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LÍNGUAS
INSTRUMENTOS
e LINGUÍSTICOS
SUMÁRIO

D ossiê em homenagem a Manuel Said Ali Ida

Said Ali na História das Ideias Linguísticas n o /d o Brasil


Claudia Regina Castellanos Pfeiffer, Thaís de A raujo da Costa, Vanise Gomes de Medeiros 143

Gramática e discurso: pensamentos latentes e expressões de situação


E n i Pucánelli Orlandi 152

Said Ali: em torno de um acontecimento e de um percurso


168
Eduardo Guimarães

Coordenação e subordinação na obra de Said Ali: tradição e modernidade


José Carlos Santos de Azeredo 183

Relações entre terminação e gênero morfológico em Said Ali: o índice -l no português


M ário Eduardo Viaro, M ilena Guirelli Trindade 198

Investigações filológicas de Said Ali (1975): nos nomes das cores, a emergência do sentido e da
diferença
219
Gesualdía Rasia

O movimento da língua na Grammatica Historica de Said Ali: a materialidade em pauta


S u zy L agazzi 232

Said Ali e a gente na história da língua e da gramatização brasileira


246
A n a Cláudia Fernandes Ferreira, M ichel M arques de Faria

Alinhavando alguns sentidos sobre Manuel Said Ali na produção e circulação do conhecimento
linguístico
282
A m anda Eloina Scherer

Notas sobre o “Vocabulario Orthographico da Lingua Portugueza, precedido das regras


concernentes ás principaes dificuldades orthographicas da nossa língua”, de Said Ali 297
Claudia Regina Castellanos Pfeiffer, Thaís de A raujo da Costa, Vanise Gomes de Medeiros

Crônicas e Controvérsias
334
Said Ali pelas lentes de Evanildo Bechara: entrevista concedida a Thaís de Araujo da Costa em
30/6/2021
Thaís de Araujo da Costa, Michel Marques de Faria

Línguas e Instrumentos Linguísticos: vol. 25, n. 49, 2022.


Campinas (SP) - ISSN 2674-7375
DOI: 10.20396/lil.v25i49.8670264

Dossiê

Said Ali na História das Idéias Linguísticas no/do


Brasil

Said Ali in the History of Linguistic Ideas in/from


Brazil

Claudia Pfeiffer*
U N IC A M P

Thaís de Araújo da Costa**


U E R J/U FF/U N IC A M P

V anise M edeiros***
U FF

O presente Dossiê, que temos o prazer de apresentar, é fruto do 1


Seminário do Arquivos de Saberes Linguísticos - Homenagem a Said
Ali1, realizado entre os dias 08 e 12 de novembro de 2021. Pudemos
ouvir e discutir reflexões potentes de pesquisadores importantes no
cenário dos estudos sobre a linguagem e da história desses estudos que,
em uníssono, destacaram de modos diversos o pioneirismo, o
ineditismo, o vanguardismo, a beleza, a força dos escritos de Manuel
Said Ali Ida, trazendo a público distintas possibilidades de significar
uma homenagem a este nome de autor.
A homenagem no ano de 2021 teve múltiplas motivações. Uma
delas é o fato de o ano de 2021 ter sido ao mesmo tempo o centenário
de publicação da Ia parte da Ia edição da Gramática Histórica da Língua
Portuguesa de Said Ali e o seu aniversário de 160 anos. Isso por si só já
bastaria como razão de ser do acontecimento de um evento e seu

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desdobramento em publicação que faça circular de modo ainda mais
amplo o muito a se dizer sobre Said Ali em meio a uma história das
ciências da linguagem. Mas há ainda uma outra motivação que diz
respeito aos encontros que os percursos de pesquisa fazem acontecer.
Nosso evento foi fruto de uma articulação entre a Unicamp, a UFF e a
UERJ, envolvendo muitos espaços institucionais no interior destas três
universidades. Juntos, na realização do evento, estiveram o Laboratório
Arquivos do Sujeito e o Grupo Arquivos de Língua, o Gal no qual, por
sua vez, encontra-se o Arquivos de Saberes Linguísticos (SaberLing).
Todos vinculados ao Programa de Pós-Graduação Estudos de
Linguagem da UFF. Também estiveram na realização do evento o
Programa de Pesquisa História das Idéias Linguísticas, vinculado ao
Programa de Pós-Graduação em Linguística do IEL da UNICAMP, e o
Laboratório de Estudos Urbanos, da mesma universidade. Igualmente
fez parte da realização do evento o Instituto de Letras da UERJ, onde
atualmente tem sede o SaberLing. E, fmalmente, o Programa de
Pesquisa Institucionalização da HIL no Brasil, que é também
interinstitucional.
Como dissemos, muitos espaços. Todos com histórias potentes de
pesquisa e formação que nos fazem estar em meio a relações
acadêmicas, científicas e de afeto. Uma dessas relações se materializa
de modo muito especial no trabalho de pesquisa Dizeres de e sobre Said
Ali: análise discursiva da (meta)história das idéias linguísticas no/do
Brasil no final do século X IX e início do século XX, que é liderado por
Thaís Costa dentro de uma relação de pós-doutoramento na UFF, sob a
supervisão de Vanise Medeiros, e como pesquisadora colaboradora do
IEL da Unicamp, sob supervisão de Claudia Pfeiffer.
E no interior dessa rede de análises, de teorias, de áreas, de
encontros, de afetos que se formulou a proposta do evento que, além de
homenagear esse importante estudioso da linguagem, procurou
promover a escuta de reflexões que contemplem o processo de
significação desse nome de autor e sua obra na (meta-)história dos
estudos linguístico-gramaticais no/do Brasil.
Reúnem-se no presente Dossiê os pesquisadores convidados ao
evento, bem como uma entrevista vibrante e comovente com Evanildo
Bechara que, aos seus 93 anos e em meio à pandemia, não podia se
mobilizar para uma apresentação no seminário, porém se prontificou
imediatamente a realizar a entrevista que se encontra publicada na seção

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Crônicas e Controvérsias. Para o momento do evento, editamos um
vídeo como forma de compartilhar com o público parte da força da
compreensão do professor Bechara sobre a importância de Said Ali no
domínio dos estudos da linguagem, mas também como forma de fazer
presente Evanildo Bechara e sua delicadeza e força frente a seu mestre
que nos move e nos comove. E jogam os aqui com o signifícante, pois
as palavras de Bechara nos emocionam e nos fazem continuar na
movência dos sentidos coletivamente! Uma das formas coletivas de nos
mantermos em movimento está no gesto de realização da publicação
deste dossiê, outra esteve na formulação e realização do evento. E não
poderiamos deixar de fora desta publicação a edição desse vídeo que,
em seu gesto de recorte, materializa nosso gesto de significação da
entrevista.

Said Ali pelas lentes cfè

Said Ali pelas lentes de Bechara


voutu.be/PgB-OFiPTlw

"A figura do Said Ali não passou, ela continua’’, eis uma das
formulações de Evanildo Bechara sobre Said Ah que reverbera nos
artigos aqui publicados que nos permitem entrever regularidades em
tomo da compreensão de que a obra de Said Ali nos mobiliza frente a
formulações que abrem uma posição outra no campo das ciências da
linguagem no tempo-espaço em que são formuladas. Regularidade que
pode ser tomada de modo metafórico com a afirmação de que a obra de
Said Ali está à frente de seu tempo. Além do vanguardismo de seus

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estudos e de sua forma de olhar para a língua, outro ponto comum dos
especialistas aqui reunidos. E há mais. Nos é apresentada a
compreensão da interlocução, na obre de Said Ali, como um lugar
privilegiado de escuta e de trabalho com a língua, assim como a
presença de um sentido de usuário enquanto aquele que conhece a
língua, que promove mudanças, e não aquele que a corrompe. Ou ainda
o destaque de que nas formulações de Said Ah se avulta um tom
descontraído e, por vezes, irônico que captura o leitor e o joga diante da
complexidade e da insuficiência da linguagem. Ressoa também
fortemente a surpresa de encontrar dizeres absolutamente
desestabilizadores para os imaginários enrijecidos sobre gramática,
língua, sujeito falante, que nos afetam enquanto cientistas da linguagem
e que nos afetam enquanto professores. A importância de fazer presente
na prática docente os inúmeros deslocamentos desestabilizadores do
modo de compreender o fazer gramatical em Said Ah fica patente e a
vontade de continuar a descobrir outras surpresas e encantos em seus
dizeres também. Uma pesquisa que não acaba em tom o desse nome de
autor.
Invariavelmente, ainda, vemos nos textos dos autores aqui reunidos
a menção à importância de retom ar a Said Ali e reencontrá-lo de modo
distinto, podendo dizer mais e diferente sobre seus gestos na história
das idéias linguísticas. Essa força se coaduna com a delicadeza e
potência de um outro nome de autor, Evanildo Bechara, quando, citando
Capistrano, em sua entrevista, nos diz que “Said Ah não é daqueles que
se comparam, mas daqueles que se separam” .
Essa brevíssima retomada procura mostrar o vigor mobilizador que
une os artigos aqui presentes no que concerne à língua, aos instrumentos
linguísticos e à história do conhecimento linguístico-gramatical,
desorganizando certezas e iluminando outras leituras que possibilitam
a reinscrição de Said Ali e de textualidades filiadas a seu nome nessa
história.
Apresentaremos agora, separadamente, cada uma das valiosas
contribuições reunidas em forma de dossiê.
Em “Gramática e Discurso. Pensamentos latentes e Expressões de
situação”, Eni Orlandi (DL - IEL / Labeurb/ Unicamp / Unemat /
CNPq), partindo de sua posição já observada em outros trabalhos de
que Said Ali é um autor que contribui fortemente para a compreensão
do processo sócio-histórico de identificação do brasileiro pelos

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instrumentos linguísticos, chama a atenção para outra singularidade que
faz ver ao mesmo tempo o pioneirismo nesse nome de autor e sua
articulação com compreensões que são caras à análise de discurso
materialista. É pela noção “expressão de situação”, teorizada por Said
Ali, que a autora faz sua trajetória de leitura, nos mostrando que a
mobilização dessa noção por Said Ali só pode ser feita porque este autor
compreende que o sentido na linguagem tem profunda relação com o
funcionamento da exterioridade, salientando, inclusive, ser esta uma
contribuição menos tematizada pelos comentadores desse estudioso. Ao
mesmo tempo, Orlandi nos permite ver que, ao trabalhar a língua em
seu funcionamento, as reflexões de Said Ah sobre as “expressões de
situação” trazem, entre outras consequências, a possibilidade de se
avançar na compreensão da relação gramática e texto, língua e discurso,
estrutura e acontecimento.
Em “Said Ali: em tom o de um acontecimento e de um percurso”,
Eduardo Guimarães (DL - IEL / Labeurb/ Unicamp / Unemat / CNPq),
considerando a produção de Said Ali como “decisiva para o
conhecimento do português (enquanto língua nacional)”, se propõe a
analisar um certo percurso da sua obra na história das idéias linguísticas
no Brasil. Assim, tomando a publicação da Gramática Secundária, na
década de 1920, como um acontecimento, reflete sobre a sua
temporalidade constitutiva, identificando, no seu passado, os estudos
que comparecem em Dificuldades da Língua Portuguesa (1908),
Lexeologia do português histórico (1921) e Formação de palavras e
sintaxe do português histórico (1923); no seu presente, a formulação de
definições de gramáticas que distinguem o lugar da gramática prática
(normativa) do da gramática descritiva (científica); e, no seu futuro, a
realização da primeira gramática descritiva do português no Brasil, a
saber, Estrutura da Língua Portuguesa, de Mattoso Câmara Jr., na
década de 1970.
Em “Coordenação e subordinação na obra de Said Ali: tradição e
modernidade”, José Carlos de Azeredo (UERJ) nos apresenta o que
considera ser “um fato singular na contribuição de Said Ali”, qual seja,
a relação entre os valores semânticos de explicação e causa e dos
processos de coordenação e subordinação, tal como formulada nas
Gramáticas Secundária e Histórica. Para tanto, nos convida a
acompanhá-lo em dois passeios: um pela sua história pessoal, desde a
formação ginasial, quando leu pela primeira vez um estudo de Said Ah,

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à formação universitária e científica, quando o retomo a esse nome de
autor se tom ou uma constante; e outro pelas páginas de gramáticas dos
séculos XIX-XX, ressaltando, dessa maneira, o caráter inovador e
fundador, ainda que muitas vezes silenciado, da obra do “velho mestre” .
Em “Relações entre terminação e gênero morfológico em Said Ali:
o índice -1 no Português”, Milena Guirelli Trindade (USP) e Mário
Eduardo Viaro (USP/CNPq-PQ-lD) exploram o gênero morfológico na
língua portuguesa na sua relação com a terminação e com aspectos
morfossintáticos e semânticos, salientando o que julgam ser “uma das
grandes contribuições da obra de Said Ali”, notadamente nas suas
Gramáticas Secundária e Histórica. Com esse fito, inserem sua
reflexão no horizonte de retrospecção e de projeção da história do
conhecimento linguístico-gramatical brasileiro e, a partir da análise de
dois corpora, nos mostram, por um lado, a complexidade da categoria
de gênero e, por outro, a pertinência ainda hoje de algumas
considerações do autor.
Em “Investigações Filológicas de Said Ali (1975): nos nomes das
cores, a emergência do sentido e da diferença”, Gesualda dos Santos
Rasia (UFPR/CNPq) traz à tela a discussão de Said Ali sobre um fato
de língua: como se nomeiam as cores? A autora nos permite ver um
conjunto de aspectos da ordem da relação linguagem-realidade e dos
modos como o sujeito se coloca nessa relação. Com isso, Gesualda
Rasia salienta como podemos ver, na discussão de Said Ali, que a
ordem semântica se faz pela relação da linguagem com sua
exterioridade marcada pela incompletude, ou, nas palavras de Said Ali,
pela insuficiência da linguagem. Desdobra-se daí, na relação com a
análise de discurso, dois movimentos: de um lado, a incompletude
como lugar no qual se marca a indeterminação do sujeito que diz sobre
as coisas do mundo (igualmente indeterminadas) e, de outro lado,
materializa-se a dupla divisão referida por Orlandi (2009), na tensão da
língua brasileira e a portuguesa.
Em “O movimento da língua na Grammatica Histórica de Said Ali:
a materialidade em pauta”, Suzy Lagazzi (DL/IEL-UNICAMP), a partir
de um passeio sutil e arguto por entre formulações de Said Ah, nos
aproxima de dois efeitos importantes nos gestos de formulação na
Grammatica Histórica deste nome de autor: o movimento ambivalente
em gramática, abrindo-a para a polissemia em que a exterioridade conta
e muito, retirando-lhe de uma relação estanque com a ordem

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classificatória; e a relação entre falante e ouvinte em um a potente
compreensão de Said Ali que escapa à evidência comunicacional. Dois
deslocamentos fundamentais na história das ciências da linguagem que
se fazem em tom o das formulações de Said Ali, uma vez que trazem à
baila a ordem da significação e da diferença como parte do movimento
da língua na história.
É pelo miúdo, procedimento de pesquisa em Said Ali, que Ana
Claudia Ferreira (Unicamp) e Michel Marques Faria (Unicamp), no
artigo “Said Ali e a gente na história da língua e da gramatização
brasileira”, percorrem e confrontam diferentes produções de Said Ali,
prescrutando sentidos que vão inscrevendo o processo de
pronominalização de a gente. É a partir desse elemento da língua que
somos levados a uma potente reflexão sobre língua que passa, entre
outros importantes aspectos, pela questão histórica da (in)determinação
do sujeito gramatical e toca o problema da forma sujeito em terras
brasileiras, em tempos de colonização e descolonização, em tempos de
processo de endogramatização e de gramatização brasileira da língua.
Um artigo-ensaio que culmina nos trazendo o que Michel De Certeau
indica como economia escriturística, para pensarmos o que fica e o que
não fica tanto da tradição oral quanto da escrita.
“Um autor que se ouve sempre dizer “estou relendo” e quase nunca
“estou lendo””, eis um enunciado com que Amanda Scherer (UFSM),
em seu artigo “Alinhavando alguns sentidos sobre Manuel Said Ali na
produção e circulação do conhecimento linguístico, a uma leitura”, nos
faz compreender o lugar de Said Ah na história do conhecimento no
Brasil. Sim, porque não se trata somente de um conhecimento
gramatical ou sobre a língua - e isto bastaria - , mas de um
conhecimento que desbrava e organiza, como ela nos fala, campos de
saber. Em seu artigo, cujo percurso se faz a partir de um fio de meada
dentre tantos possíveis - aquele da busca de trajetos de leitura das idéias
linguísticas de um pensador francês, Victor Henry, um linguista do
século XIX, nos escritos do pensador brasileiro - , a autora vai
iluminando e (des)tecendo não apenas o trabalho com e sobre a língua
por Said Ah, mas, sobretudo, o próprio labor científico.
Em “Notas sobre o “Vocabulário Orthographico da Lingua
Portugueza, precedido das regras concernentes ás principaes
dificuldades orthographicas da nossa língua”, de Said Ali”, por Claudia
Pfeiffer (UNICAMP), Thais Costa (UERJ) e Vanise Medeiros (UFF;

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CNPq; FAPERJ), é o vocabulário ortográfico de Said Ali que está em
foco. Publicado no Brasil em um momento em que o problema
ortográfico se fazia importante tanto em Portugal quanto no Brasil, a
questão que instiga e intriga às autoras se deve à ausência de referência
a essa obra, ou ainda, a sua não disciplinarização. Tal incômodo resulta
em reflexões que passam por historicizar e analisar a obra, por refletir
sobre ortografia, letra, pronúncia, regra, entre outros aspectos
importantes que envolvem o Vocabulário, e ainda por observar as
diversas tensões que nele se inscrevem e que a partir dele se evidenciam
no que vai sendo configurado como língua nacional. Assim como com
os demais artigos, com este se adentra um pouco no vasto campo do
conhecimento linguístico no Brasil.
Fechando nossa apresentação que, ao tempo de especificar o dossiê,
também rememora o evento do qual é fruto, trazemos outro vídeo
apresentado no I Seminário do Arquivos de Saberes Linguísticos -
Homenagem a Said Ali que procurou flagrar, por meio de depoimentos
dos palestrantes do evento, gestos de significação da homenagem a
Manuel Said Ali Ida.

Depoimentos Said Ali


voutu.be/oab.TebPA5V 8

As Organizadoras

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* Pesquisadora (PqB) do Laboratório de Estudos Urbanos
(LABEURB/NUDECRI/UNICAMP) Formada em Linguística no Instituto de Estudos
da Linguagem (IEL/UNICAMP), fez seu mestrado e doutorado no Programa de Pós-
Graduação em Linguística, do mesmo Instituto, nas áreas da Análise de Discurso e
História das Idéias Linguísticas. Suas pesquisas se dão na interface dessas duas áreas
junto à do Saber Urbano e Linguagem, trabalhando com Políticas Públicas de Ensino,
de Saúde e de Mudanças Climáticas, com a institucionalização da Língua Portuguesa
como língua escolar no Brasil e com Divulgação Científica. Orcid:
https://orcid.org/0000-0003-0331-9626. Email: claupfe@gmail.com

* * Professora Adjunta de Língua Portuguesa da Universidade do Estado do Rio de

Janeiro (UERJ), pós-doutoranda em História das Idéias Linguísticas no POSLING-


UFF, sob a supervisão da Profa. Dra. Vanise Medeiros e membro do Gmpo Arquivos
de Língua (GAL-UFF), no qual coordena o Arquivos de Saberes Linguísticos
(SaberLing/FAPERJ). Também é pesquisadora colaboradora no PPGL-IEL/Unicamp,
sob a supervisão da Profa. Dra. Claudia Pfeiffer, e uma das coordenadoras do
Laboratório de Estados em Gramática & Discurso (LabGraDis-UERJ/FAPERJ).
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8599-3528. E-mail: arauio tliais@yahoo.com.br

*** Professora associada da Universidade Federal Fluminense, graduada em Letras,


mestre em Estudos da Linguagem (ambas pela PUC-Rio), doutora em Estados da
Linguagem (UFF), com pós-doutorado pela Sorbonne NouvelleParis III. E bolsista do
CNPq e Cientista do Nosso Estado (FAPERJ), coordena o Grupo Arquivos de Língua
(GAL) e é uma das coordenadoras do Laboratório Arquivos do Sujeito (LAS) da UFF.
Atua em Análise de discurso materialista e História das Idéias Linguísticas. Orcid:
http://orcid.org/0000-0002-6998-9377. E-mail: vanisegm@)yahoo.com.br.

Nota

1 O evento pode ser visto em sua íntegra no seguinte endereço: https://slire.ink/t3r.

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DOI: 10.20396/lil.v25i49.8670265

Gramática e discurso:
pensamentos latentes e expressões de situação

Grammar and discourse:


latent thoughts and situation expressions

Eni Puccinelli Orlandi*


U nicam p/U nem at

Resumo: A partir do estudo de M. Said Ali sobre o que ele denomina


“expressões de situação” procuramos compreender a estrutura e
funcionamento dessas expressões, observando da perspectiva da
Análise de Discurso. Produzimos, desse modo, uma reflexão que nos
permite relacionar gramática e discurso, considerando que o
procedimento de análise de S. Ali desloca a noção de termos expletivos,
ou de realce, como se trata na gramática, para expressões de situação,
incluindo, assim, a relação com a exterioridade. Essa proposta de Said
Ali aponta para um outro modo de pensar a língua.

Palavras-chave: Expressões de situação, Palavra-discurso, Gramática


e discurso. Processo discursivo.

Abstract: From the studv o f M. Said Ali on whctt he calls “situation


expressions ”, we try to understand the functioning structure o f these
expressions, observing from the perspective o f Discourse Ancdysis. In
this wciv, we produce a reflection that allows us to relate grammar and
discourse, considering that S. Ali's analysis procedure displaces the
notion o f expletive terms, or highlighting terms, as it is in grammar, to
expressions o f situation, including, thus, the relationship with
exteriority. Said Ali 's proposcd points to another way o f thinking about
language.

Líng. e Instrum. Linguíst., Campinas, SP, v. 25, n. 49, p. 152-167, jan./jun. 2022.
152
Keywords: Situational expressions, Discourse-word, Grammar and
discourse, Discursive process.

Introdução

Nossa proposta, no projeto História das Idéias Linguísticas, sempre


objetivou considerar as idéias linguísticas em suas consequências, não
só sobre a política de línguas, mas, mais extensamente, no
funcionamento dessas idéias na relação dos sujeitos com a sociedade na
história. Importa também, no campo desse projeto, a questão da
identidade, não pensada de forma militante, mas procurando estabelecer
“bases teórico-metodológicas para compreender o imaginário social
brasileiro que se constituiu ao longo de um a complexa história que
produziu processos de identificação do brasileiro” (E. Orlandi, 2001).
O autor M. Said Ali é um dos que contribuíram fortemente para
nossa compreensão desse processo sócio-histórico de identificação
pelos instrumentos linguísticos. Seu livro Dificuldades da Língua
Portuguesa (2008) foi um dos primeiros a me interessar, pois, na
perspectiva teórica em que trabalho, a da Análise de Discurso, li, desde
a primeira mirada, o equívoco engatilhado no título: a palavra
dificuldades pode ser lida como erro, ou como diferença. A maior parte
interpreta como erro ou como dúvida ou discordância diante de usos
“variados” de certas formas de linguagem. Há até um dicionário sobre
dificuldades da língua portuguesa. Para dirimir dúvidas. Mas poder-se-
ia interpretar dificuldades como discrepâncias, divergências. Ora, este
autor tem um conhecimento de linguagem amplo e consistente o
suficiente para não falar dessas dificuldades sem alcançar um sentido
maior dessa discussão, ou seja, sem avançar teoricamente na reflexão
sobre a língua nacional. E avança com novas questões. O que ele põe
em dúvida, penso, são os limites entre “dificuldade” e “brasileirismo”,
e o que ele anuncia é o fündo diverso de nossa língua e a de Portugal. E
com este olhar que agora analiso alguns fatos de que ele trata em seu
Meios de expressão e alterações semânticas (1971).
Quando a exterioridade conta

Há algumas noções1 que se mantêm, embora diferentemente


definidas, nas diferentes teorizações. No caso presente, tomamos a

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noção “expressão de situação”, que é teorizada por Said Ali. Essa é uma
noção que, na Análise de Discurso que pratico, nos remete à noção de
“condições de produção”, e, também a de “acontecimento”. O
importante, neste caso, é marcar aqui que Said Ali já sabia que para
pensar o sentido na linguagem não podia ignorar o funcionamento da
exterioridade na produção dos “meios de expressão”2 e “alterações
semânticas”. Se já é habitual ressaltar que ele não separa
categoricamente os estudos sincrônicos e diacrônicos, menos
tematizada tem sido sua observação da exterioridade como parte dos
estudos da linguagem.
Os estudos de Said Ali sobre alterações semânticas, que também são
parte desse seu livro, não deixam de ter grande interesse. O autor
entende que muitas mudanças de significado são determinadas por
metonímia, analogia, eufemismo, degradação. Ele trata, neste capítulo,
também da polissemia e da metáfora. Trata dos dois processos de
modificação do significado: por restrição e por extensão. E considera
que o significado muda no tempo e no espaço. Nesse nosso trabalho,
vamos permanecer na reflexão sobre as expressões de situação, sem
deixar de observar que, o que ele desenvolve em suas alterações
semânticas, tem reflexo sobre as expressões de situação, pois aí entram
observações da ordem do que ele chama psicológico e semântico.
Voltemos, pois, ao nosso objetivo, que é refletir sobre o que diz Said
Ali sobre as expressões de situação. Já de início vale dizer que ele
nomeia um fato de linguagem que, na gramática, se considera como
“termos expletivos”, de realce, como sendo “expressões de situação” .
Isso é bastante significativo. Para nós, do discurso, o que observa Ah
sobre a situação faz vir à consideração noções como exterioridade,
condições de produção (sujeito e situação) e memória. Também a
noção de acontecimento, junto a de estrutura, faz presença, como
veremos adiante.
Seus leitores, especialistas, vão dizer que o semanticista Said Ali,
acima do modo antigo e exclusivista de ver as coisas, coloca a
indagação histórica. Não se limita às mudanças de fonemas e formas
gramaticais, mas estende-se às expressões, que, com o tempo, foram-se
trocando por outras. Entra-se, diz o autor W. Macedo (2011), no
domínio da psicologia e da semântica. Vamos olhar com mais cuidado
esta afirmação, pois, mantendo a consideração da semântica, e
pensando as “expressões de situação”, pensamos que o que faz Ali é

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mais do que entrar no domínio da psicologia, se a tomamos em sentido
estrito, pois S. Ali sugere também a presença do sujeito e do
inconsciente (subconsciente, como ele diz), e da historicidade.
Ainda cabe uma observação a respeito do interesse do analista de
discurso pela língua. Eu diria que, assim como sincronia e diacronia não
se opõem, também língua e discurso se articulam, e saber uma,
pensamos, é favorável para compreender o outro; em outras palavras,
saber como uma língua é ajuda a saber como funciona discursivamente.
É este o nosso móvel: não desprezar conhecimentos nem os baralhar,
mas saber como se articulam teoricamente. Essa é a leitura que estamos
fazendo de Said Ali, que é muito favorecida, quando ele trata das
“expressões de situação”, noção em que a gramática chama para sua
compreensão o que sabemos de discurso.

A sobra, a falta: sempre uma questão

Para procedermos a essa reflexão, vamos transcrever um fragmento


de texto de Said Ali, de seu Meios de Expressão e Alterações
Semânticas (1971), que consideramos muito significativo para nossos
objetivos. Vamos manter esse fragmento como objeto de análise no
percurso dessa nossa reflexão:

É esta situação ou, melhor, são as várias


cambiantes de situação existentes no diálogo, na
conversação, no trato familiar, que determina o
uso dessas expressões concisas, alheias, talvez à
parte informativa, mas capazes de conseguir
intuitos que palavras formais não conseguiram.
Chamemos-lhes expressões de situação. Elas
atendem, ora ao ambiente criado pela presença do
ouvinte, ora à situação determinada pelos
acontecimentos, ora à disposição do espírito, em
virtude de considerações anteriores, quer da
pessoa que fala, quer do ouvinte, (grifos meus).

Antes de falarmos de nossa análise, expormos nossos comentários


teóricos, gostaríamos de fazer uma observação. A parte em que fala das
expressões de situação é apresentada, por Said Ali, através de extensa
exemplificação e análises, com a recomposição do que ele chama de

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“prováveis pensamentos latentes”, que ele apresenta, em sua escrita,
entre colchetes3, expressões que ele faz questão de distinguir do que é
“elipse”. N a distinção com elipse, essas palavras de situação são
consideradas por Said Ali como sendo ditas sem serem analisadas pelos
interlocutores, como ele diz: “São meios de expressão já do domínio do
subconsciente. Não são frutos do acaso. Têm explicação; mas oferecem
muita dificuldade ao estudo. Fazem, ou fizeram parte de pensamentos
latentes” (grifos meus). Acrescentando que a palavra (neste caso ele
analisa o “mas”) pressupõe a menção anterior a algum conceito ou
pensamento que ela vem contradizer. Provável pensamento latente.
E sua exposição e análise assim se apresenta, graficamente:

Dono da casa: - Quem é?


Criada - É um senhor.
Dono da casa - Mas quem é?

Esta última, analisada, por ele, fica assim, reescrita:

[O que você responde não é novidade], mas [o que me deve


dizer é] quem é a tal pessoa.

Prestando atenção ao que o autor faz e diz, podemos afirmar que ele
procede, em sua análise, por paráfrase, reformulação, substituição, o
que nos remete ao que Pêcheux chama de “processo discursivo” (1975,
p.161). Como no exemplo que segue:

“Mas que lucrou você em contar a essa senhora a minha


história?”

Que Said Ali explica como segue, dizendo que a adversativa - mas
- pode indicar franca reprovação a palavras ou atos alheios:
“Aqui, a adversativa procede da reflexão latente: Compreende-se
que alguém conte a vida de outra pessoa, quando daí lhe pode resultar
algum proveito; mas, no meu caso, você não lucrou coisa alguma; logo
procedeu muito m al”. Ou surpresa, como em: “Mas que bonita a voz da
cantora!”, que ele reestabelece/reescreve/reformula como sendo: “Já
tenho ouvido cantar bem, mas a voz desta cantora é extraordinariamente
bonita.” . Produz paráfrases, substituição, reformulação, sinônimos.

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Versões sobre prováveis pensamentos latentes, considerações
anteriores. N a sua reescrita, interpretação e explicação se juntam.
E o mesmo ele faz em relação a “Então” (Então, como foi isso?, que
revela carinho e interesse); “Agora” (E agora [que vamos nos separar]
quando volta? - Eu sei lá? Agora [que vou partir, penso que voltarei]
só em agosto.); “Afinal” em Afinal [nessa situação] quem não faria o
mesmo?; e outros exemplos com “Pois”, “Olhe”, “Que quer?”, “Quer
saber?”, “Verdade é que”, “Se”, “Pois se”, e também pausas,
reticências, repetição, e muitas outras “expressões”.
O que podemos observar nesses exemplos, se tomamos o ponto de
vista discursivo, é que aí se alinham fatos formais da língua que, em
outras perspectivas teóricas, seriam analisados como elementos
expletivos, produzindo alusão, implícito, e assim por diante. Neste
nosso estudo, como dissemos, vamos tratar esses “fatos formais”
através de noções discursivas como memória (efeito de sustentação e
pre-construído), acontecimento, condições de produção, paráfrase,
metáfora, formação discursiva, antecipação.
Podemos afirmar que o que caracteriza essas “expressões”, nas
gramáticas, é serem expletivas. Dito de outro modo, estão ali
deslocadas, aparecem como não fazendo parte. São expressões
concisas, como diz Said Ali.
Penso que, teoricamente, ressalta aí a questão do que tenho tratado
como incompletude da linguagem, seja de sentidos, seja dos sujeitos. E
do texto. Quando falamos em incompletude, falamos de falta e de sobra.
A linguagem não é transparente, e, como tenho considerado, nem exata.
Em Said Ah é a palavra “sobra” que é usada: “Figuram muitas vezes no
falar corrente, e em particular nos diálogos, palavras e frases que
parecem de sobra nas proposições quando estas se analisam com os
recursos usuais da gramática e da lógica (....). Não são desnecessárias.
Basta tentar eliminá-las, para ver que as proposições se tomam vagas e
falhas de certo intuito que temos em mente” (grifo meu, p.29). Em
outras palavras, elas significam.
Seria, de certo modo, um “a mais”. De nossa parte, penso que
podemos observar que, na incompletude da linguagem, o que parece um
a mais (sobra) resulta, efetivamente, de um a menos (tomam-se vagas,
nas palavras de Ah). Porque não são desnecessárias. Significam pelo
silêncio que carregam.

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Said Ali faz um comentário interessante sobre o nome usual que se
dá a este fato de linguagem, “palavras expletivas”, já que ele discorda,
pois “se a oração já está plena, como é que ainda vem mais
enchimento?” Crítica que ele estende ao discurso dos gramáticos que,
para explicarem, dizem “que podem suprimir-se sem alterar o valor...”.
Segundo Ali, “se aumentam a força, a graça ou energia, o valor da frase
fica alterado”. São necessárias. Constituem a unidade do texto, eu diria.
Vemos, assim, que, desde que entra em conta a significação, a
própria perspectiva da análise muda. Entra em conta a psicologia e a
semântica, como diz S. Ali. E o que eu julgo importante observar é que
Said Ali, quanto a questão das expressões de situação, trabalha
justamente nesse intervalo, nessa relação do que pensa o gramático e o
semanticista. A meu ver, o que falta aí é a noção de imaginário. A
completude é uma noção da ordem do imaginário. Pelas relações de
sentidos sabemos que toda formulação remete a outras, anteriores, e
aponta para outras, que virão. A formulação não se fecha. E em sua
organização, sua estrutura, que a consideramos como completa ou
incompleta. Como acontecimento está em movimento no processo de
significação. Assim como, enquanto acontecimento, não podemos
pensar só o estável, mas o sujeito a equívoco, também quanto à
completude, não há só o que se organiza como fechado, mas também o
que não se fecha. São relações de sentidos que aí se apresentam.
Em mais de um sentido, eu diria, nos aproximamos. Porque não
trabalhamos as unidades em si, mas as relações, trabalhamos o fio do
discurso. E ele volta-se não para o discurso eloquente e retórico, como
ele mesmo diz (p.30), mas para o “falar desataviado de todos os dias”.
Entra, então, em seu discurso, mesmo que ele não explore, algo que
me tem ocupado: a atenção. No caso presente, palavras, formas,
estruturas, que funcionam para chamar a atenção. De certo modo, isso
tem a ver, no fio do discurso, com a questão da antecipação e, como
organização, da chamada “topicalização” (exemplo: “A bicicleta, eu
não uso mais”, com “realce”, para o ouvinte, na bicicleta). Questões que
trazem também a instância da argumentação. Modos de tratar a
linguagem sabendo de sua não linearidade. Das camadas em que ela se
desdobra para significar. O latente, o não-visível, mas que está lá. O
pré-assertado, o implicado. Nas palavras de S. Ali “as considerações
anteriores” .

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No falar de todo dia - como diz Said Ali, “falar e ouvir, e ajeitar a
cada momento a linguagem em atenção a essa pessoa que está diante
de nós” (grifos meus) - é que nos deparamos com estas expressões
concisas, alheias, talvez, diz o autor, à parte informativa, mas capazes
de conseguir intuitos que palavras formais não conseguiríam. É isso:
para significarmos realmente, temos de nos desfazer dos freios formais.
Assim é que a linguagem funciona, com estabilidade e equívoco, com
estruturas e acontecimentos. A parte informativa, diriamos, a
comunicação, importa pouco. Nada é completo, e a relação
pensamento/linguagem/mundo não se faz termo-a-termo. Lapsos.
Pedaços. Pensamentos incompletos. Latentes, diz S. Ali. A latência,
nessas condições, brota em manifestações abruptas da linguagem: Mas,
Então. Que parecem fora de lugar. Dispersas. Parecem, mas não estão.
Para nós, aqui, ressalta a palavra atenção. Ajeitar a linguagem em
atenção a essa pessoa que está diante de nós. Ou não. Esse nosso outro,
o ouvinte, que nos espera, para que a linguagem signifique. E a essas
palavras que ele chama de expressões de situação e que, segundo ele,
atendem ora o ambiente criado pela presença do ouvinte, mas também
à situação determinada pelos acontecimentos, ou à disposição do
espírito, em virtude de considerações anteriores. Em outras palavras,
funciona aí o mecanismo de antecipação: considerações anteriores que
produzem uma disposição do espírito a qual devemos atender. Chegar
aonde nos esperam. Dar direção, argumentar. Atingir.
Vejam que aqui encontramos também a questão da memória:
alguma coisa fala antes, em outro lugar. O latente. Em termos
discursivos: o presente pela sua ausência necessária (leitura sintomal,
em L. Althusser, 1979). E para cumprir o funcionamento das expressões
de situação nem é preciso palavras, pode ser o silêncio, a pausa, a
reticência. A interrupção súbita de palavras impressiona o espírito
vivamente. Chama a atenção. E Said Ali trata aí da suspensão e da
substituição. Que, segundo ele, são meios de expressão já do domínio
do subconsciente. Não são frutos do acaso. Inconsciente e ideologia se
articulam em presença e ausência. Para nós, é isso o processo
discursivo. E quando analisamos, é ao processo discursivo, justamente,
que estamos atentos.

Processo discursivo e interdiscurso

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A descrição e interpretação que o autor faz desse fato, que ele
nomeia “expressões de situação”, convoca nossa reflexão para as
noções de processo discursivo e de memória, de interdiscurso, da
Análise de Discurso. O que nos permite ampliar seu alcance.
Há algum tempo venho explorando com mais acuidade a noção de
processo discursivo. Tal como a define M. Pêcheux (1975, p.161):
“sistema de relações de substituição, paráfrases, sinonímias,
reformulações etc, que funcionam entre elementos linguísticos -
“significantes” - em uma formação discursiva dada” .
Chama-nos a atenção, no procedimento analítico de Said Ali, quanto
às expressões de situação, a recorrência que ele faz a isto que chamamos
de processo discursivo. Para explicar, ele liga a expressão ao
pensamento, através de uma paráfrase em procedimentos em que
observamos reformulação, reescrita, substituição, procedimentos que
reestabelecem uma relação significativa. Vejamos um exemplo:

- Ah! Não me fale desse bicho!


-M as que lhe fez ele?

É como se dissesse: [A senhora mostra-se descontente], mas [eu não


percebo a razão disso]; que lhe fez o cachorro para contrariá-la assim?

N a reformulação, indicada por colchetes, na análise de S. Ali, há


restituição de expressões, que faltariam, e substituição de um enunciado
por outro. Que chamaríamos de componentes do processo discursivo.
Depois vem a interpretação: “N a exclamação, Mas é de surpresa”. Em
seguida, vemos, na análise descritiva de Said Ah, elementos da
memória discursiva, algo já lá, mas não dito.
Em relação ao que o autor introduz para pensar as chamadas
“expletivas”, ou “expressões de situação” como ele prefere, certamente
temos muito a dizer através das noções com que trabalhamos em
Análise de Discurso, como a memória e o processo discursivo, como
dissemos. E, ecoando o que Said Ah diz, afirmamos que essas
“expressões” são necessárias.
As expressões de situação, como “mas”, “então”, “agora” e muitas
outras, certamente engatam a formulação em algo que faz parte da
memória discursiva. Engajando o silêncio, como comentaremos mais à
frente.

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Pensando a incompletude da linguagem e a relação com o outro, isso
pode nos levar à afirmação do texto como não tendo um começo
assinalável e de sua constituição por múltiplos discursos possíveis. Ou,
no dizer de Pêcheux (AAD/69,p.l6); “os fenômenos linguísticos de
dimensão superior à frase podem ser efetivamente concebidos como um
funcionamento, mas com a condição de juntar, imediatamente, que este
funcionamento não é integralmente linguístico (...) e que só o podemos
definir em relação ao mecanismo de colocação dos protagonistas e do
objeto do discurso, mecanismo que chamamos as “condições de
produção” do discurso”.
O que nos permite dizer que estas “partículas” não são da frase, mas
do discurso. Elas são parte, se ligam às condições de produção do
discurso. Por isso parecem não fazer parte, estar fora de lugar.
Caracterizam, assim, a passagem da frase para o texto. Quando
tomamos em conta o texto, sabemos, não podemos analisar um discurso
como um a unidade linguística fechada nela mesma. É uma unidade
aberta para a exterioridade. Não prescindimos, pois, da noção de
condições de produção. O linguístico, o formal, não é suficiente para
explicar, porque a estrutura se liga ao acontecimento.
Além da exterioridade estar presente na reflexão de Said Ali como
“situação”, temos a possibilidade de refletir, nesse passo, sobre o
procedimento pelo qual, usando colchetes, ele produz reformulações,
substituindo, reestabelecendo, explicitando o que está “latente” .
Apelando para o que chama “colóquio”, ou para os “acontecimentos”.
Em uma de suas reformulações, ele “guincha” o interlocutor:
“Então, como foi isso?”. Segundo o autor, este “Então” revela carinho
e interesse de amigo dedicado, vontade pronta de acudir alguém. O
outro é que está em relevo. Mais adiante, ainda explorando o “Então”,
dirá que não se desvanece o tempo, mas não funciona como o tempo do
advérbio. Quando alguém diz “Então, que lhe parece nosso Rio?” não
o diria se a pessoa chega pela primeira vez ao Rio. Mas, o curso de
idéias não é temporal, é o acontecimento, eu diria: “Você andou
passeando pelas ruas da cidade, então já pode informar-me da
impressão que teve” . Poderia dizer apenas: “Que lhe parece o Rio?” . O
“Então”, diz Ali, tem uma função, por assim dizer, pleonástica (Então)
que lhe parece o Rio.
Da perspectiva discursiva, nada é “expletivo”, nada “sobra”. Não é
pleonasmo, no sentido gramatical. A formulação é o que ela é: estrutura

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e acontecimento. O “Então” significa, e significa aí o acontecimento
que é conhecer o Rio. Significa também a relação estabelecida entre os
locutores. E isto é digno de nota. Não se pode chegar para qualquer um
e dizer “Então?” . Esta partícula estabelece relações, produzindo efeitos
de sentidos entre locutores. Discurso. E processo de significação.
Cabe, aqui, refletir sobre a definição que dei de palavra-discurso.
Em “A palavra dança e o mundo roda” (E. Orlandi, 2013): “a palavra-
discurso tem o funcionamento da alusão, mas alusão no sentido forte da
palavra, isto é, no da sua força objetivante: vira coisa, palavra com
corpo. Corpo a corpo da palavra, sentido, sujeito. Mundo. O real da
história. Resistindo em sua materialidade. Historicidade: interdiscurso.
“(...) Palavra-discurso: a palavra espreme a coisa, que espreme a relação
linguagem/mundo.” No funcionamento da palavra-discurso, a palavra
significa como discurso. No material que eu analisava, então, a música
Kátia Flávia, de Fausto Fawcett, refiro à “Explosão de sentidos no
objeto simbólico que se constrói de tal maneira que uma palavra -
palavra-discurso - acende a narrativa e incorpora a cidade em cada
palavra, em cada cena, apontando para a violência: exocet! Polícia!.
Duas palavras são recorrentes e de certo modo o cerne dos sentidos:
calcinha e polícia. Palavras-discurso”. E concluo que a palavra-
discurso, pela alusão, carregada de efeitos ideológicos, põe em
funcionamento de modo particular a memória que se atualiza pela
narratividade urbana, no caso que analisei, e desencadeia o processo de
significação das palavras-discurso: Polícia! Calcinha! E o batimento de
Copacabana/Favela! Onde ainda não cabe o tapume da palavra
comunidade. Em que é a palavra Favela, feito imagem mostrada, por
segundos, na entreabertura do cenário, na cadência do ritmo dançante
da música, que ecoa sem parar em nós: e um mundo da favela se atualiza
nessa palavra-discurso sem ser dito, silenciosamente. Favela! A
construção discursiva da realidade que lateja nas palavras-discurso
(Exocet! Polícia! Calcinha!).
Nas “expressões de situação”, enquanto palavra-discurso, temos a
substituição como processo discursivo. E S. Ali preenche com outras
palavras o que (pensamentos latentes) completaria a estrutura da frase:

“(Então), que lhe parece nosso Rio?” = (“Você andou


passeando pelas ruas da cidade, então já pode informar-me da
impressão que teve:) que lhe parece nosso Rio?”

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N a perspectiva em que procuro compreender as chamadas “palavras
de situação”, palavra-discurso, o não dito é o que, silenciado, deve
manter-se em silêncio. Você não traduz o silêncio em palavras. O efeito
de sentido é o da própria erupção da expressão - palavra-discurso - em
si: “Então”. Preencher os supostos vazios já produz uma formulação
diferente. O não dito - pensamento latente em S. Ali - silenciado,
carrega de sentidos alusivos, pensamentos latentes, a “expressão de
situação”. Muito vem significado no que não está dito, mas indicado,
aludido, pelo silêncio que constitui este dizer.

Estrutura e acontecimento: língua, discurso e ensino

Tratamos aqui não de qualquer materialidade significante, mas da


materialidade específica do discurso, que é a língua, tomando o
discurso, como quer Pêcheux (e Fuchs, 1975a) como materialidade
específica da ideologia. Desse modo, a língua, enquanto forma material
significante, é considerada, discursivamente, como sistema material,
não abstrato, nem fechado, mas aberto e sujeito a falhas. Estamos
referindo especificamente à língua, pois, no caso que estamos
analisando, não poderia ser de outro modo, uma vez que é da língua e
da situação que fala Said Ali.
O que estamos considerando, nos leva a expor reflexões que, no caso
das “expressões de situação”, remetem à relação
estrutura/acontecimento. Tomando a expressão de situação no modo
trazido pelo que defino como palavra-discurso. Trabalhamos, segundo
M. Pêcheux (1990), quando consideramos o acontecimento, com o
estabilizado e o sujeito a equívoco. O visível e o não visível. Faz parte,
portanto, de nossos objetivos levar em conta as “considerações
anteriores”, os “pensamentos latentes”, como refere Said Ali. Tudo isso
subsumido por uma palavra, como defini acima: palavra-discurso.
Acontecimento discursivo. E que traz, necessariamente, a relação
linguagem, pensamento e mundo. Língua, sujeitos e história. A
linguagem, como estrutura, traz em si todos os elementos que compõem
uma forma linguístico-material. Que se relaciona ao acontecimento.
No gesto explicativo, de Said Ali, e que é, para nós, um gesto de
interpretação, há o que, posto em termos de processo discursivo, é
reformulação, em que são retomadas considerações anteriores. Ou, em

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outro modo de caracterizar esse funcionamento das "expressões de
situação”, funcionam aí pensamentos latentes; para nós, o não-dito que
constitui o dito. Linguagem e memória são convocadas em sua
articulação.
Se pensamios em processos de significação, temos ainda as
"alterações semânticas”, no caso, pelo que em Said Ali, se chama
extensão (metonímia, analogia, eufemismo). Além de considerar
também a polissemia e a metáfora, como o próprio autor inclui no que
ele chama alterações semânticas: mudança de significado porque
pass(ar)am várias expressões da língua portuguesa. Mudanças que
podem ser de extensão, mas também de restrição. Considerando que o
significado muda no tempo e no espaço, Said Ah vai buscar o
significado na história da língua. Na perspectiva que trabalhamos, a
semântica que praticamos é a Semântica Discursiva, distinta da que
pensa Said Ali e que, como define Pêcheux (1975): "é a análise
científica dos processos característicos de uma formação discursiva,
que deve dar conta da articulação entre o processo de produção de um
discurso e as condições em que ele é produzido”. Tratando da língua e
não do discurso, para Said Ali não se trata do processo, mas da língua
como a vê um gramático interessado em alterações semânticas.
Como vemos, pensando os processos de significação, são muitas as
direções em que podemos relacionar a forma linguística, material
(palavras formais, diz Ali) e o que significam as expressões de situação:
explorando a presença do ouvinte, ou a situação detenninada pelos
acontecimentos, ou a disposição do espírito de quem fala ou de quem
ouve.
Um ponto importante a se considerar, como dissemos, é a ligação
destas formas materiais ao silêncio que carregam, pois aí se instala o
trabalho da interpretação. Palavras-discurso plenas de silêncio a ser
significado. Pontos de suspensão do dizer. Alusão. Ganchos de
significação onde se enlaça a atenção dos protagonistas do discurso.
Funcionam, enquanto palavras-discurso, como argumentos que dirigem
os sentidos em certa direção, em que se relacionam formações
discursivas.
Considerando que este gramático já traz para a reflexão um
funcionamento de linguagem como as expressões de situação, fazendo,
assim, entrar para a reflexão, questões sobre a exterioridade,

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gostaríamos ainda de explorar, em nossa conclusão, uma questão que
pontua a relação com o ensino. E que se articula à escrita e leitura.

Concluindo

J. Rios (1992) diz que escrever é ler duas vezes. Por seu lado, Roland
Barthes, falando da leitura, descreve a posição com que se lê, posição
em que o sujeito leitor se curva, baixando os olhos sobre o texto (hoje,
fixando a tela). Esses dizeres nos fazem refletir sobre a atenção.
Compondo uma posição-sujeito da linguagem.
Como afirmei acima, essas palavrinhas, “expressões de situação”,
são um gancho que puxa o ouvinte para a situação de linguagem;
demandam atenção. Isso é exemplar e pode nos fazer compreender
coisas importantes do funcionamento da linguagem ela mesma, e que
envolve os sujeitos, os sentidos, as condições de produção. Se, na
própria língua, temos formas materiais que funcionam para chamar a
atenção, podemos então concluir a importância da atenção na práxis da
linguagem.
Como exemplo tomarei, aqui, rapidamente, a questão da escrita, que
tenho trabalhado, pensando o processo discursivo.
No ensino da escrita, se tomamos em conta a constituição do sujeito-
autor, sabemos que a reformulação, a reescrita é fundamental. Escrever
é reescrever. Como diz J. Rios, é ler duas vezes. E isso demanda
atenção. Voltar-se para si. Voltar-se atentamente para a linguagem.
Dar-se um tempo. Esta questão do tempo ganha importância
fundamental, quando pensamos a urgência do mundo digital, em que,
na leitura, muitas vezes, o gesto de interpretação se automatiza e se
reduz ao mínimo, a comandos rápidos, como o tempo de um click,
instrumento de controle de percursos já estabelecidos automaticamente.
Desse modo, o gesto de interpretação se realiza em um rápido
“gesto”, enquanto a interpretação precisa do tempo de um processo em
que a demanda de atenção é crucial. Quem escreve interpreta o tempo
todo. Por isso, ao entrar nessa prática, o sujeito se envolve no processo
de reformulação, de reescrita, de substituição, de sinonímia, como
dissemos, e, em outras palavras, nisso que define um processo
discursivo. Processo em que, na escrita, o sentido ganha sentido, o
escrito se depura, pela atenção, pelo retomo, pela reinscrição sobre si
mesmo. E assim é porque, como sabemos (E. Orlandi, 2001), não há

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senão versões. É no retomo sobre si, seja na escrita seja na posição-
sujeito autor, que o sentido se produz em seus efeitos; na reescrita, na
reformulação, no deslocamento. Nas escolhas que o sujeito faz, ao
praticar um dizer no meio dos muitos possíveis, mas não realizados.
Ninho de paráfrases, onde um sentido se impõe, entre muitos outros,
em sua práxis. E é assim que o sujeito se significa no que significa.
Escrever, ler, reler, reformular, reescrever. A produção de um texto é
uma práxis em que o sujeito se ouve, em sua formulação4. Pela atenção,
ele puxa para si um sentido na possibilidade de outros, na assunção de
sua autoria. Assim é que interioridade e exterioridade se articulam, no
processo discursivo.
Ao trabalhar a língua em seu funcionamento, as reflexões de Said
Ali sobre as “expressões de situação” nos oferecem ocasião, enquanto
analistas de discurso, de elaborarmos as múltiplas possibilidades de
compreensão do que é um texto. E, ainda mais amplamente, traz, entre
outras consequências, a de avançarmos em nossa compreensão da
relação gramática e texto, língua e discurso, estrutura e acontecimento.
E foi isso que procuramos fazer nessa reflexão, como releitura de Said
Ali.

Bibliografia

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Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1971.
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Biblioteca da Academia de Letras, 2008.
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BARTHES, R. Roland Barthes par Roland Barthes, Paris: Points, 1975.
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e L.Neri (trad.), São Paulo: Ed. Nacional e Ed. Da Universidade de São
Paulo, 1970.
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RIOS, J. Epígrafe do livro de R. Ferro Escritura y desconstrucción -
Lectura (h)errada com Jacques Derrida, Buenos Aires: Biblos,
1992.

Notas

* Doutora em Linguística pela Universidade de Sâo Paulo e pela Universidade de


Paris/Vincennes. E pesquisadora do Laboratório de Estudos Urbanos e professora
colaboradora do IEL da Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é professora
visitante da Unemat, atuando no ProfLetras e em Linguística.
1 Penso, aqui, em Benveniste (1970) e a noção de “tempo”, na teoria da enunciaçâo,
diferentemente do que se a pensa na gramática.
2 Observe-se que ele nomeia como “meios” e nâo “formas” de expressão.
3 Nos colchetes, que sâo uma escritura, o que aparece é a interpretação, logo, ele já está
introduzindo aí a questão da significação.
4 Ou deveria....

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167
DOI: 10.20396/lil.v25i49.8670121

Said Ali: em torno de um acontecimento e de um


percurso

Said Ali: around an event and a path

Eduardo Guimarães*
D L - IE L /L abeurb
U nicam p/U nem at/C N P q

Resumo: Para analisar um certo percurso da obra de Said Ali, decisivo


na história das idéias linguísticas no Brasil, tomo dois acontecimentos.
De um lado a publicação da Gramática Secundária (uma gramática
normativa, que ele chama de prática) e a publicação de Estrutura da
Língua Portuguesa de Mattoso Câmara, em 1970. Com esta análise
procuramos refletir sobre a questão do purismo, de um lado, e da
consideração de uma norma linguística na obra de Said Ali, de outro.
Podemos observar que, se ele considera a questão da norma
linguística, de uma língua escrita como modelo, ele é radiccdmente
contra o purismo da língua, considerando sua história e suas relações
com outras línguas. Feito o percurso, podemos considerar que o
sentido do acontecimento que tomamos para análise tem no seu
passado os trabalhos publicados em Dificuldades da Língua
Portuguesa, a Lexeologia do português histórico e Formação das
palavras e sintaxe do português histórico; no seu presente, a
enunciação das definições de gramática; e no futuro o que o
acontecimento projeta como sentido, no caso, entre outras coisas, a
realização de uma gramática descritiva da língua portuguesa. Um
aspecto importante no seu trabalho é o modo como nele opera um
sujeito psicológico da linguagem e um sujeito da língua, o povo, com
todas as suas divisões. Tomando seu trabalho nas condições de seu
tempo, vemos como ele é decisivo e projeta outras condições para as
descrições do português no Brasil .

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Palavras-chave: Said Ali, Gramática, Sujeito, Purismo, Norma
linguística, Língua portuguesa.

Abstract: To analyze a certain path o f Said Ali ’s work, decisive in the


history o f the linguistic ideas in Brazil, I take two events. The
publication o f the Gramática Secundária (a normative grammar, which
he calls practice), and the publication o f Estrutura da Língua
Portuguesa, by Mattos o Câmara, in 1970. With this analysis, we seek
to reflecton the issue ofpurism, on the one hand, and the consideration
o f a linguistic standard in Said Ali ’s work, on the other hand. We can
observe that, i f he considers the question o f the linguistic standard, o f
a written language as a model, he is radically against the purism o f the
language, considering its history and its relations with other languages.
After the path done, we can consider that the meaning o f the event that
we take fo r analysis has in his past the works published in Dificuldades
da Língua Portuguesa, a Lexeologia Histórica e Sintaxe e Estilística;
in his present, the enunciation o f the definitions o f grammar; and in the
future what the event projects as meaning, in this case, among other
things, the realization o f a descriptive grammar o f the Portuguese
language. An important aspect o f his work is the way in which a
psychological subject o f the language and a subject o f the language,
the people, operate in it, with ali its divisions. Taking his work in the
conditions o f his time, we see how he is decisive and projects other
conditions fo r the descriptions o f Portuguese in Brazil.

Keywords: Said Ali, Grammar, Subject, Purism, Linguistic standard,


Portuguese language.

A obra de Said Ali é decisiva na história dos estudos sobre a língua


portuguesa e a linguagem no Brasil. Razão suficiente para incluí-lo
entre os nomes importantes na história dos estudos linguísticos no
Brasil e para que se dedique um espaço particular de reflexão sobre seu
lugar na história das idéias linguísticas sobre o Estudo do português.
Procurarei refletir a seguir, a partir da observação de dois
acontecimentos que fazem parte da história das idéias linguísticas no
Brasil, o que eles podem significar sobre o lugar de Said Ali nestes
estudos.

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De um lado a publicação da Gramática Secundária em 1924 onde
encontramos:

A gramática de uma língua pode ser histórica ou


descritiva.
A Gramática Histórica é aquela que estuda a
evolução dos diversos fatos da língua desde a sua
origem até a época presente.
Gramática descritiva é Prática quando tem
principalmente em vista ensinar a falar e a
escrever corretamente: é científica quando
procura esclarecer vários fatos à luz da ciência da
linguagem e da gramática histórica (Ali, 1924,
15).

De outro lado a publicação de Estrutura da Língua Portuguesa de


Mattoso Câmara Júnior em 1970, onde encontramos:

A Gramática descritiva ou sincrônica é o estudo


do mecanismo pelo qual uma dada língua
funciona, num dado momento (gr. Syn “reunião”,
chrónos “tempo”), como meio de comunicação
entre os seus falantes, e na análise da estrutura, ou
configuração formal, que nesse momento a
caracteriza (Mattoso, 1970, p. 11)

E em seguida ele diz:

A gramática descritiva, tal como a vimos


encarando, faz parte da linguística pura. Ora,
como toda ciência pura e desinteressada, a
linguística tem a seu lado uma disciplina
normativa, que faz parte do que podemos chamar
a linguística aplicada a um fim de comportamento
social. Há assim, por exemplo, os preceitos
práticos da higiene, que é independente da
biologia. Ao lado da sociologia, há o direito, que
prescreve regras da conduta nas relações entre os
membros de uma sociedade, (idem. p.15).

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1. Sobre o Acontecimento

Tomemos inicialmente o primeiro dos acontecimentos acima


apresentados. Este acontecimento significa pela temporalidade que
constitui: um passado de sentidos deste acontecimento de definição; o
presente da definição que significa enquanto uma definição para a
gramática secundária e enquanto uma relação com os outros tipos de
gramática; e um futuro da definição que, entre outras coisas, abre uma
projeção de sentidos possíveis. Para melhor caracterizar os sentidos
desta temporalidade, vamos levar em conta o acontecimento futuro da
produção de Estrutura da Língua Portuguesa de Mattoso Câmara e o
percurso de Said Ali na história dos estudos do português do Brasil.
O acontecimento da publicação da Gramática Secundária coloca
uma questão a propósito da posição de Said A li1 no debate, daquela
época, em tom o do purismo e do lugar do conhecimento normativo
sobre as línguas e a linguagem. Said Ali define os três tipos de
Gramática e realiza, no acontecimento considerado, a gramática
normativa (técnica).
Said Ali é um gramático cuja autoria se faz já numa história
brasileira da gramática. Nas suas gramáticas, a secundária, a elementar
e a histórica, ele já enuncia de uma posição de autoria brasileira
constituída pelos gramáticos do fim do século XIX e início do XX2.
Ele é responsável por descrições decisivas para a análise da língua
portuguesa no Brasil no início do século XX. Basta lembrar, entre
outras coisas, a) sua descrição das formas verbais em -ria, que ele já
considerava, na passagem do século XIX para o XX, como um futuro
do pretérito e não um modo condicional; descrição que se impôs, mais
tarde, na tradição gramatical brasileira (seu texto “O Futuro” foi
incluído, em 1908, em Dificuldades da Língua Portuguesa, outro
clássico da linguística brasileira); b) suas análises do infinito e da
colocação dos pronomes oblíquos átonos no português do Brasil; c) sua
gramática histórica inovadora para as condições brasileiras e de
descrição do Português.
Tomemos o acontecimento da publicação da Gramática Secundária.
O que há de propriamente específico neste acontecimento não é que ele
deixa de definir a gramática como normativa, definindo-a como
descritiva ou científica.

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171
Para melhor caracterizar sua posição, lembremos que esta definição
da gramática já se apresenta no processo da gramatização brasileira do
português, na segunda metade do século XIX3. Neste processo histórico
passa-se da definição de Jerônimo Soares Barbosa que define a
gramática como “a arte de fallar e escrever correctamente a própria
língua” (Barbosa, 1822, p. 1), segundo a tradição clássica greco-
romana, para uma nova posição. A gramática, na tradição clássica é
uma arte tal como a retórica e a dialética, cuja finalidade, no caso da
gramática, é ensinar a correção no uso da linguagem.
Podemos lembrar que gramáticos daquela época, deslocando-se da
relação com a gramática filosófica, apresentam definições científicas
para suas gramáticas. Júlio Ribeiro (1881) define: “Grammatica é a
exposição metódica dos fatos da língua” (p. 1); Pacheco Silva Júnior e
Lameira de Andrade (1887) definem:

Gramática geral é o estudo, em toda sua extensão,


dos factos e das leis da linguagem escripta e
falada.
É o conjunto dos processos comuns a muitas
línguas comparadas (p. 65).

Ou seja, encontramos aqui, pela via de uma filiação à linguística


histórica do século XIX, a busca de uma concepção de gramática não-
normativa. Ambos se colocam na posição de que a gramática é uma
descrição, uma exposição de fatos da língua, e não um conjunto de
regras de bem falar e escrever. Apesar das definições, as gramáticas que
produziram são gramáticas normativas, e tal como elas e muitas outras,
se caracterizam por apresentar regras de formação de plural, de
feminino; por apresentar paradigmas verbais; e de apresentarem uma
seção sobre, por exemplo, vícios de linguagem.
A especificidade do acontecimento da Gramática Secundária não
diz respeito a produzir uma gramática científica, ou descritiva, tal como
produziu Mattoso Câmara com Estrutura da Língua Portuguesa, por
exemplo. O que este acontecimento produz é um novo lugar no domínio
da gramática no Brasil4. O que este acontecimento da Gramática
Secundária produz é formular explicitamente um lugar para uma
gramática prática (normativa) ao lado do lugar da gramática descritiva,
ou vice-versa, na história da gramática no Brasil5. Said Ali, ao fazer sua

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gramática secundária, a define como prática (normativa), de modo
consistente, e define, embora não a produza, o lugar de uma gramática
científica.
Além de definir com clareza a diferença, ao enunciar sua tipologia
submete a gramática descritiva científica à ciência da linguagem e à
gramática histórica. Ao Contrário, a gramática descritiva prática
(normativa) não se põe nesta vinculação6. O ponto de articulação desta
separação teórica entre os dois tipos de gramática descritiva está em que
o corte que estabelece o objeto da gramática histórica em oposição ao
da descritiva distingue todos os períodos passados de uma língua, de
um lado, e a época em que o linguista está e realiza o seu trabalho, de
outro. Produzida a distinção, a gramática descritiva científica aparece
como uma descrição da língua no momento de sua atualidade com o
linguista.
O acontecimento da publicação da Gramática Secundária enuncia a
distinção entre dois tipos de gramáticas descritivas, uma prática
(normativa) e outra científica. Instala-se na história da Gramática no
Brasil o lugar, que segundo penso, não se produzira até então, da
gramática descritiva científica. Este lugar fica posto desde este
momento e será pela primeira vez preenchido, no meu entender, por
Estrutura da Língua Portuguesa de Mattoso Câmara em 1970.
Não estou dizendo que o estudo científico, descritivo, se inicia com
Estrutura da Língua Portuguesa. Digo, simplesmente, que esta obra de
Mattoso, sob meu ponto de vista, é a primeira gramática descritiva do
português no Brasil. E sabemos que não só Mattoso, mas também
outros, já faziam análises científicas, descritivas em seus textos. O
fundamental aqui é que, tal como disse em Guimarães (2004) “esta
distinção de tipos de gramática é a formulação de um lugar para a
gramática descritiva científica é sua marca (de Said Ali) enunciativa
numa história brasileira. E no sentido de que estar na história é instalar
uma temporalidade de sentidos”. No caso presente, Said Ali instala a
temporalidade na qual passa a significar uma gramática descritiva não-
normativa, mesmo que ele não a tenha produzido.

2. A Produção de Said Ali: o Sujeito Psicológico e o Sujeito Povo

Consideremos agora, na obra de Said Ah, a realização de estudos de


descrição do português. Estudos que já se apresentam, desde a

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passagem do século XIX para o século XX, com a publicação do
Dificuldades da Língua Portuguesa. Este trabalho rigoroso de análise
aparece registrado, por exemplo, por Mattoso Câmara:

Já Said Ali concentrou-se em certos problemas


específicos de categorias gramaticais em
português, como a conceituação do chamado
“condicional”, que ele interpretou
fundamentalmente como um “futuro do
pretérito”, a função da partícula se na
caracterização da forma verbal, o valor dos
tempos compostos do auxiliar ter em locução com
um particípio perfeito, que ele considerou
primordialmente como uma expressão do aspecto
“perfectivo” (Ali, 1930, 1931). (MATTOSO,
1966).

Said Ali tem, sua obra mostra isso, essa capacidade de analisar a
língua com extremo rigor colocando-a na sua história.
Ou seja, ele é uma gramático que descreve fatos de língua, e é
também um gramático que considera como decisivo ensinar a escrever
e falar corretamente, a ponto de produzir uma gramática normativa,
mesmo que seus trabalhos pudessem levar a um a gramática científica.
Eu diria que se trata, na sua obra, de uma decorrência de ele ainda tomar
como objeto de análise não a língua, mas a língua nacional. E isto está
diretamente relacionado com o que coloquei no início sobre o limite
entre o normativo e o purismo.
Em “Lexeologia do Português Histórico” em 1921, posteriormente
incorporada à sua Gramática Histórica da Língua Portuguesa (1931),
encontramos:

Não dissocio do homem pensante e da sua


psicologia as alterações porque passou a
linguagem em tantos séculos. É a psicologia
elemento essencial e indispensável à investigação
de pontos obscuros. As mesmas leis fonéticas
seriam inexistentes sem os processos da memória
e da analogia. Até o esquecimento, a memória
negativa, é fator, e dos mais importantes, na
evolução e progresso de qualquer idioma.

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Adotado semelhante método de pesquisa,
adquiriu o livro certo aspecto de lexeologia
semântica, ou, se preferirem, de semântica
lexeológica, destoando assim de vetusto sistema
de classificação (ALI, 1931, p. 7).

Nesta passagem ele formula o lugar de um sujeito psicológico para


a linguagem. Da sua posição de que não se pode reduzir a linguagem
ao lógico e gramatical, diz que o elemento psicológico é indispensável
para a compreensão das mudanças linguísticas, inclusive as
gramaticais.
Assim o sujeito da linguagem é psicológico. É este sujeito que, ao
falar, produz mudanças na língua. O psicológico, tal como diz também
no prólogo de Meios de Expressão e Alterações Semânticas, faz parte
de sua narrativa pela qual seu trabalho opõe-se ao “antigo ”, ao
“vetusto ” . Em Meios de Expressão e Alterações Semânticas, ele se
reportará ao “homem normal”, o “indivíduo”, N a Lexeologia este
sujeito é significado como o “homem pensante”.
Nesta medida a semântica é caracterizada como ocupando-se da
mudança de sentido das palavras produzida por este sujeito psicológico.
Por outro lado, na parte sobre “Alterações Semânticas” do Meios de
Expressão, Said Ali procura descrever as mudanças de sentido de um
conjunto de palavras, tomadas uma a uma, como sendo um processo da
língua fora do sujeito. Desde a seção inicial desta parte nos diz:

Nas seguintes páginas exponho as alterações


semânticas por que passaram várias expressões da
língua portuguesa, mostro as épocas em que as
acepções diferiram das atuais e explico, sempre
que posso, as causas das mudanças (ALI, 1927, p.
55).

Há extensão ou alargamento quando um termo de


sentido especial passa a ter sentido geral (idem,
ibidem).

Quando um termo se usa com várias acepções diz-


se que há polissemia (idem, p. 57).

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Estas sequências parecem formular o funcionamento da língua na
relação consigo mesma.
Ao iniciar a descrição das mudanças semânticas da primeira palavra
que considera (“anatomia”) diz:

Do termo científico anatomia cedo se apoderou o


vulgo para lhe atribuir sentido depreciativo.
Usava-o de preferência no plural (idem, p. 58).

A escrituração enunciativa da sequência opõe “termo científico” a


“vulgo”, o que faz aparecer “científico” como oposto a “vulgar” e
“cientista” como oposto a “vulgo”. Por esta via formula-se uma
distinção de tipos de sujeito: “os cientistas” e “o vulgo”, e isto faz entrar
em cena toda uma tipologia de lugares sociais do sujeito, na qual está
“pessoas educadas”, etc. A este propósito é significativa a sequência
abaixo:

Por influência da ciência médica todo o mundo


hoje diz pulmão, pulmões e até pneumonia (quase
sempre dupla) (idem, p. 60).

Aqui não fica formulada a significação do vulgar (o que aparece é


todo o mundo). Isto indica a exclusão do vulgo da classe das pessoas
educadas.
É interessante ver que a entrada deste sujeito social põe de pronto a
questão da correção e da normatividade no uso da língua, por um viés
em que Said Ali aparece na posição de quem a considera.
Normatividade que fica remetida a estas distinções sociais
estratificadas.
Se observamos a terceira parte do livro Meios de Expressão,
“Aquisições Novas - Estrangeirismos”, vamos reencontrar o debate
sobre o purismo e uma formulação mais direta de um sujeito social.

A atitude hostil, e não raro exagerada, contra os


vocábulos que chegam por via francesa, deve-se à
reação purista de alguns escritores de fins do
século XVIII e princípios do século XIX,
impressionados com o gosto que se vinha
tomando pelo falar do civilizado povo d’além-

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Pirineus. Termos franceses sem necessidade
alguma se iam já substituindo a expressões usadas
desde tempos imemoriais (idem, p. 82).

Aqui Said Ali formula a atitude purista, contrapondo-se a ela pela


determinação de “e não raro exagerada” . Ao mesmo tempo, nomeia o
sujeito da língua envolvido neste debate purista: o povo. E ao nomear
este sujeito, a questão do purismo localiza uma distinção entre línguas
nacionais também no plano político: língua da França (“termos
franceses”), língua de Portugal, língua do Brasil (“aqui no Brasil”).
Para entender melhor sua posição sobre o purismo, observemos o
que Said ali diz em “O Purismo e o Progresso da Língua Portuguesa”,
de 1914, incluído no Dificuldades.
Nos quatro primeiros parágrafos do texto o autor afirma a
superioridade da escrita que leva a uma

...esfera superior mais pura. As mesmas


vulgaridades da vida não lhe parecem dignas de
serem descritas senão em linguagem acima da
vulgar (ALI, 1914, p. 163).

Em seguida toma a linguagem escrita como modelar:

Deve ter sido um deus o que inventou a divina arte


de escrever. Os gênios por ele inspirados fundam
e criam a linguagem literária, o falar culto, aquele
que serve de modelo à posteridade, modificado
com o progredir dos tempos, com o
desenvolvimento intelectual e material de uma
nação, mas a mesma linguagem na essência
(idem, ibidem).

Ao colocar o caráter modelar, portanto normativo, da linguagem


escrita, afirma sua relação com a Nação e seu desenvolvimento. E a
operação enunciativa de estabelecer o escrito como modelar é
determinado, por reescrituração, por “falar culto”. Em seguida diz:

Vive e prospera essa linguagem enquanto houver


povo que a fale; cessa de medrar e toma-se
estacionária, ou pelo extermínio do povo, ou

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quando este aceita, com a dominação estrangeira,
novo idioma e repudia o nativo (idem, ibidem).

Que é seguido por

Exalçam-se em prosa e em verso as excelências da


língua nacional (idem, ibidem).

Aqui também se formula qual o sujeito da língua nacional: o povo.


Se o povo fala uma língua (idioma) ela se mantém, se não a fala ela
desaparece. E o povo é especificamente o sujeito da língua (idioma)
nacional. E o povo enquanto sujeito da língua nacional é só a parte do
povo que o “falar culto” extrai da totalidade do mesmo povo. Assim a
divisão social, ao se sobrepor à divisão política, produz uma divisão do
sujeito-povo tal que enunciam em língua nacional aqueles
caracterizados pelo “falar culto”.
Neste contexto Said Ali se opunha expressamente ao purismo:

Com a expansão natural do vocabulário,


consequência inevitável do progresso intelectual e
material e do contato com outras nações, mal se
concilia a doutrina que defende a pureza da
linguagem (idem, p. 169).

Assim se seu estudo de mudanças semânticas e de aquisições novas


(ou seja, de sua semântica lexical) opera relativamente a um sujeito
psicológico da linguagem, opera por outra parte relativamente a um
sujeito social que ora se divide em tom o de uma divisão política das
nações em que o sujeito é o povo, ora se divide em tom o de uma divisão
social entre o formal e o vulgar, o científico e o geral, etc.

3. Said Ali na Conjuntura de seu tempo

Gostaria de tratar do lugar de Said Ali, a partir do acontecimento que


tomei, considerando o cotejo com o acontecimento da publicação de
Estrutura da Língua Portuguesa.
Se tomo o período da produção de Said Ali observa-se que as
condições de seu trabalho se dão já depois da colocação em curso da
gramatização brasileira da língua portuguesa que faz parte da

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constituição do português como língua Nacional do Brasil e da
constituição da autoria brasileira de gramática7, que se deu, segundo
minha periodização (Guimarães, 2004, p. 23 e ss), no final do primeiro
período em tom o de 1887 - tomo como divisor o estabelecimento dos
exames preparatórios.
No segundo período8 é que se dá a principal produção de Said Ali.
Neste período podem-se observar acontecimentos políticos decisivos
como o fim da escravidão e a proclamação da república. Por outro lado,
mantém-se neste período um cenário intelectual de uma disputa em
tomo do purismo que vai se alterando pela produção sobre a língua de
gramáticos e estudiosos como Julio Ribeiro, João Ribeiro, Pacheco
Silva e Maximino Maciel. Este conjunto de condições desdobra uma
produção contra o purismo, tanto no estudo gramatical como o de Said
Ali, como uma produção de conhecimento sobre divisões da língua
(dialetos, falares) como os de Amadeu Amaral (1920) e Antenor
Nascentes (1922). Ambos da mesma década da publicação da
Gramática Secundária. Antes deste momento Said Ali já publicara em
1908 Dificuldades da Língua Portuguesa, e partes da Lexeologia do
português histórico e da Formação das palavras e sintaxe do português
histórico que formam a Gramática Histórica publicada em 1931, ano
da publicação do Dicionário Etimológico de Nascentes.
Assim é preciso ver a força e importância desse trabalho de Said Ali
sobre a língua portuguesa que projeta já posições que serão mais
especificamente desenvolvidas no terceiro período, como no trabalho
de Mattoso Câmara, e que põe em curso as posições da descrição da
língua, na relação com a linguística histórica que permanece.
É interessante observar que, nesse terceiro período9, certos estudos
de Said Ali, que já estão no Dificuldades da Língua Portuguesa, serão
capturados pelaN G B, como o estudo das formas verbais em -ria. Nesse
estudo, como sabemos, ele, ao tratar estas formas verbais, as considera
como um futuro do pretérito, considerando a inexistência do modo
condicional. De certa maneira seu estudo sobre a colocação dos
pronomes oblíquos, flexibilizando o modo português de posicionar os
pronomes oblíquos átonos, é adotado nas gramáticas normativas. Nesta
medida sua posição de tomar, como disse antes, como objeto, a língua
nacional, é parte dos elementos que levam a estas capturas.
Uma última coisa, se a ciência no Brasil tem um percurso
(considere-se a colonização) que lutou, e ainda luta, contra as

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dificuldades para se chegar a uma produção relevante e de ampla
circulação, podemos dizer que a produção de Said Ali coloca em cena
uma produção decisiva para o conhecimento do português (enquanto
língua nacional).

Conclusão

Feito o percurso, podemos considerar que o sentido do


acontecimento que tomamos para análise tem no seu passado os
trabalhos publicados em Dificuldades da Língua Portuguesa,
Lexeologia do português histórico e Formação das palavras e sintaxe
do português histórico-, no seu presente, a enunciação das definições de
gramática; e no futuro o que o acontecimento projeta como sentido, no
caso, entre outras coisas, a realização de uma gramática descritiva da
língua portuguesa. Percorrendo o tempo, tomado como elemento de
referência, tendo em vista o acontecimento da publicação do Estrutura
da língua Portuguesa, podemos considerar que ele está significado de
algum modo no acontecimento da definição de Said Ali.
Por outro lado, pensando no percurso, podemos dizer que Said Ah,
não só ele é claro, está determinado por uma conjuntura que se desdobra
do processo da abolição da escravidão, tirando o Brasil do modo de
produção escravocrata, e da proclamação da República, abrindo a
história do Brasil para a democracia, a federação (a constituição dos
Estados do Brasil) e a república. E nestas condições é forte a presença
da luta intelectual que tom a sua a língua do colonizador como língua
nacional.

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Notas

* Doutor em Letras pela Universidade de Sâo Paulo (USP). É professor titular da


Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Professor Visitante da Universidade
do Estado de Mato Grosso (Unemat).
1 Manuel Said Ali nasceu em 21 de outubro de 1861, foi professor de Alemão do
prestigioso Colégio Pedro II do Rio de Janeiro, é autor de insubstituíveis descrições do
português, autor de uma Gramática Histórica da Língua Portuguesa, de 1931, clássica

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desde seu lançamento, além de uma Gramática Secundária da Língua Portuguesa, por
tantos compulsada e citada. Faleceu em 22 de maio de 1953, aos 92 anos.
2 Sobre esta questão da autoria da gramática e da história brasileira da gramática ver
Orlandi (1997, 2000) e Orlandi e Guimarães (1998). Sobre a história brasileira da
gramática ver também Guimarães (2004).
3 Para uma análise mais ampla destas questões ver Orlandi. e Guimarães (1998).
4 Sobre a história da gramática e os estudos do português no Brasil ver Orlandi e
Guimarães (1998) e Guimarães (2004)
5 Não se pode deixar de ver, em definições como a de João Ribeiro (“Gramática
descritiva, ou prática, é a arte que ensina a falar e escrever corretamente, isto é, segundo
o uso das pessoas cultas”), uma pré-formulaçáo, que distinguiria uma gramática prática
de outra científica, insinuar-se pelo “ou prática”.
6 Sobre anormatividade nos estudos da linguagem, tanto em geral, quanto relativamente
ao comparativismo, ver Auroux (1998), notadamente a parte “La Linguistique est une
Science normative”.
7 Sobre a questão da autoria da gramática na história brasileira da gramática ver Orlandi
(1997, 2000).
8 Este período vai de 1887 a 1933 conforme está em Guimarães (2004).
9 Este período vai de 1934 a 1961, ver Guimarães (2004).

Líng. e Instrum. Linguíst., Campinas, SP, v. 25, n. 49, p. 168-182, jan./jun. 2022.
182
DOI: 10.20396/lil. v25i49.8669259

Coordenação e subordinação na obra de Said Ali:


tradição e modernidade

Coordination and subordination in the work of Said


Ali: tradition and modemity

José Carlos de Azeredo*


UERJ

Resumo: E notável o interesse atual dos linguistas brasileiros pela


história do pensamento gramatical entre nós. Uma das linhas dessa
moderna reflexão se concentra nos indicadores de autonomia do autor
brasileiro em face da herança colonial. Já consensual entre os
pesquisadores dessa história - que em geral acompanham a proposta
de Antenor Nascentes (1935) o marco inicial dessa fase de
autonomia é a publicação da Gramática Portuguesa, de Júlio Ribeiro,
em 1881. Na opinião de vários linguistas contemporâneos, o
mencionado movimento de autonomia prometia uma expansão de
reflexões que acabou sustada pelo advento da Nomenclatura
Gramatical Brasileira, em 1959. De certa forma, foi também no caldo
dessa tese que ganhou tempero o referido interesse pelo
aprofundamento da formação do pensamento gramatical brasileiro.
Comprovada ou não, ela já deu um auspicioso fruto: a motivação para
a descoberta, pelas novas gerações de estudiosos da língua, do legado
de pensadores do vulto de Manuel Said Ali, cmtecipador de conceitos
reconhecidos como pedras-de-toque de teorias modernas sobre a
enunciação e a significação.

Palavras-chave: Historiografia gramatical, Said Ali, Processos


sintáticos. Conjunções coordenativas.

Líng. e In stru m . L in jjjí s t , C a m p in a s, SP, v. 25, n. 49, p. 183-198, ja n ./ju n . 2022.


183
Abstract: The current interest o f Brazilian linguists in the history o f
grammatical thought among us is remarkable. One o f the lines o f this
modern reflection focuses on the indicators o f the Brazilian author's
autonomy in the face o f colonial heritage. Already consensual among
researchers o f this history - who generally follow the proposal o f
Antenor Nascentes (1935) -, the starting point o f this phase o f autonomy
is the puhlication o f the Grammatica Portugueza, by Julio Ribeiro, in
1881. In the opinion o f several contemporary linguists, the
aforementioned autonomy movement promised an expansion o f
reflections that ended up being stopped by the advent o f the Brazilian
Grammatical Nomenclature, in 1959. In a way, itwas also in the broth
o f this thesis that the aforementioned interest in deepening the
formation o f Brazilian grammatical thought gained flavor. Whether
proven or not, it has already borne an auspicious fruit: the motivation
fo r the discovery, by new generations o f language scholars, o f the
legacy o f thinkers such as Manuel Said Ali, an anticipator o f concepts
recognized as touchstones o f modern theories about enunciation and
meaning.

Keywords: Grammatical historiography, Said Ali, Syntactic processes,


Coordinating conjuctions.

Meu primeiro contato com a obra de Said Ali se deu em 1965,


quando cursava o terceiro ano clássico no Liceu Nilo Peçanha, de
Niterói, e me preparava para o vestibular em Letras. O colégio era
equipado com um a boa biblioteca. Lembro-me de aí de ter consultado
algumas vezes, por indicação do professor, as Lições de Português, de
Sousa da Silveira - referência que mantenho ativa em minhas aulas - ,
mas o que ganhou uma posição singular na minha lembrança daquele
tempo foi a impressão causada pela leitura das primeiras páginas do
longo ensaio intitulado “Expressões de situação”, constante de outra
obra: Meios de expressão e alterações semânticas, de Manuel Said Ah.
Para alguém que tinha um conhecimento descritivo da língua moldado
apenas pelos ensinamentos de gramáticas escolares convencionais, o
impacto era inevitável.
No ano seguinte (1966), já frequentando o curso de Letras na UFRJ,
pude dispor, domesticamente, de um exemplar da sexta edição das

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Dificuldades da Língua Portuguesa, publicada nesse ano pela Livraria
Acadêmica, com texto estabelecido por Maximiano de Carvalho e
Silva. A surpresa só não foi maior porque, àquela altura, eu já tinha
cursado a disciplina de Introdução à linguística ministrada por Joaquim
Mattoso Câmara Jr. e tomado conhecimento de um novo modo de
entender a natureza e o papel da linguagem humana. O trecho abaixo,
transcrito do primeiro capítulo dos Princípios de linguística geral, de
sua autoria, resumia, para mim, esse novo olhar:

[...] a linguagem está indissoluvelmente associada


com a atividade mental humana [...]. A filosofia
moderna é unânime em reconhecer que não se
trata de um recurso para expressar pensamentos,
emoções e volições. É, muito mais que isso, o
meio essencial para se chegar a esses estados
mentais. [...] A compreensão do mundo exterior e
interior resume-se numa construção e
representação desse mundo dentro do nosso
espírito, através de um trabalho mental que
depende da linguagem como a marcha animal
depende das pernas. (CÂMARA JR., 1977, p. 22)

Anos depois eu encontraria em um a obra de John Searle


ponderações sobre as interfaces da linguística e da filosofia que me
religavam com a passagem supracitada dos Princípios :

Até bem pouco tempo atrás, parecia possível


traçar uma linha divisória, ainda que tênue, entre
a linguística e a filosofia da linguagem: a
linguística lidava com os fatos empíricos das
línguas humanas naturais; a filosofia da
linguagem, com as verdades conceituais
subjacentes a qualquer língua ou sistema de
comunicação possível. No quadro dessa distinção,
o estudo dos atos de fala parecia situar-se
claramente no campo da filosofia da linguagem e,
até poucos anos atrás, a maior parte das pesquisas
sobre atos de fala foi realizada por filósofos, e não
por linguistas. Ultimamente, porém, tudo isso
mudou. (...) A colaboração entre linguistas e

Líng. e In stru m . Linguíst., C am p inas, SP, v. 25, n. 49, p. 182-198, ja n ./ju n . 2022.
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filósofos é especialmente frutífera quando se
estuda o que considero ser uma das questões mais
interessantes no âmbito do estudo da linguagem:
como estrutura e função interagem? Ela envolve
questões como, por exemplo: que relação existe
entre as formas sintáticas pelas quais elas se
realizam nas várias línguas naturais humanas?
(SEARLE, 1995, p. 291-292)

O que essa observação tem a ver com a obra de Manuel Said Ali? A
resposta está em muitos dos seus textos, especialmente nos ensaios que
compõem o já mencionado Meios de expressão e alterações
semânticas, em que se lê, por exemplo, a seguinte ponderação:

Uma coisa é dirigirmo-nos à coletividade, a


pessoas desconhecidas, de condições diversas, e
que nos ouvem caladas; outra coisa é tratar com
alguém de perto, falar e ouvir, e ajeitar a cada
momento a linguagem em atenção a essa pessoa
que está diante de nós, para que fique sempre bem
impressionada com as nossas palavras. (SAID
ALI, 1951, p. 49).

A abordagem da língua em Said Ali antecipa vários conceitos que


em geral associamos a teorias modernas, como dado e novo,
pressuposição, implicatura, atos de fala, efeito de sentido,
indeterminação estrutural ou instabilidade categorial, entre outros.

A obra de Said Ali na avaliação de seus pares

A formação do pensamento gramatical brasileiro, tal como ele se


apresentava nas décadas finais do século XIX e início do século XX,
mereceu uma primeira síntese escrita pelo professor sergipano
Maximino Maciel, em um apêndice à edição de 1910 de sua
Grammatica Descriptiva. Sob o título ‘Breve retrospecto sobre o ensino
da língua portuguesa’, esse apêndice caracterizava a produção
gramatical do período como um esforço conjunto de filólogos e
gramáticos no sentido de oferecer os meios bibliográficos de dar

Líng. e In stru m . Linguíst., C am p inas, SP, v. 25, n. 49, p. 182-198, ja n ./ju n . 2022.
186
cumprimento ao Programa para os Exames Preparatórios, formalizado
em 1887 (RIBEIRO, 1887).
As obras a que se referia M. Maciel se destacavam por dois aspectos:
o alinhamento com as novas teorias linguísticas que vinham sendo
elaboradas nos meios acadêmicos europeus, principalmente, e a
afirmação da autonomia do pensamento gramatical brasileiro em face
da matriz lusitana. Maciel não teve dúvida em incluir nesse rol, apesar
de não se tratar de uma gramática, as Dificuldades da língua
portuguesa, surgidas em 1908, como obra que encarnava o espírito do
novo tempo, uma vez que nela estavam compilados “excelentes artigos
em que (o autor) deslinda fatos controversos, com opinião pessoal”
(MACIEL, 1910 [1894], p. 446).
Duas décadas e meia depois, no clássico “esboço histórico”
intitulado A filologia portuguesa no Brasil (Estudos filológicos,
publicação da ABL, 2003), Antenor Nascentes foi ainda mais enfático:

Em 1908, aparece um dos mais notáveis trabalhos


filológicos jamais publicados no Brasil:
Dificuldades da Língua Portuguesa, de Manuel
Said Ali. Trabalho de fôlego, original de ponta a
ponta, constitui uma série de estudos que resolve
de modo cabal muitas questões que andavam em
discussão: a do infinitivo pessoal, a do se sujeito,
a dos nomes geográficos, etc. (NASCENTES,
2003 [1939], p. 199).

Algum tempo depois, em 1961, foi a vez de Joaquim Mattoso


Câmara Jr. referir-se às Dificuldades da língua portuguesa como “uma
coletânea de estimulantes artigos sobre questões de doutrina
gramatical” (CÂMARA JR., 2004, p. 224).
A maior parte da obra de Said Ah se destinava, como se sabe, ao
público especializado, em particular o público universitário. No
entanto, o conjunto dela é atravessado pela preocupação em pôr as
convicções teóricas e o produto da pesquisa a serviço da renovação da
análise da língua para fins pedagógicos. Percorre muitas de suas
reflexões um tom descontraído com que o pesquisador erudito, na pele
e na voz do educador, leva o leitor a sentir que o assunto abordado lhe
diz respeito, faz parte de sua condição de ser social integrado no
cotidiano, como nesta passagem das Investigações Filológicas (1975,

Líng. e In stru m . Linguíst., C am p inas, SP, v. 25, n. 49, p. 182-198, ja n ./ju n . 2022.
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p. 76), em que comenta a diferença de efeitos entre ‘olhar’ e ‘olhar
para’:

O entendedor de arte olha uma estátua grega por


todos os lados; o leigo olha para ela, quiçá com
um pouco de snobismo, e passa adiante. (SAID
ALI, 1975, p. 76)

E acrescenta:

Olhar alguma coisa (verbo transitivo) denota,


como acima indicamos, juntamente com o
conceito de aplicar a vista, o de prestar atenção.
Esta componente transluz com intensidade ora
maior, ora menor, podendo chegar ao ponto de
apagar o sentido originário do verbo. O familiar
olha (olhe) anteposto (ou interposto) a todo o
momento a conselhos, admoestações e
informações, nada mais quer dizer senão “presta
(preste) bem atenção ao que eu digo”. Até entra,
nas conversações por telefone através do qual,
pelo menos até agora, nada se enxerga (ibid., loc.
cit.)

Conjunções coordenativas nos primórdios do pensamento


gramatical brasileiro

Para mostrar o que, a meu juízo, é um fato singular na contribuição


de Said Ah para a análise dos processos de coordenação e de
subordinação, vou fazer um breve percurso pelas páginas de outras
obras dessa mesma fase. Meu foco é o elenco das relações de sentido
expressas pelos conectivos de coordenação, segundo alguns autores
mais destacados. São eles: Júlio Ribeiro (1881/1885), Maximino
Maciel (1894/1910), João Ribeiro (1887/1909) e a dupla Silva Junior e
Lameira de Andrade (1887/1913). N a sequência, também mencionarei
Mário Pereira de Souza Lima (1937) e, dando conta da novidade
acolhida pela NGB (1959), menciono a posição de Rocha Lima
(1957/1962).
E consenso entre pesquisadores da formação do pensamento
gramatical brasileiro que a publicação, em 1881, da Grammatica

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188
Portugueza, de Julio Ribeiro, dá início ao que se convencionou chamar
o Período Científico dessa produção (ELIA, 1975). De acordo com JR,
distinguem-se seis valores semânticos para os conectivos de
coordenação. Transcrevo: “A conjunção coordenativa é: 1) copulativa
- e, também, nem', 2) continuativa -p o is, ora, outros sim', 3) explicativa
- como; 4) disjuntiva - ou, quer; 5) adversativa - mas, porém, todavia;
6) conclusiva - logo, p o is ” (p. 79). J. Ribeiro não apresenta exemplos.
Fica alguma dúvida sobre o perfil das ‘continuativas’, designação muito
genérica, haja vista a aparente heterogeneidade dos itens incluídos
nesse subgrupo: pois, ora, outros sim.
O grupo estabelecido por Silva Junior e Andrade (1887, p. 164)
reúne sete espécies de conjunções: copulativas (e, também), disjuntivas
{ou, quer), continuativas (pois, ora, outrossim), adversativas (mas,
porém, todavia), explicativas (como, assim como), conclusivas (logo,
portanto, por consequência) e comparativas (mais-que, tão-como). O
assunto é retomado na p. 520, em um conjunto limitado às “mais
usadas” :

As conjunções mais usadas na coordenação são: a


completiva [erro de edição, pois se trata de
‘copulativa’) e, a adversativa mas, a disjuntiva ou,
e a conclusiva logo. (...) As coordenadas dividem-
se, pois, quanto à natureza dos seus conectivos,
em copulativas, adversativas, disjuntivas,
conclusivas. (SILVA JUNIOR; ANDRADE,
1887, p. 520)

O leitor de hoje logo identifica a equivalência entre copulativas e


disjuntivas com aditivas e alternativas. Não há exemplos, mas está claro
que o termo ‘explicativas’ não se refere às conjunções coordenativas
explicativas da análise atual. Vale lembrar a observação feita acima a
propósito da classe das ‘continuativas’.
João Ribeiro (1887), por sua vez, considerava que “São conjunções
ordinariamente usadas na coordenação as seguintes: a copulativa e:
Deus criou o homem e criou o mundo; a adversativa mas: Ele estuda,
mas não aprende; a disjuntiva ou: Venha ou mande; a conclusiva logo:
Penso, logo existo.” (p. 268). Esse é o mesmo conjunto das “mais
usadas” de Silva Junior e Andrade.
E a seguinte a lição de Maximimo Maciel (1910 [1894]):

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189
As proposições coordenadas exprimem
pensamentos independentes, relacionados apenas
pelo sentido ou por conjunção coordenativa. (...)•
Assim, as coordenadas se classificam: (...)
segundo a natureza, em: a) aproximadas (...), ex.:
“Eu era vestida de riquíssimas galas; (e) alva c’roa
de rosas me toucava” (Almeida Garrett); b)
alternadas (...), ex.: “Os monarcas indultam ou
toleram facilmente a república americana”
(Latino Coelho); c) adversativas (...), ex.: “Às
torturas da dor resiste a vida / Da linda Branca,
mas razão lhe foge” (Almeida Garrett); d) Ilativas
(...), ex.: “Jesus Cristo nasceu do Espirito Santo,
logo era espírito” (Bittencourt Sampaio).
(MACIEL, 1910 [1894]), p. 328).

Os termos ‘aproximadas’ e ‘ilativas’ correspondem, obviamente, às


copulativas/aditivas e conclusivas.
Mário Pereira de S. Lima (1937) adota o conjunto de quatro espécies
comum às propostas precedentes:

As coordenativas subdividem-se em: 1.)


copulativas, que exprimem simples aproximação
de termos ou proposições: e, nem (= e não),
também, outrossim, que (= e): ‘O país tem o
direito de ouvi-los, e eles o de falar livremente ao
país.’ (Rui Barbosa); ‘Ainda não temos pontífice,
nem se espera tão cedo.’ (Vieira); 2.) disjuntivas,
que exprimem aproximação de termos ou
proposições, consideradas cada uma à parte: ou,
quer... quer, j á ... já, ora... ora, quando ... quando:
‘Como fada de meigos encantos, / Não habita um
palácio encantado, / Quer em meio de matas
sombrias, / Quer à beira do mar levantado’
(Gonçalves Dias); 3.) adversativas, que exprimem
aproximação de termos ou proposições que se
opõem a certos respeitos ou se restringem: mas,
contudo, entretanto, todavia, senão (= mas): ‘Dai-
me uma tuba grande e sonorosa, / E não de agreste
avena ou frauta ruda, / Mas de tuba canora e
belicosa / Que o peito acende e a cor ao gesto

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190
muda’ (Camões); ‘A intenção reta do príncipe não
é esta, senão que cada um diga livremente o que
entende.’ (Vieira); conclusivas, que aproximam
proposições, mostrando como a ideia de uma
delas é conclusão da ideia da outra: logo, pois
(posposta à primeira ou às seguintes palavras da
proposição), portanto: ‘Era, pois, numa destas
noites como a que desceu do céu depois do
desbarato dos hunos.’ (Herculano); ‘Este
desenvolvimento não tem, portanto, paralelo...
(Rui Barbosa). (LIMA, 1937, p. 219-221)

A primeira edição da Gramática Normativa de Rocha Lima data de


1957, dois anos antes de entrar em vigor a Nomenclatura Gramatical
Brasileira (NGB). As edições posteriores a 1959 - os dados que aqui
reproduzo provêm da 8a edição (1962) - foram, no geral, adaptadas à
nomenclatura oficial (NGB). No caso específico do assunto que estou
comentando, essa adaptação é integral:

As conjunções coordenativas se distribuem por


cinco classes. I) Aditivas - relacionam
pensamentos similares. São duas: e e nem. A
primeira é afirmativa; e a segunda, negativa,
equivale a e não. Exemplo: O médico não veio,
nem (= e não) telefonou. II) Adversativas -
relacionam elementos contrastantes. A conjunção
adversativa por excelência é mas. Há outras
palavras com força adversativa, tais como: porém,
todavia, contudo, entretanto, no entanto, que
acentuam, não propriamente um contraste, mas
uma espécie de concessão atenuada. Exemplo: Ele
falou bem; todavia, não foi como eu esperava. III)
Alternativas - relacionam elementos que se
excluem. O tipo é ou, que pode repetir-se, ou não,
antes de todos os elementos coordenados. Além
dela, indicam altemação: ora... ora; quer... quer;
já... já; seja... seja; etc. IV) Conclusivas -
relacionam elementos tais, que o segundo encerra
a conclusão do enunciado no primeiro. São: logo,
pois, portanto, consequentemente, por
conseguinte, então, assim, etc. Exemplos: (...);

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Queres enriquecer; deves, por conseguinte,
economizar. V) Explicativas - relacionam
elementos em sequência justificativa, de tal forma
que a segunda explica a razão de ser da primeira.
São que, pois, porque, porquanto. Exemplo:
Espere um pouco, porque ele não demora. (LIMA,
1962, p. 170-171)

Subordinação, coordenação e a semântica dos conectivos

Um aspecto que é comumente realçado na abordagem da conexão


entre duas orações é que se pode combiná-las mediante processos
distintos para comunicar a m esm a informação, como mostra o seguinte
par de exemplos:

la) O lutador era franzino, mas superou seus adversários.


lb) Embora fosse franzino, o lutador superou seus adversários.

Em la, o conectivo ‘m as’ une duas orações coordenadas; em lb, o


conectivo ‘embora’ introduz uma oração subordinada à que se segue.
Podemos dizer que esse par de exemplos tipifica com clareza a
diferença entre coordenação e subordinação: o ‘m as’ vem posicionado
obrigatoriamente entre as orações; o ‘embora’ está acoplado à oração
por ele introduzida, acompanhando-a quando ela se desloca (cf. O
lutador superou seus adversários embora fosse franzino). Em
contrapartida, é impossível a construção * Mas superou seus
adversários, o lutador era franzino.
A lição que nos passam os manuais didáticos em geral - não há aqui
um comentário crítico, mas tão-só um registro - é que os conectivos de
coordenação são reconhecidos pelo que significam e pelo fato de
ligarem unidades sintaticamente independentes entre si. A sensibilidade
pedagógica que levou Said Ali a escrever obras para o público juvenil
não o impediu de alertar para as situações em que as diferenças entre
classes e processos nem sempre eram claras. Ele tinha esse fato em
mente quando escreveu:

A linha de demarcação entre as coordenativas e as


subordinativas adverbiais não é bastante clara.
Nenhuma dúvida há sobre as espécies copulativa,

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adversativa e disjuntiva, que pertencem ao
primeiro grupo; porém entre as partículas causais
figura porque ora como coordenativa, ora como
subordinativa, enquanto visto que, já que, como
são sempre da segunda classe. (SAID ALI, 1964,
p. 220).

Em uma outra passagem da Gramática Histórica, comentando um


trecho de Alexandre Herculano (“Entrei; ninguém reparou em mim:
todos andavam como pasmados.”), Said Ali mostra que o
reconhecimento dessas relações de sentido envolve aspectos que
escapam à materialidade do texto:

O segundo fato - ninguém reparou em mim -


contradiz a expectativa que acompanhava a ação
de entrar. Querendo significar explicitamente esta
contradição, o autor poria no rosto da segunda
sentença a adversativa mas. E esclarecendo afinal
a causa do inesperado acontecimento, servir-se-ia
da partícula porque como introdução a todos
andavam como pasmados. (SAID ALI, 1964, p.
218-19).

Said Ali revela nesse comentário uma novidade na maneira de


abordar a depreensão do sentido que atravessa o texto. E um a novidade
que, no entanto, infelizmente, não teve seguidores no período
subsequente da formação do pensamento gramatical brasileiro. E que
novidade é essa? E a menção da expectativa do enunciador (ele
esperava ser notado), como fundamento para o valor adversativo da
proposição ninguém reparou em mim e a possibilidade de aí ocorrer a
conjunção mas. A explicação corrente nas gramáticas é que o conteúdo
da oração adversativa se contrapõe ao conteúdo da oração precedente.
Nem sempre é isso que acontece; a conjunção ‘m as’ tem uma íntima
relação com os propósitos argumentativos da enunciação, como servir
para negar um a inferência ou contrariar uma expectativa. Ao recorrer a
essa explicação, Said Ali antecipa a abordagem da teoria da enunciação
ou da semântica argumentativa.
Voltando à citação sobre a possível falta de nitidez entre
coordenação e subordinação, examino mais detalhadamente a lição que

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Said Ali nos deixou sobre a expressão da causalidade e a instável
diferença entre sua configuração subordinativa e sua manifestação
coordenativa. Said Ali é explícito tanto na Gramática Histórica quanto
na Gramática Secundária. Eis o que se lê na primeira:

Dá-se parataxe quando a uma proposição inicial


se acrescenta proposição copulativa, adversativa
ou disjuntiva, que se reconhecem ou pela presença
de partícula característica ou pelo sentido
(construção assindética). Dá-se ainda o mesmo
fenômeno se a segunda oração é causai, e se usa,
sem conjunção ou com a partícula porque, tendo
esta o sentido do francês car, inglês for, alemão
clemr. quer isto dizer, a proposição causai
constituirá um pensamento à parte, podendo haver
uma pausa forte entre ela e a proposição inicial.
Se porém existe união mais íntima, e porque
corresponde a francês parce que, inglês because,
alemão weil, a oração causai figura como
subordinada. (SAID ALI, 1964, p. 273).

É notável que Said Ali não empregou o termo ‘explicativas’ para


nomear as orações coordenadas de causalidade. O termo ‘explicativas’
era empregado por outros autores com sentido diferente, todos
inspirados, talvez, em Soares Barbosa, que chama ‘conjunções
explicativas’ palavras/expressões “que ligam proposições que fazem
em substância o mesmo sentido, indicando aquela que desenvolve ou
exemplifica a primeira” (SOARES BARBOSA, 1822, p. 247). Cita a
saber, isto é, principalmente, bem como, assim também.
Já na Gramática Secundária se lê o seguinte: “Chama-se
proposição CAUSAL a coordenativa que dá a razão de uma asserção,
pedido, exortação ou desejo. Conjunção própria para indicá-la éporque.
Pode-se usar, às vezes, em lugar desta partícula, porquanto, pois, por
isso que, que .” (SAID ALI, 1964 p. 134).
Esta citação traz o conceito de conjunção coordenativa causai e
define o papel da respectiva oração coordenada: a oração coordenada
fornece a razão de uma asserção, pedido, exortação ou desejo expressos
na oração precedente. Ou seja, a oração coordenada causai não é
portadora da causa do que se declara (esse é o papel das orações

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194
subordinadas causais), mas da razão do ato declarativo, isto é, o que
atua na mente do enunciador levando-o a dizer o que diz. Trata-se de
um a causai de enunciação, como a chamam teóricos modernos. Ou
seja, o motivo do ato de fala, para usar a expressão corrente nos estudos
de pragmática inspirados na Filosofia Analítica, que tem em John
Searle, citado no início destas reflexões, um dos representantes mais
conhecidos no Brasil.
A distinção defendida por Said Ali seria incorporada pela
Nomenclatura Gramatical Brasileira, em vigor desde 1959, sob a
denominação de conjunções subordinativas causais e conjunções
coordenativas explicativas. Frise-se, contudo, o seguinte detalhe:
embora a nomenclatura oficial - NGB - a tenha acolhido, - , as
gramáticas escolares jam ais refletiram o genuíno pensamento de
Manuel Said Ali. Diversos estudos contemporâneos trazem análises
minuciosas sobre essa diferença, ratificando a intuição do velho mestre
(NEVES, 1999; NEVES, 2000; LOPES, 2012; AMORIM, 2017).
Reservo um destaque para o trabalho - creio que pioneiro no Brasil -
intitulado ‘Da distinção entre orações coordenadas explicativas e
orações subordinadas adverbiais causais: um a questão sintática,
semântica ou pragmática’, do linguista Luiz Carlos Travaglia. Este
estudo tem ainda o mérito de ser o único, dentre os aqui referidos, que
cita a Gramática Secundária de Said Ah.
Para finalizar, transcrevo uma passagem de um a linguista
contemporânea, Eve Sweetser, em que vislumbro afinidades com
aspectos da linguagem que mobilizaram o espírito sempre inquieto
Said Ali já nas primeiras décadas do século passado.

Language is systematically grounded in human


cognition, and cognitive linguistics seeks do show
exactly how. (...) This study willmake use of such
a cognitive approach to meaning, and show that it
can account in a unified fashion for facts in three
diverse areas: polysemy; lexical semantic change;
and pragmatic ambiguity. Ali of these areas have
in common the fact that they envolve one form
being used for more than one function.
(SWEETSER, 1998, p .l)1

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Muitos dos ensaios reunidos em Meios de Expressão e Alterações
Semânticas e em Estudos Filológicos têm esse perfil. Ao longo de toda
a sua vida de pesquisador, Said Ali fez exatamente isso: abordar a
polissemia, a mudança semântica no léxico e a ambiguidade pragmática
para enriquecer as considerações e as explicações sobre o
funcionamento da linguagem humana.

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Notas

* Doutor em Letras pela LTFRJ e pós-doutor pelo LAEL da PUC-SP. Docente


aposentado da FL/UFRJ e IL/UERJ. Foi bolsista do programa Prociência (FAPERJ-
UERJ) e Pesquisador 2 do CNPq por nove anos. Coordenou o Mestrado em Língua
Portuguesa da UERJ no biênio 1999-2000 e organizou os volumes Língua Portuguesa
em Debate (Vozes: 2000) e Letras e Comunicação: uma parceria no ensino de língua
portuguesa (Vozes: 2001). Obras publicadas: Iniciação à sintaxe do português (J.
Zahar/1990), Fundamentos de gramática do português (J. Zahar/2000), Ensino de
Português: fundamentos, percursos, objetos (J.Zahar/2007), Dicionário Houaiss de
conjugação de verbos (Publifolha/2012), A linguística, o texto e o ensino da língua
(Parábola/2018), Gramática Houaiss da Língua Portuguesa (Parábola, 2021).
1 Tradução minha: “A linguagem é sistematicamente baseada na cogniçâo humana, e a
linguística cognitiva busca mostrar exatamente como. (...) Este estudo adotará tal

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abordagem cognitiva do significado, mostrando que ela pode explicar fatos, de forma
unificada, em três áreas diversas: polissemia, mudança semântica no léxico e
ambiguidade pragmática. Todas essas áreas têm em comum o fato de envolverem uma
forma utilizada para mais de uma função.”

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DOI: 10.20396/lil.v25i49.8668980

Relações entre terminação e gênero morfológico em


Said Ali: o índice -1 no Português

Relationships between termination and morphological


gender in Said Ali: the index -1 in Portuguese

M ilena Guirelli Trindade*


USP

M ário Eduardo Viaro**


USP/CNPq-PQ-lD

Resumo: O presente artigo busca explorar o gênero morfológico na


língua portuguesa por meio da investigação da relação existente entre
gênero e terminação. Said Ali (1923, p .55-68) contribuiu para essa
indagação ao apresentar possíveis índices de gênero para os
substantivos; no entanto, para verificar o que é apontado pelo autor,
faz-se necessário analisar de forma expandida como o gênero
morfológico se manifesta nas diferentes terminações possíveis de
substantivos da língua portuguesa. Desse modo, este trabalho se
propõe a estudar como substantivos terminados em -l se comportam,
considerando a tendência ao gênero morfológico masculino: além de
examinar a ocorrência das eventuais exceções, buscando hipóteses que
expliquem seu funcionamento.

Palavras-chave: Morfologia, Gênero morfológico, Indexicalidade.

Abstract: This article seeks to explore the morphological gender in the


Portuguese by investigating the relation between gender and ending.
Said Ali (1923, p. 55-68) contributed to this question by presenting
possible gender indexes for nouns: however, to verify what is pointed
out by the cnithor, it is necessan>to analyze in an expcmded way how

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the morphological gender manifests itself in the different possible
endings o f nouns in the Portuguese language. In this sense, this text
proposes to study how nouns ending in -l works, considering that they
tend to belong to the masculine morphological gender; besides
examining the occurrence o f eventual exceptions, seeking hypotheses
that could explain their functioning.

Keywords: Morfology, Morphological gender, Indexicality.

Flexão nominal e sua relação com o significado

A flexão nominal em língua portuguesa se associa a determinadas


categorias, dentre elas, o gênero morfológico, presente em todos os seus
substantivos, tanto em denominações de seres animados quanto de não-
animados. Nos animados é possível, às vezes, verificar certa confusão
com o chamado gênero identitário ou sexo. No restante dos
substantivos, o gênero parece ser arbitrário, ainda que seja possível
relacionar gênero e terminação em alguns casos, como a terminação -a
da maioria dos substantivos femininos e a terminação -o da maioria dos
masculinos.
O gênero, segundo F. Margotti e R. Margotti (2011, p.69), é uma
imposição gramatical que não interfere no significado. São comuns a
mudanças de gênero de palavras herdadas (como o substantivo
masculino color, em latim, hoje cor, feminino em português). Os
substantivos latinos de gênero neutro passaram, em português, ora a
masculinos, ora a femininos. Há itens lexicais com gênero vacilante,
como o/a champanhe e o/a grama, cuja variação do gênero não afeta a
significação do vocábulo, a despeito de qualquer posicionamento
normativo.
Villalva (2008, p .89-91) descreve o gênero morfológico como uma
propriedade inerente dos radicais nominais1 e julga a relação entre
radical e valor de gênero como aleatória2 na maioria dos casos. Corbett
(2006, p.751-752) distingue três tipos de sistema de atribuição de
gênero nas línguas: (i) estritamente semânticos; (ii) predominantemente
semânticos; (iii) formais. A partir dessa perspectiva, é possível
considerar o português uma língua com sistema de atribuição de gênero
formal, uma vez que, embora a atribuição possa ser baseada na forma

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ou no significado das palavras, pois a maioria dos substantivos no
português não recebem gênero com base em sua referência
(SCHWINDT, 2018, p.748)3.
Por sua vez, Lacotiz (2020, p. 23) avalia o gênero no português como
uma categoria que pode manifestar-se por meio de diferentes maneiras
e cuja inerência é difícil de ser explicada. Para a autora, a tradição
gramatical classifica o gênero nos substantivos de língua portuguesa
em: (1) não-sexuados, (2) epicenos, (3) comuns de dois gêneros, (4)
sobrecomuns e (5) seres animados, tomando os itens linguísticos por
duas perspectivas, quanto à forma e quanto ao conteúdo, sendo quatro
das cinco classificações baseadas na relação entre “gênero linguístico e
sexo biológico” . A respeito do primeiro grupo, segundo a autora, “não
se oferece de nenhuma explicação, ou seja, parece inexistir qualquer
propriedade nesses itens linguísticos que os faça pertencer ou ao gênero
masculino ou ao feminino” (LACOTIZ, 2020, p.24).
A marca de gênero morfológico no português é, portanto, uma
categoria complexa, pois se manifesta de diferentes maneiras,
dependendo do item lexical. Desse modo, é possível distinguir entre:

(i) gênero referencial, encontrado em


substantivos que denominam seres de acordo com
sua referência, ou seja, coincide com o sexo ou o
gênero identitário do ser a que se referem, como
professor, atriz, galo, cachorra;
(ii) gênero puramente morfológico: no
restante das palavras, há informação gramatical,
mas não referencial, pois não há nada de
específico na referência dessas palavras que
indique seu gênero.

O segundo caso, de acordo com Rocha (1994, p.33), constitui a


maior parte dos substantivos da língua portuguesa. Segundo Câmara Jr.
(1970, p.78), a flexão de gênero costuma ser exposta de maneira
incoerente e confusa nas gramáticas tradicionais do português e uma
dessas confusões diz respeito a relacionar o gênero das palavras apenas
ao “sexo dos seres”. Sobre essa questão, Souza e Silva e Koch (2011)
argumentam que:

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o conceito de sexo não está necessariamente
ligado ao de gênero: mesmo em substantivos
referentes a animais e pessoas há algumas vezes
discrepância entre gênero e sexo. Assim, a
testemunha, a cobra são sempre femininos e o
cônjuge, o tigre, sempre masculinos, quer se
refiram a seres do sexo masculino ou feminino.
(SOUZA e SILVA; KOCH, 2011, p. 65-66)

O gênero morfológico segundo Said Ali (1861-1953)

É possível rastrear interpretações importantes para o entendimento


do fenômeno “gênero” na tradição gramatical, a partir da qual o termo
gênero entrou nas discussões morfológicas. Jeronymo Soares Barboza
(1822) demonstra conhecimento circunstância ao expor que o gênero
está presente não só nos indivíduos, mas também nas coisas:

[...] o uso das Linguas, sempre arbitrário ainda


quando procura ser consequente, vendo que a
Natureza lhe tinha prescrevido a regra dos sexos
na Classe dos animaes, quiz seguir também a
mesma nos nomes das couzas, que os não podem
ter, fazendo por imitação huns masculinos, e
outros femininos, e por caprichos outros nem
masculinos, nem femininos, mas Neutros.
(BARBOZA, 1822, p.124).

A partir disso, o autor propõe uma divisão entre gênero por


significação e por terminação, a qual também ocorre em gramáticas de
outros autores. Quanto à significação, Barboza apresenta que o gênero
do substantivo coincide com o sexo do ser que se refere, o que também
inclui ofícios que eram restritos a apenas um dos dois gêneros na época;
todavia, ao tratar do feminino, é notável que o autor busque estabelecer
outras relações entre gênero e significação ao estipular que palavras que
denominam virtudes, paixões e artes liberais são vinculadas ao
feminino, um a vez que a relação entre gênero e significação nesses
casos se dá por grupos que atualmente seriam chamados de semânticos,
o que difere dos casos em que o gênero dos substantivos é definido pelo
sexo dos seres a que se referem. Por outro lado, os gêneros

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201
estabelecidos pela terminação são considerados arbitrários pelo autor e,
nesse sentido, ele separa 43 terminações, sendo 28 delas associadas ao
gênero masculino ou feminino, e as restantes dadas como incertas.
Francisco Evaristo Leoni (1858) também apresenta a divisão entre
gênero por significação e por terminação. Quanto à significação, o autor
também inclui — além dos substantivos que designam seres e tomam o
gênero de acordo com sua referência — alguns grupos semânticos,
como os nomes de ventos e dos rios. Por outro lado, o autor também
apresenta algumas associações entre gênero e terminação, e busca
justificar tanto o gênero predominante quanto suas exceções por meio
da origem das palavras na maioria dos casos, ainda que de modo breve.
O que faz Leoni, de fato, é estabelecer alguns possíveis índices de
gênero. De fato, parece ser claro para os falantes da língua portuguesa
que algumas terminações como -a e -o remetam respectivamente ao
gênero feminino e masculino. Viaro (2018) defende a existência de
índices de gênero nas terminações dos substantivos: mesmo quando não
simbolizem nada, a observação comprova a presença de uma
indexicalidade sígnica nessas terminações. Para o autor, o significado
dos índices “é de outra ordem, pois provém da aquisição e passam sem
interpretação nenhuma pela referência alojando-se no significado, onde
juntamente com um significante, forma uma unidade que compõe um
paradigma” (VIARO, 2018, p.20). Assim, é perceptível que os
paradigmas dos substantivos femininos terminados em -a e o dos
masculinos em -o são bastante extensos e formam índices de gênero
evidentes para o falante, embora não simbolizem nada específico.
A obra de Said Ali tem notável importância para os estudos
filológicos brasileiros. Sua Grammatica secundaria da língua
portugueza (1923), de acordo com Bechara (1962, p.19) fora “a obra
didática mais dentro da perspectiva sincrônica que apareceu no Brasil,
e quiçá em língua portuguesa” e é descrita por Câmara Jr., conforme
cita Costa (2020, p.186), como um a “admirável síntese didática” . Em
um dos capítulos da obra, ele disserta sobre o gênero dos substantivos
e também adota a divisão entre gênero pela significação e gênero pela
terminação. Já na Grammatica histórica da língua portugueza (1931),
ele tom a a discutir a questão dos gêneros dos substantivos e sua
classificação. Nela, ao abordar sobre os substantivos que nomeiam
coisas, o autor expõe novamente a relação entre terminação e gênero e
justifica algumas ocorrências através de argumentos etimológicos.

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202
Considerando a significação, o autor estabelece que substantivos
que denominam pessoas e animais não epicenos4 tomam o gênero de
acordo com o que é indicado pela sua referência; o que corresponde à
noção de gênero referencial mencionada anteriormente.
No entanto, essa relação não se verifica no restante dos substantivos;
ainda que Said Ali também separe alguns outros grupos semânticos
cujos elementos integrantes sempre tomam o mesmo gênero, como os
pontos cardeais e os meses, que são sempre masculinos, ainda que não
haja nada de específico na referência dessas palavras que indique o
gênero. Cabe destacar que isso não significa que a palavra não tem
gênero, mas que nela há a noção de gênero morfológico, que dispõe de
informação gramatical, mas não referencial. Desse modo, o gênero dos
substantivos, nesses casos, se revela arbitrário.
Uma vez que não é possível agrupar todos os substantivos da língua
portuguesa apenas a partir de sua significação, o autor também se
propõe a classificar o gênero desses elementos de acordo com suas
terminações, o que equivalería a dizermos hoje que Said Ali apresenta
alguns possíveis índices de gênero. Alguns desses índices não são muito
evidentes, como é o caso de -gem para o feminino e -l para o masculino.
Os substantivos são divididos pelo autor em dois grupos: (i) gênero
pela significação; (ii) gênero pela terminação. N a primeira divisão,
como o próprio nome da seção sugere, há uma presença do enfoque
semântico. Entretanto, ela não engloba só o sexo ou gênero identitário
dos seres, mas também alguns grupos semânticos. Em síntese, os grupos
estabelecidos por Said Ali são:

Masculinos:
(1) seres sexuados masculinos (não epicenos):
homem, rei, mestre, sacerdote, conde, boi, bode,
etc;
(2) pontos cardeais: norte, sul, oeste, oriente;
(3) letras, notas musicais e algarismos: o bê, o cê,
ojota, o beta, o dó, o ré, o mi, o três, o cinco, etc;
(4) meses: março, abril, etc;
(5) rios, montes, mares e ventos: o Amazonas, o
Himalaya, o Atlântico, etc.
Femininos:
(1) seres sexuados femininos (não epicenos):
mulher, mãe,, vaca, cabra, etc;

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(2) nomes geográficos em que são subentendidas
palavras femininas como ilha e cidade: Nova-
Friburgo, Ceylão, etc.
(SAID ALI, 1923, p. 59-60).

Quanto aos substantivos que recebem gênero de acordo com a


terminação, o autor dá mais destaque para os “nomes de coisas” e
explica que os epicenos também seguem as regras por ele apresentadas.
Os índices de gênero propostos são:

Masculinos: -o átono; -ema; -oma; -grama;


oxítonos em -á, -é, -i, -ó, -u; terminados em
ditongo puro; oxítonos em -em, -im, -om; -men
átono; termos científicos em -en átono; -um;
concretos em -ão; -r; oxítonos em -az, -iz, -oz e
-uz; paroxítonos em -s e -x; -ate, -ete, -ote e -ite;
concretos em -ude; -arte e -orte; -ante, -ente, -
onte.
Femininos: -a; -dem e -gem átonos; -ão, se
abstratos; -ade, -ude, -ice; -ie; -ede, -ide, -ave, -
ebe, -eve; -ase, -asse, -ace, -ese, -ece, -esse, -ose;
além de exceções às regras do masculino.
Outros casos: Algumas terminações, como -ã e -e
são associadas a ambos os gêneros, ainda que o
autor consiga observar uma leve predominância
em algumas circunstâncias. (SAID ALI, 1923, p.
61-66).

É notável que mesmo tratando do gênero quanto à terminação, o


autor ainda utiliza de grupos e traços semânticos para realizar algumas
distinções. Além disso, é importante salientar que a maioria dos índices
propostos apresenta exceções e, em alguns casos, o autor busca explicar
por que não se enquadram na regra.
Desse modo, nota-se que a classificação proposta pelo autor é mais
completa que a de Barboza e a de Leoni, uma vez que analisa mais
terminações e as explora de maneira mais ampla. Todavia, deve-se
ressaltar que ainda que o estudo realizado pelo autor seja notável, é
possível observar exceções à classificação dos índices sugerida que não
foram analisadas ou explicadas pelo autor.

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204
Said Ali (1923, p.66-67) ainda dedica uma seção intitulada Nomes
de duplo gênero para tratar dos casos de palavras que tomam mais de
um gênero, no entanto não com o exato mesmo sentido. Primeiramente,
destaca a existência de alguns substantivos femininos que se referem a
entidades inanimadas — ou “coisas” — que, ao serem empregados
metaforicamente para designar homens, passam a ser masculinos. Para
exemplificar, o autor menciona os termos língua, corneta e cabeça,
todos substantivos femininos, que no masculino têm outra significação,
ainda que relacionada: o língua se refere ao intérprete; o corneta, ao
sujeito que toca o instrumento; o cabeça, ao indivíduo dirigente. Ele
também lista algumas palavras em que o contraste de gênero, através da
terminação, designa o mesmo objeto, mas em um outro sentido, como
barco/barca, caneco/caneca, cerco/cerca, cesto/cesta, cinto/cinta,
espinho/espinha, fruto/fruta, jarro/jarra, entre outros (SAID ALI,
1923, p.66-67). Nesse sentido, é exposto que quando ocorre a diferença
de sentido, não há confusão na aplicação prática, pois cada forma é
utilizada em um determinado sentido.
Para Gouveia (2005, p.538), uma clarificação ocorre “também,
como consequência da alteração de gênero de um vocábulo, que o vai
deixar em oposição semântica com outro”, por exemplo: copa/copo
antigamente coexistiam como sinônimo de taça, no entanto, atualmente
copo se opõe semanticamente a copa, com o sentido de armário. Outro
exemplo: “a alteração de gênero que sofreu a forma feminina com o
sentido de espinho possibilitou uma clarificação semântica, dada pelo
gênero, em oposição a espinha (de peixe)” (GOUVEIA, 2005, p.538,
grifo da autora). Ou seja, atualmente, a forma espinha é utilizada num
contexto mais específico em comparação à palavra espinho.
No entanto, também vale salientar que nem todos os substantivos da
língua portuguesa têm o gênero fixo, sendo ele definido pelo uso dos
falantes. Para Gouveia (2005, p.527), hesitações de gênero indicariam
que essa categoria “está ainda um pouco num período de transição” . E
perceptível que algumas tendências nessa transição, tais como a
analogia e a influência da terminação, continuam se manifestando na
categoria, “numa clara evidência da continuidade e do poder criador do
falante na evolução de qualquer língua viva” (GOUVEIA, 2005, p.540).
Além disso, cabe apontar que há palavras que, no português europeu
pertencem a um gênero e, no brasileiro, a outro, como sanduíche
(GOUVEIA, 2005, p.539). Por fim, a mudança de gênero ao longo da

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205
história pode ocorrer, entre outros casos, com empréstimos e com
palavras que só fixaram o gênero após algum tempo, devido a uma
alteração social.

A terminação -/ e a determinação do gênero morfológico

Said Ali não foi o primeiro a observar que palavras terminadas em -


l tendem ao gênero morfológico masculino. Barboza (1822, p. 128-129)
relaciona as terminações -al, -el, -il, -ol e -ul ao gênero masculino e cita
apenas cal como exceção. Leoni (1858, p.103) estabelece a mesma
associação, no entanto simplifica as mesmas terminações para -/ e
explica que os substantivos com essa consoante final recebem gênero
masculino independentemente de sua origem, mas não apresenta
exceções. Ao tratar dessa terminação, Said Ali (1923, p.63-64) não só
apresenta a associação entre a terminação -/ e o gênero masculino, mas
também cita algumas exceções, como as palavras cal e moral, além de
alguns substantivos de origem adjetiva formados pelo sufixo -al em que
se subentendem substantivos femininos, como em capital (cidade),
catedral (igreja) e vertical (linha).
Em suma, a tese de Said Ah consiste não só em afirmar que o índice
da terminação determina o gênero gramatical de um conjunto de
substantivo, mas essa determinação pode provir de um conteúdo
semântico não-expresso (ou subentendido) presente em adjetivos
substantivados. O elemento subentendido não ocorre, portanto, no eixo
sintagmático como podería sugerir uma notação analítica como
“(igreja) catedraF, mas antes está relacionado ao significado do item
lexical analisado, como um verdadeiro hiperônimo que se funde a ele.
Tal notação analítica, portanto, tem a mesma utilidade das paráfrases
morfológicas, quando se depreendem, por exemplo, o significado de
afixos derivacionais.
Dito de outro modo, quando o hiperônimo de um item lexical em -l
for um ser animado, a determinação imediata que confunde o gênero
morfológico e sexo (que chamamos de gênero referencial acima) não
traz dados interessantes para uma definição que pretenda entender a
essência da flexão de gênero em Morfologia. Por outro lado, uma
confirmação de que uma terminação formal, que sequer é um morfema
ou um afixo, está associada a um gênero morfológico (ou seja, o
chamado gênero puramente morfológico) em seres não-animados é um

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dado importante não só para a determinação de regras gramaticais, mas
também para a descoberta de fenômenos linguísticos com importante
impacto epistemológico nas teorias linguísticas e em seus pressupostos,
pois reintroduz o papel dos índices no rol dos signos a ser analisados.
Restaria investigar, segundo esse raciocínio, também as exceções, as
quais foram classificadas, no caso da terminação em dois tipos:

• substantivos femininos cujo expediente


da notação analítica não é possível do
ponto de vista sincrônico (como em a
cal);
• adjetivos substantivados cujo gênero
gramatical não corresponde ao do
hiperônimo numa possível notação
analítica (como em o capital).

Investigando um corpus inicial formado por 1866 substantivos


terminados em depreendido dos 150.875 lemas encontrados no
Dicionário Houaiss da língua portuguesa (HOUAISS; VILLAR,
2001), doravante referida como lista Houaiss5, foram feitos alguns
recortes.Em busca de uma metodologia adequada, primeiramente, com
o intuito de contemplar a sincronia, foram descartadas palavras com
frequência de uso extremamente baixa6. Além disso, foram descartadas
palavras com gênero referencial, comuns de dois e variantes gráficas.
Com o propósito de realizar um recorte que corresponda mais
fielmente ao léxico de um falante de português brasileiro, também foi
consultado outro corpus, o Léxico do Português Brasileiro - LexPorBR,
para a verificação de frequências. Desse modo, palavras que constavam
na lista Houaiss mas não aparecem no LexPorBR — ou seja, com
frequência igual a 0 — foram descartadas, com exceção de alguns
substantivos como hidrogel, maternal, subtotal e terçol, pois são
vocábulos que julgamos de certa familiaridade para um falante da
língua, impressão que pode ser embasada em dados de frequência de
uso:
• hidrogel (lista Houaiss: 15300
ocorrências);
• maternal (lista Houaiss: 585000
ocorrências; LexPorBR: 111
ocorrências);

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• subtotal (lista Houaiss: 1100000
ocorrências);
• terçol (lista Houaiss: 842 ocorrências)

Como este estudo pretende concentrar-se apenas no puramente


morfológico, excluíram-se substantivos masculinos que designam
indivíduos de sexo masculino como cônsul e substantivos comuns de
dois gêneros7, como fiscal, boçal, imbecil, intelectual, policial e rival,
uma vez que, nesses casos, a mesma forma é utilizada tanto para seres
do sexo masculino quanto para o feminino. Em relação aos nomes
próprios sem gênero referencial, foram considerados apenas os muito
frequentes no português, como bombril, nome de marca com uso
metonímico. Analisaram-se palavras estrangeiras incorporadas ao
léxico da língua portuguesa, como o galicismo bechamel.
Quanto aos itens lexicais designadores de línguas e nacionalidades,
só foram analisados substantivos que designam idiomas, visto que as
nacionalidades também têm gênero referencial. Portanto, os itens
lexicais como tâmil, mongol e espanhol contemplados na análise são
nomes de línguas.
Vocábulos com mais de um significado foram analisados desde que
pelo menos um deles exprima gênero puramente morfológico: por
exemplo, a palavra marginal pode designar uma estrada que fica à
margem de um rio, ou um indivíduo que vive à margem da sociedade;
nessa situação, só foi analisado o primeiro caso, visto que o segundo
dispõe do gênero referencial.
Também há palavras com mais de um significado em que o gênero
produz contraste semântico, como é o caso de a capital (cidade) e o
capital (bens econômicos). Por esse motivo, analisaram-se palavras
como capital, federal, final, frontal, geral, normal, e social tanto como
masculinas quanto como femininas, já que são itens lexicais distintos.
Em alguns desses casos, o contraste é explicado pelo hiperônimo que
estaria sendo subentendido, apresentando significados completamente
distintos, como ocorre em o capital/a capital, em outros, a forma
masculina tem um significado mais abrangente, enquanto a feminina é
mais restrita e específica, como é o caso de final, que dispõe de um
significado mais abrangente no masculino, mas que no feminino
apresenta um uso mais restrito às finais de partidas e competições.

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208
Há casos de itens que ocorrem na maioria das vezes como adjetivos
substantivados, como é o caso de algumas palavras terminadas em -al
(iabdominal, central e preferencial, por exemplo) e em -ável/-ível
(impossível e agradável, por exemplo). Justamente devido a esse
fenômeno, constatamos que o gênero desses itens costuma ser
explicado pelo que é subentendido. Em outras palavras, se determinado
vocábulo se refere a um substantivo hiperônimo com determinado
gênero, o mesmo gênero desse hiperônimo será atribuído a ele na sua
substantivização. Desse modo, é possível encontrar palavras desse
grupo que funcionam como substantivos de dois gêneros, variando de
acordo com o hiperônimo subentendido; esses vocábulos foram
descartados, com exceção daqueles em que o contraste de gênero
ocasiona uma diferença semântica.
Ao consultar o corpus do LexPorBR, foram encontradas duas
palavras relevantes para o estudo que não estavam presentes no
Houaiss: cacharrel e dirigível. Elas foram, portanto, inseridas no
corpus original e contempladas na análise.

O elemento formal numa análise preliminar dos dados

Expandiu-se a terminação -/ para -al, -el, -il, -ol e -ul, num primeiro
momento. Cabe destacar que o conjunto das palavras terminadas em -
al é bastante numeroso e engloba, inclusive, alguns sufixos. Em
seguida, alguns itens foram examinados em grupos semânticos. Por fim,
os casos que não são facilmente explicados pelos métodos já
mencionados passarão por uma análise diacrônica, com o propósito de
encontrar alguma motivação histórica para a atribuição de gênero.
Há um total de 233 palavras terminadas em -al no nosso corpus,
sendo 197 delas masculinas e 36 femininas. Parte das palavras
masculinas são formadas pelo sufixo -al, que ao ser adicionado a uma
base X gera um vocábulo com o significado de “lugar em que há
bastante X ” ou “plantação de X ”, como é o caso de laranjal, matagal e
pantanal. Como se trata de uma derivação sufixai, o gênero é
determinado pelo sufixo e não pela base, sendo todos os termos
masculinos.
Em relação às exceções, vale lembrar a observação de Said Ali
(1923, p.63), que explica o gênero feminino de palavras de origem
adjetiva terminadas em -al por meio do subentendimento de um

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hiperônimo representado por um substantivo feminino e confirmado
pelas definições existentes no Dicionário Houaiss : (glândula) adrenal,
(empresa) binacional, (cidade) capital, (igreja) catedral, (conjunção)
causai, (instalação) central, (liberdade/conjunção) condicional,
(ordem/comunicação) confidencial, (direção) diagonal, (impressão)
digital, (linha ou curva) espiral, (prova) final, (linha/reta/posição)
horizontal, (letra) inicial, (função) integral, (linha) lateral, (reta)
mediai, (linha) nodal, reta {normal), (forma/curva) oval, (via)
preferencial, (sequência) pontual, (avenida/rua) radial, (rodada ou
partida) semifinal, (letra) semivogal, (empresa) sucursal, (linha)
transversal, (reta/linha/posição) vertical, (letra) vogal.
Em algumas palavras, é possível sugerir que o gênero seja atribuído
por analogia, como é o caso de matinal, que na própria definição do
dicionário indica o termo matinê (também feminino) como mais
comum (HOUAISS; VILLAR, 2011, p.1868). Há também alguns itens
lexicais em que podemos inferir alguns hiperônimos, ainda que não
estejam presentes na definição do dicionário, são eles: (carta)
credencial; (universidade) federal; (empresa) filial; (câmera) frontal;
(limpeza) geral; (estrada/rua) marginal; (festa) social.
No entanto, exceções reais aparentemente surgem com outros
vocábulos femininos, os quais não se encaixam nesse raciocínio, a
saber: bienal, cal, moral, pastoral. Said Ah cita cal e moral, como
exceções, ainda que não apresente uma explicação para esses casos. É
importante destacar que a palavra cal também é empregada
coloquialmente no masculino, sendo um caso de gênero vacilante; já
moral, por sua vez, também pode aparecer no masculino, mas, nesse
caso, cria um contraste semântico.
A terminação em -el dispõe de 81 palavras no corpus, sendo apenas
quatro delas femininas: babel, cacharrel, cascavel e variável. É
possível dividir os itens pertencentes a essa terminação em dois grupos:
paroxítonos e oxítonos. Os vocábulos do primeiro grupo são formados
pelos sufixos -ável e -ível, enquanto o segundo engloba o restante das
palavras. Percebemos que os itens paroxítonos terminados em -el são
quase todos masculinos, salvo variável, que possivelmente teria seu
gênero explicado pelo hiperônimo grandeza. No entanto, faz-se
necessário uma investigação diacrônica para corroborar essa hipótese,
uma vez que o gênero feminino aparentemente vem da sua origem
francesa.

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Em relação às outras exceções, é possível facilmente pensar em
hiperônimos para cacharrel e cascavel: blusa e cobra/serpente8,
respectivamente. Já o feminino de babel, por sua vez, parece não ser
explicado tão facilmente pelo mesmo caminho. Novamente, uma
pesquisa etimológica aqui traria alguma luz à questão, em que se sente
a necessidade de uma investigação diacrônica das exceções, assim
como ocorre com outros problemas morfológicos.
Há um total de 43 palavras terminadas em -il no corpus, todas de
gênero morfológico masculino, o que corrobora a hipótese de Said Ali.
Nesse grupo, é perceptível a alta ocorrência de itens que designam
compostos químicos, como butil, metil e vinil, grupo que será mais bem
explorado na seção seguinte.
Outro caso relevante é o da palavra bombril, que se refere ao nome
de uma marca de palhas de aço que passou a ter um uso metonímico no
português brasileiro e designar esse produto no geral, mesmo que seja
de outra marca. É interessante que, nesse caso, o substantivo dispõe de
gênero morfológico masculino, o que indica que não está subentendido
os vocábulos palha ou esponja de aço, o que reforça a influência da
terminação para a atribuição de gênero, visto que as palavras terminadas
em -il que são masculinas no português.
Quanto à terminação em -ol, constam no corpus 47 palavras, todas
elas masculinas. Nesse grupo, há a predominância de palavras que
designam substâncias químicas, como álcool, etanol e formol, e
esportes, como beisebol e futebol. Um caso interessante é a palavra
semancol, que consiste em uma gíria que designa um medicamento
inexistente que é recomendado para pessoas inconvenientes. Semancol
pertence ao masculino, o que sugere a atuação da terminação para a
atribuição de gênero, uma vez que as palavras em -ol tendem ao gênero
morfológico masculino, inclusive medicamentos com essa terminação,
como é o caso de paracetamol, que também consta no corpus. É
possível constatar, nesse caso, que a influência é sobretudo da
terminação e não do grupo semântico, visto que há medicamentos com
outras terminações que são femininos, como dipirona.
A terminação em -ul é pouco produtiva no português e, no corpus
analisado, constam apenas duas ocorrências de substantivos, ambos
masculinos: azul e sul. No caso de sul, Said Ali (1923, p.60) explica
que o gênero do vocábulo se dá devido ao pertencimento ao grupo
semântico dos pontos cardeais, visto que as palavras norte, sul, oriente

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(ou como mais utilizado atualmente, leste) e oeste são todas masculinas.
O autor não menciona a palavra azul, tampouco agrupa as cores, no
entanto poderia ser aplicada a mesma lógica para essa palavra, o que
será explorado a seguir.

O papel do elemento semântico na análise dos dados

Em português, substantivos que denominam cores são todos


masculinos, independentemente da terminação, isto é, até mesmo itens
em -a (que costuma ser o índice de feminino) como rosa e laranja são
masculinos quando designam cores. Esse fenômeno também é notado
nos dados analisados. Observe-se que, diferentemente dos casos acima
apresentados, não é o gênero do substantivo cor, que rotula o paradigma
semântico, que produz isso, mas trata-se de um gênero vinculado a todo
o paradigma semântico e não ao hiperônimo que o nomeia. Tampouco
o gênero masculino das cores provém de uma associação a algo
referencial. E possível sugerir que os nomes de cores no português são
masculinos pois conservariam um suposto gênero masculino arcaico da
palavra cor, que era masculina no latim (color, -is) e assim se manteve
em línguas como o espanhol. Há, no corpus, três itens lexicais
terminados em -l que pertencem a esse grupo semântico: azul, arrebol
e anil.
Em relação aos nomes de idiomas, representados no corpus por
quatro vocábulos (espanhol, portunhol, provençal e tâmil), também se
observa um fenômeno semelhante, pois são sempre masculinos,
independentemente da terminação, o que é evidenciado por itens
terminados em -a como vietnamita. Nesse agrupamento, é possível,
porém, sugerirmos que esteja subentendido um rótulo do hiperônimo, a
saber, idioma. Todavia, cabe destacar que, visto que a palavra idioma
data o século XVIII e o masculino desse grupo pode ser explicado
melhor (sem contradição histórica) por outro hiperônimo, como
linguagem, palavra que era masculina da Idade Média ao
Renascimento.
Um grupo semântico de vocábulos em -l com bastantes ocorrências
é o dos compostos químicos, que engloba palavras como álcool, butil,
colesterol, etanol, formol e vinil. No corpus deste trabalho há um total
de 20 substantivos terminados em -l pertencentes a esse grupo, todos
eles masculinos, apesar de diversas palavras não terem sido

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contempladas na análise devido à baixa ocorrência por serem restritas
a uma terminologia muito específica. É possível sugerir que
substantivos terminados em -l que designam compostos químicos
apresentam gênero morfológico masculino. É um caso diferente do das
cores e dos idiomas, pois há substâncias com outras terminações que
são femininas, como acetona e anilina, além de algumas variações
formais acompanham também variação de gênero, como é o caso de
butil/butila, metil/metila. Portanto, nesse grupo a terminação
desempenha um papel importante para a atribuição de gênero.
Nomes de tecidos, como burel, cendal e percal, também são todos
masculinos. No entanto, observam-se também itens desse grupo com
outras terminações, que são femininos, como gaze, microfibra, sarja e
seda. Desse modo, nesse conjunto, é possível também observar o papel
da terminação para a determinação do gênero, sobretudo como
observado no caso de
Quanto aos nomes dos esportes, também é perceptível que os
vocábulos basquetebol, beisebol, frescobol,futebol, futsal, handebol e
voleibol são todos masculinos, embora isso não se aplique à totalidade
dos itens do grupo semântico, pois esgrima, queimada e vela são
femininos. Isso indica, mais uma vez, a importância da relação
terminação e gênero. Além disso, mais especifícamente, é possível
estabelecer que a terminação em -boi determina o gênero morfológico
masculino, como é o caso dos itens citados9.
Ao examinar os substantivos femininos em também é notável a
alta ocorrência de termos pertencentes à terminologia matemática,
entretanto, também existem itens masculinos, como decimal e radical.
Nesse caso, é possível sugerir que o grupo semântico não tem tanta
influência em relação à atribuição de gênero. Como já exposto, o gênero
morfológico feminino presente nessas palavras é explicado por palavras
femininas que podem ser subentendidas, tais como forma, função, linha
e reta.
Em síntese, é possível dividir os grupos semânticos analisados em
dois:

(i) aqueles em que o grupo é responsável pela


determinação do gênero e, portanto, todas as
palavras a ele pertencentes apresentam o mesmo

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gênero, independentemente da terminação, como
ocorre com as cores e os idiomas;
(ii) aqueles em que o gênero de seus elementos
varia de acordo com as suas respectivas
terminações, como acontece com os compostos
químicos, tecidos e esportes.

Inversamente, foram encontrados vocábulos em que a variação de


gênero é capaz de alterar semanticamente um item lexical: capital,
federal, final, frontal, geral, moral, normal, social.
No caso de capital e normal, são gerados sentidos não relacionados,
visto que capital no masculino se refere ao dinheiro e no feminino à
cidade; e normal no masculino diz respeito ao que é comum e habitual,
enquanto no feminino designa o nome de uma reta. Já em outros
vocábulos, é perceptível que o masculino apresenta um significado mais
geral, enquanto o feminino é mais específico:

• federal, no masculino, funciona como


um sinônimo de federação ou Estado; já
no feminino, se refere às universidades
federais;
• final, no masculino, funciona como
sinônimo de fim, enquanto no feminino
seu uso é mais restrito às finais de
partidas e competições;
• geral: no masculino, designa aquilo que
é amplo ou comum, enquanto no
feminino designa uma limpeza que é
mais simples, com produtos mais
comuns;
• social', no masculino, se refere ao
coletivo, à sociedade, já no feminino,
costuma se referir a uma festa com um
pequeno grupo de pessoas.

Nos itens acima, percebe-se que a forma no feminino passa por uma
restrição semântica, sendo utilizada apenas em contextos específicos.
Além disso, é perceptível que nesses vocábulos com uso restringido é
possível subentender um substantivo feminino, o que explicaria seu
gênero, como já foi observado anteriormente.

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Quanto à palavra frontal, é possível constatar dois significados que
se relacionam, contudo não há um que seja mais amplo e outro mais
específico. No masculino, frontal diz respeito ao osso que fica na testa,
enquanto no feminino designa a câmera de selfie dos celulares. Desse
modo, ambos os sentidos se relacionam por denominarem entes que se
encontram na parte da frente/fronte. Cabe ressaltar que há uma outra
acepção para frontal, não relacionada à ideia de fronte, que é o nome de
um medicamento bastante conhecido; mais uma vez, o gênero
masculino para o item com essa significação reforça a influência da
terminação em -l para a determinação de gênero.
Por fim, quanto ao vocábulo moral, percebemos que a oposição de
gênero ocasiona uma mudança de significado sem restrição semântica
nem associação transparente com seu hiperônimo, visto que no
masculino diz respeito ao estado de espírito de alguém, enquanto no
feminino se refere a um conjunto de valores ou princípios (HOUAISS;
VILLAR, 2001, p. 1958), o que requerería algum tipo de estudo
diacrônico para entendermos as razões dessa oposição.

Conclusões

N a Gramática Secundária, Said Ah (1923, p.55) começa recorrendo


à morfossintaxe para explicar o gênero no português. Assim, o
substantivo masculino é definido como aquele que pode ser precedido
pelo artigo o, se juntar a qualificativos terminados em -o ou ser
substituído pela palavra ele, enquanto o feminino é aquele que pode ser
precedido pelo artigo a, se juntar a qualificativos terminados em -a ou
ser substituído pelo pronome ela. Em seguida, o autor aborda
substantivos sexuados para explicar como funcionam os pares
genéricos da língua portuguesa, discorrendo sobre algumas ocorrências
morfológicas que também são tratadas por outros autores, seja nos
alomorfes de Câmara Jr. (1970, p.80) ou nos processos distintivos de
Costa e Choupina (2012, p.79-82); além de apresentar as definições de
epicenos e comuns de dois. Ampliaram o entendimento do gênero
morfológico autores como Câmara Jr. (1970, p.77-82), Rocha (1994,
p.27-36), Souza e Silva e Koch (2011, p.65-66), Costa e Choupina
(2012, p.76-86).

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No entanto, é no vínculo entre gênero morfológico e terminação,
assim como no existente entre gênero morfológico e semântica, que se
vê uma das grandes contribuições da obra de Said Ali.
As variáveis todas apresentadas neste artigo, portanto, enfatizam
complexidade da categoria de gênero. Com o surgimento da
representação do signo saussuriano de duas faces, que descarta a
referência, ao se privilegiar o signo do tipo símbolo ao do tipo índice, e
ao se enfatizar a questão da arbitrariedade do signo, que estendeu seu
entendimento para a arbitrariedade do gênero morfológico, a marcação
de gênero é frequentemente vista como confusa e arbitrária, ainda que
seja possível (e desejável) contemplar algumas de suas motivações.

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Líng. e Instrum. Linguíst., Campinas, SP, v. 25, n. 49, p. 198-218, jan./jun. 2022.
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Notas

* Estudante de graduação em Linguística (DL/FFLCH/USP), bolsista FAPESP de


Iniciação Científica (Processo 2021/03216-0).
** professor livre-docente da Universidade de São Paulo e bolsista Produtividade em
Pesquisa do CNPq - Nível 1D.
1 De acordo com Villalva (2008, p.89), “todos os radicais nominais possuem, pois,
informação de gênero gramatical e esta informação é sintaticamente relevante, dado
que desencadeia mecanismos de concordância”.
2 Para Villalva (2008, p.90-91), “essa relação só pode ser motivada quando os nomes
denotam entidades animadas, mas mesmo neste domínio registram-se variadíssimos
casos que mostram a fragilidade dessa hipótese de generalização” e a atribuição de
gênero aos radicais inanimados pode ser considerada “estritamente acidentaP’.
3 Para Schwindt, ao se deparar com palavras novas ou desconhecidas, o falante de
português pode atribuir gênero com base na forma ou no significado dessas palavras:
“No caso da forma, [...] isso está relacionado à grande prevalência na língua de
vocábulos masculinos terminados na vogal o e de vocábulos femininos terminados em
a. No caso do significado, tem a ver com a relação entre gênero gramatical e sexo ou
gênero social” .
4 Said A1Í (1923, p.59) define epicenos como nomes com apenas uma terminação e
apenas um gênero gramatical, assim, a mesma forma designa tanto seres femininos
quanto masculinos, como ocorre em a testemunha e a criança. Desse modo, animais
epicenos seriam aqueles em que o gênero é distinguido através do uso das palavras
macho ou fêmea.
5As informações iniciais b, sobre a frequência de uso, presentes neste trabalho, referem-
se, portanto, a uma lista obtida mediante busca maciça realizada em 15/08/2006 pelo
GME1P lwww.usp.br/gmhpl com auxílio computacional do prof. Zwinglio Oliveira
Guimarães-Filho (IF-USP), então existente na internet mediante busca automática
realizada no Google, restrita a páginas em língua portuguesa. Nessa época não eram
apresentadas sugestões nesse buscador, dando, portanto, grande grau de confiabilidade
à quantidade de dados obtidos. A partir desses dados, realizou-se o recorte dos
substantivos terminados com -/, que constitui o corpus deste projeto.
6 No caso da lista Houaiss, trata-se de palavras cuja frequência de uso é menor ou igual
a 25 ocorrências. Posteriormente, contrastou-se esse resultado com os dados presentes
no Léxico do Português Brasileiro - LexPorBR, disponível em
<https://www.lexicodoportugues.com/>.
7 Said A1Í (1923, p.59) define os “substantivos comuns de dois” como aqueles que não
mudam de terminação de acordo com o sexo da pessoa a que eles se referem e cita como
exemplo o camarada, a camarada; o estudante, a estudante.
8 Uma definição possível para cascavel seria “nome comum a várias serpentes
venenosas com guizo na cauda, encontradas nas Américas” (HOUAISS; FRANCO,
VILLAR, 2010, p. 148).
9 A única palavra entre as citadas que não termina em -boi é futsal, todavia, se trata de
um acrônimo de futebol de salão.

Líng. e Instrum. Linguíst., Campinas, SP, v. 25, n. 49, p. 198-218, jan./jun. 2022.
218
DOI: 10.20396/lil.v25i49.8669229

Investigações Filológicas de Said Ali (1975): nos


nomes das cores, a emergência do sentido e da
diferença

Said Ali’s philological investigations (1975): inthe


names of colors, the emergence of the meaning and
difference

Gesualda dos Santos Rasia*


UFPR

Resumo: Este texto (re) apresenta o filólogo-gramático Manuel Said


Ali. Transcorridos 160 anos de seu nascimento, presentificamos gestos
na produção do conhecimento linguístico em um tempo de
sedimentação do que é a língua portuguesa do Brasil o início dos anos
30. Construímos esse retorno a partir dos pressupostos da HIL, em
diálogo com os estudos da AD francesa, atentando para a historicidade
implicada na produção de saberes sobre a língua, especicdmente os
lugares de desestabilização e descontinuidade. Nosso recorte para
tematizar a questão posta incide sobre um fato de linguagem, a relação
nomeação/realidade. Para tanto, nos detemos no debate que Said Ali
propõe, em Investigações Filológicas, sobre os nomes das cores.
Atentamos, nos fatos de ordem semântica, para a produção de sentidos
na necessária relação da linguagem com sua exterioridade.

Palavras-chave: Filologia, Cores, Determinação, Exterioridade,


Linguagem.

Abstract: This text (re)presents the philologist-grammatical Manuel


Said Ali. After 160 vears o f his birth, we present gestures in the
linguistcs knowledge 's production in a sedimentation time o f what is
the Portuguese language in Brazil, the beginning o f 30 's. We build this

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retum by the History ofLinguistic Ideas (HLI) assumptions, in dialogue
with the French Discourse ’s Analysis (DA), paying attention to the
historicity involved on the knowledge’production about the language,
especially the places o f destabilization and discontinue. Our snip fo r
thematizes the post question focuses about a language fact, the
nomination/reality relation. Therefore, we detain on the debate that
Said Ali purpose, in Philological Investigations, about the colors
names. We pay attention, in semantic facts, to the meanings production
on the necessary language relation with its exteriority.

Keywords: Philology, Colors, Determination, Exteriority, Language.

No descomeço era o verbo

No descomeço era o verbo


Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz:
Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
Funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta,
Que é a voz
De fazer nascimentos -
O verbo tem que pegar delírios.

(BARROS, Manuel de. Livro das Ignorãças.


Rio de Janeiro: Record, 1997 (fragmento).)

Introdução

Como damos nomes às coisas? Como as palavras recortam a


realidade, ora nomeando, ora indicando movimento, estados...? Estes
são debates que acompanham a história do conhecimento desde há
muito. Se os gregos colocaram essas questões de um modo considerado
inaugural, certo é que elas não cessam de se recolocar, em diferentes
épocas e a partir de diferentes perspectivas.

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Said Ali, homem-estudioso de seu tempo e para além dele, não se
furtou ao referido debate. E o fez desde o lugar de gramático e fdólogo
que era, em um gesto flutuante que vai da abordagem gramatical às
narrativas em tomo dos fatos de língua; e destas àquelas, ficando, por
vezes, indiscemível o ponto onde se localiza a exposição do fato e seu
assente nos usos literários e quotidianos.
Neste estudo, percorremos, na obra de Said Ali, recorte que discute
um fato de língua: como se nomeiam as cores, para o que, começamos
com instigante afirmação do próprio Said Ali: “São muitas as cores e
poucos os nomes”. Esta é a proposição que introduz o capítulo “Nomes
das cores”, integrante da obra “Investigações Filológicas”, de Said Ali,
a qual reúne estudos de língua portuguesa publicados em jornais e
revistas do Rio de Janeiro, dispersos ao longo da Ia. década do século
XX, assim como dos anos 30,40 e 50, em cuidadoso trabalho de reunião
e seleção de textos feito por Evanildo Bechara.
Said Ali prossegue, no capítulo, afirmando que já nos tempos
antigos os homens “distinguiram claramente as diversas cores, e que a
falta de certas designações se devia atribuir à imperfeição de sua língua
e não de sua visão.” (p.213). Seu argumento, trazido de Krause, na
Enciclopédia Alemã Meyers Konversations-Lexikon, serve para refutar
teses antigas, acerca da escassez de nomes com base no baixo
desenvolvimento humano da percepção. Refuta também a maior ou
menor capacidade de designar cores como estando simetricamente
associada à suposta superioridade ou inferioridade racial. Antes, toma
partido e acrescenta:

A insuficiência da linguagem patenteia-se


também entre nós, obrigando-nos a lançar mão de
expressões comparativas: objeto cor de chocolate,
cor de café com leite, tecido cor de salmão, cor de
abóbora, cor de vinagre, etc. Geralmente o
homem nomeia as cousas, desinteressando-se das
cores que têm, a não ser que impressionem
vivamente como cousa fora do comum ou se
imponha a necessidade do confronto} (p.214).

A partir de exemplos mobilizados por Said Ali, é possível refletir


sobre um conjunto de aspectos, e podemos dizer que todos eles se
relacionam à relação linguagem-realidade e aos modos como o sujeito

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se coloca nessa relação. Em primeiro lugar, não há como ladear os ecos
da tese da imperfeição da linguagem, defendida por Gottlob Frege
(1848-1925), desde o lugar de lógico-matemático que era. Para
sustentar sua tese, ele distingue as noções de sinal, sentido e referência
(FREGE, 1978). O primeiro diz respeito ao nome, à palavra que dá
conta da designação, que representa um nome próprio e “cuja referência
seria um objeto determinado.” (p. 62). Já o sentido consiste no modo de
apresentação do objeto; e a referência tem a ver, por sua vez, com a
relação designação/objeto. As consequências dessa distinção, segundo
Frege, é que a relação designação/objeto pode ser estabelecida a partir
de diferentes sentidos, ou seja, diferentes modos de significar.
O fato de o sinal gozar de um sentido determinado, e o sentido ter
um a referência determinada, contrariamente ao fato de a referência não
gozar de apenas um sinal, explica-se porque “o sentido de um nome
próprio é entendido por todos que estejam suficientemente
familiarizados com a linguagem ou com a totalidade das designações a
que ele pertence...” (p.63).
Ao propor a relação sentido, sinal e referência, Frege põe em tela a
ambiguidade da linguagem e a inadequação dos sistemas lógicos
disponíveis, e, com isso, rompe com a ideia da relação direta
palavra/coisa, problematizando a função da linguagem para além da
mera representação da realidade.
Não por acaso, o tem a das cores, enquanto percepção, encontra
espaço na obra de Frege: “O prado e as rãs, o sol que as ilumina estão
aí, pouco importa que eu os olhe ou não; mas quando tenho uma
impressão sensível do verde, ela só existe para mim, eu sou seu
portador.” (FREGE, 1978, apud PÊCHEUX, 1988, p. 57). Este sujeito
que é, então, portador de representações, valendo-nos aqui de
expressão do próprio Frege, diz o mundo a partir dessa perspectiva, quer
fale de cores, quer fale de objetos outros. O tópico das cores apresenta-
se peculiar nesse conjunto porque o debate acerca de sua realidade
remonta à Grécia Antiga, quando Sócrates, por exemplo, afirmava, nos
diálogos com Mênon2, que “a cor é, pois, uma emanação de figuras de
dimensão proporcionada à visão e assim perceptível.” A discussão em
tomo da existência objetiva ou não das cores tem atravessado épocas e
distintas áreas do conhecimento. Em que pesem as diferenças de
enfoque, ainda e sempre, trata-se, em sentido mais amplo, da discussão
acerca da realidade das coisas do mundo como necessárias ou

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contingentes, desde que se tratem de realidades em si ou do modo como
são percebidas e interpretadas.
O escopo da abordagem fregeana são os limites próprios da lógica
simbólica, sob cuja perspectiva ele busca o estatuto de veridição das
sentenças. Contudo, essa busca se dá a partir de sua inscrição em uma
posição antissubjetiva: “Se o homem não pudesse pensar nem tomar por
objeto de seu pensamento algo de que ele não é o portador, ele teria um
mundo interior mas nenhum mundo em tomo dele.” (FREGE 1975,
apud PÊCHEUX, 1988, p. 75).
Ao mobilizar essa asserção de Frege, Pêcheux aponta a inscrição
materialista do matemático, concluindo: “se o homem pode pensar e
tomar por objeto de seu pensamento algo de que ele não é o portador, é
exatamente porque o mundo exterior existe. (PÊCHEUX, 1988, p. 75).
Em que pesem os limites idealistas de Frege, suas proposições implicam
o enfrentamento de aspectos contingentes da linguagem, o que tomou
suas elaborações caras à Análise do Discurso na abordagem da
determinação dos sentidos.
Estamos tratando, neste estudo, da abordagem da nomeação das
cores em Said Ali e a relação desse tópico com a produção do
conhecimento sobre a linguagem. Frege não se ocupa dos nomes das
cores, tal como o faz Said Ali, mas da sua realidade enquanto produção
de conhecimento, e ao referir à impressão sensível do verde, fica
pressuposto o processo de nomeação como já dado, porém, não alheio
à mesma relação sujeito-realidade-representação.

Da nomeação das cores como espaço de determinação

Estamos falando, neste estudo, do Said Ali filólogo, faceta esta que,
conforme já afirmamos, não se apresenta totalmente dissociada daquela
do Said Ah gramático. Sobretudo se considerarmos que fazer gramática
histórica, para ele, não significava ater-se aos pressupostos
evolucionistas do comparativismo que delineavam a produção
gramatical do início do século XX no Brasil. Exemplo disso temos na
abordagem que o gramático faz dos nomes:

Fazendo-se, como se faz, distinção entre as


denominações dos seres propriamente ditos e as
denominações dos atributos de dimensão,

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tamanho, cor, consistência, etc., pelos quais os
diferençamos uns dos outros, toma-se necessário
dividir os nomes em substantivos e adjetivos.
Os atributos, posto que sejam inerentes aos seres,
são considerados muitas vezes como se existissem
separados deles, como se fossem outra entidade.
(SAID ALI, 1964, p.54).

O laço não necessário entre nome e atributo permite-nos pautar o


estatuto de contingência que disso deriva. Em se tratando
especificamente do gesto de nomear cores em Said Ali, há nele a
emergência do espaço da determinação, ao recortar a relação
linguagem-realidade a partir de sítios particularizados de significação.
Recortes que, para estabelecerem o confronto, a diferença no interior
do mesmo, convocam a experiência sensível dos sujeitos. A
insuficiência da linguagem vale-se da experiência humana, localizada
no tempo e na história. E nosso mestre segue, no atento e cuidadoso
trabalho de observar como a linguagem tenta, a partir de sua
precariedade, traduzir a realidade, sem deixar, contudo, de levar em
conta as vãs tentativas, de parte dos sujeitos que a utilizam, de cobrir
suas lacunas, desde diferentes perspectivas. E assim que ele faz
referência ao naturalista, que, “ao descrever as colorações de um
animal, da flor ou fruto, do mineral, tem de servir-se de um vocabulário
falho e restrito3 que muitas vezes não dá ideia do objeto.” (p. 215). A
condição de impossibilidade e de incompletude da linguagem
permanece posta. Prosseguindo, ele coloca a não menos problemática
seara do poeta, o qual,

mais atilado e mais feliz, não põe colorido senão


quando e onde lhe convém. E não se contenta com
as expressões de uso comum: vai ao latim, às
vezes ao grego, e traz de lá rutilante, fulvo, flavo,
ebúmeo, níveo, glauco etc., vocábulos
altissonantes que, na maior parte, não designam
cousa bem definida, mas por descomunais e
peregrinos, impressionam e deslumbram,
sugerindo vagamente a sensação de certo colorido
belo e majestoso, num ambiente de larga fantasia.
(p.215).

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Embora Said Ali não se ocupe da análise detalhada das expressões
que ele elenca, o breve inventário que delas faz concorre para a
confirmação de sua tese acerca da imprecisão da relação linguagem-
realidade. Contudo, entre a indefinição, própria do signo, e a aposta no
significado, joga o espaço da criação, em potência nos espaços sonoros
e mórficos, e talhada no trabalho do poeta. Trabalho este não tão
diferente daquele de outro artista, assim descrito por Said Ali: “O pintor
dispõe de tintas que, puras ou misturadas, lhe permitem dar a seus
quadros cores imitantes à natureza.” (p. 215). Se a linguagem verbal é
insuficiente, a visual também o é e, na impossibilidade de o artista
reproduzir fielmente a ordem do real, o que lhe cabe, assim estamos
entendendo, é também um trabalho de interpretação.
Seja da perspectiva objetivista do cientista, seja do olhar poético do
artista, em ambos os casos está o homem (sujeito) diante da
possibilidade da interpretação, no projeto de dizer as coisas “como elas
são”. E, mais uma vez, é Pêcheux (1988) quem trazemos à reflexão,
quando esse filósofo trabalha o efeito de universalidade produzido pelas
estruturas determinativas. O que poderiamos dizer, por exemplo, acerca
das coisas cor de abóbora, para além da América do Sul?

Da nomeação das cores como instauração de espaços de divisão na


língua

Falemos, agora, brevemente das condições históricas de produção


do conhecimento pelo sujeito filólogo-gramático Manuel Said Ali. A
temporalidade histórica em que a obra desse estudioso se insere é,
conforme registra Orlandi (2002), na obra Língua e Conhecimento
Linguístico, a época da consolidação de nossas diferenças e políticas
linguísticas em relação a Portugal, marcada, sobremaneira, na
emergência e recorrência da expressão nossa língua por diferentes
autores. E também o tempo de organização do ensino superior, via
criação de Faculdades, também do estabelecimento dos acordos
ortográficos. Continuamos citando a autora:

É então produzida uma grande quantidade de


gramáticas, e as diferenças entre elas não se
referem mais aos gramáticos e a suas filiações
teóricas: são diferenças descritivas e analíticas;

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diferenças de análise da frase e de seus
complementos, distinções que incidem sobre
adjuntos e suas descrições etc. (p. 192).

Assim, o saber sobre a língua não se encontrava restrito apenas aos


compêndios gramaticais. Junto à efervescência dos debates acerca das
questões de língua contávamos com um conjunto de publicações que,
ao colocarem em relação ciência e língua, diziam também sobre nossa
constituição enquanto Nação naquele momento histórico. Para esse
inventário, Said Ali colabora com seu “Dificuldades da língua
portuguesa (1908), Lexeologia do Português Histórico (1921), Meios
de Expressão e Alterações Semânticas (1930), dentre outros. Junto com
Investigações Filológicas, essas obras constituem, como afirma Orlandi
(2009), citando Auroux (1994), “um a espécie de instrumentos
linguísticos que, trabalhando na descrição e análise de fatos da língua,
vão criando o espaço de visibilidade da hiperlíngua.”
A noção de hiperlíngua, cunhada por Sylvain Auroux, convoca a
exterioridade para o olhar sobre a língua, considerada a partir dos
sujeitos imersos em um determinado espaço-tempo, e que são “dotados
de determinadas capacidades linguísticas ou ainda dotados de
‘gramáticas’ (não necessariamente idênticas), envoltos por um mundo
e por artefatos técnicos, entre os quais figuram (às vezes) gramáticas e
dicionários” (AUROUX, 1994, p. 243).
A produção de gramáticas, bem como seu ensino, sobretudo na
universidade, conformava a Filologia como campo de saber. No caso
de Said Ali, vale dizer, uma Filologia de modo bastante particular,
designada “Portuguesa”, “com sustentação teórica para a inscrição da
gramática da língua portuguesa no quadro das disciplinas
universitárias.” (p. 196) e com as particularidades do modo de fazer
próprio do Rio de Janeiro, como lemos em Orlandi (2002).
E assim que a Filologia, como disciplina relacionada ao
desenvolvimento do ensino da gramática na Universidade, apresentava-
se, nos anos 30, como espaço de abrigo da hiperlíngua. Valendo-nos
aqui de expressão de Orlandi (2002), ela funcionava como lugar do
comentário que articula “a prática e o saber sobre a língua” . Esse espaço
mostra-se, assim, de articulação, ao mesmo tempo que intervalar e
contraditório. Contraditório porque colocava em causa e confronto o

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“outro” da língua, que passava então a se desdobrar de múltiplas
formas.
Esse outro é a língua nas suas diferenças externas, em relação à
matriz portuguesa; assim como nas diferenças internas, a partir da linha
imaginária que divide os falantes entre aqueles considerados cultos e o
povo em geral, desprovido dos bens da cultura escrita ou com escasso
acesso a ela.
É nessa perspectiva que continuamos a perscrutar fatos de língua
presentes nas Investigações Filosóficas de Said Ali como narrativas
sobre a língua portuguesa que a estabelecem em sua condição de
“língua partida”, como bem a definiram Petri e Medeiros (2013), e que
traz a lume as diferenças no interior do português brasileiro. As
referidas autoras cunharam a designação língua partida para dizer sobre
a produção de conhecimento em tom o da língua a partir de quatro
estudiosos: Coruja, Apolinário, Amaral e Nascentes. Petri e Medeiros
mostram que, seja do lugar do gramático, do dicionarista ou do filólogo,
entre o final do século XIX e o início do XX, todos eles ocupam-se com
dar lume ao local e regional, sobretudo no que diz respeito aos registros
falados da língua então estabelecida como nacional.
A noção de língua partida é, pois produtiva para problematizarmos,
na obra de Said A h (2006), o jogo tenso em relação ao espaço que
divide a fala quotidiana, do povo; e outra, considerada de caráter
elevado:

No falar usual, a cor de objetos concretos


designa-se de preferência, e às vezes
exclusivamente, com o termo preto: bola preta,
feijão preto, tinta preta, canela preta, etc. (...)
Ao epíteto negro, que tanto pode preceder o nome
como segui-lo, dá-se preferência em estilo
elevado. Os poetas e os que pretendem exprimir-
se com elegância costumam dizer negro cabelos
ou cabelos negros, olhos negros, ao passo que em
linguagem familiar se ouve com mais frequência
cabelos pretos, olhos pretos etc.4 (p. 217)
Pessoas do povo, de instrução pouca, aprendem
de ouvido nessa escola, e, em ocasião azada para
o emprego de palavras e expressões guindadas,

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não deixam de pôr negro onde, comumente
falando, diríam preto (p. 218).

Os exemplos elencados por Said Ali ratificam a noção de língua


partida, que se divide, assim, entre o falar usual, familiar e próprio das
pessoas de pouca instrução e aquele de estilo elevado. Contudo, essa
divisão não deixa de se apresentar, na tomada que dela faz o filólogo,
em sua fluidez, haja vista a afirmação que ele faz acerca da sempre
possibilidade de palavras e expressões próprias do dito estilo elevado
fazerem-se presentes nos demais usos.
Um aspecto que merece destaque consiste nas condições que
determinam a apropriação dos diferentes registros linguísticos por seus
respectivos usuários. Se o emprego considerado mais elevado é
aprendido “de ouvido”, e tal se dá “nessa escola”, havemos que nos
perguntar sobre como seria esse processo de assimilação do registro-
outro, assim como sobre de que escola está a tratar o autor. Parece ser
legítimo pensarmos em situações de trocas linguísticas que resultam em
um a projeção de assimilação a partir do contato entre as diferenças.
Neste caso específico, a alteração de forma se dá na realização de
pessoas de menor escolarização, para as quais o espaço de aprendizado
é o convívio com outros mais letrados.
Essa constatação leva-nos a nos perguntarmos se o contrário seria
possível, ou seja, a legitimação de um determinado uso a partir do falar
do povo sem instrução. No inventário feito por Said Ali, também em
suas Investigações Filológicas, ele registra esse movimento diverso, por
exemplo, ao tratar das formais verbais terminadas em -uar :

A ilusão, segundo a qual todos os verbos


terminados em -uar estariam adstritos a um só
molde de conjugação, leva a olhar com desdém
para as formas usuais de um verbo próprio da
tecnologia de lavagem de roupa. A lavadeira,
nossa mestra, que sabia do verbo e sua aplicação
antes de nós, os letrados, pronuncia com toda a
segurança enxáguo, enxáguas, enxágua,
enxáguam, enxáguem, etc. Assim lhe ensinaram
outras e assim se exprimiram as suas antepassadas
naturalmente desde o dia em que se designou pelo
termo enxaguar o ato de sacudir em água limpa a

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roupa tratada antes em água de sabão. (SAID ALI,
2006, p. 138-139).

Outro aspecto digno de comentário é o fato marcado por ele sobre a


alteração de preto por negro que pode, por vezes, ser acrescida à
inversão sintática: negros cabelos e cabelos negros. Parece soar
incomum, do ponto de vista do uso, a mesma inversão com o adjetivo
pretos. Isso nos leva a concluir sobre uma similaridade, na produção de
efeitos de sentido, entre o processo de substituição lexical e a ordem
das palavras no enunciado, sob determinadas condições de emprego.

Considerações Finais

O estudo de Said Ali sobre os nomes das cores, de caráter semântico


e filológico, publicado originalmente na Revista de Philologia e
História, em 1931, poderia, de modo bastante simplificado, ser por nós
sintetizado na seguinte fórmula: “por que e como as cores têm os nomes
que têm ”. Nos desdobramentos dessa síntese alçamos algumas das
marcas e pressupostos que embasam o projeto do filólogo em relação
ao inventário que então ele fazia da língua portuguesa do Brasil.
Uma das tônicas de sua abordagem é sobre a necessidade de
determinar, ao falarmos das cores, dada a insuficiência da linguagem.
Nesse escopo de discussão não há como ladear aspectos da semântica
de Michel Bréal, no debate que este faz acerca da imperfeição da
linguagem:

... não há dúvida de que a linguagem designa as


coisas de modo incompleto e inexato. Incompleto,
porque não se esgotou tudo o que se pode dizer do
sol quando se disse que ele é brilhante, ou do
cavalo quando se disse que ele corre. Inexato,
porque não se pode dizer do sol que ele brilha
quando se escondeu. Ou do cavalo que ele corre
quando está em repouso, ou quando está ferido ou
morto. (p. 124).

O tem a da insuficiência da linguagem, presente nos dois estudiosos,


encontra ponto de encontro também na consideração que ambos fazem
do indivíduo (diriamos nós do sujeito) na produção de significados

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(sentidos). E isso à revelia da orientação hegemônica dos estudos da
linguagem da época. O elemento subjetivo de Bréal e o indivíduo
psicológico de Said Ali fazem pulsar sua presença nos fatos de
língua(gem). E marcam-se nos limites tensos e imprecisos dessa
ferramenta imperfeita5, em temporalidades nas quais a tônica ainda não
atentavam para os aspectos da exterioridade linguística.
As nuances que Said Ali empresta à sua abordagem sobre as cores
partem da ideia da incompletude, da insuficiência da linguagem e alçam
a esfera dos usos, posto que ele leva em conta os falantes da língua e os
diferentes posicionamentos sociais destes. A partir desse trajeto,
enquanto analistas de discurso que somos, podemos ler a produção do
filólogo Said Ali como espaço que nos permite refletir acerca de dois
movimentos. De um lado, a incompletude como lugar no qual se marca
a indeterminação do sujeito que diz sobre as coisas do mundo
(igualmente indeterminadas) e que, ao dizê-las a partir desse estatuto,
produz o efeito de completude ao determiná-las via circunscrição das
coisas à ordem do conhecido: algo é como a cor do café.... de outro
lado, materializa-se, nesse gesto, também a dupla divisão a que se
referia Orlandi (2009), o fato de que a língua brasileira, que então se
consolidava enquanto tal, tinha esse processo estabelecido a partir da
determinação de suas diferenças em relação ao português de Portugal,
por um lado, e das diferenças internas, demarcadas pelo olhar dos
gramáticos em relação à sua história/memória local. E assim que
designações como falar usual, linguagem de chã, linguagem familiar,
falar do povo dentre outras, opõem-se a estilo elevado, linguagem culta,
linguagem de pessoas dadas às letras... Opõem-se ao mesmo tempo em
que, pelo recolhimento que delas Said Ah faz, a partir de suas condições
de uso, da memória em que as palavras e expressões estão imersas;
também põem em causa a quem pertence, de fato, a legitimidade de um
determinado uso. Lembremo-nos, do que ele diz acerca das lavadeiras
e das formas do verbo enxaguar.
A partição na língua mantém-se, contudo, por vezes fica em
suspenso o estatuto dessa divisão. Mantém-se em suspensão também o
embate determinação-indeterminação dos sentidos. Nesse espaço de
suspensão, fazemos falar Manuel de Barros, poeta a quem recorremos
para a epígrafe deste texto. No delírio próprio aos poetas e às crianças,
com ele colocamo-nos a escutar as cores, como em um momento

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inaugural, de "dcscomcço". quando nomeamos já enredados em/por
narrativas múltiplas sobre a língua, sempre incompleta.

Referências
AUROUX, Sylvain. A “hípcrlíngua" e a extemalidade da referência.
Trad. Luiz Francisco Dias. In: Orlandi, Eni (Org.). Gestos de leitura:
da h istória no discurso. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1994. p. 241­
251. ’ ’
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da linguagem . Trad. Paulo Alcoforado. São Paulo: Cultrix, 1978.
ORLANDI, Eni. L íngua e conhecim ento linguístico: p a ra um a
história das idéias no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002.
ORLANDI, Eni. Língua brasileira e outras histórias: discurso sobre
a língua e o ensino no Brasil. Campinas, Ed. RG, 2009.
PECHEUX, Michel. Sem ântica e discurso: um a crítica à afirm ação
do óbvio. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas: Ed. Da UNICAMP, 1988.
PETRI, Verli e MEDEIROS, Vanise. "Da língua partida: nomenclatura,
coleção de vocábulos e glossários brasileiros/’ In: L etras, n. 46, 2013,
UFSM.
SAID ALI, Manuel. Investigações Filológicas. 3a. ed. Rio de Janeiro:
Lucema, 2006.
SAID ALI, Manuel. G ram ática H istórica da Língua Portuguesa. 3a.
ed. São Paulo: Melhoramentos, 1964.

Notas

* Doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente é


professora na Universidade Federal do Paraná, onde atua na graduação e na pós-
graduação. E-rnail: gesa.rasia@gmail.com.
1 Os destaques são nossos.
2 Platão,Mênon, 74c (Trad. de Maura Iglésias; Ed. Puc-Rio, Loyola; 2001).
3 Os destaques são nossos.
4 Os destaques são do autor.
5 Valenno-nos, aqui, de designação de Paul Henry, em “A Ferramenta Imperfeita”
(1992). - •

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DOI: 10.20396/lil.v25i49.8669226

O movimento da língua na Grammatica Histórica de


Said Ali: a materialidade em pauta

The language movement in the Grammatica Histórica


by Said Ali: the materiality in question
Suzy Lagazzi*
U nicam p

Resumo: Este artigo, a partir de uma abordagem discursiva


materialista, fa z um percurso pela Grammatica Histórica da Lingua
Portugueza, de M. Said Ali, discutindo e analisando o investimento
descritivo do autor na comparação de diferentes momentos do
português, a partir da premissa de que “deixará de ser histórico o
estudo de vocábulos que desprezar as alterações semânticas ” (SAID
ALI, 1931, p. III, Prólogo). Numa perspectiva que se contrapõe a
classificações gramaticais estanques e ao logicismo, Said Ali consegue,
de maneira muito interessante, dar visibilidade ao movimento da língua
portuguesa em seus diferentes usos ao longo da história, ressaltando,
na materialidade linguística, processos significativos de interlocução
entre o falante e o ouvinte, sem cair num reducionismo comunicacional.

Palavras-chave: Said Ali, Grammatica Histórica da Lingua


Portugueza, Estudos gramaticais, Materialidade linguística. Uso da
língua.

Abstract: This article, fro m a m aterialist discursive approach,


m akes a jo n rn ey throngh the G ram m atica H istórica da L ingua
P ortugueza byM . S a id Ali, discussing a n d analyzing the anthor ’s
descriptive investm ent in the com parison o f different m oments o f
Portuguese, fro m the p rem i se o f that “the study o f w ords that
disregard sem antic alterations w ill no longer be h isto rica l”

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(SAID ALI, 1931, p. III, Prologue). In a perspective that opposes
stagnant grammatical classifications and logicism, Said A li
reaches, in a very interesting way, to give visibility to the
movement o f the Portuguese language in its different uses
throughout the history, highlighting, in the linguistic materiality,
significant processes o f dialogue between the speaker and the
listener, without falling into communication reductionism.

Keywords: Said Ali, Grammatica Histórica da Lingua Portugueza,


Grammar studies, Linguistic materiality, Language use.

A Grammatica Histórica em cena

A Grammatica Histórica da Lingua Portugueza, de Manuel Said


Ali, sempre exerceu grande sedução sobre mim e esteve presente em
muitas das minhas aulas da disciplina História das Idéias Linguísticas.
Trabalhada no contraponto da Gramática Secundária, também de
autoria de Said Ali, principalmente a Grammatica Histórica produzia
uma mexida interessante no imaginário dos alunos sobre o que é uma
gramática. Voltar a ela, neste momento, significa localizar a minha
sedução em um percurso de análise que dá visibilidade a pontos que me
convocaram e ainda me convidam à reflexão, a partir de uma
perspectiva que analisa o discurso no movimento da história; significa
ser mobilizada por questões discursivas no campo da História das Idéias
Linguísticas.
A Grammatica Histórica da Lingua Portugueza é apresentada, por
Said Ali, como uma obra que se estruturou a partir da Lexeologia,
publicada em 1921, e que tinha como objetivo estudar o
desenvolvimento do português, desde os primeiros documentos
escritos, averiguando as alterações por que passou a linguagem em
tantos séculos, nas diversas fases do português histórico. Entre a
lexeologia semântica e a semântica lexeológica, seu estudo destoa do
“vetusto systema de classificação”, nos diz o autor, advertindo que
“deixará de ser histórico o estudo de vocábulos que desprezar as
alterações semânticas” (SAID ALI, 1931, p. III, Prólogo).

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Vejo, nesta perspectiva de Said Ali, um importante olhar para a
língua que vai pensar seu movimento na história a partir da relação entre
os vocábulos e seus sentidos. Esse olhar, que relativiza “o vetusto
systema de classificação”, como lemos acima, traz um enfoque que me
permite trabalhar com a polissemia do termo gramática.
Quando nos diz que seu trabalho oscila entre a lexeologia semântica
e a semântica lexeológica, o autor ressalta o vínculo entre vocábulo e
sentido em sua obra, vínculo que mobilizo em minha reflexão e a partir
do qual pergunto: Como essa relação privilegiada entre vocábulo e
sentido toma corpo no conjunto da Grammatica Histórica e afeta o
conceito de gramática?
Uma produtiva questão discursiva no campo da História das Idéias
Linguísticas. A reflexão que apresento vem pautada por essa relação de
movimento, em que os sentidos me tocam na análise de seus efeitos.
Este percurso pela Grammatica Histórica de Said Ali se faz no
batimento entre a descrição e a interpretação, procedimento fimdante
do olhar materialista discursivo. Localizar e delimitar a interpretação
que vai se produzindo na leitura do estudo elaborado por Said Ali sobre
o desenvolvimento do português em suas mudanças, requer um olhar
atento para as formulações do autor em suas condições de produção.

A Grammatica Histórica em análise

Considero importante retomar Said Ali quando nos diz que “a parte
complementar que a Lexeologia reclamava saiu a lume dois anos
depois” . Chama a atenção o modo pelo qual o autor fala da demanda
imposta por sua obra. O próprio texto “reclamando” do autor a
continuidade do estudo, a prática demandando teorização. Observamos
um autor inquieto e em movimento, num processo em que a autoria se
constitui na prática da produção do conhecimento. O trabalho sobre a
língua construindo o conhecimento da língua.

Não há rigoroso accordo entre os homens de


sciencia sobre a classificação dos diversos falares
da Romania; mas está assentado hoje que não
deve prevalecer sómente a divisão política, nem
se deve attender só ao desenvolvimento literário.
Nas diversas regiões onde imperavam as linguas

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literárias, ha dialectos muito notáveis que a
sciencia não pode desprezar. De alguns delles o
estudo está apenas no inicio, e isto difficulta
sobremodo a classificação. (SAID ALI, 1931, Ia
Parte, p. 1)

Said Ali ressalta que os falares, organizados em diferentes dialetos,


vão demandando os “homens de sciencia” em seu trabalho sobre as
línguas, produzindo questões e mostrando que a classificação se faz sob
diferentes determinações, o que impede um “rigoroso accordo” entre os
estudiosos e requer que essa classificação esteja aberta a novas
perspectivas analíticas. Justamente o olhar histórico que Said Ali lança
sobre a língua portuguesa coloca em pauta a classificação em sua
rigidez, requerendo do “vetusto systema” a acolhida de novos
parâmetros para a descrição dos vocábulos na relação com os sentidos.
Consultando os prólogos e o índice da Grammatica Histórica,
entendemos que “a parte complementar reclamada”, localizada como 2a
Parte, se compõe da Formação de palavras e da Syntaxe, que vêm se
juntar aos subtítulos da Ia Parte: Literatura, Historia resumida da
Lingua Portugueza, Alterações phoneticas do latim vulgar, Os sons em
portuguez e sua representação, e finalmente o subtítulo Os vocábulos,
subdividido em Nomes em geral, Substantivos, Adjectivos, Numeraes,
Pronomes, Verbos, Advérbios, Preposições e Conjunções.
O grande destaque da Ia Parte são justamente os vocábulos, fazendo
jus ao título Lexeologia, que nomeou a edição de 1921. Segundo Said
Ali, a lexeologia, “a parte da grammatica que estuda os vocábulos”,
“differe da phonetica em considerar os sons combinadamente e
denotando idéias e relações” (SAID ALI, 1931, Ia Parte, p. 44).
Continua o autor:

Não examina a lexeologia as palavras, sem


primeiro divididas em um pequeno numero de
grupos de accordo com certos caracteres comuns.
Base desta classificação é o sentido geral das
palavras, inquirindo-se se denotam seres,
qualidades, acções, relações, etc.; e dahi a divisão
em nomes, pronomes, verbos, etc,; que por sua
vez se subdividem, attendendo sempre a

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caracteres de ordem semântica, como veremos em
seu lugar. (SAID ALI, 1931, Ia Parte, p. 44-45)

Afirmar a classificação como decorrente do sentido geral das


palavras é um gesto interessante, principalmente quando esse gesto se
junta à afirmação de Said Ali de que “certos vocábulos variam de
categoria gramatical em virtude da mudança de sentido” (SAID ALI,
1931, PROLOGO DA LEXEOLOGIA, p. III).
Pensar a gramática na relação com as mudanças da língua é
desorganizar o imaginário normativo prescritivo da gramática no
quadro dos “instrumentos linguísticos de gramatização”
(AUROUX,1992, p. 65). Segundo Auroux:

Nós chamamos gramática de uma língua L, algo


como o que fez Panini para o sânscrito; Dionísio
de Trácia e Apolônio para o grego; Varrão,
Donato e Prisciano para o latim e Sibawayhi e
seus sucessores para o árabe.
Uma gramática contém (pelo menos): a. uma
categorização das unidades; b. exemplos; c. regras
mais ou menos explícitas para construir
enunciados (os exemplos escolhidos podem tomar
seu lugar). (AUROUX, 1992, p. 66)

Auroux reitera que “os paradigmas completos - sob forma tabular -


não figuravam nos corpora dos gramáticos grego-latinos clássicos,
estando seu aparecimento ligado à pedagogia das línguas [...]” (ibid., p.
66), e discute o papel dos exemplos nas gramáticas, afirmando como
estes “se beneficiam de uma espantosa estabilidade no tempo: nós os
reencontramos, por um procedimento de tradução, de língua a língua.
A constituição de um corpus de exemplos é um elemento decisivo para
a gramatização” . Auroux acrescenta que os exemplos são “o núcleo da
língua normatizada” (ibid., p. 67).
No que toca à categorização, Auroux lembra que ela se sustenta
sobre “termos teóricos e uma fragmentação da cadeia falada”, e chama
a atenção para o fato de que os “termos teóricos mais globais”, como
‘palavras’ e ‘enunciados’, “ao contrário das classes de palavras, são
raramente discutidos, conquanto tenham implicações consideráveis”
(ibid., p. 67).

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É, portanto, sintomática a escolha de Said Ali pelos termos
‘vocábulo’ e ‘palavra’ como estruturantes de seu estudo da língua
portuguesa na Grammatica Histórica. Sendo “termos teóricos mais
globais”, segundo a compreensão de Auroux, são termos mais propícios
ao trabalho com os sentidos, já que a categorização fica mais diluída
nessa teorização mais global. Vocábulo, palavra e sentido vão
organizando a discussão na Grammatica Histórica.

A Grammatica Histórica no movimento da língua

N a abertura do subtítulo da Ia Parte, Os vocábulos: especies, formas


e significação, que compõe a Lexeologia, lemos:

No exame das palavras verifica [a Lexeologia]


serem estas formadas geralmente de duas partes:
o radical, parte mais ou menos estável e de
significação própria, e afifiixos, elementos
variáveis, de significação relativa [...]. Palavras ha
que não apresentam mais que o radical, por ter
desaparecido o elemento variável em que
terminavam (SAID ALI, 1931, Ia Parte, p. 44).

Nesta descrição de Said Ah, ressalto o cuidado do autor em afirmar


a relativização no que concerne tanto à formação quanto à significação
das palavras: “geralmente de duas partes [...] parte mais ou menos
estável [...] elementos variáveis, de significação relativa [...] palavras
ha que [...]”. O movimento da língua no seu uso é o ponto de ancoragem
de Said Ah.
N a continuidade de sua discussão, uma definição me convoca: “As
palavras com que se designam os seres e seus atributos chamam-se
simplesmente nomes. É o termo mais despretensioso e mais acertado de
toda a nomenclatura grammatical” (ibid., p. 45). Comentar e opinar
sobre a terminologia é um modo de realçar seu caráter contingente. Said
Ali suspende o efeito de naturalização e estabilização das
terminologias. Ao nos expor ao seu modo de definir, o autor reitera que
é no uso da língua que a classificação vai sendo delimitada:

Fazendo-se, como se faz, distinção entre as


denominações dos seres propriamente ditos e as

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denominações dos attributos de dimensão,
tamanho, cor, consistência, etc., pelos quaes os
differençamos uns dos outros, toma-se necessário
dividir os nomes em substantivos e adjectivos
(SAID ALI, 1931, Ia Parte, p. 45).

‘Vocábulo’, ‘palavra’, ‘term o’, assim como as nomeações das


categorias analisadas - Nomes, Substantivos, Adjectivos, Numeraes,
Pronomes, Verbos, Advérbios, Preposições e Conjunções - vão se
alternando ao longo da exposição de Said Ali, numa fluidez que
atravessa toda o estudo histórico feito pelo autor. A categorização e os
exemplos estão presentes na Lexeologia, mas não estão a serviço da
lógica ou de uma perspectiva psicologizante reducionista: “Pode-se
geralmente accrescentar -inho, -zinho a qualquer substantivo, mas é
relativamente diminuto o numero de vocábulos a que é possivel ajuntar
-ão ou alguma de suas variantes [...]” (ibid., p. 49); “Vocábulos não-
oxytonos terminados por sibilante, como oásis, ourives, conservam-se,
segundo a linguagem hodiema, inalterados no plural. Em portuguez
antigo dizia-se porem ourivezes [...]” (ibid., p. 51); “Das palavras em -
l seguem rigorosamente a regra geral mal, males e cônsul, cônsules. No
plural dos demais nomes dá-se o desapparecimento de /: dedaes [...]”
(ibid., p. 51); “Raros são os casos como os exemplos precedentes, em
que o feminino é vocábulo muito diverso do masculino” (ibid., p. 55);
“Das palavras em -ez são invariáveis quanto a genero: cortez, montez,
pedrez, soez, tremez. Em port. ant. esta invariabilidade estendia-se aos
adjectivos pátrios em -ez” (ibid., p. 72); “Por muito sugestivo que seja
o termo, não satisfaz, à ciência da linguagem definir o pronome como
palavra supridora do nome substantivo” (ibid., p. 92).
Observo que o movimento da língua no seu uso é sempre realçado
ao longo da descrição empreendida. Mesmo quando fala em regra,
como em um dos recortes acima, Said Ali não fala em exceção à regra.
Os casos que não seguem a “regra geral” são apresentados em sua
diferença, como fatos da língua, comparados na relação entre o
“portuguez antigo” e a “linguagem hodiem a”. A língua em seu uso vai
delimitando o que “geralmente se pode acrescentar”, o que “é
relativamente diminuto”, os casos que concernem ao plural, a relação
de um vocábulo masculino com seu correspondente feminino, os casos
de concordância de gênero, as questões relacionadas a definições, para

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me ater aos recortes acima apresentados. Ressalto que a diferença
encontra lugar, no estudo histórico de Said Ali, para ser tomada como
elemento constitutivo do movimento da língua.
Merece destaque uma afirmação de Said Ali, que vem ao encontro
dessa sua postura não categorizante:

Entre dialecto e lingua não ha differença essencial


senão a circumstancia de ser a lingua aquelle
dialecto que, entre outros muitos usados no
mesmo paiz, se preferiu empregar como
linguagem de chancelaria, servindo para a
escriptura de todos os documentos officiaes. O
dialecto, que se adoptou nas cortes dos reis,
passou a ser o falar da gente culta, ficando por fim
a linguagem usada nas produções literárias.
Ao cabo de algum tempo a lingua assim
constituída emancipa-se necessariamente do falar
regional que lhe deu origem. Dá-se-lhe um
caracter de necessidade, submetendo-a a regras de
bom gosto e a normas grammaticaes mais fixas;
introduzem-se nella expressões novas, que em
grande parte se vão buscar ao latim. De popular
que era, o antigo dialecto, agora lingua oficial,
adquire feição erudita e nobre, desprezando, por
pebléas, certas maneiras de dizer que pareciam
mal em boca de gente de educação mais fina.
(SAID ALI, 1931, p. 2).

Dar a ver o processo que marca a institucionalização e oficialização


de uma língua é uma proposta que se pauta pela busca da compreensão
do funcionamento dessa língua, trazendo seus movimentos e
delimitando percursos no seu uso. Said Ah, de maneira muito
interessante, vai relatando como a forma oficial se faz resultado de
processos. Regras e normas são imposições que conformam a língua
produzindo o efeito de normalidade. Legitimam e oficializam uma
versão e a transformam no padrão reconhecido, reafirmando sua
estabilização em nome de uma unidade que se apresenta como
necessária. Como nos faz ver o autor, estabilização e mudança sempre
tensionam a relação entre as palavras e os sentidos.

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Também na 2a Parte da Grammatica Histórica essa relação entre
palavra e sentido é um ponto de sustentação importante.
Ao abrir o estudo da Syntaxe, no subtítulo Proposição em geral,
somos recebidos pela seguinte afirmação: “Definição do conceito da
proposição que seja geralmente aceita, não existe” (2a Parte, p. 44). Said
Ali vem desorganizar as certezas no campo da gramática com um
enunciado que não tem meio termo. Relativiza a gramática sem
qualquer relativização! Retomada de Brugmann, essa “observação
particular”, tal como a nomeia Said Ali, vem marcar o terreno
divergente no qual se inserem os “pensadores modernos que mais
profundamente meditaram sobre tão importante assunto” (ibid , p. 44).
Criticando tanto a perspectiva lógica, cujos princípios gerais muito
comumente não se sustentam em casos particulares, quanto a
perspectiva psicológica que concebe a linguagem como reflexo direto
do pensamento, Said Ali vai defender que “é sobretudo [...] o
communicar o facto a outrem, o querer tomal-o sabedor de cousa que
desconhecia, é isto, o que caracterisa o predicado, e portanto a
proposição” (2a Parte, p. 45-46). O autor reitera: “para o grammatico,
para o linguista [...] o que importa é assignalar que um indivíduo
transmitte a outro o conhecimento de um facto por meio de certa
combinação de palavras ou, ainda, por uma só palavra” (p. 46).
Portanto, nossas relações são, necessariamente, relações de linguagem,
nos permite dizer Said Ah, e a interlocução, que se estrutura numa
“certa combinação de palavras” ou em “uma só palavra”, é a base da
sintaxe tal como proposta pelo autor na Gramática Histórica. Com o
recorte abaixo, Said Ali encerra o subtítulo Proposição em Geral:

Com estas bases iremos naturalmente discriminar


outras orações além das do tipo mais perfeito, que
é o das orações explicitas. Distinguiremos
também as inteijeições que não passam de meros
gritos espontâneos, daquelas que se proferem
calculadamente contando tomar o ouvinte sabedor
do que pensamos ou sentimos. (SAID ALI, 1931,
2a Parte, p. 46)

Ressalto o final deste recorte, chamando a atenção para o enunciado


“tom ar o ouvinte sabedor do que pensamos ou sentimos” . O gesto de
“tom ar o ouvinte sabedor” envolve um processo que alude a uma

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afetação do ouvinte em relação ao falante pela língua. Isso é importante!
Não se trata apenas de uma relação comunicativa, de informar o
ouvinte, mas fazê-lo “sabedor do que pensamos ou sentimos” por meio
das inteijeições que não são “meros gritos espontâneos”. Falante e
ouvinte ficam enlaçados pela língua, no que proponho nomear uma
demanda material subjetiva. O enunciado aqui recortado é significativo
dessa convocação da subjetividade na materialidade da língua.

A Grammatica Histórica sob o olhar materialista

Para conseguir avançar um pouco mais na compreensão dessa


demanda material subjetiva nesta obra de Said Ah, volto ao capítulo da
Syntaxe.
Compondo o subtítulo Syntaxe encontro Proposição em Geral;
Termos da Proposição; Proposições Secundarias - parataxe e
hypotaxe; Interrogação Indirecta; Linguagem Affectiva; Concordância
em Geral; Casos Particulares de Concordância; Funções dos Tempos
Verbaes - Presente, Imperfeito e Perfeito, Mais-que-Perfeito, Futuro;
Emprego dos Modos - Imperativo, Indicativo e Conjuntivo; Emprego
do Infinitivo - Infinitivo pessoal; Emprego do Gerundio. Em princípio,
um conjunto que não foge muito ao que se reconhece como questões
relacionadas à sintaxe, com exceção do capítulo Linguagem Affectiva.
No entanto, o que se apresenta como novidade, é o modo pelo qual Said
Ali vai tecendo o laço entre falante e ouvinte:

Inconfundível com a sentença expositiva, de que


se utiliza o indivíduo falante para transmitir seus
pensamentos a outrem, é a frase que ele lhe dirige
sob a forma de pergunta, quer proferida
isoladamente, quer em meio de um discurso.
Percebe-a o ouvinte logo pela tonalidade mais alta
que, em frase de certa extensão, costuma ser mais
notória no fim, ao contrário das frases expositivas,
as quais em geral terminam por uma nota mais
grave. Confrontem-se: Chove. Chove? Ficarás.
Ficarás? Perdeste um grande amigo. Perdeste um
grande amigo? Também se assinalam pela
elevação de voz certos termos interrogativos com
que se pode iniciar a pergunta.

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Da interrogação direta difere a interrogação
indireta, que se exprime por meio de oração
composta com a tonalidade habitual da linguagem
expositiva, constituindo-se a oração principal com
um verbo denotador de desconhecimento ou
desejo de ser informado, e enunciando sob a
forma de subordinada, iniciada por partícula
dubitativa ou expressão interrogativa, aquilo
sobre que se deseja ter informação ou
conhecimento: Não sei se ficarás; diga-me se ele
está em casa; quisera saber onde anda, quando
virá e por que se demora, etc. (SAID ALI, 1931,
2a Parte, p.55).

Said Ali vai mostrando que a interlocução entre falante e ouvinte é


um processo que vai acontecendo na língua, marcado em sua
materialidade. No recorte acima, o autor especifica que a pergunta
direta sempre se apresenta por uma alteração tonal. É a tonalidade mais
alta que permite ao ouvinte “perceber” que se trata de uma pergunta e
não de uma sentença expositiva, que termina geralmente por uma
tonalidade mais grave.
Nessa sua descrição, Said Ali dá visibilidade à imbricação material1
entre sintaxe e prosódia no processo de interlocução entre falante e
ouvinte. O autor especifica como a sentença, em sua forma expositiva
ou interrogativa, só se configura na imbricação com o tom mais grave
ou mais alto. O modo como Said Ali vai descrevendo a língua
portuguesa em seus diferentes usos, sempre chamando a atenção para
os efeitos de sentido produzidos sobre o falante e o ouvinte, me diz que,
embora não faça sua descrição dentro do dispositivo discursivo
materialista, as observações do autor são muito sensíveis à
materialidade da língua e a seus efeitos sobre o sujeito em relações de
interlocução. Como ressaltei anteriormente, Said Ali, ao enfocar a
relação entre falante e ouvinte, não se restringe a uma perspectiva
comunicativa. Ele vai realçando a afetação entre falante e ouvinte pela
língua. Ao formular, por exemplo, que o falante “se utiliza da sentença
expositiva para transmitir seus pensamentos a outrem” (ibid , p. 55), é
importante observar a força da forma reflexiva do verbo - se utiliza -
na convocação da subjetividade que enlaça falante e ouvinte, numa
relação que extrapola a comunicação. Ainda na sequência do recorte,

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quando discorre sobre a interrogação indireta, “que se exprime por meio
de oração composta com a tonalidade habitual da linguagem
expositiva” (ibid, p. 55), Said Ali acrescenta que a oração principal trará
“um verbo denotador de desconhecimento ou desejo de ser informado”
(ibid, p. 55), concernindo diretamente o falante numa demanda material
subjetiva, que também aqui se faz presente e abre espaço para o desejo
na relação de interlocução.
As descrições de Said Ali nos dizem que é na prática linguageira que
o sentido se (con)forma. Falante e ouvinte ficam materialmente
enlaçados na demanda subjetiva que os captura. Said Ah vai nos
sensibilizando pra um funcionamento da língua e pra uma relação entre
falante e ouvinte que não cabem numa concepção lógica da linguagem,
ou numa concepção que tome a linguagem como reflexo de algo
anteriormente pensado. Pensamento é já linguagem materialmente
estruturada e discursivizada. A relação de interlocução também não
cabe numa perspectiva apenas comunicativa e a sensibilidade do mestre
Said Ali, como é ressaltada por todos os estudiosos de seu trabalho, é
ímpar para nos dizer tudo isso.

A Grammatica Histórica fazendo história

O estudo da Gramática Histórica de Said Ah me trouxe algumas


compreensões importantes num espaço de sutilezas e refinamento.
Afirmei, no início deste artigo, que o olhar de Said Ah para a língua
portuguesa em seu movimento na história, a partir da relação entre os
vocábulos e seus sentidos, nos permite, e nos demanda, acrescento,
trabalhar a polissemia do termo gramática. Importante dizer que o
trabalho do autor, enfocando a língua em diferentes usos na relação de
interlocução entre falante e ouvinte, tom ou possível entender que a
diferença encontra lugar, no estudo histórico de Said Ali, para ser
tomada como elemento constitutivo do movimento da língua. Isso faz
furo na imagem da gramática como um “vetusto systema de
classificação”, questionando o endosso da dicotomia acerto e erro no
uso da língua. Said Ali vai localizando e dando visibilidade, na
Grammatica Histórica, à classificação como um movimento na
história.
Nas descrições da língua portuguesa que o autor vai nos
apresentando para falar desse movimento na história, a materialidade

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linguística está bastante realçada e a relação de interlocução entre
falante e ouvinte fica fortemente reiterada na e pela língua. A língua
enlaça falante e ouvinte numa demanda material subjetiva que
confronta as bases lógicas e normativas do fazer gramatical, assim
como a perspectiva comunicacional da linguagem.
O olhar inquieto e arguto de Said Ali, direcionado para a
materialidade da língua portuguesa nos diferentes usos que a história
foi lhe trazendo, significa, no campo das Ciências da Linguagem, um
gesto político de resistência na e para a produção de um conhecimento
linguístico politicamente consequente e um conhecimento gramatical
sensível aos movimentos da língua.

Referências bibliográficas
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Pontes, 1992.
LAGAZZI, S. Paráfrases da imagem e cenas prototípicas: em tom o da
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Mídia, vol. 1. G. Flores, N. Neckel, S. Gallo (orgs.). Campinas: Pontes,
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Samba da Utopia. Análise de Discurso em Rede: Cultura e Mídia,
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LAGAZZI, S. Entre o amarelo e o azul: a história de um percurso.
Línguas e Instrumentos Linguísticos, Campinas, SP, n. 44, p. 290­
316, 2019b. DOI: 10.20396/lil.v44i0.8657818. Disponível em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/lil/article/view/86578
18. Acesso em: 25 fev. 2021.
SAID ALI, M. Grammatica Histórica da Lingua Portugueza. São
Paulo: Companhia Melhoramentos de São Paulo, 1931.

Notas

* Professora Colaboradora do Departamento de Linguística do IEL, atua nas áreas de


Análise do Discurso e História das Idéias Linguísticas. Integra o Centro de Pesquisa
PoEHMaS (IEL/Unicamp) e lidera, no CNPq, os grupos de pesquisa O discurso nas
fronteiras do social: diferentes materialidades significantes e tecnologias de

Líng. e Instrum. Linguíst., Campinas, SP, v. 25, n. 49, p. 232-245, jan./jun. 2022.
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linguagem, em parceria com Guilherme Adorno de Oliveira, e Linguagem e cinema: o
gesto em foco, em parceria com Igor Capelatto.
1 Venho trabalhando a imbricação material em análises de documentários, filmes,
videoclipes, capas de livros e revistas, fotografias e ilustrações, ressaltando a
importância de considerar as diferentes materialidades significantes em contradição,
tomando como procedimentos fundamentais da perspectiva discursiva materialista o
exercício parafrástico e aremissão do intradiscurso ao interdiscurso. Cf. Lagazzi (2015,
2019a, 2019b).

Líng. e Instrum. Linguíst., Campinas, SP, v. 25, n. 49, p. 232-245, jan./jun. 2022.
245
DOI: 10.20396/lil.v25i49.8669272

Said Ali e a gente na história da língua e da


gramatização brasileira

Said Ali and a gente in the history of language and


brazilian grammatization

A na Cláudia Fernandes Ferreira*


U N IC A M P

M ichel M arques de Faria**


U N IC A M P

Resumo: De uma perspectiva discursiva da História das Idéias


Linguísticas, analisamos os modos pelos quais a pronomincdização do
a gente comparece como uma questão que é elaborada e reelaborada
em diferentes produções de Said Ali. Buscamos mostrar de que
maneiras sujeito e língua vão sendo significados/divididos quando o
autor reflete sobre o a gente, ao mesmo tempo em que procuramos
observar como ele lida com o problema da indeterminação e da
determinação do pronome. Com essas análises, pudemos tecer algumas
reflexões sobre as condições históricas especificas do funcionamento
pronominal do a gente no Brasil articuladas à produção de um saber
sobre esse funcionamento, considerando as relações de dominação e
resistência constitutivas da nossa história de colonização e de
descolonização.

Palavras-chave: Said Ali, A gente, Indeterminação/determinação,


Colonização, Descolonização.

Abstract: From a discursive perspective o f the History o f Linguistics


Ideas, we ancdyze the wavs in which the pronominalization o f “a gente ”
cippecirs as an issue that is elaborcited and reworked in different

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productions by Said Ali. We seek to show in what ways the subject and
the language are signified/divided when the author reflects on the
pronominalization o f “a gente ”, at the same time as we seek to observe
how he deals with the problem o f indetermination and the
determination o f the pronoun. With these analyses, we were able to
weave some reflections on the specific historical conditions o f the
pronominal functioning o f “a gente” in Brazil, articulated to the
production o f knowledge about this functioning, considering the
relations o f domination and resistance that constitute our history o f
colonization and decolonization.

Keywords: Said Ali, “A gente ”, Indetermination/determination,


Colonization, Decolonization.

O que ninguém ainda não tinha feito,


a gente se sentia no poder fazer
Guimarães Rosa

Introdução

O presente trabalho visa compreender como diferentes


funcionamentos de a gente se tomaram uma questão para Said Ali em
seus escritos. Questão esta que, conforme mostraremos, está ligada à
difusão e à visibilidade que um funcionamento específico de a gente
passou a ter no espaço brasileiro1.
Nosso percurso de reflexão se inscreve no âmbito de inquietações
que, hoje, são muito comuns, estando presentes tanto em reflexões
metalinguísticas do nosso dia a dia, enquanto saberes linguísticos
cotidianos (FERREIRA, 2020 c, d), quanto em trabalhos desenvolvidos
nas instituições do saber, notadamente por gramáticos e linguistas, em
textos mais diversos, produzidos ao longo dos séculos XIX, XX e XXI.
Uma das razões principais dessas inquietações seculares diz respeito ao
fato de que, entre nós, no Brasil, dizer a gente no lugar de nós é, na
maioria das vezes, uma regra e não uma exceção.
Atualmente, é possível definir a gente como pronome pessoal da
primeira pessoa do plural. Mas de que maneira isso se colocava e se

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formulava na época de Said Ali? De uma perspectiva discursiva da
história das idéias linguísticas, buscamos compreender o processo de
constituição de um saber linguístico sobre a gente enquanto pronome
analisando os modos pelos quais a questão do a gente no Brasil vai
sendo trabalhada e retrabalhada em diferentes publicações de Said Ali.
Nossa reflexão está organizada em cinco partes, além da presente
introdução e das considerações finais. N a primeira parte, apresentamos
alguns apontamentos sobre a questão do a gente em diferentes
produções linguísticas de épocas diferentes. N a parte seguinte,
expomos brevemente o nosso percurso de análise sobre as produções de
Said Ali a respeito da questão do a gente. N a terceira parte, analisamos,
em sua Grammatica histórica, como o autor faz uma história de homem
e a gente enquanto pronomes indefinidos. N a quarta parte, passamos
para uma análise contrastiva de duas obras do autor, Grammatica
histórica e Meios de expressão e alterações semânticas, de modo a
apontar para algumas reelaborações de Said Ali para o a gente. Na
quarta parte, dedicada à análise do artigo “Pessoas indeterminadas”,
acompanhamos alguns desdobramentos de suas reflexões sobre o a
gente, formuladas na tensão entre indeterminação e determinação. Ao
longo das análises de cada uma das obras, buscamos destacar as
maneiras pelas quais sujeito, língua e vão sendo significados em relação
ao a gente a partir de divisões do sujeito que fala a língua, da
circunstância em que a língua é empregada e de um a característica que
é atribuída ao sujeito e/ou à língua. Nas considerações finais refletimos
sobre as condições históricas específicas do funcionamento pronominal
de a gente no Brasil articulada à produção de um saber sobre esse
funcionamento, tendo em vista as relações de dominação e resistência
constitutivas da nossa história de colonização e descolonização2.

A questão do a gente

Atualmente, há muitas produções linguísticas dedicadas ao estudo


de a gente como pronome de primeira pessoa do plural3. A partir desses
trabalhos, temos hoje a oportunidade acompanhar com detalhe o longo
processo que levou o à transformação de a gente em pronome pessoal.
Segundo Célia Lopes ([1999] 2003), o século XIX, ou talvez mesmo
um pouco antes, é um momento decisivo desse processo, que terá

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ampliação considerável no século XX em ex-colônias portuguesas
como o Brasil e Moçambique, e uma ampliação bem mais lenta em
Portugal4.
Hoje, também podemos encontrar materiais didáticos de português
brasileiro para estrangeiros em que o paradigma dos pronomes pessoais
inclui o pronome pessoal a g e n te 5. Podemos, inclusive, encontrar textos
didáticos que se propõem a elaborar propostas de ensino de a gente
como pronome pessoal em sala de aula6. E podemos, ainda, encontrar
várias gramáticas de referência que definem a gente, direta ou
diretamente, enquanto pronome pessoal7.
Mas qual era a paisagem da reflexão linguística que se desenhava
sobre esse pronome na época de Said Ali? Em um levantamento
ilustrativo de instrumentos linguísticos8 produzidos por autores
portugueses e brasileiros em edições publicadas na primeira metade do
século XX9, pudemos notar diferentes maneiras de definir o a gente :
expressão pronominal (...) igual a nós (GOMES, 1913), com o valor do
pronome nós (DIAS, 1918), e em lugar do pronome da I a. pessoa do
plural (RIBEIRO, 1930), por exemplo.
Em produções lexicográficas, gramaticais e linguísticas publicadas
entre a primeira metade do século XX e os dias atuais, há uma
heterogeneidade nas definições para o a gente. Em publicações do
século XXI, se é possível encontrar o a gente significando diretamente
como pronome (BECHARA, 2009), também é possível encontrar a
descrição locução que corresponde semanticamente ao pronome
pessoal nós (PRIBERAM, 2008-2021), além outras possibilidades
descritivas, que o tomam, por exemplo, enquanto sintagma nominal
(NEVES, 2011)10.
Essas diferenças nas definições, aqui rapidamente delineadas, dão
pistas importantes tanto sobre o processo de pronominalização do a
gente em português, quanto sobre o processo de constituição de um
saber sobre esse pronome. Um caminho de análise em tom o das
diferenças nas definições de a gente é indagar justamente sobre as
condições de produção de sua pronominalização aliada à necessidade
de constituição de um saber sobre esse pronome. Em outras palavras,
atribuímos à heterogeneidade das definições:

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1) o fato de que elas dizem respeito a mudanças de sentido de a
gente tanto em Portugal, quanto no Brasil (com semelhanças,
mas também diferenças, em razão de suas diferentes condições
de produção);
2) ao fato de que a gente pode corresponder tanto a um pronome
específico, quanto a diferentes pronomes;
3) a uma dificuldade de descrever o seu funcionamento em razão
de seu não enquadramento em nenhum paradigma pronominal
já consagrado e dado por evidente nas descrições gramaticais;
4) ao fato de que a gente vai sendo significado como popular,
familiar, informal, não culto, por exemplo, o que impede, em
muitos casos, sua entrada no paradigma da língua erudita,
formal, culta, escrita, etc.

A depender da obra gramatical, esses aspectos podem ter forças


diferentes nas formulações de descrições para o a gente.
Como veremos mais adiante, um problema que se apresenta para as
reflexões de Said Ah são os diferentes sentidos e funcionamentos do a
gente, que o autor busca discernir, formular e reformular, numa tensão
entre indeterminação e determinação. Claudine Haroche ([1984] 1992)
nos mostra como o problema da indeterminação e da determinação
colocado nas reflexões gramaticais está ligado à estruturação da
subjetividade e à definição da própria noção de sujeito na história
religiosa e jurídica, em que o indivíduo é assujeitado à Religião e depois
ao Direito11. Com as análises de escritos de Said Ah, pretendemos
contribuir para uma compreensão de como suas reflexões sobre o a
gente estão inscritas nessa história a partir das conjunturas específicas
brasileiras, que envolvem, incontomavelmente, os processos de
colonização e descolonização.

A gente em escritos de Said Ali

Consideramos os escritos de Said Ali sobre o a gente enquanto


modos de elaboração de uma questão que estava presente nas condições
específicas do processo de gramatização brasileira do portuguêsu , e
que se constitui numa relação tensa e contraditória com a gramatização
lusa da língua. Questão esta que está ligada necessariamente ao modo

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pelo qual, notadamente no espaço brasileiro, o a gente passou a
funcionar cada vez mais enquanto pronome pessoal.
Buscamos percorrer os modos pelos quais, nessas conjunturas, Said
Ali vai elaborando e reelaborando suas reflexões sobre o a gente. Em
nossas análises, nos detemos em sua Grammatica Histórica da língua
portuguesa, na edição de 1931, em seu Meios de expressão e alterações
semânticas, publicado em 1930, e em seu artigo “Pessoas
indeterminadas”, publicado em 1950 no tomo XI do Boletim de
Filologia. Ao lado disso, gostaríamos de acrescentar que, na Gramática
Secundária do autor, da década de 192013, embora já existam
considerações sobre o você na parte dedicada aos pronomes pessoais,
não há discussões sobre o a gente. Outro aspecto que cabe trazer, pois
será importante para as análises a seguir, é a formulação de Said Ali
sobre o pronome indefinido já presente nessa gramática. Nas palavras
do autor: “Dá-se o nome de pronomes indefinidos a uma serie de
pronomes applicaveis á 3a. pessoa do discurso quando esta tem sentido
vago e indeterminado.” (SAID ALI, 192?, p. 97 - negritos do autor)14.
Gostaríamos de assinalar um efeito de sinonímia entre indefinição e
indeterminação presente nas palavras do autor, que, como veremos,
também está presente em outros textos de sua obra. A questão do a
gente vai sendo elaborada e reelaborada em seus textos nessa relação
tensa e contraditória entre indefinição e definição, indeterminação e
determinação. Para observarmos como isso se dá, começaremos, no
item a seguir, com algumas reflexões sobre homem e a gente, presentes
em sua Grammatica Histórica.

Grammatica Histórica

N a primeira parte da Grammatica Histórica de Said Ali, que


compreende o estudo dos sons e a lexeologia, há uma reflexão sobre a
gente que é elaborada em conjunto com uma reflexão sobre homem.
Essas reflexões estão presentes no capítulo dessa parte da obra dedicado
aos pronomes, em particular aos pronomes indefinidos. Vejamos:

Homem e a gente. - Tem de commum estes dois


pronomes o mostrarem visivelmente que se
originaram cada qual de um substantivo; ou,

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melhor, são nomes que assumem caracter
pronominal quando usados, não já na accepção
própria, mas para indicar agente vago e
indeterminado.
Quanto á epoca de seu emprego, occupam polos
opostos na historia da lingua. Homem era de uso
commum no portuguez primitivo; menos
frequente no século 15, perdura todavia,
mórmente na linguagem popular, deixando
vestigios até o século 16. A gente é usado
principalmente na linguagem familiar da
actualidade. Exemplos do pronome indefinido
homem: (...) (SAID ALI, 1931, p. 122-123,
negritos e itálicos do autor).

De início, destacamos o fato de o autor indicar, inicialmente, que


tanto homem quanto a gente são pronomes. Essa afirmação é
especificada logo em seguida, quando Said Ali acrescenta: “são nomes
que assumem caracter pronominal quando usados, não já na accepção
própria, mas para indicar agente vago e indeterminado.” . Interessante
notar que, conforme o autor, tal caráter pronominal ocorre a partir de
um uso que já não se dá mais na “accepção própria” . Said Ali indica um
deslizamento, um movimento de significação das respectivas palavras,
que passam de substantivos a pronomes.
Em seguida, o autor nos diz que homem e a gente ocupam diferentes
polos na história da língua. Essa diferença é apresentada por Said Ali
em relação a um passado e a um presente, em que temos, de um lado,
português primitivo, português do século 15, português do século 16 e,
de outro lado, um português da atualidade. Diferença, na história, que
comparece articulada 15 a usos: homem era de uso comum (português
primitivo), de uso menos frequente (português do século 15), perdura
todavia, mórmente na linguagem popular deixando vestigios até o
século 16 (português do século 16); e a gente é usado principalmente
na linguagem familiar da actualidade (português da atualidade).
Desse modo, quanto ao uso de homem no passado, a diferença é
posta em relação à frequência entre distintos momentos do português:
uso comum no português primitivo, uso menos frequente no português
do século 15 e vestígios até o século 16. Comum e (menos) frequente

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são palavras que apontam indiretamente, indistintamente para quem usa
a língua. A diferença de uso de homem é posta em termos de linguagem
popular. Uma distinção se produz sobre quem usa a língua, estando
marcada pela determinação de popular sobre linguagem. Ao percorrer
os usos de homem na história do português, a passagem de comum,
frequente para perdura todavia, mórmente acaba, ao final, apontando
para quem usa a língua de maneiras diferentes, passando de uma
indistinção {de uso comum, de uso frequente) para uma distinção
{mórmente na linguagem popular).
Quanto ao a gente, Said Ali se volta para o seu uso de uma maneira
mais restrita, que não fala de seu passado, mas apenas de uma
atualidade. Ao lado disso, o autor aponta para quem usa - de maneira
semelhante à do uso de homem, que se dava mormente na linguagem
popular - enquanto principalmente na linguagem familiar da
actualidade. Fica posto que a gente é, na actualidade, usado em outras
linguagens, não especificadas, e que não seriam principais. Sendo que
o uso principal é na linguagem familiar.
Deixamos aqui algumas questões: Que sentidos se abrem e se
fecham quando Said Ali define o uso de homem como aquele que
perdura todavia, mórmente na linguagem popular (e deixando vestígios
até o século 16) e de a gente como se dando principalmente na
linguagem familiar da actualidade? Linguagem popular e linguagem
familiar estariam, de algum modo, em relação parafrástica?16 Em que
medida popular e familiar se assemelham e se diferenciam? Em que
medida se inscrevem em discursividades mesmas e distintas?17
Voltaremos a essas questões mais adiante.
Após suas reflexões sobre homem e a gente, Said Ali passa a
apresentar exemplos de usos como pronome indefinido, mas apenas
para homem. Vejamos:

Em aquel tempo nom podia homem achar em todo


o regno de logres donzel tam fremoso nem tam
bem feito (S. Graal 4) - Eu te farei taaes cousas
quaaes nunca home fez a seu inimigo (S. Josaph.
24) - Era tam esprandecente que bem se podia
homem veer em ella como em espalho (Cort Imp.
6) - Logo vossa tençom seria boa se homem

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tevesse lugar aparelhado em que trabalhando
sperasse receber proveito (Zur. Guiné. 313) (...)
(SAID ALI, 1921, p. 122-123).

É interessante destacar que os exemplos trazidos fazem parte de um


conjunto de textos escritos que foram reunidos pelo autor para a sua
pesquisa. Tal exemplificação, portanto, não comparece de forma
gratuita. O autor nos indica que homem possui amplo lastro de
ocorrência na história da língua portuguesa até o século XVI. É preciso
salientar que determinada literatura escrita se coloca como capital no
bojo das reflexões de Said Ali.
A esse respeito, Evanildo Bechara (1962), em suas leituras sobre a
Correspondência de Capistrano de Abreu e considerando os primeiros
títulos das publicações que compuseram a gramática histórica de Said
Ali - Lexeologia do português histórico e a formação de palavras e
Sintaxe do português histórico - , considera que “Said Ali desejou
empreender uma gramática do português histórico, isto é, a partir da
língua já documentada, e não uma gramática histórica do português ”
(p. 39 - itálicos do autor).
Ou seja, Said Ali buscava dar corpo a sua obra a partir de textos
documentados em língua portuguesa, desde os mais antigos, e
privilegiando obras literárias. Em relação a isso, cabe trazer as
considerações que o autor faz sobre linguagem falada, linguagem
escrita, trato familiar e linguagem literária, apresentadas no prólogo
da primeira parte de sua Grammatica Histórica :

(...) Neste ponto nunca será a linguagem escripta,


dada a sua tendencia conservadora, espelho fiel do
que se passa na linguagem falada. Surge a
innovação, formulada acaso por um ou poucos
indivíduos; se tem a dita de agradar, não tarda a
generalisar-se o seu uso no falar do povo. A gente
culta e de fina casta repelle-a, a principio, mas
com o tempo succumbe ao contagio. Imita o
vulgo, se nao escrevendo com meditação, em todo
o caso no trato familiar e falando
espontaneamente. Decorrem muitos annos, até
que por fim a linguagem literaria, não vendo razão
para enjeitar o que todo o mundo diz, se decide

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também a aceitar a mudança. Tal é, a meu ver, a
explicação não somente de factos isolados, mas
ainda do apparecimento de todo o portuguez
moderno. (SAID ALI, 1931, p. iv)

Podemos notar a importância que tem para o autor a linguagem


escrita. Em seu prólogo, há uma divisão entre linguagem escrita e
linguagem falada organizando outras divisões, que incidem sobre o
sujeito e a língua. Do lado da linguagem falada, temos, de início, o falar
do povo/vulgo que inova e, em seguida, a gente culta de fina casta que
a princípio repele, mas depois sucumbe à inovação popular. Ainda do
lado da linguagem falada, a gente culta e de fina casta imita o vulgo no
trato familiar e falando espontaneamente. A passagem para a
linguagem escrita pode se dar pela gente culta e de fina casta na escrita
com meditação. Uma outra passagem ainda é necessária para a
linguagem literaria. Haveria assim uma linguagem escrita da gente
culta e de fina casta, que é uma linguagem escrita com meditação, mas
não necessariamente uma linguagem literária. Em síntese, temos, de
um lado, linguagem falada e fala espontânea : povo/vulgo, gente culta
e de fina casta, e, de outro: linguagem escrita, escrita com meditação e
linguagem literaria : gente culta e de fina casta. Desse modo, fica
significado que o povo/vulgo não teria linguagem escrita, escrita com
meditação e linguagem literária.
A especificidade na literatura escrita reunida por Said Ali para seus
estudos está ligada a essas divisões de sentido. No entanto, ainda que o
projeto de sua gramática histórica seja assentado sobre textos
documentados, o autor reconhece que não há uma relação direta entre
linguagem escrita e linguagem falada, de tal forma que a escrita não é,
nas suas palavras, “espelho fiel do que se passa na linguagem falada”.
No decorrer de sua obra, o autor Said Ah se autoriza, sempre que
necessário, a trazer comentários que dizem respeito à linguagem falada,
definida, por exemplo, como familiar ou popular. No entanto, quando
não encontra lastro no conjunto das obras literárias reunidas para seus
estudos, o autor pode, por vezes, deixar de dar exemplos - ou, como
veremos mais adiante, titubear em suas reflexões diante de exemplos
externos ao conjunto de textos que reuniu. O a gente, definido em
termos de linguagem familiar usada na actualidade, estaria entre os

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casos de um funcionamento linguageiro exterior ao seu arquivo de
textos escritos, mas sobre o qual ele é incitado a refletir.
Interessante, também, é notar que, para Said Ali, a mudança na
linguagem falada pode chegar a ser acolhida pela linguagem literária.
Ou seja, a língua muda, mas cabe à linguagem literária o papel de
conceder ou não a passagem daquilo que já está presente na linguagem
falada para a linguagem escrita.

Grammatica Histórica e Meios de expressão e alterações semânticas

Gostaríamos, agora, de cotejar a exposição da Grammatica


Histórica de Said Ali com o que o autor diz em seu Meios de expressão
e alterações semânticas, publicado em 1930. Para a nossa análise, é
importante ressaltar que Meios de expressão e alterações semânticas é
publicada aproximadamente nove anos após a primeira publicação dos
textos que compuseram sua Grammatica Histórica e um ano antes da
edição seguinte, que ganhou este nome. Também é importante
acrescentar que pudemos acessar algumas das páginas da primeira
publicação, intitulada Lexeologia do português histórico 1S, o que nos
permitiu conferir que, na parte dedicada aos pronomes e, em especial
na que o autor discorre sobre homem e a gente, não há mudanças no
texto entre as edições. Assim, em ambas as edições de sua gramática
histórica, fica um vazio na exemplificação do autor para o a gente.
Vazio este que é preenchido em Meios de expressão e alterações
semânticas, no capítulo intitulado “Expressões de situação” . Vejamos:

Em linguagem familiar, e especialmente entre


pessoas menos instruídas, é commum o emprego
de a gente com referencia a pessoas bem
definidas, em dizeres como a gente não tem
dinheiro, hontem a gente foi ao baile, etc. Parece
que por modéstia se evita empregar o pronome
nós.
A substituição do sujeito definido ao sujeito
indeterminado, caso contrário ao que acabamos de
ver, faz-se algumas vezes (...) certas informações
são dadas como se o próprio ouvinte entrasse em
scena: A viagem pelo interior do paiz é bem

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penosa: em certos lugares você tem que lutar com
os mosquitos, em outros com os carrapatos.
(SAID ALI. 1930, p. 78 - itálicos do autor).

Como podemos notar, aqui o autor acrescenta dois exemplos: “a


gente não tem dinheiro, hontem a gente foi ao baile” . Ao lado disso, o
a gente também é definido em termos de linguagem familiar. Mas há
mais detalhes. Há uma subespecificação de linguagem familiar,
especialmente entre pessoas menos instruídas. Assim, na linguagem
familiar haveria pessoas mais e menos instruídas que empregam o
pronome a gente. O nível de instrução é o elemento definidor do quanto
o a gente é empregado na linguagem familiar, sendo que o comum é o
seu emprego entre pessoas menos instruídas. Entre pessoas mais
instruídas seria menos comum ou incomum.
Após os exemplos trazidos, o autor acrescenta um comentário:
“Parece que por modéstia se evita empregar o pronome nós”.
Linguagem familiar, mais instrução, menos instrução, menos
instrução, modéstia... Comentário breve, mas que muito significa. É um
comentário que tem a forma de um a suposição, de uma proposição
interpretativa. E é enquanto um comentário, que tem a forma de uma
suposição, de uma proposição interpretativa, que o autor formula uma
possível explicação para o emprego do a gente : Parece que por
modéstia se evita. O não emprego do pronome nós seria algo que se
evita, por modéstia. Desse modo, fica significado que, se não fosse por
modéstia, o emprego do pronome nós não seria evitado. E como se fosse
possível, ao sujeito falante, a escolha de evitar ou não empregar um
pronome em razão de uma característica que seria sua: a modéstia. Said
Ali não apresenta essa explicação de maneira categórica. Ele hesita.
Deixemos em suspenso, por ora, outros desdobramentos analíticos
sobre esse interessantíssimo comentário. Voltaremos a ele ao final de
nosso trabalho.
Uma última observação a registrar aqui é que, enquanto na
Grammatica histórica de Said Ah o a gente é tratado junto aos
pronomes indefinidos, em seu Meios de expressão e alterações
semânticas, o a gente comparece no capítulo “Expressões de situação”
significando com referencia a pessoas hem definidas. Ao lado disso, é
interessante observar que o exemplo seguinte trazido pelo autor, sobre

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o você, é apresentado enquanto uma “substituição do sujeito definido
ao sujeito indeterminado”, que ele considera como sendo um “caso
contrário ao que acabamos de ver” . Ou seja, como sendo um exemplo
contrário do emprego de a gente que ele havia dado. Assim, a gente
significa como dizendo respeito a uma substituição do sujeito
indeterminado ao sujeito definido. Em outras palavras, a gente, que
seria empregado com referência a um sujeito indeterminado, ao ser
empregado com referência a pessoas bem definidas, produz uma
substituição do sujeito indeterminado ao sujeito definido. Este é um
detalhe de grande interesse, de uma problemática que leva Said Ali a
elaborar e reelaborar a questão do a gente. N a obra que analisaremos a
seguir, essa questão da determinação e da indeterminação, da definição
e da indefinição será elaborada pelo autor mais uma vez.

Pessoas indeterminadas

O artigo de Said Ah, “Pessoas indeterminadas”, publicado em 1950


no Boletim de Filologia, discorre sobre distintos exemplos de pessoas
indeterminadas, sendo que, grande parte desses exemplos, de um modo
ou de outro, gira em tom o de diferentes funcionamentos do a gente.
Seu texto começa apresentando sentidos diferentes para a palavra
gente: tanto sentidos ligados ao presente, quanto sentidos ligados ao
passado, concernentes ao que Said Ah chama, nesse texto, de
linguagem antiga. Em seguida, o autor passa a tratar do a gente. Ele
escreve:

Em linguagem familiar, especialmente no Brasil,


a gente pode referir-se às pessoas com quem o
indivíduo falante convive e em cujo número ele
próprio se inclui quanto ao modo de proceder e
pensar. Daí vem o frequente emprego de a gente
como pronome indefinido, posto que nem sempre
se substitua ao clássico pronome se usado para tal
efeito, linguagem esta em que a gramática
portuguesa entra em conflito com a intenção e
análise psicológica. (SAID ALI, 1950, p. 108 -
itálicos do autor).

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Podemos notar que a gente comparece significando como pronome
indefinido em razão de um emprego específico, tal como descrito pelo
autor - referir-se às pessoas com quem o indivíduo falante convive e
em cujo número ele próprio se inclui quanto ao modo de proceder e
pensar -, que poderia funcionar em substituição ao pronome se19 (no
caso, seria uma substituição do tipo: de se fa z para a gente faz), mas que
nem sempre se substitui a ele.
Esse funcionamento de a gente é relacionado à linguagem familiar,
especialmente no Brasil. A especificação especialmente no Brasil
produz um efeito de sentido mais circunstanciado para linguagem
familiar, distinto daqueles que observamos nas outras produções do
autor. Importante notar que esse texto foi publicado em uma revista
portuguesa, o que tom ou necessária uma especificação de linguagem
familiar por meio de uma delimitação geopolítica. Evidentemente que
essa delimitação já afetava os estudos do autor, ainda que não fosse
necessário precisá-la. Mas, mais do que isso: é justamente o fato da
pronominalização do a gente especialmente no Brasil que tom ou o a
gente uma questão para Said Ali.
Em seu tratamento dessa questão, Said Ali convida o leitor para um
percurso histórico por diferentes acepções de gente e de a gente. Nas
palavras do autor: “Vejamos pelo miúdo algumas das acepções que
acabamos de mencionar.” (SAID ALI, 1950, p. 111). Seu percurso
inicia com uma leitura de textos do português de Camões, para um
sentido de gente como denominação dos homens de peleja que, nos
Lusíadas, pouquíssimas vezes eram designados pela palavra soldados.
Depois disso, Said Ali volta um pouco mais no passado para mostrar
como Camões segue a trilha de Femão Lopes e de outros cronistas do
rei D. João I no emprego da palavra gente para designar homens de
peleja. Nessa trilha, acrescenta Said Ali, Camões “tem o cuidado de não
aplicar, por anacronismo, aos heróis e combatentes desses antigos
tempos a denominação ainda estranha à linguagem portuguesa.” (p.
110) e que “O termo gente, de sentido tão vago, impunha-se por falta
de outro mais próprio”. (SAID ALI, 1950, p. 110 - itálicos do autor).
Feitas essas considerações, Said Ali se volta para as conjunturas
históricas e políticas em que a palavra gente predominava:

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Do derivante miles, militis, desapareceu todo o
vestígio com o desmoronamento do império
romano e suas instituições relativas à organização
dos combatentes na paz e na guerra. Tudo mudou
com a diversidade das nações, umas em luta com
as outras, cada qual com seu rei, seus grandes
senhores e vassalos. O feudalismo deu novo
aspecto ao cenário. Para uma guerra iminente
arrebanhavam-se à última hora homens de
qualquer parte, experimentados ou não
experimentados em feitos bélicos. Agrupados,
eram eles a gente com que o rei ou o senhor dava
batalha ao inimigo. Alternando com homens,
permaneceu a palavra na linguagem até a época
em que se deu preferência ao termo soldados.
(Ibidem, p. 110 - itálicos do autor).

Em seguida, Said Ali discute sobre um sentido mais amplo para


gente em Camões, que não diz respeito a homens enquanto homens de
peleja (e que depois será designado como soldados), mas à designação
de homens em geral, de humanidade, bem como de criaturas humanas,
em oposição a animais.
Esse percurso analítico traçado pelo autor em “Pessoas
indeterminadas” retoma e amplia a comparação realizada entre homens
e a gente em sua Grammatica Histórica.
Como observamos anteriormente, naquela obra, segundo Said Ali,
homens e a gente são pronomes indefinidos enquanto “nomes que
assumem caracter pronominal quando usados, não já na accepção
própria, mas para indicar agente vago e indeterminado” (SAID ALI,
1931, p. 122). N a Grammatica Histórica, o autor se volta mais sobre
homens, com a inclusão de exemplos, em contraposição com a gente,
que comparecia enquanto “usado principalmente na linguagem familiar
da actualidade” (SAID ALI, 1931, p. 123), mas sem exemplificação. Já
em “Pessoas indeterminadas”, o movimento é o oposto. Said Ali discute
sobre homens para chegar em a gente. Discussão essa que começa pelo
português de Camões, chega no português do Brasil e, em seguida,
contrasta um português com o outro. Vejamos como se dá essa chegada
e esse contraste nas palavras de Said Ali:

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Por delicadeza de linguagem, referindo-nos a nós
mesmos, empregamos frequentemente o verbo na
3a. pessoa, que terá por sujeito um nome mais ou
menos adequado. No falar coloquial do nosso país
costuma desempenhar este papel a expressão a
gente. Por exemplo: “Você há tanto tempo não
aparece lá em casa. Não quer mais saber da
gente”. Outras vezes, pelo contrário, gente (quase
sempre sem artigo) designa pessoa ou pessoas
estranhas: “A campainha tocou; aí vem gente”.
Muito usual entre nós é a expressão a gente com
valor de pronome indefinido. Deve-se esta estrada
hoje tão batida à influência da linguagem lusitana
acima documentada. Confronte-se A gente sua
para conseguir certas vantagens com O metal por
que mais a gente sua, dos Lusíadas. (SAID ALI,
1950, p. 111 - itálicos do autor).

O autor traz diferentes exemplos de sentidos para a palavra gente :


um primeiro, em que, referindo-nos a nós mesmos, empregamos o
verbo na terceira pessoa, que terá por sujeito a expressão a gente, e que
costuma desempenhar o papel de um nome, e um segundo, em que
gente designa uma pessoa ou pessoas estranhas. Esses dois primeiros
sentidos são, de certo modo, vinculados a um terceiro, por influência da
linguagem lusitana, documentada, de textos de Femão Lopes e de
Camões.
Por este percurso de análise que Said Ali se autoriza a dizer que
“Muito usual entre nós é a expressão a gente com valor de pronome
indefinido.” Essas formas pronominais do falar coloquial de nosso país
são, assim, compreendidas pelo autor como sendo indefinidas: com
valor de pronome indefinido. Em outras palavras, em nosso entender
sobre a reflexão do autor, a gente equivalería tanto ao pronome nós
quanto ao pronome eles, com valor de pronome indefinido.
Porém, voltando ao primeiro caso, que é o que nos interessa mais de
perto, diriamos que a gente equivale ao pronome nós, mas não com
valor pronome indefinido, embora Said Ali não o diga desse modo. No
entanto, ele acaba dizendo isso de certa maneira, embora de um modo
mais contornado, mais sinuoso. Isso porque, ainda que considere o a

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gente, aqui, em um texto que trata de pessoas indeterminadas, essa
expressão acaba por se referir a um pronome definido, o nós, pela
formulação referindo-nos a nós mesmos.
Said Ali indica, mas não explora muito a passagem da expressão a
gente com sentido de ele para o sentido de nós (ou mesmo para o sentido
de eu). Ainda hoje, esse aspecto nem sempre é considerado ou discutido
em reflexões gramaticais ou linguísticas. O percurso de reflexões de
Said Ali, já naquele momento, dá visibilidade ao fato de que não é
possível determinar um sentido único para a expressão a gente. O que
continua valendo para hoje.
Cabe lembrar novamente que, embora seu percurso de elaboração
teórica sobre a língua se ancore em um arquivo de textos, o autor
também tem por base exemplos que escapam a esse arquivo e que são
definidos, como vimos, a partir do que ele chama de linguagem familiar
e linguagem popular, e, neste texto, também como falar coloquial.
Enquanto, no início de seu texto, o autor escreve sobre o a gente
enquanto linguagem familiar, especialmente no Brasil, no meio dele há
uma reescrituração20: no falar coloquial do nosso país. Assim,
linguagem familiar e falar coloquial comparecem em relação
parafrástica, em articulação a delimitações geopolíticas: no Brasil e no
nosso país. Mais adiante, Said Ali se volta sobre a questão do falar
coloquial, comparando-o à linguagem literária. Sua reflexão se dá sob
uma perspectiva descritiva que toma o sujeito que fala como
psicológico. Vejamos:

O falar coloquial não se opõe obstinadamente ao


que está em uso na linguagem literária e entre as
pessoas cultas. Tanto se serve da expressão a
gente, como do verbo acompanhado do pronome
se para dar a entender que o sujeito psicológico do
verbo é a pessoa ou são pessoas indeterminadas.
(SAID ALI, 1950, p. 112 - itálicos do autor).

Podemos observar como o autor vai (re)produzindo, em seu texto,


algumas distinções entre sujeito e língua já presentes em suas
publicações anteriores. Neste texto, as distinções se dão entre falar
coloquial e ao que está em uso na linguagem literária e entre as pessoas
cultas. Essas distinções são apresentadas enquanto um a oposição, mas

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modalizada: não se opõe obstinadamente. Assim, se a gente é
empregado em linguagem familiar, especialmente no Brasil, trata-se de
um emprego que também é significado como falar coloquial, sendo que
tal falar não se opõe obstinadamente ao que está em uso na linguagem
literária e entre as pessoas cultas. O exemplo trazido para ilustrar que
não haveria uma oposição obstinada é o da expressão a gente
acompanhada do pronome se, para o seguinte propósito: dar a entender
que o sujeito psicológico do verbo é a pessoa ou são pessoas
indeterminadas.
Interessante que aqui também há uma distinção entre pessoa e
pessoas indeterminadas, que acaba significando a gente como pessoa
determinada e como pessoa indeterminada, e abrindo caminho para uma
passagem do pronome indefinido ao pronome definido, ainda que isso
não seja afirmado diretamente, categoricamente.
Em um texto que tem como tema pessoas indeterminadas, a reflexão
de Said Ali explora diversos sentidos de a gente na história da língua,
de Portugal ao Brasil. Nesse percurso, repleto de aproximações, recuos
e torneios, Said Ali vai dando indicações de um movimento de
indeterminação para determinação, de indefinição para definição.
Não menos interessante são as considerações finais do autor, que
apontam para um funcionamento da indeterminação no interior do
paradigma dos pronomes pessoais. Escreve Said Ali:

Lembremos apenas, para terminar esta já longa


exposição de factos, o expediente comum a muitas
línguas, de recorrer à primeira pessoa do plural,
umas vezes por achar-se de facto acrescida ao
número das pessoas indeterminadas a pessoa que
fala, outras vezes por fingirmos tal situação. O
acontecimento a que se prende a indeterminação
das pessoas pode dar-se com todas ao mesmo
tempo, ou com qualquer delas em ocasiões
incertas. Se incluímos o eu falante explicitamente
com o pronome ou verbo na primeira pessoa do
plural, entenderemos que este eu não tem lugar
marcado na associação mental: poderá achar-se no
meio, ou atrás ou na frente dos companheiros.”
(ALI, 1950, p. 114).

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Assim, o interesse do autor pela questão do a gente o levou a
também considerar o funcionamento da indeterminação em qualquer
pessoa, inclusive nos pronomes definidos. Não poderiamos deixar de
lembrar que esse funcionamento passou a ser bastante discutido
posteriormente nos estudos linguísticos do final do século XX21.

Considerações...

É!
A gente quer viver pleno direito
A gente quer viver todo respeito
A gente quer viver uma nação
A gente quer é ser um cidadão
A gente quer viver uma nação

Gonzaguinha

Nas considerações iniciais de nosso trabalho, enumeramos algumas


observações sobre a heterogeneidade de descrições para o a gente
presentes em produções variadas, notadamente do século XX até os dias
atuais. Dissemos que essa heterogeneidade está relacionada a percursos
semelhantes e diferentes, concernentes às mudanças de sentido e de
circulação de a gente, tanto em Portugal, como no Brasil, em condições
de produção ligadas à colonização e à descolonização. Ao lado disso,
salientamos que a gente pode corresponder não apenas a um pronome
específico, mas a diferentes pronomes. Apontamos também para a
dificuldade de enquadramento de a gente junto a um paradigma
pronominal já consagrado e dado por evidente nas descrições
gramaticais. Por fim, lembramos que essa dificuldade de
enquadramento se deve ao modo como a gente vai sendo significado:
como popular, familiar, não culto, por exemplo, fazendo com que ele
se mantenha excluído do paradigma da língua erudita, formal, culta,
escrita, etc.
Nos trabalhos de Said Ali, o falar coloquial e/ou a linguagem
familiar entram como uma questão para as suas reflexões, enquanto
coisas-a-saber (PÊCHEUX, [1983] 2008) sobre o português no/do
Brasil. As investigações históricas do autor se ancoram em análises de

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textos, por um trabalho filológico sempre muito cuidadoso. No entanto,
embora privilegie o estudo da história da língua portuguesa a partir de
textos escritos, que são, em grande parte escritos portugueses, Said Ah
não pode deixar de discutir sobre a língua falada no Brasil.
A esse respeito, vale mencionar que autores contemporâneos a Said
Ali também descreviam a gente como familiar, coloquial, popular etc.
com referência a Portugal. É o caso, por exemplo, do trabalho de José
D. Ribeiro (1930), que estuda o a gente junto à linguagem popular de
Turquel, freguesia de Portugal.
Entretanto, é a questão da língua nacional que se coloca para Said
Ali e é preciso falar dessa língua se referindo ao Brasil. É uma questão
nacional que o impele a tratar dessa questão, e que se inscreve na
história contraditória da gramatização brasileira do português
(GUIMARÃES, ORLANDI, 1996; ORLANDI, org., 2001), entre o
modelo português e a língua brasileira. Said Ali se ancora no modelo
português - tanto dos textos escritos, quanto dos paradigmas
pronominais - para elaborar suas reflexões sobre o a gente, mas isso se
dá por uma demanda de saber sobre o seu funcionamento no Brasil.
O ponto de partida de suas reflexões, fundamentadas em textos
lusitanos antigos, em que gente designa pessoas indeterminadas, afeta
o modo como Said Ali descreve os sentidos de gente e de a gente no
Brasil da atualidade. O problema da indeterminação,
indefmição/determinação, definição perpassa os trabalhos do autor, e
suas palavras por vezes oscilam entre um funcionamento e outro. Esse
problema, sempre presente, comparece em seus escritos em relação a:
1) uma divisão do sujeito que fala a língua: povo, vulgo,pessoas menos
instruídas, pessoas não cultas, em oposição (mas não
obstinadamente...) agente culta e de fina casta, pessoas cultas, pessoas
mais instruídas-, 2) a circunstância em que a língua é empregada:
linguagem falada, trato familiar, fala espontânea, linguagem familiar,
linguagem coloquial, em oposição (mas não obstinadamente...) a
linguagem escrita, escrita com meditação, linguagem literária-, e 3) a
uma característica atribuída ao sujeito e/ou à língua: parece que por
modéstia, por delicadeza de linguagem.
As relações de indeterminação, indefmição/determinação, definição
com um a divisão do sujeito falante, com a circunstância em que a língua

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é empregada e com um a caracterização do sujeito e/ou da língua não
são aleatórias, banais, não significam pouca coisa. Elas têm uma
história, que não é linear e nem a mesma nos diferentes continentes em
que a unidade linguística imaginária do português se impôs sobre a
diversidade concreta das línguas.
Claudine Haroche ([1984] 1992), ao estudar a constituição da forma
histórica do sujeito, primeiramente a partir da Religião e depois do a
partir do Direito, mostra como esse processo conduziu a uma
necessidade de determinação do sujeito gramatical, que colocou em
questão a relação entre indeterminação e determinação, bem como entre
clareza e ambiguidade da/na língua. No curso de suas reflexões, a autora
indaga também sobre as marcas pronominais. Escreve a autora:

Podería ser interessante, então, perguntar-se como


as línguas, em diversas épocas, asseguram a
expressão da subjetividade, estudar suas
diferentes modalidades e procurar as razões
dessas diferenças em um contexto histórico
bastante amplo. Que a pessoa, com efeito, seja
expressa ou deliberadamente omitida, seja
expressa pela metade ou por paráfrases, por certos
pronomes, ou por outros, pode fornecer
explicações preciosas sobre o funcionamento, a
representação da subjetividade, o tipo de relação
complexa e variável que o sujeito mantém com
seu discurso: relação de submissão ao discurso,
relação de desapropriação, de exterioridade ou,
inversamente, relação de distância, de controle.
(HAROCHE, [1984] 1992, p. 163)

N a história do a gente, consideramos que não é por acaso que,


conforme nota Lopes ([1999] 2003), seu funcionamento pronominal é
mais comum no Brasil e em Moçambique, ex-colônias portuguesas, e
menos comum na antiga metrópole, Portugal. Consideramos que essa
diferença diz respeito a relações de dominação e resistência entre os
sujeitos, as línguas e as tecnologias de linguagem que vão sendo
produzidas em condições histórico-sociais e políticas muito distintas,
com efeitos ideológicos e, portanto, discursivos, também muito
diferentes22.

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Lembrando que, quando do início do período da gramatização
massiva das línguas do mundo no século XVI, que é também o início
da colonização das Américas, a língua portuguesa já tinha sua escrita
sendo traçada séculos antes. Com a endogramatização (Auroux, 1992)
de um português escrito, a partir do modelo greco-latino, esse traçado
vai adquirindo contornos mais precisos, dos quais fazem parte a
determinação dos paradigmas dos pronomes pessoais: eu, tu, ele, nós,
vós, eles. Uma tal instrumentação das línguas resulta no que Eni Orlandi
(1985, 2009) e Eni Orlandi e Tania C. de Souza (1988) chamam de
línguas imaginárias, que podem ser compreendidas como artefatos,
objetos-ficção, mas que, conforme acrescenta Orlandi (2009, p. 18),
“nem por isso deixam de ter existência e funcionam com seus efeitos
no real”.
Nessa história transcontinental de “um ” português, as gentes daqui
não eram/são iguais as gentes de lá. Nem as línguas. Nem seus
processos de instrumentalização linguística implementados ao longo
dos séculos. Paralelamente à endogramatização do português iniciada
na Europa no século XVI, tivemos, do lado de cá, a exogramatização
(Auroux, 1992) de línguas indígenas pelos portugueses, também a partir
do modelo greco-latino.
Naquele momento de confronto com o Novo Mundo, o europeu se
perguntava se os indígenas tinham alma ou não, se eram gente ou se
eram animais. Hoje, podemos perguntar: Ao longo da história
brasileira, quem é gente? Quem não é? Quem passa a ser? Quem passa
a poder dizer que é gente? E como (não) pode dizer que é? Em nossa
história de colonização, se os indígenas podiam deixar de ser selvagens
e adquirir o estatuto de gente pela conversão, isso não significa que eles
podiam compor, com colonizador, um mesmo nós. Do mesmo modo,
os povos africanos escravizados também não compunham um mesmo
nós com o colonizador. Ainda assim, dessa relação de contato-convívio-
confronto23, um outro tipo de nós foi sendo construído na história do
Brasil, construção esta realizada numa tensão entre colonização e
descolonização, com efeitos sobre as relações entre os sujeitos e a
línguas.
Um momento crucial desse processo se deu de maneira mais ou
menos semelhante (guardadas as inúmeras diferenças...) ao que ocorreu

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no espaço francês com a Revolução Francesa, compreendida por
Pêcheux ([1982)] 1990), como um a revolução linguística na qual os
sujeitos precisavam “se libertar” de seus patois e falares locais para se
tom ar cidadãos na língua nacional francesa. Segundo o autor,

(...) a particularidade da revolução burguesa foi a


de tender absorver as diferenças (...); ela
universalizou as relações jurídicas no momento
em que se universalizava a circulação do dinheiro,
das mercadorias... e dos trabalhadores livres.
(ibidem, p. 10).

No Brasil, nas conjunturas dos diversos acontecimentos dos séculos


XVIII, XIX e XX, dos quais sublinhamos o Diretório dos índios, a
abolição da escravatura, a descolonização e as políticas de integração
nacional, há uma tentativa de absorção das diferenças. Mas as
diferenças eram bem outras, o que fez com que “a circulação do
dinheiro, das mercadorias... e dos trabalhadores livres” tivesse um tipo
diferente de “universalização”. No caso brasileiro, a produção de “um
novo tipo de relação ao alhures e ao inexistente” (ibidem , p. 10) se deu
a partir de políticas de “integração” de um eles (a gente que estava de
fora: de vista, dos grandes centros urbanos, da civilização...) a um nós.
Conforme observamos no início de nosso trabalho, o século XIX foi um
período decisivo da passagem do a gente para pronome pessoal, por sua
ampliação considerável no Brasil.
Isso nos leva de volta a uma interpretação de Said A h sobre um
emprego do a gente ao qual ele atribui uma característica do sujeito e/ou
da língua: modéstia e delicadeza de linguagem. Modéstia e delicadeza
de linguagem significam como parte de características atribuídas ao
brasileiro e ao falar do brasileiro - sentidos que não são naturais, mas
que foram sendo produzidos na longa história brasileira até se
naturalizarem. São qualidades conferidas ao sujeito e à língua, numa
região de sentidos semelhante à da cordialidade (HOLANDA [1936]
2022)24. Modéstia, delicadeza de linguagem, cordialidade... adjetivos
que conferem determinados sentidos ao brasileiro e, senão à “sua”
língua, pelo menos à sua linguagem. Esses atributos contribuem para a
produção de um efeito de colagem que fazem sujeito e
língua/linguagem coincidirem. Efeito esse que foi sendo constituído

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pelos discursos fundadores da brasilidade (ORLANDI, [1993] 2001),
desde o início da colonização.
Ao analisar discursos sobre/do Diálogo da conversão do gentio, de
Padre Manuel da Nóbrega, Eni Orlandi ([1993] 2001), observa como,
em nossa história oficial “vista do outro lado do Atlântico, e mesmo na
fala do senso comum” (ibidem , p. 21), algumas características
atribuídas como naturais ao brasileiro são lidas de uma perspectiva
moralista. Já do lado de cá, podem ser lidas como resistência: “não
seriam vícios, mas um modo de não responder ao poder estabelecido
pelo colonizador para submeter.” (ibid ., p. 21). E, quanto aos
personagens do Diálogo, a autora acrescenta:

Eles falam o português. Falam a mesma língua,


mas falam diferente: o português do Brasil e o
português de Portugal já significam
diferentemente, mesmo que não se o reconheça.
(...) Podemos dizer que eles falam diferente não
porque usam outras palavras. Mas porque essas
palavras derivam de distintos sistemas
simbólicos, distintas histórias linguísticas, {ibid.,
p. 22-23)

Modéstia, delicadeza de linguagem e cordialidade podem ser


entendidas como práticas discursivas que, em meio a muitas outras,
contribuíram para conduzir à passagem de um eles para um nós no
espaço brasileiro. Passagem realizada pela “integração”, uma
delicadeza de linguagem, que pode significar tanto o eufemismo de uma
política de apagamento de muito gente {eles) pelo genocídio, quanto o
gesto mais ordinário - e político - de dizer a gente, que abre espaço
para o trânsito dúbio, modesto, cordial, entre eles e nós, e que depois
passa a integrar o nós.
Retomando a distinção de Benveniste ([1958] 1995) entre pessoa
(primeira e segunda pessoas) e não pessoa (terceira pessoa), diriamos
que a passagem de a gente de não pessoa para pessoa, que ocorre em
Portugal e no Brasil, tem uma singularidade no espaço brasileiro25. Ela
diz respeito às novas necessidades de controle, de determinação do
sujeito, que concerniam não apenas às modificações das condições

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jurídicas dos sujeitos de um território que, num mesmo século, passou
de sede do Império português, para uma nação independente,
primeiramente imperial e depois republicana, mas também a
modificações das condições jurídicas daqueles que estavam desde
sempre excluídos da cidadania26: as populações indígenas e as
populações africanas escravizadas.
Nessas conjunturas, os movimentos das relações entre alteridade e
identidade se inscrevem materialmente na língua pelo a gente, que,
podendo passar da categoria de não pessoa para a de pessoa, acaba se
difundindo amplamente no espaço brasileiro.
Essa difusão do a gente como pronome pessoal no Brasil não é
simplesmente efeito da instauração de novos processos de dominação e
nem apenas resistência a esses processos, em razão de funcionar como
uma brecha para a entrada na sociedade brasileira - entrada propiciada
pela modéstia, pela cordialidade e a partir da delicadeza de linguagem,
na linguagem falada, especialmente no falar do povo, no falar
coloquial, entre pessoas menos instruídas, principalmente na
linguagem familiar... Trata-se, antes, do efeito da relação contraditória
entre dominação e resistência que preside os processos de colonização
e descolonização da história brasileira.
Eni Orlandi (1990, p. 49) considera que “A linguagem é política
porque o sentido sempre tem uma direção, é sempre dividido.” . Eduardo
Guimarães (2002, p. 16), a partir de uma perspectiva materialista filiada
aos estudos de E. Orlandi e J. Rancière, define o político como “um
conflito entre uma divisão normativa e desigual do real e um a redivisão
pela qual os desiguais afirmam seu pertencimento.”. Inspirados nos dois
autores, podemos dizer que o a gente foi tomando uma direção de
sentidos a partir das divisões do dizer constituídas e constitutivas da
história da língua brasileira, na língua brasileira. O gesto político de
dizer a gente, no Brasil, inscrito no conflito entre uma divisão
normativa e desigual do real, produz nele uma redivisão que permite
aos desiguais (não pessoa) afirmarem seu pertencimento (pessoa).
O acontecimento discursivo (PECHEUX, [1983] 2008) que levou ao
gesto político de poder dizer a gente não é um evento localizável
empiricamente no tempo e no espaço e nem se deu sob a forma de uma
ruptura linguística abrupta. E um acontecimento que se concretizou
lentamente: talvez eventual em seu princípio, de maneira visivelmente

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270
ambígua durante um longo período, e depois foi se intensificando27.
Esse acontecimento pode ser compreendido como uma política
linguística ordinária (FERREIRA, 2020 a, c, d) que foi sendo
constituída ao longo de séculos.
No entremeio das relações equívocas entre eles e nós, a política
linguística ordinária da gente encontrou brechas para se insinuar em
certas práticas linguageiras, mas, pouco a pouco, foi ganhando mais
força e se espalhou: pulou para a escrita, virou personagem de obras de
literatura, é encontrada em letras de inúmeras canções, vem atuando no
cinema com bastante sucesso, passou a integrar as atividades didáticas
de salas de aula nas mais diferentes disciplinas e modificou protocolos
de rituais institucionais... Mais recentemente, obteve concessão para
entrar no paradigma dos pronomes pessoais de determinadas descrições
linguísticas para ficar ao lado do nós. Em alguns casos, também obteve
a permissão para invadir o paradigma e reivindicar, nele, o seu devido
lugar - de direito... - de substituto do já antigo nós.
As relações de contato-convívio-confronto entre línguas no Brasil
do século XVI se fizeram com gentes muito diferentes. Já no Brasil do
século XIX, quando as diferenças que restaram entre as gentes
precisavam ser domesticadas para que a nova nação tivesse uma
unidade, uma identidade, a gente vai ficando cada vez mais visível. Na
passagem do XIX para o século XX, a gente vai se tomando um objeto
de conhecimento e, na passagem do século XX para o XXI, a gente
ganha autorização para a integrar, oficialmente, o paradigma
pronominal de descrições linguísticas.
Traçar esse percurso de circulação cada vez mais ampla da gente no
espaço brasileiro não significa supor uma projeção “lógica” de
substituição total do nós pelo a gente num futuro da língua brasileira.
Diferente do que aconteceu na apresentação da primeira versão deste
trabalho, é significativo o fato de que a gente ainda não conseguiu
escrever um artigo científico com este pronome - a não ser agora, neste
enunciado aqui, no parágrafo anterior e, talvez depois, lá no final... O
pronome pessoal a gente não faz parte da língua da ciência, da escrita
científica, pelo menos não ainda, embora possa fazer parte da língua da
divulgação científica - de sua popularização...

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271
Se não há como saber os caminhos futuros que a língua vai ou não
tomar, é preciso ter em conta que esses caminhos serão traçados,
necessariamente, na tensão e na contradição entre, de um lado, os
diversos efeitos da instrumentalização das línguas, que tende a fixá-las,
e, de outro, a possibilidade de fluidez, constitutiva das línguas, na
história.
A escrita, a gramática e mais recentemente as mais diversas formas
de registro audiovisuais compõem o que Michel de Certeau ([1980]
2019, p. 195) chama de economia escriturística. A partir do autor,
podemos compreender que, tanto a língua da tradição escrita, quanto a
língua da tradição oral estão afetadas necessariamente por essa
economia. E isso significa, de acordo com as palavras do autor, que a
oralidade (ou a "voz do povo”), não só não está fora da economia
escriturística, como, por ter sido exaustivamente registrada, tende
também a se fixar, ou melhor, a se transformar na cópia do seu artefato
(ibidem, p. 196)28. Em outras palavras, a gente pode se cristalizar como
sendo um pronome "próprio” da língua falada, da oralidade, porque foi
sendo descrito desse modo em determinadas condições históricas. Pode
assim se cristalizar. Ou não... Porque, apesar dos efeitos (ideo)lógicos
que têm as políticas linguísticas instrumentalizadoras sobre os sujeitos
e as línguas na sociedade e na história, outras políticas linguísticas
ordinárias sempre podem emergir daí. E nesta tensão/contradição que a
gente se encontra hoje.

Referências

A GENTE. In: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. 2008­


2021. Disponível em: https://dicionario.priberam.org/a%20gente.
Acesso em abr 2022.
ARRUDA, Carolina Palma de Sousa. A gramaticalização do
pronome a gente: um percurso através de cartas pessoais e
familiares. Campinas: Publicações IEL/Unicamp, 2021. Disponível
em: https://www.iel.unicamp.br/sites/default/files/iel/publicacoes/Gra
mati calizacao%20do%20Pronome%20a%20gente.pdf. Acesso em: 05
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Notas

* Docente do Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem da


Unicamp. Desenvolve pesquisas inscritas em uma perspectiva discursiva da História
das Idéias Linguísticas sobre o papel fundador da linguagem na constituição de saberes
e de tecnologias. Suas pesquisas tomam como objeto privilegiado a constituição e a
divisão de saberes linguísticos na história, incluindo aí os saberes linguísticos
cotidianos, considerando seus percursos de identificação e/ou nomeação, articulados a
processos de institucionalização, divisão de sentidos, domesticação e resistência. E-
mail: anaclau@ymail.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2072681786266883.
** Doutorando em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas. Mestre em
Linguística pela mesma instituição. Graduado em Letras - Português/Italiano pela
Universidade Federal Fluminense. E pesquisador do grupo de pesquisa CoLHIBri (O

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277
Cotidiano na História das Idéias Linguísticas) e integrante do Grupo Arquivos de
Língua (GAL). Dedica-se ao ensino de língua portuguesa na educação popular. Possui
como áreas de interesse a Análise de Discurso materialista e a História das Idéias
Linguísticas. E-mail: michelmarques@id.uff.br. Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2724131104510137.
1 Uma versão embrionária deste texto foi apresentada na mesa 3 do I Seminário do
Arquivos de Saberes Linguísticos: homenagem a Said Ali, em novembro de 2020. O
evento está disponível no YouTube no Canal do Labeurb
(https://www.youtube.com/watch?v=GiOdB19E2_s&t=5622s) e no Canal do Grupo
Arquivos de Língua - GAL ( https://youtube.com/playlist?list=PL01G
LyEPLzwo26fiWYscXovF4dxyUeokZ). Estas reflexões fazem parte das pesquisas do
Projeto e do Grupo de Pesquisa CoLHIBri - O cotidiano na história das idéias
linguísticas do Brasil (https://www.colhibri.site).
2 Conferir, por exemplo, Orlandi (1990,2007, 2009), Mariani (2004) e Zoppi-Fontana
(2009).
3 Ver, por exemplo, Lopes ([1999] 2003), sobre a pronominalização do a gente em
Portugal e no Brasil; Pereira (2003), sobre a variação do a gente no português europeu;
e Arruda (2021), sobre a pronominalização do a gente a partir da análise de cartas
pessoais e familiares.
4 Agradecemos ao colega Juanito Avelar pela indicação das pesquisas de Célia Lopes
sobre o a gente, que trouxeram contribuições fundamentais para o presente trabalho.
5 Conferir, por exemplo, Weiss (2014), Feitosa et. al. (2015), Weiss (2019), Silva et. al.
(2021), São Paulo: SME (2021).
6 Conferir, por exemplo, Ribeiro (2013).
7 Ver, por exemplo, Bechara (2009), Pestana (2013) e Cunha (2014).
8 Noção definida por Auroux (2009 [1992]), que vai ganhando uma especificidade no
espaço brasileiro a partir das reflexões de Guimarães e Orlandi (1996) e de Orlandi
(2001), por exemplo.
9 Talvez essa reflexão sobre o funcionamento pronominal do a gente já estivesse
presente em instrumentos linguísticos publicados no século XIX, mas não tivemos
acesso às publicações e/ou edições daquele período.
10 Importante dizer que, em consulta à obra de Rocha Lima (2014), que teve sua
primeira edição na década de 1950, não encontramos referência de a gente numa
equivalência a nós, o que consideramos significativo por se tratar de uma gramática
normativa de referência e de grande circulação.
11 Agradecemos ao Phellipe Marcei Esteves (UEF) pela questão, colocada durante o
evento em homenagem à Said Ali (Cf. nota 1), sobre uma possível articulação de nossas
análises com o trabalho de Haroche a respeito da relação entre forma-sujeito e a noção
de sujeito gramatical.
12 Conferir, por exemplo, Guimarães e Orlandi (1996), Orlandi (2001), Orlandi (2009)
e Orlandi (2013 [2002]).
13 Cumpre dizer que, entre os estudiosos da linguagem, não há um consenso sobre a
data da primeira publicação da Grammatica Secundaria de Said A1Í. Alguns estudiosos
indicam se tratar de uma obra publicada entre 1923 e 1924. Outros apontam que ela

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teria sido publicada em 1927. Optamos, no presente texto, por fazer referência à década
de 1920. Quando necessário citá-la, utilizamos anotação: 192?.
14 Na referida obra, os exemplos que o autor traz para os pronomes indefinidos são:
alguém, ninguém, outrem, algo, tudo, nada, quem, qual, este, um... outro, algum, um,
certo, vário, todo, outro, nenhum e qualquer.
15 A noção de articulação, assim como a noção de reescrituração, que também é
mobilizada analiticamente em nosso trabalho, são definidas por Guimarães (2002,
2004) enquanto procedimentos próprios da textualidade. Os procedimentos de
articulação se estabelecem entre palavras e expressões de um mesmo enunciado ou
entre outras palavras e enunciados de um texto, afetando o sentido dessas formas. E os
procedimentos de reescrituração, que podem se dar, por exemplo, por repetição,
substituição, enumeração, vão redizendo o que já foi dito “fazendo interpretar uma
forma como diferente de si” (GUIMARAES, 2004, p. 17). Ainda segundo o autor, esses
procedimentos, com destaque para a reescrituração, são tensionados pela relação entre
paráfrase e polissemia, tal como ela é definida por E. Orlandi (1978, [1999] 2000). De
acordo com Orlandi ([1999] 2000, p. 36), “os processos parafrásticos são aqueles pelos
quais em todo dizer há sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a memória”, e a
polissemia é espaço do “deslocamento, da ruptura de processos de significação”.
16 A noção de paráfrase vem sendo pensada de várias maneiras sob uma perspectiva
discursiva, podendo ser objeto de uma análise e/ou de um procedimento analítico. Por
exemplo: E. Orlandi (1978) propõe um trabalho analítico sobre a tensão entre paráfrase
e polissemia que permite compreender a complexidade dos processos de produção de
sentidos. M. Pêcheux ([1983] 2008) trabalha analiticamente com diferentes enunciados,
que podem ou não estar em relação parafrástica, a depender de suas condições de
produção. E, como mostramos na nota anterior, E. Guimarães (2002, 2004) mobiliza a
noção de paráfrase de E. Orlandi para as análises dos procedimentos de reescrituração.
Essas diferentes maneiras de trabalhar a noção de paráfrase se fazem presentes em nosso
trabalho.
17 Agradecemos à Claudia Pfeiffer (UNICAMP) que, após nossa apresentação na mesa
redonda do evento (Cf. nota 1), indagou se linguagem fam iliar e linguagem popular
poderíam estar em uma relação parafrástica. Buscamos trabalhar essa questão ao longo
das análises de diferentes textos de Said Ali, sem a pretensão de uma resposta fechada,
uma vez que isso exigiría uma análise mais aprofundada da obra do autor. De maneira
geral, é possível afirmar que uma relação parafrástica entre linguagem fam iliar e
linguagem popular pode ou não ocorrer, a depender das diferentes possibilidades de
jogo das relações de sentido que vão se estabelecendo na obra do autor. Se as relações
de sentido a observar dizem respeito à questão da língua escrita, por exemplo, fam iliar
e popular podem funcionar em relação parafrástica por significarem como estando fora
da linguagem escrita. No entanto, as palavras fam iliar e popular podem, cada uma,
levar a diferentes redes de sentido e produzir relações parafrásticas diferentes. A
questão é: como isso ocorre na obra do autor? De que maneiras? Desse modo, a questão
formulada nos levou a outras, que permitiram apontar para a equivocidade constitutiva
das relações parafrásticas que podem incidir sobre linguagem fam iliar e linguagem
popular. Sobre esse assunto, não podemos deixar de lembrar o trabalho de Guimarães
(2004) sobre os sentidos de indivíduo epovo em obras de Said Ali, e o trabalho e Pereira

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(2020), que se volta para diferentes divisões de sentido entre os sujeitos e as línguas no
Dificuldades da língua portuguesa.
18 No decorrer de nossas análises, nâo foi possível acessar a primeira edição da
gramática histórica de Said Ali em sua íntegra. Entretanto, ao final da escrita, adveio a
necessidade analítica de fazer uma consulta contrastiva, entre a primeira e a segunda
edição, sobre alguns dos recortes de análise que realizamos sobre essa obra do autor.
Agradecemos à Thaís Costa (UERJ/UEF/UNICAMP) por viabilizar o acesso, de forma
digitalizada, a algumas páginas da primeira edição desta obra.
19 Sobre isso, vale notar que, em Dificuldades da língua portuguesa, há um capítulo
inteiramente dedicado a diferentes sentidos do pronome se.
20 Sobre a noção de reescrituraçâo, conferir Guimarães (2002,2004) e a nota de número
15, que apresenta uma rápida síntese dessa noção.
21 Um exemplo interessante que gostaríamos de lembrar, dentre os mais diversos
trabalhos que poderíam ser citados, são as reflexões presentes na obra Vozes e
Contrastes (ORLANDI, GUIMARÃES, TARALLO, 1989), que apresentam uma série
de análises, no diálogo/debate com perspectivas enunciativas, sociolinguísticas e
discursivas, do discurso (científico e cotidiano-rural) sobre/da alimentação,
considerando: a) seus processos específicos de indeterminação com eu, nós, você e a
gente; b) a frequência de formas de determinação e indeterminação nesses discursos; e
c) suas diferenças sistemáticas, inscritas em diferentes formações discursivas.
22 Seria muito interessante relacionar essas análises do a gente com análises do você.
Um trabalho de referência incontomável sobre a história do você em Portugal e no
Brasil foi realizado por Carlos A. Faraco ([1996] 2017).
23 Eni Orlandi, em seu Terra à Vista (1990), explora a questão do contato enquanto
confronto entre o Novo e o Velho Mundo. Bethania Mariani, em seu Colonização
Linguística (2004), explora essa questão se voltando para uma relação de convívio e
confronto. Em nosso trabalho, a articulação contato-convívio-confronto visa sublinhar
a complexidade das relações entre alteridade e identidade, dominação e resistência,
colonização e descolonização, em diferentes caminhos de análise, que apreciamos nos
trabalhos das autoras.
24 Conforme o autor: “Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira
para a civilização será de cordialidade — daremos ao mundo o “homem cordial”. A
lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros
que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na
medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões
de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que
essas virtudes possam significar “boas maneiras”, civilidade. São antes de tudo
expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante.”
(HOLANDA [1936] 2022, edição Kindle).
25 Em seu trabalho sobre a subjetividade na linguagem, Benveniste escreve também: “E
notável o fato - mas, familiar como é, quem pensa em notá-lo? - de que entre os signos
de uma língua, de qualquer tipo, época ou região que seja, nâo faltam jamais os
‘pronomes pessoais’. Uma língua sem expressão de pessoa é inconcebível. Pode
acontecer somente que, em certas línguas, em certas circunstâncias, esses “pronomes”
sejam deliberadamente omitidos; é o caso na maioria das sociedades do extremo

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oriente, onde uma convenção de polidez impõe o emprego de perífrases ou de formas
especiais entre certos grupos de indivíduos, para substituir as referências pessoais
diretas. Esses usos, no entanto, nâo fazem mais que sublinhar o valor das formas
evitadas; é a existência implícita desses pronomes que dá o seu valor social e cultural
aos substitutos impostos pelas relações de classe.” (BENVENISTE, [1958], 1995, p.
287).
26A esse respeito, conferir, por exemplo, Guimarães e Orlandi (1996) e Oliveira (2006).
27 Conforme Lopes ([1999] 2003), a pronominalizaçâo do substantivo gente foi um
processo lento e gradual, sendo que ocorrências de a gente como variante de nós surgem
apenas no século XVIII e que, antes disso, havia exemplos esporádicos com
ambiguidade interpretativa para a forma a gente, que, nas palavras da autora, “tanto
pode ser considerada sinônimo de “pessoas” quanto variante de nós.” (p. 63). Também
segundo Lopes, as ocorrências ambíguas vão aumentando gradativamente ao longo dos
séculos (a autora localizou, nos textos de sua amostra, um caso de interpretação
ambígua no século XIII, duas no século XVI, duas no século XVII, nove no século
XVIII e trinta e seis no século XIX. Lopes considera, então, que houve um período
transitório instaurado entre o século XVII e o XIX e que “conforme se configura a
intensificação do emprego de a gente como forma pronominal [como variante de nós\
do século XIX em diante, a interpretação ambígua deixa de se fazer presente.” (p. 65).
A esse respeito, Lopes acrescenta: “Aparentemente, no século XIX, ou quem sabe antes
disso, há um estágio intermediário entre o uso nominal de gente e pronominal de a
gente, evidenciado pela manutenção desses traços formais de gênero típicos do nome”,
(p. 73). Na análise de suas amostras, a autora localiza a primeira correferência de a
gente no século XIX, sendo que essa correferência se multiplica no século XX (p. 73).
Feitas essas considerações, lembramos que, da perspectiva discursiva, a ambiguidade é
compreendida como constitutiva da língua, uma vez que a língua é capaz de falha em
todos os lugares e a determinação do sentido, sua “literalidade” é apenas efeito de um
processo de colamento, mas que está sempre suscetível de se descolar e mudar de
sentido, de tomar-se outro (PÊCHEUX, [1983] 2008, p. 53).
28 Uma discussão mais demorada sobre a relação entre a língua e seus artefatos pode
ser lida em Ferreira (2020b). Sobre a questão da relação indissociável entre escrita e
oralidade, lembramos, por exemplo, os trabalhos de Gallo (1989) e de Orlandi (2012).

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281
DOI: 10.203 96/lil. v2 5i49.8669280

Alinhavando alguns sentidos sobre Manuel Said Ali


na produção e circulação do conhecimento
linguístico

Lining up some senses about Manuel Said Ali in the


production and circulation of linguistic knowledge

Am anda Eloina Scherer*


UFSM

Resumo: Mcmuel Said Ali é uma das figuras constitutivas daquilo que
nomeamos como um homme de lettres. A partir de tal pressuposto,
queremos entender, em nosso artigo, como tal estudioso, ao escrever
sobre a problemática da língua com as interrogações de sua
época, acaba nos indicando caminhos para uma historicização dos
estudos da linguagem no contexto brasileiro. Nossa pedra modidar está
ancorada nas implicações determinadas pelos estudos sobre
a institucionalização e a disciplinarização.

Palavras-chave: Said Ali, Memória, História, Institucionalização,


Estudos linguísticos.

Abstract: Manuel Said Ali is one o f the constitutive figures o f whatwe


call an "homme de lettres". From this assumption, we want to
understand, in this cirticle, how such a scholar, when writing about the
problem oflanguage with the questions ofhis time, indicates paths fo r
an historicizcition o f language studies in the Brazilian context. Our
modular stone is anchored on the implications determined by
institutionalization and disciplinarization studies.

Keywords: Said Ali, Memory, Historv, Institutionalization, Linguistic


studies.

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Antes de tudo...
Temos por hábito aceitar, com grande júbilo, muitos dos convites
que nos é endereçado, uma vez que eles nos parecem sempre elogiosos
e reconhecidos em relação ao que temos nos dedicados a investigar
sobre a história disciplinar da língua e da linguagem na
contemporaneidade. Nossa pedra modular, como vocês todos sabem,
tem sido sobre a historicização do conhecimento linguístico, tanto na
sua institucionalização quanto na sua disciplinarização, principalmente
no contexto brasileiro. Nosso foco de interesse, amparado aqui em
Puech (2004), tem sido colocado em três dimensões: 1) o da invenção;
2) o de sua inserção em um a configuração maior; e 3) o de sua
transmissão. Queremos crer que não foi diferente para as organizadoras
quando do convite recebido para participar do I Seminário do Arquivo
de Saberes Linguísticos - Homenagem a Said Ali.
Em nosso caso, havíamos começado um estudo sobre o estudioso
francês Victor Henry1 e uma possível circulação de suas idéias no
Brasil, sobretudo a partir da leitura e da produção de Manuel Said Ali.
Fizemos uma primeira apresentação, muito nos moldes de um alinhavo
mesmo, sobre os primeiros recortes que havíamos realizado para as
duas Journées d'Etudes: Langue, discours, histoire, em Paris, em 2014.
As j ornadas foram organizadas por nossa rede brasileira de laboratórios,
por seu lado constituída pelo nosso Laboratório Corpus, do Programa
de Pós-Graduação em Letras da UFSM, juntamente com o E-L@DIS -
Laboratório Discursivo: Sujeito, Rede Eletrônica e Sentidos em
Movimento, da Universidade de São Paulo, campus de Ribeirão Preto,
e o LAS - Laboratório Arquivos do Sujeito, da Universidade Federal
Fluminense, campus de Gragoatá; e nossas atividades foram
estabelecidas, em comum acordo, com nossos parceiros franceses.
Nossa meta, naquele momento, em uma política de internacionalização
de nossa rede de laboratórios era a de um séjour de estudos para
discutirmos sobre o que desenvolvíamos na ocasião, junto com
doutorandos, recém-doutores e nossos pares de além mar. Nossa estadia
aconteceu em duas instituições parceiras, a saber: a) na Université de
Paris III, junto ao HTL - Histoire des Théories Linguistiques; b) na
Ecole Normale Supérieure, mais especificamente no interior do Institut
de Textes et Manuscrits Modemes.
No séjour de 2014, trouxemos, enquanto pesquisadora, as primeiras
reflexões que estabelecíamos de forma nascente sobre a circulação das

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idéias linguísticas de Victor Henry, no contexto disciplinar brasileiro.
O título de nossa apresentação foi: Victor Henry et la constitution du
discours disciplinaire au Brésil. Naquele texto (manuscrito e em
rascunho ainda), como já adiantamos anteriormente, procurávamos
traçar um possível trajeto de leitura sobre a circulação das idéias
linguísticas do estudioso francês nas considerações e afirmações de
Manuel Said Ali.
No entanto, quando do aceite para participar do Seminário em
homenagem a Manuel Said Ali, em novembro último, um percurso de
leitura foi sendo colocado à prova e muito do que apresentamos em
2014 foi ficando para um depois, uma vez que fomos nos dando conta
que, para homenagear um mestre, não seria de bom tom começar nosso
estudo por um outro mestre e estrangeiro, mesmo sabendo que Manuel
Said Ah não ficou imune ao seu tempo. Não obstante, na apresentação
sobre a circulação das idéias linguísticas de Victor Henry no Brasil, lá
em nosso estudo anterior, pudemos entender que Manuel Said Ah
passou, de algum modo, pela égide do estudioso francês.
Mas é preciso apontar que, para nós, não é uma problemática de
influência de um sobre o outro, de quem viria primeiro ou depois, de
quem seria mais importante, pois procurávamos saber (e entender)
quais idéias estavam circulando sobre a língua e a linguagem naquele
tempo. As perguntas que conduziam nossa reflexão estavam
alinhavadas na seguinte direção: a) quais conceitos estavam sendo
formulados? b) que conceitos estavam emergindo? c) quais eram as
formulações que permitiam um texto distinguir-se de outro? d) quais as
problemáticas comuns? e) como estudiosos, em percursos diferentes,
em continente diferentes, por exemplo, se aproximavam e distinguiam?
f) quais seriam as configurações mediadas pelos dois estudiosos (o
estatuto da mudança linguística; o papel do sujeito falante; as leis
fonéticas e seu estatuto etc.)?
Como sabemos, Manuel Said Ali e, da mesma forma, Victor Henry
produziram muito e fizeram circular idéias fora do círculo nacional.
Foram eles, aliás, os alicerces de um pensamento por demais precursor
e promissor para a época na qual viviam. Foram dois sujeitos afeitos a
leituras em várias línguas. Nenhum dos dois ignorou a sua e muito
menos outras (mais conhecidas ou menos conhecidas entre nós). Certo,
eles tiveram produções em contextos e continentes diferentes, no
entanto as condições de produção e de circulação da ciência linguística

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estavam, em sua essência, nos questionamentos daquele momento e que
poderiamos, em uma síntese muito didática, colocar em três pilares
fundamentais:
1) O fazer científico - cujo ceme estava dado pela ideia de uma
ciência geral (não vamos entrar aqui na discussão sobre une
Science double);
2) A determinação de seu objeto - que passava pela procura de
leis gerais (universais);
3) A questão crucial sempre colocada - quais são os modos de
existência da língua?
Portanto, do ponto de vista sócio histórico, esses aspectos se
colocavam fundamentais sobre o plano conceituai e sobre aquele de
uma possível descoberta científica (PUECH, 2004), da mesma forma,
igual àquela da invenção, que iria além de um a descrição - tout court -
da língua. Para nós, a pergunta que não cessava de nos incomodar
estava formulada do seguinte modo: qual seria o fio que podería amarrar
os dois em tom o da definição de língua para um contexto de uma
linguística geral?
Além disso é preciso considerar, igualmente, as dificuldades do
fazer científico, visto que o produzir ciência, naquela época, em
condições materiais, estava sustentado na circulação de
correspondências entre os estudiosos, nas discussões em grupos de
trabalho designados, até aquele momento, como escola (Escola de
Genebra, Escola de Paris etc., não tão sumariamente como estamos
colocando) ou, ainda, pelas fronteiras (tênues nesse instante) do
disciplinar - tal e qual as que concebemos na atualidade: o gramático,
o filólogo, o linguista, etc. Da mesma forma, a circulação de obras entre
os continentes não era nada evidente, além do que a leitura em outras
línguas era por demais importante (e não continuaria sendo?). Desse
modo, nenhum dos dois estudiosos foram alheios ao seu tempo e às
condições de produção de toda natureza histórica e social.
Vamos apensar dois esboços, ainda sob forma de um alinhavo, sobre
como poderiamos propor, no momento, novas ancoragens para a
história da produção e da circulação do conhecimento linguístico, pois
para nós:

refletir sobre o disciplinar é também refletir sobre


o processo de institucionalização, por meio do

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qual um domínio de memória (PUECH, 2004)
ganha visibilidade e possibilita/resulta na
disciplinarização de determinados saberes e
condições sócio-históricas e ideológicas
específicas (SCHERER, 2020, p. 35).

A grande questão que colocamos até o momento em nossos estudos


tem muito a ver com as reflexões potentes e oportunas que Vanise
Medeiros tem desenvolvido nos últimos tempos sobre a transmissão
pensada em seus diferentes modos e mecanismos da e na discursividade
no e do transmitir. Conforme lemos em Vanise Medeiros,

a transmissão não se atém somente a instrumentos


linguísticos, mas se abre para teorias, para
práticas, para lugares de produção de
conhecimento. Se isto nos faz retomar aos
instrumentos linguísticos na medida em que estes
consistem em objetos de conhecimento e de
produção de conhecimento, em que consistem,
cabe lembrar, em objetos técnicos, por outro lado,
nos lança nos espaços de conhecimento, como
instituições científicas, escolares, por exemplo;
abre, pois, para lugares que laboram a
transmissão, e aí se incluem ainda as relações
entre pesquisas e pesquisadores bem como as
redes de pesquisa. Em poucas palavras, a noção de
transmissão vai ser pensada e especificada em
seus diferentes modos e mecanismos de
transmissibilidade tanto no que se refere aos
instrumentos, para nos atermos a estes objetos,
quanto no que concerne aos espaços
(MEDEIROS, 2020, p. 170-171).

Portanto, estamos propondo um pouco do que estamos amaneirando


sobre uma possível (outra? ou mesma?) historicização, via a metáfora
do alinhavo, pontilhado pelo fio de Ariadne (SERRES, 2001).
Esperamos que ele, o fio de Ariadne, não arrebente, não se perca, não
vire serpente nos devorando. O que estamos querendo fazer é inventar
(no sentido de ficcionalizar) uma possível direção (muitas vezes em
fuga dela própria) para formular, conceitualizar, parametrar, direção

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om ada pelas misturas do mundo e das leituras daqui e de além-mar que
temos realizado até a presente data. Poderá parecer labiríntica, pois
nosso pontilhado poderia ser visto como a imagem com a qual se tece a
teia que nos guia e ajuda a nos desenredar na tecitura de nosso dizer.
No entanto, para nós um labirinto que talvez pudesse, igualmente,
percorrer em busca de seu fio redutor.
Estamos designando nosso fio de Ariadne de ninharias, apoiada no
poético de Manoel de Barros (2021), pois as considerações que vamos
trazer sobre a constituição da produção e da circulação do
conhecimento linguístico, no final do século XIX e início do século XX,
talvez possa interessar a poucos, mas tem nos afetado, desde sempre,
sobretudo no como ler (no sentido de interpretar) a história do
conhecimento linguísticos em um certo domínio de memória. Quais
seriam esses domínios?

Um primeiro alinhavo possível...

Manuel Said Ah é uma das figuras constitutiva daquilo que


nomeamos em língua francesa de homme de lettres na modernidade.
Um erudito, um sábio, um homem cultivé. Se tomarmos a história do
livro no ocidente, entre o início do século XVIII e o final do XIX,
podemos afirmar que era ele aquele que, além de escrever sobre a
problemática da língua com as interrogações da época, estava sobretudo
centrado em dois papéis: o primeiro de entusiasta e o segundo de
estudioso. Estudioso entusiasta! Entusiasta estudioso! Impossível
separar um do outro. Seria essa espécie de arquiteto de sistemas de
pensamento, além de um desbravador na história da ciência, em nosso
caso, do que seria a ciência linguística nos dias atuais, mas não só. O
polímata na expressão de Peter Burke (2021). E com eles, com os
hommes de lettres, que novas fundações acontecem, novas instituições
vão incentivar as especializações, naquilo que Burke (2021) vai chamar
de a era das territorialidades - por exemplo, com a divisão no interior
das instituições, a criação da maioria das Sociétés Savantes. Daí
também decorre o surgimento de periódicos e da mesma forma a divisão
do mundo acadêmico e científico em duas culturas: a das ciências
naturais e a das humanidades. Interessante observar como Lepenies
(1996), na sua obra As três Culturas, mostra-nos, inclusive, como a
sociologia vai enfrentar (afrontar mesmo) a concorrência da literatura,

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criando um litígio com uma espécie de criação de uma terceira cultura.
E Lepenies (1996) vai historicizar, de forma brilhante, o debate entre
dois grupos - escritores e críticos, de um lado, e, de outro, os cientistas
sociais, sobretudo os sociólogos - sobre supremacia de quem podería
oferecer a direção primordial das ciências ditas sociais. Problemática
fundamental em meados do século XIX, na Europa, na divisão em
campos de saber distintos no disciplinar contemporâneo. No contexto
brasileiro, teríamos muito a estudar ainda.
Outro ponto a destacar, surge daí igualmente o trabalho em equipe,
a escuta acadêmica, as correspondências, a departamentalização das
universidades (no sentido que nós acordamos no tempo presente), o
próprio da especialização e a sobrevivência do polímata ficará cada vez
mais difícil. Também na era das territorialidades nasce o crítico, novas
disciplinas, nasce o que hoje chamamos de ciências sociais. Enfim, um
exemplo de polímata, na era das territorialidades que conseguiría
sobreviver, segundo Burke (2021) podería ser o caso de Michel de
Certeau, ou mesmo Roman Jakobson.
A grande pergunta dessa época, no contexto brasileiro, seria: Quais
são os modos de existência da língua? Ao nosso ver, não deixaria de ser
uma pergunta desde sempre. E essa era uma tônica instigante para os
estudiosos de então. De qual língua estávamos falando? Qual língua
estudávamos? O Brasil estava também em plena efervescência -
política, cultural e social. Portanto, a pergunta do lado de cá seria
também - quais são os modos de existência da língua? - . E ela era
sustentada por questões que tinham a ver com a significação em todos
os seus aspectos. Nós poderiamos - quase - afirmar que a
descolonização começava desde então a se fazer forte.
Outro ponto a destacar ainda é o quanto esse homme de lettres era
um conhecedor e interessado em outras línguas - autodidata sim, mas
curioso, desperto para além-mar, interessado não só pelo mundo
português, mas e sobretudo pelo mundo alemão, francês. Também um
grande estudioso do latim, do grego e do indo-europeu. Com Manuel
Said Ali não foi diferente. Bechara, aliás, vai trazer no seu texto de tese
para o concurso - Cátedra de Língua e Literatura do Instituto de
Educação do Estado da Guanabara (1962) - que o rapaz pobre teve de
trabalhar no comércio (página 3). Nós acrescentaríamos: não qualquer
comércio - a Livraria Laemmert et cia, um centro radiador de cultura
letrada no Rio de Janeira daquele momento.

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Um outro alinhavo possível...

Manuel Said Ali é um clássico no sentido dado por ítalo Calvino


(2007, p. 11), pois “os clássicos são livros que exercem uma influência
particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se
ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente
coletivo ou individual”. O estudioso brasileiro tem um lugar especial
nas prateleiras abarrotadas de livros e pastas em nossa casa. E toda vez
que retomamos Manuel Said Ali encontramos questões sempre atuais
e, ao mesmo tempo, na força de sua escrita, ele nos mostra o quanto
estudar e refletir sobre a língua é um trabalho de fôlego, de entusiasmo,
de perseverança, à long terme, como poderiamos muito bem enunciar à
la française. Um autor que se ouve sempre dizer “estou relendo” e
quase nunca “estou lendo”, pois lemos, em nosso caso, quando de
nossa formação em Letras, lá no final dos anos 60, quando estávamos
na Licenciatura Português-Francês e que, na contemporaneidade,
relemos como aquele alicerce genuíno que constitui a nossa idade
adulta de pesquisador e de professor.
Em nosso caso, mais especificamente, toda vez que a problemática
da História das Idéias (linguísticas) bate à nossa porta nos interrogando
sobre mestres e discípulos, sobre história e memória da língua no e do
Brasil, ele é um dos primeiros a quem recorremos. Em cada encontro,
um acontecimento. Sendo um clássico, ele parece nunca terminar de
instigar-nos, de dar-nos a ver o que não conseguimos entrever em
releituras anteriores. Embora não permaneça imune à passagem do
tempo (como já trouxemos), Manuel Said Ali é um daqueles autores
que, na atualidade, gerações e gerações de linguistas deveríam ler e reler
com uma certa curiosidade, principalmente, ética. Trazemos, aqui a
título de exemplo, uma recordação de Evanildo Bechara, quando o
mesmo procurava por alguém para guiá-lo pelos caminhos da profissão.
Vejamos:

Estávamos em 1943. Eu, aos 15 anos, procurava


um orientador de apoio, para que, num futuro bem
próximo, pudesse ser aos meus alunos um
professor que lhes levasse um guia seguro numa
disciplina que já havia escolhido: língua
portuguesa. A leitura do prefácio da “Lexicologia

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do Português Histórico" de 1921, e as
percucientes investigações nas páginas de
"Dificuldades da Língua Portuguesa”, de 1908,
foram decisivas para elegê-lo "il mio autore",
como Dante elegera Virgílio para ajudá-lo a
percorrer os ínvios caminhos do Inferno pela
jornada empreendida na "Divina Comédia".
Minha eleição recaía em Manuel Said Ali
(Caderno Ilustríssima, página 07).

Pelo mio autore, do professor Evanildo Bechara, podemos ver o


quanto o mestre acabou marcando uma época de formação, época do
grande estudioso da língua portuguesa, e acabou marcando, outrossim,
a vida acadêmica de muitos estudantes de Letras em um momento que
fazer Letras significava, sobretudo, a leitura dos grandes clássicos, pois
compreendemos que, a partir de ítalo Calvino (2007), os clássicos são
aqueles livros que constituem um capital cultural para quem os tem lido
e deles desfrutado um aprendizado; constituem igualmente, por sua vez,
um capital não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela
primeira vez nas melhores condições para apreciá-los. E como afirmam
aqueles que são apaixonados pelo conhecimento; um clássico é um
livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.
Para nós, Manuel Said Ah é um clássico em todo o seu sentido
fundador, mas não só. Para nós, ele significa também o que já
colocamos em nosso primeiro alinhavo, naquilo que Peter Burke (2020)
vai nomear como um polímata, no percurso estabelecido pelo autor,
como já vimos, quando o estudioso procura desenhar uma história
cultural do pensamento ocidental. Um polímata no sentido daqueles
monstros de erudição que nos proporcionam uma profundidade
histórica e uma extraordinária força de conhecimento que ultrapassa um
disciplinar ajustado pelas forças políticas institucionais. Ou como no
dizer de Borges, um (livro) clássico

Clássico não é um livro (repito) que


necessariamente possui estes ou aqueles méritos;
é um livro que as gerações humanas, premidas por
razões diversas, leem com prévio fervor e
misteriosa lealdade (BORGES. 2007, p. 222).

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Procurando concluir...

Ao nosso ver, é deveras apaixonante procurar trazer para a


problemática da historicização da produção e da circulação do
conhecimento do conhecimento linguístico, o funcionamento das
nomeações polímata (BURKE, 2021) e clássico (CALVINO, 2007)
(BORGES, 2007), pois elas são pontos de ancoragem que poderíam
sustentar uma outra entrada no estudo e na reflexão sobre uma história
do movimento disciplinar. Pelo nosso descortinar, um homme de lettres
alvoroça sentidos provocando uma fundação outra no e do disciplinar
em um a outra época, pois o disciplinar contemporâneo tem suas raízes
fincadas em um a história de língua e de sujeito. Por outro lado, sabemos
também o quanto uma nomeação tem implicações políticas no dizer
sobre e dá suporte para sua existência. Ela tem na sua primazia uma
forma peculiar de ir tentando acomodar uma significação ao pelejar por
uma (ilusória) estabilização, tentando cimentar e individualizar um
acontecimento histórico e, por que não, enunciativo e discursivo
(SCHERER, 2015). A nomeação tem muito de um a reversibilidade
extrema e, ao mesmo tempo, ela é inseparável do sujeito pela língua e
a língua pela história. Cada um deles está tomado pela ordem da
ideologia, pois, por ela, é naturalizado o que é produzido pela história.
Sabemos, outrossim, com Eni Orlandi que:

há transposição de certas formas materiais em


outras. Há simulação (e não ocultação de
conteúdo) em que são construídas transparências
(como se a linguagem não tivesse sua
materialidade, sua opacidade) para serem
interpretadas por determinações históricas que
aparecem como evidências empíricas
(ORLANDI, 1994, p.56).

Fim de noite em um começo de um inverno, não francês, mas


brasileiro... Camobi 09 05 2022.

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Notas

* Doutora em Linguística, Semiótica e Comunicação pela Université de Franche-Comté


e pós-doutorado pela Université de Remies 2, França. Atualmente, é Professora Titular
de Linguística do Departamento de Letras Clássicas e Linguística da Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM). Pesquisadora do Laboratório Corpus (UFSM) e
professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFSM. Coordenadora Geral
do Espaço Multidisciplinar de Pesquisa e Extensão da UFSM - Silveira Martins.
1Victor Flenry (1850-1907). Professor de sânscrito e gramática comparada das línguas
indo-européias na Faculdade de Letras de Paris. No dizer de Puech (2004, p. 0), um
linguista tipicamente atípico no final do século ATT.

Líng. e Instrum. Linguíst., Campinas, SP, v. 25, n. 49, p. 282-296, jan./jun. 2022.
296
DOI: 10.20396/lil.v25i49.8669189

Notas sobre o “ Vocabulário Orthographico da


Lingua Portugueza , precedido das regras
concernentes ás principaes dificuldades
orthographicas da nossa língua”, de Said Ali

Remarks about the “Vocabulário Orthographico da


Lingua Portugueza, precedido das regras concernentes
ás principaes dificuldades orthographicas da nossa
língua” by Said Ali

Claudia Pfeiffer*
U N IC A M P

Thaís de Araújo da Costa**


U E R J/U FF/U N IC A M P

V anise M edeiros***
UFF

Resumo: Lançando nosso olhar sobre o “Vocabulário Orthographico


da Lingua Portugueza, precedido das regras concernentes ás
principaes difficuldades orthographicas da nossa língua ”, de Said Ali,
publicado em 1905, observamos o fato discursivo em torno da ausência
de referência a essa obra nos estudos que se dedicam à história do
conhecimento linguístico-gramatical. Importa-nos refletir sobre essa
ausência ao lado de um nome de autor - Said Ali - que faz parte das
periodizações, mas a partir de um rol de publicações do qual o
Vocabulário não é significado como pertencente. Como pesquisadoras
inscritas na História das Idéias Linguísticas, filiadas à Análise de
Discurso Materialista, nos movimentamos em torno da compreensão
do que interdita a disciplinarização do Vocabulário em nossa história.

Líng. e Instrum. Linguíst., Campinas, SP, v. 25, n. 49, p. 297-333, jan./jun. 2022.
297
Nesse percurso, que se abre para novas investidas, demos a ver
algumas tensões, equivocidades e contradições em diferentes ordens
que se entrelaçam, se enredam, se tecem no fio do discurso inscrito no
Vocabulário.

Palavras-chave: Vocabulários Ortográficos, Said Ali,


Disciplinarização, História das Idéias Linguísticas.

Abstract: Casting our look on the “Vocabulário Orthographico da


Língua Portugueza, precedido das regras concernentes às principaes
difficuldades orthographicas da nossa língua ”, by Said Ali, published
in 1905, we observe the discursive fiact around the absence ofreference
to this work in the studies that are dedicated to the history oflinguistic-
grammatical knowledge. It is importantfo r us to reflect on this absence
beside an author ’s name - Said Ali - which is part o f the periodizations,
butfrom a list o f publications from which the Vocabulário is not meant
as belonging. As researchers enrolled in the History o f the Linguistics
Ideas, linked to the Materialist Discourse Analysis, we have been
moving around the understanding o f which prohibits the
disciplinarization o f the Vocabulário in our history. In this journey,
which opens up to new onslaughts, we have seen some tensions,
equivocities and contradictions in different orders that interlace,
entangle, weave each other in the thread o f the discourse inscribed in
the Vocabulário.

Keywords: Orthographic Vocabularies, Said Ali, Disciplinarization,


History o f Linguistic Ideas.

Quand une langue se pose comme fixée et


excedente, il est bien difficile de lui reconnaitre la
possibilité de changer1. (COLLINOT;
MAZIÈRE, 1997, p. 39)

Introdução
Orlandi (2009), retomando as reflexões de Auroux ([1992] 2009),
afirma que não é incomum que gramáticos produzam publicações que,

Líng. e Instrum. Linguíst., Campinas, SP, v. 25, n. 49, p. 297-333, jan./jun. 2022.
298
embora não nomeadas de gramáticas, funcionam como instrumentos
linguísticos2, que, “trabalhando, na descrição e na análise de fatos da
língua, vão criando o espaço de visibilidade da hiperlíngua”
(ORLANDI, 2009, p. 36). Esse é, pois, o caso de Said Ali, a cuja
gramaticografia3 se somam diversos outros textos, como aqueles em
que se debruça sobre a questão ortográfica. A luz da perspectiva
discursiva da História das Idéias Linguísticas, voltaremos nosso olhar
especificamente para um deles, qual seja: o Vocabulário Orthographico
da Lingua Portugueza, precedido das regras concernentes ás
principaes difficuldades orthographicas da nossa língua, publicado em
1905, colocando-o - sempre que se fizer necessário - em relação a
outros textos filiados a esse nome de autor.
De acordo com o filólogo e tradutor tcheco-eslovaco Zdenek
Hampejs (1961, p. 194), em estudo realizado na década de 1960 por
ocasião da sua passagem como professor de Filologia Românica pela
então Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (atual
UFRJ), o Vocabulário foi o primeiro livro filológico de Said Ali e teve
por objetivo “pôr ordem na ortografia existente”, sugerindo,
“sobretudo, a [sua] simplificação (...), isto é, a supressão de letras nulas
e a substituição dos chamados grupos gregos por letras mais conformes
a pronúncia” . Apesar disso, existe de um modo geral, nos estudos que
se dedicam à história do conhecimento linguístico-gramatical no/do
Brasil, um silenciamento em relação a essa obra. Esse é o caso, por
exemplo, de quatro periodizações dos estudos sobre a língua portuguesa
publicadas em diferentes momentos e a partir de distintas filiações
teóricas por brasileiros, a saber: Nascentes (1939 [2003]), Elia (1963
[1975]), Guimarães (1996 [2004]) e Cavaliere (2001).
Diante dessa ausência, fomos instadas a refletir sobre os seus efeitos
ao lado de um nome de autor que faz parte das periodizações, mas a
partir de um rol de publicações de que o Vocabulário não é significado
como pertencente. E isso mesmo em periodizações dedicadas a fazer
especificamente uma história da ortografia da língua no/do Brasil, como
Azeredo (2009) e Henriques (2015). Posto isso, impôs-se, de início, à
nossa reflexão uma questão: quais são as condições de produção que,
na relação com o conhecimento sobre a língua no/do Brasil, fazem com
que o Vocabulário de Said Ali não seja significado como referência
nem no momento da sua publicação, nem posteriormente ou, em outras

Líng. e Instrum. Linguíst., Campinas, SP, v. 25, n. 49, p. 297-333, jan./jun. 2022.
299
palavras, por que esse instrumento não se disciplinariza na história do
conhecimento linguístico-gramatical?
Não se trata de responder aqui a essa pergunta, mas de colocá-la em
cena, já que traz à baila a tensão entre se disciplinarizar em uma história
do conhecimento e não se disciplinarizar. Tensão que se dá em meio a
outras de que fomos nos apercebendo no ir-e-vir frente a formulações
de Said Ali no Vocabulário e em outras obras e dizeres de/sobre Said
Ali. Tensões presentes que tocam e não tocam diretamente nossa
questão de fundo sobre a disciplinarização do Vocabulário, como, por
exemplo, tensões entre um cá (Brasil) e um lá (Portugal); entre uma
fdiação etimológica e uma outra foneticista; entre a simplificação
ortográfica e a grafia etimológica; entre a prescrição e a descrição; entre
regras e exceções; entre a oralidade e a escrita; entre o culto e o popular,
entre a unidade e a especificidade; e, finalmente, entre, de um lado, um
dizer sobre a língua que, apesar de constituído como um instrumento
linguístico, não se discursiviza, na relação com a dimensão nacional da
língua, enquanto um acontecimento linguístico e, de outro, um nome de
autor a que se filiam outras discursividades que o inscreveram na
história das idéias linguísticas no/do Brasil.
Com vistas a refletir sobre parte dessas tensões, nos debruçaremos
em três pontos de ancoragem por intermédio dos quais adentramos na
discursividade do Vocabulário em meio a uma trajetória de dizeres
sobre a língua.

1. A (orto)grafia em cena nos estudos da linguagem

Orlandi ressalta a incompletude constitutiva de todo dizer quando


aponta a sua relação fimdante com o não dizer. O não dito, conforme a
autora, pode ser de diferentes naturezas:

o que não está dito mas que, de certa forma,


sustenta o que está dito; o que está suposto para
que se entenda o que está dito; aquilo a que o que
está dito se opõe; outras maneiras diferentes de se
dizer o que se disse e que significa com nuances
distintas etc. (ORLANDI, 2012, p. 13)

Líng. e Instrum. Linguíst., Campinas, SP, v. 25, n. 49, p. 297-333, jan./jun. 2022.
300
Há relações entre sentidos (e sujeitos) que estabelecem o que "um
texto diz e o que ele não diz, mas que poderia dizer, e (...) o que ele diz
e o que outros textos dizem”. Tais relações é o que atesta a
intertextualidade - relação de um texto com outros textos existentes,
possíveis ou imaginários - e também a interdiscursividade - a relação
de um discurso com outros discursos, a qual pode se dar de diferentes
formas. Assim, considerando o texto como lugar de dispersão de
discursos, a autora entende que saber ler, visto que "o(s) sentido(s) de
um texto passa(m) pela relação dele com outros textos”, implica "saber
o que o texto diz e o que ele não diz, mas o constitui signifícativamente”
(ibid., loc. cit.).
Tomando essa compreensão de Orlandi como norteadora do gesto
de leitura aqui empreendido e considerando ainda, como postula
Auroux ([1992] 2009, p. 12), que, "sem memória e sem projeto,
simplesmente não há saber”, organizamos o quadro 1, mais adiante, no
qual destacamos alguns acontecimentos/textos que buscaremos
historicizar adiante a fnn de que possamos (re)inscrever a obra que
elegemos como materialidade de análise nas discussões travadas no
final do século XIX e início do século XX.
Antes, contudo, uma ressalva. Muitas vezes, os vocabulários,
enquanto tipo de obra, são caracterizados como listagem de palavras.
Tal assertiva, no entanto, não daria conta de todo e qualquer
vocabulário, sobretudo daqueles que vêm adjetivados por ortográfico,
como este de Said Ali. Há nesse adjetivo uma série de implicações e
efeitos que o retira da ordem de uma simples listagem e que o diferencia
de outros vocabulários sem tal especificidade. Um vocabulário
ortográfico incide sobre a grafia, focaliza a letra a ser grafada e a impõe
como escrita. Nele e com ele, está em jogo, portanto, o modo como se
deve escrever; a correção/adequação da escrita a partir da letra
apropriada, precisa. No caso do Vocabulário de Said Ali, há ainda uma
seção intitulada "Regras Orthographicas” (com 20 páginas) entre a
"Introdução” e a lista de palavras que compõe o corpo da obra, no qual
comparecem notas de rodapé em que as chamadas regras ortográficas
também se fazem presentes. Assim, letra e escrita se embaralham na
instrumentação da língua a partir de tal vocabulário.
Quanto a isso, lembremos o que pontuam Blanche-Benveniste e
Chervel (1969), que, pensando a escrita do francês, explicam que essa

Líng. e Instrum. Linguíst., Campinas, SP, v. 25, n. 49, p. 297-333, jan./jun. 2022.
301
se define pela combinação de dois elementos notadamente distintos: um
alfabeto dito latino e uma ortografia, que nada mais é que a utilização
específica desse alfabeto com a notação do francês. Os autores
esclarecem ainda que o termo alfabeto designa em princípio somente a
lista de um certo número de signos, com suas variantes (maiúsculas,
minúsculas, impressa, cursiva etc.) e uma ordem de recitação, sem
considerar, contudo, a relação entre signo e som, de modo que povos
diferentes podem legitimamente utilizar o alfabeto latino atribuindo aos
seus caracteres diferentes valores. Essa, todavia, não é uma
particularidade da língua francesa, que, conforme os autores, desviou
boa parte dos signos latinos da sua “vocação” fonética de origem, mas
também da língua portuguesa (e de outras) - fato que ganha distintas
nuances se consideramos os diversos processos político-históricos
pelos quais essas línguas se in(e)screveram em diferentes territórios.
Sobre essa “origem” inscrita na determinação do substantivo
“alfabeto” pelo adjetivo “latino”, Blanche-Benveniste e Chervel (ibid.,
p. 15) destacam ainda o seu “caráter completamente aproximativo” .
Para eles, deve-se admitir que, se é válido falar para o francês de um
“alfabeto latino”, é preciso igualmente reconhecer que o latim tinha um
alfabeto grego (de tipo ocidental) e que, sem dúvida, o grego tinha um
alfabeto fenício. Dessa maneira, se a reflexão dos autores nos coloca a
historicidade da relação entre escrita-letra-ortografia, coloca-nos
também, ao pontuar o “caráter completamente aproximativo da
expressão ‘alfabeto latino’”, o tenso imbricamento que se dá entre os
elementos dessa relação e a realização de uma dada língua no plano
fonético/fonológico. Logo, cumpre ressaltar que, ao considerarmos que
um vocabulário ortográfico impõe uma dada letra/escrita para uma certa
língua, esta não é sem historicidade e, por conseguinte, sem tensões e
contradições. Construir um vocabulário é um gesto sobre a língua que
não escapa de uma memória de língua e da(s) língua(s) com as divisões
e disjunções sociais que constituem sua produção. Não podemos
esquecer também que um vocabulário ortográfico advém de outros
vocabulários, de dicionários, da literatura e mesmo da oralidade, ou
seja, que ele, assim como outros instrumentos linguísticos, se inscreve,
seja por meio da repetição, do deslocamento ou da ruptura, numa
memória de dizeres sobre a língua, no caso em tela, mais

Líng. e Instrum. Linguíst., Campinas, SP, v. 25, n. 49, p. 297-333, jan./jun. 2022.
302
especificamente, sobre a ortografia da língua chamada portuguesa no
espaço-tempo de enunciação brasileiro.
Dito isto, faz-se preciso recordar que, em 1905, ano de publicação
do Vocabulário de Said Ali, já era de longa data em Portugal a tradição
de publicação de obras que se dedicavam à questão ortográfica. É de
1576 a primeira edição de Orthographia da lingoa portuguesa , de
Duarte Nunes de Leão. A primeira obra intitulada de vocabulário,
porém, de acordo com o site da Academia das Ciências de Lisboa4, foi
publicada no Brasil em 1853. Trata-se do Vocabulário brasileiro para
servir de complemento aos diccionarios da língua portugueza, de Braz
da Costa Rubim. Depois do vocabulário de Rubim e antes do de Said
Alij apenas mais um foi publicado no país recém-independente: o
Consultor popular da língua portugueza, contendo um vocabulário
orthographico com mais de 4,000 termos, de Renato Sêneca Fleury,
cuja primeira edição o site da referida Academia indica como de
datação provável de 1870. A obra de Said Ali foi, portanto, a terceira
do gênero publicada em solo nacional e justamente em um momento
em que a questão ortográfica se colocava fortemente tanto em Portugal
quanto no Brasil, o que tom a ainda mais curioso o seu silenciamento na
história do conhecimento linguístico-gramatical. Vejamos o Quadro 1.

Quadro 1 - Horizonte de retrospecção e de projeção do Vocabulário de


Said Ali5
ANO LOCAL AUTOR OBRA
Vocabulário brasileiro p a ra
Braz da Costa s e n ír de com plem ento aos
1853 BRASIL
Rubim diccionarios da língua
portuguesa
A língua portugueza:
Adolfo
1868 PORTUGAL phonologia, etvm ologia,
Coelho
m orphologia e svntaxe
C onsultor p o p u la r da língua
Renato
portugueza, contendo um
1870? BRASIL Sêneca
vocabulário orthographico com
Fleury
m ais de 4,000 ternos
Gonçalves
Vianna e
1885 PORTUGAL B ases da ortografia p ortuguesa
Guilhenne de
Abreu

Líng. e Instrum. Linguíst., Campinas, SP, v. 25, n. 49, p. 297-333, jan./jun. 2022.
303
Paul Passy/
Associação
PARIS, A lfabeto fo n é tic o internacional
1888 Fonética
FRANÇA (Prim eiro esboço)
Internacional
(AFI - 1886)
O ensino secundário na Europa.
1896 BRASIL M. Said Ali R io de Janeiro: Im prensa
N acio n a l, 1896.
Academia
Brasileira de D iscussão sobre a g ra fia da
1897 BRASIL
Letras p a la vra B rasil/B razil
(ABL - 1897)
"Q uestões O rtographicas " -
1898 BRASIL M. Said Ali
R evista Brazileira.
PARIS, Paul Passy/
1900 P rim eiro quadro do 1PA
FRANÇA AFI ’
E stabelecim ento da I a comissão,
constituída p o r M ed eiro s e
A lbuquerque. Silva R am os e José
1901 BRASIL ABL
Veríssim o, responsável p o r
estabelecer as regras
ortográficas.
O rtografia nacional:
Gonçalves sim plificação e uniform ização
1904 PORTUGAL
Vianna sistem ática das ortografias
portuguesas
PARIS, Paul Passy/
1904 Segundo quadro do IP A
FRANÇA AFI ’
Vocabulário
orthographico p reced id o das
1905 BRASIL M. Said Ali regras concernentes ás
prin cip a es difficuldades
orthographicas da nossa língua
E stabelecim ento da 2 acomissão,
constituída p o r João Ribeiro,
1906 BRASIL ABL José Veríssim o e Silva Ramos,
responsável p o r estabelecer as
regras ortográficas
A p ro va ç ã o da R eform a
1907 BRASIL ABL
ortográfica na A B L em

Líng. e Instrum. Linguíst., Campinas, SP, v. 25, n. 49, p. 297-333, jan./jun. 2022.
304
17/8/1907 e oficialização p elo
M inistro da Ju stiça A u g u sto
Tavares de L ira em 11/9/1907,
em bora na p rá tica esse ato
m inisterial n unca tenha sido
cumprido.
Nomes próprios geográficos. In:
1908 BRASIL M. Said Ali D ific u ld a d e s da L ingua
Portugueza.
Gonçalves Vocabulário O rtográfico e
1909 PORTUGAL
Vianna O rtoépico da L íngua P ortuguesa
Governo
português/
1911 PORTUGAL Comissão de F orm ulário ortográfico
filólogos
portugueses
Gonçalves Vocabulário O rtográfico e
1912 PORTUGAL
Vianna rem issivo da L íngua P ortuguesa
PARIS, Paul Passy/
1912 Terceiro quadro do IPA
FRANÇA AFI
A d o çã o da norm a ortográfica
1915 BRASIL ABL p ortugu esa - F orm ulário de
1911.
O ficialização da ortografia
sim plificada no B ra sil p o r m eio
de A co rd o firm a d o entre a
Governo
1931 BRASIL A cad em ia das Ciências de
Brasileiro
Lisboa e a A ca d em ia B rasileira
de Letras, com a aprovação de
am bos os governos.
Fonte: Elaboração autoral

Henriques (2015, p. 25) considera, em sua periodização da história


da ortografia da língua portuguesa, A língua portugueza: phonologia,
etymologia, morphologia e syntaxe, obra de 1868 do português Adolfo
Coelho, como “o pioneiro dos estudos com base científica” por
estabelecer uma nova visão a respeito da questão. Mas, assim como em
Azeredo (2009), a obra de 1904 intitulada Ortografia nacional:
simplificação e uniformização sistemática das ortografias portuguesas,
do também português Aniceto dos Reis Gonçalves Vianna, é

Líng. e Instrum. Linguíst., Campinas, SP, v. 25, n. 49, p. 297-333, jan./jun. 2022.
305
significada como o marco que assinala a passagem do período
pseudoetimológico para o período atual, nomeado histórico-científico,
no dizer do primeiro (HENRIQUES, 2015), ou fase simplificada, no
dizer do segundo (AZEREDO, 2009).
Nas duas periodizações, o chamado período pseudoetimológico,
como marca na língua o prefixo grego pseudo-, é significado
pejorativamente. Segundo Azeredo (ibid.), sob determinação do
pensamento renascentista, elegeu-se a grafia do latim como modelo da
escrita do português, o que, além de tom ar a escrita mais difícil, teria
feito com que fossem fixadas grafias errôneas para algumas palavras.
Esses sentidos de complicação e erro também comparecem em
Henriques (2015, p. 24-25), para quem tais estudos “não eram dos mais
sólidos”, já que “propunham um a ortografia pretensiosa e cheia de
complicações inúteis”, que, “sob o pretexto de ser etimológica, (...)
estava repleta de formas equivocadas, contrariando a etimologia e a
evolução da língua”.
Do mesmo modo, em ambas as periodizações, filia-se um
imaginário de cientificidade e simplificação ao período seguinte, que se
diz ter sido inaugurado pela obra de Gonçalves Vianna por se entender
que nela se “desenvolve uma análise da história interna da língua e [se]
estuda suas tendências fonéticas” (AZEREDO, 2009, p. 18). Seus
quatro princípios norteadores, todavia, conforme Henriques (2015, p.
25), já se encontravam em Bases da ortografia portuguesa, obra de
1885 publicada em coautoria com Guilherme de Abreu, na qual os
autores rejeitam as chamadas “ortografias individuais” em prol da
adoção de uma “ortografia portuguesa” (VIANNA; ABREU, 1885, p.
3). São eles:

1) proscrição absoluta e incondicional de todos os


símbolos de etimologia grega: th, ph, eh (= [ k ]),
rhe y;
2) redução das consoantes dobradas e singelas,
com exceção de rr, ss mediais, que têm valores
peculiares;
3) eliminação de consoantes nulas que não
influam na pronúncia da vogal precedente;
4) regularização da acentuação gráfica.
(HENRIQUES, 2015, p. 25)

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Como vimos na seção anterior, de acordo com Hampejs (1961, p.
194), o objetivo do Vocabulário de Said Ali estaria em consonância
com os princípios norteadores da proposta de Gonçalves Vianna, já que,
visando à simplificação ortográfica, sugeriría “a supressão de letras
nulas e a substituição dos chamados grupos gregos por letras mais
conformes a pronúncia”. Porém, desde o seu título - Vocabulário
Orthosraphico da Lingua Portugueza, precedido das regras
concernentes ás principaes dif£iculdades orthosraphicas da nossa
língua - , esse sentido de aliança é colocado em xeque, visto que nele
comparecem não só símbolos de etimologia grega (th, ph) como letras
germinadas (ff).
Buscando compreender como se dá essa tensão quanto ao que se
toma por simplificação no Vocabulário de Said Ali, recorremos à sua
Introdução da qual recortamos a sequência a seguir:

Baseia-se este vocabulário no modo de escrever


seguido hoje pela maioria das pessoas cultas.
Onde porem, entre essas mesmas pessoas, tem
reinado divergências manifestas, incoherencias
por demais palpaveis, e onde, por analogia falsa,
se insinuaram letras supérfluas ou impróprias,
regularisa o vocabulário a escripta, tendo em vista
a simplificação e uniformisação. (ALI, 1905, p.
V)

Diante de tal formulação, questionamos: que efeitos de sentido os


significantes “simplificação” e “uniformisação” produzem no dizer de
Said Ah e, por conseguinte, como o seu Vocabulário se inscreve na
memória do discurso ortográfico sobre a língua portuguesa,
relacionando-se com as discursividades filiadas ao nome de Gonçalves
Vianna?
Quanto a isso, faz-se preciso observar que, embora os significantes
“simplificação” e “uniformisação” compareçam em Said Ali e em
Gonçalves Vianna, significam diferentemente em cada um. Esse
distanciamento de Said Ali até certo ponto da proposta de Vianna
comparece de forma explícita no artigo “Nomes próprios geográficos”,

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texto publicado na Ia edição de Difficuldades da língua portugueza no
qual lemos:

O problema da simplificação ortográfica


apresenta faces múltiplas. Gonçalves Vianna,
dispondo de um saber vasto e profundo no terreno
da fonética, procurou, paciente e minucioso,
resolver todas as questões, ainda as mais subtis,
unicamente à luz desse preparo intelectual. Mas
no empenho de colocar-se sobranceiro a qualquer
critério arbitrário, esqueceu-se que as razões
históricas e linguísticas, em que os preceitos
devem assentar, não fornecem em sua maioria
elementos práticos para um critério ao alcance da
generalidade dos que escrevem a nossa língua.
Ortografia que exige conhecimentos complexos,
próprios de especialistas, de sábios, não é
positivamente uma ortografia simples. Fiel a seu
sistema e apoiando-se em exemplo camoniano, o
autor propõe que se escreva Sintra por Cintra. Isto
desrespeita o uso geral e não creio que os
portugueses se capacitem da necessidade ou
conveniência de mudarem, neste ponto, os seus
hábitos. (...) A ortografia facilitada, como a
desejamos, não pode desprezar por um só
momento a linguagem culta, a pronúncia normal
que com tanta proficiência o autor procurou
apurar entre os numerosos dialetos. Nem mesmo
seria possível uma reforma ortográfica que
prestasse homenagem a todos eles (ALI, 1908, p.
144-146).

Há, como podemos observar na sequência acima, uma


impossibilidade e uma necessidade que se impõem ao gesto de
interpretação de Said Ali e que têm como efeito o seu distanciamento
da proposta de Vianna, a saber: a impossibilidade de se contemplar em
uma reforma ortográfica todos os dialetos e a necessidade de não
desprezar a linguagem culta significada enquanto “pronúncia normal” .
Assim, tendo em vista esses sentidos, levantamos uma primeira

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hipótese sobre o funcionamento do Vocabulário de Said Ali que
buscaremos comprovar quando da análise do seu corpo.
Apesar de, em sua introdução, afirmar-se como princípio a
simplificação e a uniformização, afirma-se também, como vimos,
buscar-se descrever tão somente as regras que, imaginariamente,
constituem o que se formula como “modo de escrever seguido hoje pela
maioria das pessoas cultas” (ALI, 1905, p. V). Com isso, projeta-se que
enunciados prescritivos deverão comparecer apenas quando se
considerar haver casos de duplicidade de uso entre essas pessoas,
optando-se então, com vistas a regularizar a escrita, pelas formas
tomadas como mais simples.
Tais sentidos ressoam no texto de 1908 - no qual, como veremos
adiante, se projeta um imaginário de complementaridade em relação ao
Vocabulário - nas tensões que se colocam entre pronúncia e escrita,
entre o que se tem por pronúncia normal e outras pronúncias, entre
pessoas consideradas cultas, especialistas/sábios e pessoas não cultas,
entre os diferentes “dialetos” que constituiríam um a mesma língua, a
portuguesa, e, por fim, entre o que se toma por “ortografia simples” e
“ortografia facilitada” . É, pois, nessa tensão que entendemos poder
residir, o que a análise poderá nos mostrar, o fiincionamento
contraditório do Vocabulário de Said Ali. Dito de outro modo, a julgar
pelo que comparece em sua introdução e no texto de 1908, cremos que
a contradição se faz significar justamente na hesitação em prescrever a
simplificação de regras mesmo para casos em que se considera que as
chamadas pessoas cultas não tropeçam na escrita, afirmando-se optar,
em prol da “ortografia facilitada”, pelo uso geral, isto é, generalizado
entre essas pessoas. Se assim é, a facilitação ortográfica desejada não é
para todos, mas apenas para alguns.
Antes de darmos continuidade ao nosso gesto de análise, devem ser
pontuados ainda alguns acontecimentos que, ocorridos daquele e deste
lado do oceano entre as publicações da primeira e da segunda obra de
Gonçalves Vianna, produziram ressonâncias no Vocabulário de Said
Ali. Referimo-nos, na Europa, mais especificamente em Paris, sob a
liderança do linguista francês Paul Passy, à fundação da Associação
Fonética Internacional (AFI), em 1886, e às publicações de um esboço
do que viría a ser o alfabeto fonético internacional (da sigla em ing.,
IPA), em 1888, e do primeiro e do segundo quadros oficiais, em 1900

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e 1904. Já no Brasil, referimo-nos à fundação da Academia Brasileira
de Letras (ABL) em 1897. O primeiro porque, com a fundação da AFI
e com o desenvolvimento do IPA, a distinção entre letra/som/fonema
ganha maior visibilidade nos estudos da linguagem6; e o segundo
porque, como podemos observar no Quadro 1, desde o ano de fundação
da ABL, a questão ortográfica é, em suas reuniões, sob a presidência de
Machado de Assis, problematizada. Poderiamos mesmo dizer, em
outras palavras, que a questão ortográfica começa a ser
institucionalizada com a ABL.
Quanto à ABL, observamos que, na Ata da sessão realizada em 11
de janeiro de 1897, a pedido de José Veríssimo, é nomeada uma
comissão composta por Araripe Júnior, por Visconde de Taunay e pelo
próprio José Veríssimo para emitir parecer a respeito da grafia de
Brasil/Brazil7: se com s, como este defendia, ou com z, como propunha
Capistrano de Abreu8. Além disso, em 1901, na sessão de 13 de junho,
conforme lê-se em notícia publicada em 15 de junho no Jornal do
Commercio, “o Sr. Medeiros e Albuquerque propôs que fosse nomeada
uma comissão para estabelecer várias regras tendentes a fixar a
ortografia que deve a Academia usar em seu Boletim” (apud
HENRIQUES, 2001, p. 229). A notícia acrescenta ainda o seguinte
comentário: “Agora que a Academia de Ciências de Lisboa está
empreendendo o trabalho da reforma da ortografia portuguesa, é muito
oportuna a iniciativa da Academia Brasileira” (ibid., loc. cit.).
Devemos aqui recordar que, como comparece em Azeredo (2009) e
em Henriques (2015), somente em 1911 uma comissão de filólogos,
composta por Leite de Vasconcelos, Carolina Michaèlis de
Vasconcelos, Adolfo Coelho, Epifãnio Dias, Júlio Moreira, José
Joaquim Nunes e outros, foi nomeada pelo governo português para
estudar as bases da reforma ortográfica. Essa comissão propôs a adoção,
com poucas modificações, do sistema de Gonçalves Vianna - que,
como vimos, desde o final do século XIX, vinha se posicionando a
respeito daquilo que se significou como uma necessidade de
simplificação do sistema ortográfico - , sendo então essa “nova
ortografia” oficializada pelo governo português no mesmo ano. Assim,
o comentário que comparece na notícia supracitada a respeito da
“oportuna” iniciativa da ABL acena, a nosso ver, para o
estabelecimento de uma disputa pela língua entre as duas Academias e

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as respectivas nações que representam - disputa essa, diga-se, que
perduraria por décadas e que sustenta uma memória tensa entre um lá e
um cá.
Nas atas das sessões posteriores da ABL, nada é dito sobre o trabalho
supostamente desenvolvido pela comissão nomeada em 1901. O tema
é retomado apenas em 5 de maio de 1906 - um ano após a publicação
do Vocabulário de Said Ali - , quando uma segunda comissão,
constituída por João Ribeiro, José Veríssimo e Silva Ramos, é
“incumbida de propor a reforma ou fixação da ortografia da língua
portuguesa” (apud HENRIQUES, 2001, p. 124). Em 12 reuniões,
ocorridas ao longo de um ano, foram discutidas as propostas de dois
projetos: o primeiro, de Medeiros e Albuquerque, de tendência
foneticista; e o segundo, de Salvador de Mendonça, de tendência
etimologista.
Ainda de acordo com Henriques (ibid., p. 231-232), a “ortografia da
Academia”, como ficou conhecida, foi em 11 de setembro de 1907
oficialmente abonada pelo então Ministro da Justiça Augusto Tavares
de Lira como de uso válido nos “exames preparatórios, sem prejuízo da
nota de aprovação” - antes, portanto, da reforma portuguesa. No
entanto, na prática, segundo o autor, esse ato ministerial nunca foi
cumprido e, em 1915, não sem nova polêmica, a Academia decidiu-se
por utilizar as regras instituídas, em Portugal, pelo Formulário
Ortográfico de 1911. Logo, se, num primeiro momento, observamos
uma disputa pela língua entre as Academias e as nações que
representam, coloca-se, nas atas das sessões da ABL, uma divisão de
outra ordem, a saber, entre perspectivas teóricas concomitantemente em
circulação no espaço nacional brasileiro. Assim, estavam, de um lado,
conforme Mariani e Souza (1996, p. 86), os conservadores, que “só
reconheciam uma abordagem histórica”; e, de outro, os reformistas, que
“tentavam conciliar os estudos etimológicos com os fonéticos”, o que
nos fez perguntar: como se articulam essas cisões no dizer de Said Ali
sobre a ortografia da “nossa língua”?
Por último, cabe assinalar que, independentemente da hegemonia de
uma ou de outra perspectiva teórica, como ainda não tinha o respaldo
do governo brasileiro, faltava à ABL, como pontuam Mariani e Souza
(ibid.), autoridade para se impor nacionalmente - respaldo esse obtido
somente em 1931, após Acordo estabelecido com a Academia das

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Ciências de Lisboa e endossado pelos governos dos dois países para
formulação de “uma ortografia única e simplificada” .
O Vocabulário de Said Ali se inscreve, pois, nesse intervalo, tenso,
entre a criação da ABL, em que se põe em cena a questão ortográfica a
partir da letra do nome do país (e instituir a letra do nome da nação
comparece como gesto de atestado de nascimento), e o estabelecimento
do acordo ortográfico nos anos 30.

2. Said Ali e a questão ortográfica


Como vemos no Quadro I, a questão ortográfica se impôs a Said Ali
desde o final do século XIX. O seu artigo “Questões Ortographicas” foi
publicado na Revista Brazileira em 1898. Nele, lemos:

Quem é que ainda não se encandalizou com uma


palavra orthograpliicamente errada! Mas
porventura teremos nós todos reflectido
maduramente sobre a significação dos termos
certo e errado em matéria orthographica! Uma
coisa, em todo o caso, não é muito difficil de
notar: é que, tratando-se de orthograpliia, os
vocábulos certo e errado não têm a mesma
precisão que têm quando empregados, por
exemplo, com referencia a verdades
mathematicas. Aqui, um calculo é certo ou não,
por toda a parte e sempre; lá, o que é certo em uma
época pôde ser considerado erro em outra, o que é
tido como correcto no paiz onde se fala um
idioma, pôde ser inadmissível para uma nação que
fala lingua differente. (ALI, 1898, p. 148)

No recorte acima, inscrevem-se sentidos que apontam para uma


relativização das noções de certo e errado “em matéria orthographica”
em função do tempo e do espaço em que uma dada língua é falada, bem
como dos sujeitos (a nação) por quem é falada; acena-se para “uma
nação que fala lingua diferente” e afirma-se um lugar de autoridade
neste dizer (sobre) a língua. Um cá autorizado para escrever sua língua.
Mais adiante, a adoção de uma grafia “rigorosamente phonetica” ou
“rigorosamente histórica” é significada como um a “utopia” (ibid., p.
149)9, concluindo-se que “orthographicamente certo é tudo o que está

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de accòrdo com o uso estabelecido; e [que] quem se afasta delle escreve
errado” (ibid., p. 153). É, pois, o uso que, “por convenção tácita”,
determina “as regras estabelecidas”, as quais “zombam da etymologia,
como da pronuncia actual” (ibid., loc. cit.). Note-se aqui,
diferentemente do que vimos na introdução do Vocabulário e no texto
de 1908, uma cisão, por um lado, entre escrita e etimologia e, por outro,
entre escrita e pronúncia: é o uso estabelecido - e aqui caberia perguntar
por quem e para quem - que, por convenção tácita, determina as regras
ortográficas. É dessa posição que se argumenta quanto à necessidade de
se “procurar fixar a escripta das palavras onde o uso vacilla entre duas
ou três fôrmas differentes”, defendendo-se que se deve optar sempre
“pelo modo mais simples” e acrescentando-se que - quando houver
dúvida entre uma forma mais condizente com a pronúncia corrente e
outra com uma pronúncia passada ou etimológica - é “sempre
preferível a fôrma para nós mais phonica” (ibid., p. 154-155), sem, no
entanto, especificar de quem é a pronúncia que está sendo avaliada ou
quem faz parte do “nós” a quem uma determinada pronúncia soa mais
fônica do que outras. Por fim, propõe-se ainda que a chamada
“orthographia individual” só deverá ser tomada como “decisiva” no
caso de nomes próprios de pessoas, notadamente de sobrenomes (ibid.,
p. 160).
Sobre a noção de erro ortográfico, retomemos aqui mais uma vez as
reflexões de Blanche-Benveniste e Chervel (1969, pp. 89-92). De
acordo com esses autores, a noção de erro ou falta ortográfica surge
com a imposição de uma norma e, por conseguinte, do abandono do que
chamam de “iniciativas individuais” . A norma ortográfica, porém, ao
mesmo tempo que se estabiliza a partir do seu ensino sistemático,
contribui, paradoxalmente, para tom ar o conceito de ortografia mais
elástico, visto que a sua definição como “maneira de escrever
corretamente as palavras de uma língua”, deixa subentendido que é
possível escrevê-las “incorretamente” . Há, assim, pressuposta uma
margem de tolerância ou faixa de incorreção tomada como aceitável, no
interior da qual, embora “mal ortografadas”, as palavras mantêm a sua
identidade, ou seja, continuam sendo reconhecidas como palavras
daquela língua, porque há entre elas e as formas gráficas canônicas a
possibilidade de homofonia. Para além dessa faixa, considera-se que
não há mais faltas, mas “aberrações” . Tendo em vista essa constatação,

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Blanche-Benveniste e Chervel postulam a existência de dois níveis de
limitação ortográfica: a limitação absoluta, que diz respeito ao limite
externo dessa faixa de incorreção e que implica a perturbação do sentido
do enunciado, e a limitação de luxo, que compreende a forma
considerada canônica e aquelas que, não prejudicando a comunicação,
são aceitas na faixa de incorreção.
Quanto a isso que se textualiza como “iniciativas individuais” ou
“ortografia individual”, cabe mencionar que sentidos de proscrição já
compareciam, em 1885, no prefácio de Bases da Ortografia
Portuguesa, de Vianna e Abreu. Os autores portugueses, no entanto, ao
se subjetivarem, inscrevem-se numa posição mais radical do que aquela
em que se inscreve Said Ali, defendendo uma “rejeição absoluta de toda
ortografia individual, seja quem for o seu autor”, em prol da “adopção
de ortografia portuguesa” por “todos nós os Portugueses” (VIANNA;
ABREU, 1885, p. 3). Note-se aqui que, do lado de lá do oceano, embora
identifiquemos ressonâncias entre os dizeres de Said Ali e os de Vianna
e Abreu, estava em jogo, não apenas o espaço, mas, principalmente, a
identidade nacional portuguesa (imaginária). Quanto a isso, retomemos
os recortes anteriores de Vianna e Abreu (1885, p. 3), nos quais, como
vimos, advoga-se em nome de um todos nós, os portugueses, que tem
como dever adotar a ortografia portuguesa, isto é, a nossa ortografia.
Ao delimitar-se por meio do aposto “os portugueses” o “todos nós”,
delimita-se também um “não nós” representado por todos aqueles que,
a despeito de terem a língua nomeada portuguesa como oficial, não são
portugueses.
Ou seja, diferentemente do que vemos em Said Ali, em que se coloca
como determinante da correção ortográfica o uso da língua por
determinados sujeitos num dado espaço-tempo, em Vianna e Abreu, a
ortografia - e, por meio dela, a língua - é tomada enquanto signo da
identidade nacional portuguesa. Note-se ainda que, em Vianna e Abreu,
o que se tem por ortografia individual extrapola a alçada do indivíduo
comum que deseja registrar seu nome de uma ou de outra forma, como
visto em Said Ali, e é significada na relação com gestos de autoria
produzidos a partir de lugares de saber (são “autores” numa época em
que o acesso à cultura escrita era privilégio de poucos), mas, mesmo
nesses casos, a formulação “seja quem for seu autor” aponta para a
deslegitimação do gesto produzido em nome da sujeição àquilo que se

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propõe como ortografia nacional - donde fica a questão: não sendo o
Vocabulário de Said Ali uma iniciativa do Estado, teria sido ele
significado no espaço de enunciação brasileiro como uma ortografia
individual, no sentido que comparece nos autores portugueses? Ou
ainda, até que ponto uma iniciativa de autor brasileiro já não seria
tomada como da instância da individualidade em contraposição a uma
posição posta como não individualizada por ser portuguesa?
Sigamos com o nosso percurso de historicização dos dizeres de Said
Ali. Em 1908 - isto é, três anos após a publicação do Vocabulário - , a
questão ortográfica volta a ser discursivizada em Difficuldades da
Lingua Portugueza: observações e estudo. Um diálogo entre aquele e
este se inscreve desde o título por meio do significante “difficuldades”
e se define no prefácio deste último como um a relação de
complementaridade, como depreendemos a partir da sequência a seguir:

Questões de orthographia, assunto palpitante


nestes últimos tempos, não foram aqui
contempladas. Na introdução ao meu Vocabulário
Orthographico creio haver dito o bastante. Sem
desconhecer a conveniência da simplificação -
reforma, a meu ver, exequível, quando feita
lentamente - reduzi ahi a regras praticas o que o
uso actual permite e indiquei algumas
modificações desejáveis cuja aceitação se podería
esperar em um futuro mais proximo. Só o
problema dos nomes proprios geographicos
requeria mais esclarecimento: dedica-se-lhe no
presente livro um capítulo (ALI, 1908, p. III-IV).

Em função do espaço e dos objetivos deste artigo, não exploraremos


de forma mais aprofundada a relação entre essas duas obras.
Gostaríamos, contudo, de chamar atenção para o fato de ser a questão
ortográfica significada como bb um tem a em circulação no espaço de
enunciação brasileiro (“assunto palpitante nestes últimos tempos”); e a
discussão proposta no Vocabulário como encerrada (“creio haver dito
o bastante”), exceto no que toca aos nomes geográficos (“Só o problema
dos nomes proprios geographicos requeria mais esclarecimento”) -
lacuna esta que se entende com um capítulo do livro em questão ser

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preenchida (“dedica-se-lhe no presente livro um capítulo”), projetando-
se o efeito de complementaridade que anunciamos anteriormente.
Quanto à simplificação ortográfica, ela é tomada como uma “reforma
exequível”, mas à sua execução, por meio da oração adverbial “quando
feita lentamente”, em que se observa uma amálgama entre os sentidos
de tempo e condição, coloca-se um obstáculo: não é possível fazê-la
rapidamente.
Assim, a despeito de a simplificação ortográfica ser posta como
conveniente (“Sem desconhecer a conveniência da simplificação”),
projeta-se, retrospectivamente, um imaginário de justificativa para a
tomada de posição inscrita no Vocabulário, instaurando-se uma
oposição entre o que se toma como possível ser feito no presente e o
que se projeta como possibilidade para um futuro próximo, entre regras
práticas legitimadas pelo uso atual prescritas no Vocabulário e
modificações que, embora desejáveis, foram nele apenas indicadas,
esperando-se que fossem também legitimadas no porvir (“reduzí ahi a
regras praticas o que o uso actual permite e indiquei algumas
modificações desejáveis cuja aceitação se podería esperar em um futuro
mais proximo”).
Faz-se ainda preciso lembrar aqui o que diz Orlandi (2009) sobre o
título da obra de 1908, no qual, como sinalizamos, assim como no
subtítulo do Vocabulário, comparece o significante “difficuldades” .
Considerando que o sintagma “difficuldades da língua portugueza” é
reformulado no corpo da obra como “difficuldades da nossa língua”, a
autora afirma: “O uso de ‘nossa’ é significativo. Há ‘um a’ língua
portuguesa. A língua portuguesa é nossa, mas veremos que as
dificuldades são justamente os pontos em que o português e o brasileiro
não coincidem. Há diferenças na unidade” (ibid., p. 37). Posto isto,
considerando o que diz Orlandi e que o sintagma “nossa língua”
também comparece no subtítulo do Vocabulário, perguntamos: e no
Vocabulário? A que se refere o significante “difficuldades” e que
imaginário de língua projeta?
Até o momento, com nosso movimento de leitura das
discursividades sobre ortografia filiadas ao nome de autor Said Ah,
depreendemos sentidos que, apesar dos obstáculos, significam a
chamada reforma ortográfica, tomada enquanto uma
simplificação/uniformização, como necessária. Além disso, como

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vimos na seção anterior, no Brasil, do final do século XIX ao início do
século XX, essa temática foi pauta de muitas reuniões da Academia
Brasileira de Letras. Nas atas das reuniões em que se discutiu a reforma
ou a fixação da ortografia nacional, faz-se visível uma disputa -
também presente no artigo de Said Ali de 1898 - entre uma perspectiva
historicista e outra que buscava a conciliação entre estudos fonéticos e
etimológicos. A esta perspectiva, segundo Azeredo (2009), se filiaria a
proposta do português Gonçalves Vianna, cuja cientificidade residiría,
a seu ver, justamente nessa conciliação. Dessa maneira, um outro
questionamento se impôs a nós, a saber: como se relaciona o modo
como se diz que se escreve/deve escrever no Vocabulário de Said Ali
com as teorias linguísticas em circulação nas condições de produção em
questão ou, dito de outro modo, que efeitos estas produzem sobre
aquele? E mais: como esse modo se relaciona com aquilo que Blanche-
Benveniste e Chervel (1969) chamaram de limitação ortográfica, uma
vez que no Brasil ainda não estava instituída uma ortografia nacional?
Estes são caminhos, assim como tantos outros para os quais acenamos
em nossa reflexão, não empreendidos neste artigo, mas que não
poderíam não ser indicados como um desejo futuro a investigar.

3. A instauração da letra: entre o lá e o cá da língua


Em estudos recentes, Costa (2020; 2021) flagrou em textos
historiográficos a recorrência de um efeito de modernidade filiado ao
nome de autor Said Ali. Essa regularidade nos levou a questionar: esse
efeito de sentido comparece também no Vocabulário? Se sim, como ele
se materializa?
E em alguns dos gestos sobre a língua inscritos no Vocabulário
Ortográfico de Said Ah que iremos agora nos deter a fim de responder
a essas questões. Para este fim, cabe relembrar que a listagem de
palavras que compõe esta obra é antecedida de duas partes:
“Introdução” e “Regras Orthographicas”. Uma introdução que enuncia
o problema das “letras supérfluas e impróprias”, que assinala para a
necessidade de uma “simplificação e uniformisação” ortográfica, que
marca uma posição contrária a um critério etimológico, assim como nos
dá a saber de zonas de não equivalência ou mesmo de atrito entre o que
ocorre em Portugal e no Brasil. Uma introdução que anuncia regras que

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serão expostas com mais vagar na parte que se segue, denominada,
como dito anteriormente, “Regras Orthograficas” .
Acerca de um vocabulário ortográfico podemos dizer que instaura
uma escrita como sendo aquela a ser usada, seguida. Decorre de outras
escritas e, por vezes, da oralidade, embora não de qualquer uma, como
é o caso deste em foco. Este é um aspecto interessante: o fato de advir
da oralidade e impor a ela o recorte e a (im)pressão da escrita com a
letra. Com o Vocabulário, a letra é tecida junto a um imaginário de um
certo modo de falar (no caso em foco, aquele das pessoas cultas,
ilustradas) que retom a num como-se-falasse-assim ancorado num
como-se-se-pronunciasse-assim, ou seja, instaura um a saber, a
escrever e a pronunciar na construção imaginária de uma partilha de
um já-sabido, de um já-lá no falar/pronunciar de todos, afirmando
intervir prescritivamente somente em casos em que haja duplicidade de
uso ou emprego de letras “impróprias ou supérfluas” por falsa analogia
- entende-se - ao grego. Este é um dos movimentos neste Vocabulário
Ortographico em foco que se faz talvez mais eficaz na medida em que,
em um gesto inaugural, filiando-se, conforme Viaro (2001, p. 9), ao
Alfabeto Fonético Internacional - cujo primeiro esboço havia sido
publicado em 1888, na França - , diferencia som de letra, adotando a
anotação de símbolos entre colchetes.
Quanto a isso, vejamos o que nos diz o Vocabulário:

Para que não confunda som com letra, vai o


symbolo indicativo daquele, nas regras relativas a
certas consoantes, sempre colocado entre
colchetes []. O som [s] por exemplo é a sibilante
dentar forte de laço, lasso, prece, verso; [f] é a
chamada chiante de chama, enxó, caixa, encher;
[z] a sibilante dental branda de casa, gazeta, aviso,
zelo, etc. (ALI, 1905, p. VII, negrito do autor)

Como já dito, um vocabulário ortográfico advém de outros


vocabulários, dicionários, da literatura e mesmo da oralidade, quando
tomada sob o funcionamento metonímico pela pronúncia como é o caso
deste de Said Ali. Nesse sentido, observe-se o que no Vocabulário se
encontra na parte intitulada Regras Orthographicas:

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Devemos escrever ou, e não oi, nos vocábulos
ouro, tesouro, louro, couro, agouro, douto,
cenoura, louça e outros analogos, não só por
corresponder melhor esta graphia á pronuncia
generalisada no Brasil (e usada em Portugal,
embora ahi á vezes alterne com oi), mas também
por ser a forma literaria consagrada pela tradição
(Camões, Herculano, etc.).
As excepções, de acordo com a nossa pronuncia
actual, são raras: dois, noite, e poucos vocábulos
mais. (ALI, 1905, p. 2)10

Chamamos a atenção para a relação entre pronúncia e literatura que


marca a tensão entre o cá e o lá. É a pronúncia no Brasil e a literatura
em Portugal que afiançam a grafia que se deve adotar. Vejam que
estamos na tensão entre um cá marcado pela pronúncia e, por
conseguinte, pela oralidade; e um lá marcado pela escrita literária,
entretanto não qualquer uma, mas aquela consagrada pela tradição, uma
tradição sob a qual funcionam, em processo de metonimização, os
nomes de autores Camões e Herculano. Próprio do processo de
gramatização da língua portuguesa no Brasil, essa tensão entre o cá e o
lá - não assimétrica, pois se dá entre a oralidade do cá e a escrita do lá
- , é retomada pela forma material ‘nossa pronuncia actuaf, quando
relativa às exceções, em que o lá e o cá se embaralham em um processo
equívoco e contraditório inscrito no pronome possessivo na Ia. pessoa
do plural, forma material que encarna contraditoriamente a
historicização e a universalização da língua portuguesa no Brasil, tal
como nos propõem Orlandi e Guimarães (2001).
Essa relação tensa e contraditória entre os processos de
historicização (falamos diferente) e universalização (falamos a mesma
língua) de que tratam os autores se marca desde o título da obra -
Vocabulário Orthographico da Lingua Portugueza, precedido das
regras concernentes ás principaes dificuldades orthographicas da
nossa língua. N a unidade encarnada no nome da língua - Língua
Portuguesa - , há a dispersão que se marca no pronome possessivo,
como já salientamos. Há, assim, uma distinção/indistinção entre o cá e
o lá e, portanto, uma (in)distinção de que língua é essa descrita e

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prescrita no vocabulário sob os alicerces da escrita literária portuguesa
e da pronúncia brasileira.
Quanto a este último fato discursivo, a oralidade que se marca em
“pronuncia generalisada no Brasil” também ganha corpo em processos
referenciais discursivos que se constroem nessa textualidade.
Percorramos alguns recortes que nos permitem a compreensão da
direção de sentido dessa pronúncia que cauciona o Vocabulário, a qual,
como veremos, não é a pronúncia de qualquer brasileiro. Na
“Introdução”, nos deparamos logo de início com a seguinte formulação
já citada anteriormente:

Baseia-se este vocabulário no modo de escrever


seguido hoje pela maioria das pessoas cultas
(ALI, 1905, p. V, negrito nosso)

A expressão pessoas cultas é, em seguida, retomada


parafrasticamente por pessoas ilustradas, abrindo a tensão na relação
com um outro eixo parafrástico: o da pouca instrução, da falta de hábito
de escrever, da plebe. Tensão que se dá entre a escrita correta dos livros
encerrados em espaços fechados e a escrita errônea da rua que se dá em
cartazes e anúncios em geral, como lemos em:

Observação. - Muitas palavras que seguem a


regra geral deparam-se-nos frequentemente comz
quando figuradas por pessoas pouco instruidas
ou que não têm o habito de escrever. É facil de
verificar esta escripta errônea nos precisa-se,
nos depozito de, caza de, especifico poderoso,
rozas, rozarios, etc. dos cartazes, taboletas e
annuncios em geral. Ao contrario da tendencia
plebéa, é entre as pessoas illustradas regra o
adoptar a letra s, porque, neste ponto, a nossa
orthographia foi calcada sobre a escripta do latim
clássico, em cujo alfabeto não existe a letra z
senão para transcrever um som duplo (ds) de
certos nomes gregos. (ALI, 1905, p. 14, itálico do
autor, negritos nosso)

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E continuamos a flagrar aquele que tem sua pronúncia ouvida,
aquela que ganha grafia mais conforme, no interior da tensão entre o cá
e o lá:

Como nas reformas orthographicas de outros


idiomas europeus, realisadas ou ultimamente
propostas, assim a corrente entre nós, apoiada
por conhecedores da lingua, vai caminho da
simplificação. Aqui, como em Portugal, letrados
e philologos acham hoje razoavel e propõem a
suppressão de letras nullas e substituição dos
chamados grupos gregos por letras mais
conformes á nossa pronuncia. (ALI, 1905, p. VI,
negritos nossos)

A pronúncia precisa ser ouvida e quem a ouve são letrados e


filólogos. Essa pronúncia ouvida de um determinado lugar é que é
significada enquanto língua falada, oralidade brasileira, marcada, como
já vimos anteriormente, pelo sintagma equívoco e contraditório “nossa
pronuncia”.
N a discursividade do Vocabulário, pois, embaralham-se e se
distinguem, com regularidade, o cá e o lá, füncionamento muito próprio
do processo de gramatização da Língua Portuguesa no Brasil, como
também já comentamos. Vejamos mais um flagrante da diferença e da
indistinção em füncionamento nessa discursividade:

Desejável já agora este alijamento de bagagem


inútil, servirá mais tarde de ponto de partida para
uma reforma orthographica com probabilidades
de aceitação geral. O mesmo exito não creio que
aqui possam vir a ter propostas de ultra-mar
no sentido de se mudar ou remodelar a escripta de
certas palavras, quer de acordo com lusitanos
falares, desconhecidos e, pode-se dizer,
incomprehensiveis no Brasil, quer em atenção a
subtilezas nimiamente eruditas, das quaes não se
apuram regras praticas ao alcance do publico em
geral. Difficil de presente, a orthographia
portuguesa se tomaria mais difícil ainda. (ALI,
1905, p. VI, grifos nossos)

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(...) ainda que numerosos por vezes [os casos de
exceções], traduzem bem um inconveniente da
nossa orthographia actual, que é representar um
mesmo som de diversos modos (ibid., p. VII,
negritos nossos)

Essa regularidade nos levou a indagar: até que ponto a exposição de


distinções em solo brasileiro, mesmo que com a irrupção da indistinção
entre um lá e um cá, em um vocabulário ortográfico no início do século
interditou sua inscrição na história do conhecimento linguístico-
gramatical enquanto uma obra de referência?
Voltemos nosso olhar um pouco mais sobre o fato de que se trata de
um vocabulário que apresenta uma parte indicada como regras
gramaticais. Ora, um vocabulário que é composto por regras
ortográficas já marca uma posição lexicógrafo sobre o modo de escrita,
isto é, implica posições frente à letra com que se inscreve a palavra. Não
se trata de um levantamento de como se escreve, mas de um gesto de
intervenção sobre o modo como se deve escrever. Há regras que são
expostas e explicitadas. Estas se voltam para alguns aspectos
específicos da língua, como ditongos (ai, au, eu, éu, iu, ou), vogal nasal
(ã), terminações (am, -éa, -éia, -eio), uso da letra h, acentos, diferença
entre as letras s e z " no princípio dos vocábulos, no meio e no fim,
consoantes ocasionalmente nulas e consoantes dobradas. E nas regras
que o retomo à pronúncia se faz notar de forma saliente. E, por exemplo,
a pronúncia que serve de argumento para supressão de letras, como se
pode observar a seguir nos dois primeiros exemplos do caso das
consoantes nulas e do uso da letra h:

Observa-se isto nas geminações (v. o cap.


seguinte), em que uma das consoantes é supérflua
para a nossa pronuncia, e em vocábulos como
acto, acção, escripta, columna, augmentar,
signal, sciencia, theatro, monarcha,
rheumatismo, etc.
Em qualquer desses exemplos, a letra que podia
ser supprimida sem affectar a pronuncia,
apresenta-se como consoante nulla ou extinta.
(ALI, 1905, p. 17)

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Em vez de cç escrevemos ç em lição, satisfação.
Não sendo jamais pronunciado, em nossa língua,
um [k] entre o n e o c, não ha nenhum
inconveniente em escrever também função,
distinção, sanção, funcionar, junção, etc. (ibid.,p.
18)
Não nos ocupamos aqui da letra h combinada com
outras letras (por exemplo em Ih, nh, ch) para
indicar sons especiais, e sim do h, que se podería
chamar isolado ou independente e cuja suppressão
não influiría na pronuncia de consoante alguma,
(ibid., p. 4)

É ainda a pronúncia que denuncia a variação em solo brasileiro,


como se observa na nota da regra de uso do 5 diante de outras
consoantes, não sem que se indique a pronúncia “mais correta” :

Escrevem-se unicamente s antes de outras


consoantes, mas neste caso terá valor phonetico
ora surdo, ora sonoro, conforme for surda ou
sonora a consoante imediata: fasto, casto, cesto,
lascar, risco, bisturi; pasmo, asno, resma, rasgar,
bisbilhotar, bisnaga, Lisboa, losna, etc. (*)

(*) Convem notar que alguns pronunciam


respectivamente [s] e [z], porém na boca de outros
- e esta pronuncia é tida como a mais correta - soa
como [J] e [ti] o s anteconsonantal. (ALI, 1905, p.
8)

Auroux (1998), em seu livro La raison, le langage et les normes, ao


tratar de regras e de aprendizagem, nos lembra que “Dans les sociétes
occidentales au moins (et probablement ailleurs) 1'apprentissage et
1'exercice de la parole sont soumis à un système de différents ordres”
(ibid., p. 263)12. Trata-se de um sistema em que jogam diferentes
procedimentos de regramento a partir das relações sociais e dos quais
também fazem parte os manuais com seus "ne dites pas..., dites...”
(ibid., loc. cit.). Freitas (2020), lendo Auroux, amplia, a partir de
Authier-Revuz (1999), tal processo de regramento, para o que indica
como alguns comandos autonímicos, tais como:

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Interditório: não se diz x; é feio falar x;
Substitutivo: não se diz x, se diz v:
Preferencial: melhor falar x do que y
Alternativo: você pode também falar x;
Modelar: fale x; repita x;
Designatório: isso se chama x, (chame por tal
nome).
Inquisitório: o que você quis dizer com x? Isso
quer dizer que x? (FREITAS, 2020, p. 36).

Considerando os comandos acima e analisando sobretudo o


funcionamento das regras no Vocabulário de Said Ali, diremos que
neles atuam especialmente o modelar, de uma certa classe social (das
pessoas ilustradas, cf. ALI, 1905, p. 14), e, por vezes, o interditório,
quando, por exemplo, é assinalada a variação e indicada a forma
correta. Um modelar e um interditório que tensionam uma relação entre
o cá, do solo brasileiro, e o lá, do solo português. Posto de outra forma,
não se trata de um vocabulário inscrito na ilusão de uma suposta
descrição do léxico de uma língua. Ao contrário, desde a introdução até
a listagem comparece a tomada de posição do lexicógrafo e do
gramático, em relação a outras gramáticas também, frente à língua que
diremos, lançando mão de Auroux, modela.
As suas intervenções, contudo, não se restringem ao corpo de regras;
elas se encontram no correr do vocabulário com as indicações de gênero
(“actor: atriz”; “aloes: aloina”), de derivação (“afan, afanar, afanoso”;
“caldeação: caldear, caldeio”13) e de número (“banal; plural banaes;
banalidade”). No Vocabulário, marca-se ainda a diferença entre
sentidos, por exemplo, “accordar = concordar”; “acordar = despertar”
ou “apreçar, dar 'preço”; “apressar, dar pressa”, em que a letra, por ser
dupla ou não (c ou cc) ou por ser diversa (ç ou ss), distingue significados
dos pares homófonos. Ou seja, é pela letra que certos sentidos devem
se inscrever na escrita, já que a oralidade não assinala tais distinções.
Daí a relevância da ortografia sobre os sentidos e sobre a palavra. Daí
a luta na letra e com a letra implicar uma tomada de posição frente à
língua.
Cabe ainda aqui pontuar que esse sentido de distinção atribuído à
escrita gráfica dos chamados pares homófonos viria a comparecer, anos

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mais tarde, no Curso de Linguística Geral, cuja autoria foi atribuída a
Ferdinand de Saussure, como aquilo que se formula enquanto o “valor
ideográfico” da palavra. Vejamos:

Lemos de dois modos: a palavra nova ou


desconhecida é soletrada letra por letra;
abarcamos, porém, a palavra usual e familiar
numa vista de olhos, independentemente das
letras que a compõem; a imagem dessa palavra
adquire para nós um valor ideográfico. Neste
caso, a ortografia tradicional pode reclamar seus
direitos; é útil distinguir em francês tant e temps,
— et, est e ait, — du e dü, — il devait e ils
devaient etc. Aspiremos somente a ver a escrita
desembaraçada de seus mais grosseiros absurdos;
se, no ensino de línguas um alfabeto fonológico
pode ser útil, não se deveria generalizar-lhe o
emprego. (SAUSSURE, [1916] 1970, p. 44)

Em nosso entender, tal comparecimento, assim como o emprego dos


símbolos do IPA, é significativo. Isso porque, na medida em que se
configura como sintoma da leitura de estudos em circulação no espaço-
tempo europeu, inscreve as idéias linguísticas filiadas ao nome de autor
Said Ali sob o signo da modernidade, o que acentua a importância do
seu Vocabulário nos estudos sobre a língua(gem).
Trata-se de um vocabulário em que se encontram por vezes
definições ou explicações; por exemplo, “adir = tomar posse de uma
herança; adição”. Nesse jogo da definição, comparece a sinonímia, caso
de “cacha (engano)”, “cachão (borbotão)”, “cacheiro (ouriço,
cacheiro)” . É interessante notar que, nas definições e explicações,
inscreve-se o pré-construído de um já sabido não sabido por todos.
Melhor dizendo, no gesto anódino de apresentar a definição/explicação
em um vocabulário, cuja característica seria somente a da listagem,
instala-se sub-repticiamente um não-dito sobre saberes exibindo uma
disjunção nos sentidos ao mesmo tempo que tal disjunção se desfaz na
letra.
Há ainda casos, pouquíssimos, em que se captura, na listagem, uma
flutuação na escrita - “cais (caes)” - e os casos mais frequentes que se
voltam para conjugação de verbos em -ear. Estes são muitos, eis alguns:

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“alancear, alanceio”, “alarde; alardo/ alardear, alardeio ”; “arear,
areio ”, “arrecear, arreceio ”, “banquetear, banqueteio ”, “baquear,
baqueio”, “baratear, barateio” e “caldeação, caldear, caldeio”. Para
encerrar a lista de verbos com indicação de conjugação, sem, todavia,
esgotá-la, citemos ainda, um verbo em -ir: “cahir (eu), caio, cais, cai
caem, cahida Por um lado, é raro assinalar a flutuação na escrita,
como é o caso de cais e caes. Por outro lado, como movimento mais
persistente, o que se tem é a insistência na conjugação no presente do
indicativo de verbos em -ear14 e do verbo cair. Em poucas palavras, está
em cena um a batalha com a escrita de tais verbos conjugados e com a
oralidade. Apresentar sua conjugação resulta em intervir em uma
conjugação outra: em modelar a língua (fale x) e interditar outras formas
de falar (não fale x). No caso, dado que um dos imaginários que se cria
com e a partir de um vocabulário é o de atestar existência de vocábulos,
a conjugação aí exposta deixa entrever, no gesto de interdição, outros
modos de dizer, de conjugar tais verbos.
Se anteriormente assinalamos para uma tensão entre um cá, do solo
brasileiro, e um lá, do solo português, a listagem do Vocabulário
permite observar agora uma tensão entre os modos de dizer em solo
brasileiro. Posto de outro modo, com o Vocabulário podemos observar
uma equivocidade. Há língua portuguesa no título e há nossa língua no
subtítulo e no corpo. Por um lado, julgamos que o nossa é sintoma das
não coincidências entre o lá e o cá. Por outro lado, não podemos deixar
de observar que, no título do Vocabulário, o nossa comparece
determinando dificuldades. Trata-se, a nosso ver, da contradição
constitutiva do processo de gramatização brasileiro em que jogam na
língua portuguesa, ao mesmo tempo, a historicização e a
universalização: é a mesma língua (e a dificuldade é brasileira); não é a
mesma língua (as dificuldades são nossas, assim como é nossa a
ortografia, a língua e o saber sobre ela).

4. Por um ponto quase final


Não poderiamos encerrar nosso artigo de outro modo que não o da
abertura a indagações, uma vez que estamos diante de um instrumento
linguístico que nos surpreende ao mesmo tempo por sua potência e por
seu apagamento na história das idéias linguísticas no/do Brasil. Muitas
foram as perguntas que se impuseram ao nosso olhar, algumas foram

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deixadas ao longo de nosso percurso com a expectativa de serem
retomadas em breve.
Nossa pergunta nodal - a saber: o que interdita a disciplinarização
do Vocabulário em nossa história? - passa, assim, a ser uma indagação
norteadora de futuras investidas de pesquisa ao tempo em que já
pudemos vislumbrar compreensões que tocam tensões, equivocidades
e contradições em diferentes ordens que se entrelaçam, se enredam, se
tecem no fio do discurso inscrito no Vocabulário: da ordem dos
processos de legitimação de um poder dizer sobre a língua brasileira;
da ordem de filiações quanto ao funcionamento da ortografia; da ordem
de uma divisão de classes (pessoas ditas cultas/não cultas) - e uma
divisão espacial (rural/urbano) - em que o habitual, o comum, o correto
na língua deslizam e se sobrepõem ao culto, à tradição, à escrita
enquanto monumento; da ordem da inscrição da tradição na
simplificação. Nesse entrelaçamento, pudemos flagrar processos de
significação do Vocabulário na história dos estudos sobre a língua.
Quanto a isso, devemos ressaltar que constitui um elemento
disparador de nossas inquietações o fato de, como vimos, no
Vocabulário, seja por meio da mobilização de símbolos do IP A, seja
por meio de ressonâncias de sentidos em circulação em solo europeu,
inscrever-se, tal como em outras obras filiadas ao nome de autor Said
Ali, um efeito de modernidade (COSTA, 2020; 2021). Apesar disso,
ainda assim há algo que interdita a sua disciplinarização na história do
conhecimento linguístico-gramatical no/do Brasil. Relacionada a essa
interdição, acreditamos encontrar-se a tensão entre o que faz significar
um vocabulário como individual ou como institucionalizado e,
portanto, legitimado enquanto representativo da língua de um país -
oficial ou nacional.
É assim que, nesse momento, deixamos a abertura para que outros
gestos possam na futuridade vir a ser construídos em direção à
compreensão dos processos de significação desse fascinante nome de
autor que faz história da língua/na língua, na sua relação com o seu
Vocabulário.

Referências
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Notas

* Pesquisadora (PqB) do Laboratório de Estudos Urbanos


(LABEUl^/NUDECRIAJNICAMP). Fonnada em Linguística no Instituto de Estudos
da Linguagem (IEL/UNICAMP), fez seu mestrado e doutorado no Programa de Pós-
Graduação em Linguística, do mesmo Instituto, nas áreas da Análise de Discurso e
História das Idéias Linguísticas. Suas pesquisas se dão na interface dessas duas áreas
junto à do Saber Urbano e Linguagem, trabalhando com Políticas Públicas de Ensino,
de Saúde e de Mudanças Climáticas, com a institucionalização da Língua Portuguesa
como língua escolar no Brasil e com Divulgação Científica. Orcid:
https://orcid.org/0000-0003-Q331-9626. Email: claupfe@gmail.com.
** Professora Adjunta de Língua Portuguesa da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ), pós-doutoranda em História das Idéias Linguísticas no POSLING-
UFF, sob a supervisão da Profa. Dra. Vanise Medeiros e membro do Grupo Arquivos
de Língua (GAL-UFF), no qual coordena o Arquivos de Saberes Linguísticos
(SaberLing/FAPERJ). Também é pesquisadora colaboradora no PPGL-IEL/Unicamp,
sob a supervisão da Profa. Dra. Claudia Pfeiffer, e uma das coordenadoras do
Laboratório de Estados em Gramática & Discurso (LabGraDis-UERJ/FAPERJ).
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8599-3528. E-mail: arauio tliais@vahoo.com.br.
*** Professora associada da Universidade Federal Fluminense, graduada em Letras,
mestre em Estudos da Linguagem (ambas pela PUC-Rio), doutora em Estados da
Linguagem (UFF), com pós-doutorado pela Sorbonne Nouvelle Paris III. E bolsista do
CNPq e Cientista do Nosso Estado (FAPERJ), coordena o Grupo Arquivos de Língua
(GAL) e é uma das coordenadoras do Laboratório Arquivos do Sujeito (LAS) da UFF.
Atua em Análise de discurso materialista e História das Idéias Linguísticas. Orcid:
http://orcid.org/0000-0002-6998-9377. E-mail: vanisegm@vahoo.com.br.
1 Tradução nossa: Quando uma língua se coloca como estabilizada e excelente, é bem
difícil de reconhecer nela a possibilidade de mudar.
2 Segundo Auroux (2009 [1992], p. 70), os instrumentos linguísticos são tecnologias
que prolongam “a fala natural” e dão “acesso a um corpo de regras e de formas que não
figuram juntas na competência de um mesmo locutor”. Para o autor, os pilares dos
saberes metalmguísticos são a gramática e o dicionário. A sua reflexão se centra na
constatação de que, quando utilizamos um ou outro, o fazemos porque há algo sobre a
língua que não sabemos, isto é, um conhecimento linguístico externo à nossa
competência ‘natural’. O autor chama atenção, contudo, retomando as reflexões de

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Chevalier a respeito da relação entre os exemplos que neles comparecem e o seu
público-alvo, para o fato de esses objetos técnicos funcionarem como ‘“máquinas’ que
fabricam a língua ou ao menos a forma consensual aceita em uma dada época”
(AUROUX, 1998, p. 264). Do ponto de vista discursivo, tais instrumentos são
considerados, enquanto objetos históricos (ORLANDI, 2001) e discursivos (NUNES,
2006), na relação com a sua exterioridade constitutiva (PFEIFFER, 2015). Daí
considerarmos como instrumentos outras materialidades “que concorrem para a
formação do imaginário que sustenta a constituição da (unidade da) língua nacional”
(ORLANDI, 2001, p. 17). Também em consequência desse posicionamento são o
prolongamento e a acessibilidade projetados nos/pelos instrumentos tomados enquanto
efeitos: por meio dessas tecnologias, os discursos sobre as línguas, indissociavelmente
relacionados à história, à ideologia e ao político, são (rejproduzidos e colocados em
circulação numa dada formação social, ao mesmo tempo em que a língua,
imaginariamente instrumentalizada, se constitui/ é constituída ou fabricada, para
retomar o termo de Auroux.
3 Estamos aqui tomando gramaticografia como o conjunto de gramáticas filiadas a esse
nome de autor. São três: Grammatica Elementar da Língua Portugueza (1923),
Grammatica Secundaria da Língua Portugueza (1923 )e Grammatica Histórica da
Lingua Portugueza (1931).
4 Disponível em: https://www.volD-acl.pt/index.plip/ortografia/textos-
academicos/cronologia-bibliografica-dos-vocabularios-ortografícos-da-lingua-
portuguesa. Acesso em: 1 de out. de 2021.
5As obras de/sobre Said Ali que comparecem nesse quadro constituem o Arquivo Said
Ali organizado por ocasião da pesquisa de pós-doutorado desenvolvida por Thaís de
Araújo da Costa, concomitantemente, na UFF, sob a supervisão de Vanise Medeiros, e
na Unicamp, sob a supervisão de Claudia Pfeiffer.
6 Essa reflexão, embora tenha ganhado maior visibilidade no século XX, já se dava com
ênfase no século XIX, como esclarece Túlio de Mauro em nota explicativa à edição
italiana do Curso de Linguística Geral. Segundo o linguista italiano, o termo fanema
foi empregado pela primeira vez, em 1873, pelo foneticista francês Dufriche-
Desgenettes, em uma comunicação proferida na Sociedade Linguística de Paris, e foi
adotado por Saussure, em 1878, etwMémoire sur le systèm eprim itif des voyelles dans
les langues indo-européenes (SAUSSURE apud DE MAURO [1967] 2005, p. 433, nota
111). Não podemos ignorar, contudo, como ressaltam Blanche-Benveniste e Chervel
(1969, p. 17) que, antes disso, a confusão “entre letra e som, entre o grafado e o falado,
entre a escrita e a fala” já era atestada na história da linguística. De acordo com os
autores, apesar de o alfabeto inicialmente ter-se fundado numa descrição fonológica, a
letra, contemporaneamente, é mais próxima do que entendemos por fanema do que do
som. Essa “confusão” teria se dado, a seu ver, justamente em virtude do
desenvolvimento por parte da teoria saussuriana, da Escola de Praga, da Glossemática
dinamarquesa e da linguística americana de “um aparelho teórico que tomou inútil o
recurso aos processos do passado”, assim como do lugar reservado ao estudo da fonética
francesa no ensino básico, o que teria promovido a difusão e a naturalização do que
chamam de “mentira ortográfica”. Quanto a isso, vejamos o que dizem os autores: “O
ensino de língua materna, ainda que cuidadosamente tenha se livrado depois de algumas

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décadas de toda a confusão retórica, dispensou [a fonética] de tal modo que deixa na
criança a impressão de uma identidade profunda entre língua escrita e língua falada. Há
uma certa consciência e um desfasamento, já que ela precisa estudar continuamente
grafias bizarras e imprevisíveis: mas se constrói uma “mentalidade linguística” em que
a palavra aparece provida de duas faces: a face oral (pronuncia-se [fam]) e uma face
escrita (escreve-sefemme). (...) Incontestavelmente, o que deu origem a esse estado de
espírito foi uma pedagogia que é orientada para a escrita e que utiliza incessantemente
a escrita. Não se tomou a precaução de dizer à criança: ‘Para ensinar-lhe sua língua, é
indispensável desenhar com o giz ou à caneta sinais que não serão uma representação
exata da língua que você fala e dos sons que você pronuncia. E você deverá operar cada
vez a correção necessária dizendo a si mesmo que a ferramenta está longe de ser
perfeita, mas que não há outra’. Se não se adverte a criança sobre essa confusão, é
porque essa é uma impossibilidade pedagógica. A ‘mentira ortográfica’ tão denunciada
pelos reformistas radicais do século XVIII e do século XIX começa com esse silêncio
prudente e inevitável do mestre. Como a clara consciência da palavra não é
defmitivamente adquirida sem as manipulações da qual ela é objeto nos exercícios
escolares, como as duas ‘faces’ da palavra são apresentadas simultaneamente à reflexão
do aluno durante esses exercícios, tudo é implementado pelo próprio sistema
pedagógico, contra a vontade dos mais lúcidos estudantes, para que fique mascarada no
espírito do aluno essa verdade primeira de que a língua é falada antes de escrita, que a
prioridade, a anterioridade do oral sobre o escrito é não somente cronológica, para o
indivíduo, e histórica, na vida da nação, mas também lógica, e que, devido a isso, é
fundante a superioridade do oral sobre a escrita. (...)” (ibid., p. 17-18) [tradução nossa]
7 Ver, quanto a isso, GODOY, Thiago do Nascimento. A renomeaçâo do Brazil: a
construção de uma identidade nacional pela Ortografia. 2021. 1 recurso online (124 p.)
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da
Linguagem, Campinas, SP. Disponível em: https://hdl.handle.net/20.500.12733/2909.
8 Essa polêmica é comentada por Said Ali no artigo publicado na Revista Brazileira, no
qual, considerando o amplo uso e, por isso, a legitimidade das suas formas, conclui:
“Resta saber qual das duas acabará por prevalecer defmitivamente sobre a outra. O
futuro o dirá.” (ALI, 1898, p. 162)
9 Quanto a esta última, há ainda um efeito de ridicularização do posicionamento de Júlio
Ribeiro, que, em sua Grammatica Portugueza (1891), teria feito “um esforço felizmente
infructifero, para volver o nosso progresso orthographico ao ponto em que podería ter
estado ha muitos séculos” (ALI, 1898, p. 155).
10 Foi mantida a ortografia da Ia. Edição.
11 O uso de s e z já havia sido comentado por Said A1Í no artigo de 1898. Nesse artigo,
referindo-se ao que formulara enquanto “dualismo orthographifico” como algo
“praticamente desnecessário” por tratar-se “da representação de um som único”, vemos
significar-se mais uma vez em seu dizer a disputa entre o que coloca como erudito e
popular. De acordo com o autor, são dois os fatores que justificam tal dualismo, a saber:
“em primeiro lugar, a tendência geral, ou corrente popular do emprego do z; em
segundo lugar, a influencia erudita, que, aceitando em principio essa corrente popular,
vem, todavia, reivindicar o uso do s naquelles vocábulos de origem latina que já na
lingua-mâe se escreviam com essa letra”. (ALI, 1898, p. 157)

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12 Tradução nossa: Nas sociedades ocidentais ao menos (e provavelmente antes), o
aprendizado e o exercício da palavra sâo submetidos a um sistema de diferentes ordens.
13 Itálico do autor.
14 E interessante observar que, embora esse comparecimento seja uma regularidade no
tocante aos verbos terminados em -ear, raramente se dá com os irregulares terminados
em -iar. Encontramos "mediar, medeio" e "odiar, odeio", mas a flexão de muitos outros
não comparece. Buscando compreender esse funcionamento, consultamos três
gramáticas anteriores ao Vocabulário de Said Ali: Grammatica Portugueza, de Júlio
Ribeiro (1881), Grammatica Portugueza, de João Ribeiro ([1887] 1889 e 1923); e a
Grammatica Descriptiva da Língua Portugueza, de Maximino Maciel ([1887] 1914).
Propostas de sistematização foram encontradas em Julio Ribeiro e Maximino Maciel.
Para Ribeiro (1881), os verbos terminados em -iar são regulares, salvo algumas
exceções, apresentadas no corpo da gramática que, segundo o autor, seguem o
paradigma dos verbos terminados em -ear. São elas: agenciar, anciar, cadenciar,
commerciar, mediar, odiar, penitenciar, premiar, remediar e sentenciar. Esse também é
o posicionamento de Maciel (1914), para quem são poucos os verbos irregulares
terminados em -iar. Curioso é que nesse autor, embora a formulação da regra compareça
no corpo da gramática ao lado da que diz respeito aos verbos terminados em -ear, os
exemplos destes comparecem no corpo após a regra, mas os daqueles - apenas três, que
inclusive já estavam em Júlio Ribeiro, quais sejam: sentenciar, penitenciar e
commerciar - comparecem em nota. Já na 3a edição de João Ribeiro (1889), não há
referência aos verbos em -ear e -iar. Uma proposta de sistematização comparece, no
entanto, na 20a edição (1923), que é posterior ao Vocabulário de Said Ali. Nela afirma
o autor: “a regra por onde é mais fácil acertar é seguir-se a desinência eio, eia nos verbos
terminados em ear ou eiar e a desinência io, ia nos verbos terminados em iar. Digam-
se, comtudo, sempre odeio e premeio por serem de uso” (JOÃO RIBEIRO, 1923, p.
115). Como as duas exceções à regra apontadas em João Ribeiro também já
compareciam em Júlio Ribeiro, buscamos o exemplário apresentado em sua gramática
e, como dissemos, apenas em mediar e odiar, encontramos a forma flexionada ao lado
da forma no infinitivo. Em agenciar, anciar, cadenciar, commerciar, penitenciar,
premiar, remediar e sentenciar, não há indicação da forma flexionada; porém, uma outra
regularidade se faz significar: essas sâo formas derivadas de nomes que comparecem
no Vocabulário de Said A1Í ao lado do substantivo cognato. Assim, temos: “agencia,
agenciar”; “ancia, anciar”, “cadência, cadenciar”, “commercio, commerciar”,
“penitencia, penitenciar”, “prêmio, premiar”, “remedio, remediar” e “sentença,
sentenciar”. Por fim, resta pontuar que, como vimos com as gramática de Júlio Ribeiro,
Joâo Ribeiro e Maximino Maciel, nâo havia, quando da publicação do Vocabulário de
Said A1Í uma regularidade instituída quanto à flexão das formas verbais terminadas em
-iar - fato também comprovado quando comparamos o que dizem as gramáticas
consultadas com as formas dos verbos que contemporaneamente sâo tomadas como
modelares no Brasil. Em suma, esses (nâo) comparecimentos no Vocabulário de Said
Ali, em nosso entender, filiando-se à posiçâo-sujeito gramático, configuram-se como
marcas dessa ainda nâo estabilização das regras fixadas pelos instrumentos linguísticos.

Líng. e Instrum. Linguíst., Campinas, SP, v. 25, n. 49, p. 297-333, jan./jun. 2022.
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DOI: 10.20396/lil.v25i49.8669165

Said Ali pelas lentes de Evanildo Bechara:


entrevista concedida a Thaís de Araújo da Costa em
30/06/2021

Said Ali through the lens of Evanildo Bechara:


interview granted to Thaís de Araújo da Costa on
30/6/2021

M ichel M arques de Faria*


U N IC A M P

Thaís de Araújo da Costa**


UERJ/UFF/UNICAMP

Resumo: O presente texto consiste na retextiicdização de uma


entrevista realizada, por telefone, em 30 de junho de 2021, por Thaís
de Arcnijo da Costa com o Professor Evanildo Cavalcante Bechara a
respeito de Manuel Said Ali Ida.

Palavras-chave: Manuel Said Ali Ida, Evanildo Bechara, Entrevista.

Abstract: The present text consists o f the retextualization o f cm


interview carried out, bv telephone, on June 30, 2021, bv Thaís de
Arcnijo da Costa with Professor Evanildo Cavalcante Bechara about
Manuel Said Ali Ida.

Keywords: Manuel Said Ali Ida, Evanildo Bechara, Interview.

“(...) a figura do Said Ali não passou. Ela


continua”. (Evanildo Bechara)

Líng. e Instrum. Linguíst., Campinas, SP, v. 25, n. 49, p. 334-348, jan./jun. 2022.
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Introdução

30 de junho de 2021, quarta-feira à tarde. Seria mais um dia quente


no Rio de Janeiro não fosse aquilo que eu estava prestes a vivenciar nos
próximos minutos. Aquela época, eu organizava, ao lado de Claudia
Pfeiffer e Vanise Medeiros, o I Seminário do Arquivos de Saberes
Linguísticos: homenagem a Said Ali, que em virtude da pandemia de
SARS-COV-2 aconteceria de modo remoto. Nossa ideia inicial era
convidar o Prof. Evanildo Bechara para participar de uma das mesas, o
que infelizmente não foi possível. Bechara, no auge dos seus 93 anos,
não era adepto da tecnologia, dos computadores, das videoconferências
ou dos eventos on-line. Foi então que surgiu a ideia de gravarmos uma
entrevista com ele por telefone para ser exibida no encerramento do
seminário, que ocorreu de 8 a 12 de novembro de 20211.
O contato com o Prof. Bechara havia sido realizado previamente por
intermédio do Prof. Ricardo Cavaliere, a quem agradeço imensamente
pela gentileza. Bechara aguardava, então, a minha ligação e já havia
aceitado me conceder uma entrevista a respeito de Said Ah, mas ainda
assim eu estava muito nervosa. O calor parecia insuportável e o meu
coração de professora, pesquisadora e admiradora estava prestes a sair
pela boca quando uma voz, ao mesmo tempo forte e calma, atendeu ao
telefone. A conversa cuja transcrição segue abaixo durou cerca de uma
hora. Foi uma hora de um bate-papo emocionante e de suma
importância para a historicização do nome Manuel Said Ali Ida na
história do conhecimento linguístico-gramatical no/do Brasil.
Aproveito para deixar aqui registrado meus mais sinceros
agradecimentos pela disponibilidade e generosidade do Prof. Bechara
em compartilhar suas recordações a respeito daquele que o introduziu
nos estudos da linguagem.
Gravada a entrevista, eu e Michel Marques de Faria - a quem não
poderia deixar de agradecer por mais essa parceria - demos início ao
trabalho de transcrição, edição e revisão. Foram cerca de seis meses de
um trabalho árduo cujo resultado colocamos à disposição da
comunidade acadêmica com a expectativa de que possa instigar o
desenvolvimento de novas pesquisas sobre Said Ali. Passemos à
entrevista2.

Líng. e Instrum. Linguíst., Campinas, SP, v. 25, n. 49, p. 334-348, jan./jun. 2022.
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E n trev ista com E v a n ild o B ech a ra

Evanildo Bechara: Falar sobre o professor Said Ali é para mim não
somente uma honra, mas um dever de gratidão. Ele me acolheu quando
eu tinha 14 para 15 anos.
Thaís Costa: E como foi esse encontro com o professor Said Ali,
Professor Bechara?
E.B.: O Said Ali foi o seguinte: Eu comecei a ler a sua obra por uma
questão fortuita. Imagine você que o meu tio e pai de criação, irmão do
meu avô, era militar e gostava de fazer o que nós chamamos de faxina,
não é? Fazer uma, vamos dizer, volta às coisas antigas para jogar fora
ou doar as roupas, os livros... E, numa dessas andanças de revisão, eu
estava acompanhando e ajudando o meu tio-avô - a pessoa que acabou
de me criar depois dos 12 anos de idade - e houve um momento em que
ele disse: “Olha, você que gosta de língua portuguesa e que gosta de ler
esses livros, eu tenho aqui um livro de um autor chamado Said Ali” . E
passou para as minhas mãos a primeira parte da Gramática Histórica
do Said Ali. Mais tarde eu descobriría que esse livro não se chamaria
Gramática Histórica. Said Ali já tinha lido Ferdinand de Saussure. E
Saussure diz que uma gramática não é histórica... Diz que você não
pode escrever uma gramática histórica. Você pode descrever uma
gramática, mas não fazer uma gramática histórica. E o professor Said
Ali, que tinha inicialmente dado ao seu livro o título de Gramática do
português histórico, acabou aceitando posteriormente a denominação
gramática histórica.
T.C.: E ele havia compartilhado isso com o senhor? Digo, esse desejo
de que se chamasse Gramática do Português Histórico ?
E.B.: Por influência das leituras de Ferdinand de Saussure, do Curso de
Linguística Geral, que, como você sabe, nasceu por uma coincidência,
porque o Ferdinand de Saussure não escreveu uma linha desse livro.
Esse livro foi escrito pelas reminiscências culturais de dois discípulos
do professor Ferdinand de Saussure.
T.C.: Professor, e como o Professor Said Ali teve acesso a esse livro do
Ferdinand de Saussure? Porque ele cita já no Dificuldades da Língua
Portuguesa, na segunda edição, em 1919...
E.B.: Exatamente.
T.C.: E o livro é de 1916!

Líng. e Instrum. Linguíst., Campinas, SP, v. 25, n. 49, p. 334-348, jan./jun. 2022.
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E.B.: O professor Said Ali não era professor de língua portuguesa. Ele
era professor de línguas estrangeiras: alemão, francês, inglês. Tanto que
ele tem na bibliografia dele livros sobre todas essas línguas. Ele tem
uma gramática alemã. Ele tem uma gramática francesa, que é uma
adaptação de um livro didático muito feliz, muito bem-feito na
Alemanha. Ele, como era descendente de alemães, estava muito ligado
à cultura alemã. E então ele leu Ferdinand de Saussure muito cedo.
T.C.: Mas naquela época eu imagino que havia uma dificuldade para
que o livro chegasse até o Brasil...
E.B.: Não, não... Acontece o seguinte: o professor Said Ah trabalhou
em livrarias, principalmente, na livraria alemã chamada Laemmert. Ele
era professor de língua estrangeira, a tese dele para o Colégio Pedro II
foi sobre alemão. Ele era catedrático de alemão do Colégio Pedro II e
era também catedrático de alemão e francês da escola militar aqui do
Rio de Janeiro. O Professor Said Ali tem uma bibliografia muito
extensa sobre língua e literatura estrangeiras. A literatura,
principalmente, francesa. E língua, o alemão, o inglês e o francês. E
quase todo ano viajava para o estrangeiro. Tanto que ele se casou com
uma alemã, que ele conheceu na Alemanha.
T.C.: Eu li certa vez numa entrevista do senhor que o livro do Saussure
foi o primeiro livro de linguística que o professor Said Ah pediu que
lesse. E isso?
E.B.: Não. Esse conselho foi dado ao Sousa da Silveira. O Sousa da
Silveira era engenheiro da Central do Brasil. Mas, depois de
desenvolver uma atividade de engenharia, ele chegou à conclusão de
que a sua grande virtude era o magistério. Então, ele foi professor das
primeiras tentativas universitárias aqui no Rio de Janeiro. São Paulo foi
primeiro; e, logo depois, o Rio de Janeiro foi o segundo.
T.C.: Muito interessante. Inclusive, a atualidade do pensamento do
professor Said Ali não se manifestou tão somente no Dificuldades da
Língua Portuguesa e na sua Gramática Histórica. Eu estava lendo
recentemente o relatório que ele produziu para o Ministério...
E.B.: Exatamente... Mais de um relatório dessas viagens que ele fazia
ao estrangeiro.
T.C.: Isso! Eu estava lendo o de 1896. Nesse relatório, ele já defendia
a criação de um “alfabeto racional”3 que tivesse exatamente tantos
símbolos quantos forem os sons do idioma em estudo.
E.B.: Exatamente, exatamente...

Líng. e Instrum. Linguíst., Campinas, SP, v. 25, n. 49, p. 334-348, jan./jun. 2022.
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T.C.: O relatório é de 1896... Isso é incrível!4
E.B.: É porque ele leu desde cedo Delbrück5, Brugman6, Osthoff7...
todos esses grandes mestres da linguística não somente descritiva, mas
da linguística histórica alemã e inglesa. Ele estava a par dessas
informações todas. Ele acompanhava todas essas discussões, pois ele
frequentava a Europa. Eu não sei se todo ano, acredito que não, porque
uma viagem de navio para a Europa demorava muito. Hoje, você faz
uma viagem Rio de Janeiro-Paris em 10 horas. Antigamente demorava
de 10 dias para cima, porque era só de navio. E o navio ia parando nos
portos principais, de modo que a viagem era muito mais demorada do
que hoje.
T.C.: Sim. O professor Mário Viaro, nessa oitava edição que saiu em
2001 da Gramática Histórica, faz um comentário interessante ainda
sobre essa questão. Ele fala que, no Vocabulário Ortográfico de 1905,
o professor Said Ah surpreende o leitor porque ele já adota a “anotação
entre colchetes de símbolos do alfabeto fonético internacional”8.
E.B.: Exatamente, exatamente. Eu acho que no Brasil talvez tenha sido
a primeira utilização das idéias do alfabeto Internacional.
T.C.: Era isso que eu queria perguntar ao senhor... Então o senhor acha
que é bem provável que tenha sido o primeiro a utilizar?
E.B.: Você sabe que naquele tempo o professor, além da sua atividade
de sala de aula, tinha uma atividade investigativa, não é? Ele procurava
acompanhar o progresso da disciplina, da sua ciência etc. Então eu não
posso dizer a você que tenha sido o primeiro, mas talvez, no Brasil,
acredito que seja, senão o primeiro, um dos primeiros a usar o alfabeto
fonético internacional, quer dizer, os primeiros passos do alfabeto
fonético internacional.
T.C.: Maravilhoso isso, professor. O senhor sabería dizer se o professor
Said Ali trocava correspondência com algum linguista europeu? A
correspondência trocada com Capistrano de Abreu é muito conhecida...
E.B.: Isso... isso, é...
T.C.: E com algum outro estudioso europeu?
E.B.: Olha... Acontece o seguinte: como ele viajava com relativa
frequência à Europa, esses contatos eram mais diretos, corpo a corpo,
do que por correspondência.
T.C.: E o senhor sabería de algum linguista com quem ele teve contato
corpo a corpo na Europa nessas viagens?

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E.B.: Olhe... Uma vez eu visitei nos Estados Unidos um professor
alemão - agora eu não me lembro do nome dele. E, conversando, ele
disse: “Ah! Conheço o professor Said Ah. Estivemos em vários
congressos lá na Europa etc.” . O Said Ali frequentava essa linha de
pesquisa Internacional. Então ele conheceu muitos estudiosos. Eu não
sei se ele chegou a conhecer pessoalmente o Ferdinand de Saussure. Ele
frequentava principalmente os congressos realizados na França, na
Alemanha e na Inglaterra. Logo depois se uniu à Espanha e a outros
países de língua românica. O Said Ali tinha conhecimento com alguns
linguistas que exerciam atividades na Europa, tanto na Alemanha como
na França e um pouco na Inglaterra.
T.C.: E, no Brasil, o senhor saberia se o professor Said Ali trocava
correspondência com outro intelectual brasileiro, além do Capistrano
de Abreu?
E.B.: Não, não. Assim com a frequência do Capistrano não. Eles eram
colegas no Colégio Pedro II.
T.C.: Mas, olhando as cartas do professor Capistrano que foram
publicadas, me parece que a parte do Said Ali, a sua correspondência
ativa, está incompleta9. Há uns lapsos temporais ah e está faltando a
correspondência que o professor Capistrano teria enviado ao professor
Said Ali. Aí eu me perguntei algo: quando o professor Said Ali faleceu,
provavelmente ele deixou uma biblioteca, os seus documentos...
E.B.: Não, não. Antes desse momento nós tivemos um outro momento,
foi a morte da esposa alemã dele. Quando a esposa alemã faleceu, eles
moravam em Petrópolis. Como o casal não teve filho, precisava que
aparecesse um parente que tomasse conta do professor Said Ali. Então
apareceu uma sobrinha dele, uma sobrinha-neta, Dona Josefina, que
morava na Praia do Flamengo. O edifício ainda existe, é um edifício de
esquina. Eu frequentei muito esse edifício, porque, quando conviví com
o professor Said Ah com essa idade de 14 e 15 anos, eu ia à casa dele
geralmente no mínimo duas vezes por semana.
T.C.: O senhor o conheceu aqui no Rio já?
E.B.: Eu já o conhecí no Rio, porque, como eu disse, ele ficou viúvo
em Petrópolis e não havia ninguém que se apresentasse para ficar com
o Said Ali, e a sobrinha-neta dele, Dona Josefina, que morava aqui no
Rio de Janeiro, se ofereceu. Ela tinha 4 ou 5 filhas, todas meninas, todas
moças. Como ela se ofereceu para tomar conta do professor Said Ali,
eu a conhecí e o esposo dela também.

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T.C.: E aí ele trouxe os livros da sua biblioteca?
E.B.: Não, não. Então, aconteceu o seguinte: quando surgiu a
necessidade de ele vir morar no Rio de Janeiro, porque ele trabalhava
no Rio de Janeiro, tanto no Colégio Militar, como trabalhava no Colégio
Pedro II... Aliás, quando a esposa faleceu, eu acredito que ele já estava
aposentado. Então, a necessidade de ele se transferir de Petrópolis para
o Rio de Janeiro o levou a fazer uma primeira divisão da sua biblioteca.
Ele doou a biblioteca, a grande parte da sua biblioteca, a um instituto
alemão lá em Petrópolis, se não me engano chamado Germânia. O Said
Ali ficou apenas com aqueles livros mais importantes da bibliografia
dele para uso diário.
T.C.: Também é comentado sempre em textos que falam sobre o
professor Said Ali de umas fichas que ele fazia com fragmentos de
literatura.
E.B.: Exatamente. Exatamente. Das leituras do Said Ali, ele fazia
fichas. Aliás, nós aprendemos a fazer fichas com o professor Said Ali.
A geração anterior à minha, discípula do Sousa da Silveira, foi uma
geração que aprendeu a fazer fichas, principalmente um professor com
quem estudei na faculdade, Jesus Belo Galvão. Eles aprenderam a fazer
fichas de leitura com Said Ali. A medida que ia lendo livros não
somente técnicos, mas também literários, os fatos linguísticos eram
registrados em fichas. E o Said Ali tinha um fichário bem amplo, que
ele aproveitava em seus estudos.
T.C.: O senhor saberia dizer onde estão essas fichas hoje?
E.B.: Aí é que é o problema. Esse professor, Jesus Belo Galvão, se
interessou em publicar o que restava do fichário do Said Ali e procurou
uma livraria para fazer uma edição. Foi a Livraria Acadêmica. Mas
acontece que, apesar do grande valor das fichas, elas nunca foram
ordenadas para serem publicadas. Foram ordenadas para servirem de
repositório dos fatos linguísticos que ele ia observando. Então, não
havia uma unidade de livro. Como não havia ninguém que tivesse uma
relação mais íntima com esse fichário, ele desapareceu.
T.C.: Ai que tristeza...
E.B.: E... se não me engano, ele desapareceu na própria Livraria
Acadêmica. Uma outra parte do fichário do Said Ali, aquele mais
próximo dele e que ainda era utilizado para escrever os seus artigos, por
influência do professor Júlio Nogueira, que era professor do Colégio
Pedro II, se incorporou aos poucos livros, aos muitos poucos livros -

Líng. e Instrum. Linguíst., Campinas, SP, v. 25, n. 49, p. 334-348, jan./jun. 2022.
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porque foi o que restou da biblioteca do professor Said Ali, talvez uns
100 ou 200 volumes - e foram recolhidos para a biblioteca do Colégio
Pedro II. Mas o que você viu e vê ali é o mínimo do que foi o grande
fichário de que o professor Said Ali se aproveitou para escrever os seus
trabalhos.
T.C.: Nossa! Eu tenho uma imensa curiosidade de ver essas fichas,
professor.
E.B.: É... Mas o fichário que foi para o Pedro II é o mínimo que você
pode ter de ideia da grande riqueza do fichário que Said Ah
desenvolveu durante a sua atividade de pesquisador.10
T.C.: As cartas trocadas com o professor Capistrano, podem estar
também na biblioteca do Colégio Pedro II?
E.B.: Não sei, não sei... O professor Said Ali, diferentemente de
Capistrano de Abreu, não era assim, vamos dizer, um aficionado em
matéria de escrever cartas. As cartas do Said Ah são muito, muito raras.
E ainda mais porque o círculo de amizade do Said Ali era também muito
restrito. O Said Ali era um homem, assim, de grandes princípios e era
muito rigoroso nos seus princípios.
T.C.: Entendí. O senhor comentou que o Said Ah nunca deu uma aula
de língua portuguesa...
E.B.: Isso. Meu Mestre Nascentes, foi aluno de alemão, como Souza da
Silveira, eles foram alunos de alemão do Said Ali no Colégio Pedro II.
T.C.: O Manuel Bandeira também foi aluno dele, não é?
E.B.: Pois é, pertenciam à mesma turm a do Colégio Pedro II: o
Nascentes, o Sousa da Silveira e o Manuel Bandeira. Eles eram alunos
do Said Ali. Tanto que um dos livros do Said Ali, um dos últimos livros,
publicado pela Biblioteca Nacional tem um prefácio escrito pelo
Manuel Bandeira, ou pelo menos estava sendo preparado, porque quem
ia fazer o prefácio, por vontade do Said Ali era eu. Mas eu era um garoto
de 17, 18, 20 anos. Então quem tomou a iniciativa de fazer o prefácio
foi o Bandeira. No prefácio, ele diz que, ao lado do Sousa da Silveira,
do Professor Nascentes, foi aluno de alemão do professor Said A li11.
T.C.: Entendí. E falando da relação dele com o professor Capistrano...
Como é que o senhor caracterizaria essa relação para o
desenvolvimento das reflexões linguísticas do professor Said Ali?
Porque, por meio das cartas, eu pude perceber que o professor
Capistrano emprestava livros para o professor Said Ali... Os dois
discutiam sobre questões linguísticas.

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E.B.: Isso. Eles emprestavam e trocavam livros. Um emprestava ao
outro, mas eu não penetrei muito nessa parte da atividade dele com o
historiador brasileiro. Era mais parte relativa à história etc. etc. Ambos
chegaram a escrever para uma coleção alemã uns 4 a 6 livros sobre
línguas indígenas brasileiras.
T.C.: Nossa! O professor Said Ah era um homem de interesses bastante
diversificados, não é? Ele também escreveu um livro de Geografia...
E.B.: E. Pelo seguinte: naquele tempo você não tinha ainda as
faculdades profissionalizantes. Você só tinha Direito, M edicina e
Engenharia. Não havia ainda as faculdades que apareceram depois, as
Faculdades de Letras e outras disciplinas. Então, o indivíduo, quando
tinha uma vocação para o lado intelectual, ele não sabia em que área ele
iria se situar. Tanto que o Said Ali, durante algum tempo, pensou que
fosse ser professor de Geografia.
T.C.: E foi inovador na Geografia também, não é, professor?
E.B.: Pois é, também. Graças, em grande parte, às leituras alemãs e ao
contacto com o nosso historiador cearense, não é? Esse a que nos
referimos agora... O Capistrano de Abreu.
T.C.: Sim, sim... Professor, o senhor está muito cansado? Eu posso
continuar?
E.B.: Não, não. Falar sobre o Said Ah é uma doçura para mim. E um
encanto e é um dever. E um dever de discípulo.
T.C.: Ai que alegria! Professor, muito obrigada. Ouvir isso me deixa
com o coração aquecido. Então, falando sobre a Gramática Histórica,
recentemente eu tenho voltado a minha atenção sobre essa obra e sobre
a polêmica instaurada quando da publicação da sua primeira edição. O
senhor já me disse que o desejo do professor Said Ali não era que se
chamasse Gramática Histórica, mas Gramática do Português
Histórico. Isso foi falado por ele para o senhor, não é?
E.B: Isso, isso mesmo.
T.C.: Certo! E uma outra questão é: o senhor comenta em um dos textos
que escreveu a respeito da Gramática Histórica que um dos motivos
para essa baixa aceitação da primeira edição teria sido o não
atendimento ao conteúdo previsto no currículo escolar da época...12
E.B.: Exatamente. O livro tinha uma denominação diferente e eles
queriam que o livro servisse de texto para os estudos daquela época...
T.C.: Havia uma disciplina obrigatória chamada Gramática Histórica
naquela época?

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E.B.: Todas as gramáticas que saíam no mundo, saíam com o nome de
Gramática Histórica. N a escola, esse conteúdo era estudado no último
ano do curso de formação geral. Nós tínhamos o ginásio e depois do
ginásio tínhamos um outro curso denominado curso complementar que
acabou sendo chamado por esse nome que nós conhecemos hoje...
Ensino médio.
T.C.: O senhor já falou da diferença do nome da Gramática Histórica.
E em relação ao conteúdo?
E.B.: A diferença era muito grande porque as gramáticas históricas
começavam primeiro com o latim, latim clássico, latim vulgar, para
então chegar ao português. Quando chegavam ao português, elas
paravam. E o Said Ali procurou avançar nesse domínio, de modo que a
gramática do Said Ah foi a primeira que enveredou por esse novo
campo da investigação linguística, por isso ele não chamou de
gramática histórica.
T.C.: E ao seu ver ela se fdia à linguística diacrônica, isto é, à que é
proposta no Curso de Linguística Geral?
E.B.: Exatamente. E por isso se chamava Gramática do português
histórico. E por que o português histórico? Pois era o que estava
documentado em textos. Então, começávamos a estudar primeiramente
o português antigo.
T.C.: O interessante em relação a essa obra é que hoje em dia ela é
considerada uma referência, não é?
E.B.: Sim. Uma referência pela maneira de encarar os assuntos. Porque
era uma obra que tinha uma grande influência das idéias linguísticas da
época do Ferdinand de Saussure, do Delbrück, do Brugman. O
Saussure, como nós sabemos, era suíço; o Delbrück e o Brugman eram
alemães. Então esses autores foram os que começaram os primeiros
passos dos estudos históricos no domínio da língua.
T.C.: E quando, a seu ver, essa recepção em relação à Gramática
Histórica muda? Quando ela deixa de ser, como o senhor afirma em um
dos seus textos, “um desastre editorial”13 e passa a ser essa obra de
referência?
E.B.: Isso acontece depois da leitura do curso de Ferdinand de Saussure
no Brasil, principalmente com a grande colaboração de um linguista
teórico muito bom, Mattoso Câmara Júnior. Infelizmente ele escreveu
muito menos do que poderia ter escrito, mas foi quem deu a primeira
construção científica dessa realidade nova. A obra do Mattoso teve

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grande influência alemã, inglesa e francesa e, principalmente, de
Ferdinand de Saussure.
T.C.: Professor, e como a família do Said Ali chegou ao Rio de
Janeiro?
E.B.: Foram os pais que chegaram ao Rio de Janeiro. Quer dizer, os
pais não. A mãe, porque o pai já tin h a um hotel em Petrópolis chamado
Hotel dos Estrangeiros. O pai dele tinha esse hotel, ele era árabe e a mãe
alemã.
T.C.: Mas o professor Said Ah foi aprender a falar árabe bem mais
tarde.
E.B.: Bem mais tarde! Porque a primeira língua dele era a língua
materna, o alemão.
T.C.: Por isso o senhor diz em um de seus textos que ele só descobriu
posteriormente que a pronúncia do nome dele em árabe era diferente da
que conhecia.
E.B.: Exatamente, exatamente!
T.C.: E como deveria ser pronunciado? Em um texto, o senhor afirma
que a pronúncia deveria ser com o primeiro “i” tônico e o segundo
átono.
E.B.: E, exato. Foi a informação que eu tive dos árabes. Mas ele sempre
aceitou ser chamado Said A li14, embora servisse para trocadilho, n é ? 15
T.C.: Ah, é? Por quê?
E.B.: Porque as pessoas diziam “sai dali, não sai daqui, sai de outro
lugar” ...
T.C.: Ah! Que maravilhoso! E ele ficava chateado?
E.B.: Não sei... Acho que não.
T.C.: E como era o Professor Said Ah no seu dia a dia?
E.B.: Olhe, em primeiro lugar, é difícil saber disso porque o círculo de
amizades dele era inicialmente o petropolitano. E eu só conhecí o Said
Ali aqui no Rio de Janeiro, quando ele já estava na casa da Dona
Josefina.
T.C.: Mas ainda assim aqui ele tinha muitas pessoas que o
admiravam...
E.B: Ah sim! Sem dúvida nenhuma. E também pessoas que não
gostavam dele...
T.C.: Sério? Disso eu não sabia!
E.B.: E. Ele também teve alguns inimigos com os quais ele brigou de
bengala. Mas isso se conta anedotariamente. Uma das coisas que eu

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aprendi antes de conhecer o Said Ali é: “Você vai conhecer o Said Ali,
vai viver ao lado do Professor Said Ali para estudar português. Não
tente penetrar na vida particular dele” . Eu nunca fiz uma pergunta
particular da vida dele. O Said Ah não gostava dessas investigações
diferentes da investigação científica.
T.C.: Mas é interessante que, apesar de manter esse distanciamento,
ele aceitou recebê-lo com apenas 14 anos na casa dele...
E.B.: Exatamente. Eu tive umas dúvidas e fui procurar o Professor Said
Ali. Primeiro, eu não sabia se ele morava no Rio de Janeiro. Então, eu
peguei o catálogo de telefone - naquele tempo se usava catálogo
telefônico - , e eu vi M. Said Ali, Rua da Glória. Aí eu disse: “Ué, o
professor Said Ali mora no Rio de Janeiro” . Assim, eu telefonei. Said
Ali já tinha passado dos 80 anos. Por uma questão de surdez, ele já não
falava ao telefone. Então, uma outra pessoa me atendeu ao telefone e eu
disse: “Olha quem está falando aqui é um discípulo dos livros do
professor Said Ali. Eu tenho aqui algumas dúvidas e gostaria de saber
se o professor me recebería. Eu sou do quarto ano ginasial”. A pessoa
que me atendeu, então disse: “O senhor espere um minutinho que eu
vou perguntar?”. Logo em seguida ela veio e disse: “O professor disse
que o senhor pode vir no dia tal a tal hora”. Naquele dia e horário, fui à
Rua da Glória e aí conhecí o Professor Said Ah cara a cara.
T.C.: E como foi o primeiro encontro?
E.B.: Ah! Foi um encontro admirável porque ele para mim era o rei.
Quando eu comecei a ler o Dificuldades da Língua Portuguesa, eu
disse: “Meu Deus! Esse homem é excepcional. Esse homem tem uma
cultura extraordinária”. Eu fiquei apaixonado pela cultura do professor
e depois fiquei apaixonado pela própria figura humana do professor.
Algum tempo depois ele perguntou: “O senhor tem a minha gramática
alemã?” E eu digo: “Eu tenho, sim, senhor”. E ele pergunta: “E o senhor
lê alemão?” Ao que eu respondo: “Não, não, senhor” . E, em seguida,
me pergunta: “O senhor quer aprender alemão?”. Ao que eu digo: “Ah!
Eu gostaria”. Por fim, ele diz: “Eu vou passar a dar aulas para o senhor
de alemão” . Mas esse projeto não foi muito longe. As nossas pesquisas
em língua portuguesa suplantaram essa preocupação.
T.C.: E, depois desse encontro com o Professor Said Ali, a sua
orientação durou até que idade?
E.B.: Olha... Ficamos juntos 10 anos ou mais. Quando ele faleceu, eu
já ia menos vezes à casa dele, porque eu já estava trabalhando, já era

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professor. Mas estivemos juntos dos meus 14 anos até
aproximadamente os meus 27.
T.C.: E que obra do professor Said Ali o senhor acha que é mais
emblemática do gênio dele?
E.B.: Ah! O Dificuldades da Língua Portuguesa. É uma obra que ele
foi aumentando com o tempo, foi acrescentando novos capítulos. É um
livro fundamental.
T.C.: Professor, eu agradeço imensamente a sua generosidade.
E.B.: Que isso, querida! Eu é que agradeço a você de pertencer a uma
geração nova que está imbuída no conhecimento do valor do professor
Manuel Said Ali Ida.
T.C.: E verdade. Eu estou encantada. Cada vez mais encantada. E
ouvindo o senhor falar tudo isso... Nossa, estou aqui sem palavras.
E.B.: Olha, o Capistrano de Abreu dizia uma frase que eu subscrevo
integralmente. Eu digo isso em um artigo. O Capistrano dizia: “O Said
Ali não é dos que se comparam. E dos que se separam” . Essa frase é
muito profunda.
T.C.: Sem dúvida!
E.B.: Said Ali não é dos que se comparam... Quer dizer, comparando
ele tinha acompanhante. Ele era dos que se separam, daqueles que
outros não ficam ao lado.
T.C.: O Mattoso Câmara Júnior tem um artigo em que ele fala isso
também. Ele diz que, quando colocamos o Said Ali diante de outros
estudiosos da língua portuguesa, ele se destaca, inclusive, dos
portugueses16.
E.B.: E. Integralmente. Mesmo porque a maioria dos estudiosos de
língua portuguesa se guiavam pelos mestres franceses ou de língua
francesa. E o Said Ah ia diretamente aos mestres alemães que tinham
sido mestres desses mestres franceses.
T.C.: Sim, sem dúvida! Eu só tenho a agradecer ao senhor, não tenho
palavras para dizer como foi importante esse contato.
E.B.: Falar sobre o Professor Sair Ali é, vamos dizer, pagar uma dívida
imensa que eu tenho. Dívida não só intelectual, mas de coração. Fomos
amigos de coração. De modo que é sempre com muita alegria que a
gente mergulha na obra do Said Ah e fala sobre ela, principalmente para
uma geração nova, que mostra que a figura do Said Ali não passou. Ela
continua.

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Bibliografia
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VIARO, M. E. Quem foi M. Said Ali? In: ALI, M. S. G ram ática
H istórica da Língua Portuguesa. 8a ed. rev. e amp. por Mário Eduardo
Viaro. SP: Companhia Melhoramentos; Brasília, DF: Editora da UNB,
2001, p. 8-10.

Notas

* Doutorando em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas. Mestre em


Linguística pela mesma instituição. Graduado em Letras - Português/Italiano pela
Universidade Federal Fluminense. E pesquisador do grupo de pesquisa CoLFUBri (O
Cotidiano na Elistória das Idéias Linguísticas) e integrante do Grupo Arquivos de
Língua (GAL). Dedica-se ao ensino de língua portuguesa na educação popular. Possui
como áreas de interesse a Análise de Discurso materialista e a História das Idéias
Linguísticas. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1535-9177. E-mail:
michelmaimies@id.uff.br.

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** Professora Adjunta de Língua Portuguesa da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ), pós-doutoranda em História das Idéias Linguísticas no POSLING-
UFF, sob a supervisão da Profa. Dra. Vanise Medeiros e membro do Grupo Arquivos
de Língua (GAL-UFF), no qual coordena o Arquivos de Saberes Linguísticos
(SaberLing/FAPERJ). Também é pesquisadora colaboradora no PPGL-IEL/Unicamp,
sob a supervisão da Profa. Dra. Claudia Pfeiffer, e uma das coordenadoras do
Laboratório de Estudos em Gramática & Discurso (LabGraDis-UERJ/FAPERJ).
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8599-3528. E-mail: arauio tliais@yahoo.com.br.
1 O vídeo do último dia do evento encontra-se disponível em:
https://www.voutube.com/watch?y=v6icXZRpdSs&t= 1217s.
2 Registrem-se aqui também os devidos agradecimentos a Claudia Pfeiffer, Vanise
Medeiros e Bruno Turra pela leitura e comentário deste texto.
3 ALI, 1896, p. 22.
4 A fundação da Associação Fonética Internacional (AFI) sob a liderança do linguista
francês Paul Passy data de 1886. A publicação de um esboço do que viria a ser o
alfabeto fonético internacional se deu em 1888. O primeiro quadro oficial só seria
publicado em 1900. CF. PFEIFFER; COSTA; MEDEIROS, 2022 [neste dossiê],
5 Berthold Delbrück (1842-1922).
0 Karl Brugman (1849-1919).
7 Hennann Osthoff (1847-1877).
8 VIARO,2001,p. 9.
9A correspondência de Capistrano foi publicada em três volumes em 1977 pela editora
Civilização Brasileira. Na coleção, há cerca de dez cartas de Said A1Í e diversas cartas
de Capistrano para outros destinatários em que tece comentários sobre Said A1Í e sua
obra. Os manuscritos se encontram na Biblioteca Nacional.
10 Durante o período de isolamento social em função da pandemia de SARS-COv-2,
Thaís Costa entrou em contato com a bibliotecária do Colégio Pedro II, que se
encontrava em trabalho remoto e não encontrou os livros e fichas de Said Ali.
11 O livro é o Versificação portuguesa, de 1949. De fato, seu prefácio é de autoria de
Manuel Bandeira.
12 BECHARA, [1993] 2015.
13 id., ibid.
14 [‘saj.di.a.Ti]
15 No referido texto, diz o professor Bechara: “A outra questão é a que se refere à
pronúncia do nome do Prof. Said Ali. Realmente, o rigor reclamaria Said (i acentuado)
Al i (paroxítono). Criado, porém, entre colonos alemães de Petrópolis, só muito depois
aprendería a correta pronúncia de seu nome, na língua originária. A notícia certa, mas
tardia, nunca lhe fez alterar a tradicional maneira de proferir Said (i átono) Ali
(oxítono). Assim era como o mestre pronunciava seir nome, apoiado no hábito familiar
e na experiência linguística” (BECHARA, 1956, p. 179).
« CÂMARA JR., [1961] 2004. '

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