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Revista IEB - 43
Revista IEB - 43
Artigos
9 Entre Narciso e o colecionador ou o
ponto cego do criador
Bento Prado Jr.
37 Notas sobre o método crítico de Gilda
de Mello e Souza
Otília Beatriz Fiori Arantes
51 O terror na poesia de Drummond
Luiz Roncari
69 Da arqueologia portuguesa à
arquitetura brasileira
Joana Mello
99 A rima nos cantos populares:
contribuições para o rimário brasileiro
Álvaro Silveira Faleiros
127 Um ‘tesouro’ redescoberto: os capítulos
inéditos da Amazônia de João Daniel.
Antonio Porro
149 Quando dois acervos se completam:
a biblioteca de Mário de Andrade no
Brasil e a Staatsbibliothek de Berlim
Rosângela Asche de Paula
159 Manuscritos de Outros Escritores
no Arquivo Mário de Andrade:
Perspectivas de Estudo
Márcia Jaschke Machado
Depoimentos
177 Traduzindo a literatura brasileira
para o tcheco – entrevista com Pavla
Lidmilová
Sarka Grawova
Resenhas
187 Chico Buarque
de Fernando de Barros e Silva
por Walter Garcia
Literatura
233 poemas de Zuca Sardana
234 poemas de Fabrício Corsaletti
236 Ambulância - Airton Paschoa
237 Corpo - Ricardo Lísias
6
Entre Narciso e o colecionador ou o
ponto cego do criador
Bento Prado Jr.*
10
aquele que levaria de conquistas apenas provisórias à so-
lidez e à permanência garantidas pelo apoio racional em
sistemas teóricos. Não é minha intenção, para reverter esse
quadro, a de simplesmente retomar a retórica que fustiga o
“esprit de système” com o elogio de um intuicionismo incon-
trolável (retórica contra a qual Pierre Bourdieu dispara, em
seu texto sobre Erwin Panofsky6 , as setas envenenadas da
retórica do estruturalismo, como veremos adiante). Parece
importante sugerir que a mutação aludida também é uma
forma de empobrecimento da visão ( a perda do saper vedere
e, por que não?, do saper leggere e sentire, ascoltare) que
acompanha a institucionalização do saber especializado, que
despreza os processos heurísticos ou abductivos, no limite
hermenêuticos, da decifração da vida da cultura (reiterando
idéias de Adorno7, como veremos logo a seguir). Pelo menos,
é nessa mesma direção que caminha Otília Beatriz Fiori
Arantes em seu ainda inédito ensaio “Notas sobre o mé-
todo crítico de Gilda de Mello e Souza”, publicado a seguir,
pp 37-49, falando de um “milagre acadêmico” realizado há
meio século8 e que hoje nos parece fora de alcance ou acima
de nossas forças. Milagre acadêmico ou proeza cognitiva
possibilitados por um uso original de métodos desprezados
na Academia como o método indiciário, essencialmente ab-
ductivo ou heurístico, pouco compatível com a linha dura
epistemológica imperante na Universidade 9. Não posso dis-
cordar do diagnóstico feito por Otília: tendo feito meu curso
na USP na segunda metade da década de 50, não podia con-
7 Foi, de fato, com entusiasmo que descobri, nos anos 60, graças a Roberto
Schwarz, nas Notas de literatura de Adorno (publicado em 1958), o belo
texto “O ensaio como forma” (do qual roubei a epígrafe deste escrito)
que se abre levantando-se contra a desqualificação contemporânea desse
gênero literário. O que ocorria no nosso longínquo Brasil, ocorria também
na culta Alemanha. Como diz Adorno: “Que o ensaio, na Alemanha, esteja
difamado como um produto bastardo; que sua forma careça de uma tradição
convincente; que suas demandas enfáticas só tenham sido satisfeitas de
modo intermitente, tudo isso já foi dito e repreendido bastante.”(Cf. Notas
de Literatura I, tradução e apresentação de Jorge de Almeida, Ed. Duas
Cidades e Editora 34, 2003, Coleção espírito Crítico, p.15).
12
Para percorrer essa conexão entre a hermenêutica e
seus resultados teóricos, deter-me-ei no livro A Ideía e o Fi-
gurado, especialmente nos textos consagrados a Mário de
Andrade, no espaço periférico que habitamos, e a Michelan-
gelo Antonioni, no coração da cultura européia; só sairemos
do referido livro passando brevemente pela entrevista que
Gilda concedeu a respeito do filme Conversation piece de
Visconti.
II
Os ensaios consagrados a Mario de Andrade per-
correm muitas linhas ou níveis que – tarefa complexa! – é
preciso tentar desentranhar; esperamos que após esta tenta-
tiva, “com o tempo os estudos mais aprofundados irão cer-
tamente unificar um pensamento caprichoso”, como diz a
própria Gilda na frase acima citada sobre o autor de O Ban-
quete. Com efeito, em seus escritos sobre ele, Gilda de Mello
e Souza examina as teorias estéticas, os textos programá-
ticos, a obra poética, o trabalho do colecionador de obras de
arte, o teórico da cultura brasileira, sempre sobre o fundo
da familiaridade com o itinerário biográfico de seu primo,
que atravessou diversos dilemas, crises e conflitos inte-
riores. A complexidade dessas múltiplas linhas analíticas
que se cruzam multiplica-se muito com a grande afinidade
entre a autora e Mário de Andrade no que concerne ao estilo
do trabalho crítico e das perspectivas da reflexão estética.
Assim, no ensaio “O professor de música”, ao expor
esquematicamente a estética de Mário de Andrade, tudo pa-
rece levar-nos a crer que, até certo ponto, a autora faz suas
as teses expostas, como tentaremos mostrar ao longo deste
escrito. Vejamos como é definida a estrutura da manifes-
tação musical segundo Mário de Andrade nas palavras de
Gilda: “São quatro as entidades que compõem a manifes-
tação musical: o criador, a obra-de-arte, o intérprete e o ou-
vinte”11. Uma vez exposta essa estrutura de quatro termos,
Gilda insiste no fato de Mário de Andrade militar especifi-
camente contra o privilégio atribuído ao criador, especial-
mente na tradição romântica do gênio criador em contacto
imediato com o Absoluto (pensemos no Heinrich von Ofter-
dingen de Novalis que, a contrapelo do Wilhelm Meister de
Goethe, com tudo o que implicava de concessão ao realismo,
faz a totalidade do Mundo – inclusive o leitor do livro...
– ser absorvida pela imaginação produtiva do poeta). À di-
vinização do criador opõe-se a ênfase nos demais termos:
a obra, o intérprete e o ouvinte. Não só a obra está “acima”
do criador que só nela pode esperar atingir sua “integridade
14 Ibidem, p. 26.
14
Assim, no texto “O professor de música”, buscando si-
tuar historicamente o compêndio sobre Estética Musical15,
Gilda desenha o duplo itinerário de Mário de Andrade de
1922 a 1928 (esboço que será refinado de perspectivas di-
ferentes e de crescente complexidade nos ensaios seguintes)
E, para fazê-lo, começa com uma obra-prima de iconologia
(ainda uma vez, saper vedere!) tão brilhante que nada deixa
a desejar em relação às análises de obras pictóricas como,
por exemplo, as de João Câmara Filho, Gregório Gruber e
Rita Loureiro: trata-se de um estudo comparativo de duas fo-
tografias e de duas posturas de Mário de Andrade – na fo-
tografia dos professores do Conservatório Dramático e Mu-
sical de São Paulo e na do almoço comemorativo da Semana
de 22. Digamos: dois horizontes (ou duas “situações”, dois
“mundos”) opostos, onde se mostram duas faces de Mário de
Andrade, cada uma figurando o ponto de partida de uma das
duas jornadas divergentes que se iniciam: “A primeira fo-
tografia fixa os professores do Conservatório no almoço em
que comemoram a promoção do companheiro mais jovem. A
imagem é convencional e respeitosa, desde a colocação dos
figurantes, que se distribuem de acordo com a idade e o me-
recimento”16 . Na outra fotografia os modernistas mostram-se
espontâneos e à vontade: “A distribuição dos retratados é ca-
sual, não se sente nenhuma preocupação de pose na atitude
dos corpos”17. No contra-ponto entre essas fotografias, a aná-
lise desentranha dois códigos opostos, duas formas diferentes
do habitus (para retomar a expressão que Panofsky tomou
da escolástica) que filtram, cada uma à sua maneira, o so-
cius e o cosmo, ao mesmo tempo em que exprimem, segundo
o mesmo paradigma, a própria subjetividade. São pormenores
puramente formais (modelos de roupas, suas combinações do
claro e do escuro) que permitem dar a ver a diferença entre
esses dois modos de ser-com-outrem e de exprimir-se: a dis-
posição dos figurantes (ordenados segundo uma hierarquia
ou livremente agrupados), a cor e o corte das vestes (todos de
preto, no mesmo estilo, ou diferentes estilos, cores, tecidos:
da lã mesclada ao veludo cinzento, etc...), a postura corporal
(posição vertical “à espera de servir” ou liberdade e varie-
dade postural, espontaneidade das mãos que se posicionam
diversamente, sem constrangimento) etc...
A presença de Mário de Andrade nos dois grupos re-
vela a cisão presente no início de sua carreira a partir da
17 Ibidem, p. 16.
19 Ibidem, p. 25.
16
quero mais saber de brasileirismo de estandarte [...] Meu es-
pírito é que é por demais livre para acreditar no estandarte.
E por aí você já vai percebendo quanto me sacrifico em mim
pela arte de ação que me dou, que me interessa mais, tem
maior função humana e vale mais do que eu. Mas agora a
ação já está feita e o que carece é a contra-ação porque o
pessoal engoliu a pílula e foi na onda com cegueira de car-
neirada. Confesso que quando me pus a trabalhar pró-bra-
silidade complexa e integral (coisa que não se resume como
tantos imaginaram no trabalho da linguagem) confesso que
nunca supus a vitória tão fácil e o ritmo tão pegável. Pegou.
Eu estou disposto a dedicar minha vida pro trabalho. Bas-
taram uns poucos anos. Tanto melhor: vamos pra frente! ” 20.
Nesta carta, paradoxalmente, o êxito da iniciativa re-
volucionária dos modernistas é descrita quase como uma de-
cepção (foi tão fácil!). Mas, sobretudo, aponta para uma nova
fase, para a passagem da ação para a contra-ação. Que sig-
nifica tal virada? Na gênese da Poética, significa a passagem
a um novo estilo de poesia, mais elevado e meditativo, que
culminaria na extraordinária “Meditação sobre o Tietê” es-
crito às vésperas da morte. Estilo meditativo já que se ex-
prime, por exemplo, no poema “Louvação da Tarde”: “Este
último caso é o da “Louvação da Tarde”, onde aparece um
traço importante de Mário de Andrade: a realização do novo
pela fidelidade à tradição. Lendo esses admiráveis decassí-
labos brancos, pensamos quase insensivelmente em alguns de
nossos poetas do passado e nos poetas ingleses ‘dos lagos’,
sobretudo Wordsworth, aos quais Mário se refere implicita-
mente na simples adoção desse tipo de poema”21. Acrescen-
temos que aí temos apenas uma das vertentes da nova fase
que se manifesta tanto no “devaneio do caminho” como no
“devaneio do repouso”, nas expressões que Gilda de Mello e
Souza toma de empréstimo a Gaston Bachelard. Ou na com-
binação dos dois devaneios no poema que exprime a pas-
sagem do movimento vertiginoso à paz da imobilidade está-
tica, do repouso final ou da paz absoluta, como aquela que se
exprimia na experiência do intérprete e do ouvinte ideais da
música, que parece transcender todo tipo de conflito ou de
inquietação, na comunicação e na transparência totais.
Aparentemente o devaneio do repouso não atinge essa
transparência final e a redenção musical parece estar além
do alcance da poética. É o que talvez se mostre tanto no
poema “Noturno de Belo Horizonte” como no “apólogo” do
“moço comido de maleita” de O turista aprendiz. A paz final
a ser atingida não seria uma forma de doença, no entregar-
20 Ibidem, p. 18-9.
21 Ibidem, p. 30.
18
rece ser a conclusão de Gilda: “Mas a meu ver, a chave desse
trecho misterioso cuja compreensão exige não só uma leitura
alternativa, mas um conhecimento da biografia intelectual
de Mário de Andrade, está na imagem do último verso. Pois
não são as águas polidas, onde os rios vêm desaguar, já sem
forças, que estão de cabeça para baixo, é o poeta que, pos-
tado à sua margem, cansado da travessia, inseguro, assim
divisa a própria imagem, debruçando-se sobre as águas –
onde busca um valor, uma certeza”23
Trata-se da encarnação de Narciso, mas de um Nar-
ciso incapaz de enunciar, como o de Ovídio, “Iste ego sum!
sensi; nec me mea fallit imago”24 , já que só é capaz de neu-
tralizar sua própria imagem por uma espécie de adorme-
cimento ou de embriaguez. Com o abismo entre eu e sua
imagem, o para-si e o para-outrem, permanece a “bi-vitali-
dade” de que fala Gilda e de que o poeta só pode tentar des-
fazer-se através da fuga, da viagem ou do muro de obras
de que se cerca como colecionador. A viagem, em primeiro
lugar, originariamente iniciada como busca da redescoberta
do Brasil e de si mesmo como ser unitário, parece só cul-
minar na reunificação graças à redução da existência ao
nível inferior do “êxtase da sensibilidade”... É o que parece
estar expresso em carta a Manuel Bandeira, da qual Gilda
cita o seguinte trecho: “O êxtase vai me abatendo cada vez
mais. Me entreguei com uma volúpia que nunca possuí à
contemplação destas coisas, e não tenho por isso o mínimo
controle sobre mim mesmo. A inteligência não há meios de
reagir nem aquele poucadinho necessário pra realizar em
dados ou em bases de consciência o que os sentidos vão re-
cebendo. Estou ganzlich [completamente] animalizado”25. Um
êxtase em que a imagem invertida do próprio rosto ou a di-
visão entre o eu e o contra-eu parece dissolver-se não numa
unidade superior, mas como uma espécie de queda ou de do-
ença. Como diz literalmente Mário de Andrade em crônica
citada por Gilda: “Assim a obsessão de minha vida, não é o
acesso de febre. Nem no acesso de febre se resume a filosofia
da maleita [nós sublinhamos, - B. P. Jr.], com o perdão da
palavra. Está claro que o meu desejo é mais elevado. Quero,
desejo ardentemente é ser maleitoso não aqui, com traba-
lhos a fazer, com a última revista, o próximo jogo de futebol,
o próximo livro a terminar. Desejo a doença com todo o seu
ambiente e expressão, num igarapé do Madeira com seus ja-
24 Ovídio, As Metamorfoses, livro III, 463 “Esse sou eu! percebo; já não
me engana mais a minha imagem”.
26 Ibidem, p. 67.
27 Ibidem, p. 65.
20
gistra. Ficha. Recolhe.”28 A figura de Narciso é substituída
pela do colecionador, cuja coleção garante uma decifração do
outro, uma mais fina representação do Brasil e, ao mesmo
tempo, um muro protetor em torno da subjetividade incerta
de si mesma. De retorno da viagem, Narciso pode finalmente
repousar: “está ali, bem protegido, o mundo de que necessita:
dócil, ordenado, ao alcance da mão e do olhar. Já não é pre-
ciso travar a cada passo o duro corpo-a-corpo com as coisas,
com o outro, com o real; agora basta ficar atento aos sinais
e desentranhar das formas, das estruturas, as complexas re-
lações de significação. Pois não acumulou visando o lucro,
como um marchand, ou status, como um novo rico, mas
para chegar mais perto do Homem e do mundo. Para que um
dia, olhando a coleção, ele se reconhecesse, pudesse refazer o
grande puzzle de sua vida, de sua época. O colecionador des-
cansa na coleção”. Mas essa reconciliação final não é com-
pleta e não elimina (voltando à teoria das quatro instân-
cias da Estética de que partimos) a precariedade do criador
e a ilusão da docilidade e do caráter ordenado das formas. O
rosto do criador e a “autonomia incontrolável das formas”29
só podem revelar seu segredo para nós, espectadores ou lei-
tores, de qualquer modo o último termo onde se realiza ple-
namente a obra de arte. É o que parece sugerir a bela con-
clusão que Gilda de Mello e Souza dá a seu ensaio “O cole-
cionador e sua coleção”: “Fechado no mundo que criou, feito
à sua imagem e semelhança, ele continuará se interrogando; é
de seu feitio interrogar-se. Deixemos, pois, que Narciso con-
temple desencantado a própria imagem. Indiferente ao aceno
persistente de seu gesto, desviemos dele nosso olhar, para ir
descobrindo à nossa volta, no que recolheu com paciência e
semeou com paixão, o rosto verdadeiro que ele não soube, ou
não ousou divisar”.
III
Depois de acompanhar a linha sinuosa pela qual Gilda
de Mello e Souza percorre os diversos níveis da obra literária
e teórico-crítica de Mário de Andrade, talvez seja útil apro-
ximarmo-nos mais de seu estilo e do núcleo de seu pensa-
mento, com o contraponto entre os ensaios consagrados ao
autor de Macunaíma e sua análise do cinema italiano, espe-
cialmente em seu ensaio “Variações sobre Michelangelo An-
tonioni”. É essencial, como disse no início deste texto, o que
28 Ibidem, p. 43.
22
Notemos que, na entrevista, Gilda começa por marcar
uma leve divergência das interpretações sugeridas pelo en-
trevistador em suas perguntas iniciais, tanto no que con-
cerne ao caráter autobiográfico do filme, quanto no que
refere à importância, nele, da questão da política. No que
concerne ao primeiro ponto, opõe o caráter essencialmente
autobiográfico de um filme como A Morte em Veneza ao
filme de Visconti como obra de imaginação (que nem por
isso deixa de estar impregnada por temas que se entre-
laçam também com a vida do Diretor); no que concerne à
dimensão política, insiste no fato de que ela é muito menos
presente neste filme do que em filmes anteriores como La
terra trema, Rocco e seus irmãos e O Leopardo31. O essencial
é a contraposição entre duas formas de vida: a da família
caótica e irregular que invade a intimidade do protagonista
e a de sua própria família, ordenada e aristocrática, crista-
lizada no quadro que pende na parede. Também a relação de
simpatia que liga o protagonista à figura do jovem interpre-
tado por Helmut Berger passa pela cumplicidade entre con-
naisseurs, que são capazes de se entender na discussão da
datação e da autoria de um quadro antigo. Nesse entrecru-
zamento é o tema da morte que emerge, tanto no caso do
jovem rebelde como (e sobretudo) da morte antecipada pelo
velho colecionador, sem esquecer da morte do mundo social
e cultural em que se formou e que constitui a única atmos-
fera em que pode respirar.
Mas que ligação pode haver entre este filme e Blow-up
onde, segundo a declaração explícita de Antonioni, trata-se
de festejar o mundo contemporâneo e a expansão, o refina-
mento da tecnologia que o caracteriza? Não é apenas o tema
do artista e sua consciência infeliz ou a do colecionador
que permite a passagem do pólo de Mário de Andrade ao
pólo do cinema italiano: deixando de lado a conexão evi-
dente com o protagonista de Conversation piece, em Blow-
up, Thomas junta as fotografias que tira sem cessar, como
Mário de Andrade juntava as peças de sua coleção. Como
o escritor brasileiro, Thomas também “grafa, fotografa, re-
gistra, recolhe”. O que nos importa todavia, no ensaio sobre
Antonioni, é a maneira pela qual aponta para o ponto cego
do criador, que se revela nas entrevistas em que o Diretor de
Blow-up procura revelar sua intenção e o significado de sua
obra (embora ele mesmo confesse: “O meu negócio é contar
histórias, narrar com imagens, nada mais”, marcando a di-
ferença das funções do artista e do crítico ou do intérprete).
31 Cabe marcar aqui a observação feita por Gilda, na referida entrevista,
do caráter “pessoal” de sua interpretação, ligada à natureza quase “apolí-
tica” de sua personalidade. Trata-se de uma pista a ser explorada na parte
final deste texto.
24
lise dos sentimentos, dominante nas primeiras obras, passa
com o correr do tempo para o segundo plano e, à medida que
o amor se esgarça, o protagonista tende a substituir a re-
lação íntima e corpórea que mantinha com o mundo – como
Aldo, o operário, em O grito (Il grido) – pela relação mental
e quase abstrata que em Blow-up, por exemplo, liga Thomas
à sociedade moderna. Por outro lado, se examinarmos como
os personagens centrais masculinos se distribuem no elenco
das profissões, veremos que eles se afastam, gradativamente,
das escolhas tradicionais para aderir às oportunidades ofe-
recidas pela tecnologia do presente. Assim, com a exceção do
protagonista de A noite, que é escritor, e representa um pe-
queno desvio da dominante, eles serão sucessivamente pintor
(As amigas), arquiteto (Aventura), engenheiro (Deserto ver-
melho), corretor de valores (O eclipse) e por fim fotógrafo
(Blow-up). Será que Antonioni quer significar com esta pro-
gressão a vitória triunfal da técnica?”34.
No começo de sua descrição da curva desenhada pela
evolução da filmografia de Antonioni, Gilda parece tender,
de início, a responder afirmativamente à pergunta que aca-
bamos de citar. Com efeito, é verdade que a estrutura básica
permanece inalterada ao longo de todos os filmes de An-
tonioni, sempre centrados numa busca invariavelmente li-
gada a uma morte. Mas tudo se passa como se a exploração
dos conflitos entre carreira e afeição, sucesso profissional
e integridade artística, evidente nas primeiras obras, fosse
progressivamente apagada, permitindo a montagem de uma
nova perspectiva que privilegia uma relação técnico-cogni-
tiva com o mundo, que deixa de lado a análise das oscila-
ções dos sentimentos e dos conflitos intra e inter-pessoais.
Os personagens centrais deixariam progressivamente de pri-
vilegiar a tradição artística e os valores do humanismo para
fazer o elogio da tecnologia triunfante da segunda metade
do século XX.
Antes de entrar na análise de Blow-up, que é o tema
central do ensaio, Gilda descreve essa mudança de óptica,
passando brevemente por três filmes anteriores: A aventura,
O eclipse e Deserto vermelho. No primeiro desses filmes, na
busca de Ana desaparecida, Sandro revela o segredo que o
habita: o desencanto ou a tormenta de um arquiteto que não
ignora sua nulidade ou sua falta de integridade. É na seqü-
ência da cidade de Nota que o arquiteto exprime a experi-
ência pungente do abismo que separa o esplendor do barroco
do que há de trivial e efêmero em sua própria obra: “Que
liberdade extraordinária. Era com isso que eu sonhava...”.
Logo em seguida temos a cena em que a dolorosa descoberta
34 Ibidem, p. 149.
38 Ibidem, p. 156.
26
guem as ampliações de suas fotos. Sem drama, esse profis-
sional está perfeitamente adaptado ao mundo em que vive,
ligado de maneira eficaz com o mercado sempre aberto a
seu trabalho (embora não integralmente separado do mundo
da arte, na medida da ligação entre fotografia e pintura ou
mesmo do “parentesco” entre o fotógrafo Thomas e o pintor
Bill 39 ). Mas não é certo que Thomas, fascinado pelo mundo
dos objetos, não se envolva em relações dramáticas com ou-
tras pessoas. Gilda sublinha a dramaticidade extrema da re-
lação entre o fotógrafo e suas modelos, permeada de hosti-
lidade e de erotismo, como transparece em três seqüências.
Na primeira, indiferente, o fotógrafo abandona suas modelos,
que estão “imobilizadas e de olhos fechados”40, sem que elas
percebam, tratando-as, assim, como se fossem coisas. Na se-
gunda, estabelece uma relação conflituosa – sado-maso-
quista – com as duas meninas que assediam o fotógrafo em
busca de prestígio e que terminam por ele assediadas de
modo violento. Na terceira, bem mais complexa, a relação
do fotógrafo com sua modelo culmina numa alusão à posse
amorosa (com Thomas que monta sobre Veruschka) onde se
mesclam desprezo e intenção de profanação. Oculta na trama
ou nas dobras da narrativa, a meditação sobre as ambigüi-
dades da relação erótica permanece presente, ao contrário
das declarações explícitas de Antonioni.
Meditação sobre a ambigüidade e as contradições das
relações inter-humanas que está presente no filme, onde
ainda uma vez se cruzam amor e crime, como na obra ante-
rior do cineasta. É o que observa Gilda ao dizer: “o avesso
do amor é, muitas vezes, o crime”. Aqui está apontado o
ponto cego do criador: “Assim, ao contrário do que era afir-
mado na entrevista, Blow-up se refere insistentemente ao
amor, mas para sublinhar sempre o aspecto mecânico, des-
carnado, frágil, anormal (de voyeurismo) e mesmo crimi-
noso, que ele pode assumir no mundo contemporâneo”41. Do
mesmo modo, a perfeita adaptação técnica ao mundo, a mul-
tiplicação do poder cognitivo permitido pelo refinamento
da técnica fotográfica, parece ser acompanhada por uma
cegueira de Thomas, que perdeu completamente o modo de
ser do homem-de-ar-livre e só pode ver através das reprodu-
ções fotográficas e de suas mil ampliações. Como diz Gilda
de Mello e Souza: “Já não enxerga mais o mundo a olho nu,
está perdido entre as coisas, esquecido daquela relação ín-
tima com a natureza do homem-de-ar-livre, das crianças,
39 Ibidem, p. 158-9.
40 Ibidem, p .159.
41 Ibidem, p. 162.
43 Ibidem, p. 167.
28
para o alto, focalizando-o de cima, numa tomada aérea”44 .
De qualquer maneira, na passagem da primeira para a se-
gunda seqüência, marca-se o desvio em relação à aparente
vocação “realista” do filme. Com os clowns passamos da al-
ternativa entre o espaço-da-natureza e do espaço-da-téc-
nica para a busca nostálgica da utopia da “terra sem males”
no espaço da fantasia. Como o Nepal e o Marrocos que
emergem em Blow-up, numa obsessão permanente, o Qu-
ênia aparecia em O eclipse, a Venezuela em O grito e a Pa-
tagônia em Deserto vermelho. Assim, só podemos concluir
com Gilda de Mello e Souza que: “Todos esses elementos
apontam, paradoxalmente, para uma obra diversa da que
ele projetou realizar, demonstrando que a intenção do
criador é precária diante da autonomia das formas”45 . Con-
clusão que converge com aquela a que tendia a análise crí-
tica nos ensaios consagrados a Mário de Andrade.
IV
Depois de percorrer de maneira perfunctória dois
exemplos da atividade exegética de Gilda de Mello e Souza,
resta voltar a atenção, como anunciado desde o início deste
texto, para os efeitos filosóficos desse trabalho a despeito da
“despretensão teórica”46 que ostentam. E começo endossando
uma frase do ensaio já citado de Otília Beatriz Fiori Arantes,
que afirma, descrevendo a sinuosidade do procedimento crí-
tico de Gilda: “Pois é nesse vai e vem entre a pintura, sua
história e a realidade que se move a nossa autora – utili-
zando permanentemente e ao mesmo tempo relativizando as
lições dos mestres da escola de Warburg”. O que interessa é
aprofundar o sentido dessa ligação de certo modo ambígua
com a referida Escola: que significa aqui relativizar? Para
fazê-lo, parece útil comparar os textos “epistemológicos” de
Erwin Panofsky com a concepção de arte e da experiência
estética a ser desentranhada das entrelinhas dos ensaios de
Gilda de Mello e Souza.
Detenhamo-nos, para esse fim, especialmente no curto
ensaio de Panofsky “Sobre o problema da descrição e da in-
45 Ibidem, p. 170.
48 Ibidem, p. 85.
30
sobre os níveis anteriores, fechando uma espécie de círculo
ao dar a última e complexa forma ao raso sentido fenomê-
nico de que partimos (ou de que parte sempre a percepção
espontânea). O aprofundamento progressivo da análise, que
passa da iconografia para a iconologia, acaba por revelar o
seu caráter circular. Eis a aporia a ser dissolvida: essa circu-
laridade não seria viciosa, implicando um petitio principii?
É claro que, em cada um dos níveis, a instância corretiva
visa neutralizar a pura projeção dos pré-juizos subjetivos. O
que não impede que, na sua totalidade, o movimento inter-
pretativo permaneça circular em sua essência 49.
Em seu artigo de 1933, Panofsky tem fresca na me-
mória a lembrança da polêmica entre Heidegger e Cassirer
(seu amigo, que também passou pela Escola de Warburg) e
é obrigado a distanciar a idéia da forma necessariamente
circular da interpretação da circularidade da hermenêutica
do autor de Ser e Tempo50. Esse é o tema da quarta e úl-
tima parte de seu artigo sobre descrição e interpretação: Pa-
nofsky começa por citar o trecho de Kant e o Problema da
Metafísica, onde afirma que é preciso ultrapassar a super-
fície do texto (não limitar-se a repeti-lo ou glosá-lo), que é
necessário ir “além da formulação textual, [tornar visível
– B.P. Jr.] o que Kant procurou trazer à luz com a sua fun-
damentação; mas isto, Kant não foi capaz de dizê-lo (...). É
claro que toda interpretação precisa necessariamente fazer
uso da força para arrancar do que as palavras dizem o que
elas querem dizer”51. Sem negar a necessidade desse uso da
força, Panofsky busca dar-lhe um sentido diferente do hei-
deggeriano52 . Assim, no caso de Kant, nosso autor recorre,
sem citá-lo, a Cassirer. Faltaria a Heidegger a instância cor-
retiva que “já está dada na facticidade histórica”, que nos
impede de forçar o texto, o limite (a separação entre formas
históricas diferentes de pensamento) que proíbe a projeção
retrospectiva de categorias ausentes no passado. Projeção re-
trospectiva que seríamos tentados fazer, por exemplo, lendo
52 Ibidem, p. 103, onde uma referência a Edgar Wind permite-lhe dar nova
versão ao círculo hermenêutico que afasta o perigo do arbítrio interpreta-
tivo em que Heidegger parece mergulhar.
53 Ibidem, p. 108.
32
gião, arte e ciência se sucedem como formas do espírito que
tendem à universalidade da Razão. Tendência que Pierre
Bourdieu leva ao limite, introduzindo na obra de Panofsky
mais do que um “grão” do “estruturalismo” então em moda
na França, chegando mesmo ao exagero de aproximá-la da
gramática generativa e transformacional de Chomsky. Não
seria melhor ligá-la à “gramática” de Wittgenstein, em tudo
oposta à gramática generativa e transformacional, por sua
recusa de reduzi-la à uma forma lógica ou a um cálculo,
por dar-lhe uma dimensão mais pragmática do que sintá-
tica ou semântica (por sua ênfase na dimensão do uso como
campo do sentido), e sobretudo por fazer dela um instru-
mento de ampliação do campo de visão, escada que permite
chegar à Übersicht (visão de sobrevôo ou, simplesmente,
visão geral?). Ligando a empresa de Panofsky à de Saus-
sure, Bourdieu nos diz no último parágrafo de seu Pos-
fácio: “Erwin Panofsky mostra aqui de forma brilhante que
só pode fazer o que faz sob a condição de saber a cada mo-
mento o que faz, pois as operações, tanto as mais humildes
como as mais nobres, da ciência valem o que vale a consci-
ência teórica e epistemológica que acompanha essas opera-
ções”. É bem essa aproximação entre a análise das obras de
arte e os métodos das hard sciences que jamais encontra-
remos na obra de Gilda. Aliás, se não estou redondamente
enganado, é o que ela mesma diz obliquamente contra essa
tendência no texto seguinte, da nota 6 de seu ensaio sobre
Antonioni: “É curioso que o método adotado por Thomas,
no estúdio, se aproxima daquele que, segundo Moles, a te-
oria da informação gostaria de propor aos filósofos como
síntese de uma atitude estruturalista e uma atitude estética.
Levando em conta que ‘perceber é perceber formas’ a teoria
da informação proporia decompor o retrato do universo em
pedaços de conhecimento, visando, primeiro, fazer o levan-
tamento de um repertório e, em seguida, recompor um mo-
delo, que seria o simulacro desse universo, aplicando nessa
tarefa as regras de assemblage ou interdição”. Numa pa-
lavra, uma estética construída da perspectiva de um olhar
mecânico.
Na verdade, estamos diante de um duplo problema:
1) como é possível fazer um uso tão rico de tradições crí-
ticas como a da escola de Warburg, sem comprometer-se
com a abstração das filosofias e epistemologias a que estão
ligadas?; 2) como é possível aclimatar as boas tradições
da Estética européia no contexto brasileiro, sem trair, ao
mesmo tempo, a teoria de origem e o novo campo de apli-
cação? Na verdade, não é possível responder a essas duas
questões separadamente, sem transitar, com todo o vagar
34
cepção da filosofia que privilegia a dimensão do acesso ori-
ginário pré-científico56 ao mundo, onde a visão57 ganha no-
vamente a importância que perdera desde Platão. Ou ainda
em Bachelard que, passando da reflexão epistemológica a
uma espécie de “fenomenologia” da imaginação, acaba por
dar à última a função de raiz da totalidade da Filosofia.
Numa palavra, filosofias onde a Arte e a Estética se mos-
tram como forma privilegiada de acesso ao próprio coração
da Filosofia.
Com esses elementos, podemos esboçar o que poderí-
amos chamar de hermenêutica de Gilda de Mello e Souza.
Nela, é claro, é reconhecida a circularidade da interpretação,
mesmo na forma mais evidente da projeção de escolhas do
intérprete, como é reconhecido na entrevista sobre Conver-
sation piece, no uso da expressão “interpretação pessoal”.
Como também é reconhecida na expressão inventar a rea-
lidade, do texto citado há pouco e que já servira de ponto
de partida deste ensaio. Mas, é claro, não se trata de algo
como um “teste projetivo”, onde a obra interpretada fun-
ciona como um espelho onde o intérprete só é capaz de ver
a si mesmo e suas próprias escolhas. Pois o projeto interpre-
tativo não só mobiliza instâncias ou instrumentos “corre-
tivos” (à maneira dos hermeneutas em geral e de Panofsky
56 No caso de Wittgenstein, o plano secundário da epistemologia é acom-
panhado por um olhar sobranceiro lançado sobre a ciência, como é visível
na seguinte frase que manifesta a expectativa, como que um desejo da
“Zerstörung eines grässlichen Übels, der ekelhaften, seifenwässringen
Wissenschaf (manuscrito. 131, de 19/VIII/1946, incluído nas Vermichte
Bemerkungen); traduzindo: “...destruição desse mal horrível, dessa
lavagem nauseabunda que é a ciência” . Ou numa outra, em que reformula
a famosa expressão de Goethe nos seguintes termos: “‘Die Weiseheit ist
grau.,’Das Leben aber und die Religion sind farbenreiche (manuscrito 134,
de 27/VI/1947, incluído nas Vermichte Bemerkungen”); traduzindo: “ ‘A
sabedoria [no sentido de saber teórico, ciência – nota de B. P. Jr] é cinza’.
Mas a vida e a religião são ricas de cores”. É preciso sublinhar que o
conceito de religião, para Wittgenstein, está indissociavelmente ligado aos
conceitos de estética e de ética: tais conceitos formam um todo indissoci-
ável, ao contrário do que ocorre na filosofia de Kierkegaard, que distingue
os níveis da estética, da ética e da religião, que sucedem em ritmo ascen-
cional. No caso de Merleau-Ponty, é desnecessário sublinhar sua insis-
tência sobre a prioridade da percepção sobre as hipóteses e os modelos
construídos pela ciência. Lembremos a primeira frase do ensaio “O olho
e o Espírito” onde, para contrastar ciência e percepção estética, diz: “A
ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las.” Ou, mais positiva-
mente, as seguintes frases: “Assim, a pintura nos reconduzia à visão das
próprias coisas. Inversamente, como que por uma troca de favores, uma
filosofia da percepção que queira reaprender a ver o mundo restituirá à
pintura e às artes em geral seu lugar verdadeiro, sua verdadeira dignidade
e nos predisporá a aceitá-las em sua pureza” (Cf. M. M.-Ponty, Conversas
– 1948, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2004, p. 56).
Janeiro de 2006
36
Notas sobre o método crítico de Gilda
de Mello e Souza1
Otília Beatriz Fiori Arantes *
38
por hábito penetrar em coisas concretas através de ele-
mentos pouco notados ou desapercebidos, dos detritos, dos
refugos”.3
Um método ensaístico desses, que por assim dizer
parecia não ir direto ao ponto, aparentemente incapaz de
captar o essencial ou a estrutura geradora de uma obra, por
isso mesmo desconcertava os seus pares, intrigados com
tanta despretensão teórica. E no entanto o fascínio de suas
aulas e escritos derivava em grande parte desse poder divi-
natório das “pistas” que ia levantando. Carlo Ginzburg usara
a imagem de um tapete sendo tecido diante de nossos olhos.
Talvez, ou melhor, com certeza, se possa acentuar
ainda mais a originalidade do método crítico de Gilda de
Mello e Souza com a ajuda dos elementos que, não por
acaso, ela soube tão bem reconhecer em funcionamento na
imaginação sempre acesa de um Paulo Emílio para o detalhe
revelador de toda uma cinematografia.4 Repassando os argu-
mentos, mais do que apenas destaca, a rigor está se identi-
ficando com o relativo desinteresse do crítico pelos grandes
temas e pelas teorias em voga (aliás, marca registrada de
todo o grupo Clima), para voltar-se para o não consagrado,
os mestres menores, no caso em exame o nosso cinema aca-
nhado e rudimentar, em sua fase primitiva, buscando aí,
no contato direto com a obra, decifrar o que ela, mesmo na
sua expressão mais tosca e incipiente, ou por isso mesmo,
e através de meios escassos, como em geral ocorria na fil-
mografia brasileira nascente, tinha a dizer sobre o mundo,
o nosso “mundo tímido e arcaico”. A seu ver, mais do que
a expressão de um temperamento pouco convencional, uma
visão muito refletida e incrivelmente próxima do método in-
diciário, cuja aclimatação brasileira está nos interessando
destacar. Centrado na observação do que parece não ter im-
portância, justamente – relembra então explicitamente seu
repertório pessoal – o modo de ver as obras que dera origem
na crítica de arte do oitocentos à figura do “perito”, no sen-
tido de “conhecedor”, como o definiu Lionello Venturi 5:
aquele que “sabe confrontar e distinguir, de modo crítico, a
escola, a personalidade, o estilo do artista”, que é capaz de
“um exercício crítico minucioso, paciente, centrado na ob-
servação das características mais insignificantes”.
3 Citado por Ginzburg em Mitos,emblemas, sinais, São Paulo, Cia. das
Letras, 1989, p.147.
5 Num capítulo de sua História da Crítica de Arte, citado e comentado por ela.
40
dedica um capitulo especial à demolição dos preconceitos
contra os connaisseurs. Aliás é graças a uma observação
muito característica de Wind que Ginzburg encontra seu ca-
minho para identificar isso que chama de novo “paradigma
indiciário”: “qualquer museu estudado por Morelli adquire
imediatamente o aspecto de um museu criminal”.
Sabemos aliás, segundo conta o mesmo Wind – re-
produzindo um comentário do próprio Freud – que Mo-
relli, então assinando com o pseudônimo de Ivan Lermolieff,
um especialista russo traduzido para o alemão por Johanes
Schwartze (respectivamente anagrama e tradução do seu
verdadeiro nome, Giovanni Morelli) provocou uma imensa
revolução nos museus ao questionar a autoria de várias
obras (46 só no museu de Dresden).
Se é possível opor, como faz Gilda, a peritagem de
Morelli às grandes teorias estéticas do início do século, em
parte empenhadas em discutir o belo ideal – tanto faz se
clássico ou medieval – não há como deixar de associar sua
maestria técnica (ainda na esteira de Edgar Wind) à valori-
zação da escrita aforismática e fragmentária dos primeiros
românticos como Novalis e os irmãos Schlegel, sem falar na
tradição do esboço, cultivado como um gênero autônomo,
enfim, a tudo que está ligado na história da pintura à crise
do academicismo e ao nascimento da pintura moderna: dos
grandes românticos franceses, passando pela Escola de Bar-
bizon, aos impressionistas. Sem contar que foram eles, como
insistia nossa autora, que fizeram avançar a história da arte,
que souberam tanto descobrir um Vermeer quanto corrigir
uma série de atribuições falsas e reputações duvidosas.
Ainda segundo Ginzburg, se o método pericial não
chega a ser científico e depende muito do “faro, do golpe de
vista, da intuição” do crítico, algo tem a ver com a pesquisa
científica e os dados documentais que vão reaparecer em
outras áreas, das ciências humanas nascentes à literatura,
especialmente no romance dito policial. Assim não é nada
casual, continua, o parentesco entre Morelli, dissecando
orelhas e mãos para identificar a autenticidade das telas,
com um outro médico escritor, daquele mesmo século, Conan
Doyle, cuja semelhança chegava por vezes à coincidência de
recorrer justamente à observação minuciosa de tais órgãos
como prova do crime. Em “A caixa de papelão”, por exemplo,
num certo momento Watson se surpreende com a atenção de
Sherlock Holmes fixando o olhar nas orelhas de uma certa
personagem, semelhante às que, decepadas, tinham sido en-
viadas numa caixa a uma pobre senhorita, levando-o a con-
cluir que se tratava de uma parente da vítima...
Paralelo com o trabalho do detetive, que, diga-se de
passagem, não tem em nada o intuito de rebaixar o mé-
42
dores-autores, como Visconti, Antonioni, Fellini, sobre os
quais também escreveu ensaios exemplares. Acontece que
no referido Violência e Paixão, na inepta tradução brasileira
do original inglês Conversation Piece, podemos finalmente
observar em cena, atuando inclusive como o real protago-
nista de um desencontro histórico – no huis clos sufocante
de um ambiente familiar degradado na Itália convulsionada
dos anos 70 – o conoscitore, além do mais colecionador, no
caso, do gênero de pintura inglesa do século XVIII que dá
título ao filme. Com direito inclusive a um lance inusitado
de atribuição, pois o reconhecimento do automatismo au-
toral revelador se deve à compulsão das chamadas telefô-
nicas do ex-agitador meia-oito encalacrado e cujas ambições
estudiosas rifadas comovem o Professor, não por acaso ins-
pirado na figura e ambiência do erudito Mario Praz. Mesmo
renunciando a comentar a entrevista de Gilda, não resisto
à simples menção de uma observação sobre o espírito indi-
cial das roupas: o contraste entre a extrema vulgaridade dos
modos, a elegância perfeita da vestimenta, sem falar na be-
leza fria da máscara facial da Condessa Brumonti (Silvana
Mangano) compõem propriamente a figura de um monstro,
mais ou menos à imagem e semelhança – subentendamos
– dos sombrios personagens conspirando nos bastidores da
cena política italiana da época. Isso dito, fujo igualmente da
tentação de me aventurar no comentário de sua versão da
filmografia de Antonioni – para que se tenha uma idéia do
fio da meada a ser puxado, basta recordar a cena das am-
pliações fotográficas no Blow-up, e tudo o que daí se segue
em matéria de meditação estética em chave “indiciária”.
Ainda que de relance, não posso todavia deixar de
mencionar um derradeiro desdobramento do Espírito das
Roupas, as notas inéditas sobre Fred Astaire que fecham seu
último livro publicado em vida, A idéia e o figurado – outro
título sugestivo como ele só. Recordo que Gilda sempre
pensou a moda como um fenômeno estético situado, em
função dos enquadramentos sociais que a definem, no entre-
cruzamento das artes ditas maiores – como a pintura, a lite-
ratura, etc. – e das menores, entre elas a dança; conjugando
gestos e atitudes pela mediação social das roupas, como arte
rítmica incomparável. Aqui o lugar de sua admiração irres-
trita e originalíssima por Fred Astaire, a seu ver o maior
bailarino do século XX, o grande dançarino da vida mo-
derna. Uma modernidade afirmativa e positiva, se é que se
pode falar assim, e sonhar com suas promessas nos anos 30.
Uma aposta enfim do “homem ancorado no cotidiano, sem
nostalgia nem ressentimento”, a ponto de inverter o sinal
opressivo do traje que o século XIX consagrara e “Baude-
laire designava como uniforme de papa-defuntos: a casaca
44
no Museu Lasar Segall sobre os precursores imediatos dos
Modernistas. 8 Recuando ainda mais no tempo dos artistas
ali representados, chama a atenção para o fato de que, com
Almeida Júnior, ingressara pela primeira vez na nossa pin-
tura o “homem brasileiro”, mais exatamente, na pessoa do
caipira paulista.9 Não um figurante a mais, como o índio
dos cronistas, o negro dos viajantes estrangeiros, ou ainda
a pequena legião retórica de iracemas e moemas de ateliê,
imobilizadas na pose convencional da ninfa neoclássica ou
romântica. Nem confinamento da sempre demandada singu-
laridade nacional ao registro escrupuloso da aparência ex-
terna. É que a seu ver, o mérito incontestável de Almeida
Júnior não deriva do simples fato de ter pintado o caipira
com escrúpulos de etnólogo, porém reside nalgum modo iné-
dito de notação visual que lhe permitiu surpreender a ver-
dade profunda de um novo personagem.
Não se tratava assim de um mero assunto mas a rigor
de uma estrutura, mais exatamente, uma “estrutura rela-
cional”, recorrendo ainda uma vez aos esquemas de Gom-
brich. Algo como a conversão da figura em forma, do caipira
em caipirismo imanente. Mais exatamente: a verdade dos
gestos da nossa gente. Foi isso que Gilda viu, e até onde po-
demos saber, ninguém mais antes dela. Sem exagero, acui-
dade de observação que ela compartilha com o artista.
O caipira de Almeida Júnior não é portanto um figu-
rante a mais, um tipo pitoresco entre tantos outros ditados
pela força da percepção convencional, justamente porque
nele se deixa ver pela primeira vez, para além da casca tra-
dicional da aparência externa de repertório, a dinâmica dos
gestos. E vice-versa: o regionalismo inédito de Almeida Jú-
nior é a revelação de que a verdade profunda de um perso-
nagem a um tempo real e imaginado denominado “homem
brasileiro” se expressa de preferência nas assim chamadas
(no caso, pelos antropólogos, especialmente Mauss) técnicas
do corpo.
Veja-se uma tela de mocidade como O Derrubador,
pintada em Paris em 1871. Nela, as técnicas de corpo do
brasileiro (e nossa autora está convencida de que elas
existem e podem ser identificadas) trariam também a marca
do Realismo francês, muito presente na massa eloqüente do
rochedo ou na veemência monumental, por exemplo dos pés
46
formados no espírito dos modernistas, em especial Mário de
Andrade, egressos da Faculdade de Filosofia, e preocupados
em detectar os lineamentos da formação de uma arte bra-
sileira, manter sem mais a orientação “imanentista” de um
Gombrich, pelo contrário, não havia esquema da tradição
européia que não fosse devidamente submetido a uma es-
pécie de aclimatação crítica reveladora dos termos em con-
fronto. Como se sabe, providência elementar que valia todo
um programa.
Familiaridade quase biográfica com a cultura do cai-
pira paulista ao mesmo tempo que com toda a grande tra-
dição artística nacional e estrangeira; observação sistemá-
tica da coreografia teatral11; constatação de que a moda,
dependendo do gesto, à medida que se recompõe a cada mo-
mento de seu jogo com o imprevisto, é a mais socializada
das artes: esses os elementos que talvez tenham contribuído
mais de perto para a cristalização da sensação plástica de
que o essencial do “homem brasileiro” deveria ser procurado
no seu movimento corporal.
É razoável supor, dada a importância do livro sobre a
moda oitocentista na organização das idéias de Gilda acerca
das relações entre arte e sociedade, que nesse caso parti-
cular tenha prevalecido o filtro da moda apreendida como
uma arte rítmica. E a ser assim, porque não pensar em con-
tinuidade, imaginando as telas regionalistas de Almeida Jú-
nior como o primeiro capítulo de um inventário sistemá-
tico de algo como uma ritmia dos gestos brasileiros? Esse
um possível nexo a escandir a linha evolutiva da figuração
plástica da experiência nacional. Vale para o caboclo amo-
lando o machado, picando o fumo, empunhando a espin-
garda, ponteando a viola, negaceando a caça, o que vale
para o elegante que demonstra a todos como está afeito aos
usos da sociedade movimentando os complementos impres-
cindíveis do vestuário – luvas, chapéus, bengalas. E no
entanto, é inegável, num e noutro encontramos a mesma
ritmia de gestos altamente codificada, tanto no matuto que
reproduz posturas ancestrais, quanto na desenvoltura do
dandy por mimetismo social.12
Ou ainda, numa surpreendente combinação de ambas
– uma vez extirpado miraculosamente o viés mimético de
nossas elegâncias de empréstimo –, vislumbrada na apa-
rição, na curva de um rio amazônico, da figura mítica do
maleiteiro, no episódio famoso do Turista Aprendiz, no qual
11 Também tradutora e autora teatral bissexta – cf. Costa, Iná Camargo,
“Ensaismo teatral no Brasil”, em Discurso, SP, n.26, 1996.
12 Mas tudo isto desenvolvi com mais detalhes, em co-autoria com Paulo
Arantes no artigo citado.
14 Ibidem, p. 67.
15 Ibidem, p. 65-66.
48
apresentados como antagonistas, o que não deixa de ser ver-
dade, Gilda no entanto preferiu destacar naquelas duas per-
sonalidades tão diversas a demonstração viva do poder da
imaginação artística na interpretação do país: com efeito,
a geração que entre 1935 e 1940 saía da universidade, num
momento muito especial entre o legado das vanguardas e a
chegada prestigiosa dos especialistas, aprendera a pensar o
Brasil confiando precisamente naquele poder de revelação
da experiência estética. Quanto ao caso particular do autor
de Casa Grande e Senzala , Gilda recorda que também ele se
impôs à sua geração “pela maneira inovadora de interpretar
o país através dos pequenos indícios”.16
Novembro-Dezembro de 2005
16 Ibidem, p. 55.
Luiz Roncari*
52
Ásia, África e das Américas, nas áreas que mais sofreram e
se empobreceram relativamente com a globalização, quando
não houve um regozijo ostensivo, como em segmentos do
mundo islâmico, houve uma satisfação interna. Entretanto,
este fato foi pouco aventado nem as circunstâncias dos vi-
timados o permitiam. O que não justifica que se continue a
ignorá-lo. Se ele fosse reconhecido e se perguntasse pelas
suas causas, o Ocidente próspero talvez tivesse se repac-
tuado com a tradição de crítica ao maniqueísmo e de rela-
tivização do Bem e do Mal, e continuasse aprendendo com
as observações de Maquiavel ao Príncipe, sobre o ponto de
vista e a importância de se reconhecer a visão do outro. 4
Isto poderia levar a identificar melhor as causas históricas
dos atos desesperados e não atribuir tudo à loucura dos ho-
mens ou à malignidade natural do opositor.
Mas a reação foi a de localizar o mal – do mesmo
modo que os que explodiram as torres localizavam nelas
a fonte dos seus males – e procurar extirpá-lo militar-
mente. Esta foi a segunda aposta do Ocidente próspero,
particularmente dos EUA: a da vitória militar. A primeira
já havia sido feita e era mais geral, foi a opção pela polí-
tica do “condomínio fechado”: cercar as ilhas de prosperi-
dade beneficiadas com a livre circulação da informação e
do capital financeiro e protegê-las das massas miseráveis
de trabalhadores, impedidas de circularem tão livremente
quanto o capital. Para estas valeria todo tipo de barreiras e
muros, o que equivalia à opção por um mundo duplo e de-
sequilibrado: um de homens iguais, os de dentro, e outro
de desiguais, os de fora. O aproveitamento do enorme exér-
cito de reserva criado no mundo periférico só se daria na
medida das próprias necessidades das nações prósperas, e,
quando ele ameaçasse sair do controle, ficavam legitimadas
as incursões cirúrgicas precisas, podendo se aproveitar das
vantagens militares que os avanços tecnológicos lhes pro-
porcionavam. Creio que não é preciso citar aqui todas as
formas utilizadas para se impedir a livre circulação dos ci-
dadãos nas ilhas de prosperidade, tanto entre as nações,
como internamente, em cada uma delas. A segunda aposta
foi a de que o poder dominante dessa ordem não deveria ser
de modo algum confrontado: assim que surgisse um sinal
54
formar a palavra “guerra” num eufemismo: lançar de na-
vios foguetes teleguiados e de aviões inatingíveis a dez mil
metros de altura bombas “inteligentes”, sem risco nenhum,
é simplesmente destruição. Não é à toa que se fala hoje em
“reconstrução” do Iraque, porque não houve combates, mas
devastação. Só depois de anunciado o fim da guerra é que
se iniciaram as lutas de resistência à ocupação. O passo se-
guinte deverá ser o massacre, com o lançamento das novas
bombas de quinhentas toneladas sobre as cidades populosas,
com a justificativa de abrigarem resistentes/terroristas. E o
segundo, se não tem nenhuma condição de enfrentar mili-
tarmente o inimigo no campo de batalha, leva a destruição
para as cidades, onde está a vida civil por excelência, e com
os meios da própria vida civil e ordinária, como aviões de
carreira, bombas sujas e fertilizantes agrícolas, mas cujo re-
sultado esperado é apenas o estrago e o número de vítimas
civis que causam.
O contraste civilizatório entre as duas forças pode
ser apreciado nas imagens de suas mulheres (do que um se
aproveita para estigmatizar os costumes do outro): um as
descobre inteiramente e o outro as cobre demais. O Ocidente
reifica as suas ao reduzi-las a corpos de silicone, a mane-
quins de aparatos de consumo e a fontes de imagens à venda
como qualquer mercadoria. E o Islã cobre as suas como fan-
tasmas, com lenços, véus e burcas, para serem percebidas
apenas como almas, nas vozes, nos olhos ou nos rostos, por
onde o espírito se expressa. São dois fundamentalismos nos
quais um esmaga o espírito e o outro o corpo. O mesmo
acontece com a ética guerreira e as imagens masculinas:
de um lado, o legionário das terras ocupadas, um bruta-
monte com o seu corpo protegido por tipo de equipamento
e usando armas sofisticadas para destruírem o do inimigo;
e, de outro, o homem-bomba suicida, que revela um des-
prezo pelo corpo nunca visto, para enviar a alma do adver-
sário ao inferno e a sua ao paraíso, onde gozará dos corpos
de setenta e duas virgens. Nesse enfrentamento, o equilíbrio
entre a vida do corpo e a do espírito tão procurado pela arte
e cultura humanísticas fica comprometido pelo choque entre
os dois fundamentalismos: o do mercado da materialidade e
o da tradição religiosa espiritualista. Entre eles também fi-
camos nós e é este o nosso tema: o do homem emparedado e
da ação desesperada.
56
No poema, o aspecto mais forte da cidade, onde todos
os opostos se encontram e se digladiam, é o de uma bara-
funda de vozes distintas, quase isoladas, que cifram as suas
intenções, de modo a dizer e esconder o verdadeiro sentido
do que é dito. Isto dá ao leitor a impressão de estar apre-
ciando um carrossel delirante de personagens e vozes um
tanto caricatas. Todas elas misturam referências cultas e do
presente da cidade conflitiva, as quais precisam ser reco-
nhecidas e identificadas para serem entendidas. São estas
as primeiras exigências feitas ao leitor. Nesse canto do caos
produzido pelos negócios, desde o início todos os valores se
invertem, como o próprio inferno, que antes ficava nas re-
giões inferiores, onde Orfeu, Dante e Enéias tiveram que
descer para alcançá-lo, agora ele ascende e joga por terra
o céu. Desse modo, o Guesa, o herói mítico indígena, para
chegar ao inferno, tem que subir:
(X,1)
(X, 35)
(Democratas e Republicanos)
[1ª voz] – É de Tilden a maioria;
É de Hayes a inauguração!
[2ª voz] = Aquém, carbonário
Operário;
Além, o deus-uno Mamão!
(Comuna;)
[1ª voz] – Strike! do Atlântico ao Pacífico!
[2ª voz] = Aos Bancos! Ao Erário-tutor!
Strike, Arthur! Canalha
Esbandalha!
Queima, assalta! (Reino de horror!)
(X, 37 e 38)
58
New York, rouba a nunca acabar,
O Rio, antropófago;
= Ofiófago
Newark... tudo pernas pra o ar...
(X, 71)
60
impotência: “não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Ma-
nhattan”.10 Por quê? O que explicaria o desejo desesperado
do poeta? O poema está no livro Sentimento do Mundo, de
1940, que reúne principalmente a sua produção da segunda
metade da década de 30. 11 É quase um consenso da crítica
que esse livro significou, apesar das continuidades, também
uma mudança grande na poesia de Drummond. 12 Nele, o
poeta revela a insatisfação com a poesia anterior, a sua e a
de outros, como ele diz nos versos de “Mãos dadas”: “Não
serei o cantor de uma mulher, de uma história,/ não direi
os suspiros ao anoitecer, paisagem vista da janela,/ não dis-
tribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,/ não fugirei
para as ilhas nem serei raptado por serafins” (grifo meu).
A imagem de ilha para se referir à poesia, recorrente no
livro, ele já havia usado na “Ode no cinqüentenário do poeta
brasileiro”, dedicado a Manuel Bandeira: “Debruço-me em
teus poemas/ e neles percebo as ilhas/ em que nem tu nem
nós habitamos/ (ou jamais habitaremos)/ e nessas ilhas me
banho” (grifo meu). O poeta se considera assim fora e dentro
da poesia, não vive a vida no seu interior, mas é nela que se
lava do encardido de fora. Ainda aqui a poesia seria enten-
dida como ilha, lugar de isolamento, fuga e refúgio. Quando
o poeta se propõe a abrir-se para o que se passa no mundo
externo, “sentimento do mundo”, para as suas asperezas,
está claro que não é essa poesia-ilha que ele quer13. O pro-
blema do poeta (e, de certa forma, da melhor literatura da
época) é como dar à poesia essa nova dimensão, abrir-se às
questões do mundo externo prosaico, sem deixar de ser po-
esia e continuar valendo pelas suas qualidades intrínsecas.
Reside nisto também a tensão presente nesse livro e da qual
fala John Gledson14 (1981, pp. 115). Se o poeta recusa que a
sua poesia seja apenas a expressão de si, de seu eu e mundo
interior, e quer que ela fale também de sua forma de apre-
ensão do mundo exterior, a primeira pergunta a ser feita,
62
à esse tipo de expressão) 16 e mais uma imposição angus-
tiante dos fatos, como um “presente” incômodo e inevitável.
O poema “Elegia 1938” está entre dois outros poemas.
O primeiro se refere ao passado, “Lembrança do mundo an-
tigo”, e o segundo ao futuro, “Mundo grande”. Eles estão
localizados como duas paredes temporais que impedem o
poeta de fugir daquele presente condenatório. “Lembranças
do mundo antigo” fala de um passado/paraíso perdido: um
jardim da infância colorido, um tanto fantástico, “o céu
era verde”, “a água era dourada”, onde todos viviam tran-
qüilos ao redor de Clara e cheios de esperanças: “As crianças
olhavam para o céu: não era proibido”. As únicas preocupa-
ções desses imaginados seres felizes eram as corriqueiras de
todos os dias: o calor, a gripe, os insetos, o horário do bonde,
as cartas que demoravam a chegar e a carência de não se
poder ter sempre vestido novo. Porém a grande diferença é
que naquele paraíso cotidiano perdido havia “jardins” e “ma-
nhãs”, como os espaços e tempos da vida e da esperança:
“Mas passeava no jardim, pela manhã!!!/ Havia jardins,
havia manhãs naquele tempo!!!” Com todas essas exclama-
ções, o poeta quer na verdade chamar a atenção do leitor
para o seu cotidiano presente e noturno, carente das pers-
pectivas daquele passado no qual havia jardins e manhãs.
“Mundo grande”, que vem logo depois de “Elegia 1938”,
é um poema confessional, no qual o poeta diz, logo no pri-
meiro verso, que o seu coração “não é maior que o mundo”,
e no segundo, num verso curto, reafirma incisivo: “É muito
menor”. Diante disso não há o que comparar, resta apenas
mostrar o que torna um tão pequeno e outro tão grande. É
o que ele faz ao longo do poema, uma espécie de viagem de
reconhecimento de um mundo e outro, do interno e do ex-
terno, e admite que o isolamento no primeiro o condena a
sérias limitações, ainda que isso lhe possibilite a vivência no
rico universo da poesia, aqui novamente metaforizada como
ilha: “Outrora viajei/ países imaginários, fáceis de habitar,/
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando
ao suicídio./ Meus amigos foram às ilhas./ Ilhas perdem o
homem”. Nesse mundo já resolvido, onde o caos foi ordenado,
ficava pouco a fazer, tornava a vida fácil, mas infecunda,
o que equivalia ao suicídio. Já no outro mundo não, nele a
vida era problemática e todos os conflitos estavam candentes
e pedindo solução: “Entretanto alguns [amigos/poetas] se
salvaram e/ trouxeram a notícia/ de que o mundo, o grande
mundo está crescendo todos os dias,/ entre o fogo e o amor”.
Se o acervo poético é imenso e rico, ele é também circuns-
64
Esse presente é o próprio tempo do “mundo caduco”, que não
se comunica com o passado, que se perdeu, e não semeia
nenhum futuro, pois as ações nele carecem de sentido: “as
ações não encerram nenhum exemplo”. Portanto, é o tempo
do emparedamento e do sujeito reduzido às suas rasas ne-
cessidades, mecânicas e rotineiras, assim confessadas me-
lancolicamente a si próprio: “Praticas laboriosamente os
gestos universais,/ sentes calor e frio, falta dinheiro, fome e
desejo sexual”. Um mundo de zumbis, mortos-vivos, tanto os
“heróis”, que resistem e se protegem da fraca “neblina” com
“guarda-chuvas de bronze” ou se refugiam em “sinistras bi-
bliotecas”, como os homens comuns iguais a ele, também
inconformados, mas que aceitam o seu destino e, por isso,
preferem a noite e o sono, a pequena morte, à morte-viva
do dia da rotina e do império das coisas e das necessidades:
“Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra/ e
sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer”.
Nesse presente, a vida é morte, viver é morrer, por isso, é do
seguinte modo que ele compreende a vida presente: como
existir entre mortos, “caminhas entre mortos”; transferir a
vida para um futuro impossível, “conversas/ sobre coisas do
tempo futuro”; e transformar o espírito numa mercadoria
banal, “negócios do espírito” (grifo meu). Até a literatura,
o momento que deveria ser o da extrema consciência, se
tornou num desvio sem sentido da hora presente, “estragou
tuas melhores horas de amor”, e a comunicação fecundante
entre os homens e os espíritos, quando mediada, “ao tele-
fone”, se esterilizou, “perdeste muito, muitíssimo tempo de
semear”. Para o poeta, aceitar o presente e acreditar passi-
vamente no futuro é o mesmo que confessar a sua derrota:
“Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota/
e adiar para outro século a felicidade coletiva./ Aceitas a
chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição”.
No entanto, o poeta adquire consciência de que houve
um outro tempo, um passado, como o do poema “Lembrança
do mundo antigo”, que, embora perdido e um tanto ideali-
zado, é importante para ele poder demarcar o seu presente. E
que pode haver ainda um outro tempo, um futuro possível,
e que está nas mãos dos homens criá-lo. Isso lhe permite a
consciência da historicidade (ou transitoriedade) do pre-
sente, também uma criação humana e gerida por humanos
que perderam o controle da criatura, um mecanismo que os
reduz à impotência e à condição de zumbis que não sabem
mais interpretar o livro da natureza, o que poderia trazer
alguma esperança: “Mas o terrível despertar prova a exis-
tência da Grande Máquina/ e te repõe, pequenino, em face
de indecifráveis palmeiras” (grifos meus). É esta atitude do
poeta diante dos fatos do mundo presente certamente melan-
66
também pela sensação de emparedamento e impotência que
motiva vontades e ações desesperadas.18 No poema ela tem
razões históricas e humanas bem mais fundas e complexas
do que muitos, hoje, gostariam de admitir. E se a sua poesia
não é uma ilha de refúgio, o que ele recusa, mas o lugar
onde trabalha os sentimentos dos mundos, interno e ex-
terno, e chega à consciência de si, o poeta nos diz também
como essa peste está bem mais disseminada no espaço e no
tempo do que se pensa. Se temos alguma coisa a aprender
com Drummond, com o espanto da sua consciência, é que
ilhas, condomínios fechados, bombas e a força militar não
bastam para conter a melancolia e a ação desesperada, nem
estas definem os limites da ação poética.
18 Para se ter uma idéia de como na época do poeta esse sentimento não
era individual, mas também uma “praga” bem mais generalizada, ver este
trecho de um artigo, de início dos anos 40, de Oswald de Andrade: “E
senti, mesmo antes de ser politizado na direção do meu socialismo cons-
ciente, que era viável a ligação de todos os explorados da terra, a fim
de se acabar com essa condenação de trabalharmos nos sete mares e nos
cinco continentes e de ser racionado o leite nas casas das populações
ativas do mundo, para New York e Chicago exibirem afrontosamente os
seus castelos de aço, erguidos pelo suor aflito e continuado do proletariado
internacional”. Andrade, O. de. Ponta de Lança, Rio, Civilização Brasileira,
1972, 3a ed., p. 52.
70
do esforço de compreensão e definição da nação brasileira,
o engenheiro português e sua obra ajudam a problematizar
um período já tão estudado de nossa história intelectual, as
décadas de 1910, 1920 e 1930, apontando para a diversidade
de projetos em curso naquele momento. Afinal, a busca dos
elementos fundantes de uma nação, a constituição de uma
identidade capaz de particularizá-la no confronto com o
outro, as tentativas de compreensão de sua inserção inter-
nacional e as possibilidades futuras eram preocupações re-
correntes para os intelectuais que no começo do século XX
se engajaram nos mais diversos movimentos nacionalistas4 .
Se as preocupações eram comuns, as respostas ou saídas
por eles elaboradas eram diferentes e até divergentes, o que
poderia ser explicado levando-se em conta os parâmetros
a partir dos quais elaboravam suas visões de mundo, o ar-
senal analítico que manejavam e a missão social e política
que cada um deles se atribuía. Identificar e analisar esses
parâmetros em Ricardo Severo pode ajudar a ampliar a
compreensão do debate artístico daquele período, tornando
mais complexa e matizada a leitura da produção arquitetô-
nica eclética, neocolonial ou moderna.
Dessa forma, para compreender as idéias de Severo,
bem como precisar o sentido de suas propostas e atuação
pública, é preciso recuperar algo de sua biografia e itine-
rário intelectual, buscando sua inscrição no tempo e na so-
ciedade que lhe foi dado viver. De modo geral, os textos es-
critos pelo engenheiro português sugerem a existência de
dois momentos em sua vida: o primeiro em Portugal, entre
1884 e 1908, no qual domina quase que exclusivamente
o interesse pela arqueologia; e o segundo no Brasil, entre
1908 e 1940, quando o engenheiro diversifica suas ativi-
dades, dedicando-se à luta republicana, à valorização do
legado luso no Brasil, à unificação e fortalecimento da co-
lônia portuguesa no país e à arquitetura. Se a nítida demar-
cação desses dois períodos corresponde a uma mudança sig-
nificativa nos focos de atuação de Severo, ela também per-
fila uma linha de continuidade marcada pelo compromisso
com as tradições lusitanas e as idéias raciais-evolucio-
nistas. Seus escritos e projetos, imbuídos de tom polêmico e
programático, eram característicos de um nacionalista ator-
mentado pelas transformações geopolíticas internacionais e
pelo modo como estas incidiam sobre as realidades brasi-
72
cessivas crises, cujo foco central era a própria Monarquia,
desgastada por sua orientação econômica – que privilegiava
a atividade agroexportadora em detrimento do pequeno
produtor rural e da indústria nacional –, pela incapacidade
de administrar os territórios coloniais e por uma sensível
queda no nível de vida da população, sobretudo entre as
camadas mais pobres e a pequena e média burguesia.10
O quadro de crise generalizada desembocaria em uma
série de protestos contra a Coroa11, que ecoavam um dos
temas centrais dos debates políticos-culturais da Europa
deste período: a decadência e a salvação.12 Em Portugal,
esse será o tema dileto do movimento republicano que, em
consonância com outros movimentos de redenção em curso
no continente, via na busca das origens das nações, dos
traços primitivos das raças fundadoras e das formas ances-
trais de governo, o único caminho possível de retomada da
grandeza nacional frente às ameaças internas e externas
de desestruturação.13 Era a partir dessa investigação das
origens que se acusava a artificialidade da Monarquia e o
declínio do império português, afirmando-se a República
como única possibilidade de salvação nacional, seja por
constituir o ápice da evolução humana no âmbito político,
seja por emanar diretamente do caráter étnico e, portanto,
da natureza de seu povo.14
O núcleo de oposições republicanas à monarquia, que
foi gradualmente se constituindo desde meados do século
XIX, tinha como canais principais de divulgação e propa-
ganda os meios de comunicação de massa e as instituições
de pesquisa e ensino superior em Coimbra, Lisboa e Porto.15
Mais do que um simples projeto político, o movimento repu-
blicano em Portugal se configurou como um ideário social,
espiritual e cultural que fomentava uma visão de mundo
marcada pelo anticlericalismo, cientificismo, evolucionismo
74
ele tomou contato com as pesquisas de Nery Delgado (1835-
1908) 22 e de Carlos Ribeiro (1813-1882) 23, cuja influência
seria decisiva em sua vida profissional; segundo, porque o
evento ocorreu no ano em que se festejava o centenário da
morte de Luis de Camões, cujas comemorações ensejaram o
fortalecimento do até então incipiente movimento republi-
cano português.24
Severo ingressou na Academia Politécnica do Porto25
em 1884, formando-se em Engenharia Civil de Obras Pú-
blicas em 1890 e em Engenharia Civil de Minas em 1891.
Não se sabe se constava destes cursos uma introdução à
pesquisa arqueológica, ainda que em Portugal a matéria
tenha se vinculado ao estudo de minas, geologia e ciências
naturais26 . Também não se pode afirmar ao certo se a opção
de Severo pelo curso de Minas foi a extensão natural de
um interesse prematuro pela arqueologia, anunciado desde
o congresso de 1880. Percebe-se, entretanto, que nos anos
em que freqüentou a Academia, a matéria assumiu a prio-
ridade entre as suas atividades acadêmicas e profissionais e
que seu interesse pela disciplina era compartilhado com um
grupo de intelectuais republicanos portuenses.27 Com esses,
desenvolveu uma série de iniciativas em que se manifesta o
22 Sobre Nery Delgado ver a biografia escrita por Ana Carneiro no site do
Instituto Camões, http://www.instituto-camoes.pt/cvc/ciencia/p37.html e
no site do Instituto Geológico e Mineiro de Portugal http.//www.igm.pt/
document/centros/museu_geologico/biografias/nery_delgado.htm
23 Sobre Carlos Ribeiro ver a biografia escrita por Vanda Leitão no site do
Instituto Camões, http://www.intituto-camoes.pt/cvc/ciencia/p38.html e
Severo, Ricardo. “Carlos Ribeiro”. Revista de Ciências Naturais e Sociais.
Porto, 1897/98, v. V, fasc. 20, p. 153-187.
24 Catroga, Fernando. Op. cit.
25 Sobre a Academia Politécnica do Porto ver: Santos, Cândido
dos. Universidade do Porto – raízes e memória da instituição. Porto,
Universidade do Porto, s.d.; Rodrigues, Maria de Lurdes. Os Engenheiros
em Portugal: Profissionalização e Protagonismo. Oeiras, Celta Editora,
1999 e os sites Engenharia do século XX http://www.engenharia.com.pt; e
Universidade do Porto/ Faculdade de Engenharia http://sifeup.fe.up.pt.
26 Martins, Manuela. “Martins Sarmento e a arqueologia”. Revista
Guimarães. Guimarães, 1995, n. 105, pp. 127-138. Casa Sarmento http://
www.csarmento.uminho.pt/docs/ndat/rg/RG105_08.pdf.
27 Faziam parte deste grupo Júlio de Matos, Wenceslau de Lima, Basílio Teles,
Alfredo Xavier Pinheiro, João Barreira, Artur Augusto da Fonseca Cardoso,
Antonio Augusto da Rocha Peixoto, entre outros. Severo, Ricardo. “Origens
da nacionalidade brasileira”, 1930, tomo I, fasc. I, pp. 58- 62; Severo, Ricardo.
op. cit., 1932, Ricardo Severo, “Recordando” – oração pronunciada no Centro
Republicano Português de São Paulo, em 31 de janeiro de 1937. Revista
Portuguesa. São Paulo, 1937, tomo I, fasc. 5, p. 372-375.
76
Outros dois exemplos importantes da atuação do grupo
de Severo são: a Revista de Ciências Naturais e Sociais32 e a
Portugália. Materiais para o estudo do povo português. Fun-
dada em 1890 como o “principal instrumento de ação” da
Sociedade Carlos Ribeiro, a Revista de Ciências Naturais e
Sociais era dirigida por Rocha Peixoto, Ricardo Severo33 e
Wenceslau de Sousa Pereira Lima (1858-1919) 34 , dedicando-
se a publicação de estudos sobre paleoetnologia, etnologia,
etnografia, geologia, botânica, zoologia e arqueologia, a
maioria deles dedicados à pré-história da nacionalidade
portuguesa. A revista circulou por oito anos, sendo seu en-
cerramento justificado em nome de uma nova publicação
que a suplantaria em alcance e envergadura: a Portugália.
A maioria dos colaboradores da Revista de Ciências
Naturais e Sociais está presente na Portugália, que mantém
e amplia o projeto editorial anterior. Em consonância com
o discurso nacionalista do grupo de republicanos ao qual
pertencia, Severo afirmava que o objetivo central da publi-
cação era o de levantar os “verdadeiros elementos da vida
e do caráter nacional, a nossa razão de ser e da nossa his-
tória”, o “substractum da nacionalidade”, para inaugurar
“um novo período de renascença dentro da própria naciona-
lidade, que [era] também a renascença de um velho povo”.35
De volta a Portugal, depois do período de exílio no
Brasil (1891/92-1897/98), Severo lidera a criação da Por-
tugália. Nesta nova iniciativa, o engenheiro era ao mesmo
tempo proprietário, diretor e editor da publicação, tendo es-
crito dezenas de artigos, quase todos dedicados à arqueo-
logia. Nos que abordava as origens da nacionalidade por-
tuguesa, o engenheiro seguia as trilhas abertas por Ribeiro
e Sarmento, defendendo que do ponto de vista mesológico
78
Laços de família e atuação profissional
Ricardo Severo veio ao Brasil pela primeira vez em
1891/92 37, engrossando a massa de imigrantes portugueses
que, entre o século XIX e XX, tiveram o país como des-
tino 38 . Representante bem sucedido das camadas médias
portuguesas ligadas ao comércio e à indústria, é possível
que sua opção tenha sido animada pela vinda de outros
republicanos igualmente perseguidos pela revolta do Porto
de 189139 ou que tenha pesado a amizade com o colega dos
tempos da Academia Politécnica, o engenheiro brasileiro
Carlos Villares. Tanto nessa primeira passagem quanto na
posterior estadia definitiva no Brasil, chama a atenção
a diversidade e prosperidade alcançada pelo engenheiro
nos investimentos mais variados, comércio, construção
civil, mercado financeiro e imobiliário 40 . Surpreendente
também, desde a primeira estadia, sua rápida, sólida e
marcante inserção, não só no âmbito protegido da colônia
portuguesa, como nos meios sociais, empresariais e cultu-
rais paulistanos.
Severo se preocupou em promover, acima de suas
convicções políticas, a união entre os imigrantes portu-
gueses ao redor de uma única instituição, a Casa Portu-
80
dicadas às ciências naturais, à etnografia, à arqueologia e
à pré-história. O artigo é importante por confirmar a pre-
sença do engenheiro português em terras paulistanas a
partir de 1892, e porque sua crítica refletia a atitude po-
lemista e publicista comum ao círculo de intelectuais por-
tuenses ao qual pertencia, apontando ainda o seu envolvi-
mento precoce com a cidade que acabara de o acolher. Além
disso, a polêmica gerada pelo artigo chegou aos ouvidos do
então Secretário de Agricultura, Comércio e Obras Públicas,
Alfredo Maia, que o apresentaria a seu parente e amigo, o
engenheiro-arquiteto campineiro Francisco de Paula Ramos
de Azevedo (1851-1928).45 O episódio lhe renderia um em-
prego como auxiliar no escritório “do já então famoso en-
genheiro-arquiteto” e, ao mesmo tempo, o cargo de chefe da
seção construtora do Banco União de São Paulo, “cuja car-
teira predial era [também] dirigida” por ele46 .
A sociedade entre Ramos e Severo se estendeu por
mais de vinte anos tendo extrapolado os limites do Escri-
tório Técnico F. P. Ramos de Azevedo. Destoante da biblio-
grafia especializada, que insiste na especificidade e auto-
nomia do percurso de cada um deles, parece importante
restabelecer os vínculos entre ambos, ressaltando o ritmo
empresarial que ambos imprimiram à prática profissional
em São Paulo, a carreira e o papel de cada um dos sócios
na sociedade, e os debates e transformações arquitetônicas
em curso na cidade no alvorecer do século XX.
O estudo simultâneo de suas trajetórias mostra que
a biografia de ambos apresenta uma série de coincidências
relevantes. Como Severo, Ramos de Azevedo era filho de
um negociante português, se casou com uma jovem de fa-
mília abastada e influente de fazendeiros paulistas, tendo
ascendido rapidamente à “fina flor” da oligarquia cafeeira.
Projetaria palacetes luxuosos, chegando igualmente a parti-
cipar do seleto circuito de investimentos e intermediação de
contratos, encomendas e favores públicos de toda espécie,
82
de praticamente todas as obras normalmente destacadas pela
bibliografia como de responsabilidade do Escritório Técnico e
notabilizadas pela assinatura de seu fundador: entre elas, as
Secretarias de Agricultura e Fazenda, o Palácio da Justiça, a
Escola Normal, a Escola Politécnica, o Liceu de Artes e Ofí-
cios de São Paulo e de Campinas, a Faculdade de Medicina,
o Quartel da Luz, a Penitenciária do Estado, o edifício dos
Correios e Telégrafos, o Teatro Municipal e uma longa série
de palacetes construídos em Higienópolis e nas avenidas
Paulista, Angélica e Brigadeiro Luis Antônio52 . A afirmação
é problemática pois muitas dessas obras foram construídas
durante a sua primeira estadia em São Paulo – quando ele
ainda não era sócio de Ramos –, outras, iniciadas quando ele
ainda estava em Portugal e outras ainda, terminadas quando
o engenheiro já tinha retornado a capital paulista ou reali-
zadas depois da morte de Ramos.
O que interessa destacar, no entanto, é o sentimento
de Severo de ter sido parte integrante e responsável pelas
obras mais características do Escritório Técnico, cujas tra-
dições dizia procurar manter “com os preceitos [daquele]
grande Mestre da Arte de construir”, pleiteando não apenas
a sua autoria, como a continuidade da obra do engenheiro-
arquiteto campineiro. De certo modo, Severo estava cor-
reto, pois o prestígio alcançado pelo escritório se preservou
mesmo depois da morte de seu fundador em 1928, quando
assumiu a direção do escritório ao lado do sobrinho e genro
de Ramos de Azevedo, Arnaldo Dumont Villares53 e de seu
filho, Antônio Severo. 54 Este acontecimento tão decisivo não
84
dando-lhe um caráter cosmopolita, para muitos, como o
próprio engenheiro, demasiadamente estrangeiro, que Se-
vero se tornou o chefe de fila da arquitetura “tradicional”
no Brasil, de caráter nacional.
Essa aparente contradição entre sua atuação no Es-
critório Técnico e na “campanha tradicionalista”, assim
como as incongruências de seu discurso demonstram que
a questão, de fato, não estava resolvida para Severo. Afir-
mando ter aproveitado a “prestigiosa influência do Escri-
tório Técnico para lançar a “orientação tradicionalista” na
arquitetura”, Severo, de um lado, criticava veementemente
o ecletismo exótico ao meio “racial e mesológico brasileiro”
e por outro, deixava uma porta aberta a esta arquitetura,
considerando-a adequada ao edifício de exceção, aqueles
que, diferentemente da casa, não configurariam a feição
“tradicional” das cidades.59
A incoerência do discurso e da prática arquitetônica
de Severo aponta para a ambivalência do engenheiro na
definição do nacional/estrangeiro, local/universal, tradi-
cional/cosmopolita, mostrando que esta era uma questão
em aberto. Presente na obra de arquitetos como Heitor
de Melo, Archimedes Memória (1893-1960), Francisque
Cuchet, Lucio Costa (1902-1998), Victor Dubugras (1868-
1933) e no discurso de intelectuais como Menotti del Pic-
chia (1892-1988), Monteiro Lobato (1884-1948), Mário de
Andrade (1893-1945), entre outros, esta ambivalência re-
vela o quadro de intensa disputa em torno da construção
da modernidade, universalidade e/ou nacionalidade artís-
tica entre nós naquele momento. 60
86
sem desconsiderar o legado português 66 , tão caro ao nosso
engenheiro. Em evento organizado pelo Clube Português
de São Paulo, em janeiro de 1929, na qual foram entregues
insígnias do Governo Português para Julio de Mesquita
Filho, Roberto Moreira e Nestor Rangel Pestana – princi-
pais acionistas e diretores d´O Estado -, Severo chamava
atenção para o fato do jornal ter sido desde sempre um ve-
ículo aberto para suas idéias, prestando enormes serviços à
colônia portuguesa.67 De fato, entre os anos de 1908 e 1940,
Severo publicou dezenas de artigos naquele jornal68 , que
abrangiam desde temas relacionados à colônia portuguesa e
ao Liceu de Artes e Ofícios até aqueles dedicados especifi-
camente à sua “campanha de arte tradicional”. As suas re-
lações com o jornal, entretanto, não eram apenas profissio-
nais ou intermediadas pela colônia. Severo era amigo pes-
soal de Júlio de Mesquita e Rangel Pestana, projetando para
o primeiro uma residência em “estilo tradicional”, e com ele
compartilhando da companhia do segundo nas diversas ini-
ciativas culturais que desempenharam em torno do jornal69,
como, por exemplo a Revista do Brasil e a Sociedade de
Cultura Artística.
A preocupação d´O Estado com o nacional de modo
geral definiu o caráter de boa parte desta crítica de arte
local em formação70 , fossem elas “de serviço” ou “mili-
tante”, estando presente também na publicação de contos
regionais, como os de Waldomiro Silveira, ou na seção
66 Martins, Wilson. História da Inteligência Brasileira. Vol.VI (1915-1933).
São Paulo, Cultrix/ Edusp, 1978, p. 74.
67 Discurso de Ricardo Severo no referido evento, publicado n’O Estado de
S. Paulo, 27/01/1929.
68 Neves, João Alves das. As Relações Literárias de Portugal com o Brasil.
Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1992, Santos, Paulo. “A
presença de Lucio Costa na arquitetura contemporânea no Brasil”. Rio de
Janeiro, 1960, nota 16.
69 Sobre a casa de Júlio de Mesquita ver Homem, Maria Cecília Naclério.
O Palacete Paulistano e outras Formas Urbanas de Morar da Elite Cafeeira
1867-1918. São Paulo, Martins Fontes, 1996, pp. 233-246.
70 Tadeu Chiarelli divide essas críticas entre crítica de serviço, cujo propó-
sito central era o de informar o leitor acerca das exposições e artistas
presentes na cidade, e a crítica de arte militante, que revelaria “o desejo de
intervir decisivamente na cena artístico-cultural, propondo sua transfor-
mação, sempre a partir de um parâmetro ético, estranho à especificidade
artística – no caso, o forte nacionalismo” e que começaria a ser veiculada
somente a partir de meados da década de 1910. Segundo o autor a partir de
1913 muitas das crônicas de serviço eram escritas por Nestor Rangel Pestana,
redator do jornal desde os primeiros anos do século e seu diretor a partir da
morte de Júlio de Mesquita em 1927. Chiarelli, Tadeu. op. cit.., pp. 69-106.
88
Se das páginas da revista emerge claramente esse de-
sejo persistente de promover uma releitura do país que re-
sultasse numa ação de sentido regenerador ou identitário,
não é possível afirmar que “a proposição do problema, a
maneira de enfrentá-lo e as saídas sugeridas” fossem homo-
gêneas.75 Recuperar a tradição nacional e mais do que isso
uma tradição que sintetizasse o país enquanto nação não
era uma tarefa nada fácil, mas extremamente polêmica. A
questão que despontava nas páginas da revista, tão bem co-
locada por Alceu Amoroso Lima, era a seguinte: “Deve um
povo em plena mocidade prezar suas tradições? Ou, pelo
contrário, esquecer o passado para melhor encarar o fu-
turo?”76
Se alguns propunham veementemente “o esqueci-
mento do passado em prol das tarefas impostas pelo futuro
[, sugerindo] que simplesmente se desconsiderasse o 1500 e
se tomasse a Independência como marco inaugural da nossa
história, negando dessa forma, qualquer sentido ou perti-
nência ao período colonial” outros defendiam apaixonada-
mente as tradições, procurando ao contrário valorizar e re-
dimir nosso passado colonial77. Ricardo Severo e seu culto à
tradição se encaixam perfeitamente neste último grupo.
80 Sobre o liberty e Art Nouveau nestes países ver Curtis, William. “The
search for new forms and the problem of ornament”. Modern Architecture
since 1900. London, Phaidon Press Limited, 1999, pp. 53-71; Frampton,
Kenneth. História Crítica da Arquitetura Moderna. São Paulo, Martins
Fontes, 1997, capítulos 4, 5 e 6; Escritt, Stephen. Art Nouveau. London,
Phaidon, 2000.
81 Raul Lino é contemporâneo de Severo e como ele manteve relações com
o Brasil. Em Portugal era considerado um dos arquitetos portugueses de
maior renome naquele momento a defender “sem hesitações a recuperação
das ‘formas portuguesas’, num percurso ‘nacional’, alternativo à produção
eclética novecentista”. Sobre o tema ver: Gonçalves, José Fernando.
Ser ou Não Ser Moderno. Considerações sobre a Arquitetura Modernista
Portuguesa. Coimbra, Departamento de Arquitetura da Faculdade de
Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, 2002, p.60-68; França,
José Augusto. “Raul Lino e a ‘casa portuguesa’ ”. A Arte em Portugal no
Século XIX. Lisboa, Livraria Bertrand, 1966; Campos, Isis Alexandra
Marques. Raul Lino (1879-1974). A Casa Popular Portuguesa e o seu
Caráter Proletário. Trabalho de disciplina FAU-USP, 2003 (mimeo); Santos,
Paulo Ferreira. Presença de Lucio Costa na Arquitetura Contemporânea do
Brasil. Conferência, 1960, nota 15.
82 Patetta, Luciano. “Los revivals en arquitectura”. ARGAN, Giulio Carlo
et alt. El Passado em el Presente: el Revival en las Artes Plásticas, la
Arquitetctura, el Cine y el Teatro. Barcelona, Editorial Gustavo Gili, 1977,
pp. 129-163 e Argan, Giulio Carlo. “El revival”.ARGAN, Giulio Carlo et
allii, op. cit., p. 7-28.
83 O termo campanha só aparece textualmente no artigo “Da Arquitetura
Colonial no Brasil: arqueologia e arte”, publicado em 7 de setembro de 1922
n´O Estado de S. Paulo, em razão das comemorações do centenário da inde-
pendência do Brasil.
90
desta iniciativa 84 , tanto pelo teor, quanto pelo tom proposi-
tivo que as caracterizam. O levantamento de seus projetos
e textos “tradicionalistas” revela que a campanha em prol
da arte “tradicional” no Brasil se concentrou nas décadas de
1910 e 1920, mas que seu discurso e sua prática extrapolam
os limites temporais como espaciais normalmente definidos
pela bibliografia especializada sobre o neocolonial. Desta
forma, o estudo das relações entre as campanhas tradicio-
nais lideradas por Severo no Porto e em São Paulo, propa-
ladas, pelo próprio engenheiro, se revela fundamental.
Os motivos que levaram Ricardo Severo a lançar sua
“campanha tradicionalista” no Brasil são diversos, mas ab-
solutamente intrincados. Seu interesse pela arquitetura do
período colonial, sua intenção de fazer uma arte “tradi-
cional” brasileira que congregasse o velho e o novo, o por-
tuguês e o brasileiro, sua pretensão de desvendar as origens
da arquitetura brasileira e, através dela, as da nacionali-
dade, eram alinhavados pelo intuito deliberado de valorizar
a herança lusitana. Não parece ser à toa que tanto a ani-
mação quanto o arrefecimento de sua campanha coincida
com o esfriamento de sua proposta associativa luso-brasi-
leira, também levada a cabo entre os anos 1910 e 1920.
O eixo central de sua campanha era a discussão
acerca das origens, desenvolvimento e características da
“arquitetura tradicional brasileira”. Desde suas primeiras
manifestações sobre o tema, o engenheiro tomava as an-
tigas e modestas construções do período colonial como ves-
tígios poderosos de identificação do momento original de
“formação” desta jovem nação, considerando-os tão revela-
dores e dignos de nota quanto haviam sido os antigos fós-
seis por ele pesquisados em Portugal. Atribuindo àquelas
92
participação dos índios, negros e outros povos imigrantes
na construção do mundo colonial e, no fundo, da própria
nação, ainda que, ao se referir a matriz étnica desta arqui-
tetura, reconhecesse a influência romana, árabe, moura e
chinesa. Se com relação aos indígenas, considerava que as
suas manifestações artísticas, “pelo seu caráter e simbo-
lismo original, se prestam a novas expressões estéticas”;
afirmava que estas não seriam, “porém tradicionais, se
bem que caracteristicamente autóctones” e, portanto, estra-
nhas no meio da “família brasileira”86 . Com relação aos ne-
gros, suas referências não passariam de um breve comen-
tário sobre a escravidão, no qual o engenheiro se opunha à
idéia de que esta teria sido no Brasil, pelas mãos dos por-
tugueses, de uma “barbárie” e “crueldade” sem tamanho87.
Quanto aos imigrantes de outras nacionalidades, eram defi-
nidos como “aventureiros” que não teriam se fixado à terra
com o intuito de “constituir uma nova nação, moldada na
sua original matriz étnica”, como afinal haviam feito os co-
lonizadores portugueses.
Partindo da matriz lusitana, Severo traçava a história
da arquitetura “tradicional” brasileira, de sua fundação, de-
senvolvimento, desvirtuamento e retomada, a partir de uma
periodização bastante interessada, que estabelecia quatro
momentos mais ou menos definidos 88 : o primeiro denomi-
nado “Brasil-Colônia”, que ia do descobrimento até o final
do século XVIII, quando experimentaríamos o desenvol-
vimento de uma arte verdadeiramente “tradicional”; o se-
gundo, nomeado “Brasil-Monarquia”, que se inauguraria no
início do século XIX, com o primeiro momento de transfor-
mação e depois de “degenerescência” da arquitetura “tra-
dicional” em função do advento da Missão Francesa, da
fundação da Academia de Belas Artes, mas principalmente
do “triunfo da independência” e do ecletismo; o terceiro,
iniciado a partir de meados do XIX e denominado “Brasil-
República”, no qual a ferida aberta pela independência no
curso “natural” de nossa arquitetura se aprofundaria, esta
arte perdendo totalmente seu cunho nacional; e o último,
em que as tradições eram retomadas dando início “a uma
nova era de RENASCENÇA BRASILEIRA”.
86Idem, ibidem, 1916, pp. 44-46.
87Idem, ibidem, 1917, p. 397.
88 Essa periodização está presente em todos os textos aqui selecionados,
mas é mais clara e explícita nas conferências “A Arte Tradicional no Brasil”
de 1914 e de 1916.
94
em conhecer, estudar e recuperar esse passado, tanto o en-
genheiro português como aqueles que seriam seus compa-
nheiros, inimigos ou críticos intentavam fundar uma ar-
quitetura nacional, presente e futura, que não significasse
a retomada pura e simples do que havia sido realizado an-
teriormente, mas sim sua reinterpretação e atualização. A
convicção de que as origens de nossa arquitetura nacional
moravam no até então desprezado passado colonial era
compartilhada, por exemplo, por personagens tão diversos
quanto os engenheiros Ricardo Severo e Alexandre de Al-
buquerque (1880-1940) 91, o médico e mecenas José Ma-
rianno Filho (1881-1946) 92 , os arquitetos Adolpho Morales
de los Rios (1887-1973) 93, Lucio Costa 94 e Paulo Santos95 ,
os escritores Monteiro Lobato (1884-1948) 96 , Mário de An-
drade 97 e Manuel Bandeira (1886-1968) 98 , entre outros. Cer-
96
nial. Para outros, como Lucio Costa e Paulo Santos, isso só
ocorreria de fato com o advento do moderno.
Outro ponto interessante de confronto se dá com re-
lação à constituição étnica da arquitetura brasileira. Se em
Severo a figura chave era a do colonizador português que no
Brasil se aclimatara reinventando a arquitetura de sua terra
natal conforme o clima e os meios disponíveis, em Mário
de Andrade quem se sobressai é o mulato, especialmente re-
presentado por Aleijadinho e Valentim.103 Ademais, desde a
viagem a Minas com Cendrars em 1924, o crítico vinha de-
senvolvendo o conceito de nacionalismo universalista, a
partir do qual, “podia religar sem constrangimentos a infor-
mação européia de vanguarda com a pesquisa etnográfica,
psicológica e folclórica mais atual”.104 Mário, diferentemente
de Severo, não via o estrangeiro como uma ameaça. Ele o
pensava a partir de sua condição de ser brasileiro e, portanto
com um ponto de vista outro que transformava a informação
que chegava de outros países. Lucio Costa também enfatiza
a contribuição dos negros, índios e mestiços no “amoleci-
mento” da matriz arquitetônica portuguesa, notado por Gil-
berto Freyre em outros campos da vida nacional.105 E como
Mário, seria menos avesso à contribuição estrangeira que o
engenheiro português e Marianno, desde que tal contribuição
fosse bem assimilada.
As coincidências e divergências entre os discursos
destes engenheiros, arquitetos, artistas, escritores e inte-
lectuais, reforça a complexidade e a ambigüidade do debate
acerca do moderno e do nacional no Brasil em curso na pri-
meiras décadas do século XX. Em sua trajetória, Severo pa-
98
A rima nos cantos populares:
contribuições para o rimário brasileiro
Álvaro Silveira Faleiros *
As fronteiras
Estudar um fenômeno como o uso da rima nos cantos
populares do Brasil é uma tarefa gigantesca, porém neces-
sária, devido à sua riqueza e ao desconhecimento do assunto
que ainda impera. Nas linhas que seguem, fazemos um es-
tudo apenas das características presentes na rima da poesia
popular e que não se manifestam na poesia “culta” (de tra-
dição escrita), uma vez que esses traços encontram-se apa-
gados dos tratados de metrificação, assim como dos dicio-
nários de rima, como se o português falado não produzisse
formas próprias de poesia.
Entretanto, muitos desses traços caracterizam parte
importante da poesia cantada no Brasil, manifestação artís-
tica por meio da qual o horizonte da rima e da poesia cons-
tantemente se renova e se amplia. Como já afirmava Erza
Pound1: “A música apodrece quando se afasta da dança. A
poesia se atrofia quando se afasta muito da música” e essa
musicalidade se projeta na voz.
Dessa maneira, nosso estudo visa a catalogar as prin-
cipais contribuições fonéticas2 que se devem, sobretudo, ao
caráter oral dessa poesia. Para tal, é necessário, primeira-
mente, definir o que entendemos por rima.
A rima
Entende-se por rima a repetição, no final dos versos
de um poema, de uma série de sons iguais ou similares. A
rima é, como afirma Chociay3, “um processo de reiteração
fônica que ocorre geralmente, a partir da última vogal forte
de cada verso”. A repetição desse conjunto de sons, segundo
Nóbrega4 , pode se resumir a um único som, consonântico ou
vocálico, ou se estender a um conjunto mais amplo de fo-
* Professor da UnB e Doutor em Letras pela FFLCH-USP
100
tongos existentes em vejo/beijo, acho/baixo, em que a vogal
i desaparece diante das consoantes alvéolo-palatais, já que
o ponto de articulação do i e dessas consoantes é o mesmo e
que resultam nas rimas soantes -ejo e -acho.
A vogal i, entretanto, não se anula quando precede
consoantes anteriores, como nos pares foi-se/doce, preta/
deita, meiga/chega, que são rimas incompletas.
De todo modo, o que nos parece revelador nesse es-
tudo é que, ao debruçar-se sobre os aspectos da fala, Mattos
Câmara Jr. identificou uma série de relações fônicas que
permitem um melhor entendimento das escolhas feitas pelos
poetas que, nos casos acima, procuraram uma reiteração
completa dos sons e não uma nuança fônica ou uma mu-
dança no padrão sonoro, como sugere a grafia.
Ressaltamos, ainda, que há uma diferença importante
entre as semelhanças fônicas existentes em pares como má-
goas/águas, área/ária, vejo/beijo, vou/avô e aquelas que se
encontram em pares como acho/baixo, acabou-se/doce ou
ainda o par rico/oblíquo.
Os quatro primeiros pares são considerados equivalências
fônicas características da língua portuguesa tanto na norma
popular quanto na norma culta, tanto é que nos Dicionários
de Rimas, desde o de Costa Lima, do século XIX, considera-se
essas rimas como “rimas perfeitas”. Os outros três pares – e, so-
bretudo, o último – não são unanimemente aceitos como carac-
terísticos da norma culta, tanto é que não aparecem como equi-
valentes em todos os dicionários de rimas consultados7.
De fato, a questão que se coloca é, a partir de que
norma considera-se a língua e, neste trabalho, indicar as
rimas que constituem-se a partir da fala popular. É, pois,
necessário, inicialmente, indicar as contribuições fonéticas
advindas desse registro.
102
No que se refere às VOGAIS:
• Segundo o autor, “Nos vocábulos esdrúxulos, a tendência
é para suprimir a vogal da penúltima sílaba e mesmo
toda esta, fazendo grave o vocábulo (ridico = ridículo,
legite = legítimo, cosca = cócegas, musga = música)”.
Acrescente-se11 relâmpago-relampo, mármore-marme,
pólvora-porva, pêssego-pesco, além de pássaro-passo, ár-
vore-arve já identificados por Sílvio Romero.
Note-se que, de fato, essa tendência já é encontrada na
formação do latim vulgar. Entretanto, Amaral, fala em su-
pressão da penúltima sílaba, quando, na verdade, trata-se de
supressão de vogais de sílabas postônicas e mesmo de todas
elas, e não necessariamente apenas da penúltima (casos de
síncope e de apócope).
• O grupo vocálico õu (om), “nas palavras bom, tom, som
muda-se em ão: bão, tão, são”12 .
Quanto às CONSOANTES:
• A consoante d cai, quase sempre, na sílaba final das
formas verbais em -ndo, como em anadano, veno, caino e
pôno para andando, vendo, caindo e pondo.
Antenor Nascentes13, mais sistemático que seus ante-
cessores, permite identificar, entre outros, os seguintes pro-
cessos que influenciam os segmentos rimantes:
Quanto às VOGAIS:
• O a pode transformar-se em e: inveja-inveje.
• Há desnasalizações do a (e do e): órfã-orfa, imã-ima,
(viage, vertige, home, onte...)
Já nas SEMICONSOANTES:
• O y postônico, precedendo imediatamente a vogal final, é
absorvido: matéria-matera, história-histora, dúzia-duza,
polícia-puliça, glória-glora, espécie-espece, superfície-su-
perfice, colégio-culejo, necrotério-nicrotero.
• O w é atraído ou absorvido: régua-reuga, estátua-estauta,
tábua-tauba ou taba, nódoa-noda.
14 Marroquim, 1934.
104
r (rima, por exemplo, ir/Brasir), já no Nordeste a rima seria
em i. Procuramos apontar essas distinções na apresentação
dos textos, porém, antes de fazê-lo, é necessário distinguir
os fenômenos fonéticos já incorporados à poesia “culta” da-
queles específicos da fala popular.
106
rista ou de sua interpretação. Entretanto, muitos desses
estudos são hoje as formas conhecidas, reproduzidas, de
cantos populares tornando-se, assim, parte do cancioneiro
popular brasileiro. Para a análise das rimas, deve-se, con-
tudo, considerar outras fontes, como as descrições lingüís-
ticas dos falares regionais.
É, também, necessário verificar que o modo de re-
gistro dos textos varia de folclorista para folclorista. Basileu
Toledo França16 , por exemplo, ao comentar a obra de Ameri-
cano do Brasil, assinala “a maneira inteligente com que foi
elaborada, fugindo ao registro fonético da língua dialetal”;
assim como fizeram os primeiros pesquisadores, dentre os
quais Sílvio Romero. Já Cornélio Pires – considerado por
Mário de Andrade17, um “observador agudo, das poesias e
dos diferentes processos de poética cantada dos caipiras”
apresenta os versos: “conservando-lhes as corruptelas, bra-
sileirismos, defeitos de rima e, muitas vezes, má metrifi-
cação, para não lhes tirar o sabor especial e a cor local”.
Essa variação na forma de registro da poesia cantada
popular faz com que não seja possível fiar-se cegamente nas
transcrições escritas encontradas nos livros, uma vez que, em
um mesmo autor, o modo como as “corruptelas” são escritas
ou destacadas (itálicos, aspas, negritos) variam consideravel-
mente, mesmo em autores como Cornélio Pires. Por exemplo,
na moda “Uma briga no Veado”, há a seguinte estrofe:
A) VOGAIS
Vogais simples
As vogais simples podem ser substituídas ou inver-
tidas, originando rimas como:
108
• ime = ume. Marroquim 25 colhe o exemplo:
No dia que o nego casa / Deve botá seu rijume
As moça é como as navaia / Fino ou grosso tem seu gume
• omo = ome. Em um coco baiano da bacia do São Francisco26:
O rei da casa é o home
O rei da laranja é o gome
• ume = umo. Como no poema “A Caipora”27:
Mais, aí Maria, o phantasma / Veio bater no meu rumo,
Rindo-se muito e dizendo: / Dá-me uma pêia de fumo.
E c’o uma faca afiada / Batendo em mim com seu gumo.
• ude = uda. Assim, no “ABC do povo da Caatinga”28 :
Y – pissilone é letra grega / pra home que estuda ;
gente daquela catinga / já vi cabeça mais ruda ;
pra quem tem atividade / chega hoje, amanhã muda.
Ditongos
O processo mais produtivo envolvendo as vogais é a
absorção do i e do u nos ditongos. Esse processo, na poesia
culta, como assinala Câmara Jr.29, resume-se aos ditongos ie
e uo, em posição postônica. Há, ainda, na poesia popular:
• aulo = alo. Como em “Triste Partida”30 :
Eu vendo meu burro, meu jegue, meu cavalo,
Nós vamo a Sã Palo
Vivê ou morrê.
• ânsia = ança. Num desafio com Neco Martins, o cego Fran-
cisco Sales, por ter desconsiderado o colega, faz mea culpa31:
Colega Neco Martins, / Faltou-me esta lembrança,
Que hoje peço desculpa, / Dessa minha ignorança
• égio = éjo. Como nos versos do piauiense chamado Cão
Dentro32 :
30 Assaré, Patativa do. Inspiração nordestina. Rio de janeiros, Borsoi, 1956, p.5.
110
Pegaram a me aperriar, / Fazendo brabo estrupiço,
Fabião na casa dele, / Esmiuçando por isso,
Mode no fim da batalha / Pude fazê o serviço...
• ória = ora. Fabião das queimadas, descrevendo a vaque-
jada canta 38 :
Dê-me lembrança ao cavalo / Do senhor José Lebora,
Qu’eu sei que é corredô / Pra chegá boi não demora,
Mas porém nas minhas unha / Não pôde cantá vitora...
• ório = oro. Bernardo Cintura, na época em que faltava
troco no mercado, imaginou um caipora governador, Fu-
trica, sobre qual escreveu a seguinte décima 39:
No lugá aonde eu moro / Lastimando a triste sorte,
Tem dia que peço a morte, / Padeço, gemendo, choro...
Deu doze preparatoro
No culejo qui estudô... / É formado dotô...
Nesse país brasileiro / Não há quem troque dinheiro...
– Futrica é governadô.
38 Idem, p.83.
41 Idem, p.128.
b) CONSOANTES
Tratamos aqui exclusivamente das transformação das
consoantes puras, isto é, os processos em que não estão im-
plicadas laterais, vibrantes e nasais.
O mais comum, presente em todas as regiões do país,
é o apagamento do s final (aférese), não só dos plurais, mas
de vocábulos terminados em s, produzindo rimas como, por
exemplo:
• enos = eno. Como nos versos de José Matos 46 , em que
pede na feira:
Amigo, dê-me um preá
Seja grande ou pequeno,
Prometa sequer ao meno
Amigo, dê-me um preá.
• ovas = ova. Como no coco dos cantadores de Camalaú47:
Meu pé de milho arvoredo / que todo ano renova
São João diga a São Pedro / que me mande boas nova’
112
Lembramos que o som [s] final pode ser escrito com
z e, muitas vezes, como vimos, ditonga-se a vogal que o
precede (paz-pais, três-trêis, voz-vóis, luz-luis). Na poesia
popular, com a supressão do s chega-se aos seguintes di-
tongos:
• ais = ai. No coco de Seu Tuninha48 , temos:
Tuninha aonde canta / O povo dali não sai
Os pagão que tá chorando / Se cala não chora mái
• az [ais] = ai. Como no coco de Dona Odete49:
A menina de Goiana / não se alumeia com gái
s’alumeia com a catemba / o coqueiro quando cai
• ez [eis] = ei. Comum nas modas de raízes, como nesta de
Tonico e Anacleto Rosas50 , em que um caboclo reage ao
assédio sexual de um ricaço contra sua mulher, logo de-
pois de ouvir a história contada pela mulher em prantos:
Eu piquei de espora meu burrão tordio / rodei corrupio,
pa trais eu vortei.
Eu cheguei na praça, lá estava o ricaço, / contando com
graça o que ele fei.
Eu já fui chegando e o cabra surrando./ Puxou o revórve,
mai tempo não dei.
c) SOANTES
Parte importante dos processos fônicos dos falares popu-
lares envolvem as soantes. Alguns deles são específicos das na-
sais e das laterais como a despalatalização. Da mesma forma, há
uma série de processos que são comuns às laterais e vibrantes.
Laterais
A absorção do l em tônica final produz rimas com
todas as vogais. Mattoso Câmara (1953) já havia notado a
assimilação da u em ul (azul=azuu=azu), processo seme-
lhante se dá com outras vogais, formando um conjunto ex-
pressivo de rimas encontradas em todas as regiões do país.
• al = á. Contribuição que atravessa os séculos, chega aos
dias de hoje, por exemplo, no côco de Seu Roque, de Ca-
bedelo/PB51:
48 Idem, p.113.
49 Idem, p.186.
114
Há, também, alguns encontros consonânticos em que
não se pronuncia a lateral, originando as rimas:
• ifle = ife. Como no verso do Cego Aderaldo58 , em que
descreve a luta do movimento revolucionário cearense de
1914, durante o qual:
O menino ainda disse: / – “Eu não temo êsses patife!
Seu Emílio Sá bem sabe / Que eu, enquanto tivé rife
De coração de jagunço, / Faço urubu comê bife!”
• oclo = oco. Caso acima comentado e que exemplificamos
aqui com o coco de Dona Domerina59:
Botei a mão na cabeça / valha-me rei dos caboco
agora eu sei que morro / na ilha do arranca toco.
66 Idem, p.83.
116
poesia popular produz novas rimas como, por exemplo, estas
em que se transforma a lateral final:
• al = ar. Comum nos falares caipiras, como nestes
versos71:
Na estação de Pirambóia, / num me acostumei c’os ar;
Tem a estação de Sagrado... / Pra mim é um lugar sem sar.
• il = ir. Na toada “Caipira é vosso amigo” de Capitão Fur-
tado72 , encontra-se:
Se a Nação necessitá que o caipira vai servir,
breganhando sua enxada por um sabre e um fuzir,
o caipira corajoso, com orguio vai seguir,
pra lutar e defender sua Pátria, o Brasir.
• ol = ór. É também caipira essa rima, enontrada nas
“Queixas do boi”73:
Eu passei esses trabalhos, / uns grandes outros maior
às quatro horas da tarde / tive de casco p’ra o sor.
75 Idem, p.296.
118
• adre = ade. Como no poema depreciativo do negro, em que
Mestre Teles, velho pedreiro de Quixeramobim, canta82:
Não quero mais bem a nêgo / Nem que seja meu com-
páde:
Nêgo só óia p’r’a gente / P’ra fazê a falsidade!
Mermo em tempo de fartura / Nêgo chora necessidade
• entro = ento. Como no coco de Seu Valdemar – canta-
dores e dançadores de Camalaú 83:
Eu vi a pancada do mar / eu vi a refrega do vento
eu vi o barco navegando / mas é Maria que vem dent’o
• itro = ito. Feito na moda-de-viola “Dexei um vendero
rico”84 :
Um dia dêste passado, / Dexei um vendero rico;
Comprei um quilo de arroiz / De toicinho mais de lito
Comprei um saco de sal / Daqueles mais piquitito;
Eu vim alegre pra casa / Vim pulano e dano grito.
Nasais
Um dos processos mais recorrentes é a desnasalização
em final de vocábulo, o que permite as seguintes rimas:
• agem = age. Como nesta moda-de-viola de Vieira e Viei-
rinha85:
Levantei um dia cedo, / Arrumei minhas bagage,
Eu fui pegá a minha besta / Pra fazê minhas viage.
Vesti o carção de bombacha / Por eu gostá desse traje,
Laço bão tá na garupa / E na cintura uma ferrage,
No caso de precisão / Das veiz a gente reage!
• omem = ome. Ocorre de norte a sul, como no exemplo
gaúcho86 :
Dentro de meu peito tenho / Uma dor que me consome:
Ando cumprindo meu fado, / Em trajes de lobisome.
• ontem=onte. Ocorre nesta xácara, “O capitão do Navio”,
entoada por Anselmo Vieira87:
120
Quanto à desnasalização, note-se, enfim, que o apa-
gamento da nasal final, somada ao apagamento do s final,
permite inusitadas rimas em -ôme 92 , como em:
Besta nasci, besta sou, / Apois besta é o meu nome,
Mas besta é os vaqueiro / Qui nasceru sendo home,
Porque pensavum qu’eu era / O gado da Joana Gome...
96 Idem, p.197.
122
• indo = ino. Em Bom Jesus da Lapa, num “Reis da
Porta”102 , canta-se:
Ô de casa, ô moradô, / acorda se tá drumino !
Nóis viemo cum fervô / festejá o Deus Menino
• igna = ina. Como na “Décima da mulher rica e da mu-
lher pobre”, no momento em que a rica é tomada por uma
praga fatal, devido à sua falta de caridade103:
Daí Leonarda saiu, / E foi ver uma capina,
Quando pra casa voltou / Estava já com a malina
• igno = ino. Leia-se o “Coco de Praia” intitulado “Menina
me dá teu remo”104 :
Olelê minha senhora / De que chora esse menino
Ele chora de malino / Somente pra perreá
Invenção e preconceito
O levantamento acima é prova da produtividade da
fala popular na criação de um novo conjunto de possibi-
lidades rímicas, o que amplia o leque de rimas na língua
portuguesa. Entretanto, os poetas populares que produzem
textos em que essas marcas sejam visíveis são, muitas vezes,
desconsiderados pelos seus próprios pares como analfabetos,
incapazes de utilizar “corretamente” a língua portuguesa.
Como assinala Lopes106 “a rima entre as palavras amor e
chegou é considerada (pelos próprios repentistas) como um
indício de analfabetismo”. É o que atesta Téo Azevedo107
que, ao citar “Exemplo de rimas” afirma que “chalé com
mulher” é “rima errada”.
124
outro’ em sua fala, à medida em que os artistas interagem
nos vários lugares, dos cafundós rústicos do campo aos am-
bientes mais refinados das cidades”. Não se trata aqui de as-
sumir uma postura nostálgica e sim notar o que implica uti-
lizar-se ou não de um falar caboclo.
Salientamos, ainda, que o próprio modo como os
textos são registrados indica a postura do antologista diante
do texto. Determinados folcloristas, por exemplo, optam por
grifar (itálicos, aspas, negritos) os desvios, enquanto outros
optam por um registro mais fonético, sem que os processos
fônicos sejam destacados. Este é o caso de Leonardo Mota,
de Mário de Andrade e de Cornélio Pires e é a postura por
nós adotada, ou seja, não se trata de destacar essas marcas
e sim de considerá-las integradas ao discurso. Acreditamos,
também, que, apesar da existência de “uma diferença grande
de registro lingüístico entre os vários locutores”112 , a grafia
de muitos textos lidos ao longo da pesquisa foi adaptada à
escrita em detrimento da rima; o que marca um claro pre-
conceito em relação aos falares populares, uma tentativa de
“corrigi-los”. Acreditamos ser de grande valia um estudo que
se propusesse a reescrever foneticamente esses textos.
Enfim, vários trabalhos lingüísticos como, por
exemplo, as análises de Amaral, de Nascentes e de Mar-
roquim, demonstram que a maioria dos processos lingü-
ísticos aqui mencionados explica-se pela própria índole e
evolução da língua portuguesa; o que confirma a tese de
que a desconsideração desses falares é política e ideoló-
gica. Talvez, ao colocarmo-nos diante desses fenômenos,
não como desvios e alterações e sim como contribuições e
ampliações das possibilidades poéticas da língua portu-
guesa, estejamos de algum modo contribuindo para que
possamos, livres de preconceitos, dimensionar a criativi-
dade dos poetas populares, capazes de utilizar vivamente
marcas constitutivas de sua fala.
128
meiro Tratado está completo e que se compõe de quatro ca-
pítulos, não três como se lê no índice do Ms. da Biblioteca
Nacional (BN) reproduzido na edição de 1976 e como reitera
a nota de Lousada. Quanto a esta última, uma retificação
se faz necessária: falta também, no Ms. BN, a parte final
(quase a metade) do capítulo 1º. Já a primeira metade (duas
páginas na obra impressa, cinco no seu Ms.7 ), existente nos
dois códices, evidencia que o do AHU não é, como poderia-
se supor, o caderno faltante no da BN, mas uma cópia, aliás
em formato e caligrafia diferente, com muitas pequenas va-
riantes e omissões.
A ausência de um caderno na obra original e a exis-
tência, em outro acervo, de uma cópia em que o diferente
formato revela não ter sido feita para substituí-lo, é no mí-
nimo intrigante. Especialmente ao se levar em conta, como
já assinalado, o interesse que um tratado sobre minas de
ouro, prata e diamantes numa longínqua colonia recente-
mente resgatada ao virtual controle jesuítico, deve ter des-
pertado na segunda metade do século XVIII. Não parece,
portanto, descabida a hipótese de que o caderno tenha sido
subtraído, copiado com fins facilmente imagináveis e não
devolvido ao seu legítimo proprietário.
Na realidade, e em contraste com a ‘muita riqueza
nas suas minas’ anunciada com grandiloquência no título
e ao longo dos seus capítulos, o conteúdo factual deste Tra-
tado Primeiro é mais do que modesto e, a rigor, não justifica
a enfática certeza de futuros grandes achados. Isto talvez
tenha levado o próprio autor, mais adiante, a ajuizar sensa-
tamente:
*****
[1] P a r t e 3 a.
do Tesouro descoberto no Rio Amazonas
Dá notícia da sua muita riqueza nas suas minas, nos
seus muitos e preciosos haveres e na muita fertilidade das
suas margens.
Tratado primeiro
Das minas de ouro, prata e diamantes da região do Amazonas.
Cap. 1º.
Dá notícia em geral dos seus muitos minerais.
1º. Ainda que a principal riqueza das terras não con-
siste em ter muitos minerais, mas sim em ser fértil o seu
terreno, assim como a riqueza dos moradores não con-
siste em tratar ouros e outros metais, mas sim em ter abun-
dância de víveres para sustento de suas casas, como se vê
130
no grande Egito e em muitos outros reinos onde a muita fer-
tilidade das suas terras são envejada riqueza dos seus ha-
bitantes, posto que a falta de minerais seja grande. Con-
tudo, para mostrar aos leitores que o máximo rio Amazonas
não só é rico na fertilidade de suas margens e abundância
de preciosos haveres e víveres, darei por princípio desta 3ª.
parte uma notícia dos seus muitos e grandes minerais de
ouro, prata, diamantes e mais pedras preciosas com que au-
menta as grandes riquezas do seu precioso tesouro.
2º. E primeiramente, para que os leitores possam fazer
algum conceito, é preciso trazer à memória as grandes ser-
ranias que dissemos na primeira parte: tem o rio Amazonas
nas suas ilhargas, ou sejam as do norte, que principiando
na foz do Amazonas com o nome de serras do Paru, vão su-
bindo com o mesmo rio a quem servem de vistosas margens
até os reinos de Quito e Popayan, onde se conhecem com
o célebre nome de cordilheiras por espaço de mil e tantas
léguas e com largura de quarenta ou mais, que tantas se
contam na região a que os [2] geógrafos chamam Guiana,
ou sejam as
3º. Outras altíssimas serras que, da parte do sul, posto
que em maior distância do Amazonas, lhe vão fazendo lado
desde as serras de Ibiapaba em 3 gráus de latitude meri-
dional e 336 de longitude até os reinos de Peru e Quito em
gráus de latitude [em branco] e de longitude [em branco] ,
chamadas já serras de Ibiapaba, já Moça dos Figos, já Cha-
pada grande e finalmente, no império do Peru, Mantiquera,
e no reino do Chile, Andes, com o comprimento, de leste a
oeste, quanto vai de 336 gráus até [em branco] e com a lar-
gura de sessenta, cinquenta e mais léguas de uma mui apra-
zível planície por cima, além de muitas e compridas mangas
ou braços que vai lançando de sí já para o sul e já para o
norte e muitas voltas que vai fazendo como uma grande
cobra enroscada. Em outras partes se divide esta grande
cobra em duas, lançando uma para sul e outra para norte, e
cada uma com seus braços ou roscas de muitas léguas. Su-
posta pois esta breve notícia das grandes serras da Amé-
rica que mais difusamente descrevemos na primeira parte,
toda ela, digo, é um continuado mineral de ouro, prata,
diamantes e muitas outras pedras preciosas, de sorte que
afirmam os práticos ser a terra mais rica de minerais que
até agora se tem descoberto em todo o mundo.
4º. E principiando pela margem boreal, as serras que os
portugueses chamam de Paru, desde a foz do Amazonas até
o rio Negro, estão tão cheias de sinais de ouro que já os ge-
ógrafos todos as assinalam com sinais de ouro. Porém, como
Portugal não tem gente com que possa animar tanta vastidão
de terras e muito menos fortificá-las como era necessário, de
8 Latim: aproximadamente.
132
lharam deste lago são que as suas margens, areais e fundo,
tudo é de ouro tão amontoado como os montes de pedra ou
montes de areia onde os há e que junto ao lago, ou muito
perto dele, está uma grande e rica cidade chamada Manoa,
toda fabricada de ouro, assim nas suas ricas paredes e te-
lhados, como com todos os seus trastes, e quando se desco-
brir, que talvez será quando se entre a povoar as suas dila-
tadas terras, chegará a Portugal um muito amplo tesouro só
naquele lago, de sorte que a mesma água, com estar a correr
em tão precioso metal, será um tesouro medicinal para
curar muitas enfermidades. Nem pareça aos leitores ter sido
[?] sonhado o dito lago, por não se ter até agora descoberto,
porque devem saber que os moradores do rio Amazonas
apenas frequentam as suas margens com algumas pequenas
povoações distantes umas de outras quinze ou mais dias de
viagem, e ainda que alguns têm subido pelos rios colate-
rais, só chegam às suas margens e não entram no interior
dos matos sob pena de ficar perdidos, como tem sucedido a
muitos pelo muito intrincado e espêsso das matas, pelo la-
birinto de lagos e pelos muitos rios e ribeirões que cortam
aquelas terras, e por isso não faz admiração, aos que têm
conhecimento daquelas terras, que não se tenha [4] ainda
descoberto o lago dourado Parima.
6º. No mesmo rio Negro se descobriu, pelos anos de
cinquenta e tantos, uma mina de azougue11 entre ele e o rio
Japurá que lhe fica a oeste; estão já minas de ouro abertas
e mui rendosas pelos castelhanos, as quais, pela divisão do
Tratado de Madrí de 1750 entre as duas potências, ficam
pertencendo a Portugal, como afirmou o P. M. Brentano, je-
suíta, Provincial que foi da sua Província de Quito e depois
Procurador geral da mesma em Roma, para onde desceu pelo
Amazonas abaixo até o Pará, onde o afirmou, e mais em
Lisboa. E além destas minas há prova evidente que o dito rio
tem ouro nas suas margens, porque muitos índios que dele
têm descido para as missões traziam por brincos nas orelhas
folhetos de ouro bruto, por razão de não saberem nem terem
instrumentos de o prepararem, e de tais índios ainda há
descendentes na missão de Pupains [ou Tupains; seria Ta-
pajós?], hoje Vila de Santarém, e em muitas outras.
7º. Nas cabeceiras do dito rio Japurá, que são as serras
que vão continuando e pelo meio das quais sobe a divisão
dos dois domínios até a altura do dito Japurá, que são parte
da região que os geógrafos chamam Terrafirme e os caste-
lhanos Novo Reino de Granada, são tantos os minerais que
os mesmos castelhanos, para declarar a sua muita riqueza,
também lhe chamam Castilha del Ouro. Por cima, seguindo
11 Mercúrio.
Cap. 2º.
Das minas descobertas na margem do sul.
1º. Já dissemos que toda aquela vastidão de serras, ou
onde cada pedra são, [5] segundo afirmam todos os práticos,
um continuado mineral já de ouro, já de prata e de muitas
outras preciosidades; porém, as minas de que aquí só pre-
tendo dar notícia são as que atualmente se trabalham na re-
gião que os geógrafos chamam região do Amazonas, e por
isso não falo das minas Gerais, que no seu mesmo nome in-
dicam a sua grande vastidão, e as minas do Serro do Frio,
onde os diamantes se medem aos alqueires, e as minas do
Cuiabá, também de muito ouro, porque posto que estejam
nas ditas serras, estão fora da dita região do Amazonas,
ainda que de algum modo lhe pertencem por serem quase
continuadas com as mais minas que se encontram inclusas
na tal região e todas na demarcação dos portugueses. Prin-
cipiando pois da sua mesma foz, esse rio Tocantins, que é o
primeiro dos mais caudalosos que recebe junto à cidade do
Pará, unido com o rio Araguaia, quase semelhante a ele na
grandeza, e ainda de mais extensão no comprimento; nas
suas cabeceiras tem as minas seguintes. 1ª. principiando por
12 Menores.
134
leste, tem as minas do Carmo, chamadas arraial do Carmo,
as quais estão entre o rio chamado rio do Sono, caudalosís-
simo, e um riachão, os quais ambos se metem no rio Tocan-
tins, e são as minas mais boreais que tem o rio Tocantins
a leste. 2º. Minas das Almas, chamadas Arraial das Almas
e ficam nas cabeceiras do rio chamado das Almas, que se
mete no Tocantins da mesma parte do leste. A norte destas
ficam, 3º. as minas da Natividade em outro grande arraial
nas margens do rio chamado rio das Minas da Natividade,
entre ele e o rio Tocantins. 4º. A leste do mesmo rio estão as
minas de Sta. Anna, chamadas arraial de Sta. Anna. 5º. Na
margem do oeste do rio Tocantins, nas margens do rio cha-
mado Corichas, que se mete no dito Tocantins da parte de
oeste13, e a norte do dito Corichas estão as minas do Pontal,
juntamente Arraial; têm porém o desar de serem estas minas
infestadas e combatidas do tapuia bravo chamado Chavante
de Quâ14 . 6º. Nas cabeceiras do mesmo rio Corichas estão as
minas e arraial chamadas de Amaro Leite. 7º. A oeste destas,
inclinando para o norte, estão as minas chamadas Cori-
chas com o seu arraial e ficam entre as cabeceiras do dito
rio Corichas e as de outro pequeno rio que mete no grande
rio Araguaia; este Araguaia também se vai metendo no To-
cantins perto já da sua foz. Subindo o rio acima, já na volta
que faz virando para oeste tem, 1º, as minas de S.Félix,
chamadas a chapada de S.Félix; ao oeste destas ficam ou-
tras minas com seu arraial também de S.Félix; estão junto à
foz do mesmo rio, onde se mete no Tocantins, e todas estas
minas pertencem no espiritual ao bispado de Pará. Ao sul
das minas de S.Félix ficam outras minas com seu grande ar-
raial, nas cabeceiras de um rio que deságua no rio da Palma
antes deste se meter no Tocantins; e a sul destas, outras
com seu arraial nas cabeceiras de outro rio. A sul destas,
ficam as minas chamadas minas do Papaolho [?], suposto
que pelo bom ouro que têm. A oeste destas, declinando para
norte, estão outras minas com seu grande arraial, chamadas
as minas do Cavalcanti, nome ou sobrenome do seu desco-
bridor, e ficam na margem de [6] leste do rio das Almas.
2º. Subindo, a oeste desemboca no Tocantins o rio Ba-
calhau, tão rico que por todo ele há minas, e a sul destas
fica uma serra que pelos seus muitos minerais chamam
serra Dourada. A oeste ficam as minas de S.José, com seu
grande arraial, mas muitas léguas distantes ficam outras
minas também chamadas de S.José; ao oeste se mete no To-
cantins o rio Traíras, com umas grandes minas e arraial
13 Deve ser o rio Crixás-Açu, que porém, como diz a seguir, deságua no
Araguaia.
14 Akwên-Xavante.
15 Latim: Quanto mais cresce a riqueza tanto mais cresce o amor pelo dinheiro.
136
têm a boa comodidade para o ouro: três rios, dois a leste
e um a oeste, que vão desaguar ao Araguaia unidos ao rio
chamado dos Pilões, que os vem recebendo, o principal dos
quais se chama Meia Ponte e dele se chamam as minas de
Meia Ponte. Desce este rio de uns montes, chamados Piri-
neus, que fazem divisão de águas do rio Maranhão e Ara-
guaia. A leste tem as minas chamadas do Ouro Fino, pela
singularidade do metal; são também povoadas com um bom
arraial e ficam como no meio ou centro do vão que medeia
entre este rio e o Maranhão supra, distante da grande vila
de Goiazes cousa de oito léguas, quase alcantiladas, a qual
vila é a capital de todas estas minas e outras que logo di-
remos, aonde assistem governador, ouvidor e mais minis-
tros reais com belos templos e casarios, com dois rios que
lhe passam pelo meio. É povoação grande e cabeça de tudo
o que está povoado no Araguaia e suas cabeceiras e ver-
tentes. A oeste das já ditas deságua no rio Araguaia o rio
Pilões, célebre pelas suas minas de diamantes além de muito
ouro, porém <não aproveitadas> por causa do contrato dos
diamantes das minas do Serro do Frio, das quais darei aquí
alguma notícia para inteligência de muitas outras minas,
descobertas na região do Amazonas mas proibidas por causa
das minas do Serro do Frio, que já não estão no distrito da
região amazônica.
4º. O Serro do Frio são uns montes ou grandes serras
que estão no governo e bispado de Minas Gerais, as quais
confinam por norte com as minas de Goiazes que acabamos
de descrever. Todo este bispado e governo das Minas Gerais
está cheio de ouro, prata, diamantes, esmeraldas, topázios e
muitas outras preciosidades, e por isso é o governo mais po-
voado de toda a América Portuguesa, de sorte que afirmam
alguns práticos que está tão bem povoado como o mesmo
Portugal. A sua capital é Vila Rica, que está distante da ci-
dade de Mariana duas léguas, em 20 gr. de latitude meri-
dional e 333 de longitude e se podem chamar uma só po-
voação, porque a<s> cidade<s> de Mariana e Vila Rica têm
uma famosa rua de uma a outra, pela qual se pode chamar
com verdade uma só. Mas deixando a sua descrição e multi-
plicidade de minas que tem para os que descreverem aquele
governo, umas delas são as riquíssimas minas do dito Serro
do Frio, as quais são mui rendosas de ouro e diamantes, os
quais, por serem inumeráveis e não perderem por isso des-
tinação, El Rei D.João 5º. o tomou para a Coroa no ano de
1730 e tantos; comandou minerar por via de contrato, proi-
bindo juntamente minerar o ouro no seu distrito, por cuja
causa se viram obrigados os mineiros seus povoadores a de-
sertarem para outros minerais, deixando aqueles livres ao
contratador ou contratadores dos diamantes, os quais ar-
138
minas do Mato Grosso as últimas que possui o domínio de
Portugal na região meridional do rio Amazonas, nas cabe-
ceiras dos seus rios colaterais, e não tem mais por falta de
gente, porque todas aquelas vastidões são despovoadas, como
também quase todos os rios, exceto as suas bocas, até o rio
da Madeira, e os mais daí para cima são todos [9] despovo-
ados de portugueses. Antes porém de entrarmos no distrito
de Castela e no grande império do Peru que segue a oeste
do Mato Grosso, darei notícia de outros minerais da mesma
margem, mas mais vizinhos ao dito Amazonas, posto que
nos seus colaterais.
Cap. 3º.
De outros minerais do rio Amazonas.
1º. Até agora fomos seguindo as cabeceiras dos rios co-
laterais do Amazonas, de leste a oeste e até o Mato Grosso;
agora desceremos de oeste para leste na mesma margem do
sul do rio Madeira para baixo; digo do rio Madeira para
baixo pela razão que já disse, que nos mais rios que se se-
guem para cima, que são muitos ainda, os portugueses não
têm entrado mais do que os poucos que vão apanhar o cacau,
cravo, salsa e mais frutos das suas matas de que falaremos
adiante. A primeira mina <de> que se sabe descendo, é do
rio Megue17, o qual está a leste ou abaixo do rio Madeira e
ainda do rio Abacaxis e outros de menor conta.
2º. Descobriu estas minas, por acaso, um português
mineiro, N.Pontes [?], porque entrando naquele rio a fazer
uma feitoria de cravo, outros frutos nele descobriu e achou
ouro pelos anos de 56 ou 57, e para prova mandou algumas
oitavas ao Capitão Geral que então governava aquele Estado;
e posto que por então se não povoaram por falta de gente,
suposto que já agora se trabalharam por estarem muito em
cômodo, mais que todas que acima disse, e <de> como por
então se sustiveram, não pude ter delas mais individuais no-
tícias, <logo> não posso dizer se são ou não abundantes e
minas de boa conta, como dizem os mineiros.
3º. Abaixo do Megué e outros rios pequenos está o
grande rio Tapajós, que deságua no Amazonas em 2 gr. e
30 min. de latitude, e 322 de longitude. É rio também pouco
frequentado, porque só na sua boca, até cousa de 30 léguas
acima, tem algumas poucas aldeias de índios, contudo é
o rio de que se tem mais alguma notícia por ter vindo por
ele abaixo um mineiro. Veio fazendo com os negros da sua
companhia algumas observações, ou movido da ambição, ou
de curiosidade, ou por ambos estes motivos, chamado João
de Sousa de Azevedo, e por relação dele depois de alguns
17 Maués .
140
particulares <de> outra causa, que parece ser mais veros-
símil, de que pelo grande concurso de mineiros que logo
concorreram, foi necessário ao ministro régio ouvidor, não
só tomar posse, mas repartir, como se costuma, a cada um
as terras. Sucedeu pois, que quando andava nesta diligência
e na presença de muitos circunstantes, veio um dizendo que
não só eram minas de ouro, mas também de diamantes, por-
quanto tinha achado alguns que mostrava. O ouvidor, que
também se queria aproveitar como os mais, posto que logo
conheceu os diamantes quis disfarçar a notícia dizendo que
não eram verdadeiros; instou o mineiro que bem os co-
nhecia e alegava em confirmação várias razões, as quais
não podendo o dito ministro disfarçar sem reparo dos cir-
cunstantes e sem perigo de grande culpa no seu ofício, res-
pondeu ao mineiro --- Pois visto serem diamantes, V.Mce.
com todos os mais se retirem desta paragem sob pena de
morte --- E isto pela razão do contrato dos diamantes das
minas do Serro do Frio, que acima dissemos, e desta sorte,
retirando-se todos, ficaram as minas logo desertas como
sucede a todas as mais em que aparecem diamantes, e por
esta causa desceu o mineiro supra pelo rio abaixo, vendo-se
obrigado a também se retirar. Deságua o dito rio dos Arinos
no rio Tapajós, cuido que na margem ocidental, e é um dos
mais avultados que recolhe o rio Tapajós.
6º. Pouco acima da sua foz, em cousa de quatro dias
de viagem ao menos, tem o dito Tapajós um grande mi-
neral que parece ser encanto: o mineral é tão grande que na
mesma flor da terra ocupa as altas ribanceiras e margens
do rio de uma e outra parte em grande espaço, e mostra
que pelo fundo do rio se comunica até de uma margem [12]
com a outra, mas tem esta diferença, que na margem oci-
dental é mineral amarelo como ouro e na margem de leste,
ou oriental, é branco como prata, e tudo em tanta abun-
dância que à mesma flor da terra se podem carregar frotas
inteiras. Digo que parece ser encanto porque o mineral de
uma parte do rio parece aos olhos verdadeira prata e todos
<os> que vêem as suas pedras afirmam que é prata. E como
tal anunciou um mineiro ao desembargador João da Cruz
<Diniz> Pinheiro no ano de 1754 circiter19, mostrando-lhe
juntamente uma amostra e oferecendo-se a ir mostrá-la se o
soltasse, porque estava então preso na cadeia pública. Posto
que já os moradores do dito rio, havia anos, sabiam da dita
mina, aceitando o dito mineiro20 a notícia, partiu com o dito
mineiro em sua companhia, e depois de ver com seus olhos
o grande mineral, logo tomou posse das minas e mandou
19 Latim: aproximadamente.
22 Como acima.
142
deságua um rio chamado Claro, tão rico que lhe chamam
os mineiros Paiol de Diamantes; alguns duvidam se este
rio é o que já dissemos chamado Pilões, que deságua no
rio Araguaia, cujos diamantes são tantos também que lhe
chamam da mesma sorte Paiol, mas o mais certo é serem di-
versos rios, como afirmaram alguns mineiros que tinham
andado pelas cabeceiras de um e outro rio. Ultimamente o
confirmou o mineiro supra, João de Sousa <de Azevedo>,
porque pretendeu subir pelo rio Xingu acima até o dito rio
Claro ou Paiol, para o que mandou fabricar vários instru-
mentos de que usam os mineiros para tirarem do fundo do
rio o ouro, diamantes e as mais preciosidades que querem; e
o deixou depois por obra, com bom pesar seu, por o impe-
direm os missionários das aldeias que estão na boca do rio
Xingu, não querendo <eles> dar-lhe índios por [para] não
irem contra as ordens de El Rei. Por cuja falta, e também
por o intimidarem com os perigos dos índios bravos que
tem nas suas margens o Xingu rio acima. E dizia o mineiro,
queixando-se, que lhe bastava uma só noite ou dia minerar
com os seus negros para voltar rico de ouro e diamantes,
e que não tinha medo da escolta que lá andava porque en-
quanto, dizia ele, uns negros brigam com a escolta, os ou-
tros bastam a tirarem grande cabedal; embora que (note-se
a razão que dava, para se fazer conceito da larga consci-
ência daquele branco, cujo intento é só enriquecer para esta
vida e esquecer da Eterna) custasse a morte de alguns ne-
gros e índios (pobres índios e pobres negros ! cujas vidas e
almas não são avaliadas dos [pelos] brancos em mais do que
se fossem feras do mato !). Mas tornando aos diamantes do
rio Claro, são tantos que dois soldados, que dele ou da sua
escolta desertaram e se foram meter nas missões de Castela,
levaram consigo, e lá mostraram, duas libras de diamantes
que às escondidas dos mais foram apanhando.
9º. Mais prova, ainda, a confissão de um aventureiro,
o qual (é certo que não disse o lugar onde os tinha ha-
vido), sendo desterrado das minas, por seus crimes, para a
de África, onde morreu, mui brevemente confessou que ele,
só em diamantes, tinha deixado escondido nas minas um
frasco de diamantes [14] cheio, dos quais os mais inferiores
eram de 5 mil cruzados para cima. E de que lhe aproveitou
a este homem tanta riqueza, se a havia de deixar escondida
na terra <?>, se talvez nem ele nem outrem se aproveitar
porque ainda que deixou alguns indícios do lugar e ..... [?]
para vir desenterrar a quem o revelou, moralmente <nem>
aquele, nem seus herdeiros, se aproveitariam pela grande
distância dos lugares, como eram África, onde o revelava e
América, onde estava enterrado, e só vem a servir esta no-
23 Sulcos; trilhas.
144
caça, por não indagarem o tal tesouro que já sabem <que>
têm perto, muito mais estranharão a sua descuriosidade em
não se resolver nenhum a experimentar o metal de umas
grandes pedras que tem o rio no meio, mas fora d’água, a
que os naturais, pela semelhança do seu som com o som
dos sinos, chamam Itamaracá na sua língua, isto é sinos:
tocam-lhe com a unha e fazem o som de um sino, por cuja
razão todos os supõem ser metal, ou que tem muito metal, e
muitos por divertimento lhe tocam, mas nenhum se resolve
a ver que metal seja. Tem-se achado nas suas alegres praias
várias pedras preciosas, quando não sejam verdadeiros dia-
mantes, de que aqueles moradores têm pouco conhecimento.
13. Muitos outros rios medeiam entre o Xingu e <o>
Tocantins, mas todos inabitados de portugueses e por isso
nada se sabe dos seus minerais, posto que se presume terem
também alguns, por serem todos os rios e suas margens se-
melhantes. Das cabeceiras do grande rio Tocantins já fa-
lamos ser um quase contínuo mineral; no mais espaço do
rio, como também do outro grande rio Araguaia, nada se
sabe, também por inabitados, e só se sabe que o rio Tocan-
tins tem muitas pedras de antimônio, que também são esti-
máveis, e um prático da foz do rio e das suas cabeceiras foi
o que advertiu nas pedras de antimônio <e> afirmava que
toda a sua terra é um contínuo mineral.
14. Na mesma margem do sul, na boca do Amazonas,
se sabe de certo haver minas de ouro, e o revelou um morador
à hora da morte, pedindo a seu confessor conselho se devia
ou não descobrir [‘revelar’] a quem tocava<m> as tais minas,
que ele sabia de certo estarem nas cabeceiras de um regato na
banda do Amazonas; o que lhe resolveu o confessor ele o sabe,
mas as minas ou ficaram encobertas, ou os avisados se ca-
laram, porque só se foi divulgando que as havia, mas nenhum
afirmava aonde eram e deste modo sabem muitos particulares
de muitos outros minerais, e porque se não podem aproveitar
a sí ou o não queram fazer por não descobrirem o achado, su-
cede que ninguém se aproveita.
Cap. 4º.
Dos minerais do rio Amazonas da margem do sul
nos domínios de Castela.
1º. Estas são as minas de que se sabe na margem do
sul na região do Amazonas nos domínios portugueses, ainda
sem falar nas minas de pedra azul que há junto à boca no
rio Xingu e nos muitos topázios e infinidade de outras pe-
dras finas que se acham no mesmo rio e em quase todos,
umas triangulares, outras ova<la>das, piramidais, oita-
vadas, muitas resplandecentes, rosas, vermelhas, brancas.
Há pedras nefríticas, pedras de águia, outros minerais de
146
para a Europa. Porém, além do Potosí, tem também muitas ou-
tras minas de ouro e outros metais.
4º. O reino de Chile é certo que já fica fora do Ama-
zonas, mas por confinar com ela e por abraçar muitas partes
das montanhas que pela parte do sul servem de lado ao
Amazonas nos montes que chamam Andes, também muito
engrandece o grande tesouro americano, porque nas suas
serranias são tantos os minerais como na mesma Província
dos Charcas, e basta dizer, para fazer conceito das suas
grandes riquezas, o que na Europa relatava um missionário
que foi muitos anos naquele reino: que era tanta a prata em
Chile, que vinha a ter só a estimação do ferro e que por isso
tinha a serventia do ferro em tudo o que podia suprí-lo, e
que o ferro é no Chile mais estimado que a mesma prata.
Bastam essas tais quais notas para os leitores fazerem con-
ceito do grande tesouro do Amazonas enquanto não des-
crevermos com mais individuação os seus muitos minerais;
porém, como o principal tesouro das terras não consiste nos
seus minerais, mas na abundância e fertilidade do seu ter-
reno, eu vou já mostrá-lo no fertilíssimo Amazonas.
Trat. 2º.
150
fundamental para Mário repensar a sociedade brasileira dos
primeiros decênios do século XX, a qual seguia o modelo da
cultura francesa, nas recentes metrópoles, que ofuscava e
negava qualquer manifestação da cultura popular.
De 25 de junho a 15 de setembro concentrei-me no
acervo da Staastbibliothek – Berlin, em seus dois prédios:
Haus Unter-den-Linden e Haus Potsdamer Strasse.
152
Andrade. Primeira coletânea da poesia expressionista, or-
ganizada por Kurt Pinthus em 1919 e publicada em 1920,
fez parte do index nazista. O organizador, aliás, no prefácio
à edição de 1959, ressalta o caráter de raridade da primeira
edição: “Milhares de exemplares do livro foram destruídos,
tanto pelos nazistas, como pelas bombas. Após a ressureição
da Alemanha, e sobretudo depois do redescobrimento do ex-
pressionismo, foi pedido nas livrarias e respeitado mais do
que antes de 1933. É praticamente uma raridade nos sebos e
pode chegar a preços extraordinários em leilões.”4
Além da importâcia pelos fatos relatados acima, o
exemplar de Menschheitsdämmerung, na biblioteca do nosso
modernista, goza da dupla natureza de livro e de manus-
critos, uma vez que o lápis de Mário de Andrade ali deixou
as marcas do leitor/ criador em 107 dos 270 poemas. As
notas marginais no volume revelam tanto a leitura aplicada
do estudante de alemão que traduz para melhor compreender
os textos, como o poeta que traduz e ali esboça seus próprios
versos.
Para que se tenha uma idéia do diálogo da criação de
Mário de Andrade com a “jovem poesia alemã”, apresen-
tamos, em fac-símile, a tradução por ele esboçada nas entre-
linhas e nas margens do poema de Jakob van Hoddis, “Wel-
tende” (“Fim do mundo”), p.3. Ao lado dela, no intuito de
divulgar este belo poema do expressionismo alemão, acres-
cento a tentativa de traduzir, minha e de Telê Ancona Lopez,
que incorporou, por certo, soluções aventadas pelo poeta de
Paulicéia desvairada.
154
Tradução
“O fim do mundo”
Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
[...]
Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
Morte ao burguês-cinema! Ao burguês-tílburi!
Conclusão
Brasil e Alemanha se encontram, nesta pesquisa, não
apenas no diálogo travado por Mário de Andrade com os
expressionistas, como nas lacunas que são preenchidas à
medida que se compara os dois acervos.
156
O olhar sobre as obras do expressionismo literário
alemão, em ambos, acusa proximidade e distanciamento, la-
cunas. Eles tocam quando, nos catálogos, há coincidência de
títulos. Além disso, na biblioteca de Mário de Andrade, pre-
servada em sua integridade material no Instituto de Estudos
Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), conta-
se também com a possibilidade de conhecer a localização
dos volumes na casa da rua Lopes Chaves (cômodo, estante,
prateleira e posição do volume na mesma). Assim acontece
graças ao projeto coordenado por Antonio Candido que, na
década de 1960, promoveu o tombamento da biblioteca e o
registro da marginália, e ao fichário original por autores e
obras. Por outro lado, na Staatsbiblítohek, o distanciamento
se impõe, uma vez que apenas registros anteriores à Guerra
proporcionam a “reconstrução” do acervo, em catálogos re-
cuperados.
A destruição de bibliotecas, conforme Mathew Bat-
tles7, é um fenômeno que se intensificou no século XX, con-
trariando o movimento de criação das mesmas, no século
XIX. E as guerras são as maiores causadoras dessas perdas.
O que a História fixou quanto à expansão do III Reich re-
pete-se agora na Bósnia e em Bagdá.
Eliminar o contingente intelectual e a produção cul-
tural de um povo tem por trás a intenção de aniquilá-lo. A
identidade de uma nação ou de uma população liga-se, de
modo indissolúvel, ao conjunto das manifestações culturais.
Não se joga uma bomba em uma biblioteca ou em um museu
por engano. Como a própria história mostrou, são alvos im-
portantes em uma guerra.
160
Devolvido o escritor ao seu merecido sossego, lá fui eu
melancólico pelas ruas, os olhos ainda lembrados do ambiente
acolhedor da casa de Mário: quadros de Portinari, de Segall e de
Tarsila, pastas de artigos, revistas, álbuns de arte, recortes de
jornal e mil e uma outras coisas. E um bem-estar com visgo.”3
162
partituras, esculturas, imagens de santos, objetos do fol-
clore e relacionados à Revolução de 1932, bem como instru-
mentos musicais de índios, fotos, programas de concertos,
desenhos infantis, fichários de pesquisas e leituras, manus-
critos, correspondência traduzem, nesse acervo, o prazer da
conquista do conhecimento e o trabalho.
Aos olhos de quem transitava pela residência, desco-
bria-se o acervo organizado segundo a lógica deste cole-
cionador que conjugava o prazer de possuir ao de compar-
tilhar, como se vê neste trecho da carta que endereçou a
Paulo Duarte, em 23 de abril de 1943: “Neste momento em
que lhe escrevo, 16 horas desta Sexta-Feira Santa, estou
aqui cheio de universitários mineiros que vieram ver mi-
nhas coisas. Cada um está pra seu lado, mexendo em livro,
lendo meus contos inéditos, mexendo na minha coleção de
desenhos. São gente que veio pras Olimpíadas Universitá-
rias e ando com a casa cheia de moços, dia e noite”7.
No que se refere aos manuscritos de outros escri-
tores, a coleção tem início na segunda metade da década de
1910, movida possivelmente por um escopo de nuances feti-
chistas. Mário de Andrade adquire, nesse momento, Jacinto,
o pequeno cesteiro, um conto para crianças da segunda me-
tade do século XIX, na pena de Alexander Hummel, dina-
marquês que viera morar no Brasil. Depois, em junho de
1919, quando faz sua primeira viagem às cidades históricas
de Minas Gerais, tendo já publicado Há uma gota de sangue
em cada poema, ao visitar Alphonsus de Guimaraens em
Mariana, o encontro rende-lhe a preciosidade de um autó-
grafo do grande simbolista, Fatum, bem como a cópia por
ele assinada de Soneto, feita na hora pelo visitante. Este,
ávido em sua admiração, copia ainda dois sonetos de Pauvre
Lire, livro publicado em 1921. A esses textos a coleção soma
dois outros cujo significado é único no universo do acervo
que o autor de Macunaíma construiu. São aqueles que
marcam a lembrança do pai, Carlos Augusto de Andrade,
escritor bissexto, falecido em 1917: o poema “É certo? A
teus pés prostrado” e a peça de teatro A Mão da Caridade.
No início da década seguinte, em 1922, Mário de An-
drade conhece o poeta Manuel Bandeira, com quem inicia
uma amizade para toda a vida, retratada na extensa cor-
respondência com ele trocada, na qual estão interminá-
veis discussões sobre a produção literária de ambos. Mário
de Andrade e Bandeira são artistas que se encontram em
um mesmo patamar, donos cada de seus respectivos pro-
jetos e caminhos. Cultivam o hábito de remeter um ao outro
7 CAMARA, Cristiane Yamada. Mário na Lopes Chaves. São Paulo,
Fundação Memorial da América Latina, 1996, p. 52.
164
Neste ponto, nas relações de Mário mentor dos mi-
neiros, surge uma situação importante: a de Carlos Drum-
mond de Andrade, cujos primeiros manuscritos convalidam
o mentor, mas, que, no crescer de sua poesia logo se equi-
para ao poeta de Clã do jabuti, na vertente do diálogo in-
terpares da coleção.
Depois dos mineiros, muitos e muitos vieram, mo-
vidos pelo desejo de receber uma leitura correta no apontar
enganos e possibilidades, capaz de confessar dúvidas e per-
plexidades como no caso dos contos de Murilo Rubião. É
importante lembrar que, mesmo aceitando o trabalho de
orientação severa, ligado à prática de crítico e correspon-
dente pontual, Mário de Andrade recusa o rótulo de mentor.
Quando escreve a Henriqueta Lisboa, em 24 de fevereiro de
1940, manifesta-se a respeito do assunto e distingue, inclu-
sive, o proveito do crítico: “E agora sou eu que lhe peço me
envie os versos que está fazendo. Não que eu me tenha por
mentor de ninguém, mas porque sou seu amigo [...]. Pois
nesta intimidade nem temerei ser pedante e lhe direi, com
o máximo rigor, o que descobrir ou inventar nos seus po-
emas. Mas mande muitos, mande de novo os já mandados
(pra me evitar o trabalho de procurá-los neste apartamento
de barafunda) e muitos mais, o maior número que puder.
O elemento comparação é imprescindível num estudo e só
mesmo tendo um grupo vasto de poemas, poderei compre-
ender milhor. Mande e nem de longe receie me atrapalhar,
sou eu que preciso de você”.9
À medida que se alastra pelo Brasil a difusão dos li-
vros de Mário e que se multiplicam seus contatos com outros
escritores, de diferentes estados brasileiros vão chegando tra-
balhos, pedidos de leitura e orientação. Luís da Câmara Cas-
cudo, além de aparecer na coleção como o poeta que poucos
conhecem, apresenta a Mário os poemas de seu conterrâneo
potiguar, Jorge Fernandes, o qual também se corresponderá
com o mentor. O Rio Grande do Sul comparece com a poesia
de Augusto Meyer; Manuel Bandeira proporciona ao poeta
Dante Milano a oportunidade de ser lido, nos manuscritos
que faz chegar às mãos do amigo em São Paulo.
O diálogo interpares, nascido em 1922, expande-se
quando nele ingressa a América do Sul, com a participação
dos argentinos Bernardo Graiver e Marcos Fingerit, além do
peruano Alberto Guillén. Sublinha o interesse de Mário por
essa nova frente de interlocução. Intencionam ser divul-
gados entre os escritores daqui. Mário de Andrade, naquela
166
do doce fudge, e pelo médico e escritor paraense Gastão
Vieira, a de tacacá. Esses documentos corroboram as di-
mensões de Mário de Andrade pesquisador da cultura po-
pular e de “gourmet”. Na verdade, em termos de autoria,
manuscritos desse naipe significam compilações norteadas
por interesses afins aos do escritor. A chave do colecio-
nador abrange também a pesquisa de Nicanor Miranda em
1937, sobre a classificação das idades infantil e juvenil, na
qualidade de participante do projeto educacional dos par-
ques infantis, coordenado por Mário de Andrade, então Di-
retor do Departamento de Cultura da Prefeitura da Muni-
cipalidade de São Paulo. Do mesmo modo, essa vertente
acolhe o texto da fala radiofônica de Paulo Duarte na Na-
tional Broadcasting Corporation de Nova Iorque, em feve-
reiro de 1942. Exilado do Estado Novo, o jornalista amigo
e antigo companheiro do Departamento de Cultura, no pro-
grama que mantinha sobre livros brasileiros na NBC, ali
focalizou Poesias, de Mário de Andrade.
Nos anos de 1940, a coleção dos manuscritos de ou-
tros escritores já apresenta as vertentes que atualmente a
configuram. Nessa década, na verdade reduzida a cinco
anos, pois Mário de Andrade morre em fevereiro de 1945, o
conjunto cresce principalmente na parcela que contempla o
mentor. Muitos são os moços que se dirigem ao escritor já
consagrado. Dentre eles, destacam-se dois amigos mineiros
inseparáveis, Hélio Pellegrino e Otto Lara Resende, ambos
poetas, nesse momento12 . E Henriqueta Lisboa, também mi-
neira, que se torna grande amiga.
O sentido da coleção
Os manuscritos que Mário de Andrade salvaguardou,
chegavam-lhe de maneiras distintas, a maioria encaminhada
pelos próprios escritores, alguns por terceiros, sem contar os
textos raros, que ele procurava obter. São datiloscritos, au-
tógrafos e alguns impressos rasurados que, assim, se trans-
formam em manuscritos. A maioria se apresenta com poucas
rasuras, pois aqueles que vinham acompanhados do pedido
de leitura, eram antes passados a limpo e, certamente, na
releitura precedendo a cópia, no autógrafo ou no datilos-
crito, recebiam correções a erros flagrados e transformações
decorrentes de um novo momento na criação.
Representam, salvo as receitas culinárias e alguns
registros da cultura popular, elos perdidos da criação lite-
168
manuscritos apresentam-se, em vários casos, como notas
prévias de artigos ou cartas por ele remetidas aos escri-
tores. Assim, pode-se lembrar que, nos poemas recebidos de
Luís Aranha em 1921-1922, estão observações oriundas de
uma leitura atenta, como a que se mostra na margem su-
perior de Minha amada: “Não ha rapidez nenhuma que eli-
mine aqui o te. Cui- | dado! É preciso saber sempre onde
canta o galo. E tu, que desempenhas pelos teus livros as ca-
taractas, insecáveis helas!, dos | teus pronomes, artigos e
pendu- | ricalhos indecentes, bem podes | aumentar aqui o
te que falta”. No cotejo dessas notas marginais autógrafas
com o texto do artigo publicado em 1932, “Luiz Aranha ou
a poesia preparatoriana”15 , percebe-se que o crítico volta ao
manuscrito dez anos depois e efetivamente transforma seus
comentários em notas prévias. Nessa ocasião, aproveita ele-
mentos da análise realizada e apóia o artigo em trechos dos
poemas que, em 1932, destaca com traços a lápis vermelho
à margem e a indicação “citar”, os quais aparecem, de fato,
transcritos na versão que saiu na Revista Nova. Dentre os
comentários esboçados em 1922, reelaborados no artigo,
pode-se trazer este: “Me envaideço mesmo de ter de alguma
forma provocado o aparecimento do Luís Aranha original.
O maltratava com uma crítica exasperada que não perdoava
senões, e blagueava, desprezando, sobre o excesso de ‘uns’
e possessivos gálicos nos versos dele”. Quanto às cartas, um
bom confronto entre as notas marginais nos manuscritos e
os textos que seguiram para os destinatários, desvendará,
por certo, a natureza de textos fragmentários prévios dos
comentários críticos esboçados durante a leitura de Mário
de Andrade. Tal confronto está fadado a excelentes resul-
tados, se comparar os manuscritos de Carlos Drummond,
Manuel Bandeira, Henriqueta Lisboa, Alphonsus de Guima-
raens Filho, Oneida Alvarenga, entre outros, e as cartas que
estes escritores receberam do correspondente contumaz.
É possível adiantar essa possibilidade ao considerar,
no autógrafo do poema de Manuel Bandeira Quando minha
irmã morreu16 que exibe, à margem do verso “veio para ao
pé de mim”, a nota a lápis preto de Mário de Andrade: “Pa-
raopeba”. Nota solitária, ganha sentido na carta que ele es-
creveu para Bandeira, de São Paulo, possivelmente antes
de 13 de setembro de 1925: “‘Quando minha irmã morreu’.
170
àquelas remetidas a Mário de Andrade. Entretanto, esses
laços entre versões no manuscrito, cartas e versões publi-
cadas não esgotam as interrogações sobre co-autoria vir-
tual. Esta alimentada também pelo diálogo implícito com a
obra publicada de Mário, tomada como norte e matriz por
muitos escritores.
O colecionador, mentor e interlocutor de seus pares
certamente compreendeu que, além de preservar uma im-
portante parcela da produção cultural de seu tempo, reunia
um testemunho significativo dos processos de escritura,
bem como dos suportes e meios da escrita de muitos nomes
da literatura. Na verdade, protegia do esquecimento os bas-
tidores da criação que mostram, mais do que os livros, o
estilo de sua época, o arte-fazer de determinados grupos
daquele período. Seu conjunto de manuscritos de outros es-
critores, do mesmo modo que os demais conjuntos docu-
mentais de seu arquivo, uma vez transpostos para o patri-
mônio do Instituto de Estudos Brasileiros em 1968, sofreu
mudança de natureza e função17. Ao ingressar na esfera
dos bens públicos, afastando-se da propriedade particular,
passou a receber tratamento arquivístico destinado a dispo-
nibilizar os documentos para consulta no Setor de Arquivos
no IEB. Como os demais conjuntos, tornou-se uma série do
Arquivo Mário de Andrade, cuja organização se liga a pro-
jetos coordenados pela curadora, Profª. Telê Ancona Lopez.
Procurando sempre a função dos documentos e respeitando
a teia de relações que constitui um arquivo e um acervo,
esta organização trabalha o processamento das séries e a
divulgação dos respectivos conteúdos.
Um catálogo analítico
No processo de organização do Arquivo Mário de An-
drade para consulta, a série Manuscritos de outros escri-
tores havia recebido classificação prévia que identificou
e ordenou sumariamente os documentos, contando com o
trabalho das estagiárias Teresa de Almeida Arco e Flexa,
Flávia de Oliveira Nunes e Ivani Cristina Silva Fernandes.
Faltava, porém, uma nova classificação, a qual, além de
rever a primeira parcela realizada, pudesse compreender o
material como reflexo de determinados aspectos da traje-
tória intelectual de Mário de Andrade, classificação asso-
ciada a uma análise detida, atenta à tarefa de sanar lacunas
e apta a desenvolver notas explicativas de cunho histo-
17 O Arquivo entrou como doação feita pela Família Mário de Andrade ao
IEB, vinculada à aquisição das outras parcelas do acervo, isto é, a biblio-
teca e a coleção de artes visuais, feita pela Universidade de São Paulo, em
1968, para o referido Instituto.
172
A transcrição diplomática da maior parte das notas
autógrafas de Mário de Andrade, apostas aos manuscritos
– Notas MA –, vale como divulgação de fragmentos críticos
inéditos do escritor.
Algumas conclusões
Como destaca Bernard Vouilloux em “Discours du
collectionneur, discours de la collection au XIX siècle”18 ,
as ações de organização e de salvaguarda conferem às co-
leções novos rumos e novos sentidos. Assim, a organização
particular dada pelo colecionador, respondendo a necessi-
dades e interesses dele, é sucedida por uma nova disposição
elaborada na entidade pública, de forma a disponibilizar
fontes para investigações de cunho epistemológico.
No caso da série Manuscritos de outros escritores,
novos rumos e sentidos abrem-se para pesquisadores de
distintas áreas − literatura, música, antropologia, história,
psicanálise −, visto que os documentos possuem elementos
significativos para todas elas. Além disso, os manuscritos
transbordam os limites do arquivo enquanto elos perdidos
de dossiês da criação de outros escritores, porque guardam
fases do processo da escritura de muitos textos. Dialogam
igualmente com os demais tipos de documentos presentes
tanto no arquivo, como na biblioteca e na coleção de artes
de Mário de Andrade, presos à teia sutil formadora dos
acervos, recomposta pelas pesquisas atentas aos vínculos
e relações. O diálogo se estende até os estudos de Mário de
Andrade, pois, mesmo quando os fólios não mostram nas
notas marginais a ação direta do leitor e crítico, o fato dos
originais terem sido salvaguardados por ele significa uma
escolha, uma interferência. Não foi simplesmente o acaso
que os reuniu, e sim os propósitos e as inquietações intelec-
tuais de Mário.
Enquanto fontes para os estudos literários, a série
Manuscritos de outros escritores acrescenta dados a tudo
que se pode captar nos textos publicados por aqueles ali
representados. Na teia, na malha do arquivo, por força da
intertextualidade e das estreitas relações dos manuscritos
com correspondência, as leituras e a marginália de Mário
de Andrade, surge ainda o pensamento de autores e de de-
terminados grupos. A crítica genética oferece, então, ins-
trumentos valiosos para análise desse material. Conforme
Roberto Brandão, essa área de estudos nos auxilia a “com-
preender, não apenas a obra acabada, mas sobretudo as
implicações históricas, lingüísticas, estéticas e literárias
que nela atuaram de modo a torná-la o que ela é ao fim
18 VOUILLOUX, Bernard. Op. cit.
174
Traduzindo a literatura brasileira para o
tcheco – entrevista com Pavla Lidmilová
Sarka Grawova�
178
Sua obra, que se poderia chamar sem grandes exageros he-
róica, era, porém, a tradução de Grande sertão: veredas que
apareceu em 1971, um ano depois da edição italiana. Em-
brenhar-se naquele mundo do sertão numa época em que os
contatos entre tchecos e brasileiros foram parcos tinha que
ser um ato de grande coragem.
Como foi que leu “o sertão” uma tradutora que nunca tinha
estado no Brasil?
Quais foram os outros escritores com os quais você teve uma ex-
periência de intensidade comparável? Como chegou a conhecê-los?
180
poetas checos, poemas de Carlos Drummond de Andrade, Ma-
nuel Bandeira, Geir Campos e Fernando Fortes.
Os contos de Murilo Rubião foram publicados em volume
sob o título Dům U červené slunečnice (A Casa do Girassol Ver-
melho) somente em 1986 e, nas livrarias de Praga praticamente
toda a tiragem vendeu-se logo no dia do lançamento. Em 1994,
já depois das mudanças políticas no Leste europeu, seguiu-se
um outro volume ilustrado por Jiří Voves e, em 1995, foi pre-
miado como um “belo livro” numa Feira do livro. Jiří Voves, ar-
tista plástico, tornou-se um apaixonado da obra literária de Mu-
rilo e organizou também uma exposição de seus desenhos ins-
pirados nos contos deste escritor mineiro.
182
Há um livro brasileiro que você gostaria de ter traduzido e
por alguma razão não o fez?
Walter Garcia*
Chico Buarque
Fernando de Barros e Silva, Publifolha, 2004.
188
de Schwarz sobre Estorvo servir tanto às observações de
Silva acerca desse romance como para fechar o comentário
das canções “Pivete”, “O meu guri” e “Brejo da Cruz”, pois
há outros autores utilizados de modo mais fundamental na
visão que se apresenta de artista e obra. O que ocorre é que
o sentido do processo histórico brasileiro é percebido com
base principalmente em interpretações de Roberto Schwarz
que, como se sabe, em seu trabalho procura articular forma
artística e dinâmica social – método aliás que Antonio Can-
dido, para ficarmos no âmbito brasileiro, já iniciara ante-
riormente.2
Há, entretanto, uma importante diferença de metodo-
logia a assinalar entre os estudos desses dois críticos literá-
rios e o livro de Fernando de Barros e Silva. Em sua abor-
dagem, Silva não desenvolve uma análise da estrutura in-
terna das obras com vistas a, nos termos de Candido, levar
em conta o elemento social “como fator da própria cons-
trução artística, estudado no nível explicativo e não ilus-
trativo”.3 À parte o tipo de publicação exigir por vezes uma
concisão extremada, a análise estética em Chico Buarque fica
circunscrita ao comentário perspicaz sobre letras de canções
(em relação à parte musical, falarei adiante) e enredos de li-
vros, refletindo basicamente sobre seus conteúdos, não sobre
suas formas (com o perdão pela linguagem ultrapassada).
Uma apreciação, portanto, que não chega a ser uma
crítica no sentido rigoroso da palavra, ficando entre o en-
saio sociológico e a interpretação jornalística – já que esta
última é cada vez mais rara na imprensa, dedicada a copiar
ou redigir releases, quando não a fazer circular a marca do
veículo ou o marketing pessoal do jornalista, pode-se cogitar
que a série Folha Explica seja oferecida pela empresa Folha
da Manhã como sucessora de um espaço que, de fato nunca
muito extenso, anda hoje em vias de extinção. A estratégia
nem é propriamente uma novidade, se lembrarmos que já há
algum tempo a grande reportagem se tornou basicamente
um gênero de livro. Para quem se interessa por conheci-
2 Sobre o assunto, ver Arantes, Paulo Eduardo. Sentimento da dialética na
experiência brasileira: dialética e dualidade segundo Antonio Candido e
Roberto Schwarz. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992.
Quatro contribuições
Em seus aspectos mais positivos, a perspectiva ado-
tada no trabalho de Silva apresenta quatro boas contribui-
ções, na minha opinião. Número um, os apontamentos sobre
as “Raízes de Chico”, que colocam obra e artista em relação
a duas utopias. De um lado, “uma espécie de utopia esté-
tica” aprendida com Tom Jobim e Oscar Niemeyer: “a ilusão
de que a mesma chave que podia reparar as injustiças de
uma herança histórica pesada serviria também para abrir as
portas da nossa modernidade”. A chave de que se fala seria
a conciliação de nossos vários antagonismos (“o local e o
cosmopolita, o sertão e o litoral, o folclore e a vanguarda, o
popular e o erudito”), em um projeto “coletivo, ainda que di-
fuso”4 de integração nacional, do qual Brasília “seria a sín-
tese, a materialização”. O problema é que somente o sentido
histórico dessa utopia é apresentado, não se descrevendo
como ela se deu esteticamente ou, em outras palavras, como
ela era para ter o sentido histórico que tem. De modo aná-
logo, a alusão feita a Guimarães Rosa nesse quadro é válida,
e acredito que acertada, mas tampouco descreve, apenas
exemplifica (p. 15).
De outro lado, haveria uma “utopia social” herdada de
Sérgio Buarque: “a crença de que a construção de um país
viável dependia e passava pela adoção de uma democracia
de massas, na qual a maioria pobre tivesse a liderança do
processo histórico” (p. 26; grifo do autor), sobre o quê, há
um aspecto a ser debatido mais adiante.
Contribuição número dois do livro de Silva, a uti-
lização de quase quarenta anos de entrevistas de Chico –
muitas delas disponíveis no site oficial dedicado ao artista
(www.chicobuarque.com.br), uma ótima fonte de pesquisa –,
além dos perfis escritos pelos jornalistas Humberto Werneck
e Regina Zappa 5 e de depoimentos dados ao próprio autor.
Há desde entrevistas já meio míticas, como a para o Pas-
quim em 1970, até comentários mais recentes, como o sobre
190
o uso escamoteado da seleção de futebol húngara de 1954
em Budapeste, “brincadeira, aparentemente gratuita, [que]
se integra à engenharia do romance, todo ele construído
como um jogo de espelhos em torno de identidades fugidias
e cambiáveis”, na ótima observação de Silva (p. 108). A reu-
nião e o aproveitamento de todo esse material é um trabalho
jornalístico muito bem realizado que também revela um es-
forço de acumulação, sem o qual há sempre o risco da mera
repetição de idéias anteriores, ou de o conhecimento da
questão tratada não avançar como poderia.
Um rápido parêntese. Se não estou enganado, esse é
um problema encontrado no texto “A utopia lírica de Chico
Buarque de Hollanda”, de Renato Janine Ribeiro, que expõe,
aparentemente sem saber, algumas idéias semelhantes às de
Adélia Bezerra de Meneses, Walnice Nogueira Galvão, José
Miguel Wisnik e Guilherme Wisnik. Não se trata de plágio,
entenda-se bem, e é verdade que o trabalho se constrói a
partir de um novo ângulo de observação – a tradição filosó-
fica –, o que realmente enriquece o que já se sabia, à parte
o enriquecimento garantido pela qualidade de seu próprio
autor. No entanto, estou certo de que, caso tivesse conside-
rado seus pares, o texto teria levado mais longe reflexões
como: “a transgressão é justamente o que formula a utopia
de Chico Buarque”; “o samba, ou o amor, ou o Eros, é o
ponto que pode efetuar essa grande transformação social”; e
“o que temos em Chico Buarque será a conversão – sempre
recíproca, sempre em duas mãos – do íntimo e do pessoal,
no coletivo e no social”. Além disso, parece-me realmente
injustificado Janine Ribeiro não mencionar a célebre noção
de cordialidade apresentada por Sérgio Buarque mesmo ob-
servando que, nas canções de Chico, a utopia “passa por
um recuo da lei, no seu teor repressor”, pois nessa utopia “o
fator que liberta é a intensificação dos elementos amorosos
ou afetuosos”.6
Publicado no mesmo ano, o livro de Fernando de
Barros e Silva apresenta uma disposição diversa, como já foi
6 Cf. Ribeiro, Renato Janine. “A utopia lírica de Chico Buarque de
Hollanda”. Cavalcante, Berenice; Starling, Heloísa & Eisenberg, José
(orgs.), Decantando a República, volume 1: Outras conversas sobre os jeitos
da canção. Rio de Janeiro, Nova Fronteira/ São Paulo, Ed. Fundação Perseu
Abramo, 2004, pp. 149-168. O texto de Walnice Nogueira Galvão a que me
refiro é “MMPB: uma análise ideológica”. Sacos de gatos. 2a ed. São Paulo:
Duas Cidades, 1976, pp. 93-119. A noção de cordialidade é formulada por
Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil (3a ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1956). Sobre os textos dos outros autores, ver notas 7, 8 e
10. Ressalte-se que, na mesma série em que se encontra o texto de Janine
Ribeiro, Heloísa Starling nos apresenta um bom exemplo de interpretação
de Chico Buarque construída a partir de esforços anteriores (cf. “Uma
República pelas tabelas”; Decantando a República, volume I1: Retrato em
branco e preto da nação brasileira, pp. 105-116).
Aprimorando o conhecimento
Ocorre que todas essas idéias foram concebidas com
base no aprofundamento de textos anteriores. A idéia prin-
cipal defendida por Silva tem como matrizes o ensaio “O
artista e o tempo”, de José Miguel Wisnik e Guilherme
Wisnik,7 e o artigo “Estorvo”, de Marcelo Coelho,8 devendo-
8 Cf. Coelho, Marcelo. “Estorvo”. Gosto se discute. São Paulo, Ática, 1994,
pp. 61-65. (Publicado anteriormente na Folha de S.Paulo, 7/8/1991, com o
título “Chico Buarque faz um livro impopular”.)
192
lhes a formulação, o que aliás é dito em notas de rodapé. A
segunda idéia também é retirada de “O artista e o tempo”,
e a terceira, agora sem indicação no rodapé, é parcialmente
inspirada no release que José Miguel Wisnik escreveu para
o lançamento do romance Budapeste.9 Mas não se trata de
uma mera compilação, pois essas idéias sobre a trajetória ar-
tística de Chico Buarque são postas em diálogo com o con-
texto histórico-social tratado a partir de Roberto Schwarz.
O resultado é que, no trabalho de Silva, as relações entre o
artista, sua obra e o processo histórico ficam mais concretas
do que estavam, melhorando-se o que se sabia até então.
Embora não seja apresentada, reitere-se, uma análise esté-
tica com força de contraprova, o livro assinala de modo bem
mais nítido um bom caminho para estudos subseqüentes.
Também a última idéia, acerca do potencial crítico do
lirismo, retoma um estudo anterior, Desenho mágico, de Adélia
Bezerra de Meneses.10 A propósito, Silva tem o cuidado de
fazer três citações desse livro, acompanhando as três princi-
pais modalidades em que Meneses divide a canção de Chico:
“lirismo nostálgico” (p. 42), “variante utópica” (p. 81) e “ver-
tente crítica” (p. 71).11 Apenas a quarta modalidade ficou
de fora, “canções de repressão”, o que parece ser uma estra-
tégia. O ensaio de Silva se mostra interessado em contestar a
imagem pública de Chico Buarque como compositor de pro-
testo, que lutou contra a ditadura militar durante a década de
1970 e, perseguido pela censura, foi o principal herói da es-
querda. Trata-se de uma revisão que, à primeira vista bastante
original, na verdade acompanha um desejo do artista mani-
festado em várias entrevistas desde aquela época, uma delas
inclusive citada no próprio livro. Apesar disso, deve-se objetar
que no fim das contas Silva dá muito pouca importância a um
enfrentamento que, embora superdimensionado até agora, de
fato existiu, à revelia ou não de seu protagonista.
10 Cf. Meneses, Adélia Bezerra de. Desenho mágico. 2a ed. São Paulo,
Ateliê Editorial, 2000. (1a ed., Hucitec, 1982.) A fim de complementar
o que já se disse acerca de bases teóricas, vale lembrar que Meneses se
apóia, entre vários textos diversos, em “Palestra sobre lírica e sociedade”,
de Theodor W. Adorno, conforme a autora explicita à p. 146. Esse texto
de Adorno também é referido, mas apenas de passagem, por Fernando de
Barros e Silva (p. 126).
194
o seu livro e o ensaio de José Miguel Wisnik e Guilherme
Wisnik. Em “O artista e o tempo”, os autores afirmaram que
a letra de “Bye Bye, Brasil” (música de Roberto Menescal)
corresponde “até certo ponto” à “profecia tropicalista”, atri-
buindo sinal positivo a essa correspondência. Ocorre que,
desde a década de 1970, os estudos de José Miguel Wisnik
sobre canção popular sempre demonstraram, em graus di-
versos, uma atitude tropicalista de incluir a ambigüidade ou
a ambivalência no método de interpretação, atitude fundada,
entre outros aspectos, na percepção de que a realidade bra-
sileira se estrutura de forma ambígua ou ambivalente. De
fato, creio que não se possam entender, nesses estudos, as
várias influências que o próprio Wisnik já listou – Antonio
Candido, Roberto Schwarz, Davi Arrigucci Jr., Alfredo Bosi,
José Antonio Pasta Jr. –, mesmo somadas à sua aproximação
com a psicanálise e à sua formação musical, quando não se
leva em conta a afinidade do ensaísta com “o espírito do
tropicalismo baiano”.14
Por sua vez, Fernando de Barros e Silva, acompa-
nhando Roberto Schwarz, observa que “era impossível dis-
cernir em suas [dos tropicalistas] apostas, sempre muito
entusiasmadas, onde terminava o esforço crítico e onde co-
meçava o oportunismo publicitário – até porque o próprio
movimento tratava de confundir reiteradamente as duas
coisas”15 (p. 52). A ambigüidade e a ambivalência, como se
vê, nesse pensamento ganham sinal negativo. Ao afirmar,
14 As influências teóricas de José Miguel Wisnik são por ele comen-
tadas em Wisnik, op. cit., pp. 526 a 531; as influências da tropicália e,
em especial, de Caetano Veloso, são comentadas às pp. 490; 496; 501;
503 a 505. Note-se que já em 1985, escrevendo sobre Arrigo Barnabé,
Wisnik assim considerava a situação geral da canção de massa no Brasil:
“Caetano Veloso é quem mais tem essa cancha, historicamente conseguida,
de midializar as mínimas sutilezas poéticas num máximo de referências
culturais, que vão das mais literárias e eruditas ao samba, ao rock e ao
brega. A sua capacidade de vazar a massificação trabalhando dentro dela
é impressionante, e foi possível graças à conjunção entre o seu talento e o
lugar privilegiado que a música ocupa no Brasil, seu trunfo e seu triunfo
polêmico. Caetano se impregnou de tal modo da própria dinâmica geral
da música popular brasileira, fazendo dela a sua matéria e o seu mito
máximo, que se poderia aplicar a ele uma expressão de Lévi-Strauss no
‘Pensamento selvagem’: o indivíduo como espécie, espécime único dotado
de uma tal generalidade estrutural que nos faz crer que pertencem ao
sistema da música popular atributos que são dele” (cf. “Inovação versus
redundância na MPB”, Folha de S.Paulo (Folhetim), 28/4/1985, p. 3).
Duas discussões
Ao posicionar a obra de Chico na tradição de um
“pensamento radical” brasileiro, apoiando-se inteligente-
mente em considerações que Antonio Candido faz sobre
Sérgio Buarque de Holanda, Silva defende a identificação
daquele artista “com um radicalismo nada doutrinário, que
tem na mobilização popular seu ponto de apoio” (pp. 26-27).
Mas o lugar social desse radicalismo e os limites daí decor-
rentes não são pesquisados, o que é um passo atrás em re-
lação às próprias reflexões em que Silva se baseia. Refiro-
me à apresentação do radicalismo feita por Candido: “Ge-
rado na classe média e em setores esclarecidos das classes
dominantes, ele não é um pensamento revolucionário, e, em-
bora seja fermento transformador, não se identifica senão
em parte com os interesses específicos das classes trabalha-
doras, que são o segmento potencialmente revolucionário da
sociedade. (...) O revolucionário, mesmo de origem burguesa,
é capaz de sair da sua classe; mas o radical, quase nunca.
Assim, o revolucionário e o radical podem ter idéias equiva-
lentes, mas enquanto o primeiro chega até a ação adequadas
a elas, isto não acontece com o segundo, que em geral con-
temporiza na hora da ruptura definitiva”.16
Sei que o texto de Candido, apresentado em 1988 e
publicado pela primeira vez em 1990, para muitos recorre a
um vocabulário e a um horizonte político atualmente sem
razão de ser na dinâmica da economia mundial. Ainda que
eu não concorde exatamente, aceito a objeção – mas meu
contra-argumento é que qualquer análise posterior não de-
veria ignorar, e sim fazer avançar o que ali se diz, corri-
16 Cf. Candido, Antonio. “Radicalismos”. Vários escritos. 3ª ed. São Paulo,
Duas Cidades, 1995, pp. 266-267. O texto é citado por Fernando de Barros
e Silva na bibliografia.
196
gindo o que parecesse necessário. Não seria um caminho
adequado para um melhor entendimento sobre a consa-
gração do artista?
Não se trata, entenda-se, de enxergá-lo sob o prisma
de uma determinada atuação política, como muito já se fez.
Trata-se de levar às últimas conseqüências o próprio método
utilizado por Fernando de Barros e Silva. Há um silêncio,
no livro, sobre o lugar específico da sociedade a partir do
qual essa obra é produzida, no qual é bem veiculada e bem
consumida, apesar (ou por causa?) do “mal-estar” represen-
tado. Por exemplo, diante de uma afirmação de Silva (p. 28)
de que, a partir da década de 1980, “a conquista da demo-
cracia irá defrontar-se com o fato paradoxal de um país de
agora em diante impossibilitado de realizar as promessas
de que ela própria era portadora. Ficamos todos, por assim
dizer, a ver navios – ou como passageiros da embarcação
que ‘navega para trás’, na bela imagem do ‘Xote de nave-
gação’ [parceria com Dominguinhos]”, resta a pergunta bá-
sica: a quem exatamente se refere o pronome “nós”, aliás um
sujeito oculto?17
Nesse sentido, talvez seja sintomático que Silva acolha
um pensamento exposto por Marcelo Coelho no artigo “Es-
torvo”: “Se, nos países socialistas, a esquerda traiu o povo,
o desespero com relação ao Brasil é inverso. De certo modo,
o povo traiu a esquerda; o desespero, o rancor de Chico Bu-
arque a partir dos anos 70, a referência não mais utópica,
mas irônica, de suas canções depois dessa época significam,
acima de tudo, a derrota que se abateu sobre um país que
não se reconhece mais a si mesmo”.18
17 A indicação de alguns outros textos de Antonio Candido talvez ajude
a esclarecer minhas considerações. Veja-se, por exemplo, em Literatura e
sociedade, o ensaio “O escritor e o público”, em que o autor relaciona, “na
nossa literatura oitocentista”, o desenvolvimento de “um certo confor-
mismo de forma e fundo, apesar das exceções”, ao “caráter, não raro assu-
mido pelo escritor, de apêndice da vida social, pronto para submeter sua
criação a uma tonalidade média, enquadrando a expressão numa certa
bitola de gosto”, tudo isso feito muitas vezes por “homens ajustados à
superestrutura administrativa” (op. cit., p. 76); ou o ensaio “A literatura e
a vida social”, em que um dos tópicos discutidos é justamente “A posição
do artista”. No âmbito dos estudos sobre canção popular, veja-se “Seguindo
a canção”: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969),
de Marcos Napolitano [São Paulo, Annablume/Fapesp, 2001], trabalho
praticamente isolado em seu propósito, realizado de modo excelente, de
tentar “entender as formas concretas de atuação de artistas e intelectuais
que acreditaram na possibilidade de engajar-se, ao mesmo tempo que
atuavam no mercado musical” (p. 17).
18 Cf. Coelho, Marcelo. op. cit., pp. 63-64. O jornalista chega a esse pensa-
mento a partir de duas comparações que faz, ambas aproveitadas por
Fernando de Barros e Silva (pp. 44 e 63): uma, entre as canções “A banda”
e “Vai passar” (parceria com Francis Hime); outra, entre “Quem te viu,
quem te vê” e “Essa moça tá diferente”.
19 Cf. Salgado, Sebastião. Terra. São Paulo, Companhia das Letras, 1997,
pp. 138-143.
198
opinião do próprio artista; ou talvez não, mas isso não é im-
portante aqui.20 Ocorre que as citações de Guimarães Rosa,
que abrem e fecham a letra, e o ar jobiniano, que se sente
na música, são destacados por Silva como, respectivamente,
“imagens daquele que alcançou em sua obra – particular-
mente em Grande Sertão: Veredas – a síntese que o Brasil
ficou devendo a si mesmo” e marcas de “‘uma promessa que
o Brasil fez ao mundo, e ainda não cumpriu’”21 (p.131). “As-
sentamento”, enfim, para Silva configuraria “o Brasil que
ficou suspenso no ar” (p. 132). Se a interpretação está cor-
reta, como fica o diálogo entre a utopia algo fantasmagórica
dessa “espécie de ‘morto que não morre’” (p. 131) 22 e a situ-
ação concreta do MST, a qual é silenciada ao longo de toda
a análise, mesmo tendo sido o estímulo inicial para a com-
posição, via imagens fotográficas?
20 “A música ‘Assentamento’, por exemplo, as fotos do livro do Salgado
(Terra) me serviram de motivação, de inspiração, ou o que você quiser,
para escrever aquela música, mas ela foi criada dentro do meu universo
poético, a partir daí eu fiquei satisfeito porque a música, enquanto
música, entrou no livro do Salgado, e o livro tinha uma finalidade prática
mesmo, até pecuniária, os direitos do livro foram cedidos para os sem-
terra, aí é outra coisa. ‘A música já está criada e vamos ver o que a gente
faz com ela.’ A gente cria um objeto de arte, a gente pode criar a partir
dessa música uma utilidade prática, mas criar uma música pensando na
sua finalidade objetiva me parece perigoso, empobrecedor mesmo.” Cf.
“Chico, o craque de sempre”, entrevista a Caros amigos, São Paulo, Casa
Amarela, ano 2, no 20, dez. 1998, p. 23. Vale lembrar, sobre o assunto,
que já se tornou opinião corrente considerar várias canções de Chico como
discursos que dão “voz àqueles que em geral não têm voz”, conforme
escreveu Adélia Bezerra de Meneses no início dos anos 80 (op. cit., pp.
118-128; ver também, da autora, Figuras do feminino. São Paulo, Ateliê
Editorial/Boitempo, 2000, capítulo 2; e “Utopia renitente: Levantados
do chão/Assentamento”; Cavalcante, Starling, & Eisenberg (orgs.),
Decantando a República, volume III: A cidade não mora mais em mim.
Rio de Janeiro, Nova Fronteira/ São Paulo, Ed. Fundação Perseu Abramo,
2004, pp. 113-122).
200
nais, via de regra, ficamos na melhor das hipóteses com im-
pressões de bons ouvintes, sem formação musical mas com
intuição e muitas informações, o que por vezes gera pistas
importantes para investigações mais criteriosas. No livro de
Silva, esse é o caso da aproximação entre Chico e Jobim, na
toada “Assentamento”, ou do comentário sobre o arranjo de
Rogério Duprat para “Construção” (p. 71), ou ainda da im-
pressão, tomada de empréstimo a Pedro Alexandre Sanches,
provocada pelo arranjo de “Bancarrota Blues” (p. 95), par-
ceria de Chico com Edu Lobo.
A dificuldade aparece quando Silva mistura impres-
sionismo a termos técnicos. Sobre “O futebol” (p. 111), por
exemplo, se diz que “a música vai costurando em zigue-
zague, no sentimento diagonal de sua harmonia, uma es-
pécie de jogada de movimentos perfeitos”, o que rigorosa-
mente não quer dizer nada. Um outro exemplo: em meio a
observações realmente perspicazes do autor sobre as letras
de “Estação derradeira” e “Carioca” (pp. 126-128), afirma-se
que esta última “tem uma das harmonias mais trabalhadas
de toda a obra de Chico – um labirinto cromático, por onde
se avança num ritmo rascado, feito de soluços, pequenos vá-
cuos, movimentos bruscos e cortes inesperados – em opo-
sição à melodia, que flutua no ar com leveza e alegria”. Ora,
o ritmo do violão executando a harmonia é regular durante
toda a canção (à parte a surpresa que causa, num primeiro
momento, o fato de esse desenho rítmico, nos seus ataques
de acordes, inverter a batida da marcha-rancho – esta, utili-
zada, por exemplo, em “Futuros amantes”).25 E o cromatismo
auxilia no encadeamento dos acordes de uma harmonia
marcha-rancho “Carioca”
202
História do Brasil Guloso
Claude G. Papavero*
1 No começo dos anos 60, com efeito, Braudel solicitou aos historiadores
ar No começo dos anos 60, com efeito, Braudel solicitou aos historiadores
artigos sobre o tema da alimentação e incluiu alguns ensaios em cada
número da Revista das Annales publicado durante aquela década.
204
cobre, assim, uma percepção etnográfica aguda das lógicas,
que norteiam os procedimentos, e muitos fatos interessantes
surgem nas entrelinhas, como no caso da presença discreta
do feijão no cardápio colonial dos primeiros séculos, se afir-
mando posteriormente como alimento predileto. É, portanto,
necessário debulhar o texto atentamente.
Talvez tenha sido esta peculiar associação de descri-
ções particulares e de valores culturais, marcante na es-
crita de Câmara Cascudo, que incentivou José Reginaldo
Santos Gonçalves a enfatizar o caráter etnográfico da es-
crita dotada de forte viés nativo3. O estudioso afirma: “Não
por acaso, Cascudo jamais veio a ser reconhecido como um
“cientista social” em sentido estrito. Ainda que fosse um fol-
clorista reconhecido nacional e internacionalmente, sempre
ocupou uma posição marginal no sistema acadêmico brasi-
leiro”. Mais adiante, Gonçalves acrescenta: “Em seus escritos
etnográficos, é possível reconhecer não o clássico “eu estive
lá” dos antropólogos sociais ingleses e dos antropólogos cul-
turais norte-americanos, mas alternativamente, o “eu sempre
estive aqui”, próprio do etnógrafo nativo”.
De fato, a perspectiva analítica de Câmara Cascudo
se aproxima muito das teias de significações que os homens
tecem e nas quais enredam suas vidas, de Clifford Geertz 4 ,
com significados anotados em campo e descritos em textos
“densos” por observadores que “estiveram lá”. Na medida em
que a obra de Geertz prolonga a metodologia culturalista
de Boas e de discípulos como Robert Lowie ou Margareth
Mead citados por Câmara Cascudo, o comentário procede.
Porém, curiosamente, além de promover um estudo cultura-
lista da alimentação brasileira, centrado nas peculiaridades
do sistema instituído e de considerá-lo por um prisma difu-
sionista apropriado a incorporações de práticas alimentares
herdadas de diversos povos, há algo que prevalece na abor-
dagem dos temas: é a intuição de Câmara Cascudo, que pa-
rece antecipar o uso atual dos conceitos de “fato social total”
e de “homem total” de Marcel Mauss5 nas análises de fenô-
menos alimentares (perspectiva analítica recente de antro-
pólogos da alimentação como Claude Fischler6 ). Com efeito,
5 Mauss, Marcel. “Ensaio sobre a dádiva, forma e razão da troca nas socie-
dades arcaïcas” e “As técnicas do corpo”, Sociologia e Antropologia, São
Paulo, Cosac & Naify, 2003.
206
A contribuição italiana, segundo
Sérgio Buarque de Holanda
Lucy Maffei Hutter *
208
com aqueles de orígem itálica, destacando o genovês Filippo
Adorno, em São Vicente - então capitania de São Paulo – e
o florentino Filippo Cavalcanti estabelecido em Pernambuco,
conhecido entre os conterrâneos, desde os finais do século
XVI como administrador de “grandes negócios”, com fabri-
cação de açúcar, e “homem de grande autoridade”.
Procede a análise da questão do sistema de coloni-
zação portuguesa, capitanias e governo-geral, e da inade-
quação do mesmo diante da expansão do domínio territorial,
com a penetração dos habitantes de São Paulo, no século
XVII, interior adentro, atingindo locais distantes em busca
do índio e de minérios preciosos. E, quanto à região norte,
do Brasil, a interiorização se fez, facilitada, até certo ponto,
pelos rios. Resultado dessa expansão: reconhecimento da Es-
panha, pelo Tratado de Madrid, da ampliação dos domínios
portugueses.
Não só o domínio de um território maior, mas,
também a luta anterior pela expulsão dos holandeses, entre
outros fatores, teriam induzido os descendentes dos coloni-
zadores à noção de uma certa autonomia e “das diferenças
que tendiam a separar dos portugueses da Europa”.
Já a questão educacional, na colônia, entregue às or-
dens religiosas e, sobretudo à Companhia de Jesus, propiciou
a vinda de missionários tanto portugueses como de outras
orígens, entre estes, italianos que, por vezes, chegaram a fa-
vorecer seus conterrâneos e até mesmo a contrariar ordens
de Portugal, como foi o caso de Gian Antonio Andreoni, na-
tural de Luca, autor do livro Cultura a e opulência do Brasil
por suas drogas e minas.
Comenta Buarque de Holanda a influência da cultura
italiana na prosa e no verso elaborados no Brasil Colônia.
Manuel Botelho de Oliveira, por exemplo, primeiro brasi-
leiro a publicar um livro em verso, o fez em italiano: Mu-
sica del Parnaso (ed.1705, Lisboa). Aqueles que se voltavam
mais para os outores italianos o faziam em contraposição ao
espanholismo, na tentativa da “reconquista de uma tradição
nacional perdida”, durante o domínio espanhol.
Na década de 60 do século XVIII, um melodrama de
Metastasio foi apresentado no Rio de Janeiro, tendo por
atores um grupo de mulatos dirigidos por um padre. Ao
mesmo autor Metastasio, José Basílio da Gama enviou o seu
poema épico O Uraguay, editado em Lisboa, acompanhado
de uma carta. Tanto esta como a resposta estão reprodu-
zidas nesse ensaio de Buarque de Holanda, chamando ele a
atenção para o tom pouco sincero enquanto demasiadamente
elogioso de ambas, não propriamente como uma crítica,
mas, com o intuito de mostrar a psicologia setecentista e a
maneira de se expressar de uma época.
210
Ana Berstein: a crítica cúmplice
Vilma Arêas*
1 Cf. Pontes, Heloisa. Destinos mistos -os críticos do Grupo Clima em São
Paulo, 1940-1968, S. Paulo, Companhia das Letras, 1998, a respeito dos
processos sócio-culturais desses anos.
212
Quanto à literatura, nosso autor afirma que os modernistas
eram muito pouco lidos.”Mário de Andrade fez uma tiragem
de 800 exemplares de Macunaíma e, ainda assim, guardava
um monte deles em casa. Quanto ao teatro a coisa é ainda
mais complexa. Conta com muita gente em sua preparação
e não se pode fazê-lo sem pensar em se ter um mínimo de
público”6 . Em consequência era quase inexistente além do
repertório “para rir” (por isso Décio chegou a pensar em ser
crítico de cinema). Uma guerra mundial rebatia numa dita-
dura caseira, exercitando sua censura (Procópio queixando-
se de que não podia falar a palavra “amante”, Cacilda Be-
cker proibida de falar a palavra “gatuno” no grupo amador
liderado por Décio7).
A Crítica Cúmplice sublinha o caráter inaugural do
trabalho de Almeida Prado nesse contexto, pois antes dele
a crítica não passava de mero registro jornalístico e so-
cial. Ele próprio confessa 8 não se lembrar do nome do su-
posto crítico que o antecedeu em O Estado de S. Paulo, sa-
bendo apenas que ele cobria principalmente turismo 9. Todo
esse cenário passou a se modificar a partir da revista Clima
- onde o futuro autor de João Caetano colaborou de 1941 a
1944 e em O Estado de S. Paulo, de 1946 a 1968, ao lado de
Sábato Magaldi. O mesmo cenário anterior explica a “cum-
plicidade” do crítico em relação a seu objeto de estudo, pos-
tura intelectual partilhada por todo o grupo de Clima. Equi-
para-se à “paixão do concreto” referida por Gilda de Mello
e Souza, à defesa da crítica educativa por Lourival Gomes
Machado, por conta do abismo entre “as elites e a massa”
no Brasil, e à crítica interessada de Antonio Candido, con-
forme lemos na Introdução à Formação da Literatura Bra-
sileira. Nessa linha Décio se esforçou para que nosso teatro
se desenvolvesse e ampliasse o repertório, tarefa dos Co-
mediantes, no Rio, que marcaram o início do bom teatro
contemporâneo entre nós10 , e dos grupos amadores em São
Paulo; o encenador, que chegou com Ziembinski, completou
a modernização de nosso palco. O empenho dessa crítica,
entretanto, nada tinha de ufanista, ou de mero “entusiasmo
6 O Estado de S. Paulo, 9/ago/1997.
8 Idem.
214
A partir desses primeiros textos, também é fácil ob-
servar o caráter empenhado do crítico iniciante, a compre-
ensão da importância da crítica nas décadas de 1940 e 1950,
quando todos batalhavam por um teatro moderno, sempre
defasado dos centros hegemônicos, e a convicção de que His-
tória e crítica são indissociáveis. “Acho que a crítica é muito
o jogo entre o particular e o universal” - afirma ele numa
entrevista a Ana ( Apêndice-2)- “ Se você fizer uma coisa
puramente universal, você faz, de fato, uma ciência do te-
atro. Se você fizer uma coisa inteiramente particularizada,
você não faz nem crônica; apenas você dá suas impressões”.
Não deixa de ser curioso que alguns aspectos do palco
denunciados por Décio naquelas páginas inaugurais até hoje
persistam. Por exemplo, a existência (por ele condenada)
do virtuose, cujo maior interesse seria a exibição de quali-
dades pessoais, “como se a interpretação fosse um fim em si
mesma” (p.259); o compromisso entre teatro comercial e te-
atro de arte, cruzamento difícil de resolver equilibradamente
em todas as artes, principalmente no teatro, ao mesmo
tempo criação e comércio; o mero uso de fórmulas da moda,
que tornam o espetáculo mecânico; percalços da encenação
de textos clássicos por falta de formação de atores, pois seria
necessário “um longo aprendizado, uma longa preparação da
voz, de respiração, de dicção, de gestos, de movimentação, o
conhecimento profundo de um estilo de representar” , o que
não se faria sem escolas dramáticas). Outras questões são
datadas, por exemplo o desenvolvimento do teatro nacional
pelo amadurecimento de Os Comediantes enquanto grupo,
precedido pela ação renovadora do amadorismo, e culmi-
nando na representação de Vestido de Noiva, em 1943 sob a
direção de Ziembinski, citado acima. Em O Teatro Brasileiro
Moderno Décio comenta o acontecimento, com uma ani-
mação a que não falta certa ironia risonha:
216
própria representação, pela efemeridade de sua natureza, so-
brevivendo apenas na memória.
Na orelha que escreve para o livro, Mariangela Alves
de Lima observa que Ana Bernstein não padece “a angústia
relativista da produção teórica contemporânea” e serena-
mente afirma que Décio de Almeida Prado “foi o maior crí-
tico teatral que o Brasil já teve”, afirmação que eu diria
unânime, ou quase. Mais que isso, “este livro foi escrito por
uma pesquisadora que se deixa ensinar pelas coisas”, o que
significa que absorveu valores de seu autor: evitou a para-
lisia da reverência elogiosa e da exaltação superlativa, o que
caracterizaria uma mera opinião, preferindo a pesquisa das
fontes e a leitura criteriosa dos textos na formação do juízo.
Eu acrescentaria ainda outro aspecto: no ítem “a crítica
militante” (capítulo 3), Ana comenta a decisão do crítico
quando decidiu publicar em livro seus textos jornalísticos.
Haveria uma dupla razão: em primeiro lugar, o testemunho
prestado a essa arte fugaz, num tempo em que o recurso do
vídeo ainda não existia.” Reunidos em livro [os textos] se-
riam comparáveis a instântaneos, que fixam rapidamente
o presente do espetáculo, sem nada dizer do passado ou do
futuro” (p.94). A segunda razão dizia respeito à criação de
uma consciência teatral. Ou seja, naquele momento inicial, a
crítica teria sobretudo “um caráter formativo e informativo,
didático, menos preocupado com questões estéticas em si do
que com a forma de tornar essas questões acessíveis e claras
para o público leitor”(p.95).
Ora, sendo A Crítica Cúmplice o primeiro ensaio ex-
clusivamente sobre a produção de Almeida Prado, Ana
Bernstein certamente obedeceu ao mesmo caráter “forma-
tivo e informativo”, indiscutivelmente útil a futuros pesqui-
sadores. Rodeou por todos os lados o objeto de sua análise
-o crítico e sua crítica- esmiuçando circunstâncias conjun-
turais, o diagnóstico cultural do Brasil e de nosso teatro, o
empenho e a responsabilidade estética, social e política (nem
sempre partidária) do Grupo Clima. Desafios intelectuais e
constrangimentos de várias ordens não estão ausentes do re-
trato a bico de pena que é feito de Décio, de quem também
é ouvido o depoimento e sua própria versão de muitos acon-
tecimentos. Não preciso citar a suposta ojeriza do crítico
em relação a Brecht, ou o seu “agradeço, mas não aceito a
exclusão” no episódio da devolução dos prêmios ao Estado
de S. Paulo em 1968, quando a classe teatral rompeu com
todo e qualquer vínculo com aquele órgão da imprensa, ex-
cluindo-se entretanto os nomes de Décio e de Sábato Ma-
galdi. Não custa lembrar também que diante das críticas ao
TBC, inclusive por seu “italianismo”(de um certo momento
em diante virou moda criticar o TBC, como, numa certa
218
mente os pilares básicos da cultura oficial brasileira, eles
não foram lidos e caíram no vazio. E quando de fato se ini-
ciou a renovação teatral, entre 1940 e 1950, “esta se fez sem
plano de conjunto, por avanços e recuos, por iniciativas às
vezes antagônicas, quase todas de caráter individual”18.
Os exemplos desse quilate não são poucos. Mas com-
preendo que isso fugiria ao projeto de Ana Bernstein, com o
pouco tempo de que dispôs para elaborar um trabalho de fô-
lego como este. Que ela continue, é o que todos desejamos.
Antonio Porro*
222
damente contra os repetidos ataques que o governador Men-
donça Furtado e o bispo D. Miguel de Bulhões faziam aos
jesuitas (“Anás e Caifás faziam a sua vontade e os apóstolos
de Cristo estavam a dormir”), que João Daniel foi, entre os
jesuítas desterrados, um dos poucos a sofrer o castigo mais
rigoroso: a prisão perpétua (op. cit., pp. 80-81).
Banido da colônia ao final de 1757, João Daniel
passou os primeiros quatro anos de cativeiro no Forte de
Almeida, em condições de extremo rigor. Por crueldade, sa-
bendo que o que lhe restava era escrever, mas também por
precaução, pois tentara dirigir uma petição ao rei, eram ne-
gados, a ele e a seus companheiros, papel e tinta para es-
crever. As condições adversas do seu longo cativeiro le-
varam mais de um autor a se perguntar como poderia João
Daniel, na masmorra em que passou os seus últimos dezoito
anos e privado de suas fontes e até mesmo de papel para es-
crever, ter produzido obra tão extensa e documentada. Foi
sugerido que a obra teria sido escrita ainda no Pará 3, mas
isso é desmentido pelo seu zeloso carcereiro, Manuel Freire
de Andrade, comandante da Praça do Forte de Almeida,
que em ofício a Sebastião José comprazia-se em relatar que
havia sequestrado aos prisioneiros todos os papéis que tra-
ziam consigo: “Como lhes falta o papel, porque nem para as
fontes lho consinto há muito tempo ... Mandei-lhes entregar
os Breviários para continuarem as rezas, arrancando-lhes
primeiro todas as folhas brancas, e tirando-lhes alguns re-
gistos, porque nas costas de dous tinha o Padre João Da-
niel feito duas petições para Sua Majestade, que Vossa Ex-
celência verá, por irem inclusos nos papéis pertencentes ao
dito Padre” (op. cit. p. 82). Que a obra, de fato, tenha sido
redigida de memória, sem o apoio de anotações prévias, é
sugerido pelas muitas lacunas do texto quando o autor, nar-
rando ocorrências específicas, deixa em branco nomes pró-
prios, datas ou distâncias.
Em fevereiro de 1762 João Daniel foi transferido para
a Torre de S.Julião da Barra, onde estavam relegados os pa-
dres considerados “grandes criminosos”. Lá, por outro lado,
a disciplina foi menos rigorosa e deve ter recebido o papel e
a tinta com que, no decorrer dos cinco anos seguintes, es-
creveu o seu Tesouro, como ele mesmo diz, para lhe servir
“de honesto divertimento em tanta miséria”. Distribuídos de
dois em dois ou de três em três em cada uma das 28 celas de
S.Julião, os condenados trocavam recordações e certamente
depoimentos; alguns, pela idade e pela experiência, conhe-
ciam a Amazônia muito mais do que o próprio João Daniel :
3 Papavero, Nelson. “Relíquia do século 18”. Ciência Hoje, Vol. 35, 2004,
n. 208, p. 77.
*****
224
Tesouro descoberto no rio Amazonas. Separata dos
Anais da Biblioteca Nacional, v. 95, t. 1-2, 1975. Rio, 1976,
437 + 440 pp. O manuscrito das partes 1 a 5, de 766 pá-
ginas, pertencia à Real Biblioteca de Lisboa; veio para o
Brasil com a família real em 1808 e está agora na Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro. Na biblioteca de Évora existe
outra versão, diferente e muito mais reduzida, da 5ª. parte,
bem como uma 6ª. parte inexistente no códice da Biblioteca
Nacional, que as recebeu em microfilme e que integram esta
edição.
A Primeira Parte, sem título, mas que costuma ser de-
signada pelo do seu primeiro capítulo (“Descrição geográ-
fico-histórica do rio Amazonas”), trata na verdade da hidro-
grafia (capítulos 1 a 13), dos peixes e anfíbios (14 a 16), das
aves (17-18), dos mamíferos (19 a 21), dos insetos (22 a 27) e
das cobras e antídotos para seus venenos (28-29).
A Segunda Parte, “Notícia geral dos índios seus natu-
rais e de algumas nações em particular, etc.”, trata generi-
camente da sua aparência, caráter, crenças, costumes, apti-
dões, guerra e antropofagia (capítulos 1 a 15); diz alguma
coisa dos Incas e dos Maina do alto Amazonas peruano e
passa a tratar mais em particular dos Cambeba do Soli-
mões, dos Uriquena do rio Negro, dos Purus do rio homô-
nimo, dos Mura deste e do Madeira, dos Torases e Urupases
do Madeira, dos Arapium, Gurupá e Jaguaim do Tapajós,
dos Juruna, Acipóias e Carnises do Xingu, dos Maraguás
do Cumá, dos Tupinambá do litoral, dos Tupinambarana do
médio Amazonas, dos Nheengaiba e Mamainases da foz do
Amazonas, dos Pacajás do rio homônimo, dos Cabaços e dos
Gamelas do Maranhão, dos Canoeiros do Tocantins, e final-
mente dos Goianases, Iranambés e Barbados, não localizados
(capítulos 16 a 19); trata a seguir da condição física e do-
enças dos índios (20) e conclui com uma descrição de Belém
e das vilas e povoados do interior, até o baixo Madeira (21).
A Terceira Parte “Dá notícia da sua muita riqueza nas
suas minas, nos seus muitos e preciosos haveres e na muita
fertilidade das suas margens” e se compõe de seis tratados:
1º. Das minas de ouro e prata e diamantes, anunciado como
“compendiosa notícia dos seus muitos e inexauríveis mine-
rais”, mas que se resume às duas páginas iniciais, visto faltar
todo o restante (três ou quatro capítulos) no manuscrito da
Biblioteca Nacional e, consequentemente, na edição inte-
gral de 1976 e na de 2004 aquí resenhada. 2º, do qual, pela
mesma razão, falta o enunciado e parte do primeiro capítulo
e que, portanto, nas duas edições, vem constituir equivo-
cadamente os capítulos 2 a 8 do 1º. Tratado; versa sobre as
plantas silvestres e cultivadas. 3º. Da riqueza do Amazonas
*****
226
se nelas maior ou menor familiaridade com os assuntos, di-
ferentes graus de objetividade e até um inesperado senso de
humor. A seção de peixes e anfíbios abre-se com um escla-
recimento: “Não pretendo aquí descrever toda a variedade
de peixe ... mas só descrever os mais principais e menos co-
nhecidos na Europa ou que excedem no mimoso”; asseve-
rando este propósito, o primeiro gênero a integrar aquela fa-
mília é o do homem marinho, em que entram sereias e seres
humanos que teriam-se mudado para o fundo dos rios; se-
guem-se, pela ordem, jacarés, lagartos, camaleões, tarta-
rugas, lontras e tatus. Mais adiante, o primeiro dos mamí-
feros a ser apresentado é a anta, que “tem a grandeza de um
grande jumento ... mas parece [que] não é tão asno como
o burro, porque a ninguém dá ancas [i.e., não se deixa ca-
valgar]” e que “talvez mereça os primeiros méritos pelo seu
delicioso gosto nos banquetes”. Pouco decoro no estilo, como
entendeu Varnhagen4 referindo-se talvez a passagens como
esta, ou sadia higiene mental para tentar sobreviver em
tanta miséria ?
Mas este lado imaginoso (a sentença é de Euclides
da Cunha 5 ) de João Daniel restringe-se a uma minoria de
temas que ele, provavelmente, impusera-se abordar para
construir o seu quadro da natureza, mas que devia julgar
mais de entretenimento e ilustração do que propriamente
dignos de mais detidas considerações. De fato, em temas que
tocam mais de perto as necessidades e o cotidiano da popu-
lação colonial e dos índios aldeados, o superficial, a cren-
dice e o chiste dão lugar, via de regra, à exposição organi-
zada e meticulosa do mundo natural e das suas possibili-
dades de aproveitamento econômico. É assim para os peixes,
aves, plantas, madeiras e essências nativas mais importantes
para a alimentação, a indumentária, o abrigo, a navegação
e a medicina popular da Amazônia. É assim nos seis capí-
tulos em que esmiuça o mundo dos insetos, vermes, aracní-
deos e outras pragas pestilentes que atormentam e debilitam
a saúde humana e animal. E é assim na longa e minuciosa
descrição geográfica da bacia do Tocantins (o mais impor-
tante caminho de Belém para as minas de Goiás e o centro-
sul do Brasil), ordenada em 61 parágrafos que remetiam a
outros tantos pontos assinalados num mapa que acompa-
nhava o Tesouro, e que se perdeu. Em relação à natureza e
aos direitos dos índios, o seu julgamento não é livre de am-
biguidades: de um lado, afirma que “só pelas feições pa-
4 Varnhagen, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil. 6ª. ed.. São
Paulo, Melhoramentos, 1959, vol. IV, p.143..
228
tura e Opulência do Brasil, de Antonil6 (s.d. [1711]), obra
que o precedeu nos primeiros anos do século XVIII. Pode-
se dizer que, afora o fato das duas obras tratarem da eco-
nomia colonial e de seus autores serem jesuítas, nada mais
elas têm em comum. São diferentes no alcance (naturalista
e enciclopédico um, técnico-econômico o outro) e no âmbito
sócio-geográfico (periférico e despovoado um, dinâmico e
concentrador de riqueza o outro), mas acima de tudo no en-
foque, na postura e no propósito. João Daniel analisa o sis-
tema, diagnostica os seus males e propõe soluções alterna-
tivas para promover o progresso econômico e com isso be-
neficiar “os novos povoadores que ... vivem uma vida pobre,
laboriosa e miserável”. Antonil, muito mais competente e
exaustivo na descrição do processo econômico, erige e de-
dica o seu monumento “aos que, nos engenhos do açúcar,
nos partidos e nas lavouras de tabaco, e nas minas do ouro,
experimentam o favor do céu com notável aumento dos bens
temporais”. Nos dias de hoje, um teria sido o cientista social,
reformista e polêmico; o outro, o eficaz administrador, iden-
tificado e leal ao sistema.
*****
230
Poemas de Zuca Sardana
FURO
Furo da Gazetta
o Purgatório fabrica
as turbinas do Inferno
MADAME
Madame du Barry
esqueceu as rendas
da calcinha no missal
PLUTONE
Ma’ que’ !!!
Non mijate en la Porta
Xérbero !!!...
CASSINO
Pistão entupido
Juízo Final adiado
Fazzam suas apostas
JUSTIZZA
Pirralhos trocados
mães aos sopapos
Salomão deu os dois
pruma so’
História
234
Dois poemas para minha sombra
1.
minha sombra
sob o sol absurdo
copia o meu ser original
2.
minha sombra
não é a alma que perdi
um pequeno sol
como uma moeda
no bolso da camisa
Airton Paschoa
236
CORPO
Ricardo Lísias
UM
Se eu tivesse mais coragem, voltaria ao pátio só para
ver se aquele homem estava mesmo com um relógio de bolso
pendurado no colete. Mas agora que eu já cheguei até aqui,
acho melhor não voltar para trás: tenho medo de perder
a coragem e não conseguir falar tudo para ela. Dessa vez,
prometo, vou ter coragem. Ela merece. Por isso, inclusive,
resolvi vestir a minha melhor roupa. Eu me sinto mais co-
rajoso assim. A minha melhor roupa me deixa mais forte.
Mais seguro. Um relógio de bolso, pensando bem, me daria
mais controle. Forte, seguro e controlado, certamente eu
teria coragem para falar tudo o que eu sempre quis. Só que
eu precisaria de um bolso no colete para pendurar o relógio.
Modelos de bolso ficam elegantes apenas no bolso. Um bolso
me deixaria mais controlado, e um relógio, pois eu teria
onde esconder as mãos se ficasse com vergonha.
DOIS
Não preciso ter vergonha: provavelmente, Maria seria
internada aqui mesmo se nunca tivesse me conhecido. Não
é isso, claro, que eu pretendo dizer. Se fosse, aliás, eu não
precisaria de um bolso para esconder as mãos se sentisse
vergonha. O bolso seria importante apenas se eu tivesse
vindo visitá-la carregando um relógio de bolso. Ele me dei-
xaria mais controlado. E também me obrigaria a ter um
bolso. Se eu ficasse envergonhado, poderia colocar as mãos
no bolso. Ou ver as horas, ou até mesmo comentar a sua
elegância. Maria sempre foi uma mulher muito vaidosa. Se
estou bem lembrado, nunca a vi com os cabelos despente-
ados ou com a roupa amassada. Muito menos com a mão no
bolso. Bom, isso eu posso falar. Não vou sentir vergonha e,
portanto, poderei continuar com as mãos livres. Mas um re-
lógio, sem dúvida, me deixaria mais controlado.
QUATRO
Por outro lado, é verdade que um relógio de bolso a
deixaria orgulhosa: ele é sempre um acessório muito ele-
gante. Mas como eu vesti a minha melhor roupa, posso dis-
pensá-lo. Eu me sinto seguro assim e dificilmente vou ter
vontade de colocar as mãos no bolso. Claro, um bolso me
deixaria mais controlado, como aquele senhor do pátio que,
se não estou enganado, tinha um relógio pendurado no
bolso. Um acessório muito elegante. Mas como vesti a minha
melhor roupa, vou ter coragem para dizer tudo. Não quero
deixar passar nem mais um dia, por isso eu vesti a minha
melhor roupa. Hoje eu vou dizer tudo e, se ficar com ver-
gonha, coloco as mãos no bolso. Maria vai ter que me per-
doar, mas foi por isso que eu vesti a minha melhor roupa,
para não sentir vergonha e para ela me perdoar.
238
CINCO
Acho que Maria não sente raiva de mim. Não posso
garantir, claro, mas acho que ela é suficientemente observa-
dora para perceber que eu vesti a minha melhor roupa. Eu
me sinto bem assim, sabendo que ela não sente raiva. Isso
me deixa mais seguro e me dá coragem para falar tudo de
uma vez. Se estivesse com raiva, não me receberia. Ela deve
estar sabendo que vim hoje. Telefonei antes e, como se não
bastasse, deixei o meu documento na portaria. Aliás, foi lá
perto que vi o homem com o relógio de bolso pendurado no
colete. Se eu tivesse colocado um colete, poderia ter vindo
de relógio, o que me deixaria mais controlado. Mas se Maria
me deixou entrar, é porque não tem raiva de mim. Não pre-
ciso ter receio disso. Sempre a achei uma mulher decidida:
se ela não quisesse me receber, teria falado alguma coisa
para os enfermeiros. Disso não preciso ter receio, pois ela
sempre foi uma mulher decidida, com certeza vai me ouvir
até o final.
SEIS
Eu só não quero que ela me julgue, que tire conclu-
sões precipitadas. Por isso vesti a minha melhor roupa: para
Maria saber que nunca fiz pouco caso. Se eu tivesse vindo
antes, talvez ela se recusasse a me receber. Agora que eu
vesti a minha melhor roupa, porém, posso falar tudo. O ideal
é não perder tempo e ir direto ao assunto. Maria sempre
foi uma mulher decidida, acho que ela não vai gostar se eu
ficar enrolando. Qualquer coisa, coloco as mãos no bolso.
Isso sempre me deixa mais seguro. E um relógio, mais con-
trolado. Acho que não vai ser necessário, pois se eu esti-
vesse com raiva, ela certamente não aceitaria me receber.
Ora, bastava ele dizer a um dos funcionários que não queria
me ver. Quanto a isso, posso ficar tranqüilo. O problema vai
ser se Maria me interromper.
OITO
Maria acha, inclusive, que é por isso que o Mane-
quim se recusa a falar com ela: só pode ser vergonha. Mas
se o motivo for esse, ele pode ficar tranqüilo: ontem mesmo
Maria comprou uma casa. Ela podia ter alugado ( já que não
pretende passar o resto da vida aqui), mas seria bobagem.
Por que dar dinheiro para o proprietário, se a gente pode
fazer o nosso próprio investimento? Toda alegre, Maria fe-
chou a janela, trancou a porta que dava para a rua e foi
contar a novidade para o Manequim. É, um homem vai-
doso como ele nunca toparia sair com uma mulher que não
tivesse uma casa. Um defeito, claro, mas quem não tem os
seus? Maria, por exemplo, vive com a cabeça no mundo da
lua: esqueceu a janela aberta! Depois de fechá-la e trancar
a porta da rua, ela foi contar a novidade para o Manequim.
Na esquina da loja, porém, reparou que o tempo estava es-
curecendo. Se a água entrasse pela janela, estragaria todo o
colchão. Sem sombra de dúvida, o Manequim iria detestar.
Correndo, Maria voltou para a casa nova, fechou a janela e
trancou a porta que dava para a rua. A verdade é que ela
deveria ter comprado a casa em outro lugar: no ponto de
ônibus, os passageiros ficam curiosos e olham as coisas que
ela colocou dentro do quarto. O jeito, pensou enquanto fe-
chava a janela e trancava a porta da rua, vai ser comprar
uma cortina.
240
NOVE
Muito indignada, Maria gritou que aquelas mulheres
olhavam para o Manequim feito putas. Duas cadelas que
não tinham educação suficiente para respeitar o homem dos
outros. Uma gente sem vergonha, mais do que isso, um tipo
de pessoa que não tem dignidade para manter um relacio-
namento sério. Um casamento cheio de amor, era o que ela
pretendia dizer. Antes, gritou que, se quisessem, podiam
ir até o endereço dela tirar satisfações. Não qualquer uma,
de jeito nenhum. Orgulhosa, Maria gritou de longe para o
Manequim que voltaria mais tarde. Assim poderiam con-
versar com mais tranqüilidade, longe daquelas putas que
não se davam ao respeito. Que olhassem, que olhassem a
tarde inteira. E se quisessem, se precisassem, ela tinha en-
dereço. Não qualquer um, um que se dava ao respeito. Era
isso, aliás, que ela queria conversar com o Manequim: que
agora tinha um endereço de respeito. Uma casa de família,
de família inclusive. Mas se aquelas putas aparecessem no
quintal, aí não, aí Maria não sabe do que é capaz. A casa é
arrumadinha, de gente honesta, mas o Manequim que des-
culpe.
DEZ
No entanto, fecharam a loja na cara dela e o Mane-
quim não falou nada, não teve a dignidade de reclamar ou
ao menos de pedir para que a deixassem entrar. A primeira
sensação, claro, é a pior de todas: as pernas ficam fracas.
Parece um pouco com a sensação de fome (mas nunca a de
frio), as pernas amolecem. Mesmo assim Maria conseguiu
voltar para casa, trancou pelo lado de dentro a porta que
dava para a rua, fechou a janela e, lacrimejando de raiva,
deitou na cama. Deu vontade de xingar, de mandar para a
puta que o pariu, aquele desgraçado, mas Maria teve pa-
ciência, fez um gesto brusco e fechou a janela. Gente in-
trometida. Deitada outra vez, prometeu para si mesma que
não ria chorar, isso não, não daria o gostinho. A sensação
é parecida com a de fome. Com o frio, jamais. De madru-
gada, Maria pensou em se levantar e andar um pouco. Tinha
curiosidade para ver se as pernas estavam um pouco mais
fortes. Além disso, sentia fome.
DOZE
Até hoje ela conseguiu agüentar. Uns dizem que é or-
gulho demais. Mas, na mesma situação, muita gente reage
exatamente como ela. É fácil jogar pedra no telhado dos
outros. De vez em quando um pássaro entrava pela janela.
Maria tentou apanhar um deles. Ao erguer a mão direita,
porém, percebeu que o bichinho estava longe. Com dois
dedos, cobriu o sol. Depois, divertiu-se escondendo com as
mãos muitas janelas de um prédio. O tamanho das coisas
sempre parece tão surpreendente. Alegre com isso, Maria
achou que podia se levantar. De fato, ela não precisou se-
quer se apoiar no braço da cama: forçou as pernas encostada
nas janelas daquele mesmo prédio que ela tinha coberto e,
ereta, resolveu mais uma vez tentar sentir o corpo parte por
parte. Agora, queria ter certeza de que conseguiria chegar à
cabeça.
242