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Artigo Evaristo
Artigo Evaristo
à auto-apresentação
da Mulher Negra
na Literatura Brasileira
Conceição Evaristo*
C olocada a questão da
identidade e diferença
no interior da lingua-
gem, isto é como atos
de criação lingüística, a litera-
tura surge como um espaço
privilegiado de produção e re-
produção simbólica de sentidos.
Partindo dessas primícias, pode ser
observado que a literatura brasileira, desde
a sua formação até a contemporaneidade,
apresenta um discurso que insiste em pro-
clamar, em instituir uma diferença negativa
para a mulher negra. A representação lite-
rária da mulher negra ainda surge ancorada nas imagens de
seu passado escravo, de corpo-procriação e/ou corpo-objeto
de prazer do macho senhor. Interessante observar que deter-
minados estereótipos de negros/as, veiculados no discurso li-
terário brasileiro, são encontrados desde o período da litera-
tura colonial.
Textos exemplares nesse sentido são os de Gregório de
Matos [1623-1696], apelidado como “Boca do Inferno”, por
suas críticas à colonização portuguesa. Entretanto, o poeta,
como qualquer homem do Brasil Colônia, acostumado e com-
prometido com a sociedade escravocrata, em versos como
estes revelava o conceito da época que pairava sobre as mu-
lheres escravas: “Jelu, vós sois a rainha das mulatas/ E sobre-
tudo sois a deusa das p...,” [reticências no original].
Arquivo Pessoal
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mulheres negras, diz que “as rimentada como mulher uma fala literária construída
mulheres negras fazem par- negra na sociedade brasilei- nas instâncias culturais do
te de um contingente de mu- ra. Pode-se dizer que o fa- poder. Nesse sentido, os tex-
lheres [...] que são retratadas zer literário das mulheres tos das escritoras afro-des-
como antimusas da socieda- negras, para além de um cendentes se inscrevem no
de brasileira, porque o mode- sentido estético, busca se- proposto por Homi Bhabha
lo estético de mulher é a mu- mantizar um outro movi- (1998, p.321) acerca da poe-
lher branca”. mento, ou melhor, se inscre- sia do colonizado. Para ele, o
Entretanto, se a literatu- ve no movimento a que discurso poético do coloniza-
ra constrói as personagens abriga todas as nossas lutas. do, não só encena o “direito
femininas negras sempre des- Toma-se o lugar da escrita, de significar ”, como tam-
garradas de seu núcleo de pa- como direito, assim como se bém questiona o direito de
rentesco, é preciso observar toma o lugar da vida. nomeação que é exercido pelo
que a família representou Nesse sentido, vários colonizador sobre o próprio
para a mulher negra uma das textos se tornam exempla- colonizado e seu mundo.
maiores formas de resistência res, como os de: Geni Gui- Pode-se concluir que na
e de sobrevivência. Como he- marães, Esmeralda Ribeiro, escre(vivência) das mulhe-
roínas do cotidiano desenvol- Miriam Alves, Lia Vieira, res negras, encontramos o
vem suas batalhas longe de Celinha, Roseli Nascimento, desenho de novos perfis na
qualquer clamor de glórias. Ana Cruz, Mãe Beata de Ie- literatura brasileira, tanto
Mães reais e/ou simbólicas, monjá dentre outras. Há do ponto de vista do con-
como as das Casas de Axé, ainda que se recordar da teúdo, como no da autoria.
foram e são elas, muitas ve- primeira romancista abolici- Uma inovação literária se dá
zes sozinhas, as grandes res- onista brasileira, Maria Fir- profundamente marcada
ponsáveis não só pela subsis- mina dos Reis, com a publi- pelo lugar sócio-cultural em
tência do grupo, assim como cação de Úrsula, em 1859. que essas escritoras se colo-
pela manutenção da memó- Não se pode esquecer, ja- cam para produzir suas es-
ria cultural no interior do mais, o movimento executa- critas. Da condição femini-
mesmo. do pelas mãos catadoras de na e negra, nasce a inspira-
Se há uma literatura que papel, as de Carolina Maria ção para esses textos a se-
nos invibiliza ou nos ficcio- de Jesus que, audaciosa- guir:
naliza a partir de estereóti- mente reciclando a mi-
pos vários, há um outro dis- séria de seu coditiano,
curso literário que pretende inventaram para si
rasurar modos consagrados um desconcertante
de representação da mulher papel de escritora. Ca-
negra na literatura. Asse- rolina escrevendo
nhoreando -se “da pena”, obras como: O quarto
objeto representativo do de Despejo, O Diário de
poder falo-cêntrico branco, Bitita, Pedaços de
as escritoras negras buscam Fome, apresentou
inscrever no corpus literá- uma escrita que para
rio brasileiro imagens de muitos veio macular
uma auto-representação. Cri- uma pretensa e desejo-
am, então, uma literatura sa assepsia da literatu-
FOTO: Ronaldo Barroso
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Coração Tição
Ana Cruz
América
Esmeralda Ribeiro
AMÉRICA
na terceira margem
sou azul
e me sinto só
Passado mas eu sei quem sou:
Histórico samba, rap, capoeira, blue
e tenho soul
Sonia fátima
In International Dimensions of
Do açoite Black Women’s Writing, Vol. 1, p. 203
da mulata erótica
da negra boa de eito
e de cama
(nenhum registro)
In Cadernos Negros –
Os Melhores Poemas, p. 118.
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Quarto de Despejo
[fragmentos] Maria Carolina de Jesus
Kiko Nascimento
precisavam ter filhos. Penso: porque há de ser o pobre quem há
de ter filhos – se filhos de pobre tem que ser operário? [...]
Quando o carro capela vem na favela surge vários deba-
tes sobre a religião. As mulheres dizia que o padre disse-lhes
que podem ter filhos e quando precisar de pão podem ir buscar
na igreja.
Para o senhor vigário, os filhos de pobre criam só com
pão. Não vestem e não calçam.
[1962, P. 120]
In E...FEITO DE LUZ, p. 31
ÙRSULA
[fragmentos] Maria Firmina dos Reis
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A Cor da Ternura
[fragmentos] Geni Guimarães
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