ão ·à Mo-
dições de vi dá do · proletariado constituem as premissas para ral e ao Estado burguês, mas também em relação a seu pró-
o desenvolvimento de uma ·nova forma, superior e mais har- prio Estado e sua própria Moral. Dito de outra forma, ele
moniosa, de relações entre o indivíduo e a coletividade. Nu- deve estar consciente de suà existência, mas também de seu
merosos fatos, que exprimem a solidariedade da classe prole- desaparecimento10 •
tária, testemunham-no. Mas, ao lado deste novo, continua a Em sua crítica a Proudhon, Marx indica que o conceito
subsistir também o antigo. Ao lado do homem social do futu- abstrato de justiça não é um critério absoluto e eterno, a par-
ro, que deixa fuhdir o seu Eu na coletividade, que encontra tir do qual podemos edificar uma relação de troca ideal, isto
assim a. grande sa:tisfação e o verdadeiro sentido de sua vida, é, justa. Seria uma tentativa "para transformar as trocas quí-
continua,. igualmente, a existir o homem moral que carrega micas em função de 'idéias eternas' de 'qualidades particula-
sobre os seus ombros o fardo de um futuro mais ou menos res' e 'afinidades', ao invés de estudar suas leis reais".
abstrato. A vitória da ·primeira forma equivale à libertação O próprio conceito de justiça ·é extraído da relação de
completa do homem de todas as sobrevivências das relações troca, e não tem sentido fora dela. No fundo, o conceito de
jurídicas ーイゥカ。、セウ@ e à transformação definitiva da humanida- justiça não contém nada de essenCialmente novo em· relação ao

9. Depreende-se que uma ética sem cÓnteúdo de· classe em uma 10. Isto significa que "não existirá mais moral na sociedade fu-
sociedade dilacer-ada pelas lutas de classe só pode existir na imaginação, tura?" Absolutamente, se concebermos a moral em sentido amplo, como
não na prática. O operário que decide, independentemente das priva- o .desenvolvimento de formas humanas superiores, como a transformação
ções às quais se expõe, participar de uma greve, certamente pode for- do homem em um ser ァ・ョセイゥ」ッN@ No caso presente, .trata-se, contudo, de
mtdar sua decisão como um dever moral qU:e lhe determina subordinar outra· coisa; trata-se de formas específicas da consciência moral e da
os seus interesses Jilrivados ao interesse geral. Mas é muito claro que conduta humana que, após terem' concluído o seu papel histórico, devem
este conceito de interesse geral não pode conter os interesses do capita· dar lugar a outras formas, superiores, de relações entre 'o indivíduo e a
lismo contra os quais é travada a luta operária .. coletividade (nota à terceira edição) . ·
138 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 139

conceito de igualdade entre todos os homens que analisamos bem satisfeitas pelo poder Estatal, ainda que a relação jurí-
mais acima . :1! por isto que é ridículo ver na idéia de justiça dica também se realize, freqüentemente, sem sua intervenção,
um critério autônomo e absoluto. De qualquer maneira, esta graças ao direito costumeiro, à arbitragem voluntária e à jus-
idéia, se for habilmente utilizada, permite interpretar a desi7 tiça pessoal.
gualdade como igualdade, e convém, muito particularmente, Onde a função de coerção não está organizada e não
para velar pela ambigüidade da forma ética. Por outro lado, possui um aparelho particular, situado acima das partes, ela
a justiça é a marcha que leva a ética em direção ao direito. surge sob a forma da, assim chamada, "reciprocidade"; este
A conduta moral deve ser ''livre", mas a justiça pode ser obti- princípio de reciprocidade representa, nas condições de equilí-
da pela força. A coação, incitando a conduta moral tenta brio de forças até os nossos dias existentes, o único e, por
negar sua própria realidade. A justiça, ao contrário, "cálhou" assim dizer, precário fundamento do· direito internacional.
abertamente na partilha ao homem. Ela autoriza ·a realização Por outro lado, a exigência jurídica, em oposição .à exigên-
exterior e uma atividade egoísta interessada. Aí é que resi- cia moral, não se reveste da forma de ''voz interior", mas de
dem os pontos de contato e de discordância mais importantes exigência exterior, proveniente de um sujeito concreto, o qual
entre セ@ forma ética e a forma jurídica. é, em regra geral, o titular de um interesse material correspon-
A troca, ou a circulação de mercadorias, supõe que os dente11.
agentes da troca reconheçam-se mutuamente como proprietários. :1! por isto que o cumprimento dos deveres jurídicos é es-
Este reconhecimento, que surge sob a forma de uma convicção tranho à todos os elementos subjetivos do lado do obrigado e
interna ou do imperativo categórico, é o máximo. concebível assume forma externa, quase objetiva, do cumprimento de
ao qual pode se elevar uma sociedade de produção mercantil. uma exigência. O próprio conceito de obrigação jurídica tor-
Mas além deste máximo existe, igualmente, um certo rp.ínimo,
qt,te permite a existência, sem entraves, da circulação de mer- 11. Assim se passa no direito privado, que é o protótipo da forma
jurídica em geral. "As exigências jurídicas" que emanam dos órgãos do
cadorias. Para realizar este mínimo é necessário que os ーイセ@ poder público, e fora das quais não se contempla nenhum interesse pri-
prietários se comportem como· se eles se reconhecessem mu- vado; não são nada mais do que a configuração jurídica da vida política.
tuamente enquanto proprietários. セa@ conduta moral, aqui, opõe- A característica desta configuração é diferente segundo as circunstân-
se à conduta legal, que é caracterizada como tal, independen- cias; eis por que a concepção jurídica do estado cai irremediavelmente
temente dos motores que determinam-na, Do ponto de vista no pluralismo jurídico. Desde que o poder do Estado é representado
como a encarnação de uma regra objetiva situada acima dos sujeitos-'
jurídico, é perfeitamente igual que a dívida seja paga, porque, partes, ele se funde com a norma e torna-se o ponto mais elevado, im-
"de qualquer forma, o devedor será constrangido a pagá-la", pessoal e abstrato. A exigência do Estado surge como lei imparcial e
ou porque o devedor sente-se moralmente obrigado a fazê-lo. desinteressada. Neste caso é praticamente impossível conceber o Estado
A idéia de constrição exterior e não apenas esta idéia, mas; como sujeito, seja porque está destituído de substancialidade, seja porque
transformou-se em uma garantia abstrata das relações entre sujeitos
também, a organização da constrição exterior são aspectos essen-
reais, proprietários de mercadorias. Esta concepção, como a concepção
ciais da forma jurídica. Uma vez que a .relação jurídica não mais pura do Estado, é aquela defendida pela escola normativista aus-
pode ser construída de uma maneira puramente teórica, como tríaca, com Kelsen à frente. Nas relações internacionais, ao contrário, o
avesso. da relação de troca, sua realização prática exige, então, Estado não surge como a encarnação de uma norma objetiva, mas como
a presença de modelos gerais razoavelmente fixados, uma con- titular de direito subjetivo, isto é, com todos os atributos da substancia-
lidade e do interesse egoísta. O Estado desempenha o mesmo papel,
sulta elaborada e, ヲゥョ。ャュ・エケセ@ uma organização particular アオセ@ quando atua a título de fisco, como parte em um litígio com pessoas
aplique estes modelos aos casos particulares e que garanta a privadas. Entre estas duas concepções pode haver numerosas formas
execução· coativa das decisões. Estas necessidades são mais intermediárias e híbridas.
140 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 141

na-se, assim, muito problemático. Se formos conseqüentes, é temos, se assim se pode dizer, uma frente única do direito e
preciso dizer, de maneira geral- como faz Binder em Rechts- da moral.
norm und Rechtspflicht - , que uma obrigação jurídica nada A tentativa do professor Petrazickij de encontrar no di-
tem de comum com o ,., dever", mas só existe juridicamente reito um imperativo aboluto, isto é, ético, e que ao mesmo
enquanto ''responsabilidade"; "ser obrigado" não significa na- tempo se diferencie do imperativo moral, é deixada sem êxito13 •
da mais do que "responder com seus bens (e no direito penal Como se sabe o professor Petrazickij constrói a categoria de de-
com a sua pessoa) pela via do processo e· sob a forma de ver jurídico como um dever que incumbe a um sujeito em con-
execução forçada" 12 • fronto com os outros que podem pleitear a execução . A obriga-
As conclusões, paradoxais aos olhos da maioria dos ju- ção moral, ao contrário, não determina, segundo ele, nada mais
ristas, a qpe chega Binder, e que se deixam exprimir pela se- que uma cer-ta conduta, mas não concede a terceiros o direito
guinte fórmula simplificada: ''o direito não obriga juridica- de exigir o que lhes foi tomado.
mente a ninguém", são, em realidade, a continuação, conse- Por conseguinte, · o direito possui característica bilateral
qüente, da dístinção de conceitos que Kant já havia feito. imperativo-atributivo, enquanto que a moral possui caracterís-
Precisamente esta definição clara da delimitação entre a esfera tica unicamente obrigatória ou imperativa. O professor Petra-
moral e a esfera jurídica, uma em relação à outra, é a fonte zickij, apoiando-se em observações pessoais, assegura-nos que
de contradições insolúveis para os filósofos burgueses do di-· pode distinguir, sem dificuldades, a obrigação jurídica que o
reito. Se a obrigação jurídica não possui nada em comum com obriga a ressarcir ao credor a soma mutuada, da obrigação
o dever moral ''interior", então não se pode distinguir a sub- moral que o obriga a dar esmolas a um pobre. Mas, depreen-
missão ao direito da submissão à violência enquanto tal. Mas de-se que esta capacidade de distinguir tão claramente as coi-
se por outro lado, admitirmos no direito o momento do dever sas pertence exclusivamente ao professor Petrazickij. Pois ou-
como característica essencial, mesmo com a nuance objetiva tros, como o professor Trubeckoj, asseguram-nos que a obriga-
mais fra:ca, então a noção de direito, como mínimo socialmente ção de dar esmolas a um pobre é, do ponto de vista psicoló-
necessário, perde todo o sentido. A filosofia burguesa do direi- gico, tão ·ligada a esta última quanto o é a obrigação de pagar
to se perde nesta contradição fundamental, nesta luta sem fim, as dívidas ao credor14 • (Uma tese que, diga-se de passagem,
com suas próprias premissas . não é desvantajosa para o pobre, mas que deve ser muito con-
Além disso, .é interessante notar que as contradições, que testável aos olhos do credor.) O professor Rejsner, ao contrá-
no fundo são idênticas, se mostram sob estas duas formas dife- rio, é de posição de que o .momento emocional de uma obri-
rentes segundo se trata da relação entre o direito e a moral gação estabelecida · refere-se inteiramente a um ponto de vista
ou da relação entre o Estado e o direito. No primeiro caso, psicológico. Se para o professor Trubeckoj o credor, com suas
quando se afirma a autonomia do direito em relação à moral, pretensões, está, em conseqüência, posto no mesmo nível "psi-
o direito se confunde com o Estado, em razão da forte acen- cologicamente" que o pobre, para o professor Rejsner ele não
tuação do momento de coação externa. No segundo caso, é nada mais, nada ·menos, do que superior. Em outros termos,
.quando o direito se opõe ao Estado, isto é, à dominação de a contradição que revelamos, sob sua forma lógica e sistemá-
fato, o momento do dever entra inevitavelmente em cena, no tica, como uma contradição de conceitos, revela-se, aqui, como
sentido do termo alemão sollen (e não de müssen) e então
13. L. I. Petrazickij, Vvedenie v izucenie prava, op. cit.
14. E. Trubeékoj, Enciklopedija prava (Enciclopédia do direito).
12. J. Binder, Rechtsnorm und Rechtspflicht, Leipzig, 1916. Moscou, 1903, p. 28.
142 E. B. PASUKANIS

uma contradição resultante da observação pessoal. Mas o sig- Capítulo· Sete


nificado permanece o mesmo. A obrigação jurídica não pode
ter significado autônomo, e oscila eternamente entre dois limi-
tes extremos: a coação exterior e o dever moral "livre".
Como sempre, e aqui igualmente, a contradição no siste- DIREITO E VIOLAÇÂO DO DIREITO
ma lógico reflete a contradição da vida real, ou seja, do meio
social que produziu a própria forma da moral e do direito.
A contradição entre o individual e o social, entre o privado
e o público, que a filosofia burguesa do direito não pode su-
primir, apesar de todos os seus esforços, é o fundamento real
da própria sociedade burguesa, enquanto sociedade de produ-
tores de mercadorias. Esta contradição é encarnada nas rela-
A Russkaja Pravda, que é o mais antigo monumento ju-
ções reais dos homens, que não podem considerar suas ativi·
rídico do período de Kiev de nossa história, contém, eril t:\ldo e
dades privadas (:Orno atividades sociais, senão que sob a for-
por tudo, em seus 43 artigos (da ''lista acadêmica") apenas dois
ma absurda e mistificada do valor mercantil.
que nãó se referem a infrações ao direito penal ou ao direito
civil. Todos os outros artigos definem sanções ou regras de
procedimentos que devem ser aplicadas em caso de violação
do direito. · Em ambos os casos, conseqüentemente, pressupõe-
se umà violação das normas.1
As chamadas "leis bárbaras" das· tribos alemães nos -ofe-
recem o mesmo quadro. Assim, por exemplo, nos 408 artigos
da lei Sálica, apenas 65 não possuem aspecto repressivo. O
mais antigo monumento do direito romano, a lei das Doze Tá·
buas, começa pela regra sobre a demanda judiciária: "si in jus
vocat, ni it, antestamino igitur in capito"2 • O célebre histo-
riador do direito, Maine, diz em seu livro Ancient Law: "Em
regra geral, quanto mais velho é um código, mais· a sua parte
penal é detalhada e completa"3 •

1 . Basta menr.ionar o fato de que, neste estágio primitivo do desen-


volvimento, o assim chamado "delito" criminal e o "delito" civil não
se distinguem. O conceito dominante era o de que o -dano exigia repa·
ração: o roubo, a pilhagem, a morte, e o não pagamento de uma dívida
eram, indistintamente, considerados como motivos que permitiam ao
indivíduo lesado propor uma ação e obter a reparação sob a forma de
uma multa.
2. XII tablic, ed. Nikol'skij, 1897, p. 1.
3-. Summer Maine, Ancient Law, p. 288.
144 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 145

A não submissão à norma, a violação da norma, a ruptura De todos os ramos do direito é precisamente o direito
da forma normal das relações e os conflitos que daí resultam penal aquele que possui o poder de tocar a pessoa individual
constituem o ponto de partida e o principal conteúdo da legis- de modo mais direto e ma:s brutal. E. por isso que o direito
lação arcaica. O normal, ao contrário, não é fixado como penal sempre suscitou o maior interesse prático. A lei e a
tal; ele s!mplesmente não existe. A necessidade de fixar e de pena que pune a sua transgressão são, em geral, estreitamente
determinar de maneira precisa a extensão e o conteúdo dos ligadas entre si, de forma que o direito penal desempenha o
direitos e dos deveres recíprocos só surgiu onde a existência papel de um representante do direito: é uma parte que subs-
calma e pacífica foi turbada. Deste ponto de vista Bentham titui o todo.
tem razão, ao dizer que a lei criou o direito ao criar o delito. A origem do direito penal está historicamente vinculada
A relação jurídica adquiriu historicamente o seu caráter espe- ao costume da vingança de sangue. Indubitavelmente, estes
cífico, sobretudo, em relação com a violação do direito. O dois fenômenos estão genericamente muito próximos. Mas a
conceito de roubo surge depois do conceito de proptiedade. vingança só é realmente vingança quando é seguida de conde-
As relações derivadas do empréstimo são determinadas nos nação. e de pena; igualmente aqui são unicamente os estágios
casos em que o devedor não quer pagar: ''desde qué alguém ulteriores do desenvolvimento (como podemos observar muito
reclame a outrem uma dívida, mas que o outro refute o paga- freqüentemente na história da humanidade) que tornam com-
mento"4. preensíveis os esboços contidos nas formas anteriores . Se abor-
O significado originário da palavra Pactum (pacto) não darmos o mesmo problema pela extremidade oposta, não pode-
é aquele do contrato em geral, mas derivado de pax (paz), mos ver nada mais do que a luta pela existência, uma reali-
isto é, representa a regulamentação amigável de uma disputa: dade puramente biológica. Para os teóricos do direito penal
o pacto encerra a disputa5 • que se limitam a uma época mais tardia, a vingança de sangue
Se o direito privado reflete mais 、ゥイ・エ。ュセョ@ as condições coincide com o jus talionis, ou seja, com o princípio de repa-
gerais de existência da forma jurídica enquanto tal, o direito ração equivalente que exclui a possibilidade de uma vingança
penal representa a esfera na qual a relação. jurídica atinge a ulterior desde que o ofendido, ou sua família, tenham sido
maior tensão. O momento jurídico, aqui, destaca-se em pri- vingados. Em realidade, como M. Kovalevskij justamente de-
meiro lugar e mais claramente das práticas costumeiras e tor- monstrou, a característica mais antiga da vingança de sangue
na-se totalmente independente. No processo judicial, a trans- era outra. O ofendido e seus parentes tornavam-se, por sua
formação das ações de ·um homem concreto em atos de parte vez, ofensores, e o ciclo prosseguia de uma geração a outra,
jurídica, isto é, de um sujeito de direito, é muito clara. Para freqüentemente até a eliminação completa das famílias ini-
distinguir as ações e os desejos quotidianos das manifestações migas6.
jurídicas de vontade, o direito antigo servia-se de fórmulas A vingança não começa a ser regulamentada pelo costume
e cerimônias solenes, particulares . O caráter dramático do e a se transformar em reparação segundo a regra de talião
processo judicial criou de maneira sensível uma existência ju- "olho por olho, dente por dente", mas quando, ao lado da
rídica particular ao lado do mundo real. vingança, começa a consolidar-se o sistema de modernização
ou reparação em dinheiro. A idéia do equivalente, esta pri-
meira idéia puramente jurídica, encontra novamente suas fon-
4. Russkaja Pravda, Accademik Liste, art. 14.
5 . R. Ihering, Geist des rõmischen Rechts, t.• parte, trad. russa,
1875, p. 118. (Há tradução bra,sileita: O Espfrito do Direito Romano, 6. M. Kovalevskij, Sovremennyi obycaj i drevnij zakon (Os usos
Rio, Editora Alba, 1943, 4 vols. N. do T.). modernos e a lei antiga), li, Petesburgo e Moscou, 188ti, p. 37-8.
146 E. B. P ASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 147

tes na forma mercantil. O delito pode ser considerado como mas deixa a sua ação para mais tarde, para um momento mais
uma variedade particular de circulação, na qual a relação oportuno. Assim, a autodefesa transforma-se em vingança no
de troca, a relação contratual, é fixada pela ação arbitrária sentido mais .verdadeiro da palavra. E como a vingança está,
de uma das partes. A proporção entre delito e separação igual- para o homem moderno, indissoluvelmente ligada à idéia de
mente se reduz a uma proporção de troca. Por isto Aristóte- reparação equivalente, não é espantoso que Ferri esteja dis·
les, ao falar da igualitarização na troca como uma variedade posto a admitir a existência de um instinto "jurídico" entre
de justiça, distingue dois tipos: a igualitarização nas ações os animais7 •
voluntárias e a igualitarização nas ações involuntárias, abran- Com efeito, a idéia jurídica, isto é, a idéia da equiva-
gendo as relações econômicas de compra, venda, empréstimo, lência, só se exprime limpa e claramente, e só se realiza obje-
etc. nas relações voluntárias, e as diferentes modalidades de tivamente no estágio de desenvolvimento econômico no qual
delito, que acarretam sanções a título de equivalentes especí- esta forma de equivalência torna-se costumeira como igualita-
ficos, nas ações involuntárias. セ@ também dele a definição do rização nas trocas; por conseqüência, em nenhuma. hipótese
delito como contrato firmado contra a vontade. A sanção no mundo animal, mas apenas na sociedade humana. Para
surge, então, como um equivalente que compensa os danos isto não é necessário que a vingança tenha sido completa-
sofridos pela vítima. Esta idéia foi retomada, como se sabe, mente suplantada pela reparação. セ@ precisamente no caso em
por Hugo Grotius. Por singelas que estas construções possam que a reparação seja considerada como algo desonroso (tal
parecer à primeira vista, elas, entretanto, denotam uma intui- 」ッョ・ーセ ̄@ predominou durante muito tempo entre os povos
ção da forma jurídica muito mais fina que as teorias ecléticas primitivos) e no qual a execução da vingança pessoal é consi-
dos juristas modernos. Podemos observar muito claramente, derada como um dever sagrado, que o próprio ato de vingança
nos exemplos da vingança e da pena, por que transições im- assume uma nova nuance que não possuía desde que ele ainda
perceptíveis o orgânico e o biológico se vinculam ao jurídico. representava uma alternativa: no presente foi introduzida a
Esta conexão é ainda acentuada ーセャッ@ fato de que o homem idéia de que ele representa a única reparação adequada. A
não é capaz de renunciar à interpretação habitual, jurídica (ou refutação da reparação sob forma de dinheiro põe em evidên-
ética) dos fenômenos da vida animal. Ew atribui, sem o que- cia, em suma, o fato de que o derramamento de sangue é o
rer, às ações dos animais, um significado que, a bem da ver- único equivalente do sangue já derramado. De fenômeno pu-
dade, só lhe foi conferido pela evolução ulterior, pelo desen- ramente biológico, a vingança se transforma em instituição
volvimento histórico da humanidade. jurídica desde que se liga à forma de troca equivalente, da
A .autodefesa é um dos fenômenos mais naturais da vida troca ·mensurada por valores .
animal, e a· encontramos indiferentemente, seja sob a forma O direito penal arcaico demonstra este vínculo de ma-
de simples reação individual do ser vivo, seja sob a forma neira particularmente evidente e grosseira, pondo diretamente
de reação de uma coletividade. Os cientistas que estudaram em pé de igualdade o dano causado aos bens e o malefício
a vida das abelhas demonstraram que elas defendem a entrada causado à pessoa, com uma ingenuidade à qual as épocas
da colméia, atacando toda abelha estranha que tentar invadi-la posteriores renunciaram pudicamente. Do ponto de vista do
para subtrair mel. Mas se uma. abelha estranha já penetrou direito romano antigo, não havia nada de anormal no fato
na colméia, ela é morta tão logo seja descoberta. Não é raro de que um devedor insolvente pagasse as suas dívidas com
encontrar no mundo animal casos nos quais as reações são
separadas das ações que as provocaram por um certo lapso 7. . E. Ferri, Sociologia Criminal, trad. russa com prefácio de Drill',
de tempo. O ani!Jlal não responde imediatamente ao ataque, vol. 11, p. 37.
148 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 149

uma parte de seu corpo (in partes secare) e que um culpado Aliás, ao lado desta pena pública como fonte de renda,
respondesse com seus bens a uma ofensa física feita a outra surge, muito cedo, a pena comó meio de manutenção da disci-
pessoa. A idéia de composição com base em um equivalente plina e defesa da autoridade do poder clerical e militar. Sabe-
aparece aqui com toda sua nudez, e não é dificultada ou se que na Roma antiga a maior parte dos delitos graves era,
mascarada por nenhuni tipo de momento sobreposto . Em ao mesmo tempo, delito contra os deuses.U Assim, exemplifi-
conseqüência, o processo penal assume, igualmente, o cará- cadamente, uma das violações do direito mais importantes, para
ter de um contrato comercial. "Devemos figurar ·aqui, diz o proprietário rural, o deslocamento de má fé dos marcos de um
Ihering, um mercado no qual uma das partes propõe e a terreno, era considerada, em toda a antiguidade, como um de-
outra éontrapropõe, até que finalmente cheguem a um acordo. e
lito religioso, a cabeça do culpado era oferecida aos deuses.
Isto era expresso pelos termos pacere, pacisci, depecisci e o A casta dos religiosos, que surge como a guardiã da ordem,
acordo propriamente dito pelo termo pactum. E. aqui que apa- não perseguia, assim, um interesse unicamente ideológico, mas,
rece no velho dire:to nórdico o ofício de mediador, escolhido tainbém, um interesse material muito sólido, pois em tal hipó-
pelas duas partes, que determina o montante da soma para tese os- bens do culpado eram confiscados em benefício dela.
a conciliação (o arbiter no sentido romano originário)". 8 De outra parte, as penas impostas pela casta dos sacerdotes
No que concerne às, assim chamadas, penas públicas, àqueles que causavam prejuízos à sua receita - ao recusar-se
em sua origem elas foram introduzidas, principalmente, em às cerimônias ou oferendas estabelecidas, ou ao tentar introduzir
razão de considerações de ordem fiscal e serviram para ali-. novas doutrinas religiosas, etc. - tinham igualmente um ca-
mentar os cofres dos representantes do poder. "O Estado, ráter público.
diz a este respeito Maine, não exigia do acusado uma multa A influência da organização clerical, ou seja,' da Igreja;
pelo dano que se supunha ter sido por ele causado, mas exigia sobre o direito penal se manifesta no fato de que, ainda que
apenas uma parte da indenização devida ao querelante, a títu- a pena continue a conservar o caráter de equivalente ou de
lo de justa· indenização pela perda de tempo e por seus ser- reparação, isto está mais diretamente ligado ao dano sofrido pela
viços".9 vítima, e não mais fulcrado sobre· as pretensões desta última,
A história russa· nos ensina que esta ''justa indenização mas adquire um significado superior, abstrato, enquanto castigo
pela perda de tempo" era tão considerada pelos príncipes que, divino. Assim a Igreja quer associar ao momento material da
segundG o testemunho das crônicas, "o território russo era indenização o motivo ideológico da expiação (expiatio) e, por-
devastado pelas guerras e pelos impostos". E mais, este mes- tanto, fazer do direito penal, baseado sobre o princípio de vin-
mo fenômeno de pilhagem judiciária pode ser observado não gança privada, um meio eficaz de manutenção da disciplina
apenas na Rússia antiga, mas, igualmente, no império de Car- pública, isto .é, da dominação de classe. Nesta perspectiva,
los Magno. Aos olhos dos antigos príncipes russos, os lucros os esforços do clero bizantino em introduzir a pena de morte
proporcionados pelas custas judiciais em nada se distinguiam no principado de Kiev são reveladores. O mesmo fim de ma-
das fontes ordinárias de receita. Eles ofereciam-nos a seus
servidores, repartiam-nos, etc. Era possível subtrair-se aos tri·
11. Como o juramento (juramentum) era uma parte integrante e
bunais dos príncipes pagando-se uma certa quantia.10 indispensável da relação jurídica (segundo Ihering os termos de "obrigar-
se", de "constituir um direito" e de "jurar" possuíam,· por longo
8. Ihering, Geist des rõmischen Rechts, trad. russa, vol. I, p. 118. tempo, o mesmo significado), a relação jurídica, por completo, estava
(Ver nota 5 do capítulo sete.) posta sob a proteção da religião, pois o próprio juramento era um ato
9. S. Maine, op. cit ., p. 269. religioso e o falso juramento ou o perjúrio eram delitos religiosos (cf.
10. Cf. a dikaja vira da Russkaja Pravda. Ihering, Geist des rõmischen Rechts, p. 304). (Ver nota 5 do cap. sete.)
150 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 151

nutenção da disciplina igualmente determina o caráter das me- Estado, assim como dos vagabundos pauperizados, dos men-
didas punitivas adotadas pelos chefes militares. Estes exercem digos, etc. O aparelho da polícia e da inquisição começa a
a justiça tanto sobre os povos subjugados quanto sobre os seus desempenhar uma ·função proeminente. As penas transformam-
próprios soldados, em casos de motins, complôs ou simplesmente se em meios de extermínio físico e de terrorismo . I! a época
de indisciplina. A célebre passagem de Clóvis, que com suas da tortura, das penas corporais, das execuções capitais mais
próprias mãos partiu em dois pedaços a cabeça de um guer· bárbaras.
reiro recalcitrante, mostra o caráter primitivo da justiça penal à Assim constituiu-se progressivamente o complexo amálga-
época do nascimento dos impérios bárbaros germânicos. Nas ma do direito penal moderno, no qual podemos distinguir sem
épocas mais remotas, esta tarefa de manutenção da disciplina dificuldade as raízes históricas que lhe deram origem. Fun-
militar incumbia à assembLéia popular; com o fortalecimento damentalmente, isto é, do ponto de vista puramente socioló-
e a estabilização do poder real, esta função transferiu-se na- gico, a burguesia assegura e mantém ·sua dominação de classe
turalmente aos reis e identificou-se com a defesa de seus pró- através do seu sistema de direito penal oprimindo as classes
prios privilégios. No que concerne aos delitos 」イゥュョセウ@ co- exploradas, Sob este ângulo os seus tribunais e suas ()rgani-
muns, os reis germânicos (bem como os príncipes de Kiev) zações privadas "livres" e de "fura-greves" perseguem· um
só o viram, durante muito tempo, com interesses puramente mesmo objetivo.
fiscaisY Se considerarmos as coisas deste ponto de vista, a ju-
Está situação se modificou com o desenvolvimento e a risdição penal não é nada mais do que um apêndice da polí-
estabilização da divisão da sociedade em classes e em estados . cia e da investigação. Se os tribunais de Paris tivessem real-
O nascimento de uma hierarquia eclesiástica e de uma hie- mente que fechar suas portas por alguns meses, os únicos
rarquia laica faz da proteção de seus privilégios e da luta que sofreriam seriam os criminosos presos. Mas se as "famo-
contra as classes inferiores e oprimidas da população uma sas" brigadas da polícia de Paris cessassem o seu trabalho,
tarefa prioritária. A desagregação da economia natural e a por apenas um dia, o resultado seria catastrófico.
intensificação consecutiva da exploração dos camponeses, o A jurisdição criminal do Estado burguês é o terror de
desenvolvimento do comércio e a organização do Estado ba- classe organizado que só se distingue em certo grau das cha-
seado sobre a divisão em estados e em classes colocam a madas medidas excepcionais utilizadas durante a guerra civil.
jurisdição penal à frente de todas as outras tarefas; Nesta Spencer demonstrou a analogia completa, a própria identi-
época, a justiça penal já não é mais, para os detentores do dade existente entre as ações defensivas dirigidas contra os
poder, um simples meio de enriquecimento, mas um meio ataques externos (guerra) e as reações contra aqueles que
de repressão impiedosa e brutal, sobretudo dos camponeses perturbam a ordem interna do Estado (defesa judiciária ou
que fugissem da intolerável exploração dos senhores e de seu jurídica).JJ O fato de que as medidas do primeiro tipo, isto
é, medidas ー・ョ。ゥセ@ sejam utilizadas principalmente contra os
elementos desclassificados da sociedade, e que as medidas do
12. Sabe-se que no antigo direito russo a expressão "fazer justiça segundo tipo o sejam principalmente contra os militantes mais
por suas próprias mãos" significava, antes de tudo, que se privava o
príncipe das custas judiciais que lhe eram devidas. Igualmente no código ativos de uma nova classe que deseja assumir o poder, não
do rei Erik, as conciliações privadas entre a vítima, ou seus parentes, e muda a natureza fundamental das coisas, mas, apenas, a re-
o criminoso eram consideradas proibidas se elas privassem o rei da
parcela que lhe era devida. No mesmo código, contudo, a acusàção em
nome do rei ou de seu magistrado só era autorizada como uma rara 13. H. Spencer, Principies of Sociology, 1876, trad. russa, 1883,
exceção (cf. Wilda: Strafrecht der Germanen, 1842, p. 219). p. 659.
152 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 153

gularidade e complexidade maior ou menor do procedimento e a propriedade. 15 Além disso, deve ser notado que os últimos
utilizado. Não se pode compreender o verdadeiro sentido da decênios do século XIX .e os primeiros decênios do século
Pt"ática penal do . Estado de classe sem partir de sua natureza XX viram nascer, em um certo número de Estados burgueses,
antagonista. As teorias do direito penal que deduzem os prin- um.a tendência característica à restauração de penas aflitivas,
cípios da política penal a partir dos interesses do conjunto cruéis e infamantes. O humanismo da burguesia cede lugar
da sociedade são deformações conscientes da realidade. "O aos apelos da severidade e a uma maior aplicação da pena de
conjunto da sociedade" só existe na imaginação dos juristas; morte.
só existem, de fato, classes com interesses opostos, contradi- Segundo Kautsky isto se explicaria pelo fato de que a
tórios. Todo sistema histórico e determinado de política penal burguesia tinha .uma atitude pacifista e humanitária no fim
traz a marca dos interesses da classe a qual serve. O senhor do século XVIII e no início do século XIX, ou seja, até a
feudal executava o camponês insubmisso e os citadinos que introdução do serviço militar obrigatório, porque ela não ser-
se opunham à sua dominação. Na Idade Média todo indívi- viu o exército. E muito duvidoso que esta seja a razão fun-
duo que quisesse exercer uma profissão sem ser membro de damental. A transformação da burguesia em uma classe reacio-
オュセ@ corporação era considerado fora da lei; a burguesia ca- nária que possui medo ·do ascenso do movimento operário,
pitalista, tão logo surgiu, declarou criminosos os esforços dos que transformou a política colonial em uma escola de cruel-
operários para se reunirem em associações . dade, foram as causas mais importantes .
O interesse de classe imprime, destarte, em· cada sistema Somente o desaparecimento completo das classes permi-
penal a marca da concretização histórica. No que concerne tirá criar um sistema penal do qual será excluído qualquer
aos próprios métodos de política penal, é usual ressaltar os elemento de antagonismo de classe. A questão que se coloca
grandes progressos consumados pela sociedade burgues.a desde é saber em quais circunstâncias tal sistema penal ainda será
a época de Beccaria e de Howard com a àdoção de penas necessário. Se a prática penal do poder de Estado é em seu
mais humanas: abolição da tortura, das penas corporais e das conteúdo e em seu caráter um instrumento de defesa da domi-
penas infamantes, das execuções capitais bárbaras, etc. Tudo nação de classe, em sua forma ela aparece como um elemento
isto representa, sem dúvida, um grande progresso. Mas, não de superestrutura jurídica e integra-se no sistema jurídico
se pode esquecer que a abolição das penas corporais não ocor- como um de seus ramos. Mostramos precedentemente que a
reu em todo lugar. Na Inglaterra o açoite é permitido, até luta aberta pela sobrevivência assume, com a introdução do
25 golpes de vara para os menores de 16 anos, e até 150 princípio da equivalência, forma jurídica. O ato de legítima
golpes para os adultos, como punição para o roubo e o furto. defesa ,perde sua característica de simples defesa e torna-se
Também os marinheiros sofrem suplícios corporais. Na Fran- uma forma de troca, um modo particular de circulação que
ça, o castigo corporal é aplicado como sanção disciplinar aos encontra seu lugar ao lado da circulação comercial "normal".
penitenciários. 14 Na América, em dois Estados da União, mu- Os delitos ,e as penas transformam-se naquilo que realmente
tilam-se os criminosos, fazendo-os sofrer emasculação. A Di- são, ganham característica jurídica, sobre a base de um con-
namarca introduziu em 1905, para uma série de delitos, cas- trato. Enquanto esta forma se conserva, a luta de classe se
tigos corporais. Mais recentemente, a queda da república so- realiza pelo direito. Inversamente, .a própria denominação "di-
viética da Hungria foi comemorada com a introdução do açoite reito penal" perderia todo o sentido se este princípio de rela-
aplicado como pena para uma gama de delitos contra a pessoa ção de equivalência desaparecesse .

14. I. J. Fojnickij, Ucenie o nakazanii (Teoria da pena); p. 15. 14. I. J. Fojnickij, Ucenie o nakazanii (Teoria da pena), p. 15.
154 E. B. PASUKANIS
A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 155

O direito penal é uma parte integrante da superestrutura Desta abstração, a propósito, encontramos uma tradução
jurídica, na medida em que encarna uma variedade desta real na figura do promotor público, mesmo nos casos nos
forma fundamental à qual a sociedade moderna está subme-
quais realmente não existem vítimas e nos quais é somente
tida: a forma de troca de equivalentes com todas as suas
conseqüências. A realização destas relações de troca no di- a lei que "protesta". Este desdobramrnto, pelo qual o xpesmo
reito penal é um aspecto da· realização do Estado de direito poder de Estado aparece tanto no papel de parte judiciária
como forma ideal das relações entre. produtores de mercado- (promotor) quanto no papel de juiz, mostra que o processo
rias independentes e iguais que'atúam no mercado. Mas como penal como forma jurídica é inseparável da figura de vitima
as relações sociais não se· limitam às relaÇões j1,1rídicas abstra- exigindo "reparação" e, em conseqüência, da forma mais ge-
tas entre proprietários abstratos de mercadorias, a justiça penal nérica do contrato. O promotor público demanda, como con-
não é apenas uma encarnação da forma jurídica abstrata, mas, v.ém a uma ''parte", um "prego" elevado, ou seja, uma pena
também, uma arma poderosa na luta de classes. Quanto mais severa. O réu solicita indulgência, "uma redução", e o tribu-
esta luta se torna aguda e violenta, mais a dominação de classe nal se pronuncia "com equidistância". Se rejeitarmos esta for-
tem dificuldades de se realizar no interior . da forma jurídica. ma de contrato, retiraremos do processo penal toda a sua
Neste caso o tribunal "imparcial" com suas garantias jurídi- "alma jurídica". Imaginemos um momento no qual o tribunal
cas ,é substituído por uma organização direta da violência de só se ocupa com a forma pela qual as condições de vida do
classe, cujas ações são geradas exclusivamente por considera-
réu podem ser utilizadas para condená-lo ou para proteger a
ções de oportunidade política.
sociedade, e todo o significado do próprio termo "pena" rapi-
Se considerarmos a sociedade burguesa, em sua essência, damente volatilizar-se-ia. Isto não quer dizer que todo proce-
como uma sociedade de proprietários de mercadorias, faz-se
dimento penal e o processo de execução sejam totalmente des-
necessário considerar a priori que o seu direito penal é jurí-
dico em seu sentido mais elevado, no sentido mais preciso tituídos dos elementos simples e compreensíveis mencionados
do termo. Ora, parece-nos que, desde o início, este ponto acima; apenas queremos demonstrar que este procedimento
nos traz diferentes dificuldades. A primeira consiste em que possui particularidades as quais não se deixam esgotar por
o direito penal moderno não · parte a priori do dano sofrido considerações claras e .simples sobre a finalidade social, mas
pela parte lesada, mas da violação da norma estabelecida pelo representam um momento irracional, mistificador e absurdo.
Estado. Mas, se a parte lesada passar a segundo plano, pode- Queremos demonstrar que, em específico, este momento é o
remos nos questionar onde se situa a forma da equivalência. momento jurídico.
Ainda que a parte lesada não desapareça inteiramente, ainda
que ela permaneça em segundo plano: ela representa, ainda Existe mais uma outra dificuldade. O direito penal ar.-
assim, o fundo da ação em curso. A abstração do interesse caico só conhecia o conceito de dano. As noções de dolo e
público lesado apura-se, inteiramente, na figura real da parte culpabilidade, que no direito penal moderno ocupam lugar muito
interessada, seja pessoalmente, seja através de um representante, importante, não existiam naquela etapa de desenvolvimento. O
dando com isto uma significação nova ao processo.16 ato premeditado, o ato de imprudência e o caso fortuito so-
mente eram avaliados por suas conseqüências. Os costumes
dos franceses e dos Ossetas atuais situam-se no mesmo nível
16. A satisfação dada à parte lesada é considerada, nos dias atuais, de desenvolvimento. Estes últimos não fazem, por exemplo,
como uma das finalidades da pena (cf. F. V. List, Lehrbuch des deuts· nenhuma espécie de diferença entre uma morte causada. inten-
chen Strafechts, 1905, parágrafo 15). cionalmente por uma estocada de punhal e a morte provocada
A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 157
156 E. R PASUKANIS

cação. O que significam estas distinções de graduação na res-


pela queda de uma pedra em conseqüência de um passo em
ponsabilidade senão que a diferenciação nas condições de um
falso de uma cabraP
futuro contrato? A graduação da responsabilidade é um dos
Como se vê, o conceito de responsabilidade não era com-
fundamentos da escala de penas, é um novo momento, ideal
pletamente estranho ao direito antigo. Era determinado de
ou psicológico se quisermos, que se acrescenta ao momento
forma diferente. No direito penal moderno nós temos, con-
material do dano e ao momento objetivo do ato para com eles
forme o individualismo radical da sociedade burguesa, o con-
constituir o ヲオョ、セュ・エッ@ da determinação proporcional da
ceito da responsabilidade estritamente pessoal. O direito an-
pena. O ato premeditado comporta a responsabilidade mais
tigo, ao contrário, era pleno do conceito de responsabilidade
pesada e assin;t necessita da pena mais severa; o ato praticado
coletiva. Puniam-se as crianças pelos delitos de seus pais e a
com imprudência comporta uma responsabilidade menor e,
gens era responsável por cada um de seus membros. A socie-
logo, uma pena mais leve; por fim, no caso de ausência de
dade burguesa dissolve todos os vínculos primitivos e orgâni-
responsabilidade (o autor é não-imputável), a pena não é deter-
cos preexistentes entre os indivíduos. Ela proclama o prin-
minadã. Se substituirmos as medidas penais pela terapêutica,
cípio: "cada um por si" e o realiza em todos os seus domínios
ou seja, por um conceito médico e profilático, chegaremos a
- inclusive no direito penal - de maneira bastante conse-
resultados totalmente diferentes. Nesta hipótese não é a prô-
qÜente. E mais, o direito penal moderno introduziu no con-
poJcionalidade das penas que nos interessará, mas sim se as
ceito de responsabilidade um elemento psicológico, dando-lfu:
medidas empregadas correspondem ao fim fixado, isto é, se
uma grande complexidade, distinguindo diversos níveis: res-
permitem proteger a. sociedade e agir sobre o delinqüente, etc.
ponsabilidade por uma conseqüência prevista (premeditação)
Deste ponto de vista pode-se chegar finalmente à conclusão
e responsabilidade por uma conseqüência imprevista, mas pos-
de que a relação esteja invertida: que exatamente em um caso
sível (ato por imprudência). Por fim, constitui o conceito de
de responsabilidade atenuada as medidas mais intensivas e
não-imputabilidade, ou seja, de abstenção completa de respon-
mais .longas sejam as necessárias.
sabilidade. A introdução do elemento psicológico no conceito
de responsabilidade significa a racionalização da luta contra a A idéia de responsabilidade é indispensável se a pena
criminalidade. E somente sobre a base da distinção entre se apresenta como um ·meio de reparação. O delinqüente
ações imputáveis e as não-imputáveis que se pode construir responde com sua liberdade por um delito cometido e com
uma teoria das medidas preventivas particulares e gerais. Na um quantum proporcional. à gravidade de seu ato. Esta noção
medida em que a relação entre o delinqüente e a autoridade de responsabilidade é supérflua quando a pena não tem cará-
penal é constituída como uma relação jurídica e se desenvolve ter equivalente. Mas se, efetivamente, não mais existe ne-
sob a forma de processo judicial, este novo momento não ex- nhum traço de equivalência, a pena, em geral, deixa de ser
clui, em hipótese nenhuma, o princípio de reparação equiva- pena no sentido jurídico do termo.
lente, mas, pelo contrário, cria uma nova base para sua apli- O conceito jurídico de culpabilidade não é um conceito
científico, pois remete-se diretamente às contradições do inde-
terminismo. Do ponto de vista do encadeamento de causas
17. Desde que um animal de uma tropa de burros, bois ou cavalos que determinam um acontecimento qualquer, não há a me·
derrube uma pedra da montanha, lemos nos costumes escritos dos
Ossetas, e que esta pedra fira ou mate um indivíduo, os parentes do fe- nor razão em privilegiar o nexo causal em detrimento de ou-
rido ou do morto perseguem, com sua vingança sangrenta, o proprie- tros. As ações de um homem psiquicamente anormal (irres-
tário do animal, dà mesma maneira que o fariam se a morte tivesse sido ponsável) são tão determinádas por uma série de causas (here·
intencional, ou então exigem-lhe o preço de sangue (cf. Kovalevskij, ditariedade, condições de vida, meio, etc.) quanto as ações de
Sovremennys obycaj i drevnij zakon, p. 105).
158 E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 159

um homem normal (inteiramente responsável) . :1.! interessante tada e tida como natural precisamente no século XIX, ou seja,
observar que a pena aplicada sob a forma de medida peda- em uma época na qual a burguesia pôde desenvolver e apri-
gógica (ou seja, sem referência à noção de equivalência) não morar todas as suas características. As prisões e celas exis-
está ligada a considerações sobre· a imputabilidade, liberdade tiam na Antiguidade e na Idade Média ao lado de outros meios
de escolha,. etc. , e que ela sequer as necessita. A racionali- de exercício da violência física. Mas os indivíduos geralmente
dade da pena (aqui falamos, evidentemente. ,da racionalidade ficavam detidos até a morte ou até que pudessem pagar os
em sentido mais geral, independentemente da forma, da cle- danos causados .
mênc!a ou da severidade da pena) é determinada, na pedago· Para que a idéia de possibilidade de reparar o delito com
gia, exclusivamente pela capacidade de um indivíduo captar \
セ@ a privação de um quantum de liberdade pudesse nascer, foi
suficientemente o vínculo existente entre suas próprias ações
e lembrar-lhe as conseqüências desagradáveis por elas causa- f necessário que todas as formas concretas de riqueza social
estivessem reduzidas à forma mais abstrata e mais simples - o
das. As pessoas que a lei penal considera como irresponsáveis, trabalho humano medido em tempo. Indubitavelmente, esta-
ou seja, os menores, os psicologicamente anormais, etc., sob mos diante de um exemplo de interação entre os diversos
este ângulo são igualmente imputáveis, isto é, influenciáveis aspectos da cultura. O capitalismo industrial, a Declaração
em um determinado sentido.18 dos Direitos do Homem, a economia política de Ricardo e o
A pena proporcional à culpa representa fundamen- sistema de detenção temporária são fenômenos que pertencem
talmente o mesmo que a reparação proporcional ao dano. a uma mesma época histórica.
Esta expressão aritmética que caracteriza o rigor da sentença: Se o caráter de equivalência da pena, . sob sua forma
tantos dias, meses, etc. de privação da liberdade; multa de grosseira, brutal, materialmente sensível de coação física, con-
tal ou qual valor; perda de certos direitos. A privação da li- serva, precisamente devido a esta brutalidade, sua significàção
berdade, ditada pela sentença do tribunal, por um certo pe- elementar, acessível a todos, em contrapartida, sob a forma
ríodo de tempo é a forma .específica pela qual o direito abstrata de privação de líberdade por um certo tempo, desa-
penal moderno, burguês-capitalista, realiza o princípio da re- parece a evidência de seu significado, ainda que tenhamos o
paração equivalente. Esta forma está inconscientemente, em- costume de caracterizar a pena como proporcional à gravidade
bora profundamente, ligada à representação do homem abstra· do ato. Eis porque tantos teóricos do direito penal, parti-
to e do trabalho humano abstrato avaliados em tempo. Não cularmente os que se pretendem progressistas, esforçam-se por
foi por acaso que esta modalidade de apenamento foi implan- suprimir totalmente o momento de equivalência como uma
manifestação absurda e concentram a sua atenção sobre as
finalidades racionais da pena . O erro dos criminalistas pro-
18. O célebre psiquiatra Kraepelin afirma "que um trabalho peda- gressistas é de acreditar que estão em presença - ao criticar as
gógico com os alienados, tal qual ele realizou com grande sucesso, seria
naturalmente impensável se todos alienados, que não foram tocüdos pela teorias absolutistas do direito penal - de concepções falsas,
lei penal, estivessem efetivamente privados de sua liberdade de autode- de equívocos de pensamento que podem ser refutados pela
terminação, no sentido adotado pelo legislador" (E. Kraepelin, Die Abs-
jセ@
simples crítica teórica. Em realidade, esta forma absurda de
chaffung des Strajmasses, 1880, p. 13). Evidentemente, o autor faz uma equivalência não é uma conseqüência do equívoco de alguns
ressalva no sentido de que ele não pretende propor a responsabilização criminalistas, mas uma conseqüência das relações materiais de
penal dos alienados. Entretanto, estas considerações mostram com bas-
tante clareza que o direito penal não utiliza o conceito ·de culpabilidade produção mercantil nas quais se nutre. A contradição entre
como condição de .culpabilidade no sentido que a definem a psicologia os fins racionais da proteção à sociedade ou da reeducação
científica e a pedagogia. dos delinqüentes e o princípio da reparação equivalente não
160 E. B. PASUKANIS
A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 161
existe apenas nos livros e nas teorias, mas na própria vida,
Aschaffenburg em seu livro Das verbrechen und seine Be-
na prática judiciária, na própria estrutura da sociedade. Por
kampfung? tセュ・ッウ@ alguns exemplos dentre tantos outros:
igual, a contradição entre as relações recíprocas que os homens,
um delinqüente reincidente que fora ccndenado 22 vezes por
enquanto tais, mantêm no trabalho e a absurda forma de
estelionato, roubo, chantagem, etc. foi condenado pela 23."
expressão destas relações, o valor mercantil, não reside nos
vez a 24 dias de prisão por desacato a autoridade. Um outro,
livros e nas teorias, mas na própria prática social. Para de-
que passou 13 anos em penitenciárias e prisões, 16 vezes con-
monstrá-lo, será necessário fixarmo-nos em alguns momentos.
denado por roubo e chantagem, foi condenado pela 17 .• vez
Se na v:ida social a pena fosse efetivamente consideracta uni-
a quatro meses de prisão por chantagem. Nestes casos não
camente do ponto de vista de seu fim a execução da pena
se pode falar em função de defesa ou de reeducação. セ@ o prin-
e seus resultados deveriam gerar grande interesse. Contudo,
cípio formal da equivalência que, no particular, triunfa: à
ninguém poderá contestar o fato de que o centro de gravidáde
crueldade igual, pena iguàl.20 Aliás, o que mais o tribunal po-
do processo penal se situa, na imensa maioria dos casos, no
deria fazer? Ele não pode esperar recuperar ein 3 semanas
interior da sala de audiências e no exato momento no qual a
um reincidente contumaz, mas, por outro lado, não pode en-
sentença é proferida. O interesse demonstrado pelo método
carcerar por toda a vida o indivíduo em questão por um sim-
de ação terapêutica sobre os delinqüentes é insignificante se
ples desacato a autoridade. Não lhe resta nada, a não ser
comparado com o interesse suscitado pelo impressionante ins-
pagar, o delinqüente, com a mesma moeda (algumas sema-
tante de prolação da sentença e determinação da "medida pe-
nas de privação da liberdade). Aliás, a justiça burguesa zela
nal". As questões da reforma penitenciária só interessam a
cuidadosamente para. que o contrato com o delinqüente seja
um pequeno grupo de especialistas. Ao contrário, a questão
concluído dentro de todas as regras da arte, de forma ·que
que, para o público, se o encontra no centro de suas atenções
cada um possa convencer-se de que o pagamento é igualmente
é a de saber se a sentença corresponde ou não à gravidade
determinado (publicidade do processo judicial), e de que o
do delito. Para a opinião pública, desde que o tribunal tenha
delinqüente pode negociar livremente sua liberdade (processo
determinado corretamente o equivalente, tudo está regulamen-
contraditório), e que pode utilizar-se de um profissional tecni-
tado, e o destino ulterior do delinqüente não interessa a quase
camente preparado (admissão de advogados de defesa), bem
ninguém. "A execução da· sentença, diz Krohne, um dos espe•
como que · cada um possa controlar a aplicação da lei. · Em
cialistas mais conhecidos do mundo, é o ponto mais delicado
uma palavra, as relações entre o Estado e o delinqüente situam-
do direito penal';, quer dizer, é relativamente negligenciado.
se nos quadros de um negócio comercial lea1mente estabele-
"Se tiverdes, prossegue, as melhores leis, os melhores juízes,
cido. セ@ nisto que constituem as garantias do processo penal.
as melhores sentenças, mas se os funcionários encarregados
da execução penal forem incapazes, podeis jogar as leis no O delinqüente deve saber por antecipação do que 'está
lixo e queimar as sentenças".l9 / sendo acusado e em.que implica esta acusação: nullum crimen,
. Mas a predominância do princípio da reparação equi- nulla poena sine lege. O que isto significa? セ@ necessário que
valente não se manifesta apenas nesta parcela da opinião pú- cada delinqüente saiba exatamente quais os métodos de corre-
blica. Ela se manifesta também na própria' prática judiciária. ção que lhe são aplicados? Não, a coisa é muito simples e mui-
A que fundamentos se referem de fato as sentenças citadas por to mais brutal. Ele deve saber que quantum de libevdade
....

19. Citado por G. Aschaffenburg, Das Verbrechen und seine Be· 20. Este absurdo não é nada mais do que o triunfo da idéia jurí-
kiimpfung, Heidelberg, 1906, p. 216. dica, pois o direito é precisamente a aplicação de uma medida igual, e
nada mais do que isto.
E. B. PASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 163
162

deverá pagar em conseqüência do contrato concluído com o a imprimir a sua marca na sociedade, a idéia absurda, do
tribunal. Ele deve conhecer, por antecipação, as condições em ponto de vista não jurídico, de que a gravidade de cada delito
que quitará seus débitos. Este é o sentido dos códigos penais pode ser pesada e expressa em meses ou em anos de encarce-
e dos prccedimentos penais. ramento conservarão sua força e significação reais na prática
judiciária .
Não se deve imaginar que inicialmente no direito penal I
reinasse a falsa teoria da reparação e que esta foi suplantada I Naturalmente pode-se evitar a proclamação desta idéia
pelo justo ponto de vista da defesa social. Não se deve acre- sob forma tão brutal e chocante, contudo tal não significa
ditar que o desenvolvimento ocorreu apenas no plano das idéias. que escapemos definitivamente de sua influência na prática.
Em realidade, a política penal, tanto antes quanto depois do A modificação tecnológica nada muda na essência das coisas .
aparecimento da tendência sociológica e antropológica na cri- O Comissariado do Povo para a Justiça de URSS* publicou,
minalidade, tinha um conteúdo de defesa social (ou, mais exa- em 1919, os princípios diretores de direito penal nos quais
tamente, de defesa da classe dominante). Mas ao lado disto repousa o princípio da culpabilidade como fundamento da
continha, e contém, elementos que não provinham desta fina- pena e onde a própria pena é caracterizada não como repara-
lidade técnica e que assim não permitiam ao processo penal ção-de um erro, mas, exclusivamente, como medidas de defesa.
exprimir-se inteiramente sob a forma racional e não injustifi" O código penal da URSS, de 1922,. também adota o conceito
cada de regras técnicas sociais . Estes elementos cujas origem de culpabilidade. Por fim, "os ·princípios fundamentais de le-
não deve ser procurada na política penal enquanto tal, mas gislação penal da União Soviética" excluem totalmente a deno·
mais profundamente, dão às abstrações jurídicas do delito e minação de "pena" e a substituíram pela seguinte designação:
da pena sua realidade concreta e conferem-lhe uma significa- "medidas judiciário-corretivas de defesa social".
ção prática no âmbito da sociedade burguesa, apesar de todos Tal modificação de terminologia certamente possui valor
os esforços em contrário realizados pela crítica teórica. demonstrativo. ·Todavia a questão não será resolvida, de ma-
neira satisfatória, por meras demonstrações. A transformação
Um representante notório da escola sociológica, van Ham-
da pena de reparação em medida adequada de· defesa social e
mel. declarou no congresso de criminalística de Hamburgo,
de reeducação de indivíduos socialmente perigosos exige a so·
em 1905, que os principais obstáculos que se apresentavam lução de uma enorme tarefa de organização que permanece
à criminologia· moderna eram os tais conceitos de culpabili-
não apenas fora do domínio da atividade puramente judiciária,
dade, de delito e de pena. Tão logo nos desvencilhemos destes mas que, em caso de sucesso, torna totalmente inúteis o pro-
conceitcs, acrescenta, tudo irá melhorar. Podemos retrucar
cesso e a sentença· judicial. Com efeito, desde que tal tarefa
estas considerações, dizendo que as formas de consciência bur- \I esteja resolvida,. a ação de reeducação não será uma· simples
guesa não se deixarão suprimir unicamente por uma crítica rI, "conseqüência jurídica" da sentença que pune um "delito"
ideológica, pois constituem um todo com as relações materiais ) qualquer, mas transformar-se-á em função social autônoma, de
que exprimem. O único caminho para dissipar estas aparên-
natureza terapêutica ou pedagógica. Nosso desenvolvimento
cias tornadas realidade é o da abolição prática destas rela· '!! vai, e irá sem nenhuma dúvida, nesta direção. Provisoria-
ções, a luta revolucionária do proletariado e a realização do
ménte, contudo, enquanto for necessário _acentuar o termo "ju-
socialismo .
Não basta, apresentar a culpabilidade como um precon· :I
ceito, para que possamos .introduzir na prática uma política I
I
* Utilizou-se a sigla URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas)
. penal que a torne efetivamente supérfh1a. Enquanto a forma por ser mais atual. ·Em realidade, trata-se da República Socialista
mercantil e a forma jurídica que dela decorre continuarem Soviética Federal !la Rússia (RSSFR) (N. do T.).
164 E. B. P ASUKANIS A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 165

diciário" quando falamos das medidas de defesa sccial, en- sintomas que caracterizam o estado socialmente perigoso e uma
quanto persistirem as formas materiais do processo judicial elaboração precisa dos métodos a serem aplicados em cada
e do código penal, a modificação da エ・イュゥョッャァ¢セ@ em grande caso particular para proteger a sociedade. O ponto crucial
medida, será uma reforma puramente formal. Obviamente, tal não está, como pensam alguns, no fato de que a medida de
fato não poderia escapar das atenções dos juristas que anali- defes·a social está vinculada, em sua aplicação, a momentos
saram o nosso código penal. Cito apenas algumas opiniões. subjetivos (forma e grau de perigo social), ainda que a pena
N. Poljanskij observa na parte especial do código penal "a repouse sobre um ponto objetivo, um delito concreto definido
negação do conceito de culpabilidade .é puramente exterior" na parte especial do código penal 24 • O ponto crucial reside
e que "a questão da culpabilidade e de seus graus é sublinha- no caráter deste vínculo. Com efeito, é difícil separar a pena
da na prática cotidiana dos エイゥ「オョ。ウBセMN@ de sua base objetiva, porque não podemos rejeitar a forma
M. Isaev22 diz que o conceito de culpabilidade "não é de equivalência sem negar a característica fundamental da
ignorado pelo código penal de 1922, e uma vez que ele dis- pena. Logo, é apenas o corpo de delito concreto que possui
tingue a premeditação da imprudência, opondo as duas hipJ. certa margem de uma grandeza mensurável e, por conseguinte,
teses, distingue igualmente a pena da medida de defesa sociàl de um certo tipo de equivalência. Pode-se con·strapger um
no sentido estrito" 23 • indivíduo a expiar uma certa ação, mas .é absurdo forçá-lo a
Em sendo assim, tanto o código penal em si, quanto o expiá-Ia porque a sociedade o considera (a ·pessoa em tela)
procedimento judiciário para o qual foi criado, são penetrados perigoso. Eis por que a pena supõe um corpo de delito* fixado
em todo o seu interior pelo princípio jurídico da reparação com precisão, ainda que a medida de defesa social não neces-
equivalente. O que é a parte geral de qualquer código penal site tal· suposição. A expiação forçada é uma coação jurídica
(inclusive do nosso), com seus conceitos de cumplicidJ!de, de que se exerce sobre o sujeito no interior da formalidade pro-
co-responsabilidade, de tentativa, de preparação, etc., senão cessual da sentença e de sua execução. A coação, enquanto
que um método de avaliação mais precisa da culpabilidade? medida de defesa social, é um ato de pura oportunidade em
O que significaria o conceito de inimputabilidade, se não exis- conformidade com um objetivo, e, como tal, pode ser deter-
tisse o conceito de culpabilidade? E finalmente para que ser· minado por regras técnicas. Tais regras podem possuir maior
viria a .parte especial do código penal, se se tratasse apenas ou menor complexidade, se o objetivo for a eliminação mecâ-
de medidas sociais (de classe) de defesa? nica do ゥョ、カセオッ@ perigoso ou a sua recuperação. Em cada
Uma aplicação conseqüerite do princípio de defesa da caso os fins fixados pela sociedade encontram nestas regras
sociedade não exigiria a determinação de corpos de delito dis- d
uma expressão simples e clara. Nas normas jurídicas, ao con-
tintos (aos quais se ligam logicamente as medidas penais fixa- trário, que ・セエ。「ャ」ュ@ penas determinadas para delitos deter-
das pela lei ou pelo tribunal), mas uma descrição precisa dos minados, a finalidade social encontra-se mascarada. O indiví-
duo que está sendo submetido a uma ação de reeducação é
posto na situação de um devedor que deve reembolsar suas
21. N. N. Poljanskij, "O código penal da URSS e o código penal dívidas. Não é por acaso que o termo "execução" é usado
alemão", in: Pravo i Zizn, 1922, 3.
22. M. M. Isaev, "O código penal de L""de junho de 1922", in:
tanto para o cumprimento coativo das obrigações jurídicas
Sovestkoe pravo, 1922, 2. privadas, como para as penas disciplinares. Exatamente a mes-
23. Cf., "também, Trachterov, "a fórmula da irresponsabilidade no
código penal da República Socialista Soviética da Ucrânia", in: Vestnik 24. Cf. Piontkovskij, "A medida de defesa social e o código penal",
Sovetskoj justicii, órgão do Comissariado do Povo para Justiça da Repú- in: Sovetskoe pravo, n.o 3 (6), 1923.
blica da Ucrânia, n.o 5, 1923. · * Antiga denominação de crime. (N. do T.).
166 E. B. PASUKANIS

ma coisa é expressa pelo termo "purgar suas penas". O de-


linqüente que purgou sua pena retoma ao ponto de partida,
ou seja, à existência indiv1dualista dentre a sociedade, à "liber- rNDICE ONOMÁSTICO
dade" de contratar obrigações e de cometer delitos.
O direito penal, assim como o direito em geral, é uma
forma de relação entre sujeitos egoístas isolados, portadores
de interesses privados autônomos ou proprietários ideais. Os
mais persPicazes criminalistas burgueses perceberam muito
bem este liame entre o direito penal e a forma jurídica em
geral, a saber, as condições fundamentais sem as quais uma
ADORACKIJ, V. V. 52, 120 '(nota)
sociedade de produtores mercantis é impensável. :É por isso
que os representantes extremados da escola sociológica e an- ALEKESEEV, I. 72 (nota)
tropológica, que convidam a pôr ad acta os conceitos de delito ARISTóTELES 146
e de culpabilidade e terminar em geral com a elaboração jurí- ASCHAFFENBURG, G. 160 (nota)
dica do direito penal, respondem, muito razoavelmente, assim:
neste caso, o que ocorre com o princípio da liberdade civil, BECCARIA, C. B. 36, 152
das garantias da legalidade do processo, do princípio "nullum BENTHAN, J. 144
crimen sine lege", etc.? BERBOHM, K. 35, 36 (nota)
Esta é precisamente a posição de Cubinskij, em sua polê- BIERLING, E. R. 68 (nota), 69 (nota)
mica contra Ferri, Dorado e outros 25 • Aqui vai uma passagem BINDER, J. 140
característica: ''Mesmo apreciando sua (a de Dorado) bela cren- BOUKHARINE, N. 20 (nota)
ça na onipotência da ciência, ainda assim preferimos perma- BRINZ 89 (nota)
necer em terreno sólido, contar com a experiência histórica e
」セュ@ fatos reais; nesta hipótese devemos reconhecer que não
é um arbítrio 'ilustrado e racional' (e quem garante que este CARLOS MAGNO 148
arbítrio será assim?) desejável, mas uma ordem jurídica sólida CLOVIS 150
cuja manutenção exige que seja realizado o seu estudo jurí- COHEN. H. 12
dico". J• セ@ CUBINSKIJ, M. 166
Os conceitos de delito e pena são, como ressai do que foi
dito precedentemente, determinações necessárias da forma ju-
DERNBURG, H. 89, 95 (nota)
rídica, da qual não poderemos nos desembaraçar até que come-
DORADO 166
ce o desaparecimento da superestrutura jurídica em geral. E
DUGUIT, L. 67, 68, 69 (nota), 70 (nota)
tão logo comece realmente a desaparecer - e não apenas nas
declarações - , estes conceitos tornar-se-ão inúteis, então esta
será a melhor prova de que o horizonte limitado do direito ENGELS, F. 22 (nota), 43, 46 (nota), 97 (nota), 114, 132
burguês enfim se alarga à nossa frente. ERIK, rei 150 (nota)
25. Cf. M. Cubinskij, Kurs ugolovnogo prava (Curso de direito
penal), 1909, p. 20..33.
168 E. B. PASUKANIS íNDICE ONOMÁSTICO 169

FERNECK, A. H. V. 56 (nota) KOVALEVSKIJ, mセ@ 145 (nota), 156 (nota)


FEUERBACH, L. A. 116 · KRAEPELIN, E. 158 (nota)
FERRI, E. 147 (nota), 166 KROHNE 160
FICHTE, J. G. 87 (nota)
FRANKLIN, B. 88 (nota)
FOJNICKIJ, I. J. 152 (nota) LABAND 76 (nota), 120 (nota)
LASSALE.. F. 29
GIERKE, O. 91 (nota), 92 (nota), 101 (nota), 112 (nota) LENIN (VLADIMIR ILICH ULIANOV) 28
GROTIUS (HUGO VAN GROOT) 119, 146 LIST, F. V. 154 (nota)
GOJCHBARG, A. G. 69 (nota), 70 (nota), 76, 77
MARX, K. 3. 6, 7, 10, 21, 23, 24, 26, 27, 28, 29, 32
HAMMEL, V. 162 (nota), 34, 37, 38, 42, 47, 52· (nota), 61, 62, 67 (nota)
HÀURIOU, M. 96, 97, 109, 112 (nota) 73,.. 81, 82, 83, 84, 86 (riota), 92, 94, 96, 102, 106, 109,
HARRIMAN, E. A. 104 (nota)· 116, 117, 118 (nota), 127, 128 (nota), 129, 13.5, 137
HEGEL, G. W. F. 61, 83, 100 . MAGAZINER, J. M. . 132
HEYSE, H. 99 MAINE, S. 133, 143, 148
HEIZEN, K. 62 MERKEL, A. 71 (nota)
HOWARD 152 MUROMCEV, M. A. 72 (nota)

IHERING, R. 73 (nota), 78, 144 (nota), 148, 149 (nota). NAPOLEÃO 88 (nota)
IL'INSKIJ, T. 78, 79
ISAEV, M. M. 164
PETRAZICKIJ, L. 44, 55, 68, 71, 141
PIONTKOVSKIJ 165 (nota)
JABLOCKOV, T. 50 (nota) POLJANSKIJ, N. N. 164
JELINEK, G. 75 (nota), 120 (nota), 121 (nota) q!·:;- PROKROVSKIJ, M. N. 19 (nota), 117
PROUDHON, P. J. 97 (nota), 137
PUCHTA, G. F. 83 (nota), 113 (nota)
KANT, I. 129, 130, 131, 133
KELSEN, H. 15, 16, 37, 44, 55, 56, 123, 139
KARNER, J. (pseudônimo de KARL RENNER) 13, 20 RAZUMOVSKIJ, I. P. 78, 79, 80, 81, 82, 115
98 (nota) ᄋセ@

KAUTSKY, K. 153 REJSNER, M. 41, 43, 44, 45, 46 (nota}, 53


KAVELIN, K D. 66 (nota) RENNER, K. ver KARNER
KORKUNOV, N. M. 71 (nota) RICARDO, D. 159
KOTLTAREVSKIJ, S. A. 76 (nota), 110 (nota), 124 (nota), RÓUSSEAU, J. J. 88 (nota)
125 (nota) ROZHDESTVENSKIJ 83 (nota)
170 E. B. PASUKANIS

SAVAL'SKIJ 12
SCHLOSSMAN 95 (nota) BREVE NOTrCIA BIOGRÁFICA DE
SCHMIDT, C. 46 (nota)
SCHOPENHAUER, A. 132
ALGUNS AUTORES CITADOS
SSNECA (LUCIUS ANNAEUS) 129
SERSENEVIC . 56 (nota)
SHILOCK (de Shapespeare, A Morte em Veneza) 28
SIMMEL, G. 14
SPENCER, H. 87 (nota), 151 {nota) r
STAMMLER, R. 12, 15, 37
STEIN, L. 122 ARISTóTELES (384 - 322 a.C.) - Filósofo grego. Contra-
STEPANOV-SKVORCOV, I. I. 21 (nota) punha-se a Platão pois possuía uma concepção tendente
STINZING, S. 58 (nota) . ao materialismo.
STUCKA, P. I. 8, 9, 17 (nota), 41, 46 (nota), 52, 53
BECCARIA, CESARE BONESANA (1738-1794) - Jurista
SOLOV'EV, V. 131, 132
italiano, panalista. Humanista.
BENTHAN, JEREMY HQWTXセSRI@ -Filósofo e jurista inglês.
TRUBECKOJ, E. 141 Teórico da liberalismo e do utilitarismo.
TUGAN-BARANOVSKIJ 127
BUKARINE, NICOLAI (1888-1938) ;_ Economista e Político
russo, bolchevique, companheiro de Lenin, assassinado
VOLTAIRE (FRANÇOIS MARIE AROUET) nos. "processos de Moscou" por ordem 4e Stálin . Recen-
36
temente foi reabilitado pelo .governo soviético, tendo sido
consideradas falsas todas as acusações que lhe foram impu-
tadas por Stálin.
WILDA 150 (nota)
WINDSCHEID: B. 95 (nota) COHEN, HERMANN (1842-1918) - Filósofo alemão. Neo-
kantiano.
HNサセGス@
DUGUIT, LEON (1859-1928) - Jurista francês. Constitu·
ZIBER, N. I. 20 (nota) 」ゥッョ。ャウエセZN@ e administrativ:ista .
ENGELS, FRIEDERICH (1820-1895) - Filósofo alemão,
companheiro de Marx. Político da classe operária; diri-
gente da Primeira Internacional. Escrevetl \ várias obras
Gセᄋ@ em parceria com Marx.
FEURBACH, LUDWIG ANDREAS (1804-1872) '- Filósofo
materialista alemão, um dos precursores do. materialismo
de Marx.
172 E. B. PASUKANIS BREVE NOTICIA BIOGRÁFICA ... 173

GROTIUS -(HUGO VAN GROOT) (1583-1645) - Filósofo RENNER, KARL (1870-1950) - Jurista austríaco. Ex-Presi-
holandês, adepto da teoria do Direito Natural de base dente da Áustria._
racionalista .
RICARDO, DAVID (1772-1823) - Economista clássico in·
GUMPLOWICZ, LUDWICK (1808-1909) - Jurista polonês. glês. Teórico do valor trabalho. Um dos precursores da
HAURIOU, MAURICE (1856-1929) - Jurista francês, fun· economia marxista.
dador do institucionalismo. SCHOPENHAUER, ARTHUR (1778-1860) - Filósofo idea-
HEGEL, GEORG WILHELM FRIEDERICH (1770-1831) - lista alemão. Adepto do irracionalismo e do volunta-
.Filósofo alemão. Principal pensador ·burguês e idealista. rismo .
Organizador da moderna dialética idealista. Precursor da S:E:NECA, LUCIUS ANNAEUS (c. 4-65) - Filósofo estóico.
filosofia marxista . SHYLOCK - Personagem shakespeariano (0 Mercador de
HEfZEN, KARL (1809-1880) - Escritor alemão. Pólítico de Veneza) . Serviu de base para Rudolf Ihering desenvolver
tendência liberal e individualista . as idéias centrais de sua famosa conferência A Luta pelo
IHERING, RUDOLF VON (1812-1892) - Jurista alemão. Direito. ·
Romanista. SIMMEL, GEORG (1858-1918) - Filósofo alemão. Neokan-
JELLINECK, GEORG (1851-1911) -::::::- Jurista alemão. pオ「ャゥセ@ tiano.
cista. SOLOVEV, VLADIMIR SERGUEIEVICH (1853-1900)- Fi-
KANT; IMANNUEL (1724-1804) - Fundador da filosofia lósofo russo .
clássica alemã. Precursor do Positivismo. SPENCER, HERBERT (1820-1903) セ@ Filósofo inglês. Posi-
KAUTSKY, KARL (1854-1938) - Economista, político e es· tivista.
critor alemão. Dirigente do Partido Social Democrata STAMMLER, RUDOLF (1856-1938) - Filósofo e jurista ale·
Alemão. mão. Neokimtiano.
KELSEN, HANS (1881-1973) ,....- Jurista e filósofo austríaco. STUCKA, PIOTR (1887-1932) - Jurista soviético, Presidente
Norma tivista. do Supremo Tribunal da URSS, Comissário do Povo para
LA&SALE, FERDINAND (1824-1864) - Escritor e político a Justiça. Escritor.
alemão. Fundador do Partido Social Democrata Alemão, TRUBECKOSJ, NICOLAI SERGUEIEVICH (1890-1938) -
LENIN (VLADIMIR ILICH ULIANOV) (1870-1924) - Fi- Lingüista membro do Círculo Lingüista de Praga.
lósofo, jurista, economista e político russo. Fundador da VOLTAIRE (FRANÇOIS MARIE AROUET) (1694-1778) -
URSS. Filósofo e escritor francês da Ilustração, precursor da
MARX, KARL (1818-1883) - Filósofo. Político e economista Rev. Francesa.
alemão. Fundador do- marxismo.
PROUDHOM, PIERRE JOSEPH (1809-1865) - Filósofo e
sociólogo francês. Militante poliíico anarquista.
PUCHTA, GEORG FRIEDERICH (1798-1846) -Jurista ale-
mão, teórico da Escola Histórica. ·
TERMOS LATINOS CITADOS

A PRIOR! -'- Em primeira lugar, em princípio.


AD HOC - Para o fim específico.
CORPUS DELICTI - Corpo de delito; antiga denominação
para crime.
DE IURE セ@ De direito.
IN PARTES SECARE - Com parte do corpo.
IUS CIVILE - Direito aplicável 。ッセ@ cidadãos romanos.
IUS FORI - Direito do foro ..
IUS GENTIUM -.Direito das gentes, aplicável aos estran·
geiros. Precursor. do moderno direito internacional.
HlS MERCATORUM - Direito dos mercadores.
IUS TALIONIS - Direitc;> de Talião.
MANCIPATIO PER AES ET UBRAM- Título de proprie·
、セ・@ Romana. ·
NULLUM CRIMENN, NULLA POENA SINE LEGE- Ne-
nhum crime e nenhuma pena sem lei.
PACTUM - Pacto.
PAX- Paz.
PER GENUS ET PER DIFFERENTIAM SPECIFICAM -
Por gêneros e espécies diferentes .
SI IN JUS VOCAT, NI IT, ANTESTAMINO IGITUR IN
CAPITO - .. Se alguém chamar outrem a juízo, vá; se
·'·
não vai, tome tes,temunhas: elll; _seguida a detenha.
.SUl IURIS - Direito Romaria, pessoa não sujeita ao poder
de outrem. ·

Você também pode gostar