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SALVADOR DOMINGO 29/10/2023 7

OLHARES
n LUIZ FREIRE n LU IZFREIRE1962@GMAIL .COM DOUTOR EM HISTÓRIA DA ARTE, PROFESSOR DA ESCOLA DE BELAS ARTES (UFBA) E MUSEÓLOGO

Contemporaneidade,
arte e museu Considerações sobre instituições, acervos
e gestão a partir da implantação do
Museu de Arte Contemporânea da Bahia

H
Leuiz Freire / Divulgação
á mais dissenso que con- nheiro, muita burocracia para o seu
senso na definição da ar- gasto, que não chegava ao pro-
te contemporânea. Uns vimento das necessidades bási-
consideram-na como cas.
um novo momento, su- A tentativa de implantação de
cessor da modernidade, caracteri- um Sistema de Museus para o Es-
zada pela militância contra a tra- tado da Bahia, liderada pela mu-
dição clássica e do verismo aca- seóloga Maria Célia Santos, foi in-
dêmico que vigorou 500 anos na terrompida e frustrada, afinal, a
cultura europeia e na área de sua atual política foi preparada com
influência. muita antecedência. A pouca au-
As vanguardas libertaram a cria- tonomia que os museus possuíam
ção artística para a experimentação foi perdida com o deslocamento da
sem limites, para a expressão dos alçada da Funceb para a do de-
sentimentos, utilizando-se, a prin- ficitário Ipac (Instituto do Patrimô-
cípio, dos meios tradicionais, as- nio Artístico e Cultural), mais bu-
sumindo a capacidade de formu- rocrático e centralizador. Até o CNPJ
lações e reformulações de proble- que o Museu de Arte da Bahia pos-
mas da própria arte, resultando na suía foi perdido.
negação da arte e do artista. A política para a arte e os museus
A modernidade criou as condi- é hoje definida por um só curador,
ções para o desenvolvimento da e mais um ou dois gestores. Caso
arte contemporânea, que, por sua extremamente excepcional e ja-
vez, se apresenta em múltiplas for- mais visto em outra parte do Brasil.
mas e meios, sobretudo pelas mí- Certamente, a Bahia será labora-
dias eletrônicas, enfrentando os tório nacional e é conveniente que
problemas do nosso tempo, muitos os outros estados do Brasil tomem
deles comuns a todo o mundo, co- conhecimento dessa política.
mo a destruição/preservação da Os acervos recolhidos em depó-
natureza, o racismo/antirracismo, sitos sem controle ambiental ficam
injustiça/justiça social, igualdade longe dos olhos do público, lhes
de direitos, de gênero, a imigração faltam controle de equipes técnicas
forçada, o direito à vida de ho- contratadas por concurso, despro-
mossexuais e demais minorias vidos de conservação diuturna: lim-
oprimidas, e uma infinidade de ex- peza, descupinização, hidratação,
pressões das individualidades dos etc. Descobertos de inventários ele-
criadores, com acento no fazer co- trônicos, inacessíveis ao público e
letivo, no processo de criação, no pesquisadores. Condições ideais
conceitualismo e na desmateriali- para a degradação, perda e roubo
zação. desses acervos.
Toda a arte de hoje não cabe em Nessas gestões petistas, museus
museus, mas é importante que ha- e acervos inteiros têm desapare-
ja museus que exponham, preser- cido por completo, a exemplo do
vem, comuniquem, discutam e pro- Museu do Cacau, administrado pe-
blematizem as proposições, a des- la Secretaria Estadual de Agricul-
peito do MAC Bahia, como pro- tura (Seagri), há muito tempo fe-
posta substituta ao Palacete das chado, sem equipe e que não se
Artes, sucessor do Museu Rodin. sabe o paradeiro de suas peças.
Toda a estrutura que serve hoje Está na hora de o Governo do Es-
ao MAC foi projetada para a exi- tado dar a conhecer à sociedade o
bição das peças que vieram em que fez do acervo desse museu, há
comodato da sede do Museu Rodin muito tempo fechado.
de Paris a um custo exorbitante, Não há compromisso com a pre-
pouco dispendido com os museus servação dos acervos, as peças são
existentes na Bahia. transportadas sem equipamentos
Na edificação ao fundo do Pa- A primeira exposição temporária do MAC Bahia é Agô, do artista visual e pesquisador Ayrson Heráclito e acessórios e as curadorias ne-
lacete “art nouveau" foi edificada gligenciam e comprometem a in-
uma espacialidade apropriada e tegridade dos acervos. Os ex-votos
destinada a exibições de arte con- do acervo do Museu de Arte Po-
temporânea. A modernidade criou as condições para o desenvolvimento pular expostos no MAM foram fu-
A infraestrutura para a fundação rados por parafusos e pendurados
de um museu de arte contempo- da arte contemporânea, que, por sua vez, se apresenta em fios de nylon, simulando a dis-
rânea na Bahia estava posta, e teria
se viabilizado na época
em múltiplas formas e meios, sobretudo pelas mídias posição de uma sala de milagres; as
imagens de santos da mesma co-
(2006-2007) se o pensamento fos- eletrônicas, enfrentando os problemas do nosso tempo, leção se equilibram em pregos e
se outro, ou se tivessem ouvido os estão fixas à parede por arames,
envolvidos com a área, prática nun- muitos deles comuns a todo o mundo completamente expostas a aciden-
ca vista na Bahia. tes como infiltrações nas paredes,
O terreno original do palacete quedas, entre outros.
era suficiente para uma maior sala cultura, vide os orçamentos da pas- hia, cujas maiores creditações re- Povoava a cabeça desses gestores A preocupação primeira da cu-
expositiva destinada àarte contem- ta nos últimos 19 anos. sidem no fato de pertencerem aos a ideia de museus economicamen- radoria é com a preservação dos
porânea e para a construção de O MAC surge a partir de um de- quadros da militância partidária. te sustentáveis, coisa que os mu- objetos que serão expostos, vide
“reserva”, verdadeiramente técni- senho que se define rápido na go- Os demais cargos de diretoria dos seólogos há muito sabíamos dessa Vera Beatriz Siqueira, Curadoria co-
ca. Entretanto, o interesse era ven- vernança de Jerônimo Rodrigues, museus baianos foram entregues a impossibilidade. mo tarefa crítica. O mesmo curador
der boa parte do terreno para a cujo mote é “Revolução", enquan- cineasta, jornalistas e produtoras O curso de museologia da Ufba responsável por essa disposição,
construção civil erguer um condo- to o do seu antecessor, Rui Costa, culturais. Dois cargos de direção foi se afirmando através de uma quando diretor da Dimus, permitiu
mínio de luxo. era “Correria". A “Revolução cul- foram entregues a museólogas, formação menos tecnicista e mais que o artista Marcos Chaves pen-
A primeira gestão petista, de Jac- tural” privilegiou os museus para a que não gozam de autonomia, e conceitual, com forte ênfase nas durasse móveis do acervo no teto
ques Wagner, responsável por que- implantação de uma política pau- legitimam a política “revolucioná- ações museológicas comunitárias, do hall de entrada do Palácio Rio
brar a hegemonia do carlismo não tada em uma interpretação radical ria". na função social do museu, nas Branco compondo uma instalação
pôde ou não quis desistir do Museu da decolonialidade, cujo apoio in- O combalido corpo técnico de ações didáticas comunitárias e na intitulada É vento.
Rodin, as tratativas estavam avan- telectual foi buscado na francesa cada museu, outrora composto por necessidade de revisões dos dis- É conveniente lembrar que esses
çadas demais. Restava, pois, a ma- Françoise Vergés e em Frantz Fa- historiadores, pedagogos, ar- cursos museográficos, incorporan- acervos valem bilhões de reais, fo-
nutenção dispendiosa da franquia non, difusores da ideia de um “pro- te-educadores e restauradores, do as contradições sociais, a crítica ram comprados e mantidos pelo
museológica até o fim do contrato, e grama de desordem absoluta", in- vem sendo reduzido drasticamen- cultural e a valorização das expres- erário público. Os danos, perdas e
a maioria das cópias retornassem a terpretado pela cúpula da cultura te, limitando-se aos nomeados pa- sões alijadas dos projetos burgue- roubos são, portanto, passíveis de
Paris, ficando quatro peças em bron- do governo da Bahia como auto- ra os cargos comissionados e aos ses de museus, evoluindo para um denúncia ao Tribunal de Contas e ao
ze, adquiridas ao preço de R$ 3 mi- rização para desativar as exposi- contratos temporários. Trabalho acento nas questões da afro-bra- Ministério Público.
lhões, um milhão a menos do que ções “permanentes” dos museus, precário transitório, que interdita silidade e da decolonialidade, e das Que o MAC não promova inclu-
custou a adaptação do MAC Bahia. ocupando os espaços com expo- qualquer reação contrária, qual- questões emergentes no século 21, são pela exclusão, que um só cu-
sições itinerantes, cenográficas e quer denúncia ou questionamento orientações capitaneadas, em par- rador não dite o que é moderno e
Circuito que reúnem grande número de pe- das ações dos mandatários. te, por professores negros, egres- o que é contemporâneo nas ma-
Pensamos que o local ideal para um ças de diferentes faturas e diversas Hoje compreendemos a obriga- sos das turmas dos anos 1980-90 e nifestações artísticas baianas, que
museu de arte contemporânea se- épocas. Exposições que poderiam toriedade de contratação de pro- que ministram aulas para uma evite o beneficiamento dos mes-
ria o Parque de Pituaçu, quebran- ocupar outros espaços da cidade. dutores culturais, presentes nos maioria de estudantes negros. mos grupos ou artistas. Que a re-
do-se com o monopólio das escul- Os museus deixaram de ser mu- editais desde as primeiras gestões volução pretendida seja honesta,
turas de Mário Cravo Junior, di- seus e passaram a ser galerias ou petistas, quando a política de edi- Independência vigilante e responsável com o pa-
versificando as obras, os artistas complexos de galerias, exibindo tais, de cultura a R$ 1,99 submeteu Alguns dessa geração ocuparam trimônio público, e que lembre que
representados, construindo espa- duas, três ou mais exposições de os criadores aos empresários oriun- cargos de mando nos museus, na as artes visuais da Bahia neces-
ços expositivos adequados e pre- arte diferente. Nenhum museu foi dos do curso de Produção Cultural Diretoria de Museus (Dimus), Fun- sitam de espaços expositivos, pro-
servando a natureza e integridade criado pelo estado da Bahia. A de- da Facom/Ufba, e não só. dação Cultural do Estado da Bahia jeção e mercado ampliado. Os ar-
do parque, que encolhe progres- colonialidade se faz pelo discurso, Lembramos que na gestão de (Funceb), etc, mas nunca tiveram tistas precisam viver do seu tra-
sivamente com as invasões da cons- pelo diálogo crítico dos acervos. JW, os museólogos do estado fo- independência e verbas para re- balho.
trução civil, além de descentralizar Para a implantação dessa polí- ram instados a precificarem cada dimensionarem as exposições,
o circuito museológico. Entretanto, tica museológica, os cargos mais item dos acervos, tarefa profissio- nem tampouco para dinamizá-las e *OS CONTEÚDOS ASSINADOS E PUBLICADOS
seria muito caro para gestões que altos da cultura foram concedidos a nalmente inadmissível e incapaz de provê-las de atividades pedagógi- NA COLUNA OLHARES NÃO EXPRESSAM
querem gastar muito pouco com a figuras estranhas às culturas da Ba- se fazer, a não ser pelos leiloeiros. cas; administraram com pouco di- NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DE A TARDE

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