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Da representação

à auto-apresentação
da Mulher Negra
na Literatura Brasileira
Conceição Evaristo*

C olocada a questão da
identidade e diferença
no interior da lingua-
gem, isto é como atos
de criação lingüística, a litera-
tura surge como um espaço
privilegiado de produção e re-
produção simbólica de sentidos.
Partindo dessas primícias, pode ser
observado que a literatura brasileira, desde
a sua formação até a contemporaneidade,
apresenta um discurso que insiste em pro-
clamar, em instituir uma diferença negativa
para a mulher negra. A representação lite-
rária da mulher negra ainda surge ancorada nas imagens de
seu passado escravo, de corpo-procriação e/ou corpo-objeto
de prazer do macho senhor. Interessante observar que deter-
minados estereótipos de negros/as, veiculados no discurso li-
terário brasileiro, são encontrados desde o período da litera-
tura colonial.
Textos exemplares nesse sentido são os de Gregório de
Matos [1623-1696], apelidado como “Boca do Inferno”, por
suas críticas à colonização portuguesa. Entretanto, o poeta,
como qualquer homem do Brasil Colônia, acostumado e com-
prometido com a sociedade escravocrata, em versos como
estes revelava o conceito da época que pairava sobre as mu-
lheres escravas: “Jelu, vós sois a rainha das mulatas/ E sobre-
tudo sois a deusa das p...,” [reticências no original].
Arquivo Pessoal

É preciso ainda ressaltar que no final do mesmo poema


aparece a expressão “cabrinha”, que pode ser remetida ao
* Conceição Evaristo, doutoranda em masculino “bode”, apelido dado aos homens mulatos, que
Literatura Comparada, UFF, professora
da rede municipal de ensino da cidade
do Rio de Janeiro, escritora, ensaísta.
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serviram também de debo- para a mulher negra na lite- Escrava Isaura (1875) de Ber-
che para o poeta. Os versos ratura brasileira? Estaria o nardo Guimarães. A trama
finais dizem: “Valha-te Deus discurso literário, como o ficcional não traz uma he-
por cabrinha, /Valha-te Deus histórico, procurando apa- roína negra. Na narrativa,
por mulata; /E valha-me gar os sentidos de uma ma- a senhora elogia a tez clara
Deus a mim/Que me mato a triz africana na sociedade da escrava e mais, parece fe-
guardar cabras”. brasileira? Teria a literatura licitar a moça por ter tão
Uma leitura mais pro- a tendência em ignorar o pouco “sangue africano”,
funda da literatura brasilei- papel da mulher negra na dizendo-lhe: “És formosa e
ra, em suas diversas épocas formação da cultura nacio- tens uma cor linda, que nin-
e gêneros, nos revela uma nal? Nesse sentido, é inte- guém dirá que gira em tuas
imagem deturpada da mu- ressante acompanhar as re- veias uma só gota de sangue
lher negra. Um aspecto a flexões de José Maurício africano” (A escrava Isaura,
observar é a ausência de re- Gomes de Almeida (2001) Guimarães, 1976, p.29,31).
presentação da mulher ne- sobre o indianismo român- Conclui-se então, que mes-
gra como mãe, matriz de tico e a construção dos mi- mo sendo a heroína uma es-
uma família negra, perfil de- tos de identidade nacional crava, a personagem foi con-
lineado para as mulheres para os brasileiros. cebida se distanciando o
brancas em geral. Mata-se Santos observa que as mais possível dos caracteres
no discurso literário a prole obras fundamentais do ro- de uma mulher de ascen-
da mulher negra. Quanto à mantismo brasileiro, O Gua- dência negro-africana.
mãe-preta, aquela que cau- rani (1857) e Iracema (1865), Diante do romance de
sa comiseração ao poeta, de José de Alencar, afirmam Guimarães e de tantas ou-
cuida dos filhos dos brancos uma origem mestiça para o tras obras da literatura bra-
em detrimento dos seus. Na povo brasileiro. Na primei- sileira, concordamos com
ficção, quase sempre, as ra, da fusão do casal Peri/ Sueli Carneiro, (2003, p.50)
mulheres negras surgem Ceci, o índio simbolizando que ao analisar a questão de
como infecundas e por tan- o espaço americano e Ceci gênero e raça vivida pelas
to perigosas. Aparecem ca- o universo europeu, surge
racterizadas por uma ani- um novo homem, o brasilei-
malidade como a de Berto- ro. Na segunda, Iracema, a
leza que morre focinhando, mulher da terra, se entre-
por uma sexualidade peri- ga ao herói português,
gosa como a de Rita Baiana, também aí, busca-se consa-
que macula a família portu- grar o caráter mestiço da
guesa, ambas personagens de sociedade brasileira, nasce
O Cortiço, (1890) de Aloísio o primeiro cearense, fruto
de Azevedo, ou por uma in- do colonizador com a mu-
gênua conduta sexual de lher da terra.(p.95).
Gabriela, Gabriela, Cravo e Significati-
Canela, (1958) de Jorge Ama- vo, sob o as-
do, mulher-natureza, inca- pecto de
paz de entender e atender negação
determinadas normas soci- uma per-
ais. Embora, a representa- sonagem
ção materna em muitos tex- central
tos literários possa desagra- que pu-
dar também às mulheres desse ser
brancas em geral, o que se negra, é o
pretende argumentar aqui romance
é: qual seria o significado da abolicio -
não representação materna nista, A
Kiko Nascimento

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mulheres negras, diz que “as rimentada como mulher uma fala literária construída
mulheres negras fazem par- negra na sociedade brasilei- nas instâncias culturais do
te de um contingente de mu- ra. Pode-se dizer que o fa- poder. Nesse sentido, os tex-
lheres [...] que são retratadas zer literário das mulheres tos das escritoras afro-des-
como antimusas da socieda- negras, para além de um cendentes se inscrevem no
de brasileira, porque o mode- sentido estético, busca se- proposto por Homi Bhabha
lo estético de mulher é a mu- mantizar um outro movi- (1998, p.321) acerca da poe-
lher branca”. mento, ou melhor, se inscre- sia do colonizado. Para ele, o
Entretanto, se a literatu- ve no movimento a que discurso poético do coloniza-
ra constrói as personagens abriga todas as nossas lutas. do, não só encena o “direito
femininas negras sempre des- Toma-se o lugar da escrita, de significar ”, como tam-
garradas de seu núcleo de pa- como direito, assim como se bém questiona o direito de
rentesco, é preciso observar toma o lugar da vida. nomeação que é exercido pelo
que a família representou Nesse sentido, vários colonizador sobre o próprio
para a mulher negra uma das textos se tornam exempla- colonizado e seu mundo.
maiores formas de resistência res, como os de: Geni Gui- Pode-se concluir que na
e de sobrevivência. Como he- marães, Esmeralda Ribeiro, escre(vivência) das mulhe-
roínas do cotidiano desenvol- Miriam Alves, Lia Vieira, res negras, encontramos o
vem suas batalhas longe de Celinha, Roseli Nascimento, desenho de novos perfis na
qualquer clamor de glórias. Ana Cruz, Mãe Beata de Ie- literatura brasileira, tanto
Mães reais e/ou simbólicas, monjá dentre outras. Há do ponto de vista do con-
como as das Casas de Axé, ainda que se recordar da teúdo, como no da autoria.
foram e são elas, muitas ve- primeira romancista abolici- Uma inovação literária se dá
zes sozinhas, as grandes res- onista brasileira, Maria Fir- profundamente marcada
ponsáveis não só pela subsis- mina dos Reis, com a publi- pelo lugar sócio-cultural em
tência do grupo, assim como cação de Úrsula, em 1859. que essas escritoras se colo-
pela manutenção da memó- Não se pode esquecer, ja- cam para produzir suas es-
ria cultural no interior do mais, o movimento executa- critas. Da condição femini-
mesmo. do pelas mãos catadoras de na e negra, nasce a inspira-
Se há uma literatura que papel, as de Carolina Maria ção para esses textos a se-
nos invibiliza ou nos ficcio- de Jesus que, audaciosa- guir:
naliza a partir de estereóti- mente reciclando a mi-
pos vários, há um outro dis- séria de seu coditiano,
curso literário que pretende inventaram para si
rasurar modos consagrados um desconcertante
de representação da mulher papel de escritora. Ca-
negra na literatura. Asse- rolina escrevendo
nhoreando -se “da pena”, obras como: O quarto
objeto representativo do de Despejo, O Diário de
poder falo-cêntrico branco, Bitita, Pedaços de
as escritoras negras buscam Fome, apresentou
inscrever no corpus literá- uma escrita que para
rio brasileiro imagens de muitos veio macular
uma auto-representação. Cri- uma pretensa e desejo-
am, então, uma literatura sa assepsia da literatu-
FOTO: Ronaldo Barroso

em que o corpo-mulher-negra ra brasileira.


deixa de ser o corpo do “ou- Essas escritoras
tro” como objeto a ser des- buscam produzir
crito, para se impor como um discurso li-
sujeito-mulher-negra que se terário pró-
descreve, a partir de uma prio, uma con-
subjetividade própria expe- tra-voz à

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Coração Tição
Ana Cruz

Quero me lambuzar nos mares negros


para não me perder,
conseguir chegar ao meu destino.

Não quero ser parda, mulata


Sou afro-brasileira-mineira.
Bisneta
de uma princesa de Benguela.

Não serei refém de valores


que não me pertencem.
Quero sentir sempre meu coração
como um tição.

Não vou deixar que o mito


do fogo entre as pernas iluda e desvie
homens e mulheres
daqui por diante.

América
Esmeralda Ribeiro

América do Sul, Rhythm and blues,


Chicago, África do Sul, Capitalismo
pobreza, lixo, vício, ismos

AMÉRICA
na terceira margem
sou azul
e me sinto só
Passado mas eu sei quem sou:
Histórico samba, rap, capoeira, blue
e tenho soul
Sonia fátima
In International Dimensions of
Do açoite Black Women’s Writing, Vol. 1, p. 203
da mulata erótica
da negra boa de eito
e de cama
(nenhum registro)
In Cadernos Negros –
Os Melhores Poemas, p. 118.

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Quarto de Despejo
[fragmentos] Maria Carolina de Jesus

8 de dezembro ... De manhã o padre veio dizer a missa.


Ontem êle veio com o carro capela e disse aos favelados que êles

Kiko Nascimento
precisavam ter filhos. Penso: porque há de ser o pobre quem há
de ter filhos – se filhos de pobre tem que ser operário? [...]
Quando o carro capela vem na favela surge vários deba-
tes sobre a religião. As mulheres dizia que o padre disse-lhes
que podem ter filhos e quando precisar de pão podem ir buscar
na igreja.
Para o senhor vigário, os filhos de pobre criam só com
pão. Não vestem e não calçam.
[1962, P. 120]

In E...FEITO DE LUZ, p. 31

ÙRSULA
[fragmentos] Maria Firmina dos Reis

A africana limpou o rosto com as mãos, e um momento depois


exclamou:
– Sim, para que estas lágrimas?!... Dizem bem! Elas são inú-
teis, meu Deus; mas é um tributo de saudade [...] Liberdade! Liber-
dade... ah! eu a gozei na minha mocidade! – continuou Susana com
amargura. – Túlio, meu filho, ninguém a gozou mais ampla, não
houve mulher alguma mais ditosa do que eu. Tranqüila no seio da
felicidade, via despontar o sol rutilante e ardente do meu país, [...]
e ai com minhas jovens companheiras, brincando alegre, com o sor-
riso nos lábios, a paz no coração [...] Ah! meu filho! Mais tarde
deram-me em matrimônio a um homem, que amei como a luz de
meus olhos e como penhor dessa união veio uma filha querida [...] E
esse país de minhas afeições e esse esposo querido, essa filha tão
extremamente amada, ah Túlio! tudo me obrigaram os bárbaros a
deixar! Oh! tudo, tudo até a própria liberdade.
[2004, p.115]

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A Cor da Ternura
[fragmentos] Geni Guimarães

Minha mãe sentava-se numa cadeira, tirava o


avental e eu ia. Colocava-me entre suas pernas, en-
fiava as mãos no decote de seu vestido, arrancava
dele os seios e mamava em pé.
Ela aproveitava o tempo, catando piolhos da
minha cabeça ou trançando-me os cabelos. Conver-
sávamos, às vezes:
– Mãe, a senhora gosta de mim?
– Ué, claro que gosto, filha.
– Que tamanho? – perguntava eu.
Ela então soltava a minha cabeça, estendia os
braços e respondia sorrindo:
– Assim.
– Eu voltava ao peito, fechava os olhos e ma- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

mava feliz.(...). AMADO, Jorge.Gabriela, Cravo e Canela, São


Paulo, Martins Editora, s/d.
– Eu interrompia as perguntas da brincadeira ALMEIDA, José Maurício Gomes de. “Litera-
tura e Mestiçagem” in Outros e Outras na
para saber coisas além dela. Uma vez foi assim: Literatura Brasileira, org.Wellington de Al-
meida Santos, Rio de Janeiro, Editora
– Quem fez o fogo e a água? (...) Caetés, 2001.
AZEVEDO, Aloísio. O Cortiço, São Paulo, Áti-
– Mãe, se chover água de Deus, será que sai a ca, 1975.
BHABHA, Homi K. O Local da Cultura, Trd.
minha tinta? De Myriam Ávila et al. Belo Horizonte,
Editora UFMG, 1998.
Credo-em-cruz! Tinta de gente não sai. Se saís- CARNEIRO, Sueli. “Enegrecer o Feminismo:
A situação da mulher negra na América
se, mas se saísse mesmo, sabe o que ia acontecer? – Latina a partir de uma perspectiva de gê-
nero” in Racismos Contemporâneos, org:
Pegou-me e, fazendo-me cócegas na barriga, foi di- Ashsoka /Takano Ed, Cidadania, Rio de
Janeiro, 2003.
zendo: - Você ficava branca e eu preta, você ficava CRUZ, Ana. ... E feito luz, Niterói, Ikenga Edi-
torial, s/d.
branca e eu preta, você branca e eu preta... FÁTIMA, Sônia. In Cadernos Negros-Os me-
lhores poemas, org: Quilombhoje,São
Repentinamente paramos o riso e a brincadei- Paulo, 1998.
GUIMARÃES, Bernardo. A Escrava Isaura, Rio
ra. Pairou entre nós um silêncio esquisito. de Janeiro, Nova Aguillar, 1976.
GUIMARÃES, Geni Mariano. A Cor da Ternu-
Achei que ela estava triste, então falei: ra, São Paulo, FTD, 1998.
JESUS, Maria Carolina. Quarto de Despejo,
– Mentira, boba. Vou ficar com esta tinta mes- Oficinas Gráficas da L. Francisco Alves,
Edição Popular, São Paulo, 1962.
mo. Acha que eu ia deixar você sozinha? Eu não. MATOS, Gregório de. Obras Completas de
Gregório de Matos, Coleção “Os Baia-
Nunca, nunquinha mesmo, tá? nos”, Salvador, Edição Universitária, s/d.
REIS, Maria Firmina dos. Úrsula, Editora Mu-
lheres, Santa Catarina, 2004.
Pp. 9, 10 RIBEIRO, Esmeralda. In International Dimen-
sions of Black Women’s Writing, Edited by
Carole Boyce Davies and ‘Molara Ogun-
dipe-Leslie, London, Pluto Press, 1995.

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