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Qual a melhor forma de fotografar os sonhos? Eis uma questão sem resposta.

Nós,
sonâmbulos, inimigos do devir, lagartas que recusam a abençoada metamorfose,
permanecemos aqui; a folha ainda possui o mesmo gosto, a chuva ainda é salgada quando
desce dos cílios. O que mudou? Eu virei Atlas invés de borboleta. Minha mudança gerou
repulsa, por isso desejei voltar para o casulo. Todos falam: “os filhos um dia tem que voar”,
então, por que se assustaram com o bater das asas do Ghidorah? Como conseguiram suprimir
um monstro maior do que vocês? Eu ainda sonho acordado porque nunca amanheceu. Os
cômodos de uma casa também são prisões; as paredes gritam quando a alma chora. Nosso lar
é esquelético, mortífero, licoroso. Caminho entre as ruas da minha residência em busca de
alguém, encontro pessoas na sala, no quarto, na cozinha, em todos os cômodos. Estou invisível,
intangível e, finalmente, fantasmagórico. Não é doloroso ser o fantasma da casa mal
assombrada? Charlie, qual a vantagem em ser invisível? Eu não sei. Dormir se tornou tão
pesado quanto acordar, pois nem em meus sonhos eu encontro algo além do espelho. O
reflexo é um fardo, principalmente quando ele reflete um “poderia ter sido”. Sempre ansiamos
por algo material como se isso fosse saciar a nossa miséria, mas me diga: não seria pior ter
tudo e sentir possuir nada? Não seria pior ter o oceano nas mãos e deixá-lo transbordar do que
ter apenas um copo meio cheio? Como ter esperança após conquistar o que almejava e mesmo
assim se sentir como antes? Andar por essas mesmas dúvidas é doloroso, pois para onde olho,
a esperança é uma mera ilusão. A vida é harmônica, não apenas interiormente, mas
socialmente também. Se não estamos em sintonia com os outros, eles não irão permitir que
entremos na orquestra. Passos lentos e passos rápidos, qualquer um dos dois te coloca fora do
mundo. Estou aqui por ter parado. Escolhi ver o sol se pôr do que ir em busca do horizonte.
Agora, estou a anos nessa mesma noite escura. Pessoas passam com os seus resquícios de luz,
mas eu permaneço noturno; sou uma estrela morta, o brilho das minhas palavras são
resquícios dessa supernova. Caindo lentamente nesse oceano de lágrimas. O abismo brilha em
olhos apagados. O azul néon é uma isca para o mar de prédios, bares e dores. Águas para
afogar as mágoas; mágoas para encher o corpo, então, vida-dor, faça-me transbordar. Eles não
escutam os meus gritos, então, faça-se sirene em meus lábios. Torne-se farol em meus
pensamentos, crie luz, pois tudo que busco rememorar está coberto de melancolia, envolto de
uma tempestade contínua. Uma casa abandonada, um espaço vazio. Devemos voltar a
realidade? Vejo a chuva cair, mas não posso toca-la. Lembro de minha infância quando sentia
as gotas molharem meu corpo, encharcando minha roupa, me trazendo um resfriado, tirando
mais um dia de aula na outra semana. A casa está vazia. Ando por cada cômodo procurando
por seus bilhetes, mas ao tocar na janela da cozinha sinto que todo o ambiente muda e de
repente estou aqui, parado de frente a prédios cobertos por luzes neon. O terraço me convida
a pular e felizmente não tenho nenhum questionamento sobre isso. Os prédios sumiram, o que
me resta? Plantas. Isso, árvores e flores, o necessário para sobreviver por mais um milênio.
Caminho até onde estou limitado, porém já não me lembro do porquê de estar aqui. Um dia
ruim é o suficiente para estragar uma vida boa. Vejo você, deitado no chão, com arranhões
pelo corpo, braço direito esmagado, ao lado de uma moto destroçada. “Quem fez isso com
você?” Grito enquanto choro, porém não há ninguém alí. Uma queda não deixaria a moto
nesse estado, muito menos uma simples batida. Me sinto vazio ao notar que nada disso foi
grandioso, que o mundo não se abalou, trombetas não tocaram, uma trilha sonora enervante
não tomou conta do ambiente tornado tudo mais dramático e artístico do que dizem ser. Ele
apenas se foi. De maneira crua e direta, apenas eu e ele na estrada, sem um apoio emocional,
sem uma despedida digna. Não existem últimas palavras emocionantes, um pedido que
cumprirei até o fim de minha vida. Nada, apenas um fim. De repente estou aqui novamente,
mas dessa vez a casa está mobiliada, vejo crianças correndo pelos cômodos, brinquedos
jogados no chão, tudo que há de mais puro e belo. Ainda estou em casa, mas por quê? Alguma
coisa me prende, eu preciso me libertar, mas não irei sem antes descobrir o que me mantém
nessas paredes. Ao virar o rosto, vejo você, deitada na cama com seu marido. Ele
carinhosamente toca em seu rosto, te fala sobre o futuro, o presente, filhos, o quanto te ama,
moda, filmes, música e tudo que existe, pois você não liga em escuta-lo, mesmo que o assunto
seja completamente idiota. Estou no poço, sentado no chão da cozinha, coberto por um teto
solitário, tentando preencher esse vazio abissal que você deixou. Eu não consigo suportar, eu
não posso aceitar que você se foi. Tínhamos planos, sonhos, objetivos, mas tudo isso
simplesmente evaporou de uma hora pra outra. Eu sinto sua falta. Então estou aqui,
preenchendo esse pedaço que foi arrancado de minha alma com pedaços de uma torta,
esperando que o doce dessa receita seja maior que o amargor de meus sentimentos. Agora
estou aqui, vendo ela devorar uma torta inteira...por que está com tanta fome? Eu não
entendo, você parece...diferente

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