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Sumário

Artigos
9 Entre Narciso e o colecionador ou o
ponto cego do criador
Bento Prado Jr.
37 Notas sobre o método crítico de Gilda
de Mello e Souza
Otília Beatriz Fiori Arantes
51 O terror na poesia de Drummond
Luiz Roncari
69 Da arqueologia portuguesa à
arquitetura brasileira
Joana Mello
99 A rima nos cantos populares:
contribuições para o rimário brasileiro
Álvaro Silveira Faleiros
127 Um ‘tesouro’ redescoberto: os capítulos
inéditos da Amazônia de João Daniel.
Antonio Porro
149 Quando dois acervos se completam:
a biblioteca de Mário de Andrade no
Brasil e a Staatsbibliothek de Berlim
Rosângela Asche de Paula
159 Manuscritos de Outros Escritores
no Arquivo Mário de Andrade:
Perspectivas de Estudo
Márcia Jaschke Machado

Depoimentos
177 Traduzindo a literatura brasileira
para o tcheco – entrevista com Pavla
Lidmilová
Sarka Grawova

Resenhas
187 Chico Buarque
de Fernando de Barros e Silva
por Walter Garcia

5 revista do ieb n43 set 2006


203 História da Alimentação no Brasil
de Luís da Câmara Cascudo
por Claude G. Papavero
207 A contribuição italiana para a
formação do Brasil
de Sérgio Buarque de Holanda
por Lucy Maffei Hutter
211 A crítica cúmplice
de Ana Berstein
por Vilma Arêas
221 Uma Enciclopédia Amazônica
de Pe. João Daniel
por Antonio Porro

Literatura
233 poemas de Zuca Sardana
234 poemas de Fabrício Corsaletti
236 Ambulância - Airton Paschoa
237 Corpo - Ricardo Lísias

6
Entre Narciso e o colecionador ou o
ponto cego do criador
Bento Prado Jr.*

“Destinado a ver o iluminado, não a luz”


(Goethe)

Minha intenção, neste artigo, é sublinhar o liame


(nem sempre visível na superfície dos textos ou no movi-
mento nada linear que desenham) que une de maneira ín-
tima o estilo do ensaio crítico de Gilda de Mello e Souza a
seu sentido mais fundo: algo como uma “filosofia do sen-
sível”, para utilizar a expressão de Merleau-Ponty ou como
uma hermenêutica sem ecos teológico-metafísicos como a
de um Gadamer ou de um Ricoeur1. Não é, com efeito, à
primeira leitura que se revela a extraordinária eficácia in-
terpretativa da démarche analítica de seus ensaios: é pre-
ciso todo o trabalho da reflexão para ver, no andamento
caprichoso e sinuoso de sua escrita, que se demora amiúde
em detalhes aparentemente pouco importantes, no alegre
trânsito que efetua livremente, atravessando, em constante
vai-e-vem, as fronteiras entre as artes (desde as menores
às maiores: a moda, a dança, a fotografia, o cinema, a pin-
tura, a arquitetura, o teatro, os diferentes gêneros literá-
rios, a música, essa “arte de pensar sem conceitos por meio
de sons”2 ) algo mais do que o arbítrio de uma imaginação
* professor da Universidade Federal de São Carlos.

1 Sobretudo em Gadamer, tais ecos derivam da presença explícita,


em sua concepção da hermenêutica, do segundo Heidegger, depois do
Kehre, com sua revalorização do sagrado ou do mito, com seu retorno ao
universo do romantismo alemão (origem, aliás, da moderna hermenêu-
tica), com a filosofia de Schelling e a poesia de Hölderlin; Ricoeur, por
sua vez, embora insista em marcar a separação entre as tarefas da filo-
sofia e da teologia, não deixa, por isso mesmo, de reconhecer a consis-
tência do projeto da teologia como que ao lado do projeto da filosofia.
No que concerne a Gadamer (a despeito das restrições que faz à herme-
nêutica de Schleiermacher e a Schlegel, bem como ao historicismo e às
Geisteswissenschaften da Alemanha dos oitocentos), guardemos apenas
um argumento de 1943: “Na verdade, a razão não pode possibilitar a
si própria. Ela própria é uma possibilidade e uma oportunidade histó-
ricas. Não compreende a si mesma e muito menos a realidade mítica que a
abarca e sustenta” Cf. Gadamer, Georg Verdade e Método II , Ed. Vozes, 2ª
edição, col. Pensamento Humano, 2004, p.48 (página 36 do texto original).

2 Definição de Jules Combarieu (1859-1916) . Apud Souza, Gilda de Mello


e A idéia e o figurado, Ed. Duas Cidades e Editora 34, Coleção espírito
Crítico, São Paulo, 2005, p. 23.

9 revista do ieb n 43 set 2006


irresponsável ou um puro “impressionismo” que pouco
cuidam da universalidade 3. Para bem marcar meu ponto de
partida, que me seja permitido recortar um trecho do úl-
timo parágrafo de seu ensaio “O mestre de Apipucos e o
turista aprendiz”, publicado em A idéia e o figurado, livro
a que meu texto se limita quase que completamente. Ao
termo de uma comparação entre as análises da obra de Cí-
cero Dias por Mário de Andrade e Gilberto Freire, por oca-
sião das primeiras exposições do pintor na década de 20,
Gilda retorna à experiência de sua geração na apropriação e
no uso que fizeram das obras dos autores de Macunaíma e
de Casa Grande e Senzala na fixação de seus próprios pro-
jetos intelectuais:

“Foi a partir deles [de Mário de Andrade e de Gilberto


Freire] que a geração de moços, que entre 1935 e 1940, ainda
não marcada pela especialização, começou a avaliar o conceito
de cultura, de identidade nacional, a discutir com isenção o
problema da mestiçagem e os rumos que a arte brasileira devia
tomar. As conquistas obtidas eram em geral provisórias e não se
apoiavam na segurança racional dos sistemas. Mas naquele mo-
mento de transição entre o sonho das vanguardas e a chegada
vitoriosa dos especialistas, delineavam à nossa frente um recorte
novo da realidade. Talvez uma invenção da realidade, tal como
de tempos em tempos a arte efetua, para renovar o sentimento
da divindade4, do homem ou, mais humildemente, da paisagem”5

O leitor não pode impedir-se de vislumbrar um mí-


nimo de ambigüidade na contraposição que faz, neste texto,
entre a “segurança racional dos sistemas” e as “conquistas
[apenas], provisórias” que, no entanto, permitem a “invenção
da realidade”. De um lado, a autora parece descrever a pas-
sagem de sua geração à seguinte como um progresso, como
3 Antecipando observações ulteriores, não podemos deixar de notar,
como índice da cumplicidade e da continuidade entre as obras de Mário
de Andrade e de sua prima, no estilo como na temática, a maneira como
Gilda descreve o estilo do autor de O Banquete: “Com o tempo os estudos
mais aprofundados irão certamente unificar um pensamento caprichoso
– ‘em lascas’, como ele chamou certa vez com humor – mas extremamente
rico e pessoal; então, à semelhança da paisagem, que só transmite seu
sentido verdadeiro quando a visão ordenadora do pintor a interpreta – nós
o veremos se desenhar, finalmente, como um dos momentos mais altos da
reflexão artística brasileira” Cf. A idéia e o figurado, p. 9.

4 Não podemos tomar essa expressão ao pé da letra. O “sentimento da


divindade” não tem aqui qualquer significação religiosa ou mística:
aponta antes para a utopia de uma sociedade e de uma cultura transpa-
rente, promessa de felicidade (“divindade” no sentido de Geist, em alemão,
no sentido de Espírito Objetivo).

5 A idéia e o figurado, págs.69-70.

10
aquele que levaria de conquistas apenas provisórias à so-
lidez e à permanência garantidas pelo apoio racional em
sistemas teóricos. Não é minha intenção, para reverter esse
quadro, a de simplesmente retomar a retórica que fustiga o
“esprit de système” com o elogio de um intuicionismo incon-
trolável (retórica contra a qual Pierre Bourdieu dispara, em
seu texto sobre Erwin Panofsky6 , as setas envenenadas da
retórica do estruturalismo, como veremos adiante). Parece
importante sugerir que a mutação aludida também é uma
forma de empobrecimento da visão ( a perda do saper vedere
e, por que não?, do saper leggere e sentire, ascoltare) que
acompanha a institucionalização do saber especializado, que
despreza os processos heurísticos ou abductivos, no limite
hermenêuticos, da decifração da vida da cultura (reiterando
idéias de Adorno7, como veremos logo a seguir). Pelo menos,
é nessa mesma direção que caminha Otília Beatriz Fiori
Arantes em seu ainda inédito ensaio “Notas sobre o mé-
todo crítico de Gilda de Mello e Souza”, publicado a seguir,
pp 37-49, falando de um “milagre acadêmico” realizado há
meio século8 e que hoje nos parece fora de alcance ou acima
de nossas forças. Milagre acadêmico ou proeza cognitiva
possibilitados por um uso original de métodos desprezados
na Academia como o método indiciário, essencialmente ab-
ductivo ou heurístico, pouco compatível com a linha dura
epistemológica imperante na Universidade 9. Não posso dis-
cordar do diagnóstico feito por Otília: tendo feito meu curso
na USP na segunda metade da década de 50, não podia con-

6 No posfácio à sua tradução do livro de Panofsky Architecture gothique


et pensée scolastique, Les Éditions de Minuit, Collection Le Sens Commun,
1986.

7 Foi, de fato, com entusiasmo que descobri, nos anos 60, graças a Roberto
Schwarz, nas Notas de literatura de Adorno (publicado em 1958), o belo
texto “O ensaio como forma” (do qual roubei a epígrafe deste escrito)
que se abre levantando-se contra a desqualificação contemporânea desse
gênero literário. O que ocorria no nosso longínquo Brasil, ocorria também
na culta Alemanha. Como diz Adorno: “Que o ensaio, na Alemanha, esteja
difamado como um produto bastardo; que sua forma careça de uma tradição
convincente; que suas demandas enfáticas só tenham sido satisfeitas de
modo intermitente, tudo isso já foi dito e repreendido bastante.”(Cf. Notas
de Literatura I, tradução e apresentação de Jorge de Almeida, Ed. Duas
Cidades e Editora 34, 2003, Coleção espírito Crítico, p.15).

8 Trata-se da tese de doutoramento A Moda no século XIX, defendida em


1950 e publicada originalmente pela Revista do Museu Paulista, só publi-
cada em forma de livro em 1987, sob o título de O Espírito das Roupas,
pela Cia. Das Letras.

9 Otília sublinha, no já referido ensaio, o entusiasmo com que Gilda leu


o livro de Carlo Ginzburg Mitos, emblemas, sinais, que confirmava suas
preferências metodológicas, valorizando tanto “a arqueologia visual dos
mestres da escola de Warburg” quanto o “método indiciário”, especial-
mente o praticado por Giovanni Morelli no século XIX.

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cordar com o que me parecia uma injustificável desqualifi-
cação (de espírito no fundo “cientificista”, com o privilégio
concedido sobretudo à epistemologia), do ensaísmo enten-
dido como um gênero já superado no âmbito da “séria” pes-
quisa universitária. Ensaísmo? - coisa de amador! A con-
trapelo dessa tendência dominante, ficávamos deslumbrados
com o estilo ensaístico ou com a forma de pesquisa e ensino
de nossa professora de Estética que, em lugar de expor “te-
orias estéticas”, preferia analisar este quadro, este poema,
este filme, ensinando-nos a “ver” como diz Merleau-Ponty,
numa frase que Gilda colheu em Le visible et l’invisible para
servir de epígrafe de seu ensaio “Variações sobre Michelan-
gelo Antonioni”.
Através da interpretação do estilo da escrita de Gilda
de Mello e Souza, o que visamos em última instância é o
próprio conteúdo de seu pensamento ou o alcance propria-
mente filosófico de sua obra, que a autora deixa discreta
ou modestamente à sombra. Um pensamento que é capaz de
passar entre Caríbdis e Scila, ou seja, nos termos de Adorno,
entre a “ciência organizada” (no interior da “cultura ad-
ministrada”) e uma filosofia que se contenta com o “resto
vazio e abstrato”, sem recorrer às vias opostas do intelectu-
alismo e do empirismo ou ainda à via fácil do mero impres-
sionismo. Nem formalismo, nem intuicionismo, mas um pro-
cedimento metódico que não denega a ambigüidade ou as
contradições da experiência, desentranhando, ao contrário,
os pontos cegos que a impregnam, permitindo uma lucidez
maior, uma visão mais clara do mundo que nos cerca e da
cultura que nos formou. “Aprender a ver” como já vimos na
frase de Merleau-Ponty, segundo um procedimento bem des-
crito por outro filósofo que não tem afinidade alguma com
a tradição da fenomenologia; falo de Michel Foucault que
dizia, numa conferência pronunciada no Japão em abril de
1978: “Há muito que sabemos que o papel da filosofia não
é o de descobrir o que está escondido, mas de tornar visível
o que é precisamente visível, isto é, de fazer aparecer o que
está próximo, o que é imediato, o que está tão intimamente
ligado a nós e, por isso, não percebemos. Enquanto o papel
da ciência é o de fazer conhecer o que não vemos, o papel da
filosofia é o de tornar visível o que vemos”10.
10 Frase anotada por Arnold Davidson e citada por Christiane Chauviré
em seu livro Voir l’invisible: la seconde philosophie de Wittgenstein, PUF,
Coll. Philosophies, 2003, p. 9. É oportuno lembrar que, a despeito das dife-
renças que separam filósofos como Husserl, Heidegger e Wittgenstein,
encontramos sob suas penas frases com um conteúdo exatamente igual às
enunciadas aqui por Foucault. Por exemplo, Heidegger afirma, em algum
lugar, que não vemos nossos óculos por que estão próximos demais; por
sua vez, Wittgenstein afirma: “Deus garante ao filósofo a intuição do que
está diante dos olhos de todo mundo.”

12
Para percorrer essa conexão entre a hermenêutica e
seus resultados teóricos, deter-me-ei no livro A Ideía e o Fi-
gurado, especialmente nos textos consagrados a Mário de
Andrade, no espaço periférico que habitamos, e a Michelan-
gelo Antonioni, no coração da cultura européia; só sairemos
do referido livro passando brevemente pela entrevista que
Gilda concedeu a respeito do filme Conversation piece de
Visconti.

II
Os ensaios consagrados a Mario de Andrade per-
correm muitas linhas ou níveis que – tarefa complexa! – é
preciso tentar desentranhar; esperamos que após esta tenta-
tiva, “com o tempo os estudos mais aprofundados irão cer-
tamente unificar um pensamento caprichoso”, como diz a
própria Gilda na frase acima citada sobre o autor de O Ban-
quete. Com efeito, em seus escritos sobre ele, Gilda de Mello
e Souza examina as teorias estéticas, os textos programá-
ticos, a obra poética, o trabalho do colecionador de obras de
arte, o teórico da cultura brasileira, sempre sobre o fundo
da familiaridade com o itinerário biográfico de seu primo,
que atravessou diversos dilemas, crises e conflitos inte-
riores. A complexidade dessas múltiplas linhas analíticas
que se cruzam multiplica-se muito com a grande afinidade
entre a autora e Mário de Andrade no que concerne ao estilo
do trabalho crítico e das perspectivas da reflexão estética.
Assim, no ensaio “O professor de música”, ao expor
esquematicamente a estética de Mário de Andrade, tudo pa-
rece levar-nos a crer que, até certo ponto, a autora faz suas
as teses expostas, como tentaremos mostrar ao longo deste
escrito. Vejamos como é definida a estrutura da manifes-
tação musical segundo Mário de Andrade nas palavras de
Gilda: “São quatro as entidades que compõem a manifes-
tação musical: o criador, a obra-de-arte, o intérprete e o ou-
vinte”11. Uma vez exposta essa estrutura de quatro termos,
Gilda insiste no fato de Mário de Andrade militar especifi-
camente contra o privilégio atribuído ao criador, especial-
mente na tradição romântica do gênio criador em contacto
imediato com o Absoluto (pensemos no Heinrich von Ofter-
dingen de Novalis que, a contrapelo do Wilhelm Meister de
Goethe, com tudo o que implicava de concessão ao realismo,
faz a totalidade do Mundo – inclusive o leitor do livro...
– ser absorvida pela imaginação produtiva do poeta). À di-
vinização do criador opõe-se a ênfase nos demais termos:
a obra, o intérprete e o ouvinte. Não só a obra está “acima”
do criador que só nela pode esperar atingir sua “integridade

11 A idéia e o figurado, p. 24.

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vital no domínio do espírito”, como a própria obra só se re-
aliza na audição ou com sua recepção pelo ouvinte através
da mediação essencial do intérprete, mesmo se ela não é
passivamente fiel, mesmo se ela é relativamente traidora.
Algo como uma antecipação da “estética da recepção”, hoje
tão em moda entre nós? Pelo menos levemente diferente de
Jauss12 , Mário de Andrade liga o privilégio da recepção a
algo como uma essencial alienação do criador, que precede
e enriquece o processo global criação/recepção. Uma alie-
nação que lhe impede o domínio total do sentido de sua pró-
pria obra: só o outro pode dizer minha verdade. Aqui a psi-
canálise (e a dialética, como veremos) não é colocada fora
de jogo.
Detenhamo-nos um instante nesta idéia e aceitemos
o risco de ousar, nós mesmos, uma hipótese sobre a relação
Mário de Andrade/Gilda de Mello e Souza. Tivemos, com
efeito, a impressão de que nos seus escritos sobre Mário de
Andrade, Gilda parece sugerir algo como uma descontinui-
dade entre a Estética e a Poética do autor em tela (utilizando
a distinção metodológica de Luigi Pareyson 13 ). De um lado,
uma Estética que descreve, de um ponto de vista contem-
plativo, a curva feliz da obra, em seu percurso do criador
ao ouvinte através da mediação do intérprete, que culmina
numa transparência total: “Em resumo, o intérprete ideal
– como o ouvinte ideal – seria para Mário de Andrade o pu-
ramente receptivo, aquele que ‘disposto a amar’ soubesse se
despojar dos ídolos de toda espécie, das verdades transitó-
rias, dos preconceitos adquiridos através dos anos, da ve-
neração descabida, para se nortear, sobretudo, pela compre-
ensão exata do passado”14 . De outro, uma Poética – essen-
cialmente um projeto, uma escolha da forma e do sentido da
obra a ser criada - que, desde o início do itinerário de Mário
de Andrade até seu ponto final, se elabora na sucessão de
crises, de conflitos e contradições, de alternativas inconci-
liáveis, que são freqüentemente interpretados pelo próprio
autor como uma doença, como uma insuperável e trágica di-
visão do Eu ou da personalidade.

12 Com efeito, em Experiência Estética e Hermenêutica Literária (1977)


Jauss parece devolver à criação parte do espaço que concedera à recepção.

13 Ibidem., p. 10 “...esboçando o que se poderia chamar – de acordo com


a esclarecedora distinção metodológica de Pareyson – uma Poética e uma
Estética propriamente. Isto é, teríamos, de um lado, uma doutrina ‘progra-
mática e operativa’, ligada a um momento determinado da história, que
tenta traduzir em normas um programa definido de arte (Poética); de
outro, uma reflexão desinteressada de caráter filosófico e especulativo
(Estética)”.

14 Ibidem, p. 26.

14
Assim, no texto “O professor de música”, buscando si-
tuar historicamente o compêndio sobre Estética Musical15,
Gilda desenha o duplo itinerário de Mário de Andrade de
1922 a 1928 (esboço que será refinado de perspectivas di-
ferentes e de crescente complexidade nos ensaios seguintes)
E, para fazê-lo, começa com uma obra-prima de iconologia
(ainda uma vez, saper vedere!) tão brilhante que nada deixa
a desejar em relação às análises de obras pictóricas como,
por exemplo, as de João Câmara Filho, Gregório Gruber e
Rita Loureiro: trata-se de um estudo comparativo de duas fo-
tografias e de duas posturas de Mário de Andrade – na fo-
tografia dos professores do Conservatório Dramático e Mu-
sical de São Paulo e na do almoço comemorativo da Semana
de 22. Digamos: dois horizontes (ou duas “situações”, dois
“mundos”) opostos, onde se mostram duas faces de Mário de
Andrade, cada uma figurando o ponto de partida de uma das
duas jornadas divergentes que se iniciam: “A primeira fo-
tografia fixa os professores do Conservatório no almoço em
que comemoram a promoção do companheiro mais jovem. A
imagem é convencional e respeitosa, desde a colocação dos
figurantes, que se distribuem de acordo com a idade e o me-
recimento”16 . Na outra fotografia os modernistas mostram-se
espontâneos e à vontade: “A distribuição dos retratados é ca-
sual, não se sente nenhuma preocupação de pose na atitude
dos corpos”17. No contra-ponto entre essas fotografias, a aná-
lise desentranha dois códigos opostos, duas formas diferentes
do habitus (para retomar a expressão que Panofsky tomou
da escolástica) que filtram, cada uma à sua maneira, o so-
cius e o cosmo, ao mesmo tempo em que exprimem, segundo
o mesmo paradigma, a própria subjetividade. São pormenores
puramente formais (modelos de roupas, suas combinações do
claro e do escuro) que permitem dar a ver a diferença entre
esses dois modos de ser-com-outrem e de exprimir-se: a dis-
posição dos figurantes (ordenados segundo uma hierarquia
ou livremente agrupados), a cor e o corte das vestes (todos de
preto, no mesmo estilo, ou diferentes estilos, cores, tecidos:
da lã mesclada ao veludo cinzento, etc...), a postura corporal
(posição vertical “à espera de servir” ou liberdade e varie-
dade postural, espontaneidade das mãos que se posicionam
diversamente, sem constrangimento) etc...
A presença de Mário de Andrade nos dois grupos re-
vela a cisão presente no início de sua carreira a partir da

15 Andrade, Mário de Introdução à estética musical, org. por Flávia


Camargo Toni, São Paulo, Hucitec, 1995.

16 A idéia e o figurado, p. 14.

17 Ibidem, p. 16.

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qual Gilda acompanha, nos anos que se seguem, a conci-
liação provisória (mas sempre em crise) exposta na sua In-
trodução à estética musical. Nossa autora descreve essa
evolução de 22 a 28: o télos da reconciliação está presente
desde o início, antes do esforço de reflexão (com a ajuda da
fenomenologia e da psicanálise, que introduzem, ao conver-
girem, um resíduo aparentemente ineliminável de tensão18 )
que se exprime numa teoria da arte como “sublimação de
um ato de amor” – reconciliação consigo mesmo graças a
uma dádiva a outrem.
Mas essa reconciliação pensada na Estética não é vi-
vida concretamente na prática da Poética e no itinerário bio-
gráfico. De resto a Estética, por mais sublime que fosse seu
“elemento”, dava lugar à precariedade do criador (uma es-
pécie de infelicidade ou de inferioridade) que Mário de An-
drade descobre dolorosamente como seu próprio destino pes-
soal. Como exemplifica o trecho citado da carta a Oneyda
Alvarenga quase ao termo de “O professor de música”: “Eu
sou um ser como que dotado de duas vidas simultâneas,
como seres dotados de dois estômagos. O que mais me es-
tranha é que não há consecutividade nessas duas vidas – o
que seria mais ou menos comum [...]. Há completa dispa-
ridade, uma sofrida e a outra incapaz de qualquer espécie
de dor [...]. A verdade é que são vidas díspares, que não
buscam entre si a menor espécie de harmonia, incapazes de
se amelhorarem uma pelo auxílio da outra”19. Há que su-
blinhar que essa divisão ou alienação existencial exprime
também as contradições enfrentadas na empresa da Poé-
tica. É a “crise do nacionalismo”, (cuja análise será retomada
mais agudamente por Gilda nos ensaios subseqüentes - “A
poesia de Mário de Andrade”, “O colecionador e sua coleção”
e “O mestre de Apipucos e o turista aprendiz” - e que aqui
se mostra como a passagem do “exteriorismo representativo”
da primeira fase à fase “artífice”, “invisível”, de Louvação
da Tarde), é essa crise, repitamos, que se exprime em toda
a sua violência na carta endereçada a Carlos Drummond de
Andrade em 28 de fevereiro de 1928: “Pois esse tal de brasi-
leirismo está me fatigando um bocado, de tão repetido e tão
aparente. ‘Sou brasileiro’ é frase que me horroriza, palavra
[...] Também publico o Macunaíma que já está feito e não

18 Embora seja evidente o conflito entre a fenomenologia de Husserl e a


teoria de Freud, em seus ensaios Gilda pode combiná-las graças à ponte
construída entre elas na década de 20 (com Biswanger, Minkowski entre
outros) e esboçar uma espécie de “psicanálise existencial” com a ajuda da
fenomenologia do imaginário de Gaston Bachelard, onde é visível a marca
da versão jungiana da psicanálise.

19 Ibidem, p. 25.

16
quero mais saber de brasileirismo de estandarte [...] Meu es-
pírito é que é por demais livre para acreditar no estandarte.
E por aí você já vai percebendo quanto me sacrifico em mim
pela arte de ação que me dou, que me interessa mais, tem
maior função humana e vale mais do que eu. Mas agora a
ação já está feita e o que carece é a contra-ação porque o
pessoal engoliu a pílula e foi na onda com cegueira de car-
neirada. Confesso que quando me pus a trabalhar pró-bra-
silidade complexa e integral (coisa que não se resume como
tantos imaginaram no trabalho da linguagem) confesso que
nunca supus a vitória tão fácil e o ritmo tão pegável. Pegou.
Eu estou disposto a dedicar minha vida pro trabalho. Bas-
taram uns poucos anos. Tanto melhor: vamos pra frente! ” 20.
Nesta carta, paradoxalmente, o êxito da iniciativa re-
volucionária dos modernistas é descrita quase como uma de-
cepção (foi tão fácil!). Mas, sobretudo, aponta para uma nova
fase, para a passagem da ação para a contra-ação. Que sig-
nifica tal virada? Na gênese da Poética, significa a passagem
a um novo estilo de poesia, mais elevado e meditativo, que
culminaria na extraordinária “Meditação sobre o Tietê” es-
crito às vésperas da morte. Estilo meditativo já que se ex-
prime, por exemplo, no poema “Louvação da Tarde”: “Este
último caso é o da “Louvação da Tarde”, onde aparece um
traço importante de Mário de Andrade: a realização do novo
pela fidelidade à tradição. Lendo esses admiráveis decassí-
labos brancos, pensamos quase insensivelmente em alguns de
nossos poetas do passado e nos poetas ingleses ‘dos lagos’,
sobretudo Wordsworth, aos quais Mário se refere implicita-
mente na simples adoção desse tipo de poema”21. Acrescen-
temos que aí temos apenas uma das vertentes da nova fase
que se manifesta tanto no “devaneio do caminho” como no
“devaneio do repouso”, nas expressões que Gilda de Mello e
Souza toma de empréstimo a Gaston Bachelard. Ou na com-
binação dos dois devaneios no poema que exprime a pas-
sagem do movimento vertiginoso à paz da imobilidade está-
tica, do repouso final ou da paz absoluta, como aquela que se
exprimia na experiência do intérprete e do ouvinte ideais da
música, que parece transcender todo tipo de conflito ou de
inquietação, na comunicação e na transparência totais.
Aparentemente o devaneio do repouso não atinge essa
transparência final e a redenção musical parece estar além
do alcance da poética. É o que talvez se mostre tanto no
poema “Noturno de Belo Horizonte” como no “apólogo” do
“moço comido de maleita” de O turista aprendiz. A paz final
a ser atingida não seria uma forma de doença, no entregar-
20 Ibidem, p. 18-9.

21 Ibidem, p. 30.

17 revista do ieb n 43 set 2006


se à maleita e à preguiça? Demoremo-nos na análise que
Gilda faz do poema, em especial do seguinte trecho:

“Desgarram serra abaixo.


Rio das Mortes
Paraopeba
Paraibuna,
Mamotes brancos...
E o Araçui de Fernão Dias...
Barafustam vargens fora
Até acalmarem muito longe exânimes
Nas polidas lagoas de cabeça pra baixo.”

Em seu comentário, Gilda situa o trecho dentro da es-


trutura do poema: em seu início, o poeta percorre o uni-
verso “sombrio” de Belo Horizonte, mas logo se volta para
a “paisagem agreste das Gerais”, onde divisa o movimento
tumultuoso dos rios, que não deixa de espelhar a tempes-
tade de sua vida interior. Mas, o devaneio do caminho (da
abertura de caminhos como a que a torrente d’água cava na
terra, nela talhando seu leito ou daquela outra abertura im-
posta pelo poeta à tradição literária) não suprime o deva-
neio do repouso. No rio espelha-se o movimento impetuoso
da vida interior do criador que aspira a encontrar, ao termo
de seu itinerário, a reconciliação da expressão artística que
se torna feliz e tranqüila como as águas que repousam “fi-
nalmente nas lagoas”. Curiosamente, como na Fenomeno-
logia do Espírito de Hegel 22 a consciência perceptiva que
se torna entendimento (passando da coisa à lei ou à força,
mesmo antes do advento da consciência de si e da consci-
ência infeliz) começa a ver diante de si o mundo invertido
(Verkehrte Welt), aqui também o poeta, que passa do movi-
mento tempestuoso da alma à serena criação/contemplação,
acaba por vislumbrar sua própria fisionomia invertida. A
subjetividade dividida não se transcende e permanece presa
da relação “conflituosa” consigo mesma (em termos hege-
lianos, não se reencontra no Universal da Arte ou do Espí-
rito) como índice trágico da insuperável contradição. Tal pa-
22 Não será abusiva esta referência a Hegel? Lembremos que, comentando
a passagem da percepção ao entendimento e à idéia de mundo invertido,
Jean Hyppolyte, em seu livro Genèse et structure de la Phénomenologie
de l’Esprit de Hegel (Ed. Aubier, 1946, p. 133), ao examinar a dimensão
físico-científica dessa passagem (a ligação interna entre os pólos opostos
do oxigênio e do hidrogênio), aponta para o sentido espiritual dessa dialé-
tica, especialmente a dialética crime/castigo. O que lhe permite acres-
centar: “Pensamos no livro célebre de Dostoievsky e não é a única vez
em que a dialética hegeliana sugere as intuições que o romancista russo
desenvolverá mais tarde”. Não é impossível passar da filosofia especulativa
para a literatura.

18
rece ser a conclusão de Gilda: “Mas a meu ver, a chave desse
trecho misterioso cuja compreensão exige não só uma leitura
alternativa, mas um conhecimento da biografia intelectual
de Mário de Andrade, está na imagem do último verso. Pois
não são as águas polidas, onde os rios vêm desaguar, já sem
forças, que estão de cabeça para baixo, é o poeta que, pos-
tado à sua margem, cansado da travessia, inseguro, assim
divisa a própria imagem, debruçando-se sobre as águas –
onde busca um valor, uma certeza”23
Trata-se da encarnação de Narciso, mas de um Nar-
ciso incapaz de enunciar, como o de Ovídio, “Iste ego sum!
sensi; nec me mea fallit imago”24 , já que só é capaz de neu-
tralizar sua própria imagem por uma espécie de adorme-
cimento ou de embriaguez. Com o abismo entre eu e sua
imagem, o para-si e o para-outrem, permanece a “bi-vitali-
dade” de que fala Gilda e de que o poeta só pode tentar des-
fazer-se através da fuga, da viagem ou do muro de obras
de que se cerca como colecionador. A viagem, em primeiro
lugar, originariamente iniciada como busca da redescoberta
do Brasil e de si mesmo como ser unitário, parece só cul-
minar na reunificação graças à redução da existência ao
nível inferior do “êxtase da sensibilidade”... É o que parece
estar expresso em carta a Manuel Bandeira, da qual Gilda
cita o seguinte trecho: “O êxtase vai me abatendo cada vez
mais. Me entreguei com uma volúpia que nunca possuí à
contemplação destas coisas, e não tenho por isso o mínimo
controle sobre mim mesmo. A inteligência não há meios de
reagir nem aquele poucadinho necessário pra realizar em
dados ou em bases de consciência o que os sentidos vão re-
cebendo. Estou ganzlich [completamente] animalizado”25. Um
êxtase em que a imagem invertida do próprio rosto ou a di-
visão entre o eu e o contra-eu parece dissolver-se não numa
unidade superior, mas como uma espécie de queda ou de do-
ença. Como diz literalmente Mário de Andrade em crônica
citada por Gilda: “Assim a obsessão de minha vida, não é o
acesso de febre. Nem no acesso de febre se resume a filosofia
da maleita [nós sublinhamos, - B. P. Jr.], com o perdão da
palavra. Está claro que o meu desejo é mais elevado. Quero,
desejo ardentemente é ser maleitoso não aqui, com traba-
lhos a fazer, com a última revista, o próximo jogo de futebol,
o próximo livro a terminar. Desejo a doença com todo o seu
ambiente e expressão, num igarapé do Madeira com seus ja-

23 A idéia e o figurado, p. 39-40.

24 Ovídio, As Metamorfoses, livro III, 463 “Esse sou eu! percebo; já não
me engana mais a minha imagem”.

25 A idéia e o figurado, p. 59.

19 revista do ieb n 43 set 2006


carés, ou na praia de Tambaú com seus coqueiros, no si-
lêncio, rodeado de deuses, de perguntas, de paciências. Com
trabalhos episódicos e desdatados, ou duma vez sem trabalho
nenhum. Quanto ao sofrimento dos acessos periódicos, não é
isso que desejo, mas a prostração posterior, o aniquilamento
assombrado, cheio de medos sem covardia, a indiferença, a
semi-morte igualitária”26
Não é arbitrariamente (ou por vontade de injetar ar-
tificialmente a filosofia especulativa no livre andamento
do ensaio de Gilda de Mello e Souza) que ligo, como que
por uma dialética descendente, o tema do “mundo inver-
tido” ao da “filosofia da maleita”, em contraposição com a
dialética hegeliana que leva do Verkehrte Welt (Mundo In-
vertido) à Anerkennung (Reconhecimento) mediante a pas-
sagem da consciência infeliz ou dividida a uma forma feliz
e transparente da sociabilidade. A própria Gilda faz essa
ligação ao comentar a “monografia humorística” da tribo
amazônica dos Do-Mi-Sol: “À semelhança dos estratagemas
óticos, postos em voga pela psicologia-da-forma – em que
num desenho intrincado podemos ler, indiferentemente, a fi-
gura como fundo e o fundo como figura – Mário nos força
através deste exemplo [da tribo que inverte as funções da
linguagem articulada e da música – nota de B.P.Jr.] a apre-
ender um traço que supúnhamos natural, como aberrante,
e uma aberração como um simples traço cultural. Assim, o
mundo de cabeça-para-baixo que nos é descrito aqui ante-
cipa e reforça, como veremos a seguir, o episódio do malei-
toso, que irá encerrar a viagem e a longa meditação sobre o
Brasil”27.
Mas a “filosofia da maleita” não leva apenas o criador
em crise à tentação do repouso inerte “sem trabalho algum”.
Para além dessa tentação, agita-o outro impulso que também
o leva para longe de si mesmo. Na mesma viagem em que
descobre o prazer da “animalização” ou da pura aísthesis de-
sacompanhada do trabalho da reflexão, descobre a via re-
dentora do voyeur colecionador, voltado integralmente para
fora de si: “Sabe que para apreender a realidade é preciso
continuar se afastando de si mesmo, das lembranças pes-
soais, do presente, para penetrar na zona adormecida em que
‘vestígios inertes’, ‘congelados’, ‘parecem emergir do curso do
tempo’: modismos, ditos e quadros populares, frases feitas,
melodias esquecidas, destroços de danças dramáticas, ruínas
de arquitetura, imagens se desfazendo. Grafa. Fotografa. Re-

26 Ibidem, p. 67.

27 Ibidem, p. 65.

20
gistra. Ficha. Recolhe.”28 A figura de Narciso é substituída
pela do colecionador, cuja coleção garante uma decifração do
outro, uma mais fina representação do Brasil e, ao mesmo
tempo, um muro protetor em torno da subjetividade incerta
de si mesma. De retorno da viagem, Narciso pode finalmente
repousar: “está ali, bem protegido, o mundo de que necessita:
dócil, ordenado, ao alcance da mão e do olhar. Já não é pre-
ciso travar a cada passo o duro corpo-a-corpo com as coisas,
com o outro, com o real; agora basta ficar atento aos sinais
e desentranhar das formas, das estruturas, as complexas re-
lações de significação. Pois não acumulou visando o lucro,
como um marchand, ou status, como um novo rico, mas
para chegar mais perto do Homem e do mundo. Para que um
dia, olhando a coleção, ele se reconhecesse, pudesse refazer o
grande puzzle de sua vida, de sua época. O colecionador des-
cansa na coleção”. Mas essa reconciliação final não é com-
pleta e não elimina (voltando à teoria das quatro instân-
cias da Estética de que partimos) a precariedade do criador
e a ilusão da docilidade e do caráter ordenado das formas. O
rosto do criador e a “autonomia incontrolável das formas”29
só podem revelar seu segredo para nós, espectadores ou lei-
tores, de qualquer modo o último termo onde se realiza ple-
namente a obra de arte. É o que parece sugerir a bela con-
clusão que Gilda de Mello e Souza dá a seu ensaio “O cole-
cionador e sua coleção”: “Fechado no mundo que criou, feito
à sua imagem e semelhança, ele continuará se interrogando; é
de seu feitio interrogar-se. Deixemos, pois, que Narciso con-
temple desencantado a própria imagem. Indiferente ao aceno
persistente de seu gesto, desviemos dele nosso olhar, para ir
descobrindo à nossa volta, no que recolheu com paciência e
semeou com paixão, o rosto verdadeiro que ele não soube, ou
não ousou divisar”.

III
Depois de acompanhar a linha sinuosa pela qual Gilda
de Mello e Souza percorre os diversos níveis da obra literária
e teórico-crítica de Mário de Andrade, talvez seja útil apro-
ximarmo-nos mais de seu estilo e do núcleo de seu pensa-
mento, com o contraponto entre os ensaios consagrados ao
autor de Macunaíma e sua análise do cinema italiano, espe-
cialmente em seu ensaio “Variações sobre Michelangelo An-
tonioni”. É essencial, como disse no início deste texto, o que
28 Ibidem, p. 43.

29 Expressão do final do ensaio sobre Antonioni, que mostra a ligação


subterrânea entre os textos consagrados a Mário de Andrade e o ensaio
“Variações sobre Michelangelo Antonioni” de que cuidaremos a seguir.

21 revista do ieb n 43 set 2006


há de revelador nesse estilo singular que transita, com agi-
lidade e felicidade, através dos limites entre as diferentes
formas de arte, fixando constantes ou universais da criação
artística. Lembrando Mário de Andrade: “Não se ensina Mú-
sica, se ensina Arte”. Com o que começamos a passar da
crítica de arte para a Estética e para a Filosofia, tentando
atingir nosso alvo último.
Mas, antes de entrar no comentário do ensaio sobre
Antonioni, que me seja permitido sair, por um breve ins-
tante, do âmbito de A idéia e o figurado, para buscar um
elo extremamente útil, para nossa análise, na entrevista
que Gilda de Mello e Souza concedeu a Carlos Augusto Calil
a propósito do filme Conversation piece do Conde Luchino
Visconti 30. Por quê? Porque o protagonista interpretado por
Burt Lancaster reúne elementos presentes na vida e na obra
de Mário de Andrade: a condição da consciência infeliz do
intelectual que se preserva do mundo e de si mesmo na con-
dição de colecionador e de connaisseur (personagem que,
por outro lado, permite a transição para o fotógrafo Thomas,
central no filme Blow-up).
Antes, todavia, de fazer o contraponto, sublinhemos as
distâncias que separam os pólos que pretendemos ligar, no
mesmo ato em que os opomos. De fato, ao passar de Mário de
Andrade ao cinema italiano, passamos da poesia e da crítica
de arte brasileira da primeira metade do século XX ao ci-
nema de vanguarda da Itália da segunda metade do século (o
filme de Antonioni é de 1966 e o de Visconti de 1974). Além
do mais, nesse contraponto, passamos da periferia da cul-
tura européia para o seu centro e de uma obra que visa, no
Brasil em formação, a cultura do futuro a ser criada, a duas
obras que descrevem a dissolução de uma cultura passada,
numa época em que já se esboçava a figura catastrófica do
mundo que nos é contemporâneo. De qualquer maneira, sem
qualquer menção a Mário de Andrade, (a conexão é de nossa
única e exclusiva responsabilidade), Gilda nos faz ver, no
filme de Visconti, a mesma figura do colecionador que neu-
traliza a dolorosa divisão de sua consciência (entre o passado
a ser preservado de algum modo e o mundo presente que re-
jeita), na solidão e na intimidade de sua suntuosa residência
de janelas fechadas, reconciliando-se consigo mesmo na con-
templação da pintura inglesa ( a Conversation piece é justa-
mente a representação do nobre – como o protagonista do
filme – em sua vida privada, em sua casa junto da família
ou a cavalo em sua propriedade rural, longe do brilho da
vida social com os prazeres e conflitos que provoca).

30 O leitor pode ter acesso a essa entrevista, presente na edição do DVD de


Violência e Paixão (tradução brasileira do título Conversation piece)

22
Notemos que, na entrevista, Gilda começa por marcar
uma leve divergência das interpretações sugeridas pelo en-
trevistador em suas perguntas iniciais, tanto no que con-
cerne ao caráter autobiográfico do filme, quanto no que
refere à importância, nele, da questão da política. No que
concerne ao primeiro ponto, opõe o caráter essencialmente
autobiográfico de um filme como A Morte em Veneza ao
filme de Visconti como obra de imaginação (que nem por
isso deixa de estar impregnada por temas que se entre-
laçam também com a vida do Diretor); no que concerne à
dimensão política, insiste no fato de que ela é muito menos
presente neste filme do que em filmes anteriores como La
terra trema, Rocco e seus irmãos e O Leopardo31. O essencial
é a contraposição entre duas formas de vida: a da família
caótica e irregular que invade a intimidade do protagonista
e a de sua própria família, ordenada e aristocrática, crista-
lizada no quadro que pende na parede. Também a relação de
simpatia que liga o protagonista à figura do jovem interpre-
tado por Helmut Berger passa pela cumplicidade entre con-
naisseurs, que são capazes de se entender na discussão da
datação e da autoria de um quadro antigo. Nesse entrecru-
zamento é o tema da morte que emerge, tanto no caso do
jovem rebelde como (e sobretudo) da morte antecipada pelo
velho colecionador, sem esquecer da morte do mundo social
e cultural em que se formou e que constitui a única atmos-
fera em que pode respirar.
Mas que ligação pode haver entre este filme e Blow-up
onde, segundo a declaração explícita de Antonioni, trata-se
de festejar o mundo contemporâneo e a expansão, o refina-
mento da tecnologia que o caracteriza? Não é apenas o tema
do artista e sua consciência infeliz ou a do colecionador
que permite a passagem do pólo de Mário de Andrade ao
pólo do cinema italiano: deixando de lado a conexão evi-
dente com o protagonista de Conversation piece, em Blow-
up, Thomas junta as fotografias que tira sem cessar, como
Mário de Andrade juntava as peças de sua coleção. Como
o escritor brasileiro, Thomas também “grafa, fotografa, re-
gistra, recolhe”. O que nos importa todavia, no ensaio sobre
Antonioni, é a maneira pela qual aponta para o ponto cego
do criador, que se revela nas entrevistas em que o Diretor de
Blow-up procura revelar sua intenção e o significado de sua
obra (embora ele mesmo confesse: “O meu negócio é contar
histórias, narrar com imagens, nada mais”, marcando a di-
ferença das funções do artista e do crítico ou do intérprete).
31 Cabe marcar aqui a observação feita por Gilda, na referida entrevista,
do caráter “pessoal” de sua interpretação, ligada à natureza quase “apolí-
tica” de sua personalidade. Trata-se de uma pista a ser explorada na parte
final deste texto.

23 revista do ieb n 43 set 2006


Em todo caso vejamos, a despeito da observação sobre a es-
pecificidade do “negócio” do cineasta, como Antonioni in-
terpreta seu filme numa entrevista de 1967:

Em outros filmes tentei examinar a relação entre uma


pessoa e outra, com maior freqüência a sua relação amorosa, a
fragilidade de seus sentimentos, e tudo o mais. Neste filme nada
disso tem importância. Aqui é a relação entre um indivíduo e a
realidade – as coisas que estão ao seu redor. Não há história de
amor na fita, mesmo que vejamos relações entre homens e mu-
lheres. A experiência do protagonista não é sentimental nem
amorosa; antes uma experiência que se refere à sua relação com
o mundo, com as coisas que encontra diante de si32. É um fotó-
grafo. Um dia fotografa duas pessoas num parque. Um elemento
da realidade que parece real. E é. Este filme talvez seja como
Zen: no momento em que você o explica, você o trai. Ou seja,
um filme que pode ser explicado com palavras não é um filme
verdadeiro33 [Os grifos são de Gilda de Mello e Souza].

Os grifos da ensaísta marcam os pontos essenciais de


seu ensaio ou de sua interpretação alternativa do filme. O
ponto de partida do ensaio é o gigantesco processo de vi-
sualização do Mundo, operado no albor da modernidade e
aprofundado no século XIX: com a ajuda de Lucien Febvre
e de Lewis Munford, Gilda descreve o desaparecimento do
homem-do-ar-livre guiado pelo olfato e pelo tato como pela
audição e pela visão e o advento do homem-de-estufa que
multiplica ao infinito o poder e o alcance da visão. Privi-
légio da visão e das técnicas que culminariam na fotografia
e no cinema que, antes de se tornar arte, era apenas uma
técnica, como diz Panofsky, que tinha graça por permitir
“ver as coisas se mexerem como se fossem reais”. Sobre esse
pano de fundo, vemos desenhar-se o itinerário de Anto-
nioni, que se demora no gênero do documentário, de 1943
a 1950, quando estréia com o longa-metragem Crimes da
Alma (Cronaca di un amore). E a descrição do itinerário cul-
mina na questão crucial: “Em geral os filmes de Antonioni
são repetitivos e retomam os mesmos conflitos amorosos, a
dificuldade permanente de conciliar carreira e afeição, su-
cesso profissional e integridade artística. Contudo, a aná-
32 Num estilo que me faz lembrar o “retorno às coisas elas mesmas” da
fenomenologia que parece manifestar-se na forma literária do nouveau
roman e que, antes dessa geração pós-guerra, já se manifestara na poesia
de Francis Ponge, cujos ecos podemos ouvir na obra de João Cabral de
Melo Neto. Lembremo-nos que Michel Butor foi o tradutor para o francês
do livro Teoria do Campo da Consciência do notável fenomenólogo Aron
Gurwitsch, editado em Bruges, pela Desclée de Brouwer em 1957.

33 A idéia e o figurado, p. 156.

24
lise dos sentimentos, dominante nas primeiras obras, passa
com o correr do tempo para o segundo plano e, à medida que
o amor se esgarça, o protagonista tende a substituir a re-
lação íntima e corpórea que mantinha com o mundo – como
Aldo, o operário, em O grito (Il grido) – pela relação mental
e quase abstrata que em Blow-up, por exemplo, liga Thomas
à sociedade moderna. Por outro lado, se examinarmos como
os personagens centrais masculinos se distribuem no elenco
das profissões, veremos que eles se afastam, gradativamente,
das escolhas tradicionais para aderir às oportunidades ofe-
recidas pela tecnologia do presente. Assim, com a exceção do
protagonista de A noite, que é escritor, e representa um pe-
queno desvio da dominante, eles serão sucessivamente pintor
(As amigas), arquiteto (Aventura), engenheiro (Deserto ver-
melho), corretor de valores (O eclipse) e por fim fotógrafo
(Blow-up). Será que Antonioni quer significar com esta pro-
gressão a vitória triunfal da técnica?”34.
No começo de sua descrição da curva desenhada pela
evolução da filmografia de Antonioni, Gilda parece tender,
de início, a responder afirmativamente à pergunta que aca-
bamos de citar. Com efeito, é verdade que a estrutura básica
permanece inalterada ao longo de todos os filmes de An-
tonioni, sempre centrados numa busca invariavelmente li-
gada a uma morte. Mas tudo se passa como se a exploração
dos conflitos entre carreira e afeição, sucesso profissional
e integridade artística, evidente nas primeiras obras, fosse
progressivamente apagada, permitindo a montagem de uma
nova perspectiva que privilegia uma relação técnico-cogni-
tiva com o mundo, que deixa de lado a análise das oscila-
ções dos sentimentos e dos conflitos intra e inter-pessoais.
Os personagens centrais deixariam progressivamente de pri-
vilegiar a tradição artística e os valores do humanismo para
fazer o elogio da tecnologia triunfante da segunda metade
do século XX.
Antes de entrar na análise de Blow-up, que é o tema
central do ensaio, Gilda descreve essa mudança de óptica,
passando brevemente por três filmes anteriores: A aventura,
O eclipse e Deserto vermelho. No primeiro desses filmes, na
busca de Ana desaparecida, Sandro revela o segredo que o
habita: o desencanto ou a tormenta de um arquiteto que não
ignora sua nulidade ou sua falta de integridade. É na seqü-
ência da cidade de Nota que o arquiteto exprime a experi-
ência pungente do abismo que separa o esplendor do barroco
do que há de trivial e efêmero em sua própria obra: “Que
liberdade extraordinária. Era com isso que eu sonhava...”.
Logo em seguida temos a cena em que a dolorosa descoberta

34 Ibidem, p. 149.

25 revista do ieb n 43 set 2006


se exprime na mutilação da obra de arte, quando Sandro
destrói (voluntariamente, mas escondendo a intenção per-
versa sob a aparência do acidente casual), cobrindo de tinta
o esboço do jovem arquiteto que desenhava uma igreja da
cidade. Gesto que, nas palavras de Gilda, desmascara “a
consciência infeliz e o ressentimento profundo do perso-
nagem”35. Já com O eclipse e Deserto vermelho a consciência
infeliz parece deixar o primeiro plano. O eclipse significaria
um grande passo em direção de uma nova figura do cinema:
um filme puramente plástico36 que deixa a intriga na sua
margem, onde perdem peso os dilemas psicológicos, éticos
e estéticos dos personagens e, sobretudo, o conflito com o
mundo presente, e que “representa uma espécie de distan-
ciamento do figurativo, de namoro com a abstração”37. No
passo seguinte do itinerário de Antonioni, Deserto vermelho,
abre-se mais claramente o espaço que permitirá a eclosão
do filme que é nosso télos: Blow-up. É, pelo menos, o que
diz enfaticamente Antonioni numa entrevista concedida a
Jean-Luc Goddard em novembro de 1964. Gilda escolhe, na
entrevista, seus momentos mais significativos: para An-
tonioni a crise do protagonista desse filme “...é sobretudo
uma questão de adaptação: há pessoas que já se adaptaram
e outras, como Giuliana, que ainda não o conseguiram [...]
Minha intenção não foi a de acusar de desumano o mundo
industrial, onde o indivíduo é esmagado e conduzido à neu-
rose, mas, ao contrário, traduzir a beleza desse mundo, onde
as fábricas podem ser belas”38. Numa palavra: - adeus à
consciência infeliz! Sua infelicidade nada mais é do que a
cegueira que a impede de ver a beleza do mundo industrial,
onde finalmente o Absoluto se revela ao sujeito finito sob a
forma da beleza.
Estamos assim no pórtico de Blow-up, filme onde Gilda
de Mello e Souza será capaz de diagnosticar o ponto cego da
visão (ou do projeto) de Antonioni, que lhe torna inacces-
sível o sentido de sua própria obra. É certo que há uma mu-
dança de direção na filmografia: o protagonista do filme não
é, ou pelo menos está longe de aparentá-lo, uma consciência
infeliz. De câmara na mão (essa prótese de seu organismo)
duela apenas com o mundo das coisas e o domina, explo-
rando-o cada vez mais precisamente à medida em que se se-
35 Ibidem, p. 157.

36 Como na obra de Godard dos anos 80 “o cinema brinca de pintura”, nas


palavras de Philipe Dubois em Cinema, Vídeo, Godard, Ed. Cosacnaify, S.
Paulo, 2004, p. 251.

37 A idéia e o figurado, p. 154.

38 Ibidem, p. 156.

26
guem as ampliações de suas fotos. Sem drama, esse profis-
sional está perfeitamente adaptado ao mundo em que vive,
ligado de maneira eficaz com o mercado sempre aberto a
seu trabalho (embora não integralmente separado do mundo
da arte, na medida da ligação entre fotografia e pintura ou
mesmo do “parentesco” entre o fotógrafo Thomas e o pintor
Bill 39 ). Mas não é certo que Thomas, fascinado pelo mundo
dos objetos, não se envolva em relações dramáticas com ou-
tras pessoas. Gilda sublinha a dramaticidade extrema da re-
lação entre o fotógrafo e suas modelos, permeada de hosti-
lidade e de erotismo, como transparece em três seqüências.
Na primeira, indiferente, o fotógrafo abandona suas modelos,
que estão “imobilizadas e de olhos fechados”40, sem que elas
percebam, tratando-as, assim, como se fossem coisas. Na se-
gunda, estabelece uma relação conflituosa – sado-maso-
quista – com as duas meninas que assediam o fotógrafo em
busca de prestígio e que terminam por ele assediadas de
modo violento. Na terceira, bem mais complexa, a relação
do fotógrafo com sua modelo culmina numa alusão à posse
amorosa (com Thomas que monta sobre Veruschka) onde se
mesclam desprezo e intenção de profanação. Oculta na trama
ou nas dobras da narrativa, a meditação sobre as ambigüi-
dades da relação erótica permanece presente, ao contrário
das declarações explícitas de Antonioni.
Meditação sobre a ambigüidade e as contradições das
relações inter-humanas que está presente no filme, onde
ainda uma vez se cruzam amor e crime, como na obra ante-
rior do cineasta. É o que observa Gilda ao dizer: “o avesso
do amor é, muitas vezes, o crime”. Aqui está apontado o
ponto cego do criador: “Assim, ao contrário do que era afir-
mado na entrevista, Blow-up se refere insistentemente ao
amor, mas para sublinhar sempre o aspecto mecânico, des-
carnado, frágil, anormal (de voyeurismo) e mesmo crimi-
noso, que ele pode assumir no mundo contemporâneo”41. Do
mesmo modo, a perfeita adaptação técnica ao mundo, a mul-
tiplicação do poder cognitivo permitido pelo refinamento
da técnica fotográfica, parece ser acompanhada por uma
cegueira de Thomas, que perdeu completamente o modo de
ser do homem-de-ar-livre e só pode ver através das reprodu-
ções fotográficas e de suas mil ampliações. Como diz Gilda
de Mello e Souza: “Já não enxerga mais o mundo a olho nu,
está perdido entre as coisas, esquecido daquela relação ín-
tima com a natureza do homem-de-ar-livre, das crianças,
39 Ibidem, p. 158-9.

40 Ibidem, p .159.

41 Ibidem, p. 162.

27 revista do ieb n 43 set 2006


das mulheres, relação espontânea e táctil que o próprio An-
tonioni rememora com nostalgia na metáfora insistente do
contacto do dedo com o objeto: em A aventura, durante a
longa espera na ilha, o dedo de Claudia, contornando a folha
do arbusto; em Blow-up o dedo que Patrícia desliza, pensa-
tiva e infeliz, sobre a corda estendida”42 . Mais ainda, aqui
como em toda filmografia anterior, repitamos, o tema cen-
tral continua sendo o da articulação entre busca e morte.
E, ao contrário do elogio da adaptação ao mundo, no filme
acabamos por ver o retorno ao tema do abatimento e da der-
rota, assim como o da fuga pela fantasia.
Esse tema da fuga, que emerge no diálogo entre
Thomas e a mocinha do antiquário (Ir para o Nepal? Ou
para Marrocos?), está presente na abertura e no fim do
filme, com os dois episódios em que irrompem os clowns.
Gilda insiste na distância que separa Antonioni de Visconti,
com a fuga para o passado e de Fellini, com a fuga para a
infância (mas a ligação entre a fantasia e a presença dos
palhaços não nos reaproxima, de algum modo, do autor de
La Dolce Vita?, como poderíamos perguntar à margem do
ensaio “Variações sobre Michelangelo Antonioni”). Mas re-
tornemos, como é preciso, à análise de Blow-up. Na aber-
tura e no final do filme, segundo Gilda, a presença dos pa-
lhaços arma uma complexa alegoria. No contacto entre eles
e o fotógrafo que, sério, cumpre sua tarefa profissional,
cria-se “uma relação cordial, lúdica, um verdadeiro pacto”43,
que nos leva para longe do propósito declarado de Anto-
nioni. Quanto à aparição dos clowns, no fim do filme, cabe
citar nossa autora por extenso: “Ruidosos como sempre, eles
reaparecem e cercam a quadra de tênis, onde dois deles ini-
ciam uma partida simulada, fingindo pelos gestos e o mo-
vimento do olhar a presença fictícia das raquetes e da bola.
Um pouco afastado da cena, Thomas, que acaba de sair
do parque, observa com atenção o jogo curioso, interrom-
pido a certo momento como se a bola tivesse sido arremes-
sada na direção do fotógrafo. Os jogadores, parados, inter-
rogam-no com o olhar e, apontando com insistência para
a bola, sugerem por gestos que ele a devolva. Thomas he-
sita, indeciso, e finalmente se curva, apanha a bola invi-
sível e a devolve à quadra. O jogo prossegue normalmente,
nós ouvimos o ruído das pancadas no chão, vemos o olhar
de Thomas ir e vir, acompanhando os lances da partida.
Ele então abaixa os olhos, como quem aceitou com humil-
dade as regras do jogo, e a câmara executa um travelling
42 Ibidem, p. 162. É impossível não lembrar aqui a bela frase de
Bachelard: “a idade da pedra polida é a idade da pedra acariciada”.

43 Ibidem, p. 167.

28
para o alto, focalizando-o de cima, numa tomada aérea”44 .
De qualquer maneira, na passagem da primeira para a se-
gunda seqüência, marca-se o desvio em relação à aparente
vocação “realista” do filme. Com os clowns passamos da al-
ternativa entre o espaço-da-natureza e do espaço-da-téc-
nica para a busca nostálgica da utopia da “terra sem males”
no espaço da fantasia. Como o Nepal e o Marrocos que
emergem em Blow-up, numa obsessão permanente, o Qu-
ênia aparecia em O eclipse, a Venezuela em O grito e a Pa-
tagônia em Deserto vermelho. Assim, só podemos concluir
com Gilda de Mello e Souza que: “Todos esses elementos
apontam, paradoxalmente, para uma obra diversa da que
ele projetou realizar, demonstrando que a intenção do
criador é precária diante da autonomia das formas”45 . Con-
clusão que converge com aquela a que tendia a análise crí-
tica nos ensaios consagrados a Mário de Andrade.

IV
Depois de percorrer de maneira perfunctória dois
exemplos da atividade exegética de Gilda de Mello e Souza,
resta voltar a atenção, como anunciado desde o início deste
texto, para os efeitos filosóficos desse trabalho a despeito da
“despretensão teórica”46 que ostentam. E começo endossando
uma frase do ensaio já citado de Otília Beatriz Fiori Arantes,
que afirma, descrevendo a sinuosidade do procedimento crí-
tico de Gilda: “Pois é nesse vai e vem entre a pintura, sua
história e a realidade que se move a nossa autora – utili-
zando permanentemente e ao mesmo tempo relativizando as
lições dos mestres da escola de Warburg”. O que interessa é
aprofundar o sentido dessa ligação de certo modo ambígua
com a referida Escola: que significa aqui relativizar? Para
fazê-lo, parece útil comparar os textos “epistemológicos” de
Erwin Panofsky com a concepção de arte e da experiência
estética a ser desentranhada das entrelinhas dos ensaios de
Gilda de Mello e Souza.
Detenhamo-nos, para esse fim, especialmente no curto
ensaio de Panofsky “Sobre o problema da descrição e da in-

44 Ibidem, p. 168. Aqui também, creio, seria oportuna uma alusão a


Fellini. Essa visão do alto, que nos revela a solidão do fotógrafo não seria
simétrica à solidão do protagonista de Oito e meio, quer quando é apre-
sentado, isolado e solitário dentro de seu carro, em meio ao congestiona-
mento, quer quando sobrevoa a praia e é laçado, por seus colegas, para
retornar ao quotidiano e à realização de seu filme? Uma solidão que busca
a fuga pela fantasia e que tem na parceria com os palhaços uma via privi-
legiada.

45 Ibidem, p. 170.

46 Cujo aspecto positivo será tematizado adiante.

29 revista do ieb n 43 set 2006


terpretação do conteúdo das obras das artes plásticas”47.
Ninguém ignora a importância, no método crítico de Pano-
fsky, da passagem da descrição para a interpretação ou da
iconografia para a iconologia, das aporias que tal passagem
implica e da maneira pela qual o autor procura desemba-
raçar-se delas. Para começar, lembremos o esquema ternário
presente em toda a obra e exposto esquematicamente no en-
saio (que nesta edição lhe acrescenta o quadro dos três ní-
veis, que nos levam da descrição à interpretação, presente
em outro texto, no livro Ensaios de Iconologia 48 ).
No primeiro nível, como nos seguintes, temos uma
estrutura composta de três instâncias, a saber: Objeto de in-
terpretação, que consiste no seu sentido fenomênico, que por
sua vez apresenta tanto a face do sentido “objetivo”, quanto
a face do “sentido expressivo”; Fonte subjetiva da interpre-
tação, que consiste na experiência existencial ou vital do
sujeito percipiente; Corretivo objetivo da interpretação, que
consiste na História das configurações (ou na suma das pos-
sibilidades de representação [Darstellung] artística). No se-
gundo nível, mais elevado, temos uma trindade mais com-
plexa: Objeto de interpretação, que consiste no sentido se-
mântico; Fonte subjetiva de interpretação que consiste no
conhecimento literário; Corretivo objetivo da interpretação
que consiste na História dos tipos (suma das possibili-
dades de representação [Vorstellung] artística). Finalmente,
no terceiro nível, o mais elevado do progresso interpreta-
tivo: Objeto de interpretação, que consiste no sentido do-
cumental; Fonte subjetiva de interpretação, que consiste no
comportamento decorrente de uma “visão do mundo” [Wel-
tanschauung]; Corretivo objetivo da interpretação, que con-
siste na História geral das Idéias (suma das possibilidades de
visão do mundo).
O leitor há de notar que, em cada nível, a fonte sub-
jetiva da percepção encontra-se situada entre seu objeto e
o corretivo que lhe permite modificar o sentido da primeira
figura apresentada pelo objeto. Mais do que isso, ao passar
do nível um ao nível dois, esse efeito retroativo se repete: o
corretivo tipológico não altera apenas o sentido semântico,
mas retroage sobre o sentido fenomênico. E, mais ainda, no
último nível, o corretivo que passa pela História Geral da
Idéias, revelando o sentido documental depois de levar o su-
jeito à consciência da ligação do comportamento (ou do es-
tilo de existência) a uma Weltanschauung, também retroage

47 Cf. A Pintura, textos essenciais, Vol. 8, Descrição e Interpretação,


Direção geral de Jacqueline Lichenstein e Apresentação de Jean-François
Groulier, Ed. 34, S. Paulo, 2005.

48 Ibidem, p. 85.

30
sobre os níveis anteriores, fechando uma espécie de círculo
ao dar a última e complexa forma ao raso sentido fenomê-
nico de que partimos (ou de que parte sempre a percepção
espontânea). O aprofundamento progressivo da análise, que
passa da iconografia para a iconologia, acaba por revelar o
seu caráter circular. Eis a aporia a ser dissolvida: essa circu-
laridade não seria viciosa, implicando um petitio principii?
É claro que, em cada um dos níveis, a instância corretiva
visa neutralizar a pura projeção dos pré-juizos subjetivos. O
que não impede que, na sua totalidade, o movimento inter-
pretativo permaneça circular em sua essência 49.
Em seu artigo de 1933, Panofsky tem fresca na me-
mória a lembrança da polêmica entre Heidegger e Cassirer
(seu amigo, que também passou pela Escola de Warburg) e
é obrigado a distanciar a idéia da forma necessariamente
circular da interpretação da circularidade da hermenêutica
do autor de Ser e Tempo50. Esse é o tema da quarta e úl-
tima parte de seu artigo sobre descrição e interpretação: Pa-
nofsky começa por citar o trecho de Kant e o Problema da
Metafísica, onde afirma que é preciso ultrapassar a super-
fície do texto (não limitar-se a repeti-lo ou glosá-lo), que é
necessário ir “além da formulação textual, [tornar visível
– B.P. Jr.] o que Kant procurou trazer à luz com a sua fun-
damentação; mas isto, Kant não foi capaz de dizê-lo (...). É
claro que toda interpretação precisa necessariamente fazer
uso da força para arrancar do que as palavras dizem o que
elas querem dizer”51. Sem negar a necessidade desse uso da
força, Panofsky busca dar-lhe um sentido diferente do hei-
deggeriano52 . Assim, no caso de Kant, nosso autor recorre,
sem citá-lo, a Cassirer. Faltaria a Heidegger a instância cor-
retiva que “já está dada na facticidade histórica”, que nos
impede de forçar o texto, o limite (a separação entre formas
históricas diferentes de pensamento) que proíbe a projeção
retrospectiva de categorias ausentes no passado. Projeção re-
trospectiva que seríamos tentados fazer, por exemplo, lendo

49 De resto, nada há de escandaloso nessa circularidade e ela não nos


mergulha no abismo do subjetivismo ou do relativismo. Não reconhe-
cemos, com efeito, uma circularidade semelhante na própria ciência,
quando aceitamos, como é razoável, como boa parte da epistemologia
contemporânea, a “impregnação teórica dos enunciados observacionais” ou
o caráter “holístico” das teorias científicas?

50 Heidegger insiste no caráter virtuoso e não vicioso do círculo herme-


nêutico, no qual deveríamos entrar, em lugar de tentar dele sair.

51 A Pintura, Textos essenciais, p.101.

52 Ibidem, p. 103, onde uma referência a Edgar Wind permite-lhe dar nova
versão ao círculo hermenêutico que afasta o perigo do arbítrio interpreta-
tivo em que Heidegger parece mergulhar.

31 revista do ieb n 43 set 2006


o “tédio da vida moderna” na Melancolia de Dürer. Ao con-
trário do que “... o historiador da filosofia podia aprender
com a história das idéias do século XVIII sobre os limites a
que está restrita uma exegese ontológica de Kant, contanto
que ela não queira renunciar aos direitos – e aos deveres –
de uma ‘interpretação’”53.
Ao introduzir a questão nestes termos, não o faço
com a intenção de situar Gilda de Mello e Souza em um dos
extremos desse debate, cuja origem está na polêmica entre
Heidegger e Cassirer em Davos (1929). Nossa autora não pa-
rece cuidar muito dos problemas e das alternativas de on-
tologia fundamental ou da tentativa de fundar a análise da
obra de arte numa epistemologia das Geisteswissenschaften
que remete à crítica kantiana. Advirto o leitor que se en-
dossei o enunciado de Otília sobre a “relativização” das
teses da Escola de Warburg, não pensava de modo algum
na projeção retrospectiva da ontologia de Heidegger na in-
terpretação da “história do Ser” (que não deixa de ser uma
forma de relativização do passado por obra de uma óptica
seletiva muito particular). De qualquer maneira, Gilda está
mais próxima de Panofsky do que de Heidegger. Sem dú-
vida a insistência na “precariedade do criador” é a mesma
para nossa autora e para Panofsky. Trata-se de tema cons-
tante nos escritos do membro da Escola de Warburg, como
insiste Pierre Bourdieu no posfácio que acrescentou à tra-
dução que fez para o francês do livro Arquitetura gótica
e pensamento escolástico, privilegiando, nesse capítulo da
história da arte, a idéia de uma “intenção objetiva” que
nada tem a ver com a intenção subjetiva do criador (Bour-
dieu investe contra os teóricos da Kunstwollen54 ). Para além
da intenção do artista, o que é objeto de trabalho dos dois
autores, o alemão e a brasileira, são os códigos, os tipos, os
sistemas de sinais e significações, as “gramáticas”. Numa
palavra, tanto num caso como no outro temos obras primas
de iconologia. Mas uma iconologia praticada segundo espí-
ritos diferentes: para um, a iconologia se baseia essencial-
mente numa epistemologia – em parte aquela de Cassirer,
com sua direção iluminista e universalista, que se prolonga
numa “Filosofia das formas simbólicas”, em que a orde-
nação artística da experiência e do mundo abre o espaço
de uma estruturação simbólica superior, que é fornecida
pela ciência. Como na Fenomenologia de Hegel, para Cas-
sirer (aqui bem pouco neo-kantiano) mito, linguagem, reli-

53 Ibidem, p. 108.

54 Aparentemente a contrapelo de Panofsky, que dá a impressão de não se


voltar abertamente contra seu mestre Riegl, criador do referido conceito.

32
gião, arte e ciência se sucedem como formas do espírito que
tendem à universalidade da Razão. Tendência que Pierre
Bourdieu leva ao limite, introduzindo na obra de Panofsky
mais do que um “grão” do “estruturalismo” então em moda
na França, chegando mesmo ao exagero de aproximá-la da
gramática generativa e transformacional de Chomsky. Não
seria melhor ligá-la à “gramática” de Wittgenstein, em tudo
oposta à gramática generativa e transformacional, por sua
recusa de reduzi-la à uma forma lógica ou a um cálculo,
por dar-lhe uma dimensão mais pragmática do que sintá-
tica ou semântica (por sua ênfase na dimensão do uso como
campo do sentido), e sobretudo por fazer dela um instru-
mento de ampliação do campo de visão, escada que permite
chegar à Übersicht (visão de sobrevôo ou, simplesmente,
visão geral?). Ligando a empresa de Panofsky à de Saus-
sure, Bourdieu nos diz no último parágrafo de seu Pos-
fácio: “Erwin Panofsky mostra aqui de forma brilhante que
só pode fazer o que faz sob a condição de saber a cada mo-
mento o que faz, pois as operações, tanto as mais humildes
como as mais nobres, da ciência valem o que vale a consci-
ência teórica e epistemológica que acompanha essas opera-
ções”. É bem essa aproximação entre a análise das obras de
arte e os métodos das hard sciences que jamais encontra-
remos na obra de Gilda. Aliás, se não estou redondamente
enganado, é o que ela mesma diz obliquamente contra essa
tendência no texto seguinte, da nota 6 de seu ensaio sobre
Antonioni: “É curioso que o método adotado por Thomas,
no estúdio, se aproxima daquele que, segundo Moles, a te-
oria da informação gostaria de propor aos filósofos como
síntese de uma atitude estruturalista e uma atitude estética.
Levando em conta que ‘perceber é perceber formas’ a teoria
da informação proporia decompor o retrato do universo em
pedaços de conhecimento, visando, primeiro, fazer o levan-
tamento de um repertório e, em seguida, recompor um mo-
delo, que seria o simulacro desse universo, aplicando nessa
tarefa as regras de assemblage ou interdição”. Numa pa-
lavra, uma estética construída da perspectiva de um olhar
mecânico.
Na verdade, estamos diante de um duplo problema:
1) como é possível fazer um uso tão rico de tradições crí-
ticas como a da escola de Warburg, sem comprometer-se
com a abstração das filosofias e epistemologias a que estão
ligadas?; 2) como é possível aclimatar as boas tradições
da Estética européia no contexto brasileiro, sem trair, ao
mesmo tempo, a teoria de origem e o novo campo de apli-
cação? Na verdade, não é possível responder a essas duas
questões separadamente, sem transitar, com todo o vagar

33 revista do ieb n 43 set 2006


possível, entre elas. A obra crítica de Gilda deriva da con-
vergência entre o movimento de modernização da litera-
tura brasileira e os esforços teóricos dos sociólogos e dos
historiadores para dar conta da formação brasileira. Mais
do que isso, nesse contexto de verdadeira revolução intelec-
tual, a reflexão estética volta-se para o futuro, ao contrário
da óptica européia que assume espontaneamente o peso da
tradição, exceto nos pequenos grupos de vanguarda que de-
sencadeiam seus movimentos fora da Universidade e que
pouco cuidam do passado ou da arqueologia das Artes. Essa
característica da óptica européia é visível mesmo nas polê-
micas mais vivas do presente, como a que se exprimiu nos
movimentos “zurück Kant” (desde a segunda metade do sé-
culo XIX até o século XX, em sucessivas ondas) que está
na origem dos modelos europeus da história da arte e da
reflexão estética de que Gilda lança mão com a maior li-
berdade. Repitamos três frases de nossa autora, já citadas
no início deste texto, descrevendo o itinerário de sua ge-
ração: “As conquistas eram em geral provisórias e não se
apoiavam na segurança racional dos sistemas. Mas aquele
momento de transição entre o sonho das vanguardas e a
chegada vitoriosa dos especialistas, delineavam à nossa
frente um recorte novo da realidade. Talvez uma invenção
da realidade, tal como de tempos em tempos a arte efetua,
para renovar o sentimento da divindade, do homem ou,
mais modestamente, da paisagem”. O caráter essencialmente
prospectivo aí revelado é essencial, na necessidade que im-
plica de inventar a realidade e que aproxima a tarefa cog-
nitiva mais da própria arte do que da ciência (que deveria
vir depois). Caráter que será tanto mais visível quando con-
traposto às dificuldades face aos movimentos de renovação
ou de criação com que se defronta Pierre Bourdieu que, na
ocasião, faz sua a teoria de Panofsky, no Posfácio já ci-
tado55 . Situada na periferia do capitalismo, não poderia ser
outro o itinerário de Gilda, nossa mestra de Estética.
Mais ainda: não é necessário referir-se à situação
brasileira para compreender que uma obra de pensamento
não se demore na edificação de uma Teoria. Nas tradições
rivais da fenomenologia e da filosofia analítica podemos
encontrar exemplos de filósofos não fundacionistas que re-
cusam o modelo “intelectualista” do pensamento ou a con-
cepção da filosofia como uma espécie de Ciência Superior.
Penso em autores como Wittgenstein e Merleau-Ponty – que
jamais se comunicaram ou se influenciaram reciprocamente
– em cujas obras é possível vislumbrar uma mesma con-

55 Como em sua própria teoria faz sua a categoria de habitus no sentido


que lhe foi atribuído por Panofsky.

34
cepção da filosofia que privilegia a dimensão do acesso ori-
ginário pré-científico56 ao mundo, onde a visão57 ganha no-
vamente a importância que perdera desde Platão. Ou ainda
em Bachelard que, passando da reflexão epistemológica a
uma espécie de “fenomenologia” da imaginação, acaba por
dar à última a função de raiz da totalidade da Filosofia.
Numa palavra, filosofias onde a Arte e a Estética se mos-
tram como forma privilegiada de acesso ao próprio coração
da Filosofia.
Com esses elementos, podemos esboçar o que poderí-
amos chamar de hermenêutica de Gilda de Mello e Souza.
Nela, é claro, é reconhecida a circularidade da interpretação,
mesmo na forma mais evidente da projeção de escolhas do
intérprete, como é reconhecido na entrevista sobre Conver-
sation piece, no uso da expressão “interpretação pessoal”.
Como também é reconhecida na expressão inventar a rea-
lidade, do texto citado há pouco e que já servira de ponto
de partida deste ensaio. Mas, é claro, não se trata de algo
como um “teste projetivo”, onde a obra interpretada fun-
ciona como um espelho onde o intérprete só é capaz de ver
a si mesmo e suas próprias escolhas. Pois o projeto interpre-
tativo não só mobiliza instâncias ou instrumentos “corre-
tivos” (à maneira dos hermeneutas em geral e de Panofsky
56 No caso de Wittgenstein, o plano secundário da epistemologia é acom-
panhado por um olhar sobranceiro lançado sobre a ciência, como é visível
na seguinte frase que manifesta a expectativa, como que um desejo da
“Zerstörung eines grässlichen Übels, der ekelhaften, seifenwässringen
Wissenschaf (manuscrito. 131, de 19/VIII/1946, incluído nas Vermichte
Bemerkungen); traduzindo: “...destruição desse mal horrível, dessa
lavagem nauseabunda que é a ciência” . Ou numa outra, em que reformula
a famosa expressão de Goethe nos seguintes termos: “‘Die Weiseheit ist
grau.,’Das Leben aber und die Religion sind farbenreiche (manuscrito 134,
de 27/VI/1947, incluído nas Vermichte Bemerkungen”); traduzindo: “ ‘A
sabedoria [no sentido de saber teórico, ciência – nota de B. P. Jr] é cinza’.
Mas a vida e a religião são ricas de cores”. É preciso sublinhar que o
conceito de religião, para Wittgenstein, está indissociavelmente ligado aos
conceitos de estética e de ética: tais conceitos formam um todo indissoci-
ável, ao contrário do que ocorre na filosofia de Kierkegaard, que distingue
os níveis da estética, da ética e da religião, que sucedem em ritmo ascen-
cional. No caso de Merleau-Ponty, é desnecessário sublinhar sua insis-
tência sobre a prioridade da percepção sobre as hipóteses e os modelos
construídos pela ciência. Lembremos a primeira frase do ensaio “O olho
e o Espírito” onde, para contrastar ciência e percepção estética, diz: “A
ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las.” Ou, mais positiva-
mente, as seguintes frases: “Assim, a pintura nos reconduzia à visão das
próprias coisas. Inversamente, como que por uma troca de favores, uma
filosofia da percepção que queira reaprender a ver o mundo restituirá à
pintura e às artes em geral seu lugar verdadeiro, sua verdadeira dignidade
e nos predisporá a aceitá-las em sua pureza” (Cf. M. M.-Ponty, Conversas
– 1948, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2004, p. 56).

57 A visão propriamente dita, isto é, a visão do mundo sensível, não sua


sublimação como nóesis, visão intelectual da essência.

35 revista do ieb n 43 set 2006


em particular), como ele tem um caráter polêmico ou sub-
versivo: interpretar, aqui, é convidar a ver de modo dife-
rente. Mesmo no ambicioso projeto husserliano de instituir a
filosofia como Strenge Wissenschaft (como ciência rigorosa)
não era a “variação imaginária” um momento necessário da
redução fenomenológica, dando acesso ao domínio “celeste”
das essências? De qualquer maneira, mesmo sem fenome-
nologia ou sem qualquer outra forma de übris, é preciso re-
conhecer o valor cognitivo da imaginação, sem a qual não
poderíamos modificar nosso modo de ver (pensemos no “ver
como” de Wittgenstein) e permaneceríamos prisioneiros de
nossos ídolos, de nossos preconceitos pessoais ou da tradição
passiva e inconscientemente assimilada. Imaginar, aqui,
não é o contrário de investigar o mundo objetivo: é abrir-se
para o que, até agora, permaneceu invisível. Sem a imagi-
nação ou a variação sistemática do modo de ver, não poderí-
amos topar com e descobrir os indícios que podem levar-nos
ao código iluminador da obra em sua singularidade (assim
como descobrir ou ver de modo diverso o próprio código a
partir da obra singular). Sem saper vedere não poderemos,
mesmo fora das artes plásticas e da Estética, saper leggere
e saper ascoltare, isto é, re-ver nossa experiência quoti-
diana, nossa relação com a sociedade, com a cultura e com
o mundo. Noutras palavras, estaremos condenados a perma-
necer aquém da Filosofia.
Era bem esse lugar central da Estética na Filosofia que
deslumbrados descobríamos em 1956, nas aulas de Gilda de
Mello e Souza, que tanto nos marcaram.

Janeiro de 2006

36
Notas sobre o método crítico de Gilda
de Mello e Souza1
Otília Beatriz Fiori Arantes *

Ao prefaciar, em 1987, O espírito das roupas2 – pri-


meira edição em forma de livro de uma tese sobre A Moda
no século XIX, que sua autora praticamente relegara a um
exílio de trinta e sete anos numa separata da Revista do
Museu Paulista –, Alexandre Eulálio relembra o estado de
verdadeiro “fervor intelectual” com que um ensaísta da en-
vergadura de Augusto Meyer concluíra a leitura daquele
texto, se perguntando quem poderia ser afinal a autora da-
quele trabalho inteiramente fora do esquadro acadêmico,
tanto pela originalidade temática quanto pela excepcionali-
dade da prosa.
Está claro que Gilda de Mello e Souza sempre soube
do caráter desviante daquele estudo em relação às normas
universitárias predominantes na época, para não falar da
impressão de futilidade que o assunto costumava produzir
na austera e prolixa sociologia de seu tempo. Se hoje ficou
muito mais fácil admirar sem condições esse milagre aca-
dêmico de meio século atrás, o que no entanto já não está
mais ao nosso alcance, não digo nem repetir, é a possibili-
dade mesma de emendar, ainda que remotamente, na flu-
ência inventiva de sua prosa de ensaio, na qual, para além
do talento de cada um, estava sedimentada a experiência
social e intelectual de toda uma geração que aprendera a
pensar imaginando as virtualidades de um país ainda em
formação.
Sendo esta a matriz histórica do irrepetível, não
penso desfigurar o espírito livre do ensaísmo da autora, se
destacar, para efeito de análise e interpretação de sua origi-
nalidade, uma questão aparentemente preliminar que se po-
deria chamar de “método”. Como se verá, igualmente idios-
sincrático.

* professora aposentada do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP.

1 Redigidas a partir da Aula-Conferência “Um capítulo brasileiro da


Estética e da História da Arte: Gilda de Mello e Souza”, apresentada na
abertura do II Congresso de Estética e História da Arte – Arte brasileira,
no Programa de pós-graduação interunidades de Estética e História da
Arte, no MAC USP, no dia 8 de novembro de 2005.

2 São Paulo, Cia. das Letras, 1987.

37 revista do ieb n 43 set 2006


Há exatamente 20 anos saía o livro do historiador ita-
liano Carlo Ginzburg, Mitos, emblemas, sinais. Lembro de
Gilda comentar o quanto se sentiu lisonjeada reencontrando
num autor famoso uma explicação erudita de dois métodos
de abordagem da obra de arte que lhe eram por assim dizer
desde sempre como que congenitamente próprios e que, além
do mais, não gozavam de muito prestígio entre os críticos
locais, a saber: a arqueologia visual dos mestres da escola
de Warburg e o método indiciário praticado pelos connais-
seurs, notadamente pelo mais conhecido deles, o médico ita-
liano do século XIX, Giovanni Morelli. Um pouco por tem-
peramento, mas sobretudo por uma escolha muito meditada,
Gilda sempre valorizara, na interpretação das obras, aquilo
que aparentemente era desimportante e que não aparecia de
imediato numa primeira leitura ou a olho nu, os pequenos
indícios a serem perseguidos, como as pegadas, por um ca-
çador, ou os “sinais” característicos que despertam a imagi-
nação de um detetive, de modo a decifrar o enigma que nos
é proposto pela obra, fosse ela quadro, filme, ou livro. Por
outro lado – já então na linha de Aby Warburg, Panofsky,
mas sobretudo Gombrich – acreditava que a interpretação de
uma tela pelo crítico, tanto quanto da realidade pelo artista,
eram sempre mediadas por um esquema dado, um modelo
relacional, por isto mesmo variável, incerto, e que se pauta
por algo que os psicólogos chamam de trial and error.
Porém, a questão que se colocava para a aficcio-
nada brasileira daqueles métodos sem prestígio não era
exatamente o da atribuição de autoria da obra, nem se tra-
tava de peritagem no sentido estrito do termo, mas de algo
como uma descoberta dos “códigos”. Recordo-me da ad-
vertência recorrente que fazia em aula, sobre a necessi-
dade de dominarmos os “códigos” – seja os adotados pelo
artista em geral de forma espontânea, como no caso dos
fragmentos menos trabalhados e por isso mesmo capazes
de fornecer as pistas essenciais, como pretendia Morelli,
seja nas repetições, nem sempre intencionais por parte do
artista, das soluções adotadas através da história da pin-
tura. Recorde-se que tanto Gombrich quanto Wöllf lin (ob-
servadas as devidas distâncias) acreditavam que o que o
artista realmente pinta, ele o deve mais aos outros pintores
do que à observação direta.
Mas é preciso também não esquecer, ao falar dos “pe-
quenos gestos inconscientes”, como o faz por exemplo Edgar
Wind, comentando Morelli, do que o próprio Freud – outra
fonte inesgotável que Gilda sabia utilizar como ninguém
com a devida parcimônia – escreveu, a propósito do perito
italiano: “creio que o seu método está estreitamente apa-
rentado à técnica da psicanálise médica. Esta também tem

38
por hábito penetrar em coisas concretas através de ele-
mentos pouco notados ou desapercebidos, dos detritos, dos
refugos”.3
Um método ensaístico desses, que por assim dizer
parecia não ir direto ao ponto, aparentemente incapaz de
captar o essencial ou a estrutura geradora de uma obra, por
isso mesmo desconcertava os seus pares, intrigados com
tanta despretensão teórica. E no entanto o fascínio de suas
aulas e escritos derivava em grande parte desse poder divi-
natório das “pistas” que ia levantando. Carlo Ginzburg usara
a imagem de um tapete sendo tecido diante de nossos olhos.
Talvez, ou melhor, com certeza, se possa acentuar
ainda mais a originalidade do método crítico de Gilda de
Mello e Souza com a ajuda dos elementos que, não por
acaso, ela soube tão bem reconhecer em funcionamento na
imaginação sempre acesa de um Paulo Emílio para o detalhe
revelador de toda uma cinematografia.4 Repassando os argu-
mentos, mais do que apenas destaca, a rigor está se identi-
ficando com o relativo desinteresse do crítico pelos grandes
temas e pelas teorias em voga (aliás, marca registrada de
todo o grupo Clima), para voltar-se para o não consagrado,
os mestres menores, no caso em exame o nosso cinema aca-
nhado e rudimentar, em sua fase primitiva, buscando aí,
no contato direto com a obra, decifrar o que ela, mesmo na
sua expressão mais tosca e incipiente, ou por isso mesmo,
e através de meios escassos, como em geral ocorria na fil-
mografia brasileira nascente, tinha a dizer sobre o mundo,
o nosso “mundo tímido e arcaico”. A seu ver, mais do que
a expressão de um temperamento pouco convencional, uma
visão muito refletida e incrivelmente próxima do método in-
diciário, cuja aclimatação brasileira está nos interessando
destacar. Centrado na observação do que parece não ter im-
portância, justamente – relembra então explicitamente seu
repertório pessoal – o modo de ver as obras que dera origem
na crítica de arte do oitocentos à figura do “perito”, no sen-
tido de “conhecedor”, como o definiu Lionello Venturi 5:
aquele que “sabe confrontar e distinguir, de modo crítico, a
escola, a personalidade, o estilo do artista”, que é capaz de
“um exercício crítico minucioso, paciente, centrado na ob-
servação das características mais insignificantes”.
3 Citado por Ginzburg em Mitos,emblemas, sinais, São Paulo, Cia. das
Letras, 1989, p.147.

4 Refiro-me à sua argüição à tese sobre Humberto Mauro, retomada em


“Paulo Emílio, a crítica como perícia”, reproduzido em Exercícios de
leitura (título da coletânea já nele mesmo bastante sugestivo em relação ao
que estou tentando caracterizar),S.Paulo, Duas Cidades, 1980.

5 Num capítulo de sua História da Crítica de Arte, citado e comentado por ela.

39 revista do ieb n 43 set 2006


Numa palavra, como aliás se pode ler na orelha da
edição francesa do livro de Paulo Emílio sobre Jean Vigo,
cujo autor de resto se mostra instruído acerca das manias
investigatórias do crítico brasileiro: para esclarecer os seus
enigmas, foi necessário que Paulo Emilio se fizesse “pa-
ciente como um explorador, metódico como um egiptólogo,
desconfiado como um detetive e sutil como só ele.” Quando
tempos depois o crítico passaria a desnudar a condição co-
lonial sob cuja marca cruel se desenrolaria tudo o que se
referia à produção cinematográfica brasileira, sua egipto-
logia exploratória seria bem diversa, sem falar na descon-
fiança detetivesca rearmada pela nova consciência do sub-
desenvolvimento.
Mas voltemos ao comentário luminoso de Gilda. Al-
guns “detalhes” sobre roupas e chapéus valem a citação,
pois recortadas do contexto pelo olhar igualmente perito
e não menos sutil de nossa autora: “é sobretudo através
da vestimenta que o filme preestabelece e predetermina
como será cada figurante. Em na Primavera da Vida é a
roupa que nos informa desde o início que o Dr. Passos, mo-
cinho que veio da cidade grande ... em oposição aos homens
probos da cidade pequena, que usam colete e colarinho alto
e engomado de pontas quebradas, dispensa o colete, usa pa-
letó e gravata ... Além do mais o seu terno é de casimira e
diverge neste detalhe dos costumes de linho branco...” Ou
ainda: “O chapéu do mocinho, sempre presente em suas
mãos ou na cabeça, tem a fita larga e a aba curta descida
sobre o rosto, enquanto o do vilão é uma ‘suspeita palheta
janota’; os delinqüentes locais trazem chapéus ‘amarfa-
nhados e até informes devido ao uso ostensivo’ e, quanto
ao coronel e seus amigos, surgem de cabeça nua, mas, como
lembra com senso de humor Paulo Emílio, neles assentaria
muito bem o chapéu coco.”6 Creio que não se poderia visua-
lizar melhor o encaixe quase sob medida entre o sexto sen-
tido da perícia-crítica e o relevo ainda desconexo de uma
cena periférica.
O estudo de Carlo Ginzburg é um pouco posterior à
redação da argüição de Paulo Emílio, mas se na época a re-
ferência principal da Profa. Gilda era Lionello Venturi, como
víamos há pouco (e aqui mais uma reminiscência do tempo
de aluna: o rito de iniciação para os alunos de graduação
principiava pela leitura do “manual” de Venturi Para com-
preender a pintura, de Gioto a Chagall), circulava entre
nós, já em meados da década de 60, traduzido pela Taurus,
o livro de Edgar Wind Arte e anarquia, citado por mim no
início, e não por acaso ligado à escola de Warburg, no qual
6 Souza, Exercícios de Leitura, pp. 217 e 218.

40
dedica um capitulo especial à demolição dos preconceitos
contra os connaisseurs. Aliás é graças a uma observação
muito característica de Wind que Ginzburg encontra seu ca-
minho para identificar isso que chama de novo “paradigma
indiciário”: “qualquer museu estudado por Morelli adquire
imediatamente o aspecto de um museu criminal”.
Sabemos aliás, segundo conta o mesmo Wind – re-
produzindo um comentário do próprio Freud – que Mo-
relli, então assinando com o pseudônimo de Ivan Lermolieff,
um especialista russo traduzido para o alemão por Johanes
Schwartze (respectivamente anagrama e tradução do seu
verdadeiro nome, Giovanni Morelli) provocou uma imensa
revolução nos museus ao questionar a autoria de várias
obras (46 só no museu de Dresden).
Se é possível opor, como faz Gilda, a peritagem de
Morelli às grandes teorias estéticas do início do século, em
parte empenhadas em discutir o belo ideal – tanto faz se
clássico ou medieval – não há como deixar de associar sua
maestria técnica (ainda na esteira de Edgar Wind) à valori-
zação da escrita aforismática e fragmentária dos primeiros
românticos como Novalis e os irmãos Schlegel, sem falar na
tradição do esboço, cultivado como um gênero autônomo,
enfim, a tudo que está ligado na história da pintura à crise
do academicismo e ao nascimento da pintura moderna: dos
grandes românticos franceses, passando pela Escola de Bar-
bizon, aos impressionistas. Sem contar que foram eles, como
insistia nossa autora, que fizeram avançar a história da arte,
que souberam tanto descobrir um Vermeer quanto corrigir
uma série de atribuições falsas e reputações duvidosas.
Ainda segundo Ginzburg, se o método pericial não
chega a ser científico e depende muito do “faro, do golpe de
vista, da intuição” do crítico, algo tem a ver com a pesquisa
científica e os dados documentais que vão reaparecer em
outras áreas, das ciências humanas nascentes à literatura,
especialmente no romance dito policial. Assim não é nada
casual, continua, o parentesco entre Morelli, dissecando
orelhas e mãos para identificar a autenticidade das telas,
com um outro médico escritor, daquele mesmo século, Conan
Doyle, cuja semelhança chegava por vezes à coincidência de
recorrer justamente à observação minuciosa de tais órgãos
como prova do crime. Em “A caixa de papelão”, por exemplo,
num certo momento Watson se surpreende com a atenção de
Sherlock Holmes fixando o olhar nas orelhas de uma certa
personagem, semelhante às que, decepadas, tinham sido en-
viadas numa caixa a uma pobre senhorita, levando-o a con-
cluir que se tratava de uma parente da vítima...
Paralelo com o trabalho do detetive, que, diga-se de
passagem, não tem em nada o intuito de rebaixar o mé-

41 revista do ieb n 43 set 2006


todo de Morelli, pelo contrário, pois, logo a seguir, Ginz-
burg enaltece Proust, sustentando que a Recherche também
foi composta segundo um rigoroso método indiciário. E, se-
guindo esta linha de cruzamentos, não podemos deixar de
lembrar que Aby Warburg sustentava que a marca identi-
tária das figuras do Quattrocento florentino era mais do que
tudo a representação do movimento do corpo, cabeleiras e
vestes. Tais esquemas, segundo Gilda, funcionavam justa-
mente como grandes filtros mediadores orientando o olhar
que os artistas posteriores lançariam sobre a realidade. Mas
aqui já ingressamos no capítulo Gombrich.
Pois é neste vai e vem entre a pintura, sua história e
a realidade que se move a nossa autora – utilizando perma-
nentemente e ao mesmo tempo relativizando as lições dos
mestres da Escola de Warburg. Não eram poucas as referên-
cias em aula às dobras das roupas ou à postura dos serviçais
nas pinturas dos holandeses, tanto quanto ao tratamento
homogeneizador das figuras na tela e os objetos da vida do-
méstica daqueles interiores – veja-se A Leiteira, de Vermeer;
ou à carnadura lisa, polida como os belos corpos das escul-
turas gregas ou mesmo como as estatuetas de biscuit, das
figuras femininas de um Ingres, tão distantes da realidade
e tão racionalmente construídas – exemplares justamente
do contraste entre o linear e o pictórico na pintura, da di-
ferença entre clássicos e românticos, Ingres e Delacroix ou
Géricault.
Aliás, em se tratando de Ingres, um parêntesis: em
sua tese sobre a moda no século XIX, embora se valendo,
especialmente na última edição, de iconografia brasileira do
período, numa certa altura toma como termo de comparação
entre a vida doméstica naquele século e o extravasamento
próprio à época renascentista, com o seu esplendor, justa-
mente a postura feminina bem composta dos desenhos de
Ingres, “o pintor mais característico da nova ordem” – diz
ela –, ou na fotografia nascente, quando “o braço feminino
não resvala mais, lânguido, sobre a roupa do homem; pousa
recatado no braço do marido, respeitando uma ordem que
não permite transbordamentos”.

A esta altura não posso deixar de remeter o leitor a


um registro histórico inestimável: a entrevista felizmente
gravada em vídeo que Gilda concedeu a Carlos Augusto
Calil em 1992, e que hoje acompanha a edição em DVD
de Violência e Paixão de Luchino Visconti. Não me parece
ocioso acrescentar que Gilda era uma apaixonada e exímia
admiradora do grande cinema italiano da era dos realiza-

42
dores-autores, como Visconti, Antonioni, Fellini, sobre os
quais também escreveu ensaios exemplares. Acontece que
no referido Violência e Paixão, na inepta tradução brasileira
do original inglês Conversation Piece, podemos finalmente
observar em cena, atuando inclusive como o real protago-
nista de um desencontro histórico – no huis clos sufocante
de um ambiente familiar degradado na Itália convulsionada
dos anos 70 – o conoscitore, além do mais colecionador, no
caso, do gênero de pintura inglesa do século XVIII que dá
título ao filme. Com direito inclusive a um lance inusitado
de atribuição, pois o reconhecimento do automatismo au-
toral revelador se deve à compulsão das chamadas telefô-
nicas do ex-agitador meia-oito encalacrado e cujas ambições
estudiosas rifadas comovem o Professor, não por acaso ins-
pirado na figura e ambiência do erudito Mario Praz. Mesmo
renunciando a comentar a entrevista de Gilda, não resisto
à simples menção de uma observação sobre o espírito indi-
cial das roupas: o contraste entre a extrema vulgaridade dos
modos, a elegância perfeita da vestimenta, sem falar na be-
leza fria da máscara facial da Condessa Brumonti (Silvana
Mangano) compõem propriamente a figura de um monstro,
mais ou menos à imagem e semelhança – subentendamos
– dos sombrios personagens conspirando nos bastidores da
cena política italiana da época. Isso dito, fujo igualmente da
tentação de me aventurar no comentário de sua versão da
filmografia de Antonioni – para que se tenha uma idéia do
fio da meada a ser puxado, basta recordar a cena das am-
pliações fotográficas no Blow-up, e tudo o que daí se segue
em matéria de meditação estética em chave “indiciária”.
Ainda que de relance, não posso todavia deixar de
mencionar um derradeiro desdobramento do Espírito das
Roupas, as notas inéditas sobre Fred Astaire que fecham seu
último livro publicado em vida, A idéia e o figurado – outro
título sugestivo como ele só. Recordo que Gilda sempre
pensou a moda como um fenômeno estético situado, em
função dos enquadramentos sociais que a definem, no entre-
cruzamento das artes ditas maiores – como a pintura, a lite-
ratura, etc. – e das menores, entre elas a dança; conjugando
gestos e atitudes pela mediação social das roupas, como arte
rítmica incomparável. Aqui o lugar de sua admiração irres-
trita e originalíssima por Fred Astaire, a seu ver o maior
bailarino do século XX, o grande dançarino da vida mo-
derna. Uma modernidade afirmativa e positiva, se é que se
pode falar assim, e sonhar com suas promessas nos anos 30.
Uma aposta enfim do “homem ancorado no cotidiano, sem
nostalgia nem ressentimento”, a ponto de inverter o sinal
opressivo do traje que o século XIX consagrara e “Baude-
laire designava como uniforme de papa-defuntos: a casaca

43 revista do ieb n 43 set 2006


preta, a cartola que repetia a chaminé das fábricas, num
despojamento que o instala no grau zero da vestimenta, re-
duzida ao preto, o branco, o gesto [...] puro arabesco sem
cor”. Mas vou parando por aqui para retornarmos às expres-
sões locais.

Para tanto, ainda ficando nesta linha de decifração


indiciária da realidade na obra – seja no espírito das roupas
ou dos gestos – lembro o admirável ensaio sobre “Macedo,
Alencar, Machado e as roupas”, também incluído no último
livro, onde as descrições de Macedo refletiriam, segundo
a autora, a opinião conservadora dominante da burguesia
média; as de Alencar, a visão bem mais complexa que de-
riva da urbanização e das novas formas de sedução; já as de
Machado, ao contrário, representariam uma ruptura “bem
mais sutil e elaborada”, exprimindo desde o início uma clara
consciência quanto à função diversa que a vestimenta de-
sempenhava para o grupo masculino e o grupo feminino.
“No primeiro caso ela cumpria sobretudo um papel civil,
definidor do status e instaurador de uma identidade fic-
tícia, mas pacificadora; no segundo, era o auxiliar eficiente
do jogo erótico, num momento social instável, ambíguo, de
conquistas recentes e aspirações sufocadas. Nos dois casos,
a meditação sobre a vestimenta foi a máscara oportuna que
utilizou para, bem protegido, lançar farpas contra a socie-
dade arrivista, puritana e insatisfeita.”... “Mas a crítica da-
quele tempo, freqüentemente viciada pelas asperezas do
Naturalismo, nem sempre entendeu o aspecto inovador da
abordagem de Machado de Assis.”7
Aqui um dos nós teóricos a desatar nesta técnica en-
saística “indiciária” verdadeiramente sem paralelo em nossa
tradição: os enigmáticos momentos de ruptura, que conviria
então grifar com a devida ênfase como neste caso de Ma-
chado de Assis, com a inércia subterrânea dos estilos, legiti-
mados pela carga dos códigos perceptivos herdados. Sem falar
no problema correlato da incerta adaptação dos referidos es-
quemas visuais aos supostos dados imediatos da observação.
Códigos europeus, no caso, e realidade bruta nacional. Di-
lemas e ambigüidades, que são da nossa arte, e acredito rea-
parecem na crítica de Gilda, obrigando-a a ir além do que o
esquema de Gombrich, sempre invocado, possibilita.
Em se tratando de pintura, um caso semelhante de
mudança de código teria se dado, segundo a autora, com Al-
meida Júnior, como explica no catálogo de uma exposição
7 Souza, Gilda de Mello e, A idéia e o figurado, SP, Duas Cidades, Editora
34, 2005, pp. 88 e 89.

44
no Museu Lasar Segall sobre os precursores imediatos dos
Modernistas. 8 Recuando ainda mais no tempo dos artistas
ali representados, chama a atenção para o fato de que, com
Almeida Júnior, ingressara pela primeira vez na nossa pin-
tura o “homem brasileiro”, mais exatamente, na pessoa do
caipira paulista.9 Não um figurante a mais, como o índio
dos cronistas, o negro dos viajantes estrangeiros, ou ainda
a pequena legião retórica de iracemas e moemas de ateliê,
imobilizadas na pose convencional da ninfa neoclássica ou
romântica. Nem confinamento da sempre demandada singu-
laridade nacional ao registro escrupuloso da aparência ex-
terna. É que a seu ver, o mérito incontestável de Almeida
Júnior não deriva do simples fato de ter pintado o caipira
com escrúpulos de etnólogo, porém reside nalgum modo iné-
dito de notação visual que lhe permitiu surpreender a ver-
dade profunda de um novo personagem.
Não se tratava assim de um mero assunto mas a rigor
de uma estrutura, mais exatamente, uma “estrutura rela-
cional”, recorrendo ainda uma vez aos esquemas de Gom-
brich. Algo como a conversão da figura em forma, do caipira
em caipirismo imanente. Mais exatamente: a verdade dos
gestos da nossa gente. Foi isso que Gilda viu, e até onde po-
demos saber, ninguém mais antes dela. Sem exagero, acui-
dade de observação que ela compartilha com o artista.
O caipira de Almeida Júnior não é portanto um figu-
rante a mais, um tipo pitoresco entre tantos outros ditados
pela força da percepção convencional, justamente porque
nele se deixa ver pela primeira vez, para além da casca tra-
dicional da aparência externa de repertório, a dinâmica dos
gestos. E vice-versa: o regionalismo inédito de Almeida Jú-
nior é a revelação de que a verdade profunda de um perso-
nagem a um tempo real e imaginado denominado “homem
brasileiro” se expressa de preferência nas assim chamadas
(no caso, pelos antropólogos, especialmente Mauss) técnicas
do corpo.
Veja-se uma tela de mocidade como O Derrubador,
pintada em Paris em 1871. Nela, as técnicas de corpo do
brasileiro (e nossa autora está convencida de que elas
existem e podem ser identificadas) trariam também a marca
do Realismo francês, muito presente na massa eloqüente do
rochedo ou na veemência monumental, por exemplo dos pés

8 “Pintura brasileira contemporânea”, em Souza, Exercícios de Leitura.

9 Retomo aqui parcialmente o estudo “Moda Caipira”, redigido em co-


autoria com Paulo Eduardo Arantes, publicado num número da revista
Discurso em homenagem à Profa. Gilda (nº26, 1996,pp. 33-68) e em
Sentido da formação - três estudos sobre Antonio Candido, Gilda de Mello
e Souza e Lúcio Costa, SP, Paz e Terra, 1997.

45 revista do ieb n 43 set 2006


do personagem; todavia não se poderia dizer que sejam ver-
dadeiramente nossos, salvo para efeito pitoresco de reco-
nhecimento do caráter local da cena, os demais elementos
da composição, como os coqueiros, a atmosfera tropical do
pequeno trecho de paisagem, ou até mesmo as feições mes-
tiças da figura; nosso mesmo, de fato, é antes de tudo “o
jeito do homem se apoiar no instrumento, sentar-se, segurar
o cigarro entre os dedos, manifestar no corpo largado a im-
pressão de força cansada”.
Consideradas as coisas por este prisma, estamos diante
de um efetivo marco zero, porém sob um duplo aspecto. A
primeira dimensão já nos é familiar, a descoberta pictórica
do “homem brasileiro”, definido agora pela singularidade in-
transferível de seu comportamento corporal; a segunda, tem
a ver com as condições de tal revelação: “notação milagrosa
do gesto”, concede Gilda (e aqui o problema também é teó-
rico – apesar das reticências – e não é desprezível), pois Al-
meida Júnior empreendera sozinho e “sem precursores, lu-
tando contra as reminiscências artísticas” (diz ela) que lhe
impunham a cada momento outros modelos de pintura, mais
nobilitadores sem dúvida, como exigia o estilo elevado que
podia observar à sua volta.
Podemos nos perguntar: onde então a inocência do
olhar pressuposta numa tal redescoberta do Brasil? Como
este último se dá a conhecer numa dinâmica muito especí-
fica dos gestos, a fonte daquela necessária inocência per-
ceptiva deve ser procurada em algo como a “memória do
corpo”, onde residem os nexos profundos que ataram a sen-
sibilidade do artista à realidade nova do país. Memória so-
cial por certo. Mas e Gilda, como pôde ver tudo isso? Como
já tive oportunidade de lembrar10 , em primeiro lugar, por
evidente empatia (embora em si mesma condição obviamente
insuficiente), sendo ela mesma menina de fazenda do inte-
rior paulista. E, finalmente, por ter podido associar a esse
dom perceptivo oriundo da “memória gravada no corpo” de
que falávamos, o hábito da atenção para o detalhe revelador
cultivado pela sua geração de críticos. Ou seja, conseguiu
ver também porque viu com olhos de perito educado pelo
longo tirocínio na observação direta da história da arte.
Cabe aqui, no entanto, um novo parêntesis (agora, me-
todológico): talvez valha a pena referir a ressalva de Ginz-
burg, ao concluir seu ensaio sobre Gombrich: “A história (as
relações entre fenômenos artísticos e história política, re-
ligiosa, social, das mentalidades, etc.), expulsa silenciosa-
mente pela porta, torna a entrar pela janela”. Evidentemente
não teria cabimento naquele pequeno círculo de intelectuais
10 Refiro-me ao ensaio citado há pouco.

46
formados no espírito dos modernistas, em especial Mário de
Andrade, egressos da Faculdade de Filosofia, e preocupados
em detectar os lineamentos da formação de uma arte bra-
sileira, manter sem mais a orientação “imanentista” de um
Gombrich, pelo contrário, não havia esquema da tradição
européia que não fosse devidamente submetido a uma es-
pécie de aclimatação crítica reveladora dos termos em con-
fronto. Como se sabe, providência elementar que valia todo
um programa.
Familiaridade quase biográfica com a cultura do cai-
pira paulista ao mesmo tempo que com toda a grande tra-
dição artística nacional e estrangeira; observação sistemá-
tica da coreografia teatral11; constatação de que a moda,
dependendo do gesto, à medida que se recompõe a cada mo-
mento de seu jogo com o imprevisto, é a mais socializada
das artes: esses os elementos que talvez tenham contribuído
mais de perto para a cristalização da sensação plástica de
que o essencial do “homem brasileiro” deveria ser procurado
no seu movimento corporal.
É razoável supor, dada a importância do livro sobre a
moda oitocentista na organização das idéias de Gilda acerca
das relações entre arte e sociedade, que nesse caso parti-
cular tenha prevalecido o filtro da moda apreendida como
uma arte rítmica. E a ser assim, porque não pensar em con-
tinuidade, imaginando as telas regionalistas de Almeida Jú-
nior como o primeiro capítulo de um inventário sistemá-
tico de algo como uma ritmia dos gestos brasileiros? Esse
um possível nexo a escandir a linha evolutiva da figuração
plástica da experiência nacional. Vale para o caboclo amo-
lando o machado, picando o fumo, empunhando a espin-
garda, ponteando a viola, negaceando a caça, o que vale
para o elegante que demonstra a todos como está afeito aos
usos da sociedade movimentando os complementos impres-
cindíveis do vestuário – luvas, chapéus, bengalas. E no
entanto, é inegável, num e noutro encontramos a mesma
ritmia de gestos altamente codificada, tanto no matuto que
reproduz posturas ancestrais, quanto na desenvoltura do
dandy por mimetismo social.12
Ou ainda, numa surpreendente combinação de ambas
– uma vez extirpado miraculosamente o viés mimético de
nossas elegâncias de empréstimo –, vislumbrada na apa-
rição, na curva de um rio amazônico, da figura mítica do
maleiteiro, no episódio famoso do Turista Aprendiz, no qual
11 Também tradutora e autora teatral bissexta – cf. Costa, Iná Camargo,
“Ensaismo teatral no Brasil”, em Discurso, SP, n.26, 1996.

12 Mas tudo isto desenvolvi com mais detalhes, em co-autoria com Paulo
Arantes no artigo citado.

47 revista do ieb n 43 set 2006


Mário de Andrade julga por um momento ter se deparado
com a alternativa civilizatória brasileira ao mundo domi-
nado pela disciplina burguesa do trabalho. Mais uma vez re-
sisto à tentação de restituir na íntegra o comentário magis-
tral de Gilda13, que emenda aliás com sua interpretação de
vida inteira sobre o caráter errático de Macunaíma, deslo-
cado agora pelo “limbo ou nirvana da calmaria serena” em
que evolui a figura emblemática do moço comido pela ma-
leita. Devo apenas destacar de novo o foco privilegiado de
sua atenção, a notação daquela mesma ritmia de gestos, a
partir da qual, então, sua própria imaginação literária alça
vôo e reencontra a “constelação de sinais” [grifo nosso]14 em
que Mário projeta a sua identificação com o Brasil. Melhor
citar por extenso:

“Eis que na curva do rio, saindo do silêncio e do mis-


tério, surge da selva uma embarcação, avançando pesada na ba-
tida dos remos. É um casco com seis remeiros, que traz na proa
o chefe da tripulação e, viajando em pé, no barco oscilante, de-
monstrando familiaridade com a água, um homem de seus trinta
anos. A barba feita, o terno de linho branco muito limpo, a ‘sen-
sação firme de decoro’ que transmite, o ‘ar de soberbia’, revelam
que era dono ou filho de dono de seringal. A pele morena, muito
pálida, traía a maleita.
O narrador descreve com respeito e admiração o compor-
tamento do moço, que alheio à curiosidade que provoca, sobe a
bordo para tratar dos recibos e faturas e, indiferente a tudo em
redor, indiferente à beleza civilizada das passageiras, passa sem
olhar para ninguém. Apenas, por delicadeza natural, ao se apro-
ximar das senhoras tira o chapéu nativo de palha e vai-se como
veio. Sem olhar.”15

Nesse verdadeiro dandy da mata virgem, enfim, quem


sabe, a reconciliação utópica com o corpo largado de força
cansada dos caboclos de Almeida Júnior, sem falar, é claro,
no acreano sublimado da rua Lopes Chaves.
Só para fechar o argumento: não custa lembrar que
este último ensaio é todo ele um contraponto entre Mário de
Andrade e Gilberto Freyre, tendo como ponto de partida as
respectivas análises da obra de Cícero Dias. Frequentemente

13 “O mestre de Apicucos e o turista aprendiz”, em A Idéia e o figurado,


cit. pp.49-70. Na versão original, citada em “Moda Caipira”: “Do Brasil
telier ao Brasil de ar livre” (conferência proferida num colóquio em home-
nagem a Richard Morse, nos Estados Unidos, em 1993)

14 Ibidem, p. 67.

15 Ibidem, p. 65-66.

48
apresentados como antagonistas, o que não deixa de ser ver-
dade, Gilda no entanto preferiu destacar naquelas duas per-
sonalidades tão diversas a demonstração viva do poder da
imaginação artística na interpretação do país: com efeito,
a geração que entre 1935 e 1940 saía da universidade, num
momento muito especial entre o legado das vanguardas e a
chegada prestigiosa dos especialistas, aprendera a pensar o
Brasil confiando precisamente naquele poder de revelação
da experiência estética. Quanto ao caso particular do autor
de Casa Grande e Senzala , Gilda recorda que também ele se
impôs à sua geração “pela maneira inovadora de interpretar
o país através dos pequenos indícios”.16

Novembro-Dezembro de 2005

16 Ibidem, p. 55.

49 revista do ieb n 43 set 2006


O terror na poesia de Drummond1

Luiz Roncari*

Participação na vida, identificação com os ideais do


tempo (e esses ideais existem sempre, mesmo sob as mais sór-
didas aparências de decomposição), curiosidade e interesse
pelos outros homens, apetite sempre renovado em face das
coisas, desconfiança da própria e excessiva riqueza interior, eis
aí algumas indicações que permitirão talvez ao poeta [e por que
não dizer, também ao crítico?] deixar de ser um bicho esquisito
para voltar a ser, simplesmente, homem.

Carlos Drummond de Andrade, Confissões de Minas)

As torres fálicas – Quando, em 11 de setembro de


2001, membros da Al Qaeda, com aviões civis de carreira,
explodiram as torres do World Trade Center, a ninguém
escapou os aspectos singular e simbólico do ato. As duas
torres de aço, alumínio e vidro, lisas e nuas, sem nenhum
ornamento, erguiam-se rasgando o céu e pareciam reinar
isoladas sobre a cidade. Não existia visualmente nada que
as ameaçasse ou lhes disputasse a grandeza e soberania.
Elas eram elas: duas hastes geométricas brilhantes que se
destacavam ostensivas na cidade opaca; nada se lhes com-
parava, tanto para os que viviam a sua sombra, como para
os que chegavam de fora, por terra, mar ou ar. Não havia
como errar o alvo. O que lhes dava um valor simbólico era
a duplicidade que encarnavam como concepção arquite-
tônica: reuniam o que havia de mais moderno e de mais
regressivo. Se tinham uma funcionalidade interna pul-
sante, como se repercutisse ali diretamente as batidas do
coração do mundo financeiro de Wall Street, elas expres-
savam também o seu poder viril, como as primeiras cons-
truções simbólicas arcaicas dos obeliscos e Memnonas, das
colunas imperiais romanas e das torres religiosas e muni-
cipais medievais. Elas deveriam ser avistadas de longe pelo

* professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH-USP

1 Este trabalho foi apresentado no IV Congreso Europeo CEISAL de


Latino-americanistas, em Bratislava, República Eslovaca, de 4 a 7 de
julho de 2004, e no curso de extensão da FFLCH/USP “Literatura e
Auroritarismo”, coordenado pelo prof. Dr. Jaime Guinsburg, em 18 de
junho de 2004.

51 revista do ieb n 43 set 2006


inimigo e revelar-lhe a força máscula que o aguardava:
“Anteriormente, na ocasião da Forma de arte simbólica, [...]
no Oriente era ressaltada e venerada diversamente a força
vital universal da natureza, não a espiritualidade e o poder
da consciência, mas a violência produtiva da geração.” 2
Assim, as torres combinavam o orgânico simbólico do falo
com o inorgânico funcional das linhas retas, das formas ar-
tificiais abstratas e inanimadas. O seu gigantismo e o espe-
lhamento dos vidros, por sua vez, deveriam realizar o ili-
mitado da forma que refletiria em si não só a paisagem ter-
restre, como também o próprio céu. Era o seu limite, o que,
para os gregos, significava a extrema arrogância humana,
tentar equiparar-se aos deuses, o que perdeu a Ícaro e ou-
tros heróis.
Na conjuntura econômica do tempo, as duas torres,
com outras espalhadas pelo mundo, expressavam a pros-
peridade e o poder da globalização, que havia enriquecido
a muitos. Mas, para os que ficaram de fora e se viram es-
poliados nesse processo de acumulação e concentração de
riqueza, não isento de formas próprias de violência, elas
simbolizavam a razão de suas misérias. Por isso, os senti-
mentos gerados com as explosões das torres não foram unâ-
nimes. Para alguns, significaram um ato incompreensível
de brutalidade, destruição selvagem e mortes de inocentes.
Mas, para outros, representaram a demarcação dos limites,
golpes estratégicos para revelar-lhes a fragilidade e trazê-
las de volta à esfera do humano. 3 Em muitas partes da
2 E, um pouco mais adiante, continua Hegel: “A arquitetura simbólica
autônoma, contudo, fornece o tipo principal de suas obras mais gran-
diosas, porque o interior humano ainda não aprendeu aqui ele mesmo
o espiritual em seus fins, formas exteriores, e ainda não as fez objeto
e produto de sua atividade livre. A consciência de si ainda não amadu-
receu em fruto, ainda não está pronta para si mesma, mas está se impul-
sionando, procurando, pressentindo, produzindo cada vez mais, sem
uma satisfação absoluta e, portanto, sem descanso. Pois apenas na forma
adequada ao espírito satisfaz-se o espírito pronto em si mesmo e se limita
em seu produzir. A obra de arte simbólica, ao contrário, permanece em
maior ou menor grau ilimitada”. Hegel, G.W.F. Cursos de Estética, vol. III,
S.Paulo, EDUSP, 2002, pp. 44 e 50

3 É interessante observar como o Papa Bento XVI, quando ainda cardeal


Ratzinger, num debate com Habermas, em janeiro de 2004, junto com a
sua condenação ao terrorismo, procura compreender também as razões
do outro lado: “Ao mesmo tempo, é assustador que, ao menos em parte, o
terror se legitime moralmente. As mensagens de Osama bin Laden apre-
sentam o terror como a resposta que os povos sem força e oprimidos dão à
arrogância dos poderosos, como a justa punição à sua presunção e às suas
arbitrariedade e crueldade blasfemas. Para os homens em determinadas
situações políticas e sociais, tais motivações são evidentemente persu-
asivas. Em parte, o comportamento terrorista é apresentado como uma
defesa de uma tradição religiosa contra o ateísmo da sociedade ocidental”.
Mais! Folha de S. Paulo, de 24/04/2005, p. 6

52
Ásia, África e das Américas, nas áreas que mais sofreram e
se empobreceram relativamente com a globalização, quando
não houve um regozijo ostensivo, como em segmentos do
mundo islâmico, houve uma satisfação interna. Entretanto,
este fato foi pouco aventado nem as circunstâncias dos vi-
timados o permitiam. O que não justifica que se continue a
ignorá-lo. Se ele fosse reconhecido e se perguntasse pelas
suas causas, o Ocidente próspero talvez tivesse se repac-
tuado com a tradição de crítica ao maniqueísmo e de rela-
tivização do Bem e do Mal, e continuasse aprendendo com
as observações de Maquiavel ao Príncipe, sobre o ponto de
vista e a importância de se reconhecer a visão do outro. 4
Isto poderia levar a identificar melhor as causas históricas
dos atos desesperados e não atribuir tudo à loucura dos ho-
mens ou à malignidade natural do opositor.
Mas a reação foi a de localizar o mal – do mesmo
modo que os que explodiram as torres localizavam nelas
a fonte dos seus males – e procurar extirpá-lo militar-
mente. Esta foi a segunda aposta do Ocidente próspero,
particularmente dos EUA: a da vitória militar. A primeira
já havia sido feita e era mais geral, foi a opção pela polí-
tica do “condomínio fechado”: cercar as ilhas de prosperi-
dade beneficiadas com a livre circulação da informação e
do capital financeiro e protegê-las das massas miseráveis
de trabalhadores, impedidas de circularem tão livremente
quanto o capital. Para estas valeria todo tipo de barreiras e
muros, o que equivalia à opção por um mundo duplo e de-
sequilibrado: um de homens iguais, os de dentro, e outro
de desiguais, os de fora. O aproveitamento do enorme exér-
cito de reserva criado no mundo periférico só se daria na
medida das próprias necessidades das nações prósperas, e,
quando ele ameaçasse sair do controle, ficavam legitimadas
as incursões cirúrgicas precisas, podendo se aproveitar das
vantagens militares que os avanços tecnológicos lhes pro-
porcionavam. Creio que não é preciso citar aqui todas as
formas utilizadas para se impedir a livre circulação dos ci-
dadãos nas ilhas de prosperidade, tanto entre as nações,
como internamente, em cada uma delas. A segunda aposta
foi a de que o poder dominante dessa ordem não deveria ser
de modo algum confrontado: assim que surgisse um sinal

4 “Nem quero que se repute presunção o fato de um homem de baixo e


ínfimo estado discorrer e regular sobre o governo dos príncipes; pois os
que desenham os contornos dos países se colocam na planície para consi-
derar a natureza dos montes, e para considerar a das planícies ascendem
aos montes, assim também para conhecer bem a natureza dos povos é
necessário ser príncipe, e para conhecer a dos príncipes é necessário ser do
povo”. Maquiavel, N. O Príncipe, S.Paulo, Abril Cultural, 1973, pp. 9-10.

53 revista do ieb n 43 set 2006


de ameaça, ele seria identificado como o mal e seria locali-
zado e derrotado militarmente. 5
O principal confronto ocorre hoje entre o Ocidente
próspero e o que ele passou a chamar de “fundamenta-
lismo” islâmico (emprestando o termo usado para caracte-
rizar uma seita protestante norte-americana), cujas popula-
ções, não por acaso, ficam onde estão as mais importantes
reservas de petróleo do mundo. Não fosse isto, elas estariam
tão abandonadas à própria sorte quanto as subsaarianas, de-
pois de terem sido depredadas durante séculos. Por infeli-
cidade ou ironia da história, as ilhas de prosperidade não
são autônomas, dependem das fontes de energia onde estão
os seus inimigos e de uma constante ampliação ali também
dos mercados consumidores, como forma de trazer de volta
os petrodólares. No entanto, encontram como barreiras in-
transponíveis as práticas civilizatórias e crenças religiosas a
que os islâmicos se aferram como reação às imposições ex-
ternas. Enquanto um pressiona para ampliar a sua esfera de
influência e domínio, o outro reage e responde agressiva-
mente. 6 No confronto, cada um usa as próprias armas: um,
o poderio tecnológico e militar, e o outro, o poder da crença
e do número de seguidores. O primeiro conseguiu trans-

5 O que é expressão de uma nova situação mundial, a qual, em termos


gramscianos, passa da hegemonia à dominação. Se, depois da Segunda
Guerra Mundial, os EUA disputavam a hegemonia com a União Soviética
e ambos representavam um futuro a ser alcançado para muitas nações
– existia tanto uma “sociedade socialista” como um “american way of life”
a serem imitados, hoje, os EUA são apenas o país do presente e perderam
a universalidade. É sabido que se todos seguissem o seu padrão de vida
e consumo, num curto período as riquezas naturais do mundo, parti-
cularmente as energéticas, estariam esgotadas, ao mesmo tempo que o
processo de acumulação distancia cada vez mais as nações prósperas das
periféricas, e assim as aspirações a participar do Primeiro Mundo vão se
transformando em sonhos impossíveis. Com isso, os EUA vivem uma situ-
ação paradoxal: como nação dominante, quer também ser hegemônica,
porém tem que impor o seu modo de vida e sistema político à bomba, já
que perderam a capacidade de convencimento (para não dizer a razão)
e, com isso, o discurso (logos). Não havendo mais espaço para o debate
ideológico, substituído pela implacabilidade do pensamento único, nem
valores a serem defendidos – os únicos são o do sucesso pessoal e o da
riqueza e capacidade de consumo dos vencedores, difundidos pela matriz
holliwoodiana e por uma midia usada mais como instrumento de propa-
ganda e manipulação do que de informação e esclarecimento –, parece que
se tornaram vítimas também das próprias escolhas e criações. De outra
maneira, é esta também a conclusão de Jean Baudrillard, num artigo que
ele chama de “O poder canibal”: “É primeiramente o Ocidente de um modo
mais geral que impõe ao mundo, em nome do universal, seus modelos
políticos e econômicos, seu princípio de racionalidade técnica. Esta é a
essência de seu domínio. Mas não sua quintessência. Sua quintessência
é, para além do econômico e do político, a ascendência da simulação, de
uma simulação operacional de todos os valores, todas as culturas, é aí que
hoje se afirma a hegemonia da potência mundial”. Mais! Folha de S. Paulo,
15/05/2005, p. 7)

54
formar a palavra “guerra” num eufemismo: lançar de na-
vios foguetes teleguiados e de aviões inatingíveis a dez mil
metros de altura bombas “inteligentes”, sem risco nenhum,
é simplesmente destruição. Não é à toa que se fala hoje em
“reconstrução” do Iraque, porque não houve combates, mas
devastação. Só depois de anunciado o fim da guerra é que
se iniciaram as lutas de resistência à ocupação. O passo se-
guinte deverá ser o massacre, com o lançamento das novas
bombas de quinhentas toneladas sobre as cidades populosas,
com a justificativa de abrigarem resistentes/terroristas. E o
segundo, se não tem nenhuma condição de enfrentar mili-
tarmente o inimigo no campo de batalha, leva a destruição
para as cidades, onde está a vida civil por excelência, e com
os meios da própria vida civil e ordinária, como aviões de
carreira, bombas sujas e fertilizantes agrícolas, mas cujo re-
sultado esperado é apenas o estrago e o número de vítimas
civis que causam.
O contraste civilizatório entre as duas forças pode
ser apreciado nas imagens de suas mulheres (do que um se
aproveita para estigmatizar os costumes do outro): um as
descobre inteiramente e o outro as cobre demais. O Ocidente
reifica as suas ao reduzi-las a corpos de silicone, a mane-
quins de aparatos de consumo e a fontes de imagens à venda
como qualquer mercadoria. E o Islã cobre as suas como fan-
tasmas, com lenços, véus e burcas, para serem percebidas
apenas como almas, nas vozes, nos olhos ou nos rostos, por
onde o espírito se expressa. São dois fundamentalismos nos
quais um esmaga o espírito e o outro o corpo. O mesmo
acontece com a ética guerreira e as imagens masculinas:
de um lado, o legionário das terras ocupadas, um bruta-
monte com o seu corpo protegido por tipo de equipamento
e usando armas sofisticadas para destruírem o do inimigo;
e, de outro, o homem-bomba suicida, que revela um des-
prezo pelo corpo nunca visto, para enviar a alma do adver-
sário ao inferno e a sua ao paraíso, onde gozará dos corpos
de setenta e duas virgens. Nesse enfrentamento, o equilíbrio
entre a vida do corpo e a do espírito tão procurado pela arte
e cultura humanísticas fica comprometido pelo choque entre
os dois fundamentalismos: o do mercado da materialidade e
o da tradição religiosa espiritualista. Entre eles também fi-
camos nós e é este o nosso tema: o do homem emparedado e
da ação desesperada.

6 Uma das coisas que diferencia o terrorismo moderno do anarquista ou


niilista do século XIX é o fato do atual ser reativo, não lutar por uma
causa ou uma nova ordem, ao contrário, é conservador, pretende só ficar
como está e manter a sua autonomia, e encontra no terror a forma deses-
perada de se defender das intervenções e agressões sofridas.

55 revista do ieb n 43 set 2006


As ruas das paredes – A poesia brasileira, em pelo
menos três momentos, representa os centros financeiros
como o local infernal e a fonte de seus males, inclusive os
da poesia. A mais contundente e direta é o canto X: “In-
ferno de Wall Estreet”, de 1877/1888, do grande poema “O
Guesa”, de Sousândrade, poeta maranhense saído de uma
antiga região colonial, apesar de viajado e com boa for-
mação européia: “engenheiro de minas e bacharel em letras
pela Sorbonne”7. O que torna o canto mais surpreendente
é a sua intenção crítico-satírica, ou seja, o modo pelo qual
julga a cidade de Nova Iorque, um centro próspero equiva-
lente às mais modernas capitais européias. O poeta, em vez
de se embasbacar com as maravilhas da técnica e da vida
moderna, o que seria o mais esperável – como acontece com
D. Pedro II e sua comitiva, que, na época, visita a Expo-
sição do Centenário da Independência dos EUA –, faz uma
crítica aguda da vida americana e que vai bem além da mo-
ralista. 8 Ele aprecia os movimentos de subida e descida das
bolsas e como, com eles, as riquezas se formam e se des-
fazem. Porém, observa como os valores morais e espirituais
também acompanham esses movimentos, mas eles apenas
descem e se corroem, sem que tenham uma contrapartida
ascendente, como os duplos e compensatórios da circulação
da riqueza material. A imagem que ele cria da cidade é a do
lugar onde os negócios (e como resultados de seus próprios
movimentos) se misturam com a prostituição, a fraude, os
vícios, a idolatria, a hipocrisia. Aí tudo se mescla, o alto e
o baixo, o sublime e o grotesco, o belo e o horrível, o es-
pírito e o corpo, mas sempre em detrimento dos primeiros,
pois, nesses contatos e aproximações promíscuas, tudo se vi-
lipendia e nada se regenera. O sentido único do movimento
que a tudo rebaixa, dá à sua elocução um tom farsesco de
opereta, como se o objetivo fosse o de mostrar o ridículo e
as deformações dos valores, das virtudes e dos fatos do espí-
rito, inclusive os da literatura e da poesia. E como farsa, ela
também imita e se expressa na própria linguagem poluída e
indecorosa dos meios de comunicação do lugar. Os valores
da racionalidade econômica, ter o máximo de ganho com o
mínimo de recursos, regem o seu estilo telegráfico, desarti-
culado, truncado e rápido, como o do jornal, das revistas e
dos meios de publicidade.

7 Campos, A e Campos, H de. Reunião de Sousandrade, Rio, Nova


Fronteira, 1982, 2a ed., p.110

8 Seria interessante uma comparação com o modo de apreciar e julgar a


cidade (e os EUA) dos caps. 14, Nova Iorque (1876-1877), e seguintes, do livro
de Joaquim Nabuco, Minha Formação. Brasilia, Editora UnB, 1963, p.117

56
No poema, o aspecto mais forte da cidade, onde todos
os opostos se encontram e se digladiam, é o de uma bara-
funda de vozes distintas, quase isoladas, que cifram as suas
intenções, de modo a dizer e esconder o verdadeiro sentido
do que é dito. Isto dá ao leitor a impressão de estar apre-
ciando um carrossel delirante de personagens e vozes um
tanto caricatas. Todas elas misturam referências cultas e do
presente da cidade conflitiva, as quais precisam ser reco-
nhecidas e identificadas para serem entendidas. São estas
as primeiras exigências feitas ao leitor. Nesse canto do caos
produzido pelos negócios, desde o início todos os valores se
invertem, como o próprio inferno, que antes ficava nas re-
giões inferiores, onde Orfeu, Dante e Enéias tiveram que
descer para alcançá-lo, agora ele ascende e joga por terra
o céu. Desse modo, o Guesa, o herói mítico indígena, para
chegar ao inferno, tem que subir:

(O Guesa, tendo atravessado as Antilhas, crê-se livre dos Xe-


ques e penetra em New-York
-Stock-Exchange; a Voz dos desertos;)
- Orfeu, Dante, Aeneas, ao inferno
Desceram; o Inca há de subir...
= Ogni sp’ranza lasciate,
Che entrate...
- Swedenborg, há mundo porvir?

(X,1)

O herói entra num universo tumultuado pelos negó-


cios, onde tinham fim as esperanças e se perdia de vista o
futuro: “há mundo porvir?”, ele pergunta ao teósofo sueco.
Como a circulação é a própria essência desse mundo de
trocas, sem aquela estas não se realizam, o movimento ge-
rado tudo rebaixa, traz à terra o celeste e dá um peso mone-
tário à expressão amorosa que se pretendia elevada:

(O Guesa escrevendo personals no Herald e consultando as Si-


bilas de New York;)
- Young lady da Quinta Avenida,
Celestialmente a flirtar
Na igreja da Graça...
- Tal caça
Só mata-te almighty dollár.

(X, 35)

No espaço do comércio e da concorrência cada um


só consegue defender os próprios interesses e se faz deles

57 revista do ieb n 43 set 2006


o porta-voz. Com isso, os homens deixam de falar de si
em busca da compreensão do outro, para se constituírem
numa espécie de caricaturas de si mesmos. Eles se trans-
formam em personificações e instrumentos de interesses
que se expressam através deles e que escapam a seus con-
trole. Tornam-se como vozes absolutas, que apenas se enun-
ciam e transformam o diálogo numa espécie de “conversa de
surdos”, apesar do canto ser exposto em forma de diálogo, o
que cria a imagem de um mundo caótico. Cada um fala por
conta própria, sem que uma fala responda de fato a outra
ou se articule ela mesma de modo compreensivo. Todos se
enunciam sem levar em conta o que o outro disse e ninguém
parece se entender. Nem o leitor, que se sente como diante
do próprio inferno de indivíduos isolados em luta e cor-
roídos internamente. E isto não se limita às relações entre
os indivíduos, acontece também entre os diferentes grupa-
mentos humanos, religiosos, políticos e sociais, nos dando
neste trecho uma imagem impecável da internacionalidade
da luta de classes:

(Democratas e Republicanos)
[1ª voz] – É de Tilden a maioria;
É de Hayes a inauguração!
[2ª voz] = Aquém, carbonário
Operário;
Além, o deus-uno Mamão!

(Comuna;)
[1ª voz] – Strike! do Atlântico ao Pacífico!
[2ª voz] = Aos Bancos! Ao Erário-tutor!
Strike, Arthur! Canalha
Esbandalha!
Queima, assalta! (Reino de horror!)

(X, 37 e 38)

A competição generalizada e a concorrência de todo o


tipo – econômica, comercial, política, religiosa, amorosa –,
que antagonizam os relacionamentos, permite que se equi-
pare Nova Iorque a um troglodita devorador de serpentes,
“ofiófago”, e fazem dela uma criação do furto e um palco de
instabilidades sem igual, tanto no tempo (quando ela é com-
parada com Roma) como no espaço (quando é comparada
com o Rio de Janeiro), e onde os valores se invertem e tudo
fica de ponta-cabeça:

(Freeloves meditando nas free-buglars belas artes;)


- Roma começou pelo roubo;

58
New York, rouba a nunca acabar,
O Rio, antropófago;
= Ofiófago
Newark... tudo pernas pra o ar...

(X, 71)

Nesse processo auto-fágico da cidade que não per-


mite que nada se estabilize, não escapam a poesia, “Zoilos
sapando monumentos de antigüidade”, nem os poetas. Estes
são comparados aos cisnes que se atrapalham com as prosti-
tutas, “Lalas”, rainhas da vida prática, e não são banidos da
cidade coroados com flores, como na República, de Platão,
antes são depenados pelos seus habitantes, o que equivale a
perder a voz do canto e a pluma da expressão:

(Elétricas sweethearts à ‘school-rod-system’ preferindo o pára-


[raios de Franklin;)
- Poeta é cisne, oh!.. não porque canta,
Mas pela ideal lentidão
Com que anda a amores,
Horrores
De Lalas que práticas são!..

(Áureos Zacs [título de um dos chefes Muíscas da Colômbia]


[escovados noutros práticos mundos;)
- Banindo os poetas, da ‘República’
Coroava-os com flores, Platão.
= Yunka-yankee os depena
Sem pena,
E zanga-se à história, pois não!

(X, 137 e 171)

Mário de Andrade, no seu primeiro livro de poemas


modernistas, Paulicéia Desvairada, cujo nome carnava-
lesco apenas disfarça um dos juízos mais críticos e agudos
sobre a progressista cidade de São Paulo, tem um poema
onde ele joga ironicamente com o título e o seu conteúdo.
O nome do poema, “Rua de São Bento”, deveria lembrar ao
leitor da época o mosteiro e o apuro secular do canto gre-
goriano de suas missas, os quais pretendiam levar pela be-
leza e refinamento sonoro os apelos das almas até o ce-
leste. Essa lembrança contrasta fortemente já com o primeiro
verso do poema, que constitui por si só toda uma estrofe,
com uma única palavra, encerrada pelo ponto final, o que
lhe dá a força de um órgão vital: “Triângulo.” Ao leitor da
época, a palavra, além de sugerir o órgão sexual feminino,

59 revista do ieb n 43 set 2006


também lembra o “triângulo”, como era conhecido e cons-
tituía o coração pulsante da cidade: a confluência das ruas
São Bento, XV de Novembro e Direita, respectivamente as
das bolsas, dos bancos e do comércio elegante. O que fazia
pulsar esse coração eram os cantos enganosos dos negócios
e não o canto elevado do mosteiro, chamados pelo poeta de
“os cantares da uiara rua de São Bento”, a mesma uiara tra-
vestida de mulher linda, que depois mutilará Macunaíma. A
sensação contraditória do poeta, ao passar pela rua onde fi-
cavam as bolsas de Mercadorias e de Títulos, era a de tran-
sitar entre duas paredes de chumbo, “duas ondas plúmbeas
de casas plúmbeas”, que lhe esmagavam o espírito, “as mi-
nhas delícias das asfixias da alma!”, cujos jogos e leilões em
busca do lucro, que movimentavam as mercadorias, impe-
diam a delicadeza dos sentimentos, “Pobres brisas sem pelú-
cias lisas a alisar” 9:

Entre estas duas ondas plúmbeas de casas plúmbeas,


as minhas delícias das asfixias da alma!
Há leilão. Há feiras de carnes brancas. Pobres
arrozais!Pobres brisas sem pelúcias lisas a alisar!
A cainçalha... A Bolsa... As jogatinas...

Assim emparedado, impedido de olhar para os


lados, o poeta procura no horizonte uma saída, ela
também produzida pelos mecanismos da cidade, “à fábrica
de tecidos dos teus êxtases”, a qual ele encontra, mas sus-
tentada por uma chaminé de indústria que deveria esfu-
maçá-la e contaminá-la:

Entre estas duas onda a plúmbeas de casas plúmbeas,


Vê, lá nos muito-ao-longes do horizonte,
A sua chaminé de céu azul!

O emparedamento no tempo – Logo depois da ex-


plosão das torres do World Trade Center, foi lembrado e cir-
culou pela internet o poema “Elegia 1938”, de Carlos Drum-
mond de Andrade, no qual ele dizia a si mesmo, no último
verso, como afirmação ao mesmo tempo de vontade e de
9 Esse mesmo tema da cidade capitalista que esmaga os valores, “crucifi-
cações da honra”, Mário já explorara no poema anterior, Escalada, e que
nos prepara para este. Nele, Mário fala como o movimento dos homens
em busca das “califórnias duma vida milionária”, faz com que troquem
os olhos da alma, como aparecem no único verso lírico do poema, “Onde
nas violetas corria o rio dos olhos de minha mãe...”, pelo olho do corpo
ou do ânus (e não o do diabo, como pode parecer), como é agudamente
enunciado no seu verso mais grotesco, “E ei-lo na curul do vesgo Olho-na-
Treva”. Andrade, M. de. Poesias Completas, Ed. crítica de Dilea Z. Manfio
B.Horizonte/S.Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1987, pp.84-5, grifos meus.

60
impotência: “não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Ma-
nhattan”.10 Por quê? O que explicaria o desejo desesperado
do poeta? O poema está no livro Sentimento do Mundo, de
1940, que reúne principalmente a sua produção da segunda
metade da década de 30. 11 É quase um consenso da crítica
que esse livro significou, apesar das continuidades, também
uma mudança grande na poesia de Drummond. 12 Nele, o
poeta revela a insatisfação com a poesia anterior, a sua e a
de outros, como ele diz nos versos de “Mãos dadas”: “Não
serei o cantor de uma mulher, de uma história,/ não direi
os suspiros ao anoitecer, paisagem vista da janela,/ não dis-
tribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,/ não fugirei
para as ilhas nem serei raptado por serafins” (grifo meu).
A imagem de ilha para se referir à poesia, recorrente no
livro, ele já havia usado na “Ode no cinqüentenário do poeta
brasileiro”, dedicado a Manuel Bandeira: “Debruço-me em
teus poemas/ e neles percebo as ilhas/ em que nem tu nem
nós habitamos/ (ou jamais habitaremos)/ e nessas ilhas me
banho” (grifo meu). O poeta se considera assim fora e dentro
da poesia, não vive a vida no seu interior, mas é nela que se
lava do encardido de fora. Ainda aqui a poesia seria enten-
dida como ilha, lugar de isolamento, fuga e refúgio. Quando
o poeta se propõe a abrir-se para o que se passa no mundo
externo, “sentimento do mundo”, para as suas asperezas,
está claro que não é essa poesia-ilha que ele quer13. O pro-
blema do poeta (e, de certa forma, da melhor literatura da
época) é como dar à poesia essa nova dimensão, abrir-se às
questões do mundo externo prosaico, sem deixar de ser po-
esia e continuar valendo pelas suas qualidades intrínsecas.
Reside nisto também a tensão presente nesse livro e da qual
fala John Gledson14 (1981, pp. 115). Se o poeta recusa que a
sua poesia seja apenas a expressão de si, de seu eu e mundo
interior, e quer que ela fale também de sua forma de apre-
ensão do mundo exterior, a primeira pergunta a ser feita,

10 Todas as citações dos poemas de Carlos Drummond de Andrade foram


tiradas de Obra Completa, Rio, José Aguilar Editora, 1967.

11 Cf. Gledson, J. Poesia e Política de Carlos Drummond de Andrade.


S.Paulo, Duas Cidades, 1981.

12 Cf. entre outros, as leituras agudas do trabalho de Murilo Marcondes


de Moura. Três Poetas Brasileiros e a Segunda Guerra Mundial - tese de
doutorado. S.Paulo, FFLCH-USP, 1998.

13 A problematicidade dessa nova poesia de Drummond, o caráter contradi-


tório da própria busca, as oscilações do poeta e as aporias a que chega, estão
minuciosamente analisados no livro de Simon, Iumna Maria Drummond:
Uma Poética do Risco. S.Paulo, Atica, 1978.

14 Gledson, op. cit. p.115.

61 revista do ieb n 43 set 2006


segundo me parece, é esta: de que “mundo” ele quer falar? O
que é “o mundo” para o poeta?
Há dois fatos graves de conjuntura no tempo da publi-
cação do livro, 1940, diante dos quais poetas e romancistas
sentem o incômodo da indiferença e procuram se posicionar:
o Estado Novo e o clima de guerra dos anos da escrita dos
poemas, quando se assiste à Guerra Civil Espanhola, como a
preliminar do que seria a Segunda Grande Guerra. Sobre o
primeiro, o poeta pouco pode se manifestar, pois é um fun-
cionário graduado e da confiança do Ministro da Educação e
Saúde desse mesmo Estado, Gustavo Capanema. Sobre o se-
gundo, ele já tem bem mais liberdade para dizer o que pensa
e para usar a poesia como meio de influência e expressão de
suas posições. 15 E isso ele o fará com freqüência e mesmo
de forma direta. Porém, parece-me que a posição do poeta o
obriga a fugir do imediato-conjuntural e procurar algo mais
profundo e permanente na estruturação do universo que a
sua poesia quer tratar e revelar: o “mundo” a ser apreen-
dido pelo poeta não é o dos fatos extraordinários, mas o dos
mais ordinários e conformadores do cotidiano. Como aquele
mundo com o qual teriam sonhado os conselheiros do Im-
pério, que manteria modernizada a modorra da tradição bra-
sileira: “sonhavam a futura libertação dos instintos/ e ni-
nhos de amor a serem instalados nos arranha-céus de Co-
pacabana, com rádio e telefone automático” (“Tristeza do
Império”); ou o que reduz o poeta a pura funcionalidade,
uma simples peça da “Grande Máquina”: “Tive ouro, tive
gado, tive fazendas./ Hoje sou funcionário público” (“Confi-
dência do itabirano”); ou o do poeta publicitário que subs-
tituiu o parnasiano: “Poetas do camiseiro, chegou vossa
hora,/ poetas de elixir de inhame e de tonofosfâ,/ chegou
vossa hora, poetas do bonde e do rádio,/ poetas jamais aca-
dêmicos, último ouro do Brasil” (“Brinde no juízo final”).
Por isso, penso ser este o problema enfrentado pelo poeta:
ele quer que a sua poesia fale justamente do que ele recusa,
um mundo de relações reificadas onde imperam as coisas,
ou seja, o presente ordinário alienado e alienante: “O tempo
é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,/
a vida presente” (“Mãos dadas”). A ênfase dada pela redun-
dância dos termos genéricos “tempo”, “homens” e “vida”
– com apenas um deles ele teria dito tudo –, e pela repetição
por três vezes do mesmo predicado, “presente”, o poeta deixa
a impressão de que a escolha da matéria foi menos a rea-
lização da vontade poética (que em muitos poemas ele en-
contra no passado e na memória matéria muito mais própria

15 Esse é o tema principal do trabalho acima citado de Murilo Marcondes


Moura.

62
à esse tipo de expressão) 16 e mais uma imposição angus-
tiante dos fatos, como um “presente” incômodo e inevitável.
O poema “Elegia 1938” está entre dois outros poemas.
O primeiro se refere ao passado, “Lembrança do mundo an-
tigo”, e o segundo ao futuro, “Mundo grande”. Eles estão
localizados como duas paredes temporais que impedem o
poeta de fugir daquele presente condenatório. “Lembranças
do mundo antigo” fala de um passado/paraíso perdido: um
jardim da infância colorido, um tanto fantástico, “o céu
era verde”, “a água era dourada”, onde todos viviam tran-
qüilos ao redor de Clara e cheios de esperanças: “As crianças
olhavam para o céu: não era proibido”. As únicas preocupa-
ções desses imaginados seres felizes eram as corriqueiras de
todos os dias: o calor, a gripe, os insetos, o horário do bonde,
as cartas que demoravam a chegar e a carência de não se
poder ter sempre vestido novo. Porém a grande diferença é
que naquele paraíso cotidiano perdido havia “jardins” e “ma-
nhãs”, como os espaços e tempos da vida e da esperança:
“Mas passeava no jardim, pela manhã!!!/ Havia jardins,
havia manhãs naquele tempo!!!” Com todas essas exclama-
ções, o poeta quer na verdade chamar a atenção do leitor
para o seu cotidiano presente e noturno, carente das pers-
pectivas daquele passado no qual havia jardins e manhãs.
“Mundo grande”, que vem logo depois de “Elegia 1938”,
é um poema confessional, no qual o poeta diz, logo no pri-
meiro verso, que o seu coração “não é maior que o mundo”,
e no segundo, num verso curto, reafirma incisivo: “É muito
menor”. Diante disso não há o que comparar, resta apenas
mostrar o que torna um tão pequeno e outro tão grande. É
o que ele faz ao longo do poema, uma espécie de viagem de
reconhecimento de um mundo e outro, do interno e do ex-
terno, e admite que o isolamento no primeiro o condena a
sérias limitações, ainda que isso lhe possibilite a vivência no
rico universo da poesia, aqui novamente metaforizada como
ilha: “Outrora viajei/ países imaginários, fáceis de habitar,/
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando
ao suicídio./ Meus amigos foram às ilhas./ Ilhas perdem o
homem”. Nesse mundo já resolvido, onde o caos foi ordenado,
ficava pouco a fazer, tornava a vida fácil, mas infecunda,
o que equivalia ao suicídio. Já no outro mundo não, nele a
vida era problemática e todos os conflitos estavam candentes
e pedindo solução: “Entretanto alguns [amigos/poetas] se
salvaram e/ trouxeram a notícia/ de que o mundo, o grande
mundo está crescendo todos os dias,/ entre o fogo e o amor”.
Se o acervo poético é imenso e rico, ele é também circuns-

16 Sobre isso, ver em especial a análise de trecho do poema “América” de


Iumna Maria Simon. op. cit., p. 128.

63 revista do ieb n 43 set 2006


crito, enquanto que o mundo externo da vida dos homens, o
“grande mundo”, é um universo em expansão, como o pró-
prio verso longo que o expressa, “de que o mundo, o grande
mundo está crescendo todos os dias”, e vivo, pois nele pulsa
o conflito: “entre o fogo e o amor”. São os sentimentos desse
conflito entre as forças destrutivas, “o fogo”, e as fecunda-
doras, “o amor”, que permitem ao seu “coração”, metáfora do
seu mundo interior, também crescer e explodir os limites es-
treitos: “Então, meu coração também pode crescer./ Entre o
amor e o fogo,/ entre a vida e o fogo,/ meu coração cresce
dez metros e explode”. Está na explosão desses limites in-
teriores, numa atitude essencialmente negativa, toda a po-
sitividade do poeta, sendo ela que cria alguma esperança
de futuro: “- Ó vida futura! nós te criaremos”. Pode parecer
ingênuo e crédulo o verso final do poema, mas, se o exa-
minarmos direito, veremos que ele é ambíguo, pois é des-
truindo, explodindo, que o futuro será criado.
Essa idéia será bem melhor trabalhada por Drummond
no livro A Rosa do Povo. No poema “A flor e a náusea” a
saúde e positividade do poeta estão justamente na sua ati-
tude destrutiva: “Pôr fogo em tudo, inclusive em mim./ Ao
menino de 1918 chamavam anarquista./ Porém meu ódio é o
melhor de mim./ Com ele me salvo/ e dou a poucos uma es-
perança mínima”. E a única positividade desse poema se en-
contra na flor em tudo negativa: “Sua cor não se percebe./
Suas pétalas não se abrem./ Seu nome não está nos livros./
É feia. Mas é realmente uma flor” (grifos meus). Como ne-
gativa, ela é uma flor profundamente dialética, pois se cons-
titui na negação da negação: na negação de tudo aquilo
que nega a possibilidade de uma vida mais humana. É num
outro poema, “Nosso tempo”, que essa ação negativa/posi-
tiva, em outros termos, dialética, nos diz que, para a cons-
trução do novo, o velho precisa ser destruído. Aqui isso é
explicitado com todas as letras, embora sem a mesma força
poética: “O poeta/ declina de toda responsabilidade/ na
marcha do mundo capitalista/ e com suas palavras, intui-
ções, símbolos e outras armas/ promete ajudar/ a destruí-lo/
como uma pedreira, uma floresta,/ um verme”.
Entre um passado de esperança perdido e um futuro
que depende da ação negativa do poeta para ser criado, ele
se sente emparedado num presente-velho que precisa ser ne-
gado e destruído. O poema “Elegia 1938”, que deve ter sido
escrito no mesmo ano, foi publicado em 1940, não fala de
outra coisa do que do próprio presente ordinário vislum-
brado pelo autor, nas suas raízes profundas e estruturais, e
é ele o seu tema: 1938 é uma metonímia de um presente que
subjaz a todas as conjunturas, sejam as da política interna
do país, de ditadura, sejam as externas, de conflagração.

64
Esse presente é o próprio tempo do “mundo caduco”, que não
se comunica com o passado, que se perdeu, e não semeia
nenhum futuro, pois as ações nele carecem de sentido: “as
ações não encerram nenhum exemplo”. Portanto, é o tempo
do emparedamento e do sujeito reduzido às suas rasas ne-
cessidades, mecânicas e rotineiras, assim confessadas me-
lancolicamente a si próprio: “Praticas laboriosamente os
gestos universais,/ sentes calor e frio, falta dinheiro, fome e
desejo sexual”. Um mundo de zumbis, mortos-vivos, tanto os
“heróis”, que resistem e se protegem da fraca “neblina” com
“guarda-chuvas de bronze” ou se refugiam em “sinistras bi-
bliotecas”, como os homens comuns iguais a ele, também
inconformados, mas que aceitam o seu destino e, por isso,
preferem a noite e o sono, a pequena morte, à morte-viva
do dia da rotina e do império das coisas e das necessidades:
“Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra/ e
sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer”.
Nesse presente, a vida é morte, viver é morrer, por isso, é do
seguinte modo que ele compreende a vida presente: como
existir entre mortos, “caminhas entre mortos”; transferir a
vida para um futuro impossível, “conversas/ sobre coisas do
tempo futuro”; e transformar o espírito numa mercadoria
banal, “negócios do espírito” (grifo meu). Até a literatura,
o momento que deveria ser o da extrema consciência, se
tornou num desvio sem sentido da hora presente, “estragou
tuas melhores horas de amor”, e a comunicação fecundante
entre os homens e os espíritos, quando mediada, “ao tele-
fone”, se esterilizou, “perdeste muito, muitíssimo tempo de
semear”. Para o poeta, aceitar o presente e acreditar passi-
vamente no futuro é o mesmo que confessar a sua derrota:
“Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota/
e adiar para outro século a felicidade coletiva./ Aceitas a
chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição”.
No entanto, o poeta adquire consciência de que houve
um outro tempo, um passado, como o do poema “Lembrança
do mundo antigo”, que, embora perdido e um tanto ideali-
zado, é importante para ele poder demarcar o seu presente. E
que pode haver ainda um outro tempo, um futuro possível,
e que está nas mãos dos homens criá-lo. Isso lhe permite a
consciência da historicidade (ou transitoriedade) do pre-
sente, também uma criação humana e gerida por humanos
que perderam o controle da criatura, um mecanismo que os
reduz à impotência e à condição de zumbis que não sabem
mais interpretar o livro da natureza, o que poderia trazer
alguma esperança: “Mas o terrível despertar prova a exis-
tência da Grande Máquina/ e te repõe, pequenino, em face
de indecifráveis palmeiras” (grifos meus). É esta atitude do
poeta diante dos fatos do mundo presente certamente melan-

65 revista do ieb n 43 set 2006


cólica, mas que não pode ser atribuída a um traço da perso-
nalidade do autor, senão voltaremos, por outros caminhos,
ao psicologismo17. A melancolia do poeta é fruto ao mesmo
tempo de uma visão crítica do mundo, de uma consciência
da historicidade do presente e dos sentimentos de empare-
damento do sujeito e de impotência diante do dado. Por isso,
a consciência foi representada como uma flor frágil e ne-
gativa no poema “A flor e a náusea”: “Melancolias, merca-
dorias espreitam-me./ Devo seguir até o enjôo?/ Posso sem
armas, revoltar-me?” A única manifestação de resistência
ao dado e de sobrevivência do humano sentidas pelo poeta
é essa consciência pálida da sua impotência, mas poderosa
bastante para incomodar: “Uma flor nasceu na rua!/ Passem
de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego./ Uma flor
ainda desbotada/ ilude a polícia, rompe o asfalto./ Façam
completo silêncio, paralisem os negócios,/ garanto que uma
flor nasceu”.
Há um passo significativo de um poema a outro; de
“Elegia 1938” a “A flor e a náusea”, podemos até dizer que
houve uma mudança de qualidade. No primeiro, o poeta
apenas toma consciência do mundo exterior e da sua impo-
tência, a qual pode levá-lo à ação desesperada: “não podes,
sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan”. É aí, na mesma
ilha de cimento e aço onde Sousândrade enxergou o in-
ferno, que ele situa o centro gerador da “Grande Máquina”
que comanda a vida e a vontade dos homens. Ela é um fato
totalitário que subjaz e sobrevive a todas as conjunturas,
seja à do Estado Novo, seja à das guerras mundiais. Porém,
no poema “A flor e a náusea”, ele toma consciência de si, se
vê como sujeito com consciência da própria consciência (a
consciência da flor), o que lhe permite, ao mesmo tempo,
superar a melancolia e a ação desesperada, e transformar
a sua consciência em ação e poder, como a flor dialética, a
negação das negações: “Mas é uma flor. Furou o asfalto, o
tédio, o nojo e o ódio”.
Logo depois da explosão das torres do World Trade
Center e o reconhecimento do terrorismo como algo mais
amplo do que a simples ação de um grupo, ele foi equipa-
rado a uma peste ou uma praga que precisava ser contida
a todo custo. Tratava-se de localizá-lo e extirpá-lo mili-
tarmente. Entretanto, a lição do poeta nos mostra que essa
endemia é mais do espírito do que do corpo, e é gerada
17 Sobre o tema da melancolia na poesia de Carlos Drummond de
Andrade, v. Guinzburg, J. “Literatura brasileira: autoritarismo, violência,
melancolia”, Revista de Letras. S.Paulo, UNESP, v.43, número 1, jan/jun
2003, p. 57 e Marques, R.M. “Tempos modernos, poetas melancólicos”,
in Souza, Eneida M. de. Modernidades Tardias, B.Horizonte, Editora da
UFMG, 1998, p.159.

66
também pela sensação de emparedamento e impotência que
motiva vontades e ações desesperadas.18 No poema ela tem
razões históricas e humanas bem mais fundas e complexas
do que muitos, hoje, gostariam de admitir. E se a sua poesia
não é uma ilha de refúgio, o que ele recusa, mas o lugar
onde trabalha os sentimentos dos mundos, interno e ex-
terno, e chega à consciência de si, o poeta nos diz também
como essa peste está bem mais disseminada no espaço e no
tempo do que se pensa. Se temos alguma coisa a aprender
com Drummond, com o espanto da sua consciência, é que
ilhas, condomínios fechados, bombas e a força militar não
bastam para conter a melancolia e a ação desesperada, nem
estas definem os limites da ação poética.

18 Para se ter uma idéia de como na época do poeta esse sentimento não
era individual, mas também uma “praga” bem mais generalizada, ver este
trecho de um artigo, de início dos anos 40, de Oswald de Andrade: “E
senti, mesmo antes de ser politizado na direção do meu socialismo cons-
ciente, que era viável a ligação de todos os explorados da terra, a fim
de se acabar com essa condenação de trabalharmos nos sete mares e nos
cinco continentes e de ser racionado o leite nas casas das populações
ativas do mundo, para New York e Chicago exibirem afrontosamente os
seus castelos de aço, erguidos pelo suor aflito e continuado do proletariado
internacional”. Andrade, O. de. Ponta de Lança, Rio, Civilização Brasileira,
1972, 3a ed., p. 52.

67 revista do ieb n 43 set 2006


Da arqueologia portuguesa à
arquitetura brasileira
Joana Mello *

Ricardo Severo: entre o elogio e a crítica


A imagem de Ricardo Severo legada à posteridade foi
em larga medida forjada pelo próprio engenheiro luso e por
biógrafos encomiastas1, em geral compatriotas, condiscí-
pulos e admiradores. Para estes, Severo foi a figura de maior
destaque no ambiente científico, artístico e político dos dois
países em que viveu – o Portugal nativo e a ex-Colônia to-
mada por ele como segunda pátria – seja pelo caráter mul-
tifacetado de sua obra, seja pelo brilhantismo com que teria
desempenhado as mais diversas atividades ao longo da vida,
como arqueólogo, antropólogo, cientista, historiador, es-
critor, arquiteto, artista e construtor. Homem de ação e de
cultura, dono de invejável erudição e de uma personalidade
inquieta que faria dele um publicista contumaz, Severo teria
desempenhado com nobreza o lugar de patriarca da colônia
portuguesa no Brasil, incentivando o movimento associativo
luso-brasileiro e a ele dedicando grande parte de seu esforço
intelectual. Ao renome como mestre da arquitetura “tradi-
cional” no Brasil se somaria a destacada atuação profissional
ao lado de Francisco de Paula Ramos de Azevedo no requi-
sitado Escritório Técnico, na Companhia Iniciadora Predial e
no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo. No quadro pintado
por esses biógrafos — destoante da leitura especializada 2
posterior, diga-se de passagem — Severo teria encontrado
em Ramos de Azevedo um companheiro da “causa tradicio-
nalista”, podendo a ele ser igualado na transformação da fi-
sionomia arquitetônica da antiga Vila de Piratininga. Reno-
vação eclética do cenário urbano e campanha em prol das
artes tradicionais surgindo assim como atividades simultâ-
neas em sua obra arquitetônica.
* doutoranda da FAU-USP e professora da FAU-UniABC
1 Carlos Malheiro Dias, “Discurso do Sr. Carlos Malheiro Dias”. DIAS,
Carlos Malheiro. Homenagem a Ricardo Severo. São Paulo: Companshia
Melhoramentos, 1932, pp. 8-17; “Discurso do Dr. Roberto Moreira”. Idem,
ibidem, pp. 21-28; “Discurso do Dr. Marques da Cruz.” Idem, ibidem, pp. 31-36;
2 Lemos, Carlos A. C. Ramos de Azevedo e seu Escritório. São Paulo: Pini,
1993; Carvalho, Maria Cristina Wolff. Ramos de Azevedo. São Paulo:
Edusp, 2000.

69 revista do ieb n 43 set 2006


Na bibliografia sobre a história da arquitetura brasi-
leira há também um lugar obrigatório, ainda que restrito,
para a personalidade e atuação de Severo. Em linhas ge-
rais, os historiadores tenderam a atribuir um papel conser-
vador à “cruzada tradicionalista” empreendida pelo enge-
nheiro luso em prol da recuperação das artes e da arquite-
tura do período colonial. De um lado, Severo aparece como
principal mentor teórico do movimento neocolonial, orador
apaixonado, precursor da pesquisa em torno de uma su-
posta nacionalidade artística brasileira, patrocinador dos
primeiros estudos in loco da arquitetura colonial feita no
país, além de um de seus maiores colecionadores e defen-
sores contra a vaga acadêmica e modernizadora que se
alastrava no campo das construções desde os últimos de-
cênios do século XIX. De outro, o engenheiro surge como
dos maiores dilapidadores e falsificadores da arquitetura
colonial; como restaurador inepto e arquiteto mediano, res-
ponsável pela produção de mais uma variante do ecletismo
europeu no já carregado panorama historicista local (a di-
ferença ficando por conta do sotaque português) e pela va-
lorização duvidosa, quando não manipuladora, de elementos
de arquitetura colonial e portuguesa, civil e religiosa, que
misturaria séculos e procedências, incongruentes no tempo,
no espaço e no estilo. Ocupando na historiografia um lugar
semelhante ao do próprio neocolonial, o principal mérito de
Severo teria sido o ter aberto caminho para a retomada, es-
tudo e preservação de uma arquitetura pretérita; caminho
este que só seria corretamente percorrido a partir dos anos
1930 com os arquitetos modernos cariocas. 3
Se entre os admiradores predominou o culto de uma
personalidade absolutamente singular em seu tempo, desta-
cada de seu contexto, para os críticos a importância do en-
genheiro português se restringiu a um episódio circunscrito
(e menor) da arquitetura brasileira. As imagens convencio-
nais de seu papel histórico – ora apologéticas, ora críticas,
ora auto-indulgentes – mostram o quão inespecífica é a
classificação pura e simples de Severo como “conservador”,
“nacionalista” ou “tradicionalista”. Participando ativamente

3 Costa, Lucio. “Muita construção, alguma arquitetura e um milagre”


(1951). Lucio Costa: registro de uma vivência. São Paulo, Empresa das
Artes, 1995, pp. 164-165; Goodwin, Phillip L. Brazil Builds Architecture
New and Old 1652-1942. New York, Museum of Modern Art, 1943; Mindlin,
Henrique. Arquitetura Moderna no Brasil (1956). Rio de Janeiro, Aeroplano
Editora, 1999; Bruand, Ives. Arquitetura Contemporânea no Brasil. São
Paulo, Perspectiva, 1981; Lemos, Carlos A. C. Arquitetura Brasileira. São
Paulo: Melhoramentos, 1979.

70
do esforço de compreensão e definição da nação brasileira,
o engenheiro português e sua obra ajudam a problematizar
um período já tão estudado de nossa história intelectual, as
décadas de 1910, 1920 e 1930, apontando para a diversidade
de projetos em curso naquele momento. Afinal, a busca dos
elementos fundantes de uma nação, a constituição de uma
identidade capaz de particularizá-la no confronto com o
outro, as tentativas de compreensão de sua inserção inter-
nacional e as possibilidades futuras eram preocupações re-
correntes para os intelectuais que no começo do século XX
se engajaram nos mais diversos movimentos nacionalistas4 .
Se as preocupações eram comuns, as respostas ou saídas
por eles elaboradas eram diferentes e até divergentes, o que
poderia ser explicado levando-se em conta os parâmetros
a partir dos quais elaboravam suas visões de mundo, o ar-
senal analítico que manejavam e a missão social e política
que cada um deles se atribuía. Identificar e analisar esses
parâmetros em Ricardo Severo pode ajudar a ampliar a
compreensão do debate artístico daquele período, tornando
mais complexa e matizada a leitura da produção arquitetô-
nica eclética, neocolonial ou moderna.
Dessa forma, para compreender as idéias de Severo,
bem como precisar o sentido de suas propostas e atuação
pública, é preciso recuperar algo de sua biografia e itine-
rário intelectual, buscando sua inscrição no tempo e na so-
ciedade que lhe foi dado viver. De modo geral, os textos es-
critos pelo engenheiro português sugerem a existência de
dois momentos em sua vida: o primeiro em Portugal, entre
1884 e 1908, no qual domina quase que exclusivamente
o interesse pela arqueologia; e o segundo no Brasil, entre
1908 e 1940, quando o engenheiro diversifica suas ativi-
dades, dedicando-se à luta republicana, à valorização do
legado luso no Brasil, à unificação e fortalecimento da co-
lônia portuguesa no país e à arquitetura. Se a nítida demar-
cação desses dois períodos corresponde a uma mudança sig-
nificativa nos focos de atuação de Severo, ela também per-
fila uma linha de continuidade marcada pelo compromisso
com as tradições lusitanas e as idéias raciais-evolucio-
nistas. Seus escritos e projetos, imbuídos de tom polêmico e
programático, eram característicos de um nacionalista ator-
mentado pelas transformações geopolíticas internacionais e
pelo modo como estas incidiam sobre as realidades brasi-

4 Candido, Antonio. “Uma palavra instável”. Vários Escritos. São Paulo,


Duas Cidades, 3ª edição, 1995, p. 293-305.

71 revista do ieb n 43 set 2006


leira e portuguesa na virada do século XX. Nota-se que o
discurso do engenheiro, sem projetar uma trajetória indivi-
dual absolutamente coerente e perfeitamente encadeada no
tempo5 , dialoga com o contexto social, político e cultural
em que foi produzido, sendo possível recompor historica-
mente os sentidos de seu controverso “nacionalismo” e “tra-
dicionalismo”.

Um mundo português em ruínas


Ricardo Severo da Fonseca e Costa (Lisboa, 1869
– São Paulo, 1940) viveu as profundas transformações po-
líticas, econômicas, sociais, científicas e culturais que de-
finiram a chamada “era dos impérios”.6 Como se sabe, os
anos de 1870 a 1914 foram marcados por intensas disputas
entre Estados imperialistas jovens e velhos pela dominação
de mercados consumidores mundiais e territórios coloniais
na África e no Oriente. Estas disputas, ocasionadas por um
“tipo curioso de crise econômica”7 implicaram uma mu-
dança profunda no antigo arranjo de forças entre as potên-
cias do período, além de sinalizar o advento de um novo
tipo de imperialismo. 8
Portugal, país essencialmente agrário, ocupava um
lugar bastante frágil nessa nova ordem mundial. Seu do-
mínio colonial, principalmente na África, se via ameaçado
tanto pelas fortes pressões comerciais britânicas, quanto
pela dificuldade administrativa de transformar os antigos
“enclaves” africanos em “colônias”. Ameaça cuja gravidade
só pode ser medida levando-se em conta que a manutenção
e controle das colônias africanas não representava nesse
momento apenas a possibilidade do império reconquistar
o posto de entreposto comercial de produtos tropicais, mas
também a “garantia da conservação do próprio território
metropolitano” e sua independência como nação, abalada
então pelo ameaça real de uma nova União Ibérica 9. A esse
quadro externo complexo somavam-se internamente su-

5 Bourdieu, Pierre. “A ilusão biográfica”. RazõesPráticas. Sobre a Teoria


daAção. Campinas, Papirus, 1996.
6 Hobsbawm, Eric J. A Era dos Impérios. São Paulo,:Paz e Terra, 1988.
7 Arendt, Hannah. As Origens doTotalitarismo. São Paulo, Companhia das
Letras, 1989, pp. 147-187.
8 Thomaz, Omar Ribeiro. Ecos do Atlântico Sul:Representações sobre oTer-
ceiro Império Português. Rio de Janeiro, Editora UFRJ/ FAPESP, 2002, p.
38.
9 Idem, ibidem, p. 30-80.

72
cessivas crises, cujo foco central era a própria Monarquia,
desgastada por sua orientação econômica – que privilegiava
a atividade agroexportadora em detrimento do pequeno
produtor rural e da indústria nacional –, pela incapacidade
de administrar os territórios coloniais e por uma sensível
queda no nível de vida da população, sobretudo entre as
camadas mais pobres e a pequena e média burguesia.10
O quadro de crise generalizada desembocaria em uma
série de protestos contra a Coroa11, que ecoavam um dos
temas centrais dos debates políticos-culturais da Europa
deste período: a decadência e a salvação.12 Em Portugal,
esse será o tema dileto do movimento republicano que, em
consonância com outros movimentos de redenção em curso
no continente, via na busca das origens das nações, dos
traços primitivos das raças fundadoras e das formas ances-
trais de governo, o único caminho possível de retomada da
grandeza nacional frente às ameaças internas e externas
de desestruturação.13 Era a partir dessa investigação das
origens que se acusava a artificialidade da Monarquia e o
declínio do império português, afirmando-se a República
como única possibilidade de salvação nacional, seja por
constituir o ápice da evolução humana no âmbito político,
seja por emanar diretamente do caráter étnico e, portanto,
da natureza de seu povo.14
O núcleo de oposições republicanas à monarquia, que
foi gradualmente se constituindo desde meados do século
XIX, tinha como canais principais de divulgação e propa-
ganda os meios de comunicação de massa e as instituições
de pesquisa e ensino superior em Coimbra, Lisboa e Porto.15
Mais do que um simples projeto político, o movimento repu-
blicano em Portugal se configurou como um ideário social,
espiritual e cultural que fomentava uma visão de mundo
marcada pelo anticlericalismo, cientificismo, evolucionismo

10 Cartroga, Fernando. O Republicanismo em Portugal. Da formação ao 5


de outubro. Coimbra, Faculdade de Letras, 1991, pp. 12-19.
11Idem, ibidem, pp. 12-19.
12 Oliveira, Lucia Lippi, “Decadência e salvação”. A Questão Nacional na
Primeira República. São Paulo, Brasiliense, 1990, pp. 49-73.
13 Arendt, Hannah. Op. cit., pp. 147-187.
14 Catroga, Fernando, Op. cit.., p. 45.
15 Ramos, Rui. “A nação intelectual”. RAMOS, Rui. A segunda fundação
(1890-1926). MATTOSO, José (org.) História de Portugal. Lisboa, Círculo de
Leitores, 1994, pp. 43-67.

73 revista do ieb n 43 set 2006


e nacionalismo.16 Não é a toa que, entre o final do século
XIX e os anos 1930, o movimento coincida com o período
de supervalorização das tradições lusitanas e de “construção
da nação” num sentido amplo, e que os principais símbolos,
instituições e personagens que dão identidade ao país ainda
hoje tenham sido definidos nesse período.17
Ricardo Severo participa do movimento republicano
português em seus vários âmbitos. Do ponto de vista estri-
tamente político, envolve-se ativamente na revolta do Porto
de 189118 – participação que lhe custaria um período de
exílio no Brasil – e produz entre 1910-192319 uma série de
conferências sobre a causa republicana. Nestas conferên-
cias postulava a partir da reconstituição histórica e arque-
ológica da nação portuguesa ser possível comprovar cien-
tificamente que a República era a própria “síntese indisso-
lúvel do caráter étnico, moral e social dessa nacionalidade,
cujas origens se confundem com a história do próprio solo
nacional, desde os períodos geológicos do ‘Quaternário”.20
Tanto esta afirmação como sua atuação só podem ser enten-
didas neste contexto, em particular no tocante ao veio mais
profícuo de sua militância republicana: a arqueologia.

Política de redenção: republicanismo e arqueologia


A primeira notícia do envolvimento de Ricardo Se-
vero com o mundo científico português, sua participação
no IX Congresso de Antropologia e Arqueologia Pré-histó-
rica (Lisboa – 1880) 21, coincide com a conjuntura de queda
no nível de vida da população e radicalização dos protestos
contra a Coroa. O congresso foi particularmente marcante
para o engenheiro. Primeiro, porque foi naquela ocasião que

16 Catroga, Fernando. Op. cit., p. 197.


17 Ramos, Rui. Op. cit, pp. 565-595.
18 Sobre a revolta de 1891 do Porto ver Catroga, Fernando, Op. cit., p. 113-
135.
19 Ramos, Rui. op. cit.
20 Severo, Ricardo, “Origens da nacionalidade portuguesa”. Revista
Portuguesa. São Paulo, 1937, tomo I, fasc. 5, p. 336.
21 Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Rio de Janeiro/ Lisboa:
Editorial Enciclopédia, 1945, pp 618-619. A data suscita dúvida, dado
que em 1880 Severo contava apenas com 11 anos. É nesse mesmo ano,
contudo, que Severo passa a editar, em parceria com Alberto Ortigão
Miranda, o jornal semanal O Instrutivo, publicado até pelo menos 1883,
cujos exemplares foram estão em posse do neto de Severo, Luis Roberto
Severo Lebeis.

74
ele tomou contato com as pesquisas de Nery Delgado (1835-
1908) 22 e de Carlos Ribeiro (1813-1882) 23, cuja influência
seria decisiva em sua vida profissional; segundo, porque o
evento ocorreu no ano em que se festejava o centenário da
morte de Luis de Camões, cujas comemorações ensejaram o
fortalecimento do até então incipiente movimento republi-
cano português.24
Severo ingressou na Academia Politécnica do Porto25
em 1884, formando-se em Engenharia Civil de Obras Pú-
blicas em 1890 e em Engenharia Civil de Minas em 1891.
Não se sabe se constava destes cursos uma introdução à
pesquisa arqueológica, ainda que em Portugal a matéria
tenha se vinculado ao estudo de minas, geologia e ciências
naturais26 . Também não se pode afirmar ao certo se a opção
de Severo pelo curso de Minas foi a extensão natural de
um interesse prematuro pela arqueologia, anunciado desde
o congresso de 1880. Percebe-se, entretanto, que nos anos
em que freqüentou a Academia, a matéria assumiu a prio-
ridade entre as suas atividades acadêmicas e profissionais e
que seu interesse pela disciplina era compartilhado com um
grupo de intelectuais republicanos portuenses.27 Com esses,
desenvolveu uma série de iniciativas em que se manifesta o

22 Sobre Nery Delgado ver a biografia escrita por Ana Carneiro no site do
Instituto Camões, http://www.instituto-camoes.pt/cvc/ciencia/p37.html e
no site do Instituto Geológico e Mineiro de Portugal http.//www.igm.pt/
document/centros/museu_geologico/biografias/nery_delgado.htm
23 Sobre Carlos Ribeiro ver a biografia escrita por Vanda Leitão no site do
Instituto Camões, http://www.intituto-camoes.pt/cvc/ciencia/p38.html e
Severo, Ricardo. “Carlos Ribeiro”. Revista de Ciências Naturais e Sociais.
Porto, 1897/98, v. V, fasc. 20, p. 153-187.
24 Catroga, Fernando. Op. cit.
25 Sobre a Academia Politécnica do Porto ver: Santos, Cândido
dos. Universidade do Porto – raízes e memória da instituição. Porto,
Universidade do Porto, s.d.; Rodrigues, Maria de Lurdes. Os Engenheiros
em Portugal: Profissionalização e Protagonismo. Oeiras, Celta Editora,
1999 e os sites Engenharia do século XX http://www.engenharia.com.pt; e
Universidade do Porto/ Faculdade de Engenharia http://sifeup.fe.up.pt.
26 Martins, Manuela. “Martins Sarmento e a arqueologia”. Revista
Guimarães. Guimarães, 1995, n. 105, pp. 127-138. Casa Sarmento http://
www.csarmento.uminho.pt/docs/ndat/rg/RG105_08.pdf.
27 Faziam parte deste grupo Júlio de Matos, Wenceslau de Lima, Basílio Teles,
Alfredo Xavier Pinheiro, João Barreira, Artur Augusto da Fonseca Cardoso,
Antonio Augusto da Rocha Peixoto, entre outros. Severo, Ricardo. “Origens
da nacionalidade brasileira”, 1930, tomo I, fasc. I, pp. 58- 62; Severo, Ricardo.
op. cit., 1932, Ricardo Severo, “Recordando” – oração pronunciada no Centro
Republicano Português de São Paulo, em 31 de janeiro de 1937. Revista
Portuguesa. São Paulo, 1937, tomo I, fasc. 5, p. 372-375.

75 revista do ieb n 43 set 2006


compromisso duplo: de um lado, com a pesquisa científica,
de outro, com o projeto político republicano de redimir a
pátria decaída.
Exemplo da atuação político-científica do grupo é a
fundação da Sociedade Carlos Ribeiro28 (1887- 1898). Para
os jovens, essa personalidade híbrida de oficial do exér-
cito e cientista, era um dos pioneiros da geologia, paleon-
tologia, paleoetnologia e arqueologia em Portugal, seu tra-
balho servindo como exemplo de pesquisa científica. Va-
lendo-se de supostas descobertas arqueológicas feitas por
Ribeiro às margens do Tejo, a sociedade instituída em sua
homenagem buscava endossar sua principal tese: a origem
pré-histórica e independente da nacionalidade portuguesa.
Carlos Ribeiro, no entanto, não era a única referência
teórica dos membros da sociedade. O trabalho dos arqueó-
logos e etnólogos vimarenses Francisco Martins Sarmento29
(1833-1899) e Alberto Sampaio (1841-1908) 30 , também é
digno de nota, sobretudo no que diz respeito aos estudos
comparativos que o primeiro realizou nos “castros” e “ci-
vidades” da região do Minho, que comprovariam não só a
antigüidade destas acrópoles fortificadas, como a origem
pré-romana e pré-celta do povo português. Partindo dessas
descobertas, estes cientistas se contrapunham tanto àqueles
que defendiam o celtismo e orientalismo na origem desse
povo, quanto àqueles que, como o historiador e romancista
Alexandre Herculano (1810-1877), afirmavam a “inexis-
tência de relações genealógicas entre os portugueses e as
populações pré ou proto-históricas, especialmente com os
Lusitanos”.31

28 Sobre a Sociedade Carlos Ribeiro ver Grande Enciclopédia Portuguesa


e Brasileira. Rio de Janeiro/ Lisboa: Editorial Enciclopédia, 1945, p. 583-
584.Ver Peixoto, Rocha. “A Sociedade Carlos Ribeiro”, Revista de Ciências
Naturais e Sociais. Porto, 1898, v. V, n. 20, Idem, “A Sociedade Carlos
Ribeiro”. Portugália. Porto, 1899, tomo I, fasc. 1, p. 155.
29 Sobre Francisco Martins Sarmento ver o site da Casa Sarmento
http://www.csarmento.uminho.pt/sms.asp e do Museu Martins Sarmento
http://www.geira.pt/MSMartinsSarmento. O primeiro artigo de Ricardo
Severo de que temos notícia, escrito em co-autoria com Fonseca
Cardoso, segue os mesmos passos e premissas da pesquisa desenvolvida
por Sarmento nas estações pré-históricas de Briteiros, Citânia e Sabroso.
Severo, Ricardo, e Cardoso, Fonseca. “Notícia arqueológica sobre o
Monte da Cividade”. Revista Guimarães, 1886, http://www.csarmento.
uminho.pt/sms.asp.
30 Sobre Alberto Sampaio ver o site do Museu Alberto Sampaio http://
www.geira.pt/malbertosampaio.
31 Martins, Manuela. Op. cit, p. 7.

76
Outros dois exemplos importantes da atuação do grupo
de Severo são: a Revista de Ciências Naturais e Sociais32 e a
Portugália. Materiais para o estudo do povo português. Fun-
dada em 1890 como o “principal instrumento de ação” da
Sociedade Carlos Ribeiro, a Revista de Ciências Naturais e
Sociais era dirigida por Rocha Peixoto, Ricardo Severo33 e
Wenceslau de Sousa Pereira Lima (1858-1919) 34 , dedicando-
se a publicação de estudos sobre paleoetnologia, etnologia,
etnografia, geologia, botânica, zoologia e arqueologia, a
maioria deles dedicados à pré-história da nacionalidade
portuguesa. A revista circulou por oito anos, sendo seu en-
cerramento justificado em nome de uma nova publicação
que a suplantaria em alcance e envergadura: a Portugália.
A maioria dos colaboradores da Revista de Ciências
Naturais e Sociais está presente na Portugália, que mantém
e amplia o projeto editorial anterior. Em consonância com
o discurso nacionalista do grupo de republicanos ao qual
pertencia, Severo afirmava que o objetivo central da publi-
cação era o de levantar os “verdadeiros elementos da vida
e do caráter nacional, a nossa razão de ser e da nossa his-
tória”, o “substractum da nacionalidade”, para inaugurar
“um novo período de renascença dentro da própria naciona-
lidade, que [era] também a renascença de um velho povo”.35
De volta a Portugal, depois do período de exílio no
Brasil (1891/92-1897/98), Severo lidera a criação da Por-
tugália. Nesta nova iniciativa, o engenheiro era ao mesmo
tempo proprietário, diretor e editor da publicação, tendo es-
crito dezenas de artigos, quase todos dedicados à arqueo-
logia. Nos que abordava as origens da nacionalidade por-
tuguesa, o engenheiro seguia as trilhas abertas por Ribeiro
e Sarmento, defendendo que do ponto de vista mesológico

32 Sobre os objetivos gerais da Revista de Ciências Naturais e Sociais ver


Telles, Bazílio. “Introdução”. Revista de Ciências Naturais e Sociais. Porto,
1890, vol I, fasc. 1, pp. 1-5 e Peixoto, Rocha. “Publicações periódicas”
Portugália. Porto, tomo I, fasc. 1, 1899, p. 176.
33 Severo aparece como diretor da revista em todos os fascículos, mas
colaborou efetivamente, escrevendo artigos, notícias e/ou resenhas, nos
fascículos 1 a 4 (volume 1/1890); fascículos 5 a 8 (volume 2/1893) e fascí-
culos 17 a 20 (volume 3/1897-98). Nos fascículos 9 a 12 (volume 2/1894-95)
e fascículo 13 a 16 (volume 4/1895-96), Severo pode não ter participado por
ainda estar em São Paulo.
34 Sobre Wenceslau de Sousa Pereira de Lima ver o site do Instituto
Geológico e Mineiro de Portugal http://www.igm.pt/document/centros/
museu_geologico/biografias/wenceslau.htm.
35 Severo, Ricardo. “Prospecto e Programa Geral”. Portugália. Porto, tomo
I, fascículo 1, 1899, p. VII

77 revista do ieb n 43 set 2006


“a constituição do território [português] como unidade ge-
ográfica independente” era garantida pela topografia e hi-
drografia, cuja constituição teria isolado Portugal do resto
da Europa; e que do ponto de vista racial, a nacionalidade
portuguesa tinha como “célula matriz” o “ibero-ligúrico”.
A defesa da pureza racial portuguesa era, ao mesmo tempo,
essencial e problemática em seu discurso. Essencial, por ser
naquele momento, ao lado da unidade territorial, um dos
atributos decisivos da afirmação da nação e de sua inde-
pendência. Problemática, na medida em que o ideal de pu-
reza racial era turvado pelo fato, admitido pelo próprio en-
genheiro, de que a Península Ibérica tinha sido palco das
mais diversas migrações, sendo sua população “sob o ponto
de vista da sua composição étnica [...] assaz mesclada”. Ca-
racterística que indicaria a degeneração da nacionalidade e,
portanto, a impossibilidade de concretização do projeto de
redenção da nação em declínio. Era para escapar da ameaça
da mestiçagem e do perigo de desintegração nacional que
Severo afirmava, ainda que de modo contraditório e for-
çado, que os diversos povos que passaram pelo território
português desde a pré-história pertenciam ao mesmo grupo
racial lusitano ou não tinham um papel de relevo na cons-
tituição daquela nacionalidade. 36
Depois de vinte e quatro anos dedicados à arque-
ologia, Severo interrompe aquele que declarou ter sido
o trabalho mais importante de sua vida: a Portugália. A
revista deixa de circular em 1908, quando Severo se vê
obrigado a abandonar sua terra natal, em virtude de difi-
culdades financeiras advindas da vida suntuosa de editor
de uma revista de luxo, mas de público reduzidíssimo e
agravada pela má administração dos bens que conquis-
tara em sua primeira estadia em São Paulo. Na medida em
que o encerramento de sua atuação como arqueólogo não
significou o arrefecimento de sua fé republicana, nem o
abandono de seu interesse pela nacionalidade portuguesa,
o engajamento de Severo conheceria outros desdobra-
mentos no Brasil, convivendo com outras crenças e formas
de atuação.
36 Para acompanhar passo a passo os argumentos do engenheiro sobre
o tema ver “Origens da Nacionalidade Portuguesa” (1911). Revista
Portuguesa. São Paulo, 1930, tomo I, fasc. I, pp. 1- 4; “Origens da
Nacionalidade Portuguesa” (1911). Revista Portugal. São Paulo, 1930,
tomo I, fasc. 2, pp. 100-114; “Origens da Nacionalidade Portuguesa”
(1911). Revista Portuguesa. São Paulo, 1936, tomo I, fasc. 4, pp. 253-259;
“Origens da Nacionalidade Portuguesa” (1911). Revista Portuguesa. São
Paulo, 1937, tomo I, fasc. 5, pp. 329-337.

78
Laços de família e atuação profissional
Ricardo Severo veio ao Brasil pela primeira vez em
1891/92 37, engrossando a massa de imigrantes portugueses
que, entre o século XIX e XX, tiveram o país como des-
tino 38 . Representante bem sucedido das camadas médias
portuguesas ligadas ao comércio e à indústria, é possível
que sua opção tenha sido animada pela vinda de outros
republicanos igualmente perseguidos pela revolta do Porto
de 189139 ou que tenha pesado a amizade com o colega dos
tempos da Academia Politécnica, o engenheiro brasileiro
Carlos Villares. Tanto nessa primeira passagem quanto na
posterior estadia definitiva no Brasil, chama a atenção
a diversidade e prosperidade alcançada pelo engenheiro
nos investimentos mais variados, comércio, construção
civil, mercado financeiro e imobiliário 40 . Surpreendente
também, desde a primeira estadia, sua rápida, sólida e
marcante inserção, não só no âmbito protegido da colônia
portuguesa, como nos meios sociais, empresariais e cultu-
rais paulistanos.
Severo se preocupou em promover, acima de suas
convicções políticas, a união entre os imigrantes portu-
gueses ao redor de uma única instituição, a Casa Portu-

37 Sobre esta primeira estadia ao Brasil há várias versões quanto às datas


de chegada e partida de Severo: Gonçalves, Ana Maria do Carmo Rossi.
A Obra de Ricardo Severo. São Paulo, FAU-USP, 1977; Lemos, Carlos
A. C, Op. cit., 1993, p. 60, Rial, Mariana Fontes Pérez. Movimento ou
Estilo: Estudos sobre a Arquitetura Neocolonial Paulistana. São Paulo,
texto mimeografado, relatório final de pesquisa CNPq/FAUUSP, 2000;
Severo, Ricardo. Discursos. Rio de Janeiro: Real Gabinete de Leitura,
1937, p. 5; Severo, Ricardo, Op. cit., 1930, p. 9.

38 Sobre a imigração portuguesa para o Brasil ver: Pereira, Miriam


Halpern. A Política de Imigração Portuguesa. Lisboa, A Regra do Jogo,
1981; Alencastro, Luiz Felipe de. “Proletários e Escravos”. Novos Estudos
CEBRAP. São Paulo, n. 21, 1988; Scott, Ana Silvia Volpi. “Verso e
reverso da imigração portuguesa: o caso de São Paulo entre as décadas
de 1820 e 1930”. Oceanos. Lisboa, out/dez 2000, n. 44, p. 127; Rowland,
Robert. “Portugueses no Brasil independente: processos e representa-
ções”. Oceanos. Lisboa, out/dez 2000, n. 44, pp. 8-21; Venâncio, Renato
Pinto. “A imigração portuguesa, 1822-1930”, Oceanos. Lisboa, out/dez
2000, n. 44, p. 63; Lobo, Eulália Maria Lahmeyer. Imigração Portuguesa
no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2001.

39 Entre eles estavam: Basílio Teles, tenente Coelho, alferes Carlos


Malheiro Dias e Ramalho Ortigão.

40 As informações sobre o patrimônio de Severo foram colhidas em


entrevistas com a filha mais nova de Severo, Elisa Germano Severo, e
no documento “Inventário e partilhas do espólio do dr. Ricardo Severo
da Fonseca e Costa 1940-41”, cedido pelo neto Luis Roberto Severo
Lebeis.

79 revista do ieb n 43 set 2006


guesa41, e em aproximar as relações econômicas, políticas
e culturais entre os dois países em que viveu,42 fazendo de
si próprio uma espécie de patriarca da colônia portuguesa e
um dos principais mentores do movimento associativo luso-
brasileiro.
Os laços familiares tecidos por Severo no Brasil ti-
veram início em 1893, ano de seu casamento com Francisca
Santos Dumont. O engenheiro fora apresentado à família
Dumont por Carlos Villares que também havia se casado
com uma das filhas do famoso “rei do café”, Henrique Du-
mont.43 Portanto, passado apenas um ou dois anos de sua
vinda ao país, o engenheiro se estabelece no seio da so-
ciedade tradicional paulista, angariando a ascendência e o
prestígio social que lhe seriam de grande valia para o resto
da vida. Tal prestígio, entretanto, não seria fruto apenas de
seu matrimônio.
Antes mesmo de se casar, Severo publicara um artigo
sobre o Museu Sertório 44 no jornal Correio Paulistano, no
qual criticava a organização geral da instituição, apontando
as deficiências em suas sessões, especialmente aquelas de-

41 O programa da instituição está bem esboçado no artigo Severo, Ricardo. “A


Casa Portuguesa em São Paulo”. Portugal. Rio de Janeiro, 1925, n.43, pp.
XIX-XX.
42 As conferências, discursos e artigos em defesa do luso-brasileiro
são: “As relações luso-brasileiras” (1916); “A missão dos portugueses”.
O Estado de S. Paulo. São Paulo, 5/12/1918. p. 3; “Relações Luso-
Brasileiras” (1919), conferência pronunciada na Câmara Portuguesa de
Comércio de São Paulo; “Portugal-Brasil” (1920), conferência pronunciada
no Automóvel Club em Homenagem à Colônia; “Imigração portuguesa
no Brasil” (1925), conferência pronunciada na Câmara Portuguesa de
Comércio de São Paulo, “Um prefácio para a ‘Revista Portuguesa”. Revista
Portuguesa. São Paulo, 1930, tomo I, fasc. 1, p. III-VIII. e “Um ‘Tombo’
Luso-Brasileiro” (1937), conferência pronunciada no Real Gabinete
Português de Leitura do Rio de Janeiro. Infelizmente só pudemos loca-
lizar o artigo “A missão dos portugueses no Brasil”, o prefácio escrito
para a abertura da Revista Portuguesa e a conferência “Um ‘Tombo’ Luso-
Brasileiro”.
43 O filho mais velho de Henrique Dumont, formou-se pela Escola
Politécnica do Rio de Janeiro, tendo trabalhado em 1881 na construção
da estrada de ferro Mogiana, onde conheceu Eduardo Villares. Eduardo
casou-se em 1885 Cocota Santos Dumont. Em 1886, Guilherme Villares,
irmão de Eduardo, casou-se com Virginia Santos Dumont. Em 1887 chega
ao Brasil Carlos Villares, irmão de Eduardo e Guilherme que se formou
como engenheiro civil na Academia Politécnica do Porto e se casou
com Gabriela Santos Dumont em 1891. Ribeiro, Anamaria Germano. A
História da Família Dumont. São Paulo, texto impresso, 1998.
44 O Museu Sertório foi o germe do atual Museu Paulista. Sobre a
história do Museu Paulista e de seu acervo ver o site www.mp.usp.br.

80
dicadas às ciências naturais, à etnografia, à arqueologia e
à pré-história. O artigo é importante por confirmar a pre-
sença do engenheiro português em terras paulistanas a
partir de 1892, e porque sua crítica refletia a atitude po-
lemista e publicista comum ao círculo de intelectuais por-
tuenses ao qual pertencia, apontando ainda o seu envolvi-
mento precoce com a cidade que acabara de o acolher. Além
disso, a polêmica gerada pelo artigo chegou aos ouvidos do
então Secretário de Agricultura, Comércio e Obras Públicas,
Alfredo Maia, que o apresentaria a seu parente e amigo, o
engenheiro-arquiteto campineiro Francisco de Paula Ramos
de Azevedo (1851-1928).45 O episódio lhe renderia um em-
prego como auxiliar no escritório “do já então famoso en-
genheiro-arquiteto” e, ao mesmo tempo, o cargo de chefe da
seção construtora do Banco União de São Paulo, “cuja car-
teira predial era [também] dirigida” por ele46 .
A sociedade entre Ramos e Severo se estendeu por
mais de vinte anos tendo extrapolado os limites do Escri-
tório Técnico F. P. Ramos de Azevedo. Destoante da biblio-
grafia especializada, que insiste na especificidade e auto-
nomia do percurso de cada um deles, parece importante
restabelecer os vínculos entre ambos, ressaltando o ritmo
empresarial que ambos imprimiram à prática profissional
em São Paulo, a carreira e o papel de cada um dos sócios
na sociedade, e os debates e transformações arquitetônicas
em curso na cidade no alvorecer do século XX.
O estudo simultâneo de suas trajetórias mostra que
a biografia de ambos apresenta uma série de coincidências
relevantes. Como Severo, Ramos de Azevedo era filho de
um negociante português, se casou com uma jovem de fa-
mília abastada e influente de fazendeiros paulistas, tendo
ascendido rapidamente à “fina flor” da oligarquia cafeeira.
Projetaria palacetes luxuosos, chegando igualmente a parti-
cipar do seleto circuito de investimentos e intermediação de
contratos, encomendas e favores públicos de toda espécie,

45 Segundo Cândido Campos Neto, a Superintendência de Obras estadual


era subordinada à Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras Públicas,
dedicada ao aparelhamento material do estado de São Paulo. As inter-
venções urbanísticas [nesse momento] eram vistas como aspecto indisso-
ciável de um processo econômico baseado na agricultura e apoiado pela
atividade comercial” . Campos Neto, Candido Malta. Os Rumos da Cidade:
Urbanismo e Modernização em São Paulo. São Paulo, Editora do SENAC,
2002, p. 60.
46 Lemos, Carlos A. C., Op. cit., 1993. p. 61. Severo, Ricardo. Op. cit., 1930,
p. 10

81 revista do ieb n 43 set 2006


seja como empresário, seja nas instituições de cultura e no
mundo das artes com que se envolveu intensamente.47
Severo torna-se sócio do arquiteto no ano de seu re-
torno à capital paulista e apenas um ano depois da reestru-
turação que Ramos empreendera em seu escritório, de modo
a organizá-lo em bases empresarias. O arquiteto transfor-
mara o escritório em uma empresa de projeto e de cons-
trução que funcionava como núcleo central de um verda-
deiro conglomerado de negócios imobiliários, produção e
comércio de materiais de construção, agenciamento e inter-
mediação de contratos e encomendas.48 A partir desse mo-
mento, sua carreira foi impulsionada a tal ponto que Ramos
passaria da condição de arquiteto renomado e laureado
entre seus pares para a de maior e quase exclusivo cons-
trutor de obras públicas no período.49
Não parece exagerado supor que Ramos tenha re-
cebido neste momento a ajuda de seus sócios, Domiziano
Rossi e Ricardo Severo. Ao que tudo indica Severo ocuparia
um papel de destaque na administração do escritório ao se
envolver com as questões financeiras e de relações públicas
da empresa, deixando em segundo plano os projetos e as
obras.50 É possível que a formação que recebera na Aca-
demia Politécnica do Porto, sobretudo do curso de Enge-
nharia Civil de Obras Públicas, o tenha qualificado para
exercer com competência as atividades não só de cons-
trução, mas também de administração. Isso porque o ensino
da engenharia no período tinha como objetivo principal a
formação de profissionais capacitados para as atividades de
fomento de obras públicas e administrativas com vistas no
gerenciamento e controle dos negócios coloniais na África.51
Em 1930, ao recapitular a sua atuação ao lado de
Ramos, o engenheiro português incluiria o acompanhamento

47 Segundo Sérgio Miceli, Ramos de Azevedo ilustra com perfeição “esse


tripé de funções políticas, empresariais e técnicas, indispensável ao exer-
cício profissional de encargos e responsabilidades no espaço da classe
dirigente ilustrada.” Miceli focaliza o seu papel no mecenato e no colecio-
nismo de arte e bens culturais em São Paulo, como típico representante
de uma elite perrepista de perfil convencional e gosto acadêmico. Cf.
Miceli, Sérgio. Nacional Estrangeiro, São Paulo, Companhia das Letras,
2003, pp.27-42.
48 Sobre o Escritório Técnico Ramos de Azevedo e seus colaboradores ver
Fischer, Sylvia. Os Arquitetos da Poli. São Paulo, Edusp. 2005; Lemos,
Carlos A. C., Op. cit., 1993; Carvalho, Maria Cristina Wolff, Op. cit.
49 Lemos, Carlos A. C., op. cit, 1993, p. 55
50 Idem, ibidem, p. 60
51 Rodrigues, Maria de Lurdes, Op. cit., p. 74.

82
de praticamente todas as obras normalmente destacadas pela
bibliografia como de responsabilidade do Escritório Técnico e
notabilizadas pela assinatura de seu fundador: entre elas, as
Secretarias de Agricultura e Fazenda, o Palácio da Justiça, a
Escola Normal, a Escola Politécnica, o Liceu de Artes e Ofí-
cios de São Paulo e de Campinas, a Faculdade de Medicina,
o Quartel da Luz, a Penitenciária do Estado, o edifício dos
Correios e Telégrafos, o Teatro Municipal e uma longa série
de palacetes construídos em Higienópolis e nas avenidas
Paulista, Angélica e Brigadeiro Luis Antônio52 . A afirmação
é problemática pois muitas dessas obras foram construídas
durante a sua primeira estadia em São Paulo – quando ele
ainda não era sócio de Ramos –, outras, iniciadas quando ele
ainda estava em Portugal e outras ainda, terminadas quando
o engenheiro já tinha retornado a capital paulista ou reali-
zadas depois da morte de Ramos.
O que interessa destacar, no entanto, é o sentimento
de Severo de ter sido parte integrante e responsável pelas
obras mais características do Escritório Técnico, cujas tra-
dições dizia procurar manter “com os preceitos [daquele]
grande Mestre da Arte de construir”, pleiteando não apenas
a sua autoria, como a continuidade da obra do engenheiro-
arquiteto campineiro. De certo modo, Severo estava cor-
reto, pois o prestígio alcançado pelo escritório se preservou
mesmo depois da morte de seu fundador em 1928, quando
assumiu a direção do escritório ao lado do sobrinho e genro
de Ramos de Azevedo, Arnaldo Dumont Villares53 e de seu
filho, Antônio Severo. 54 Este acontecimento tão decisivo não

52 Severo, Ricardo, Op. cit., 1930, pp. 10-11.


53 Arnaldo Dumond Villares, filho de Guilherme Villares e Virginia Santos
Dumont, irmã da esposa de Severo, casou-se com Laura Lacaze Ramos
de Azevedo, filha de Ramos de Azevedo em 1912. Ribeiro, Anamaria
Germano, op. cit., 1998.
54 O nome de Ramos de Azevedo a frente da empresa só desapareceu 10 anos
depois, quando esta passou a se chamar simplesmente Severo & Villares Cia
Ltda. Em sua última fase - da morte de Ricardo Severo até os anos 1970-80
- a empresa era dirigida por Arnaldo Dumont Villares, falecido em 1965 e
Antônio Severo, segundo Luis Saia arquiteto formado pela Escola Nacional de
Belas Artes do Rio de Janeiro na mesma turma de Oscar Niemeyer e coorde-
nador da sessão de projetos do escritório desde os anos 1930. A empresa Severo
& Villares fazia projetos em São Paulo e no Rio de Janeiro. Segundo Carlos
Lemos, nos anos 1980 não passava de um mero escritório de administração e
bens imobiliários, tendo sido vendido em 1991 a holding Partisil. O acervo do
Escritório Técnico Ramos de Azevedo e da Severo & Villares Cia Ltda foi doado
para a biblioteca da FAUUSP. Carlos A. C. Lemos, Catálogo de desenhos da
biblioteca da FAU-USP. São Paulo, FAU-USP, 1998, p. 14; Lemos, Carlos A.C.,
Op. cit., 1993, pp 59-60 e nota 60; Saia, Luis. “Arquitetura paulista”, Xavier,
Alberto (org.). Depoimento de uma geração. São Paulo, Cosacnaify, 2003.

83 revista do ieb n 43 set 2006


teria alterado o ritmo de produção da empresa, que até meados
dos anos 1950 continuaria a ser reconhecida “não só pela ca-
tegoria de seus projetos mas, principalmente, pela alta quali-
dade técnica construtiva” de suas obras.55
Entre as empresas que gravitavam ao redor do Escritório
Técnico, Severo era acionista da Companhia Cerâmica Villa
Prudente e da Companhia Iniciadora Predial. Esta última, fun-
dada em 1908 por Ramos, Severo, Frederico Vergueiro Steidel
e Arnaldo Vieira de Carvalho, era uma espécie de banco de
financiamento imobiliário que construía residências de alu-
guel e financiava a construção de residências particulares56,
destinadas à classe média ou àqueles que não podiam pagar
nem construir os requintados palacetes concebidos no Escri-
tório Técnico. Ricardo Severo dirigiu a companhia desde a sua
fundação até 1940, quando veio a falecer, concentrando nessa
empresa os seus conhecidos projetos neocoloniais.57
Severo também participou ativamente de outra en-
tidade de fundamental importância para o funcionamento
das empresas de Ramos de Azevedo, o Liceu de Artes e Ofí-
cios de São Paulo. De 1909, quando entrou para a insti-
tuição, até 1928, o engenheiro português desempenhou no
Liceu as funções de secretário e inspetor escolar, assumindo
a direção da instituição após a morte de Ramos de Azevedo.
Assim, também ali, a sucessão seria desempenhada por Se-
vero, que exerceu o cargo de diretor até sua morte e man-
teve a orientação da instituição de formar não apenas arte-
sãos, operários e técnicos, mas também artistas.58
Acompanhando a sua variada atividade no meio em-
presarial e institucional local, percebe-se que Ricardo Se-
vero, além de sócio ativo, foi continuador da obra que
Ramos de Azevedo edificara a partir do final do século
XIX e que transformara profundamente o cenário arquite-
tônico da capital paulista, apagando sua feição colonial e
tornando-a uma capital “atualizada”, seguindo os moldes
das cidades européias de feição eclética e universalista.
Curiosamente, como se vê, foi no interior deste processo de
modernização capitalista e beaux-arts da cidade, que trans-
formou sua paisagem arquitetônica, pública e burguesa,

55 Lemos, Carlos A. C., Catálogo de desenhos da biblioteca da FAU-USP, p. 14.


56 Sobre o escritório de Ramos de Azevedo ver Lemos, Carlos A. C., op. cit., 1993.
57Idem, ibidem., p. 4-11.
58 Severo, Ricardo. Liceu de Artes e Ofícios. São Paulo: S.N., 1934; Gitahy,
Maria Lucia. “Qualificação e urbanização em SP: a experiência do Liceu de
Artes e Ofícios, 1873-1934”. Ribeiro, M.A.R. Trabalhadores urbanos e ensino
profissional. Campinas,:Ed. da UNICAMP, 1986, pp. 21-88.

84
dando-lhe um caráter cosmopolita, para muitos, como o
próprio engenheiro, demasiadamente estrangeiro, que Se-
vero se tornou o chefe de fila da arquitetura “tradicional”
no Brasil, de caráter nacional.
Essa aparente contradição entre sua atuação no Es-
critório Técnico e na “campanha tradicionalista”, assim
como as incongruências de seu discurso demonstram que
a questão, de fato, não estava resolvida para Severo. Afir-
mando ter aproveitado a “prestigiosa influência do Escri-
tório Técnico para lançar a “orientação tradicionalista” na
arquitetura”, Severo, de um lado, criticava veementemente
o ecletismo exótico ao meio “racial e mesológico brasileiro”
e por outro, deixava uma porta aberta a esta arquitetura,
considerando-a adequada ao edifício de exceção, aqueles
que, diferentemente da casa, não configurariam a feição
“tradicional” das cidades.59
A incoerência do discurso e da prática arquitetônica
de Severo aponta para a ambivalência do engenheiro na
definição do nacional/estrangeiro, local/universal, tradi-
cional/cosmopolita, mostrando que esta era uma questão
em aberto. Presente na obra de arquitetos como Heitor
de Melo, Archimedes Memória (1893-1960), Francisque
Cuchet, Lucio Costa (1902-1998), Victor Dubugras (1868-
1933) e no discurso de intelectuais como Menotti del Pic-
chia (1892-1988), Monteiro Lobato (1884-1948), Mário de
Andrade (1893-1945), entre outros, esta ambivalência re-
vela o quadro de intensa disputa em torno da construção
da modernidade, universalidade e/ou nacionalidade artís-
tica entre nós naquele momento. 60

Imprensa, cultura e nacionalismo


A rápida inserção de Ricardo Severo nos meios sociais,
empresariais e culturais paulistanos pode ser entendida, de um
lado, a partir de seu casamento com Francisca Santos Dumont
e, de outro lado, por sua associação com Ramos de Azevedo.
Contudo, o engenheiro português não ficou restrito nem a esse
círculo familiar e profissional, nem àquele composto por sua
colônia. Tão logo se estabeleceu definitivamente na cidade,
Severo começou a ampliar as suas relações, aproximando-se
dos intelectuais que gravitavam ao redor do Instituto Histórico

59 Severo, Ricardo. “A Arte Tradicional no Brasil: a casa e o templo”


(1914). Sociedade de Cultura Artística. Conferências 1914-1915. São Paulo,
Tipographia Levi, 1916, p. 43-44.

60 Candido, Antonio. “Literatura e cultura de 1900 a 1945. (Panorama para


estrangeiros)”. Literatura e sociedade. Estudos de teoria e história literária.
São Paulo, T. A. Queiroz Editor, 2000.

85 revista do ieb n 43 set 2006


e Geográfico de São Paulo (IHGSP) 61 e do jornal O Estado de
S. Paulo. São justamente esses vínculos que, somados aos des-
tacados anteriormente, ajudam a compreender o contexto e a
repercussão da “campanha de arte tradicional” no Brasil enca-
beçada por Severo a partir de 1914.
O engenheiro português se associou ao IHGSP em 1911,
proferindo uma série de conferências entre esta data e os anos
1930. Na primeira delas, intitulada “Culto à tradição” (1911),
Severo discorreu sobre o trabalho desenvolvido no Instituto,
classificando-o como uma verdadeira “obra de concentração
nacionalista, de resistência defensiva contra o cosmopolitismo
destruidor das unidades cristalinas que representam no mundo
humano as nações”.62. Obra com a qual pretendia contribuir
através da recuperação e veneração das tradições nacionais
brasileiras, tão inseparavelmente ligadas às de seu país. Na se-
gunda, intitulada “Origens da Nacionalidade Portuguesa” (1911)
recuperava parte de seus estudos arqueológicos em Portugal,
bem como suas teses acerca da evolução da nacionalidade por-
tuguesa. Na última delas, realizada em 1932 durante o evento
“Conferências Vicentinas”, promovido em comemoração ao IV
Centenário da Fundação de S. Vicente (1532), Severo abor-
dava o problema das “Origens e fatos da expansão portuguesa
no Brasil até 1530”.63 As conferências de Severo, claramente
comprometidas com a divulgação e valorização da nação por-
tuguesa e de seu legado colonial no Brasil, somavam-se ao es-
forço de compreensão da formação das elites coloniais e da es-
pecificidade brasileira, empreendido pelo IHGSP.64
A preocupação com o nacional parece ser a chave da
relação entre o engenheiro português e o assim chamado
grupo d´O Estado de S. Paulo. Entendido por alguns au-
tores como o maior núcleo nacionalista existente na cidade
naquele momento 65 , O Estado fazia a defesa do “nacional”

61 Sobre o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo ver Schwarcz,


Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e Questão
Racial no Brasil 1870-1930. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.
62 Academia Paulista de Letras, Homenagem a Ricardo Severo: Centenário
do seu Nascimento 1869-1969. São Paulo, SN, 1969, p 52.
63 Severo, Ricardo. “Origens e fatos da expansão portuguesa no Brasil até
1530” Revista do Instituto Geográfico e Histórico de São Paulo, 1932, n . 29,
p 13-37.
64 Schwarcz, Lilia Moritz. Op.cit., p. 127. Ver também Santos, Fábio Lopes
de Souza. Modernismo e Visibilidade: Relações entre as Artes Plásticas e a
Arquitetura. Dissertação de Mestrado, FAU/USP, 2000.
65 Chiarelli, Tadeu. Um Jeca nos Vernissages: Monteiro Lobato e o Desejo
de um Arte Nacional no Brasil. São Paulo, Edusp, 1995, p. 93.

86
sem desconsiderar o legado português 66 , tão caro ao nosso
engenheiro. Em evento organizado pelo Clube Português
de São Paulo, em janeiro de 1929, na qual foram entregues
insígnias do Governo Português para Julio de Mesquita
Filho, Roberto Moreira e Nestor Rangel Pestana – princi-
pais acionistas e diretores d´O Estado -, Severo chamava
atenção para o fato do jornal ter sido desde sempre um ve-
ículo aberto para suas idéias, prestando enormes serviços à
colônia portuguesa.67 De fato, entre os anos de 1908 e 1940,
Severo publicou dezenas de artigos naquele jornal68 , que
abrangiam desde temas relacionados à colônia portuguesa e
ao Liceu de Artes e Ofícios até aqueles dedicados especifi-
camente à sua “campanha de arte tradicional”. As suas re-
lações com o jornal, entretanto, não eram apenas profissio-
nais ou intermediadas pela colônia. Severo era amigo pes-
soal de Júlio de Mesquita e Rangel Pestana, projetando para
o primeiro uma residência em “estilo tradicional”, e com ele
compartilhando da companhia do segundo nas diversas ini-
ciativas culturais que desempenharam em torno do jornal69,
como, por exemplo a Revista do Brasil e a Sociedade de
Cultura Artística.
A preocupação d´O Estado com o nacional de modo
geral definiu o caráter de boa parte desta crítica de arte
local em formação70 , fossem elas “de serviço” ou “mili-
tante”, estando presente também na publicação de contos
regionais, como os de Waldomiro Silveira, ou na seção
66 Martins, Wilson. História da Inteligência Brasileira. Vol.VI (1915-1933).
São Paulo, Cultrix/ Edusp, 1978, p. 74.
67 Discurso de Ricardo Severo no referido evento, publicado n’O Estado de
S. Paulo, 27/01/1929.
68 Neves, João Alves das. As Relações Literárias de Portugal com o Brasil.
Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1992, Santos, Paulo. “A
presença de Lucio Costa na arquitetura contemporânea no Brasil”. Rio de
Janeiro, 1960, nota 16.
69 Sobre a casa de Júlio de Mesquita ver Homem, Maria Cecília Naclério.
O Palacete Paulistano e outras Formas Urbanas de Morar da Elite Cafeeira
1867-1918. São Paulo, Martins Fontes, 1996, pp. 233-246.
70 Tadeu Chiarelli divide essas críticas entre crítica de serviço, cujo propó-
sito central era o de informar o leitor acerca das exposições e artistas
presentes na cidade, e a crítica de arte militante, que revelaria “o desejo de
intervir decisivamente na cena artístico-cultural, propondo sua transfor-
mação, sempre a partir de um parâmetro ético, estranho à especificidade
artística – no caso, o forte nacionalismo” e que começaria a ser veiculada
somente a partir de meados da década de 1910. Segundo o autor a partir de
1913 muitas das crônicas de serviço eram escritas por Nestor Rangel Pestana,
redator do jornal desde os primeiros anos do século e seu diretor a partir da
morte de Júlio de Mesquita em 1927. Chiarelli, Tadeu. op. cit.., pp. 69-106.

87 revista do ieb n 43 set 2006


“Tradições populares”, na qual Amadeu Amaral divulgou os
seus famosos ensaios sobre a cultura popular paulistana e
brasileira.71 Essa mesma preocupação orientou os jornalistas
e intelectuais ligados ao grupo na criação de associações
culturais e cívicas, como a Sociedade de Cultura Artística e
a Revista do Brasil. Nessas outras duas frentes nacionalistas
no campo da cultura, também a participação de Ricardo Se-
vero foi marcante.
A Sociedade de Cultura Artística, fundada em 1912, foi
a primeira associação cultural paulistana fortemente mar-
cada pela necessidade de valorizar a cultura nacional. Foi
justamente com este intuito que se organizaram no seu in-
terior uma série de saraus lítero-musicais, além de palestras
sobre artes plásticas e arquitetura. A antológica conferência
“A Arte Tradicional no Brasil”72 , proferida por Ricardo Severo
em julho de 1914, integrava uma dessas séries de conferên-
cias realizadas na sociedade. De acordo com Tadeu Chia-
relli, esta primeira conferência de Severo teria antecipado, ao
lado de Oswald de Andrade (1890-1954) e de seu artigo “Em
prol de uma pintura nacional” (1915), o papel e os objetivos
da crítica militante na defesa de uma arte e arquitetura na-
cionais. Para o crítico, a conferência teria manifestado não
apenas o desejo de uma arte nacional, mas também a confi-
guração de um programa para ela, cuja proposta central era
pensar uma arte brasileira futura a partir do estudo e da re-
flexão sobre o passado nacional.73
Esse duplo comprometimento, de um lado com o es-
tudo e valorização do passado e das tradições nacionais, e
de outro, com a proposição de uma arte nacional presente e
futura – que se evidencia em todos os textos da “campanha
de arte tradicional” de Ricardo Severo –, definia também o
programa artístico-cultural da Revista do Brasil, mensário
de ciências, letras, artes, história e atualidade, idealizado
por Júlio de Mesquita e lançado em janeiro de 1916 em São
Paulo. A revista, que se tornou a mais prestigiada publi-
cação cultural da República Velha, pertenceu até 1918 a
uma sociedade anônima cuja diretoria era composta por vá-
rios jornalistas e colaboradores d´O Estado, dentre eles Ri-
cardo Severo, seu presidente.74

71Idem, ibidem., p. 93.


72 Severo, Ricardo, op. cit., 1916, p. 37-82.
73 Chiarelli, Tadeu, op. cit., p. 96.
74 Severo, Ricardo. “A Arte Tradicional no Brasil”. Revista do Brasil. São
Paulo, ano I, n. 1, jan/ 1917, pp. 394-424.

88
Se das páginas da revista emerge claramente esse de-
sejo persistente de promover uma releitura do país que re-
sultasse numa ação de sentido regenerador ou identitário,
não é possível afirmar que “a proposição do problema, a
maneira de enfrentá-lo e as saídas sugeridas” fossem homo-
gêneas.75 Recuperar a tradição nacional e mais do que isso
uma tradição que sintetizasse o país enquanto nação não
era uma tarefa nada fácil, mas extremamente polêmica. A
questão que despontava nas páginas da revista, tão bem co-
locada por Alceu Amoroso Lima, era a seguinte: “Deve um
povo em plena mocidade prezar suas tradições? Ou, pelo
contrário, esquecer o passado para melhor encarar o fu-
turo?”76
Se alguns propunham veementemente “o esqueci-
mento do passado em prol das tarefas impostas pelo futuro
[, sugerindo] que simplesmente se desconsiderasse o 1500 e
se tomasse a Independência como marco inaugural da nossa
história, negando dessa forma, qualquer sentido ou perti-
nência ao período colonial” outros defendiam apaixonada-
mente as tradições, procurando ao contrário valorizar e re-
dimir nosso passado colonial77. Ricardo Severo e seu culto à
tradição se encaixam perfeitamente neste último grupo.

A campanha de arte tradicional: arqueologia, etnografia e arte


Foi em meio a esse ambiente nacionalista, acirrado
pela conflagração mundial e pelas comemorações do cente-
nário da independência do Brasil, que a “campanha de arte
tradicional” no Brasil lançada por Severo começou a tomar
forma. A campanha coincide com uma série de movimentos
artísticos de cunho nacionalista em curso na América La-
tina, Caribe, Estados Unidos e Europa, dos quais poderí-
amos citar o neocolonial78 , a arquitetura hispânica ou mis-
sion style 79, o liberty e o art nouveau em países como a Es-

75 Luca, Tânia Regina de. A Revista do Brasil: um Diagnóstico para a


(N)ação. São Paulo, Editora da UNESP, 1999, p. 78.
76 Apud idem, ibidem., p. 90
77 Idem, ibidem, p. 85-130
78 Amaral, Aracy, (org.), Arquitectura Neocolonial: América Latina, Caribe,
Estados Unidos. São Paulo, Memorial da América Latina/ Fondo de Cultura
Económica, 1994.
79 Scully, Vincent, The Shingle Style and the Stick Style. New Haven, Yale
University Press, 1971; Wilson, Chris. The Myth of Santa Fe: Creating a
Modern Regional Tradition. New Mexico,University of New Mexico Press, 1997.

89 revista do ieb n 43 set 2006


cócia, a Bélgica, a Finlândia ou a Alemanha 80 , sem contar
o da casa portuguesa, liderado por Raul Lino (1879-1974).81
No caso de Severo é possível reconhecer, ao lado das moti-
vações ideológicas, políticas e nacionalistas que o levaram
a propor a recuperação do passado colonial brasileiro e de
seu legado português, o interesse pronunciado pela história
da arquitetura, o estabelecimento de uma relação operativa
entre o passado e o presente e o desejo de criar um estilo
nacional, independente da tradição clássica, características
que marcaram os revivals deste período. 82 Além disso, em
seu discurso é patente a preocupação com a atualização das
tradições e a modernização, ou adequação, dos edifícios às
novas necessidades físico-espaciais e técnico-construtivas
da sociedade naquele momento.
O termo “campanha” só foi empregado pelo enge-
nheiro português a partir de 192283, entretanto, olhando
retrospectivamente é possível afirmar que as conferên-
cias e projetos anteriores a esta data também fazem parte

80 Sobre o liberty e Art Nouveau nestes países ver Curtis, William. “The
search for new forms and the problem of ornament”. Modern Architecture
since 1900. London, Phaidon Press Limited, 1999, pp. 53-71; Frampton,
Kenneth. História Crítica da Arquitetura Moderna. São Paulo, Martins
Fontes, 1997, capítulos 4, 5 e 6; Escritt, Stephen. Art Nouveau. London,
Phaidon, 2000.
81 Raul Lino é contemporâneo de Severo e como ele manteve relações com
o Brasil. Em Portugal era considerado um dos arquitetos portugueses de
maior renome naquele momento a defender “sem hesitações a recuperação
das ‘formas portuguesas’, num percurso ‘nacional’, alternativo à produção
eclética novecentista”. Sobre o tema ver: Gonçalves, José Fernando.
Ser ou Não Ser Moderno. Considerações sobre a Arquitetura Modernista
Portuguesa. Coimbra, Departamento de Arquitetura da Faculdade de
Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, 2002, p.60-68; França,
José Augusto. “Raul Lino e a ‘casa portuguesa’ ”. A Arte em Portugal no
Século XIX. Lisboa, Livraria Bertrand, 1966; Campos, Isis Alexandra
Marques. Raul Lino (1879-1974). A Casa Popular Portuguesa e o seu
Caráter Proletário. Trabalho de disciplina FAU-USP, 2003 (mimeo); Santos,
Paulo Ferreira. Presença de Lucio Costa na Arquitetura Contemporânea do
Brasil. Conferência, 1960, nota 15.
82 Patetta, Luciano. “Los revivals en arquitectura”. ARGAN, Giulio Carlo
et alt. El Passado em el Presente: el Revival en las Artes Plásticas, la
Arquitetctura, el Cine y el Teatro. Barcelona, Editorial Gustavo Gili, 1977,
pp. 129-163 e Argan, Giulio Carlo. “El revival”.ARGAN, Giulio Carlo et
allii, op. cit., p. 7-28.
83 O termo campanha só aparece textualmente no artigo “Da Arquitetura
Colonial no Brasil: arqueologia e arte”, publicado em 7 de setembro de 1922
n´O Estado de S. Paulo, em razão das comemorações do centenário da inde-
pendência do Brasil.

90
desta iniciativa 84 , tanto pelo teor, quanto pelo tom proposi-
tivo que as caracterizam. O levantamento de seus projetos
e textos “tradicionalistas” revela que a campanha em prol
da arte “tradicional” no Brasil se concentrou nas décadas de
1910 e 1920, mas que seu discurso e sua prática extrapolam
os limites temporais como espaciais normalmente definidos
pela bibliografia especializada sobre o neocolonial. Desta
forma, o estudo das relações entre as campanhas tradicio-
nais lideradas por Severo no Porto e em São Paulo, propa-
ladas, pelo próprio engenheiro, se revela fundamental.
Os motivos que levaram Ricardo Severo a lançar sua
“campanha tradicionalista” no Brasil são diversos, mas ab-
solutamente intrincados. Seu interesse pela arquitetura do
período colonial, sua intenção de fazer uma arte “tradi-
cional” brasileira que congregasse o velho e o novo, o por-
tuguês e o brasileiro, sua pretensão de desvendar as origens
da arquitetura brasileira e, através dela, as da nacionali-
dade, eram alinhavados pelo intuito deliberado de valorizar
a herança lusitana. Não parece ser à toa que tanto a ani-
mação quanto o arrefecimento de sua campanha coincida
com o esfriamento de sua proposta associativa luso-brasi-
leira, também levada a cabo entre os anos 1910 e 1920.
O eixo central de sua campanha era a discussão
acerca das origens, desenvolvimento e características da
“arquitetura tradicional brasileira”. Desde suas primeiras
manifestações sobre o tema, o engenheiro tomava as an-
tigas e modestas construções do período colonial como ves-
tígios poderosos de identificação do momento original de
“formação” desta jovem nação, considerando-os tão revela-
dores e dignos de nota quanto haviam sido os antigos fós-
seis por ele pesquisados em Portugal. Atribuindo àquelas

84 Textos e projetos da campanha: “Culto à Tradição” (1911) e das confe-


rências a “Arte Tradicional no Brasil” (1914/ 1916), ao quais poderí-
amos acrescentar os artigos “Arquitetura Velha” (1916), “Da Arquitetura
Colonial no Brasil: arqueologia e arte” (1922); a entrevista “Arte Colonial
III” (1926 ) para o jornal O Estado de São Paulo, além do artigo “A casa da
faculdade de direito de São Paulo 1634-1937” (1938); “Palacete Numa de
Oliveira” (1916), a “Casa Lusa”(1920-24), os edifícios do “Banco Português”,
da “Portuguesa Beneficente de Santos e Campinas” (1926), a “restau-
ração da Igreja da ordem terceira do Carmo”, e por último o projeto para o
“Congresso do Estado de São Paulo” (1929) , aos quais reunimos apoiados
na bibliografia específica e na análise dos projetos, a “Casa do Porto”
(1900), a “Casa Julio de Mesquita” (contemporânea a Numa de Oliveira), a
“Casa Praiana” (1921), o “Pavilhão das Indústrias de Portugal” (1922-23),
a “Casa José Moreira” (1926), a “Sociedade de Cultura Artística” (1926),
a “Faculdade de Direito do Largo São Francisco” (1932) e a “Casa Rui
Nogueira” (1939-40)

91 revista do ieb n 43 set 2006


construções a capacidade de terem cristalizado perfeita-
mente as manifestações mais primitivas de nosso povo, ou
numa palavra, nossa tradição, Severo acreditava poder re-
cuperar através delas o nascimento e desenvolvimento da
nacionalidade brasileira e assim descobrir suas verdadeiras
origens étnicas. Entretanto, ainda que enfatizasse a impor-
tância seminal das manifestações populares no campo das
artes e arquitetura, estas não seriam, como veremos a se-
guir, nem objeto de estudo mais detido em seus textos de
campanha, nem mote de inspiração para seus projetos.
O vínculo determinante entre nacionalidade, meio e
manifestações artísticas defendido por Severo, fazia com
que ele afirmasse o caráter etnográfico da arte, sobretudo a
“tradicional”, apontando na conferência “A Arte Tradicional
no Brasil” de 1916, assim como no título do artigo “Da ar-
quitetura colonial no Brasil: arqueologia e arte” (1922),
para a inevitabilidade de se fazer história da arte como se
esta fosse arqueologia.
Para Severo, a arqueologia conferia ao estudo da ar-
quitetura a possibilidade de recompor através dos mais ru-
dimentares documentos não apenas a sua história, como
a da própria “civilização brasileira”.85 Desse modo, ao es-
crever a história da arquitetura do Brasil o engenheiro
construía ao mesmo tempo a história da nacionalidade bra-
sileira, fazendo com que ambas fossem absolutamente in-
separáveis. É por isso que não podemos esquecer que, para
ele, a busca dos fundamentos desta nacionalidade e de sua
arte “tradicional” estavam intimamente ligadas à campanha
de valorização da herança colonial lusitana, e a partir dela,
da própria nacionalidade portuguesa. É justamente este seu
comprometimento que guiará em grande medida sua leitura
da arquitetura brasileira, como a de Portugal, e que expli-
cará a valorização ou negação deste ou daquele estilo ar-
quitetônico, tanto historicamente quanto do ponto de vista
artístico. Em seu arraigado nacionalismo, ou antes, vee-
mente lusitanismo, Severo validava apenas aquela arquite-
tura que representava para ele a “perfeita cristalização da
nacionalidade” portuguesa, e de seus desdobramentos no
novo mundo.
O ponto de partida de sua genealogia étnico-artística
era o “período histórico da colonização portuguesa”. Como
em seu discurso racial, a ascendência lusitana era super-
valorizada em detrimento das contribuições, ou mesmo, da
85 Severo, Ricardo, op. cit., 1917, p. 400.

92
participação dos índios, negros e outros povos imigrantes
na construção do mundo colonial e, no fundo, da própria
nação, ainda que, ao se referir a matriz étnica desta arqui-
tetura, reconhecesse a influência romana, árabe, moura e
chinesa. Se com relação aos indígenas, considerava que as
suas manifestações artísticas, “pelo seu caráter e simbo-
lismo original, se prestam a novas expressões estéticas”;
afirmava que estas não seriam, “porém tradicionais, se
bem que caracteristicamente autóctones” e, portanto, estra-
nhas no meio da “família brasileira”86 . Com relação aos ne-
gros, suas referências não passariam de um breve comen-
tário sobre a escravidão, no qual o engenheiro se opunha à
idéia de que esta teria sido no Brasil, pelas mãos dos por-
tugueses, de uma “barbárie” e “crueldade” sem tamanho87.
Quanto aos imigrantes de outras nacionalidades, eram defi-
nidos como “aventureiros” que não teriam se fixado à terra
com o intuito de “constituir uma nova nação, moldada na
sua original matriz étnica”, como afinal haviam feito os co-
lonizadores portugueses.
Partindo da matriz lusitana, Severo traçava a história
da arquitetura “tradicional” brasileira, de sua fundação, de-
senvolvimento, desvirtuamento e retomada, a partir de uma
periodização bastante interessada, que estabelecia quatro
momentos mais ou menos definidos 88 : o primeiro denomi-
nado “Brasil-Colônia”, que ia do descobrimento até o final
do século XVIII, quando experimentaríamos o desenvol-
vimento de uma arte verdadeiramente “tradicional”; o se-
gundo, nomeado “Brasil-Monarquia”, que se inauguraria no
início do século XIX, com o primeiro momento de transfor-
mação e depois de “degenerescência” da arquitetura “tra-
dicional” em função do advento da Missão Francesa, da
fundação da Academia de Belas Artes, mas principalmente
do “triunfo da independência” e do ecletismo; o terceiro,
iniciado a partir de meados do XIX e denominado “Brasil-
República”, no qual a ferida aberta pela independência no
curso “natural” de nossa arquitetura se aprofundaria, esta
arte perdendo totalmente seu cunho nacional; e o último,
em que as tradições eram retomadas dando início “a uma
nova era de RENASCENÇA BRASILEIRA”.
86Idem, ibidem, 1916, pp. 44-46.
87Idem, ibidem, 1917, p. 397.
88 Essa periodização está presente em todos os textos aqui selecionados,
mas é mais clara e explícita nas conferências “A Arte Tradicional no Brasil”
de 1914 e de 1916.

93 revista do ieb n 43 set 2006


A leitura de sua obra “tradicionalista” revela a exis-
tência de um diálogo entre Severo e outros intelectuais, ar-
tistas e arquitetos, igualmente preocupados com problema
da nacionalização e internacionalização artística, tendo
como palco preferencial de divulgação os jornais e revistas
em circulação naquele período 89. Ao mesmo tempo, a con-
versa entre eles aponta para o fato de que certas idéias
eram menos fruto de uma ou outra inteligência especial,
do que naturalização de conceitos dispersos no cotidiano,
constituindo-se, portanto, em lugares comuns entre aqueles
que se vinculavam a este ou aquele nacionalismo. Isso não
quer dizer que não houvesse pontos de vistas diferentes
sobre o mesmo tema ou que partissem de um mesmo ponto
em comum, apenas que certas idéias se cristalizaram de tal
maneira que ainda hoje se fazem presentes.
A despeito de suas realizações arquitetônicas, Severo
revelava em seu discurso uma preocupação e um compro-
misso característico de sua época.90 Ao lado da preocupação
89 Souza, Ricardo Forjaz Christiano de. O Debate Arquitetônico Brasileiro,
1925-1936. Tese de doutorado, FFLCH-USP, 2004.
90 Em seu estudo sobre a arquitetura moderna William Curtis afirma que
na passagem do século XIX para o XX os arquitetos, filiados aos mais
diversos estilos - do ecletismo ao modernismo – reconheciam naquele
momento um contexto comum de transformações profundas nos mais
diversos campos da sociedade com o qual se debatiam e ao qual buscavam
responder. As dúvidas eram muitas: como reconciliar o velho e o novo, o
mecânico e o natural, o utilitário e o ideal, o nacional e o internacional?
Como as formas de um novo estilo ‘contemporâneo’ poderiam ser desco-
bertas? qual deveria ser o verdadeiro conteúdo” da arquitetura frente às
transformações profundas geradas pela industrialização? As repostas dadas
pelos arquitetos deste período foram muitas, à medida que tanto o ponto
de partida para se repensar a arquitetura do presente quanto o que era
entendido como característico da época podia variar conforme o arqui-
teto, a região e o país, além disso, nem todos os arquitetos e teóricos viam
as transformações geradas pela industrialização de maneira positiva. O
que estou tentando salientar na interpretação de Curtis – desenvolvida
para um contexto diferente, o europeu e americano na virada do século
XIX para o XX - é o tratamento dispensado à arquitetura não moderna
daquele momento. Ao considerar um contexto e uma busca comum tanto
para arquitetos ecléticos quanto modernos ele procurava validar também as
investigações estéticas e arquitetônicas dos primeiros, normalmente descar-
tadas como meras manifestações atrasadas e extemporâneas pela histo-
riografia (moderna) da arquitetura. Algo que nos pareceu válido também
para o estudo do neocolonial e do moderno nas primeiras décadas do século
XX no Brasil. Veja, não se trata de não admitir o fato inconteste do salto
estético e artístico dado pelo moderno naquele momento, mas de recon-
siderar o neocolonial também como uma busca contemporânea, que deve
ser entendida não a partir da arquitetura moderna, mas sim dentro de um
dado contexto histórico e a partir de proposições estéticas específicas. Ver
Curtis, William. Modern Architecture since 1900. London, Phaidon Press
Limited, 1999, sobretudo a introdução e o capítulo 1 intitulado “The Idea of
modern architecture in the nineteenth century”.

94
em conhecer, estudar e recuperar esse passado, tanto o en-
genheiro português como aqueles que seriam seus compa-
nheiros, inimigos ou críticos intentavam fundar uma ar-
quitetura nacional, presente e futura, que não significasse
a retomada pura e simples do que havia sido realizado an-
teriormente, mas sim sua reinterpretação e atualização. A
convicção de que as origens de nossa arquitetura nacional
moravam no até então desprezado passado colonial era
compartilhada, por exemplo, por personagens tão diversos
quanto os engenheiros Ricardo Severo e Alexandre de Al-
buquerque (1880-1940) 91, o médico e mecenas José Ma-
rianno Filho (1881-1946) 92 , os arquitetos Adolpho Morales
de los Rios (1887-1973) 93, Lucio Costa 94 e Paulo Santos95 ,
os escritores Monteiro Lobato (1884-1948) 96 , Mário de An-
drade 97 e Manuel Bandeira (1886-1968) 98 , entre outros. Cer-

91 Engenheiro e professor da Escola Politécnica de São Paulo, envolvido ao


mesmo tempo com a reconstrução da catedral da Sé em estilo gótico - defen-
dido pelo engenheiro pelo caráter monumental da obra incompatível com a
arquitetura colonial - e “excursões científicas para o estudo e levantamento
de plantas dos tempos das casas coloniais”. Ver Fischer, Sylvia, op. cit.
92 Principal promotor do neocolonial no Rio de Janeiro entre as décadas
de 1920 e 1930. Ver Kessel, Carlos. Entre o Pastiche e a Modernidade:
Arquitetura Neocolonial no Brasil. Tese de Doutorado, UFRJ, 2002.
93 Arquiteto espanhol, radicado no Brasil, que também se envolveu simul-
taneamente com a arquitetura eclética e neocolonial.
94 Após assumir a direção da Escola Nacional de Belas Artes em 1930,
Lucio Costa filiasse a arquitetura moderna e a partir desse momento torna-
se um dos principais críticos neocolonial, movimento ao qual se vinculara
desde os tempos de estudante. Ver Wisnik, Guilherme. Lucio Costa. São
Paulo, Cosacnaify, 2001.
95 Contemporâneo de Lucio Costa, Paulo Santos também se vinculou ao
neocolonial no início de sua carreira para depois de filiar a arquitetura
moderna. No seu caso, entretanto, a crítica ao neocolonial não parece tão
ferrenha quanto a promovida por Lucio Costa, a ponto do arquitetura esta-
belecer vínculos entre os dois movimentos. Ver Santos, Paulo Ferreira. A
Influência do Neocolonial na Arquitetura Moderna do Brasil. Conferência
no Instituto dos Arquitetos do Brasil, 1951.
96 Monteiro Lobato apoiou a campanha de arte tradicional de Ricardo Severo
e sobre ela dedicou uma série de artigos. Ver Chiarelli, Tadeu. op. cit.
97 Intelectual que se vinculou ao neocolonial até o final da década de
1920, quando então reviu a sua posição e foi aos poucos se aproximando
da arquitetura moderna. Severo, aliás, foi uma referência importante na
construção de seu estudo sobre a arte religiosa no Brasil. Sobre as relações
entre Mário, Severo e o neocolonial ver do próprio escritor A Arte religiosa
no Brasil. São Paulo, Experimento/ Giordano, 1993; Aspectos das Artes
Plásticas no Brasil. São Paulo, Martins/ Brasília, INL, 1975 e “Arquitetura
Colonial”. Arte em Revista, no. 4, ano 2, ago. 1980.
98 Ver Amaral, Aracy. Artes Plásticas na Semana de 22. São Paulo, Ed.
34, 1998.

95 revista do ieb n 43 set 2006


teza que animava e era alimentada por uma série de via-
gens de busca das fontes primitivas da cultura brasileira,
que ocorreram entre as décadas de 1910 e 1920, e que não
se restringiram ao meio arquitetônico.99 As viagens reali-
zadas pelo pintor José Wasth Rodrigues (1891-1957) 100 e os
arquitetos Felizberto Razini (1881-1976) 101 e Lucio Costa não
foram as únicas, mas são exemplares do intuito central das
incursões pelo país no campo da arquitetura. Além do de-
sejo de conhecer e analisar a produção artística do passado,
essas viagens tinham como objetivo procurar um manan-
cial de inspiração que desse sustentação ao projeto român-
tico de constituição de uma arte que fosse ao mesmo tempo
nacional e contemporânea. O que parecia interessar essen-
cialmente aos artistas e intelectuais do período era a arti-
culação entre as manifestações artísticas do passado com os
projetos culturais que eles começavam a esboçar.102 E aí a
reconstituição de nossa história da arquitetura assumia um
papel estratégico.
Nessa reconstituição, a prevalência de uma mesma
periodização presente nos escritos de Severo, Wasth Rodri-
gues, José Marianno Filho, Mário de Andrade e Lucio Costa
é curiosa. Para todos, nossa tradição arquitetônica fora len-
tamente se constituindo desde o descobrimento do Brasil,
para desabrochar com toda exuberância e autenticidade
entre os séculos XVII e XVIII, sobretudo em Minas Gerais.
O verdadeiro caminho seguido pela arquitetura brasileira
ao longo desse período, teria sido interrompido no século
XIX por um ecletismo cosmopolita estranho ao “meio” e as
“tradições” nacionais. As divergências começam a aparecer
justamente neste ponto.
Para uns, como Severo e Marianno, a verdadeira atu-
alização da arquitetura brasileira propiciada pela retomada
do fio da meada “tradicional” interrompido com o ecletismo,
se dava com aquilo que ficou conhecido como o neocolo-

99 Meyer, Marlyse. “Um Eterno Retorno: as Descobertas do Brasil”.


Caminhos do Imaginário no Brasil. São Paulo, Edusp, 1993, p. 19-46.
100 De suas viagens resultou o livro, Rodrigues, José Wasth. Documentário
Arquitetônico Relativo à Antiga Construção Civil no Brasil. Belo Horizonte:
Ed. Itatiaia/ São Paulo: Edusp, 1979, publicado originalmente nos anos
1940.
101 Lemos, Carlos A, “O Ecletismo em São Paulo”. Ecletismo na Arquitetura
Brasileira. São Paulo, Nobel/ Edusp, 1987, pp. 68-103.
102 Gomes Jr., Guilherme Simões. Palavra Peregrina: o Barroco e o
Pensamento sobre as Artes e Letras no Brasil. São Paulo, Edusp, 1998.

96
nial. Para outros, como Lucio Costa e Paulo Santos, isso só
ocorreria de fato com o advento do moderno.
Outro ponto interessante de confronto se dá com re-
lação à constituição étnica da arquitetura brasileira. Se em
Severo a figura chave era a do colonizador português que no
Brasil se aclimatara reinventando a arquitetura de sua terra
natal conforme o clima e os meios disponíveis, em Mário
de Andrade quem se sobressai é o mulato, especialmente re-
presentado por Aleijadinho e Valentim.103 Ademais, desde a
viagem a Minas com Cendrars em 1924, o crítico vinha de-
senvolvendo o conceito de nacionalismo universalista, a
partir do qual, “podia religar sem constrangimentos a infor-
mação européia de vanguarda com a pesquisa etnográfica,
psicológica e folclórica mais atual”.104 Mário, diferentemente
de Severo, não via o estrangeiro como uma ameaça. Ele o
pensava a partir de sua condição de ser brasileiro e, portanto
com um ponto de vista outro que transformava a informação
que chegava de outros países. Lucio Costa também enfatiza
a contribuição dos negros, índios e mestiços no “amoleci-
mento” da matriz arquitetônica portuguesa, notado por Gil-
berto Freyre em outros campos da vida nacional.105 E como
Mário, seria menos avesso à contribuição estrangeira que o
engenheiro português e Marianno, desde que tal contribuição
fosse bem assimilada.
As coincidências e divergências entre os discursos
destes engenheiros, arquitetos, artistas, escritores e inte-
lectuais, reforça a complexidade e a ambigüidade do debate
acerca do moderno e do nacional no Brasil em curso na pri-
meiras décadas do século XX. Em sua trajetória, Severo pa-

103 Andrade, Mário de. A Arte Religiosa no Brasil. São Paulo,


Experimento/ Giordano, 1993; Idem, “Aleijadinho: posição histórica”. O
Jornal, Rio de Janeiro, ed. especial sobre Minas Gerais, 1928. Fernanda
Peixoto faz ainda interessantes considerações, a partir da leitura de Roger
Bastide e de seu “diálogo” com Mário de Andrade, sobre como este entendia
o barroco e a constituição de uma arte brasileira. Sobre isto ver Peixoto,
Fernanda Arêas. “Roger Bastide e o modernismo: diálogo interessantís-
simo”. Diálogos brasileiros: uma análise da obra de Roger Bastide, São
Paulo, Edusp/ FAPESP, 2000, pp. 45-92.
104 Lira, José Tavares Correia de. Localismo Crítico e Atualidade na
Arquitetura. Mário de Andrade e a informação moderna (1925-1929). Texto
mimeografado, 2002.
105 Costa, Lucio. “Documentação Necessária”. Revista do Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, n. 1, 31/09/1937.
Como aponta Henrique Mindlin em seu texto “Gilberto Freyre e os
Arquitetos”. Arquitetura, São Paulo, 1962, n. 4, Freyre teve grande influência
sobre os arquitetos modernos nas décadas de 1930/40, sobretudo no que diz
respeito a definição do que seria a verdadeira arquitetura brasileira.

97 revista do ieb n 43 set 2006


rece justamente sintetizar e exibir lados e versões confli-
tantes naquele momento, aproximando a partir das noções
de tradição, nação e modernização artística, movimentos
que a princípio estariam em lados radicalmente opostos
como o ecletismo, o neocolonial e o moderno, ou agentes tão
distantes como os intelectuais do Instituto Histórico e Ge-
ográfico – que acolhem com entusiasmo suas idéias– e os
modernistas paulistanos – que num primeiro momento o
aclamam, para depois o criticarem. Se é possível perceber,
por um lado, o quanto o moderno e o modernismo naquele
momento reivindicam o novo e uma nova forma de falar
sobre o Brasil beneficiando-se surpreendentemente de idéias
e sugestões caras ao século XIX - como as de tradição e
evolução, apenas para citar duas bastante influentes no pe-
ríodo – por outro, fica clara a importância de se pensar a
produção da época a partir de um solo de disputas em torno
dessas e outras noções, no qual o campo de batalha é a
arena social.

98
A rima nos cantos populares:
contribuições para o rimário brasileiro
Álvaro Silveira Faleiros *

As fronteiras
Estudar um fenômeno como o uso da rima nos cantos
populares do Brasil é uma tarefa gigantesca, porém neces-
sária, devido à sua riqueza e ao desconhecimento do assunto
que ainda impera. Nas linhas que seguem, fazemos um es-
tudo apenas das características presentes na rima da poesia
popular e que não se manifestam na poesia “culta” (de tra-
dição escrita), uma vez que esses traços encontram-se apa-
gados dos tratados de metrificação, assim como dos dicio-
nários de rima, como se o português falado não produzisse
formas próprias de poesia.
Entretanto, muitos desses traços caracterizam parte
importante da poesia cantada no Brasil, manifestação artís-
tica por meio da qual o horizonte da rima e da poesia cons-
tantemente se renova e se amplia. Como já afirmava Erza
Pound1: “A música apodrece quando se afasta da dança. A
poesia se atrofia quando se afasta muito da música” e essa
musicalidade se projeta na voz.
Dessa maneira, nosso estudo visa a catalogar as prin-
cipais contribuições fonéticas2 que se devem, sobretudo, ao
caráter oral dessa poesia. Para tal, é necessário, primeira-
mente, definir o que entendemos por rima.

A rima
Entende-se por rima a repetição, no final dos versos
de um poema, de uma série de sons iguais ou similares. A
rima é, como afirma Chociay3, “um processo de reiteração
fônica que ocorre geralmente, a partir da última vogal forte
de cada verso”. A repetição desse conjunto de sons, segundo
Nóbrega4 , pode se resumir a um único som, consonântico ou
vocálico, ou se estender a um conjunto mais amplo de fo-
* Professor da UnB e Doutor em Letras pela FFLCH-USP

1 Pound, Ezra. ABC da Literatura, São Paulo, Cultrix, 1977, p. 61.

2 As contribuições sintáticas e lexicais, também relevantes na ampliação


do rimário brasileiro, serão tratadas em estudos futuros.

3 Chociay, Rogério. Teoria do verso. São Paulo, McGraw-Hill do Brasil,


1974, p. 174.

4 Nóbrega, Mello. Rima e poesia. Rio de janeiro: I.N.L., 1965.

99 revista do ieb n 43 set 2006


nemas, combinados de diferentes formas. Essa reiteração fô-
nica, que se dá entre dois ou mais versos, pode ocorrer tanto
dentro como no final dos mesmos.
Nas linhas que seguem concentramo-nos apenas nas
reiterações fônicas em que há a repetição de todos os fo-
nemas a partir da última vogal tônica de cada verso, ou
seja, nas rimas chamadas de consoantes ou de soantes. Nossa
escolha deve-se ao fato de que são essas hoje as rimas mais
praticadas na poesia popular e são elas, também, que encon-
tram-se sistematizadas nos dicionários de rimas. A elas cor-
responde, pois, o que comumente chama-se rima.
Para que ocorra uma rima consoante completa (ou per-
feita5 ) é necessária a reiteração total de sons a partir da última
vogal tônica do verso. Há, porém, uma antiga discussão sobre
o que caracteriza a reiteração total de sons, já que a grafia
nem sempre corresponde ao que se pronuncia. Esta é, aliás,
uma fronteira importante entre os estudos clássicos da rima e
os estudos lingüísticos. Nestes, a rima, por ser um fenômeno
fonético, é classificada a partir da fala e não da grafia.

As rimas aparentemente incompletas


Mattoso Câmara Jr6 identificou um conjunto de rimas
que são apenas aparentemente incompletas (Câmara Jr. utiliza
o termo imperfeitas). Esse conjunto de rimas envolve, de um
lado, vocábulos com a presença, em sua grafia, do par oposi-
tivo o/u. E, de outro lado, vocábulos com a presença, em sua
grafia, do par opositivo e/i. Nesses dois casos, em português,
encontramo-nos, muitas vezes, diante do mesmo som.
No primeiro par, temos palavras em que a vogal o, em
posição fraca, corresponde, de fato, ao som [u]. Como nas
rimas mágoa/água, árgus/largos, pérolas/cérulas. O mesmo
ocorre com o segundo par, em que a vogal e se pronuncia [i]
em sílaba postônica, como em cálix/vales, área/ária, saté-
lite/impele-te, moléstia/veste-a, espécie/tece.
Há ainda a fusão de sons quando do encontro de duas
vogais o, como em risonhos/reponho-os. A vogal i e a vogal
e podem também se fundir, como em visse/superfície, pla-
nície/velhice, produzindo, assim, rimas em -isse.
Câmara Jr. trata, por fim, dos ditongos. Por um lado,
os ditongos presentes em rico/oblíquo, acabou-se/doce e
vou/avô, em que o u se funde ao o, e que produzem, respec-
tivamente, rimas em -ico, -ôce e –ô e, por outro lado, os di-
5 Seguindo as orientações de Mello Nóbrega (1965), preferimos o termo
rima completa, ao invés de rima perfeita, por ser o primeiro um termo mais
técnico e menos valorativo, já que acreditamos que a “perfeição” de um
poema se deve ao seu conjunto e não à manutenção rígida de uma regra.

6 Câmara, Joaquim Mattoso. “A rima na poesia brasileira”. Para o Estudo


da Fonêmica Portuguesa. Rio de Janeiro, Simões, 1953, pp.119-165.

100
tongos existentes em vejo/beijo, acho/baixo, em que a vogal
i desaparece diante das consoantes alvéolo-palatais, já que
o ponto de articulação do i e dessas consoantes é o mesmo e
que resultam nas rimas soantes -ejo e -acho.
A vogal i, entretanto, não se anula quando precede
consoantes anteriores, como nos pares foi-se/doce, preta/
deita, meiga/chega, que são rimas incompletas.
De todo modo, o que nos parece revelador nesse es-
tudo é que, ao debruçar-se sobre os aspectos da fala, Mattos
Câmara Jr. identificou uma série de relações fônicas que
permitem um melhor entendimento das escolhas feitas pelos
poetas que, nos casos acima, procuraram uma reiteração
completa dos sons e não uma nuança fônica ou uma mu-
dança no padrão sonoro, como sugere a grafia.
Ressaltamos, ainda, que há uma diferença importante
entre as semelhanças fônicas existentes em pares como má-
goas/águas, área/ária, vejo/beijo, vou/avô e aquelas que se
encontram em pares como acho/baixo, acabou-se/doce ou
ainda o par rico/oblíquo.
Os quatro primeiros pares são considerados equivalências
fônicas características da língua portuguesa tanto na norma
popular quanto na norma culta, tanto é que nos Dicionários
de Rimas, desde o de Costa Lima, do século XIX, considera-se
essas rimas como “rimas perfeitas”. Os outros três pares – e, so-
bretudo, o último – não são unanimemente aceitos como carac-
terísticos da norma culta, tanto é que não aparecem como equi-
valentes em todos os dicionários de rimas consultados7.
De fato, a questão que se coloca é, a partir de que
norma considera-se a língua e, neste trabalho, indicar as
rimas que constituem-se a partir da fala popular. É, pois,
necessário, inicialmente, indicar as contribuições fonéticas
advindas desse registro.

Contribuições fonéticas dos falares brasileiros


Desde o século XIX, uma série de pesquisadores estuda
e compila as características da fala popular brasileira. O pri-
meiro a publicar em livro suas considerações e traçar um pa-
norama dos trabalhos que lhe precederam foi Sílvio Romero8.

7 Foram consultados os dicionários de rimas de Lima, Costa. Dicionário


de rimas. Porto, Lello, s.d.; Castelões, Visconde de. Dicionário de rimas.
Porto, Domingos Barreira, s.d.; Castro, Almerindo Martins de. Dicionário
de rimas. Rio de Janeiro, Científica, s.d.; Passos, Guimarães. Dicionário
de rimas. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1913; Fernandez, José Augusto.
Dicionário de rimas. 6. ed. Rio de Janeiro, Record, 1999. O único par que
não consta em nenhuma das obras é a rima rico/oblíquo.

8 Sílvio Romero. “Transformações da língua portuguesa na América”,


Estudos de poesia popular do Brasil. Petrópolis, Vozes,1977, p.234-354.

101 revista do ieb n 43 set 2006


Na parte dedicada às alterações fonéticas, Sílvio Ro-
mero9 tece algumas considerações sobre processos que
atuam no final dos vocábulos.

Quanto às VOGAIS, afirma:


• José de Alencar já havia notado a nossa tendência de
pronunciar o e final como i e o o como u.
• No Brasil, no ditongo ai, pronunciamos cáixa, báixo, quase
como caxa, baxo, abrindo o a e fazendo soar pouco o i.
Em relação às CONSOANTES:
• A supressão de uma ou mais letras no final das palavras
(aférese) é usual entre os brasileiros, principalmente ca-
boclos e caipiras, que dizem botá, ardê, subi, comendo
invariavelmente os rr finais.
• Não é só o r final que o povo suprime, o mesmo faz com
qualquer outra consoante; ex.: home, corage, virginá, ge-
nerá, por homem, coragem, virginal, general.
• A permuta do l pelo r, a apócope do r, a queda da mo-
lhada lh, “[...] porquanto encontramos entre o povo vozes
como estas: farsa, carça, teia, teiado, muié,[...] em vez de
falsa, calça, telha, telhado, mulher”.

Sílvio Romero organiza, no mesmo volume, um “pe-


queno glossário de termos estropiados pelo jargão das
classes baixas”, do qual destacamos: mesmo-mêmo; bênção-
bença; senhor-sinhô, senhora-sinhá, pássaro-passo, árvore-
arve. Trata-se, na maioria das vezes, de um conjunto de
transformações comuns aos falares do Brasil.
No início do século XX, outros estudos mais sistemá-
ticos10, foram realizados, nos quais nos autores procuraram,
não apenas identificar as características da fala popular, mas
explicá-las por meio da filologia e da influência de línguas
indígenas e africanas. Desse modo, Marroquim, por exemplo,
identificou, já nas origens do português, transformações do l
em r, como em platu(m)-prato, nobile(m)-nobre.
Em relação ao “dialeto caipira”, há alterações, no
final das palavras, ainda não mencionadas e que foram
identificadas por Amaral:
9 As considerações de Sílvio Romero, aqui resumidas, foram selecionadas
por serem aquelas que tratam de mudanças fonéticas nos finais das pala-
vras e, dessa maneira, inf luenciam diretamente a rima. As contribuições
sintáticas e lexicais serão tratadas em trabalhos futuros.

10 Amaral, Amadeu. O dialeto caipira. São Paulo, “O Livro”, 1920;


Nascentes, Antenor. O linguajar carioca. 2. ed. Rio de Janeiro, Rex,
1953; e Marroquim, Mário. A língua do Nordeste. São Paulo, Cia Editora
Nacional, 1934.

102
No que se refere às VOGAIS:
• Segundo o autor, “Nos vocábulos esdrúxulos, a tendência
é para suprimir a vogal da penúltima sílaba e mesmo
toda esta, fazendo grave o vocábulo (ridico = ridículo,
legite = legítimo, cosca = cócegas, musga = música)”.
Acrescente-se11 relâmpago-relampo, mármore-marme,
pólvora-porva, pêssego-pesco, além de pássaro-passo, ár-
vore-arve já identificados por Sílvio Romero.
Note-se que, de fato, essa tendência já é encontrada na
formação do latim vulgar. Entretanto, Amaral, fala em su-
pressão da penúltima sílaba, quando, na verdade, trata-se de
supressão de vogais de sílabas postônicas e mesmo de todas
elas, e não necessariamente apenas da penúltima (casos de
síncope e de apócope).
• O grupo vocálico õu (om), “nas palavras bom, tom, som
muda-se em ão: bão, tão, são”12 .

Quanto às CONSOANTES:
• A consoante d cai, quase sempre, na sílaba final das
formas verbais em -ndo, como em anadano, veno, caino e
pôno para andando, vendo, caindo e pondo.
Antenor Nascentes13, mais sistemático que seus ante-
cessores, permite identificar, entre outros, os seguintes pro-
cessos que influenciam os segmentos rimantes:

Quanto às VOGAIS:
• O a pode transformar-se em e: inveja-inveje.
• Há desnasalizações do a (e do e): órfã-orfa, imã-ima,
(viage, vertige, home, onte...)

Já nas SEMICONSOANTES:
• O y postônico, precedendo imediatamente a vogal final, é
absorvido: matéria-matera, história-histora, dúzia-duza,
polícia-puliça, glória-glora, espécie-espece, superfície-su-
perfice, colégio-culejo, necrotério-nicrotero.
• O w é atraído ou absorvido: régua-reuga, estátua-estauta,
tábua-tauba ou taba, nódoa-noda.

• O grupo ua pode transformar-se em o: quanto-conto,


quando-condo.
11 Cf. Nascentes, 1953, p.64.
12 Idem, p.36.
13 Idem, p.27-70.

103 revista do ieb n 43 set 2006


Nos DITONGOS em:
• ão, final e átono, perde o primeiro elemento: órfão-orfo,
órgão-orgo, sótão-soto. Nascentes assinala que o ditongo,
em bênção-bença, reduz-se a a devido à flexão feminina.
• ão, grafado -am, nos verbos, dá um ou o: foram-forum-
foro.

As CONSOANTES passam pelas seguintes transforma-


ções ainda não assinaladas:
• l final, além de ser absorvida, pode vocalizar-se: qual-
quá-quau, papel-papé-papéu, Brasil-Brasi-Brasiu.
• O n palatal (nh) pode se despalatalizar: companhia-com-
pania.
• Consoante seguida de r, ele tende a desaparecer: com-
padre-cumpade, negro(a)-nego(a), registro-registo,
quatro-quato.
• Redução do gn a n: repugnar-repuná, maligno-malino.
Nascentes faz, em seguida, referência aos “diversos fe-
nômenos fonéticos”, a maioria dos quais já estudados (afé-
rese, síncope, apócope, (des)nasalização, (des)palatalização).
No que se refere aos segmentos rimantes, cabe-nos, por fim,
ressaltar os seguintes fenômenos fonéticos:
• Epêntese, em geral de r: leque-lecre, lagosta-lagostra, es-
talar-estralá.
• Paragoge, em palavras terminadas em plosivas: sob-sôbi,
Isaac-Isaque.
• Na palavra boi pode haver paragoge (o) para marcar o
gênero: boi-boio.
• Metátese (interversão): lagarta-largata, teatro-triato, pro-
porção-porpoção.
Enfim, Marroquim14 , em seu estudo sobre a língua do
Nordeste, não aponta nenhum fenômeno que não tenha sido
aqui enumerado – exceto algum caso particular, ex. regime-
rijume – o que evidencia o fato de que esses fenômenos
são, em sua grande maioria, comuns a todas as regiões do
país, uma vez que retiramos os exemplos de estudos sobre
o linguajar carioca e o dialeto caipira. É claro que, em al-
gumas regiões, o mesmo fenômeno pode aplicar-se de modo
mais amplo ou não. Assim, o caipira vai ampliar o uso do

14 Marroquim, 1934.

104
r (rima, por exemplo, ir/Brasir), já no Nordeste a rima seria
em i. Procuramos apontar essas distinções na apresentação
dos textos, porém, antes de fazê-lo, é necessário distinguir
os fenômenos fonéticos já incorporados à poesia “culta” da-
queles específicos da fala popular.

Rima e fonética na poesia culta e na poesia popular


Dentre os traços acima, há, de um lado, aqueles carac-
terísticos da fala do português, que se encontram, inclusive,
sistematizados nos dicionários de rimas e que são utilizados
freqüentemente como recurso na poesia escrita e, do outro,
as características fonéticas específicas do falar popular do
Brasil, consideradas como “erros” de acordo com o “padrão”
do português falado.
Fazem parte dos traços gerais da fala do português,
os processos fônicos tratados por Matoso Câmara e alguns
encontrados em Nascentes, todos eles já assimilados na po-
esia de língua culta, desde o século XIX, dentre os quais
destacamos:
• Transformação do e e do o postônicos em e e u, respecti-
vamente;
• Supressão do i e do u nos ditongos (beijo-bejo, baixo-
baxo, caixa-caxa, pouco-poco, acabou-se-acabôce);
• Absorção do i nos ditongos suprefice-superfície, planice-
planície;
• Ditongação do a e do e, diante de s e z (paz-paiz, mas-
mais, vez-vêis, mês-mêis).
• Vocalização da l final (qual-quau, papel-papéu, Brasil-
Brasiu);

Já os outros traços, proscritos em um registro formal,


são altamente produtivos na poesia popular de todas as re-
giões do Brasil. Dessa maneira, identificaremos, em poemas
populares, rimas nas quais se estabeleçam reiterações fô-
nicas entre termos usuais da língua e outros com as carac-
terísticas da fala popular acima descritas, ou seja, rimas que
só são possíveis graças às transformações fonéticas.
Ao longo de nosso estudo, notamos que a grande
maioria dos fenômenos fonéticos diz respeito, de fato, às so-
antes, ou seja, é, sobretudo, por meio de transformações que
envolvem as laterais, as vibrantes e as nasais que as pos-
sibilidades rímicas da poesia popular são ampliadas. Desse
modo, na apresentação, iniciamos com as transformações es-
pecificamente vocálicas e consonantais para, por fim, tratar
das modificações que envolvem as soantes.

105 revista do ieb n 43 set 2006


Os registros da poesia popular: da fala à escrita
Nos poemas produzidos pelos cantadores e repentistas,
pode-se dimensionar as possibilidades que as contribuições
fonéticas abrem na produção de poesia. Apresentamos uma
série de exemplos retirados de obras que cobrem boa parte
do território nacional15.
É importante notar que os métodos utilizados pelos
pesquisadores na transcrição dos versos não são sempre ri-
gorosos, dependendo, muitas vezes, da memória do folclo-
15 Às divisões por linguajares regionais (cf. Nascentes, 1953, pp. 18-26),
preferimos um agrupamento de acordo com as referências regionais encon-
tradas nos títulos e subtítulos das obras consultadas. Os exemplos foram
encontrados nos estudos pioneiros de Magalhães, Celso de. A poesia popular
brasileira. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 1973, de Romero, Sílvio.
Cantos populares do Brasil. Rio de Janeiro, José Olympio, 1954, e de Moraes
Filho, Mello. Cantares brasileiros: cancioneiro fluminense (parte poética).
Rio de Janeiro, Livraria Cruz Coutinho, 1900; nos estudos de abrangência
nacional, como os de Gallet, Luciano. Estudos de folclore. Rio de Janeiro,
Carlos Wehrs,1934; de Silva, Simões. Fragmentos de poesia sertaneja. Rio
de Janeiro, Gráfica de Jornal do Brasil, 1934; de Araújo, Alceu Maynard.
Folclore Nacional. São Paulo, Melhoramentos, 1964; e de Andrade, Mário
de. Ensaio sobre música popular brasileira. 3. ed. São Paulo, Martins Fontes,
1972. Alguns exemplos, representativos das cantorias do Norte, foram reti-
rados do trabalho de Salles, Vicente. Repente e Cordel: literatura popular
em versos na Amazônia. Rio de Janeiro, FUNARTE, 1985. Uma grande
parte dos textos provém de estudiosos da poesia popular do Nordeste como
Carvalho, Rodrigues. Cancioneiro do Norte. 3. ed. Rio de Janeiro, INL,1967;
Mota, Leonardo. Violeiros do Norte . São Paulo, Monteiro Lobato, 1925,
Cantadores. 2. ed. Rio de Janeiro, Ed. A Noite, 1953, e Sertão Alegre. Rio
de Janeiro: Ediouro, 1968; Cascudo, Luís da Câmara. Violeiros e canta-
dores. Rio de Janeiro, Ediouro, 1970 e Dicionário do folclore brasileiro.
9. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d.; Coutinho Filho, F. Violas e Repentes.
São Paulo, Saraiva, 1953; Campos, Eduardo. Cantador, musa e viola. Rio
de Janeiro, Americana, 1973; Batista, Sebastião Nunes. Poética popular do
Nordeste. Rio de Janeiro, Casa de Rui Barbosa, 1982. Wilson, Luís. Roteiro de
velhos cantadores e poetas populares do sertão. Recife, Centro de Estudos de
História Municipal, 1985. Ayala, Maria Ignez Novais. No arranco do grito.
São Paulo, Ática, 1988._______ . Cocos: alegria e devoção. Natal: EDUFRN,
2000. A poesia da bacia do São Francisco está representada pelas obras de
Trigueiros, Edilberto. A língua e o folclore da Bacia do São Francisco. Rio
de Janeiro, FUNARTE/Casa de Rui Barbosa,1977. Azevedo, Téo. Cultura
popular do Norte de Minas. São Paulo, Top Livros, 1979.e Souza, Oswaldo
de. Música folclórica do Médio São Francisco – Vol. I. Rio de Janeiro, MinC,
1979._______ . Música folclórica do Médio São Francisco – Vol. II. Rio de
Janeiro, MinC, 1980; A produção poética do Centro-Oeste foi coligida, sobre-
tudo, por BRASIL, Americano do. Cancioneiro de trovas do Brasil Central. 2.
ed. Goiânia, Oriente, 1973. As rimas caipiras foram colhidas nos trabalhos
de Amaral, Amadeu. O dialeto caipira. São Paulo, “O Livro”, 1920._______
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moda é viola: ensaio do cantar caipira. São Paulo, Arte e Ciência, 2000. As
rimas do Sul, por fim, foram retiradas de Meyer, Augusto. Guia de Folclore
Gaúcho. Rio de Janeiro, Aurora, 1951. e, sobretudo, de Lopes Neto, J. Simões.
Cancioneiro Guasca.2. ed. Rio de Janeiro, Globo,1960.

106
rista ou de sua interpretação. Entretanto, muitos desses
estudos são hoje as formas conhecidas, reproduzidas, de
cantos populares tornando-se, assim, parte do cancioneiro
popular brasileiro. Para a análise das rimas, deve-se, con-
tudo, considerar outras fontes, como as descrições lingüís-
ticas dos falares regionais.
É, também, necessário verificar que o modo de re-
gistro dos textos varia de folclorista para folclorista. Basileu
Toledo França16 , por exemplo, ao comentar a obra de Ameri-
cano do Brasil, assinala “a maneira inteligente com que foi
elaborada, fugindo ao registro fonético da língua dialetal”;
assim como fizeram os primeiros pesquisadores, dentre os
quais Sílvio Romero. Já Cornélio Pires – considerado por
Mário de Andrade17, um “observador agudo, das poesias e
dos diferentes processos de poética cantada dos caipiras”
apresenta os versos: “conservando-lhes as corruptelas, bra-
sileirismos, defeitos de rima e, muitas vezes, má metrifi-
cação, para não lhes tirar o sabor especial e a cor local”.
Essa variação na forma de registro da poesia cantada
popular faz com que não seja possível fiar-se cegamente nas
transcrições escritas encontradas nos livros, uma vez que, em
um mesmo autor, o modo como as “corruptelas” são escritas
ou destacadas (itálicos, aspas, negritos) variam consideravel-
mente, mesmo em autores como Cornélio Pires. Por exemplo,
na moda “Uma briga no Veado”, há a seguinte estrofe:

Dia 20 de janeiro / Foi dia de mau destino


Lá na capela do Veado / Vi o povo reunindo ;
Na hora que eu cheguei / Eu ouvi toque de sino
O padre dizia a missa, / O povo estava ouvindo

Nela, Cornélio Pires18 escreve ouvindo e reunindo


que, por sua vez, “rimam” com destino e sino. Ora, Amadeu
Amaral19 nos ensina que, no dialeto caipira: “a consoante
d cai, quase sempre, na sílaba final das formas verbais em
ando, endo, indo”; fato que o próprio Cornélio Pires registra
na escrita de outros poemas (todos com rimas em -ano),
como o “A.B.C. do solteirão”:

Bem queria me casá / Quando eu tinha vinte ano,


Eu ainda era bobo / Não conhecia os engano ;
Fui feliz, não me casei, / Livrei de andá penano.
16 Americano do Brasil, 1973, p.LVIII.

17 Andrade, 1972, p.187.

18 Pires, s.d, p.343.

19 Amaral, 1920, p.27.

107 revista do ieb n 43 set 2006


Acrescentamos que, no repertório caipira, há exemplos
de rimas em -ino, como na famosa “O menino da porteira”,
ou ainda na moda de viola “Violeiro”, de Tonico e Tinoco20 :

Fiquei véio aqui na roça, passei a vida carpino


Canto moda recordando o meu tempo de minino

A provável irregularidade na escrita, mesmo na obra


de um “observador agudo” como Cornélio Pires faz com que
nos perguntemos se ele, ao registrar a rima cabocro com
coco/choco/loco, não se esqueceu de omitir o r, uma vez que,
como assinala Antenor Nascentes21, o desaparecimento da
vibrante é corrente na fala popular em encontros consonan-
tais: negro-nego, compadre-cumpade; ou se, como assinala
Amadeu Amaral 22 , no dialeto caipira, a forma é mesmo ca-
bocro e não cabôco, esta, uma forma “estranha a S.P.”. De
todo modo, no Nordeste, mesmo entre os mais “cultos” re-
pentistas, é recorrente o uso de cabôco23.
Enfim, como nosso objetivo é ampliar ao máximo as
possibilidades rímicas, ainda que essas sejam características
de uma única região do país e como não se trata, neste ar-
tigo, de aprofundar a discussão sobre a qualidade e a pre-
cisão das reproduções escritas dos cantos populares, limi-
tamo-nos aos exemplos em que as marcas da fala foram re-
produzidas nas publicações24 .

Contribuições da poesia popular para o rimário brasileiro


Como assinalamos acima, a distinção entre consoantes
puras e soantes permite-nos agrupar as transformações foné-
ticas de uma forma que nos parece mais clara, pois aproxima
os casos mais recorrentes e producentes no rimário popular.

A) VOGAIS
Vogais simples
As vogais simples podem ser substituídas ou inver-
tidas, originando rimas como:

20 Tonico e Tinoco, 1984, p.126.

21 Nascentes, 1953, p.55.

22 Amaral, 1920, p. 99.

23 Tanto é que Batista (1982, p.15) assinala a existência de um gênero


poético, chamado “Brasil-Caboclo”, em que sistematicamente explora-se as
possibilidades rímicas em –ôco. Cf. também Ayala, 1988, p.131.

24 Uma proposta de reescritura de poemas colhidos pelos folcloristas com


base em estudos lingüísticos é um campo de estudos a ser explorado e um
instrumento de reconhecimento da produtividade da língua oral brasileira.

108
• ime = ume. Marroquim 25 colhe o exemplo:
No dia que o nego casa / Deve botá seu rijume
As moça é como as navaia / Fino ou grosso tem seu gume
• omo = ome. Em um coco baiano da bacia do São Francisco26:
O rei da casa é o home
O rei da laranja é o gome
• ume = umo. Como no poema “A Caipora”27:
Mais, aí Maria, o phantasma / Veio bater no meu rumo,
Rindo-se muito e dizendo: / Dá-me uma pêia de fumo.
E c’o uma faca afiada / Batendo em mim com seu gumo.
• ude = uda. Assim, no “ABC do povo da Caatinga”28 :
Y – pissilone é letra grega / pra home que estuda ;
gente daquela catinga / já vi cabeça mais ruda ;
pra quem tem atividade / chega hoje, amanhã muda.

Ditongos
O processo mais produtivo envolvendo as vogais é a
absorção do i e do u nos ditongos. Esse processo, na poesia
culta, como assinala Câmara Jr.29, resume-se aos ditongos ie
e uo, em posição postônica. Há, ainda, na poesia popular:
• aulo = alo. Como em “Triste Partida”30 :
Eu vendo meu burro, meu jegue, meu cavalo,
Nós vamo a Sã Palo
Vivê ou morrê.
• ânsia = ança. Num desafio com Neco Martins, o cego Fran-
cisco Sales, por ter desconsiderado o colega, faz mea culpa31:
Colega Neco Martins, / Faltou-me esta lembrança,
Que hoje peço desculpa, / Dessa minha ignorança
• égio = éjo. Como nos versos do piauiense chamado Cão
Dentro32 :

25 Marroquim, p. 1934, p.41.

26 Trigueiros, 1977, p.80.

27 Carvalho, 1967, p.158.

28 Souza, 1980, p.136.

29 Câmara Jr., 1953.

30 Assaré, Patativa do. Inspiração nordestina. Rio de janeiros, Borsoi, 1956, p.5.

31 Carvalho, 1967, p.244.

32 Mota, 1968, p.212.

109 revista do ieb n 43 set 2006


Derrota de home é muié, Calango pintado é Tejo;
Traíra é passo da lama, / Caçote é passo do brejo...
Este caboclo Cão Dentro / Pra cantar tem prevelejo!
O mesmo ocorre em sextilhas caipiras como “O patrão
veiaco” em que se rima preveléjo/coléjo/brejo.
• ênção = ença. No par bênção-bença, como no Gabinete:
Sinhô dono da casa, dê licença
Para eu dá nesse cabra em seu salão,
Fazê ele beijá a minha mão
De joêio pedi a minha bença!
• ência = ença. Em uma cantoria Daudeth Bandeira de-
clama:
Cazuza bebeu cachaça / i uns bebu pa fazê graça / lhi pe-
garu na dispensa
i raparu a cabilera / du donu da residença
• êmea = eme. Como no verso colhido por Anselmo
Vieira 33 em que, num desafio com Chica Barboaa, um
cantador piauiense lhe disse:
Eu sou canguçu macho, / Tu és canguçu feme...
Se piso em riba da serra, / Em baixo lajero treme!
• éria = era. No “ABC dos Casados”34 :
Çalvo em reservos / os que trabalha prospera
pra não fica na putaria, / pra não fica na miséra.
• ério = éro. Na “Cantiga do Vilela”, cego Sinfrônio canta a
seguinte resposta do delegado ante a resistência de Vilela
em se entregar à polícia 35:
Vilela tem paciença, / Vigie que eu falo séro:
Desta feita você segue, / (Isto eu quero porque quero)
Ou em corda p’r’a cadeia / Ou em rede pro cimitéro
• ícia = iça. Zé Limeira, com sua lógica própria, canta 36 :
Jesus nasceu neste mundo, / Só para fazer justiça;
Com doze anos de idade, / Discutiu com a doutoriça;
Com vinte anos depois, / Sentou praça na puliça.
• ício = iço. No “Romance do Boi da Mão de Pau”, de Fa-
bião das Queimadas37:
33 Mota, 1953, p.211.

34 Souza, 1980, p.121.

35 Mota, 1953, p.39.

36 Ayala, 1988, p.134.

37 Cascudo, 1970, p.89.

110
Pegaram a me aperriar, / Fazendo brabo estrupiço,
Fabião na casa dele, / Esmiuçando por isso,
Mode no fim da batalha / Pude fazê o serviço...
• ória = ora. Fabião das queimadas, descrevendo a vaque-
jada canta 38 :
Dê-me lembrança ao cavalo / Do senhor José Lebora,
Qu’eu sei que é corredô / Pra chegá boi não demora,
Mas porém nas minhas unha / Não pôde cantá vitora...
• ório = oro. Bernardo Cintura, na época em que faltava
troco no mercado, imaginou um caipora governador, Fu-
trica, sobre qual escreveu a seguinte décima 39:
No lugá aonde eu moro / Lastimando a triste sorte,
Tem dia que peço a morte, / Padeço, gemendo, choro...
Deu doze preparatoro
No culejo qui estudô... / É formado dotô...
Nesse país brasileiro / Não há quem troque dinheiro...
– Futrica é governadô.

Merece atenção o processo de absorção do i dos di-


tongos ia e io, precedidos de nasal, uma vez que ocorre,
além da absorção, a palatalização, como em Antônio-An-
tonho; motivo pelo qual enumeramos os exemplos junta-
mente com as nasais.
O desaparecimento de vogais postônicas faz com que
algumas proparoxítonas percam a sílaba postônica. Trata-
se de um processo já identificado na passagem do latim para
o latim vulgar40. Na poesia popular esse processo permitiu o
surgimento das rimas:
• âmpago = ampo. No final do poema “Inverno”41, canta-
se a tempestade:
(... ) Abre e fecha o relampo
Estremece o campo
E corre a zelação
• írito = ito. O menestrel João Mendes, ao descrever a che-
gada de Padre Cícero a Juazeiro, canta42 :
Achou tudo acorrentado / Pelos laço do Maldito,
E Satanaz ensinando / Bebê, Mata, dizê dito,
P’ra nos levá p’r’o inferno, Condená o nosso espríto.

38 Idem, p.83.

39 Carvalho, 1967, p.383.

40 cf. Marroquim, 1934, p.43.

41 Idem, p.128.

42 Mota, 1953, p.173.

111 revista do ieb n 43 set 2006


• ízimo (ou íssimo) = ismo. Na “Obra de Ricarte”43, há a
seguinte quadra:
Se pego 10 de pau, / É conta do algarismo,
Foi conta que Deus deixou / De 10 se pagar o dismo
• ôncavo = onco. É rima produzida por Preto Limão em
resposta a Bernardo Nogueira44 :
Me chamam preto limão, / sou turuna no reconco,
quebro jucá pelo meio , / baraúna pelo tronco,
cantador como Nogueira / tudo obedece meu ronco.
Enfim, pode surgir um novo ditongo, permitindo, sobre-
tudo, rimas em:
• ença = ência. Em uma congada mineira, durante a Em-
baixada, representação dramática das lutas do Rei do
Congo, Roldão dirige-se ao General45:
Ò, meu nobre generá, / chega na minha presência
pra nóis tê uma conversa / debaxo de uma consciência.

b) CONSOANTES
Tratamos aqui exclusivamente das transformação das
consoantes puras, isto é, os processos em que não estão im-
plicadas laterais, vibrantes e nasais.
O mais comum, presente em todas as regiões do país,
é o apagamento do s final (aférese), não só dos plurais, mas
de vocábulos terminados em s, produzindo rimas como, por
exemplo:
• enos = eno. Como nos versos de José Matos 46 , em que
pede na feira:
Amigo, dê-me um preá
Seja grande ou pequeno,
Prometa sequer ao meno
Amigo, dê-me um preá.
• ovas = ova. Como no coco dos cantadores de Camalaú47:
Meu pé de milho arvoredo / que todo ano renova
São João diga a São Pedro / que me mande boas nova’

43 Carvalho, 1967, p.196.

44 Cascudo, 1970, p.180.

45 Araújo, 1964, p.249.

46 Campos, 1973, p.45.

47 Ayala, 2000, p.211.

112
Lembramos que o som [s] final pode ser escrito com
z e, muitas vezes, como vimos, ditonga-se a vogal que o
precede (paz-pais, três-trêis, voz-vóis, luz-luis). Na poesia
popular, com a supressão do s chega-se aos seguintes di-
tongos:
• ais = ai. No coco de Seu Tuninha48 , temos:
Tuninha aonde canta / O povo dali não sai
Os pagão que tá chorando / Se cala não chora mái
• az [ais] = ai. Como no coco de Dona Odete49:
A menina de Goiana / não se alumeia com gái
s’alumeia com a catemba / o coqueiro quando cai
• ez [eis] = ei. Comum nas modas de raízes, como nesta de
Tonico e Anacleto Rosas50 , em que um caboclo reage ao
assédio sexual de um ricaço contra sua mulher, logo de-
pois de ouvir a história contada pela mulher em prantos:
Eu piquei de espora meu burrão tordio / rodei corrupio,
pa trais eu vortei.
Eu cheguei na praça, lá estava o ricaço, / contando com
graça o que ele fei.
Eu já fui chegando e o cabra surrando./ Puxou o revórve,
mai tempo não dei.

c) SOANTES
Parte importante dos processos fônicos dos falares popu-
lares envolvem as soantes. Alguns deles são específicos das na-
sais e das laterais como a despalatalização. Da mesma forma, há
uma série de processos que são comuns às laterais e vibrantes.

Laterais
A absorção do l em tônica final produz rimas com
todas as vogais. Mattoso Câmara (1953) já havia notado a
assimilação da u em ul (azul=azuu=azu), processo seme-
lhante se dá com outras vogais, formando um conjunto ex-
pressivo de rimas encontradas em todas as regiões do país.
• al = á. Contribuição que atravessa os séculos, chega aos
dias de hoje, por exemplo, no côco de Seu Roque, de Ca-
bedelo/PB51:

48 Idem, p.113.

49 Idem, p.186.

50 Tonico e Tinoco, 1984, p.154.

51 Ayala, 2000, p.151.

113 revista do ieb n 43 set 2006


Ô viva ano viva rei / ô viva noite de natá
As menina me pergunta / quer ir ou quer que eu vá
• el = é. Como na resposta dada pelo vaqueiro Boa Raça
em um desafio52 :
Já fui linha de meada / E hoje sou carreté,
Já fui minino, sou home / Só me farta muié.
• il = i. Como neste improviso de feira referente ao can-
gaço53:
Em cima daquela serra / Tem caju e cajuí,
Tem muita moça bonita, / E cabra bom no fuzi...
• ol = ó. É o caso da ariramba, antigo batuque amazônico
em que se canta 54 :
Eu quero, meu bem eu quero! Eu quero contigo só...
Deitado na minha rede, / Coberto com meu lençó!...

Ou ainda no lundu “O pescador”, de Xisto Bahia e


Artur Azevedo55:
Mais cuidado sinhazinha, / Nunca pesque um peixe só
Lance a três a mesma linha, / Pesque seis no mesmo anzó
• ível = ive. Pode se suprimir o l final como no verso de
Tião Carreiro e Pardinho56:
Ai, pra aprendê a cantar de viola / Primeiro estudo que
eu tive:
Aprendi com violeiro véio / Que fazia moda impossive.

Às vezes o processo de absorção envolve, não apenas


a lateral, mas vogais postônicas que precede, ou seja:
• ólo = ó. Como na “Roda de Tropeiro” da bacia do São
Francisco57:
O diabo da véia / Não anda só,
Com um chifre de boi / E um mocotó,
Com cabaça de mé / A tiracó.

52 Silva, 1934, p.76.

53 Carvalho, 1967, p.103.

54 Salles, 1985, p.62.

55 Moraes Filho, 1900, p.30.

56 Sant’Anna, 2000, p.222.

57 Trigueiros, 1977, p.163.

114
Há, também, alguns encontros consonânticos em que
não se pronuncia a lateral, originando as rimas:
• ifle = ife. Como no verso do Cego Aderaldo58 , em que
descreve a luta do movimento revolucionário cearense de
1914, durante o qual:
O menino ainda disse: / – “Eu não temo êsses patife!
Seu Emílio Sá bem sabe / Que eu, enquanto tivé rife
De coração de jagunço, / Faço urubu comê bife!”
• oclo = oco. Caso acima comentado e que exemplificamos
aqui com o coco de Dona Domerina59:
Botei a mão na cabeça / valha-me rei dos caboco
agora eu sei que morro / na ilha do arranca toco.

A despalatalização do lh é muito recorrente e produz


grande número de rimas em:
• alha = aia. Na sextilha do cego Sinfrônio60 :
Eu, atrás de cantadô, / Sou como vento por praia
Sou como junco por lagoa, / Como fogo por fornaia
Como piôi por cabeça / Ou pulga por cós de saia
• alho = aio. No samba paulista “Subi pelo tronco”61:
Subi pelo tronco / Desci pelo gaio;
Marica, me acode / Sinão eu caio!
• elho = êio. Há o canto dos pescadores da Barra62 :
Pescadô qu’está pescando / pesca na pedra do meio
me pega aquela menina / vistidinha de vermêio
• elha = êia. Usufruindo desta possibilidade rímica, um
apaixonado entoa63:
Numa tarde de verão, / na noite de lua cheia
se eu contá os gostos que tive, / me ferve o sangue nas
[veia.
Namorei teus olhos pretos / por baixo da sobrancêia.
Se eu for preso nos teus braços, / não precisa mais
[cadeia.
58 Mota, 1953, p.100.

59 Ayala, 2000, p.156.

60 Mota, 1953, p.16.

61 Andrade, 1972, p.90.

62 Souza, 1980, p.45.

63 Amaral, 1948, p.110.

115 revista do ieb n 43 set 2006


• élha = éia. No folclore paulista64 :
A minha destinta platéia
Pá contá o que eu tenho na idéia
Já vortei na toada véia
• ilha = ia. Em um romance de Fabião das Queimadas65:
Quando vi Antonho Ansermo, / No cavalo Maravia,
Fui tratando de corrê, / Mas sabendo que morria...
Saiu de casa disposto, / Se despediu da famia.
• ilho = io. Fabião das Queimadas, descrevendo a vaque-
jada, canta66:
Dê-me lembrança a Ovídio, / Filho de senhor Macio,
Que também gostou de ver / A carreira do nuvío
E ao camarada dêle, / Chamado Mané Bazío
• alhe = ai. Como na trova67:
Aribu quand’infeli / Não há pau que o agazai;
S’atrepa in riba da péda, / A péda imbola, êle cai.
• olhe = ói. A negra Chica Barroza, em um desafio disse68 :
Os homens possuem as terras, / Os ruins por si se destrói
Segura lá teus calções / Aperta, estira, encurta, encoe.
• ulho = ui. No “ABC do povo da caatinga”69:
Chorando eles tudo véve, / devendo o que não pissúi;
andam todos assombrado / quando é tempo de barui
o culpado é eles mesmo, / tudo quando vê influi.

Note-se que o fonema mais próximo do [l] é, em por-


tuguês o [r], fato que leva Nascentes70 a afirmar: “A conso-
ante mais vizinha da vibrante l é a vibrante r”. No mesmo
parágrafo, o autor também assinala: “Consoante seguida de
l. Tal como na passagem do latim para o português, o l se
muda em r. (...) O fato se passa também em Portugal (...). Por
conseguinte está dentro das tendências da língua”; o que na

64 Lima, 1954, p.19.

65 Cascudo, 1970, p.89.

66 Idem, p.83.

67 Carvalho, 1967, p.103.

68 Carvalho, 1967, p.182.

69 Souza, 1980, p.136.

70 Nascentes, 1953, p.53.

116
poesia popular produz novas rimas como, por exemplo, estas
em que se transforma a lateral final:
• al = ar. Comum nos falares caipiras, como nestes
versos71:
Na estação de Pirambóia, / num me acostumei c’os ar;
Tem a estação de Sagrado... / Pra mim é um lugar sem sar.
• il = ir. Na toada “Caipira é vosso amigo” de Capitão Fur-
tado72 , encontra-se:
Se a Nação necessitá que o caipira vai servir,
breganhando sua enxada por um sabre e um fuzir,
o caipira corajoso, com orguio vai seguir,
pra lutar e defender sua Pátria, o Brasir.
• ol = ór. É também caipira essa rima, enontrada nas
“Queixas do boi”73:
Eu passei esses trabalhos, / uns grandes outros maior
às quatro horas da tarde / tive de casco p’ra o sor.

Também usual nas modas caipiras de raíz é a trans-


formação de laterais postônicas de vocábulos paroxítonos,
criando rimas feito estas:
• alta = arta. Como na moda “Os velhos de agora”74 :
Aonde vóis tivé / Mi iscreva ua carta;
Mi manda lembrança / Também teu retrato ;
Aonde nóis incontra / É beijo e abraço.
Pra vóis ficá sabeno / Que amor não me farta.
• alto = arto. Na mesma moda “Os velhos de agora”, há:
Os véio de agora / São muito veiáco,
Veve dando pulo / Veve dando sarto;
Pula pra riba, / Que pula bem arto,
Êle caí de costa / E destronca o quarto
• olta = orta. Como na moda catireira “As moça caipira”75:
Pois as moça caipira / Inda tem as perna torta,
Encontra a gente na estrada / Ela esconde ou corta a
vorta.

71 Pires, s.d., p.65.

72 Tonico e Tinoco, 1984, p.196.

73 Amaral, 1948, p.76.

74 Pires, s.d., p.330.

75 Idem, p.296.

117 revista do ieb n 43 set 2006


Vibrantes
Como todas as consoantes finais, o r tende a desapa-
recer, ampliando o vasto leque de rimas terminadas em vo-
gais, como:
• ar = á. A supressão no final de vocábulo pode, inclusive,
atingir a semivogal de ditongos, como na toada “Minas
Gerais” de Raul Torres e João Pacífico76 :
Mas quá o que eu não me esqueço não, / pro meu sertão
quero vortá
Quero morrê naquele meu sertão, / quero morrê lá em
Mina Gerá.
• er = ê. Como neste exemplo gaúcho77:
O tatu subiu no pau!... / É mentira de você:
Só que o pau fosse deitado / Isso sim podia sê...
• er = é. Como na quadra popular paulista sobre o café 78 :
Eu quisera sê penera / na coieta do café,
Só pra anda sipindurado / na cintura das muié.
• ir = i. Como na quadra, composta em Santarém, durante
uma desfeiteira, jogo de sorte comum nos bailes amazô-
nicos, em que aquele que, interrompida a música da or-
questra, encontrar-se diante da mesma, compõe para o
seu par, em geral, versos injuriosos como estes compostos
por uma dama que diz a seu parceiro79:
Em cima daquela serra / tem um pé de murici
quando olho pra tua cara / dá vontade de tussi.
• or = ô. Como nestes versos de Cego Sinfrônio80 :
Me responda seu Jerome, / Aonde sois moradô...
Cumo se chama seu pai, / Mãe madrinha e avô.
O desaparecimento do r é comum na fala popular em
encontros consonantais como:
• astro = asto. Em uma versão do “Rabicho da Geralda”81:
Mandaram buscá um guia / pra ensiná os pasto:
– Sinhô, pr’eu pegá Rabicho / só careço é dá no rasto.

76 Tonico e Tinoco, 1984, p.248.

77 Lopes Neto, 1960, p.22.

78 Bandecchi, 1962, p.43.

79 Salles, 1985, p.82.

80 Mota, 1953, p.27.

81 Souza, 1980, p.95.

118
• adre = ade. Como no poema depreciativo do negro, em que
Mestre Teles, velho pedreiro de Quixeramobim, canta82:
Não quero mais bem a nêgo / Nem que seja meu com-
páde:
Nêgo só óia p’r’a gente / P’ra fazê a falsidade!
Mermo em tempo de fartura / Nêgo chora necessidade
• entro = ento. Como no coco de Seu Valdemar – canta-
dores e dançadores de Camalaú 83:
Eu vi a pancada do mar / eu vi a refrega do vento
eu vi o barco navegando / mas é Maria que vem dent’o
• itro = ito. Feito na moda-de-viola “Dexei um vendero
rico”84 :
Um dia dêste passado, / Dexei um vendero rico;
Comprei um quilo de arroiz / De toicinho mais de lito
Comprei um saco de sal / Daqueles mais piquitito;
Eu vim alegre pra casa / Vim pulano e dano grito.

Nasais
Um dos processos mais recorrentes é a desnasalização
em final de vocábulo, o que permite as seguintes rimas:
• agem = age. Como nesta moda-de-viola de Vieira e Viei-
rinha85:
Levantei um dia cedo, / Arrumei minhas bagage,
Eu fui pegá a minha besta / Pra fazê minhas viage.
Vesti o carção de bombacha / Por eu gostá desse traje,
Laço bão tá na garupa / E na cintura uma ferrage,
No caso de precisão / Das veiz a gente reage!
• omem = ome. Ocorre de norte a sul, como no exemplo
gaúcho86 :
Dentro de meu peito tenho / Uma dor que me consome:
Ando cumprindo meu fado, / Em trajes de lobisome.
• ontem=onte. Ocorre nesta xácara, “O capitão do Navio”,
entoada por Anselmo Vieira87:

82 Mota, 1953, p.83.

83 Ayala, 2000, p.211.

84 Pires, s.d., p.129.

85 Sant’Anna, 200, p.121.

86 Meyer, 1951, p.97.

87 Mota, 1953, p.206.

119 revista do ieb n 43 set 2006


Chega os soldado em Palaço / E a muié falou de fronte:
“Soldado, agora é que quero / Que vocês todos dois conte
Aquela tristonha históra / Que vocês contáro onte.
• ordem = orde. Em um desafio, Tonico e Tinoco cantam88 :
Pau podre não dá cavaco, desgraça pouca é desorde.
É certo aquele ditado: cachorro latiu, não morde.
• aram = aro. Fabião das Queimadas, ao descrever a va-
quejada89:
Lembrança aos vaqueiros todos / Que vinham em bons
[cavalo,
Que correm atrás de mim / Mas porém não me pegaro
E eu dei tabaco a todos / Na presença do Vigaro....
• im = i. Fenômeno com marcas claramente medievais,
aparece no “Bernal francês”, neste caso, publicado em
1873 por Celso de Magalhães90. É uma rima não regis-
trada na poesia de cantadores.
Vive, vive, cavaleiro, / Vive tu que eu já morri;
Os olhos com que te olhava / De terra já os cobri.
Boca com que te beijava / Já não tem sabor em si.
O cabelo que entrançavas / Jaz caído ao pé de mi,
Dos braços que te abraçavam / As canas velas aqui!
Vive, vive, cavaleiro, / Vive tu que eu já morri;

Note-se o curioso exemplo encontrado na moda de


viola “Dexei um vendero rico”, em que o narrador, ao chegar
em casa, encontra a mulher tão furiosa que o trata assim:
Me deu na perna cum pau, / quase me quebrou os cambito
Botei a boca no mundo, / Berrava quinem cabrito:
– Me vaia nossa senhora! Me acuda São Benedito!
A muié qué mi matá, / Só pramode eu sê famito.
• uma = ua. Processo encontrado na moda “Os gafa-
nhotos”91, em que se descreve uma invasão dos saltões e
que permite as seguintes recorrências fônicas:
Na cidade de São Paulo / Diz que deu pra enxê a rua;
Que tapou a luz do sol, / E tapou a luz da lua;
Tá escrito no jorná, / Não é mentira nenhua

88 Tonico e Tinoco, 1984, p.171.

89 Cascudo, 1970, p.83.

90 Magalhães, 1973, p.59.

91 Pires, s.d., p.335.

120
Quanto à desnasalização, note-se, enfim, que o apa-
gamento da nasal final, somada ao apagamento do s final,
permite inusitadas rimas em -ôme 92 , como em:
Besta nasci, besta sou, / Apois besta é o meu nome,
Mas besta é os vaqueiro / Qui nasceru sendo home,
Porque pensavum qu’eu era / O gado da Joana Gome...

Outro fenômeno importante é o apagamento de vo-


gais em posição postônica, em vocábulo com tônicas nasa-
lizadas. Note-se que a supressão pode ou não ditongar a tô-
nica nasal; daí surgem rimas como:
• inho = im. Rima rara hoje, comum nos compêndios de
Leonardo Mota, produz versos como os da “embolada de
duas voltas” de Manoel Moreira 93:
Eu vim de longe, / Do centro das Alagoa
Já andava quase à-toa, / Sem dinheiro pra passá
Passei fome, / Passei sede nos camim
E já vendo a coisa ruim, / Me vali dêste ganzá

Vale acrescentar a composição do vaqueiro Miguel


Fonseca 94 , em que o cavalo “Cangueiro”, ao saber que seria
vendido, lamenta-se:
O mundo nunca se acaba, / Eu confirmo ser assim :
O tempo vai e não volta, / É isso que eu acho ruim.
(...) Passei a noite pensando / No que seria de mim.
Pra me despedir dos campos / Levantei-me bem cedim...
• anhe = ãe. Ayala 95 comenta que: “Outro caso de rima por
identidade fonética é a que ocorre entre palavras como
mãe e apanhe, quando esta última passa por um pro-
cesso de despalatalização, conservando-se nasalada. Este
processo é também comum na linguagem coloquial nor-
destina”. Encontramos o seguinte exemplo, na réplica de
Diniz Vitorino a Severino Feitosa 96 :
Meu esposo bem jovem me encontrou
é bem justo que eu a ele não estranhe
no meu ventre sagrado que é de mãe
mais um filho sublime se gerou
92Cascudo, 1970, p.87.

93 Mota, 1968, p.129.

94 Mota, 1925, p.117.

95 Ayala, 1988, p.131.

96 Idem, p.197.

121 revista do ieb n 43 set 2006


• anho = ãe. Como na embolada de Terezinha e Lindalva 97:
T- Ai num queira me maltratar
e que num tô lhe maltratando
é o fumo que tá entrando
e você vai deixar entrar
L- É data dia mês e ano
vai entrar na tua mãe
que a velha nem toma bãe
nem lava o maracujá
• om = ão. A transformação de bom em bão aparece com
freqüência nas modas-de-viola caipiras e em poemas
populares do Centro-Oeste, como na “Décima do Bico
Branco”, poema do ciclo do gado goiano98 :
Esses vaqueiros chegaram / Montados em cavalos bão
Trouxeram cachorros, laços, / As aguilhadas na mão.
Note-se esta rima rara, no momento da coroação do
rei e da rainha de Moçambique de Cachoeirinha, quando o
Mestre canta 99:
Nosso rei São Benidito / me mandô avisá, irmão,
prá dançá bem no compasso, / pelo paia, precura o são
Há, também, a supressão de consoantes, como o g e,
sobretudo, o d dos gerúndios.
• ando = ano. Há inúmeros casos em todo o território na-
cional. Um dos mais emocionantes é o da primeira estrofe
do “Recorte do sonho”100 :
Esta noite eu sonhei / Que eu era um beija flor,
Tava nos ar avoano, / Procurando o meu amor.
Eu vi meu bem / Lá no terreiro...
Dei um beijinho / Saí ligeiro.
Bateno as asas lá fui voano
Cortano os ar quiném aeroplano.
• endo = eno. É o que ocorre nesta quadra de “Saída do
Divino”, cantada em Itu101:
O Devino se dispede / dos grande e dos piqueno,
que os ânju lá do céu / seus nome tão escreveno.

97 Ayala, 2000, p.94.

98 Brasil, 1973, p.161.

99 Araújo, 1964, p.361.

100 Pires, s.d., p.204.

101 Araújo, 1964, p.87.

122
• indo = ino. Em Bom Jesus da Lapa, num “Reis da
Porta”102 , canta-se:
Ô de casa, ô moradô, / acorda se tá drumino !
Nóis viemo cum fervô / festejá o Deus Menino
• igna = ina. Como na “Décima da mulher rica e da mu-
lher pobre”, no momento em que a rica é tomada por uma
praga fatal, devido à sua falta de caridade103:
Daí Leonarda saiu, / E foi ver uma capina,
Quando pra casa voltou / Estava já com a malina
• igno = ino. Leia-se o “Coco de Praia” intitulado “Menina
me dá teu remo”104 :
Olelê minha senhora / De que chora esse menino
Ele chora de malino / Somente pra perreá

A absorção do i dos ditongos ia e io, quando prece-


didos de nasal, é muitas vezes seguida de palatalização, pro-
duzindo rimas como:
• ônia = onha. Em uma peleja entre Chica Barbosa e Neco
Martins, este detratou a adversária da seguinte forma105:
Eu respeitei o oditóro, / A gente de cirimonha
Mas infeliz da pessoa / Que não sabe o que é vergonha
Por isso nêga, eu agora / Dou-te uma pisa medonha...

Invenção e preconceito
O levantamento acima é prova da produtividade da
fala popular na criação de um novo conjunto de possibi-
lidades rímicas, o que amplia o leque de rimas na língua
portuguesa. Entretanto, os poetas populares que produzem
textos em que essas marcas sejam visíveis são, muitas vezes,
desconsiderados pelos seus próprios pares como analfabetos,
incapazes de utilizar “corretamente” a língua portuguesa.
Como assinala Lopes106 “a rima entre as palavras amor e
chegou é considerada (pelos próprios repentistas) como um
indício de analfabetismo”. É o que atesta Téo Azevedo107
que, ao citar “Exemplo de rimas” afirma que “chalé com
mulher” é “rima errada”.

102 Souza, 1979, p.58.

103 Brasil, 1973, p.54.

104 Gallet, 1934.

105 Mota, 1953, p.76.

106 Lopes, Gustavo Magalhães. De pés de parede a festivais. Dissertação


de mestrado. UNICAMP, 2001, p.44.

107 Azevedo, 1979, p.15.

123 revista do ieb n 43 set 2006


O preconceito impresso nesse discurso deve-se ao fato
de que esses processos fônicos são marcadamente rurais e/
ou característicos da fala da população analfabeta e, assim,
desvalorizada. Como destaca Romildo Sant’Anna108 : “A co-
meçar pelos constituintes de ordem lingüística, instaura-se
a clara divisão de exclusividade da cadeia dominante, repre-
sentada pelo tope burguês, sobre a maioria dos falantes, dis-
criminada em sua cultura, linguagem e arte”.
A oposição rural-urbano, periferia-centro, errado-
certo, é uma distinção sócio-cultural, que se dá pela própria
esfera de atuação dos cantadores. Assim, a profissionali-
zação e a adaptação ao meio urbano de repentistas contrasta
com a posição marginal dos coquistas e dos emboladores,
que atuam ainda em esferas rurais, periféricas e não midi-
áticas. Nos festivais de repentistas, o papel dos coquistas é
marginal e não há, de fato, competições e premiações para
o gênero. Como se pode notar na fala de Zé Ferreira; em en-
trevista a Ayala109, ele estabelece uma comparação entre o
repente e a embolada, na qual: “(...) pode rimar Ceará com
cantá e o cantador não pode rimar. Na embolada pode”.
Aceita-se essa rima na embolada pois ela é conside-
rada um gênero menor, praticado por pessoas sem estudo.
Moreno110 observa:
No que diz respeito à situação sócio-econômica, os prati-
cantes do coco, em sua maioria, convivem com [...] falta de ha-
bitação, moradias insalubres, carência alimentar, desemprego,
luta pela posse da terra e até condições de trabalho de semi-es-
cravidão. [...] Tanto na zona rural como nas cidades, grande
parte dos filhos dos coquistas não têm acesso à escola.
Diferentemente dos repentistas e cantadores de moda
de viola, os coquistas continuam alijados, apesar do recente
sucesso da dupla Caju e Castanha.
Note-se que as condições sociais de produção de bens
simbólicos são determinantes, na definição dos padrões lin-
güísticos. É o que atesta, também, Romildo Sant’Anna111
quando assinala as “diferenças notáveis entre os registros
de fala” de Vieira e Vieirinha, por exemplo, em relação a
Tião Carreiro e Pardinho. “Na cronologia desta última dupla
vamos sentir uma paulatina assimilação do ‘falar correto do

108 Sant’Anna, 2000, p.24.

109 Ayala, 1988, p.130.

110 Moreno, Josane Cristina Santos. “O perfil dos coquistas”: Ayala


(2000), p. 41-46.

111 Sant’Anna, 2000, p.53.

124
outro’ em sua fala, à medida em que os artistas interagem
nos vários lugares, dos cafundós rústicos do campo aos am-
bientes mais refinados das cidades”. Não se trata aqui de as-
sumir uma postura nostálgica e sim notar o que implica uti-
lizar-se ou não de um falar caboclo.
Salientamos, ainda, que o próprio modo como os
textos são registrados indica a postura do antologista diante
do texto. Determinados folcloristas, por exemplo, optam por
grifar (itálicos, aspas, negritos) os desvios, enquanto outros
optam por um registro mais fonético, sem que os processos
fônicos sejam destacados. Este é o caso de Leonardo Mota,
de Mário de Andrade e de Cornélio Pires e é a postura por
nós adotada, ou seja, não se trata de destacar essas marcas
e sim de considerá-las integradas ao discurso. Acreditamos,
também, que, apesar da existência de “uma diferença grande
de registro lingüístico entre os vários locutores”112 , a grafia
de muitos textos lidos ao longo da pesquisa foi adaptada à
escrita em detrimento da rima; o que marca um claro pre-
conceito em relação aos falares populares, uma tentativa de
“corrigi-los”. Acreditamos ser de grande valia um estudo que
se propusesse a reescrever foneticamente esses textos.
Enfim, vários trabalhos lingüísticos como, por
exemplo, as análises de Amaral, de Nascentes e de Mar-
roquim, demonstram que a maioria dos processos lingü-
ísticos aqui mencionados explica-se pela própria índole e
evolução da língua portuguesa; o que confirma a tese de
que a desconsideração desses falares é política e ideoló-
gica. Talvez, ao colocarmo-nos diante desses fenômenos,
não como desvios e alterações e sim como contribuições e
ampliações das possibilidades poéticas da língua portu-
guesa, estejamos de algum modo contribuindo para que
possamos, livres de preconceitos, dimensionar a criativi-
dade dos poetas populares, capazes de utilizar vivamente
marcas constitutivas de sua fala.

112 Idem, p.53.

125 revista do ieb n 43 set 2006


Um ‘tesouro’ redescoberto : os capítulos
inéditos da Amazônia de João Daniel.1
Antonio Porro*

Em nota explicativa à primeira edição integral do Te-


souro Descoberto no Rio Amazonas, que o jesuíta João Da-
niel escrevera durante os anos do seu cativeiro lisboeta
(1757-1776), Wilson Lousada alertou para a falta, no ma-
nuscrito da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, “de um
caderno que deveria conter os capítulos 2º e 3º do Tratado
Primeiro, e parte do Cap. 1º do Tratado Segundo, correspon-
dendo, no códice, às págs. de número 3 a 18” 2 . Tratava-se
dos capítulos iniciais da Parte Terceira da obra e a sua exis-
tência e conteúdo eram revelados pelo Índice de Matérias
do próprio manuscrito3. O índice, embora a posteriori e exi-
gindo-lhe atenção redobrada, ajudava o leitor a atentar, à
página 300 do tomo I, para uma discreta nota de rodapé :
“No códice, após a página no. 2 segue a de no. 19; onde pre-
sume-se que se segue a continuação do 1º Cap. do Tratado 2º
” (a nota remetia a uma frase truncada seguida, sem o ne-
cessário corte na paginação, de mudança do assunto).
Em recente reedição da obra 4 , de resto calcada na an-
terior, a falta daqueles capítulos tornou-se ainda menos per-
ceptível, seja por não reproduzir a oportuna nota de Lou-
sada, seja por substituir o Índice de Matérias original por
outro, editorialmente adequado mas ecdoticamente falho,
visto suprimir, arbitrariamente, a menção que o primeiro
fazia aos capítulos faltantes e à passagem do Primeiro para
o Segundo Tratado. E isto não obstante estar reproduzindo,
à página 408 do vol. I, a supracitada nota de rodapé da pri-

*Antonio Porro é doutor em antropologia pela Universidade de São Paulo


e especialista em etno-história da Mesoamérica e da região amazônica.
Desenvolve atualmente pós-doutorado junto ao IEB e é autor, entre outras
obras, de O Messianismo Maya no Período Colonial, As Crônicas do Rio
Amazonas e O Povo das Águas.

1 Veja-se, neste volume, a resenha de recente reedição da obra de João


Daniel.

2 Daniel, João. Tesouro descoberto no rio Amazonas. Separata dos Anais


da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, v. 95, t. 1-2, 1976. t. I, p. 5.

3 Op. cit., t. II, p. 286.

4 Daniel, João. Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas. Rio,


Contraponto / Belém, Prefeitura Municipal, 2 vols., 2004.

127 revista do ieb n 43 set 2006


meira edição. A ausência dos capítulos também não foi rele-
vada e nem parece ter despertado a curiosidade dos autores
que trataram da obra de João Daniel, tenham eles se refe-
rido às duas edições integrais impressas (as únicas a conter
a Parte Terceira), ou ao manuscrito da Biblioteca Nacional 5.
Não deixa de surpreender, este silêncio, face ao título cha-
mativo do tratado: Das minas de ouro, prata e diamantes da
região amazônica, justamente um título, é lícito supor, que
em tempos idos deve ter suscitado muitas curiosidades, não
somente literárias.
O tratado foi encontrado. Está no Arquivo Histórico
Ultramarino de Lisboa, agora acessível pelas cópias digitais
do Projeto Resgate 6 . O verbete-sumário é ao mesmo tempo
preciso e ambíguo:

3478 – [Post. 1754]


MEMÓRIA (1º caderno da 3ª parte) do “Tesouro descoberto no
rio Amazonas. Dá notícia da sua muita riqueza nas suas minas,
nos seus muitos e preciosos haveres e na muita fertilidade das
suas margens. Tratado Primeiro: Das Minas de Ouro, Prata e
Diamantes da região do Amazonas”.
Obs.: doc. incompleto e autor não identificado.
AHU_ACL_CU_013, Cx. 37, D. 3478

Literalmente fiel ao cabeçalho do manuscrito, que


consiste no Primeiro Tratado da Terceira Parte do Tesouro,
o verbete não explicita o nome do autor, e embora a ex-
pressão não identificado possa sugerir autoria desconhecida,
que João Daniel fosse o autor da obra já era sabido desde
pelo menos 1820, quando a Imprensa Régia lhe publicara a
Quinta Parte. O documento, de dezesseis páginas não nu-
meradas, é declarado incompleto, visto que ao final da úl-
tima vê-se grafada, como era costume, a primeira palavra
de uma inexistente página seguinte: Trat. 2º (Tratado Se-
gundo). Tal circunstância, por outro lado, atesta que o Pri-
5 Leite, Serafim. “João Daniel, autor do ‘Tesouro descoberto no máximo
rio Amazonas”, Revista da Academia Brasileira de Letras, Rio, vol. 63,
1942, pp. 79-87.; História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio, Imprensa
Nacional, vol. IV, 1943; vol. VIII, 1949; Papavero, Nelson. “Relíquia do
século 18”, Ciência hoje. Vol. 35 , 2004, n. 208, p. 77; Rodrigues, José
Honório. História da História do Brasil. 1ª. parte :Historiografia Colonial.
S.Paulo, Ed. Nacional / Brasília, INL, 1979; Salles, Vicente. “Apresentação”,
em João Daniel, 2004, vol. I, pp. 11-35; Tocantins, Leandro. “Introdução”,
em João Daniel, 1976, t. I, pp. 7-24; Viotti, Hélio Abranches. “A Amazônia,
a Companhia de Jesus e o padre João Daniel”. Anais da Biblioteca
Nacional, Rio, v. 101, 1981, pp. 187-204.

6 Projeto Resgate de Documentação Histórica “Barão do Rio Branco”,


Documentos manuscritos avulsos da Capitania do Pará, Documento no. 3478.

128
meiro Tratado está completo e que se compõe de quatro ca-
pítulos, não três como se lê no índice do Ms. da Biblioteca
Nacional (BN) reproduzido na edição de 1976 e como reitera
a nota de Lousada. Quanto a esta última, uma retificação
se faz necessária: falta também, no Ms. BN, a parte final
(quase a metade) do capítulo 1º. Já a primeira metade (duas
páginas na obra impressa, cinco no seu Ms.7 ), existente nos
dois códices, evidencia que o do AHU não é, como poderia-
se supor, o caderno faltante no da BN, mas uma cópia, aliás
em formato e caligrafia diferente, com muitas pequenas va-
riantes e omissões.
A ausência de um caderno na obra original e a exis-
tência, em outro acervo, de uma cópia em que o diferente
formato revela não ter sido feita para substituí-lo, é no mí-
nimo intrigante. Especialmente ao se levar em conta, como
já assinalado, o interesse que um tratado sobre minas de
ouro, prata e diamantes numa longínqua colonia recente-
mente resgatada ao virtual controle jesuítico, deve ter des-
pertado na segunda metade do século XVIII. Não parece,
portanto, descabida a hipótese de que o caderno tenha sido
subtraído, copiado com fins facilmente imagináveis e não
devolvido ao seu legítimo proprietário.
Na realidade, e em contraste com a ‘muita riqueza
nas suas minas’ anunciada com grandiloquência no título
e ao longo dos seus capítulos, o conteúdo factual deste Tra-
tado Primeiro é mais do que modesto e, a rigor, não justifica
a enfática certeza de futuros grandes achados. Isto talvez
tenha levado o próprio autor, mais adiante, a ajuizar sensa-
tamente:

São as riquezas do rio Amazonas e o tesouro de que falo,


a grande fertilidade das suas terras, as preciosas especiarias
das suas matas e as copiosas colheitas dos seus frutos, porque
nos frutos da terra e bens estáveis consiste a mais estimável ri-
queza dos homens, e não nos ouros, pratas e preciosas gemas,
que de repente se podem perder e desaparecer em um momento.
(Parte Quinta, Proêmio).

O teor do Tratado não foge ao que predomina nas


Partes I a III do Tesouro, que são as partes descritivas e,
mesmo dentre elas, a qualidade da informação não se iguala
à dos demais Tratados da Parte III, que versam sobre plantas
úteis, frutos, madeiras e especialmente sobre produtos in
natura e beneficiados de origem animal e vegetal. Mais do

7 Agradeço à Biblioteca Nacional, por sua Divisão de Informação


Documental, o fornecimento das imagens digitalizadas de páginas do
manuscrito.

129 revista do ieb n 43 set 2006


que a informação sobre localização e produtividade dos ga-
rimpos, temas presumivelmente difíceis de apurar, são de
interesse algumas considerações e opiniões do autor, como
a de que nas elevações ao norte do Amazonas, entre o Paru
e o Negro, haveria sinais de ouro que a coroa não teria per-
mitido explorar por não ter gente para povoar e defender
contra previsíveis pretensões de França e Holanda. Ou a
proibição, que critica, das ricas comunidades mineradoras
do Peru e do Potosí se abastecerem de mercadorias européias
em Belém do Pará. Ou ainda o frustrado desenvolvimento
dos garimpos do alto Tocantins-Araguaia, seja pelos ataques
dos Akwên-Xavante, seja pela interdição da região do rio
Pilões em benefício do contrato exclusivo dos diamantes.
Embora algo decepcionante por um conteúdo que não
corresponde à expectativa criada, este manuscrito vem pre-
encher uma lacuna que, se não assinalada pela crítica, não
deve ter passado despercebida aos leitores mais interessados.
Com a sua publicação, a parte faltante da obra de João Da-
niel se reduz ao começo, provavelmente uma página, do pri-
meiro capítulo do Tratado Segundo.

*****

Na transcrição que se segue, as únicas intervenções


no texto foram a atualização da grafia, o desenvolvimento
das formas abreviadas e a pontuação; nomes próprios de
pessoas e lugares foram trazidos para a forma moderna .
Foram também inseridas, entre <...>, partículas e termos vi-
sivelmente faltantes ou necessários ao entendimento, e entre
[...], dúvidas ou alternativas de leitura sugeridas. Demais
observações estão nas notas de rodapé.

[1] P a r t e 3 a.
do Tesouro descoberto no Rio Amazonas
Dá notícia da sua muita riqueza nas suas minas, nos
seus muitos e preciosos haveres e na muita fertilidade das
suas margens.

Tratado primeiro
Das minas de ouro, prata e diamantes da região do Amazonas.

Cap. 1º.
Dá notícia em geral dos seus muitos minerais.
1º. Ainda que a principal riqueza das terras não con-
siste em ter muitos minerais, mas sim em ser fértil o seu
terreno, assim como a riqueza dos moradores não con-
siste em tratar ouros e outros metais, mas sim em ter abun-
dância de víveres para sustento de suas casas, como se vê

130
no grande Egito e em muitos outros reinos onde a muita fer-
tilidade das suas terras são envejada riqueza dos seus ha-
bitantes, posto que a falta de minerais seja grande. Con-
tudo, para mostrar aos leitores que o máximo rio Amazonas
não só é rico na fertilidade de suas margens e abundância
de preciosos haveres e víveres, darei por princípio desta 3ª.
parte uma notícia dos seus muitos e grandes minerais de
ouro, prata, diamantes e mais pedras preciosas com que au-
menta as grandes riquezas do seu precioso tesouro.
2º. E primeiramente, para que os leitores possam fazer
algum conceito, é preciso trazer à memória as grandes ser-
ranias que dissemos na primeira parte: tem o rio Amazonas
nas suas ilhargas, ou sejam as do norte, que principiando
na foz do Amazonas com o nome de serras do Paru, vão su-
bindo com o mesmo rio a quem servem de vistosas margens
até os reinos de Quito e Popayan, onde se conhecem com
o célebre nome de cordilheiras por espaço de mil e tantas
léguas e com largura de quarenta ou mais, que tantas se
contam na região a que os [2] geógrafos chamam Guiana,
ou sejam as
3º. Outras altíssimas serras que, da parte do sul, posto
que em maior distância do Amazonas, lhe vão fazendo lado
desde as serras de Ibiapaba em 3 gráus de latitude meri-
dional e 336 de longitude até os reinos de Peru e Quito em
gráus de latitude [em branco] e de longitude [em branco] ,
chamadas já serras de Ibiapaba, já Moça dos Figos, já Cha-
pada grande e finalmente, no império do Peru, Mantiquera,
e no reino do Chile, Andes, com o comprimento, de leste a
oeste, quanto vai de 336 gráus até [em branco] e com a lar-
gura de sessenta, cinquenta e mais léguas de uma mui apra-
zível planície por cima, além de muitas e compridas mangas
ou braços que vai lançando de sí já para o sul e já para o
norte e muitas voltas que vai fazendo como uma grande
cobra enroscada. Em outras partes se divide esta grande
cobra em duas, lançando uma para sul e outra para norte, e
cada uma com seus braços ou roscas de muitas léguas. Su-
posta pois esta breve notícia das grandes serras da Amé-
rica que mais difusamente descrevemos na primeira parte,
toda ela, digo, é um continuado mineral de ouro, prata,
diamantes e muitas outras pedras preciosas, de sorte que
afirmam os práticos ser a terra mais rica de minerais que
até agora se tem descoberto em todo o mundo.
4º. E principiando pela margem boreal, as serras que os
portugueses chamam de Paru, desde a foz do Amazonas até
o rio Negro, estão tão cheias de sinais de ouro que já os ge-
ógrafos todos as assinalam com sinais de ouro. Porém, como
Portugal não tem gente com que possa animar tanta vastidão
de terras e muito menos fortificá-las como era necessário, de

131 revista do ieb n 43 set 2006


propósito não quis nessas terras abrir minas para evitar con-
tendas e um seminário de guerras com França e Holanda. De
sorte que ainda algumas minas, que por acaso se tem des-
coberto junto ao mesmo rio Amazonas, onde os portugueses
estão bem fortificados com vários fortes que têm pela sua
margem, contudo logo se mandam encobrir para não meter
cobiça às mais potências. Confirmam os índios dos rios que
medeiam entre a fortaleza do Paru e a fortaleza de Pauxis,
que nas suas cabeceiras há muito ouro; mas, como milita por
todos aqueles rios a mesma razão, não se admitem os seus
informes, mas antes se encobrem as suas notícias. Em uma
das povoações da mesma margem se descobriu [3] ouro em
muita quantidade quase à porta do seu missionário pelos
anos de 1755 circiter 8 debaixo de um jirau. Jirau chamam
no Amazonas uma como grade de paus levantados da terra,
onde costumam secar carnes, peixe ou qualquer outra cousa;
e debaixo desse jirau, por cima ou à flor da terra, apareceu
ouro, porém logo se procurou encobrir, como já se dizia de
muitas outras paragens.
5º. Para cima do rio Negro, ou pela sua altura, ou
entre ele e o grande rio Japurá, se discorre estar o celebér-
rimo lago de Ouro e <a> cidade de Manoa, por cujo desco-
brimento se tem cansado muitos aventureiros; porém nin-
guém dá com ele, ao mesmo tempo que todos afirmam a sua
existência. O grande missionário jesuita 9, fundador de quase
todas as missões que há no rio Solimões até o Pongo10 , não
só ilustrou o rio Amazonas com as luzes do Evangelho, mas
também com muito acurado mapa pelo qual, impresso, o deu
a conhecer ao mundo, e pela muita comunicação que teve
com aqueles primeiros índios parece ter mais razão para o
saber; diz que o dito lago de ouro chamado Parima e a dita
cidade Manoa, estão entre os rios Urubu e Negro. Monsr.
Condamine, que navegou o dito rio em 1744, presume que
está nas margens do rio Japurá, porém eu mais me inclino
ao parecer do dito missionário, que pela muita comunicação
com os índios e pelo dilatado espaço de trinta ou mais anos
que viveu entre eles, andando em contínuo giro para baixo
e para cima, tinha mais razões para o saber, do que ao pa-
recer de Condamine, que só uma vez navegou de passagem;
mas esteja onde estiver, visto que os índios não <o> querem
mostrar, ou Deus o quer encobrir como encobriu <por>
tantos mil anos aos homens a mesma América, com ser tão
dilatada como o mundo, as primeiras notícias que se espa-

8 Latim: aproximadamente.

9 Samuel Fritz, das missões espanholas de Mainas na Amazônia peruana.

10 O estreito de Manseriche, no rio Marañon (alto Amazonas).

132
lharam deste lago são que as suas margens, areais e fundo,
tudo é de ouro tão amontoado como os montes de pedra ou
montes de areia onde os há e que junto ao lago, ou muito
perto dele, está uma grande e rica cidade chamada Manoa,
toda fabricada de ouro, assim nas suas ricas paredes e te-
lhados, como com todos os seus trastes, e quando se desco-
brir, que talvez será quando se entre a povoar as suas dila-
tadas terras, chegará a Portugal um muito amplo tesouro só
naquele lago, de sorte que a mesma água, com estar a correr
em tão precioso metal, será um tesouro medicinal para
curar muitas enfermidades. Nem pareça aos leitores ter sido
[?] sonhado o dito lago, por não se ter até agora descoberto,
porque devem saber que os moradores do rio Amazonas
apenas frequentam as suas margens com algumas pequenas
povoações distantes umas de outras quinze ou mais dias de
viagem, e ainda que alguns têm subido pelos rios colate-
rais, só chegam às suas margens e não entram no interior
dos matos sob pena de ficar perdidos, como tem sucedido a
muitos pelo muito intrincado e espêsso das matas, pelo la-
birinto de lagos e pelos muitos rios e ribeirões que cortam
aquelas terras, e por isso não faz admiração, aos que têm
conhecimento daquelas terras, que não se tenha [4] ainda
descoberto o lago dourado Parima.
6º. No mesmo rio Negro se descobriu, pelos anos de
cinquenta e tantos, uma mina de azougue11 entre ele e o rio
Japurá que lhe fica a oeste; estão já minas de ouro abertas
e mui rendosas pelos castelhanos, as quais, pela divisão do
Tratado de Madrí de 1750 entre as duas potências, ficam
pertencendo a Portugal, como afirmou o P. M. Brentano, je-
suíta, Provincial que foi da sua Província de Quito e depois
Procurador geral da mesma em Roma, para onde desceu pelo
Amazonas abaixo até o Pará, onde o afirmou, e mais em
Lisboa. E além destas minas há prova evidente que o dito rio
tem ouro nas suas margens, porque muitos índios que dele
têm descido para as missões traziam por brincos nas orelhas
folhetos de ouro bruto, por razão de não saberem nem terem
instrumentos de o prepararem, e de tais índios ainda há
descendentes na missão de Pupains [ou Tupains; seria Ta-
pajós?], hoje Vila de Santarém, e em muitas outras.
7º. Nas cabeceiras do dito rio Japurá, que são as serras
que vão continuando e pelo meio das quais sobe a divisão
dos dois domínios até a altura do dito Japurá, que são parte
da região que os geógrafos chamam Terrafirme e os caste-
lhanos Novo Reino de Granada, são tantos os minerais que
os mesmos castelhanos, para declarar a sua muita riqueza,
também lhe chamam Castilha del Ouro. Por cima, seguindo

11 Mercúrio.

133 revista do ieb n 43 set 2006


o rumo deste, segue o Reino de Quito, tão rico de prata e
ouro que todo ele parece um continuado mineral <e> em
cujas minas é tanta a prata que se tiram grandes pedras que
eu mesmo ví nos castelhanos que desceram pelo rio Ama-
zonas e as levaram para admiração da Europa, e prata ba-
tida do feitio de jabutis, que são uns grandes cágados que
há nas matas e campinas do Amazonas, em tanta quanti-
dade que apenas caberia em um navio, de sorte que qual-
quer morador particular tem tanto ouro e prata que com
razão se pode chamar rico, e na verdade o seriam todos
os seus moradores se não fossem tão custosas as mercado-
rias da Europa, que só para os seus carretos por terra desde
os portos consomem muitos cabedais; por isso desejam eles
o comércio com os portugueses do Pará por meio do rio
Amazonas, porque dizem que compradas as drogas da Eu-
ropa no Pará e transportadas pelo rio acima com três ou
perto de três meses de viagem e em canoas de aluguel, con-
fessam que ainda assim lhes saem por metade e menos do
que transportadas e conduzidas lá pelos seus portos; porém
é esta comunicação e comércio proibida com os ditos por-
tugueses com bom pesar de uns e outros, que por mais que
o pretendam não o conseguem. Estas são as riquezas do
grande tesouro do Amazonas da parte do norte, que são as
menos12 pelas razões que dissemos.

Cap. 2º.
Das minas descobertas na margem do sul.
1º. Já dissemos que toda aquela vastidão de serras, ou
onde cada pedra são, [5] segundo afirmam todos os práticos,
um continuado mineral já de ouro, já de prata e de muitas
outras preciosidades; porém, as minas de que aquí só pre-
tendo dar notícia são as que atualmente se trabalham na re-
gião que os geógrafos chamam região do Amazonas, e por
isso não falo das minas Gerais, que no seu mesmo nome in-
dicam a sua grande vastidão, e as minas do Serro do Frio,
onde os diamantes se medem aos alqueires, e as minas do
Cuiabá, também de muito ouro, porque posto que estejam
nas ditas serras, estão fora da dita região do Amazonas,
ainda que de algum modo lhe pertencem por serem quase
continuadas com as mais minas que se encontram inclusas
na tal região e todas na demarcação dos portugueses. Prin-
cipiando pois da sua mesma foz, esse rio Tocantins, que é o
primeiro dos mais caudalosos que recebe junto à cidade do
Pará, unido com o rio Araguaia, quase semelhante a ele na
grandeza, e ainda de mais extensão no comprimento; nas
suas cabeceiras tem as minas seguintes. 1ª. principiando por

12 Menores.

134
leste, tem as minas do Carmo, chamadas arraial do Carmo,
as quais estão entre o rio chamado rio do Sono, caudalosís-
simo, e um riachão, os quais ambos se metem no rio Tocan-
tins, e são as minas mais boreais que tem o rio Tocantins
a leste. 2º. Minas das Almas, chamadas Arraial das Almas
e ficam nas cabeceiras do rio chamado das Almas, que se
mete no Tocantins da mesma parte do leste. A norte destas
ficam, 3º. as minas da Natividade em outro grande arraial
nas margens do rio chamado rio das Minas da Natividade,
entre ele e o rio Tocantins. 4º. A leste do mesmo rio estão as
minas de Sta. Anna, chamadas arraial de Sta. Anna. 5º. Na
margem do oeste do rio Tocantins, nas margens do rio cha-
mado Corichas, que se mete no dito Tocantins da parte de
oeste13, e a norte do dito Corichas estão as minas do Pontal,
juntamente Arraial; têm porém o desar de serem estas minas
infestadas e combatidas do tapuia bravo chamado Chavante
de Quâ14 . 6º. Nas cabeceiras do mesmo rio Corichas estão as
minas e arraial chamadas de Amaro Leite. 7º. A oeste destas,
inclinando para o norte, estão as minas chamadas Cori-
chas com o seu arraial e ficam entre as cabeceiras do dito
rio Corichas e as de outro pequeno rio que mete no grande
rio Araguaia; este Araguaia também se vai metendo no To-
cantins perto já da sua foz. Subindo o rio acima, já na volta
que faz virando para oeste tem, 1º, as minas de S.Félix,
chamadas a chapada de S.Félix; ao oeste destas ficam ou-
tras minas com seu arraial também de S.Félix; estão junto à
foz do mesmo rio, onde se mete no Tocantins, e todas estas
minas pertencem no espiritual ao bispado de Pará. Ao sul
das minas de S.Félix ficam outras minas com seu grande ar-
raial, nas cabeceiras de um rio que deságua no rio da Palma
antes deste se meter no Tocantins; e a sul destas, outras
com seu arraial nas cabeceiras de outro rio. A sul destas,
ficam as minas chamadas minas do Papaolho [?], suposto
que pelo bom ouro que têm. A oeste destas, declinando para
norte, estão outras minas com seu grande arraial, chamadas
as minas do Cavalcanti, nome ou sobrenome do seu desco-
bridor, e ficam na margem de [6] leste do rio das Almas.
2º. Subindo, a oeste desemboca no Tocantins o rio Ba-
calhau, tão rico que por todo ele há minas, e a sul destas
fica uma serra que pelos seus muitos minerais chamam
serra Dourada. A oeste ficam as minas de S.José, com seu
grande arraial, mas muitas léguas distantes ficam outras
minas também chamadas de S.José; ao oeste se mete no To-
cantins o rio Traíras, com umas grandes minas e arraial
13 Deve ser o rio Crixás-Açu, que porém, como diz a seguir, deságua no
Araguaia.

14 Akwên-Xavante.

135 revista do ieb n 43 set 2006


chamadas minas Traíras; a oeste destas deságua o rio Co-
cais, com minas; ao oeste destas está o arraial e minas de
Sta. Rita. Ao oeste destas deságua no rio Tocantins o grande
rio Maranhão, célebre pelas suas minas de ouro que nele
se descobriram, chamadas minas do Maranhão, tão ricas
que nelas se achou também, à flor da terra, o maior folheto
de ouro que se tem descoberto, de quarenta e seis libras e
pelo qual houve graves demandas, e se achou deste modo:
quando na repartição se dividiram as terras que concor-
reram, coube na divisão, ao escrivão que fazia os assentos,
o lugar onde ele estava assentado sobre uma pedra, ao pa-
recer de todos forma [?] com a terra em circunferência. Já
acabada a diligência, querendo logo tomar posse do que lhe
pertencia, mandou para isso a doze escravos apartar a dita
pedra que lhe servia de assento, mas indo a virá-la acharam
que era pedra de ouro com quarenta e seis libras, de que o
escrivão foi tão contente que andou por satisfeito <e> não
quis mais minas; falando nela a comum sentença --- Crescit
amor nummi, quantum ipsa pecunia crevit15. Estas minas,
não obstante serem tão ricas, se desampararam por razão
de serem muito doentias, de sorte que morriam dez, doze e
mais pessoas cada dia; já porém são mais sadias e se tor-
naram a frequentar porque se pôs melhor providência na
água de beber, que antes era veneno. A norte destas, já junto
à volta ou cotovelo que faz o dito rio Maranhão quando se
vai meter no Tocantins, ficam as minas e arraial chamadas
de Sta. Rita. Todas essas minas até aquí relatadas e algumas
mais de que não sei os nomes próprios, são de ouro e per-
tencem no espiritual ao bispado do Pará, mas no temporal
têm seu Governador ou Capitão Geral diverso.
3º. Subindo para oeste se seguem grandes serranias
entre este braço do Tocantins que chamam rio Maranhão e
o grande rio Araguaia, o qual Araguaia sendo tão grande
que terá navegação por mais de cinquenta ou sessenta dias
de viagem. Quase todo é despovoado, assim por falta de
gente como por ser infestado dos tapuias bravos, e só na al-
tura de gr. [em branco] tem, nas cabeceiras de um riacho no
sertão que medeia entre Araguaia e Tocantins, as minas que
já disse acima, chamadas de Amaro Leite. Nas cabeceiras,
porém, é o Araguaia um dos mais ricos rios que deságuam
no Amazonas, porque primeiramente tem, a leste, nas cabe-
ceiras de alguns rios que nascem nas serranias que medeiam
entre as cabeceiras do Araguaia e o rio Maranhão de que já
falamos, as minas chamadas Meia Ponte; por isso têm um
grande arraial ou povoação assentada e estável, com duas
boas igrejas [7] e um hospício dos esmoleres de S.Francisco;

15 Latim: Quanto mais cresce a riqueza tanto mais cresce o amor pelo dinheiro.

136
têm a boa comodidade para o ouro: três rios, dois a leste
e um a oeste, que vão desaguar ao Araguaia unidos ao rio
chamado dos Pilões, que os vem recebendo, o principal dos
quais se chama Meia Ponte e dele se chamam as minas de
Meia Ponte. Desce este rio de uns montes, chamados Piri-
neus, que fazem divisão de águas do rio Maranhão e Ara-
guaia. A leste tem as minas chamadas do Ouro Fino, pela
singularidade do metal; são também povoadas com um bom
arraial e ficam como no meio ou centro do vão que medeia
entre este rio e o Maranhão supra, distante da grande vila
de Goiazes cousa de oito léguas, quase alcantiladas, a qual
vila é a capital de todas estas minas e outras que logo di-
remos, aonde assistem governador, ouvidor e mais minis-
tros reais com belos templos e casarios, com dois rios que
lhe passam pelo meio. É povoação grande e cabeça de tudo
o que está povoado no Araguaia e suas cabeceiras e ver-
tentes. A oeste das já ditas deságua no rio Araguaia o rio
Pilões, célebre pelas suas minas de diamantes além de muito
ouro, porém <não aproveitadas> por causa do contrato dos
diamantes das minas do Serro do Frio, das quais darei aquí
alguma notícia para inteligência de muitas outras minas,
descobertas na região do Amazonas mas proibidas por causa
das minas do Serro do Frio, que já não estão no distrito da
região amazônica.
4º. O Serro do Frio são uns montes ou grandes serras
que estão no governo e bispado de Minas Gerais, as quais
confinam por norte com as minas de Goiazes que acabamos
de descrever. Todo este bispado e governo das Minas Gerais
está cheio de ouro, prata, diamantes, esmeraldas, topázios e
muitas outras preciosidades, e por isso é o governo mais po-
voado de toda a América Portuguesa, de sorte que afirmam
alguns práticos que está tão bem povoado como o mesmo
Portugal. A sua capital é Vila Rica, que está distante da ci-
dade de Mariana duas léguas, em 20 gr. de latitude meri-
dional e 333 de longitude e se podem chamar uma só po-
voação, porque a<s> cidade<s> de Mariana e Vila Rica têm
uma famosa rua de uma a outra, pela qual se pode chamar
com verdade uma só. Mas deixando a sua descrição e multi-
plicidade de minas que tem para os que descreverem aquele
governo, umas delas são as riquíssimas minas do dito Serro
do Frio, as quais são mui rendosas de ouro e diamantes, os
quais, por serem inumeráveis e não perderem por isso des-
tinação, El Rei D.João 5º. o tomou para a Coroa no ano de
1730 e tantos; comandou minerar por via de contrato, proi-
bindo juntamente minerar o ouro no seu distrito, por cuja
causa se viram obrigados os mineiros seus povoadores a de-
sertarem para outros minerais, deixando aqueles livres ao
contratador ou contratadores dos diamantes, os quais ar-

137 revista do ieb n 43 set 2006


rematam o contrato desta. Determina El Rei o número dos
pretos do contratador, verbigratia 300, e ele se obriga a dar
[8] a El Rei a quantia em que arrematou por ano, verbigratia
dois milhões, e fora a quantia se obriga a remeter à Casa da
Moeda da Corte, onde se vendem por partidas e não lhe é lí-
cito vendê-los ou passá-los a seu arbítrio e desta sorte só
se arremata o contrato. Por esta razão são proibidos todos
os mais minerais de diamantes para não prejudicar ao con-
tratador, e dizem serem tantos, neste Serro do Frio que se
chegam a medir aos alqueires, posto que têm sua distinção
uns dos outros conforme a sua grandeza, fineza e lotação.
Os diamantes do rio Pilões, nas minas de Goiazes, dizem
ser em muita abundância e tão finos como os do Serro do
Frio, porém, pela razão dita, se proibiu o mineral deles, e
por causa deles o minerar ouro no dito rio, pagando El Rei a
uma escolta de soldados para sua guarda atualmente, neste e
outros rios de que abaixo diremos.
5º. Tornando à chapada grande, dela só a parte que
pertence à região do Amazonas, que é só desde as suas ver-
tentes ao rio Amazonas, posto que ainda talvez por isso
lhe pertençam algumas minas no governo das Gerais, de
que não trato por ser já de outro governo, e continuando a
oeste conforme o rumo do Amazonas, adiante das minas
de Goiazes e Pilões, seguem as de Mato Grosso, que são go-
verno separado e compreende desde Goiazes a leste até a di-
visa dos domínios entre Portugal e Castela e tem em sí as ri-
quíssimas minas chamadas do Cuiabá, de que não trato por
estarem nas cabeceiras do rio Cuiabá, que tem as vertentes
para o rio Cuiabá, que deságua na lagoa Xaraes, mãe do
grande rio da Prata, e as sobreditas minas de Mato Grosso.
Estão essas minas nas cabeceiras do rio Sararé, ramo do rio
Guaporé, braço do grande rio Madeira; dista<m> das minas
de Goiazes cousa de 300 léguas, do rio Sararé quatro e do rio
Guaporé oito. Descobriu essas minas um paulista, mineiro da
vila de Cuiabá, bem <por> acaso, porque divertindo-se a ca-
valo por essas alturas, acaso topou e virou o cavalo com a
ferradura uma pedra que, toda ela, era um grande folheto de
ouro, o que advertido por uns escravos que o seguiam, avi-
saram o cavaleiro seu senhor, que admirando o bem achado,
mandou buscar mais e logo achou tantos folhetos que voltou
logo carregado para a dita vila de Cuiabá pelos anos de 1740
pouco mais ou menos. Divulgou-se logo a fama de tanto
ouro, acudiram tantos que em breve tempo formaram uma
grande povoação que o Sr. Rei D.João 5º. foi servido criar ci-
dade16 e capital do novo governo em lugar da vila do Cuiabá,
que antes era a cabeça daquelas minas do Cuiabá. São essas

16 A cidade de Mato Grosso.

138
minas do Mato Grosso as últimas que possui o domínio de
Portugal na região meridional do rio Amazonas, nas cabe-
ceiras dos seus rios colaterais, e não tem mais por falta de
gente, porque todas aquelas vastidões são despovoadas, como
também quase todos os rios, exceto as suas bocas, até o rio
da Madeira, e os mais daí para cima são todos [9] despovo-
ados de portugueses. Antes porém de entrarmos no distrito
de Castela e no grande império do Peru que segue a oeste
do Mato Grosso, darei notícia de outros minerais da mesma
margem, mas mais vizinhos ao dito Amazonas, posto que
nos seus colaterais.

Cap. 3º.
De outros minerais do rio Amazonas.
1º. Até agora fomos seguindo as cabeceiras dos rios co-
laterais do Amazonas, de leste a oeste e até o Mato Grosso;
agora desceremos de oeste para leste na mesma margem do
sul do rio Madeira para baixo; digo do rio Madeira para
baixo pela razão que já disse, que nos mais rios que se se-
guem para cima, que são muitos ainda, os portugueses não
têm entrado mais do que os poucos que vão apanhar o cacau,
cravo, salsa e mais frutos das suas matas de que falaremos
adiante. A primeira mina <de> que se sabe descendo, é do
rio Megue17, o qual está a leste ou abaixo do rio Madeira e
ainda do rio Abacaxis e outros de menor conta.
2º. Descobriu estas minas, por acaso, um português
mineiro, N.Pontes [?], porque entrando naquele rio a fazer
uma feitoria de cravo, outros frutos nele descobriu e achou
ouro pelos anos de 56 ou 57, e para prova mandou algumas
oitavas ao Capitão Geral que então governava aquele Estado;
e posto que por então se não povoaram por falta de gente,
suposto que já agora se trabalharam por estarem muito em
cômodo, mais que todas que acima disse, e <de> como por
então se sustiveram, não pude ter delas mais individuais no-
tícias, <logo> não posso dizer se são ou não abundantes e
minas de boa conta, como dizem os mineiros.
3º. Abaixo do Megué e outros rios pequenos está o
grande rio Tapajós, que deságua no Amazonas em 2 gr. e
30 min. de latitude, e 322 de longitude. É rio também pouco
frequentado, porque só na sua boca, até cousa de 30 léguas
acima, tem algumas poucas aldeias de índios, contudo é
o rio de que se tem mais alguma notícia por ter vindo por
ele abaixo um mineiro. Veio fazendo com os negros da sua
companhia algumas observações, ou movido da ambição, ou
de curiosidade, ou por ambos estes motivos, chamado João
de Sousa de Azevedo, e por relação dele depois de alguns

17 Maués .

139 revista do ieb n 43 set 2006


outros, se presume que ambas [10] as suas margens, até as
suas cabeceiras, têm muitos minerais, porque nas suas ca-
beceiras, que são junto do rio Cuiabá em 16 gr. de latitude
e 321 de longitude, tem as minas ditas de Cuiabá, que dei-
xamos por estarem mais para a parte do dito rio Cuiabá; das
mais, direi primeiro o que referiu o dito mineiro que o na-
vegou no ano de 1746 e foi o seguinte.
4º. Saí das minas de Mato Grosso e andei por caminho
de terra na chapada quinze dias a rumo de leste inclinando
para norte; embarquei no rio Tapajós na paragem onde se
descobriram antes as minas chamadas de Sta. Isabel, que
depois se desampararam por serem de pouco rendimento.
Metem nele muitos <rios> de uma e outra parte, e um a que
pelo seu feitio chamam rio das três barras. Mandei cavar e
achei ouro de boa conta, de que tirei algum e dele dei ao Ca-
pitão Geral Francisco Pedro Gurjão, que então governava o
Estado do Pará e Maranhão, sessenta e quatro oitavas, que o
dito Geral mandou ao Sr. Rei D.João 5º por prova e amostra.
Isto, em substância, <é> o que referiu o dito mineiro, com
a circunstância de vir de passagem, e <pelo fato de> que, se
deu sessenta e quatro oitavas de amostra, já se vê que havia
de ficar mui bem provido, e não falta quem diga que ele em
muitas outras partes achara ouro, porém, quid quid sit de
hoc18 , depois se soube, já por relação do mesmo e de outros,
que no rio chamado dos Arinos se descobriram umas riquís-
simas minas de ouro as quais, pela sua muita abundância,
se principiaram logo a povoar com muitos mineiros, já do
Cuiabá, já do Mato Grosso, que logo se quiseram firmar fa-
zendo sementeiras e plantando víveres para sustento dos
seus negros, que são as primeiras diligências dos mineiros;
porém se viram logo obrigados a <se> retirar por uma de
duas causas em que variam as notícias. 1ª, dizem alguns,
que fôra por se sumir o ouro de repente, efeito que atri-
buem a castigo de Deus, empressa [em razão ?] de várias de-
mandas que logo principiaram com seu descobrimento, es-
pecialmente entre os vigários das minas de Mato Grosso e
Goiazes ou Cuiabá, sobre cuja jurisdição diziam pertencer as
novas minas do rio Arinos, e chegaram a grandes excessos
os litigantes, e para de uma vez [11] se apagarem lhes cortou
Deus sumindo-lhes o ouro; e confirmavam esta sua suspeita
com muitos outros semelhantes sucessos em muitas outras
minas em que, por semelhantes fatos, se tinha sumido o
ouro de repente. Bem pode ser que Deus, com paternal amor,
tire assim a causa de muitas desgraças.
5º. Porém o mineiro supra, que foi um dos que
também concorreram à fama de tanto ouro, contava alguns

18 Latim: Seja isto como for.

140
particulares <de> outra causa, que parece ser mais veros-
símil, de que pelo grande concurso de mineiros que logo
concorreram, foi necessário ao ministro régio ouvidor, não
só tomar posse, mas repartir, como se costuma, a cada um
as terras. Sucedeu pois, que quando andava nesta diligência
e na presença de muitos circunstantes, veio um dizendo que
não só eram minas de ouro, mas também de diamantes, por-
quanto tinha achado alguns que mostrava. O ouvidor, que
também se queria aproveitar como os mais, posto que logo
conheceu os diamantes quis disfarçar a notícia dizendo que
não eram verdadeiros; instou o mineiro que bem os co-
nhecia e alegava em confirmação várias razões, as quais
não podendo o dito ministro disfarçar sem reparo dos cir-
cunstantes e sem perigo de grande culpa no seu ofício, res-
pondeu ao mineiro --- Pois visto serem diamantes, V.Mce.
com todos os mais se retirem desta paragem sob pena de
morte --- E isto pela razão do contrato dos diamantes das
minas do Serro do Frio, que acima dissemos, e desta sorte,
retirando-se todos, ficaram as minas logo desertas como
sucede a todas as mais em que aparecem diamantes, e por
esta causa desceu o mineiro supra pelo rio abaixo, vendo-se
obrigado a também se retirar. Deságua o dito rio dos Arinos
no rio Tapajós, cuido que na margem ocidental, e é um dos
mais avultados que recolhe o rio Tapajós.
6º. Pouco acima da sua foz, em cousa de quatro dias
de viagem ao menos, tem o dito Tapajós um grande mi-
neral que parece ser encanto: o mineral é tão grande que na
mesma flor da terra ocupa as altas ribanceiras e margens
do rio de uma e outra parte em grande espaço, e mostra
que pelo fundo do rio se comunica até de uma margem [12]
com a outra, mas tem esta diferença, que na margem oci-
dental é mineral amarelo como ouro e na margem de leste,
ou oriental, é branco como prata, e tudo em tanta abun-
dância que à mesma flor da terra se podem carregar frotas
inteiras. Digo que parece ser encanto porque o mineral de
uma parte do rio parece aos olhos verdadeira prata e todos
<os> que vêem as suas pedras afirmam que é prata. E como
tal anunciou um mineiro ao desembargador João da Cruz
<Diniz> Pinheiro no ano de 1754 circiter19, mostrando-lhe
juntamente uma amostra e oferecendo-se a ir mostrá-la se o
soltasse, porque estava então preso na cadeia pública. Posto
que já os moradores do dito rio, havia anos, sabiam da dita
mina, aceitando o dito mineiro20 a notícia, partiu com o dito
mineiro em sua companhia, e depois de ver com seus olhos
o grande mineral, logo tomou posse das minas e mandou
19 Latim: aproximadamente.

20 Não seria desembargador ?

141 revista do ieb n 43 set 2006


deitar um pregão de que ninguém, sem licença, lá chegasse,
com pena de morte, confiscação de bens e [?] espalhando
que eram minas riquíssimas de prata e das suas pedras car-
regou a sua embarcação para no Pará se ver o seu grande
rendimento. Na volta, porém, e no maior contentamento de
ter ajuntado à Coroa umas tão grandes minas, de repente lhe
fugiu uma noite o mineiro, ou por saber do engano, ou por
se temer de que a não pudesse extrair, ou por alguma outra
causa, e logo o mineiro21 entrou em desconfiança de que o
tinha enganado, e mais se confirmou na sua suspeita depois
que no Pará mandou fazer várias experiências para extrair
e purificar a prata, e todas saíam frustradas porque o metal
que parecia prata, parte se desfazia em fumo e parte ficava
uma como escória, de que o dito mineiro22 mostrou umas
inteiras nos cantos do seu palácio aos hóspedes que as que-
riam ver, de sorte que ficou totalmente persuadido de que
fora enganado e que era prata falsa, não obstante a pare-
cença do metal e a atestação de um religioso que há muitos
anos era missionário daquele rio e afirmava que a lâmpada
da sua igreja fôra feita daquela prata e mostrava ser verda-
deira, só com o desar de que quando se queria limpar se não
podia formosear como a mais prata. E por todas estas razões
parece<m> encanto as tais minas, por talvez se não dar na
indústria de a saberem extrair e purificar, e sendo verda-
deira prata bastará a sua grande mina para fazer grande o
tesouro do Amazonas pela grande comodidade que tem para
os seus povoadores.
7º. Junto quase à sua foz em cousa de dez ou doze lé-
guas, afirmam outros mineiros que tem sinais de ouro em
muitas partes. Junto do [13] rio chamado Cupari, que de-
ságua em cousa de quatro dias de viagem da parte de leste
<do Tapajós>, se acham pedras com muito metal <e> parece
ferro. Pelo rio acima se acham pedras, muitos minerais de
mármore, pedra pomes e cristal, além de ter nas suas vis-
tosas praias muitos topázios e muitas outras pedrinhas finas
de várias cores. Se tem já achado também alguns diamantes
e muitos outros minerais se presumem descobrir no dito rio
Tapajós se principiar a ser povoado, porque só na sua boca
tem algumas poucas povoações de índios, que nada tratam
de ouros, pratas ou outros alguns metais, contentes só com
terem de comer e beber.
8º. Não é menos rico o rio Xingu, que deságua no
Amazonas em 3 gr. de latitude e 325 de longitude, porque
primeiramente as suas cabeceiras, que são na chapada
grande, já dissemos que tudo é um contínuo mineral. Nele
21 desembargador ?

22 Como acima.

142
deságua um rio chamado Claro, tão rico que lhe chamam
os mineiros Paiol de Diamantes; alguns duvidam se este
rio é o que já dissemos chamado Pilões, que deságua no
rio Araguaia, cujos diamantes são tantos também que lhe
chamam da mesma sorte Paiol, mas o mais certo é serem di-
versos rios, como afirmaram alguns mineiros que tinham
andado pelas cabeceiras de um e outro rio. Ultimamente o
confirmou o mineiro supra, João de Sousa <de Azevedo>,
porque pretendeu subir pelo rio Xingu acima até o dito rio
Claro ou Paiol, para o que mandou fabricar vários instru-
mentos de que usam os mineiros para tirarem do fundo do
rio o ouro, diamantes e as mais preciosidades que querem; e
o deixou depois por obra, com bom pesar seu, por o impe-
direm os missionários das aldeias que estão na boca do rio
Xingu, não querendo <eles> dar-lhe índios por [para] não
irem contra as ordens de El Rei. Por cuja falta, e também
por o intimidarem com os perigos dos índios bravos que
tem nas suas margens o Xingu rio acima. E dizia o mineiro,
queixando-se, que lhe bastava uma só noite ou dia minerar
com os seus negros para voltar rico de ouro e diamantes,
e que não tinha medo da escolta que lá andava porque en-
quanto, dizia ele, uns negros brigam com a escolta, os ou-
tros bastam a tirarem grande cabedal; embora que (note-se
a razão que dava, para se fazer conceito da larga consci-
ência daquele branco, cujo intento é só enriquecer para esta
vida e esquecer da Eterna) custasse a morte de alguns ne-
gros e índios (pobres índios e pobres negros ! cujas vidas e
almas não são avaliadas dos [pelos] brancos em mais do que
se fossem feras do mato !). Mas tornando aos diamantes do
rio Claro, são tantos que dois soldados, que dele ou da sua
escolta desertaram e se foram meter nas missões de Castela,
levaram consigo, e lá mostraram, duas libras de diamantes
que às escondidas dos mais foram apanhando.
9º. Mais prova, ainda, a confissão de um aventureiro,
o qual (é certo que não disse o lugar onde os tinha ha-
vido), sendo desterrado das minas, por seus crimes, para a
de África, onde morreu, mui brevemente confessou que ele,
só em diamantes, tinha deixado escondido nas minas um
frasco de diamantes [14] cheio, dos quais os mais inferiores
eram de 5 mil cruzados para cima. E de que lhe aproveitou
a este homem tanta riqueza, se a havia de deixar escondida
na terra <?>, se talvez nem ele nem outrem se aproveitar
porque ainda que deixou alguns indícios do lugar e ..... [?]
para vir desenterrar a quem o revelou, moralmente <nem>
aquele, nem seus herdeiros, se aproveitariam pela grande
distância dos lugares, como eram África, onde o revelava e
América, onde estava enterrado, e só vem a servir esta no-

143 revista do ieb n 43 set 2006


tícia para se vir em conhecimento da multidão ou abun-
dância de diamantes que ....altam [?] este grande tesouro.
10. Aquele grande lago que dizem os índios do
mesmo rio Xingu haver no centro dos seus matos, de que
dá notícia o Pe. Betendorf na sua crônica dos varões ilus-
tres da Companhia <de Jesus> da província do Maranhão e
Pará e seus progressos nas missões, cuja [‘que’] apontei na
descrição daquele rio na Primeira parte, também mostra ser
[‘ter’] um tesouro nas suas margens, porque afirmam os ín-
dios que as suas praias luzem como ouro, e se não fosse a
comum opinião dos geógrafos e históricos do Amazonas,
que todos supõem estar na banda do norte e entre os rios
Urubu, Negro e Japurá o encantado lago dourado Parima
com a sua cidade de ouro Manoa, com grande fundamento
se podia suspeitar ser <no> rio Xingu, onde dizem os natu-
rais que também há povoações como do europeu, mas por
ser rio acima e muitos dias distante, no centro dos matos,
cujos caminhos ou jaibrinhos23 só são freqüentados por feras
e índios bravos comedores de gente, não há quem se anime
a examinar com seus olhos o que há na verdade, e só houve
um português que muito se adiantou, mas finalmente voltou
para baixo e só provava que naquelas paragens havia gado
vacum porque achava e trazia para prova dele um famoso
corno de boi que achou na terra. O tempo virá a descobrir o
que na verdade houver.
11. Junto ou não muito acima da sua boca, até onde é
só povoado este rio Xingu com algumas poucas povoações
de índios, porque toda a sua mais longitude de quatrocentas
léguas pouco mais ou menos, todo é despovoado como todos
os mais rios colaterais, e só são povoados dos índios bravos,
estão umas minas de ouro em tanta abundância que se vêem
na mesma flor da terra, nas margens ou cabeceiras de um
pequeno riacho, como descobriu um morador que veio. Posto
que por falta de quem o ajudasse, porque não tinha escravos
e não se fiava dos brancos, nunca se pôde aproveitar e
quando andava escogitando o modo, adoeceu mortalmente;
e em agradecimento ao hóspede que lhe assistiu caritativo
na doença, lhe revelou o segredo. Mas como era religioso,
<este> fez pouco caso da notícia, e só pouco a pouco se foi
espalhando a fama de que havia alí perto minas de ouro
num riacho; mas como estes são muitos e não declarou o re-
ligioso qual era, ficaram as ditas minas ainda sub Roza [?],
se é que já não estão descobertas.
12. E se os leitores censurarem de negligentes aos por-
tugueses que habitam [15] na boca do rio e podiam ainda,
só por passeio e divertimento como fazem quando vão à

23 Sulcos; trilhas.

144
caça, por não indagarem o tal tesouro que já sabem <que>
têm perto, muito mais estranharão a sua descuriosidade em
não se resolver nenhum a experimentar o metal de umas
grandes pedras que tem o rio no meio, mas fora d’água, a
que os naturais, pela semelhança do seu som com o som
dos sinos, chamam Itamaracá na sua língua, isto é sinos:
tocam-lhe com a unha e fazem o som de um sino, por cuja
razão todos os supõem ser metal, ou que tem muito metal, e
muitos por divertimento lhe tocam, mas nenhum se resolve
a ver que metal seja. Tem-se achado nas suas alegres praias
várias pedras preciosas, quando não sejam verdadeiros dia-
mantes, de que aqueles moradores têm pouco conhecimento.
13. Muitos outros rios medeiam entre o Xingu e <o>
Tocantins, mas todos inabitados de portugueses e por isso
nada se sabe dos seus minerais, posto que se presume terem
também alguns, por serem todos os rios e suas margens se-
melhantes. Das cabeceiras do grande rio Tocantins já fa-
lamos ser um quase contínuo mineral; no mais espaço do
rio, como também do outro grande rio Araguaia, nada se
sabe, também por inabitados, e só se sabe que o rio Tocan-
tins tem muitas pedras de antimônio, que também são esti-
máveis, e um prático da foz do rio e das suas cabeceiras foi
o que advertiu nas pedras de antimônio <e> afirmava que
toda a sua terra é um contínuo mineral.
14. Na mesma margem do sul, na boca do Amazonas,
se sabe de certo haver minas de ouro, e o revelou um morador
à hora da morte, pedindo a seu confessor conselho se devia
ou não descobrir [‘revelar’] a quem tocava<m> as tais minas,
que ele sabia de certo estarem nas cabeceiras de um regato na
banda do Amazonas; o que lhe resolveu o confessor ele o sabe,
mas as minas ou ficaram encobertas, ou os avisados se ca-
laram, porque só se foi divulgando que as havia, mas nenhum
afirmava aonde eram e deste modo sabem muitos particulares
de muitos outros minerais, e porque se não podem aproveitar
a sí ou o não queram fazer por não descobrirem o achado, su-
cede que ninguém se aproveita.

Cap. 4º.
Dos minerais do rio Amazonas da margem do sul
nos domínios de Castela.
1º. Estas são as minas de que se sabe na margem do
sul na região do Amazonas nos domínios portugueses, ainda
sem falar nas minas de pedra azul que há junto à boca no
rio Xingu e nos muitos topázios e infinidade de outras pe-
dras finas que se acham no mesmo rio e em quase todos,
umas triangulares, outras ova<la>das, piramidais, oita-
vadas, muitas resplandecentes, rosas, vermelhas, brancas.
Há pedras nefríticas, pedras de águia, outros minerais de

145 revista do ieb n 43 set 2006


pedra azul no rio Coroa [Curuá?], que todas são estimáveis,
posto que os seus moradores nenhum caso fazem delas. Não
é menos rica a margem do Amazonas do sul em que vamos
falando nos domínios de Castela, que se seguem [16] desde
as minas de Mato Grosso até o mar Pacífico, do qual distam
as cabeceiras do Amazonas só cousa de dez léguas. E princi-
piando pelo dilatado império do Peru, é certo que não tenho
individuais notícias dos seus muitos minerais, assim de ouro
como de prata, porém para dar aos leitores alguma notícia
de que possam formar conceito do seu grande tesouro, basta
trazer à memória o que já referí na Primeira parte, falando
do Peru por notícias certas de Mr. Condamine, que o viu
com os seus olhos.
2. É em substância que são tantas as riquezas da ci-
dade de Lima, sua capital, que nos templos, em qualquer
festa, não das maiores mas ainda nas mais ordinárias, não
se vê nem se oferece aos olhos de quem neles entra, senão
ouros, pratas e pedrarias preciosas. O mesmo também se ad-
mira nas salas e palácios dos nobres <e> mais é o que se
conta da plebe, e é que é tanta a riqueza das suas minas
que qualquer mulher ordinária não sai à rua ou às suas vi-
sitas com menos custo de sessenta mil cruzados em seu or-
nato. Na cidade de Cusco, que antes dos castelhanos mu-
darem a Corte para Lima era capital e corte dos imperadores
Incas, senhores daquele império, se escreve nas histórias ser
antes tanta a riqueza que as mesmas alfaias de casa como
panelas, pratos e todos os mais utensílios eram de ouro ou
de prata, como também muito ornato ainda externo e te-
lhados das mesmas casas, que bem se aproveitaram os caste-
lhanos quando entraram naquele vasto e riquíssimo império.
Ainda hoje se enriquecem com as suas mui rendosas minas,
como denota o grande fausto que já dissemos de Lima, como
também da grande vila de Porto Calhao, pouco distante de
Lima e muitas outras povoações daquele vasto império.
3º. E com ser tão rico, a sua mais rica província é a
que chamam Província dos Charcas, que fica a sul de Lima e
Cusco e confina por oeste com o mar do Sul ou mar Pacífico
e com o reino de Chile, e por sul com a Província do Para-
guai, e fica ou abraça muita parte da Chapada grande entre
as vertentes de rios do Amazonas. Todos afirmam ser esta a
província mais rica, não só no império do Peru, mas ainda em
toda a América, e das suas muitas riquezas vem o chamarem
à sua capital cidade de S.Juan del Oro. Nesta província estão
as riquíssimas minas do Potosí, de que se tem tirado imensa
prata e ainda se continua a tirar com tal abundância, com tão
grande tesouro, que bastavam só estas minas para enriquecer
toda a América, e donde saem todos os anos imensas somas

146
para a Europa. Porém, além do Potosí, tem também muitas ou-
tras minas de ouro e outros metais.
4º. O reino de Chile é certo que já fica fora do Ama-
zonas, mas por confinar com ela e por abraçar muitas partes
das montanhas que pela parte do sul servem de lado ao
Amazonas nos montes que chamam Andes, também muito
engrandece o grande tesouro americano, porque nas suas
serranias são tantos os minerais como na mesma Província
dos Charcas, e basta dizer, para fazer conceito das suas
grandes riquezas, o que na Europa relatava um missionário
que foi muitos anos naquele reino: que era tanta a prata em
Chile, que vinha a ter só a estimação do ferro e que por isso
tinha a serventia do ferro em tudo o que podia suprí-lo, e
que o ferro é no Chile mais estimado que a mesma prata.
Bastam essas tais quais notas para os leitores fazerem con-
ceito do grande tesouro do Amazonas enquanto não des-
crevermos com mais individuação os seus muitos minerais;
porém, como o principal tesouro das terras não consiste nos
seus minerais, mas na abundância e fertilidade do seu ter-
reno, eu vou já mostrá-lo no fertilíssimo Amazonas.

Trat. 2º.

147 revista do ieb n 43 set 2006


Quando dois acervos se completam:
a biblioteca de Mário de Andrade no
Brasil e a Staatsbibliothek de Berlim
Rosângela Asche de Paula*

“Onde se queimam livros, no final se queimarão pessoas”1


Heinrich Heine

Desde 1999, sob coordenação da Profª. Drª. Telê An-


cona Lopez, trabalho no “Projeto Integrado de Pesquisa:
Biblioteca de Escritores e a Criação Literária”2 . Nele, com
bolsa da FAPESP, desenvolvo meu próprio projeto para
o doutoramento na FFLCH-USP, O expressionismo na bi-
blioteca de Mário de Andrade: da leitura à criação, o qual
visa analisar a contribuição dessa vanguarda em quatro
obras desse escritor, publicadas na década de 1920: Pauli-
céia desvairada, Clã do jabuti, Losango cáqui e A escrava
que não é Isaura.
O projeto inclui o levantamento dos livros e peri-
ódicos do e sobre o expressionismo alemão presentes na
biblioteca do escritor modernista, bem como o registro e
a classificação das notas autógrafas, por meio das quais
Mário dialogou com ficcionistas, poetas e teóricos do ex-
pressionismo de língua alemã. Esta segunda parte do tra-
balho, já em fase de finalização, tem como resultado
um cd-rom que mostra, em fac-símile perfeito, mediante
“scanner”, tanto as obras do expressionismo e as notas
de leitura, como a transcrição diplomática dessas mesmas
notas (Notas MA). O cd-rom conta também com as Notas
da pesquisa, que exploram o diálogo de Mário de An-
drade com o expressionismo, diálogo que surgiu no espaço
da leitura, gerando ref lexão, comentário e, conseqüente-
mente, a criação.
As notas apontam a mescla das idéias e imagens ex-
pressionistas com as reflexões do modernista brasileiro
sobre a arte e a cultura em seu país, detectadas no “Prefácio
interessantíssimo” de Paulicéia desvairada e na poética d´A
escrava que não é Isaura. Acompanham também a trans-
figuração de soluções estruturais e estilísticas de poetas e
* Doutoranda em Literatura Brasileira (FFLCH-USP), bolsista Fapesp e
DAAD ( junho-setembro 2004)

1 “Hassan: (...) Dort wo man Bücher verbrennt, verbrennt man auch am


Ende Menschen”. Fala da personagem Hassan, da tragédia Almansor (1821).

2 O projeto desenvolve-se no âmbito do IEB e da FFLCH-USP.

149 revista do ieb n 43 set 2006


prosadores do expressionismo nos textos de criação do poeta
de Paulicéia desvairada, Losango cáqui e Clã do jabuti.
Concluída a segunda parte do projeto, sem a qual não
poderei escrever a tese (ensaio), na qual trabalharei com
obras e autores expressionistas como matrizes do pensa-
mento e do texto poético de Mário de Andrade, percebi a
necessidade de ampliar meus conhecimentos sobre a esté-
tica de Der Sturm: obter mais informações sobre livros e re-
vistas, atualizar bibliografia sobre os autores, visitar mu-
seus, exposições e bibliotecas, deslocando-me para centros
que, na Alemanha, são depositários de expressiva docu-
mentação sobre o assunto. Candidatei-me, portanto, a uma
bolsa DAAD/ FAPESP que me garantiu a permanência de
três meses na Alemanha, pelo Lateinamerika-Institut (LAI),
da Freie Universität-Berlin, sob orientação da Profª Dr.ª Lígia
Chiappini, entre junho e setembro de 2004, quando pes-
quisei em bibliotecas de Berlim e visitei museus em Mu-
nique.
Foi de extrema importância para minha pesquisa a
consulta a bibliotecas em Berlim: supriu lacunas decorrentes
do difícil acesso a uma bibliografia especializada no Brasil
e da ausência, aqui, de obras que ofereçam uma dimensão
histórica mais completa do significado da literatura e da
arte expressionistas. Isto é, que focalizem esta vanguarda,
no contexto de quatro momentos distintos e conturbados da
história alemã: a Primeira Guerra, a República de Weimar, a
ascensão do nazismo em 1933 e os bombardeios aliados de
1945.
Em minha pesquisa recolhi 134 títulos, entre artigos,
livros e periódicos, que considerei válidos para alcançar os
objetivos traçados para a tese: datar as edições presentes
na biblioteca pessoal de Mário de Andrade; coletar material
para a elaboração das biografias de autores do expressio-
nismo que farão parte do cd-rom e recolher textos críticos e
teóricos sobre a estética expressionista, que serão utilizados
para fundamentar a análise das relações entre as leituras
feitas por Mário do expressionismo e sua transfiguração na
criação literária.
Apontar indícios da leitura do expressionismo feita
por Mário de Andrade, vinculados a um diálogo que de-
ságua na criação poética ou teórico-estética está ligado,
dentro da crítica genética, ao estudo das bibliotecas de es-
critores. Devo deixar claro que estamos falando de diálogo,
ou seja, uma troca, uma discussão de idéias, de conceitos
visando, neste caso, a solução de problemas até se chegar à
vanguarda modernista brasileira.
A estética expressionista, enquanto “abandono da ex-
pressão do objetivo em favor da expressão subjetiva”3 foi

150
fundamental para Mário repensar a sociedade brasileira dos
primeiros decênios do século XX, a qual seguia o modelo da
cultura francesa, nas recentes metrópoles, que ofuscava e
negava qualquer manifestação da cultura popular.
De 25 de junho a 15 de setembro concentrei-me no
acervo da Staastbibliothek – Berlin, em seus dois prédios:
Haus Unter-den-Linden e Haus Potsdamer Strasse.

O fim da segunda Guerra e o desaparecimento de li-


vros do expressionismo
A consulta ao acervo da Staastbibliothek foi, em
termos de experiência pessoal e de formação, senão a mais
importante, a mais significativa, na medida em que me for-
neceu informações sobre a própria história da biblioteca.
O acervo que deu origem à Staastbibliothek ocupava
o interior do Castelo de Berlim (Berliner Schloss). Friedrich
II, o Grande, verificando que o espaço destinado à biblio-
teca real se tornara insuficiente, ordena, no final do século
XVIII, a construção de um prédio destinado a acolher os vo-
lumes da Biblioteca Real. Atualmente este prédio, recons-
truído após a guerra, abriga a Faculdade de Direito da Hum-
bold Universität.
Com o aumento do número de exemplares, foi neces-
sária a construção de um novo prédio, na rua Unter den
Linden. Foi neste edifício, construído entre 1903-14 com
projeto do arquiteto Ernst von Ihne, que realizei parte de
minha pesquisa. A edificação, em parte destruída pelos
bombardeios aliados em 1945, passa, ainda hoje, por uma
reconstrução. No hall há fotos que contam a história: o
bombardeio, as paredes antigas, milhares de livros espa-
lhados a céu aberto. Cabe lembrar que houve muito em-
penho da comunidade em salvar os catálogos da biblioteca,
graças aos quais se pode recuperar a totalidade das obras no
acervo, antes da guerra.
Eu calculara que encontraria dificuldades para con-
sultar os livros do e sobre o expressionismo, porque tinha a
imagem da queima de livros, em frente à Humbold Univer-
sität em 1933, promovida pelo partido de Hitler, o NSDAP,
e por jovens estudantes nazistas. Para minha surpresa, ao
tentar reservar determinados livros pelo catálogo digital da
Staastbibliothek´Berlin, eles recebiam, no registro, muitas
vezes a indicação Kriegsverlusst möglich (provavelmente
perdido na Guerra), acompanhada da sugestão ao consulente
para solicitar a obra na sala de livros raros. Após o pedido,
dentro de dois ou três dias, eu recebia as respostas: “Aqui

3 ANDRADE, Mário de. Expressionismo. In: Diário Nacional, São Paulo,


30 set. 1927. Arquivo Mário de Andrade, IEB-USP.

151 revista do ieb n 43 set 2006


está seu livro, que bom que o ‘encontramos’ ou “Sinto muito,
o livro não foi encontrado. Foi perdido na Guerra”.
Muitos destes livros foram ou queimados realmente em
1933, ou perdidos após os bombardeios a Berlim em 1945.
Vale lembrar que livros considerados raros na época e até
mesmo obras de arte importantes segundo a ótica nazista
para o resgate e preservação da cultura alemã (edições do
século XV etc), foram transferidos, no início da guerra para
mosteiros, porões de castelos ou até mesmo minas de sal, na
previsão de ataques aéreos ou ação de saqueadores.
Após a guerra, com a partilha da Alemanha, o espólio
também foi repartido em setores. Os livros que couberam à
Polônia, por exemplo, foram deslocados para Krakau.
Fracionadas as bibliotecas, resgatar a integridade
desses acervos torna-se tarefa apenas possível se os catá-
logos anteriores à guerra se encontrarem preservados. Mesmo
assim trata-se de uma reconstituição hipotética.
Para minha pesquisa, esse dado reforça a importância
da parcela do expressionismo na biblioteca de Mário de An-
drade, no Instituto de Estudos Brasileiros, parcela a qual,
já antes da minha viagem, eu considerava de grande valor.
Agora, percebo que essas obras reunidas pelo autor de Pau-
licéia desvairada têm seu alcance e seu valor ampliado até a
história recente da Alemanha.
Verdadeiras “baixas de guerra” são as perdas da biblio-
teca de Berlim. Não descobri, até o momento, quais títulos
foram queimados durante a caça aos intelectuais em 1933 e
quais se perderam em 1945, quais se deslocaram dentro da
Alemanha ou entraram em acervos da URSS ou da Polônia.
Todas eles trazem a indicação: “possivelmente perdido na
guerra”. Para nossa sorte, diversos títulos de revistas e li-
vros nessa condição na Alemanha, estão perfeitamente con-
servados na biblioteca de Mário de Andrade, em São Paulo.
Bons exemplos são Georg Trakl, Dichtungen, na primeira
edição de 1919, Diensterweg, de Gottfried Benn, de 1918 e o
Ecce homo, de Georg Grosz.
Paralelamente, na Staatsbiblithek - Berlin, em uma es-
pécie de jogo de tentativa e erro, pude localizar livros mar-
cados como “Kriegsverlusst”, o que foi o caso de Der Malik
(1919), de Else Lasker-Schüler, já conhecido por mim no
acervo de Mário. Recebi o volume das mãos do bibliotecário
com um sorriso e a frase: “que bom que você pediu esse livro”.

Preciosidades na biblioteca de Mário de Andrade


Menschheitsdämmerung, que é uma das obras mais im-
portantes do expressionismo, está na biblioteca de Mário de

152
Andrade. Primeira coletânea da poesia expressionista, or-
ganizada por Kurt Pinthus em 1919 e publicada em 1920,
fez parte do index nazista. O organizador, aliás, no prefácio
à edição de 1959, ressalta o caráter de raridade da primeira
edição: “Milhares de exemplares do livro foram destruídos,
tanto pelos nazistas, como pelas bombas. Após a ressureição
da Alemanha, e sobretudo depois do redescobrimento do ex-
pressionismo, foi pedido nas livrarias e respeitado mais do
que antes de 1933. É praticamente uma raridade nos sebos e
pode chegar a preços extraordinários em leilões.”4
Além da importâcia pelos fatos relatados acima, o
exemplar de Menschheitsdämmerung, na biblioteca do nosso
modernista, goza da dupla natureza de livro e de manus-
critos, uma vez que o lápis de Mário de Andrade ali deixou
as marcas do leitor/ criador em 107 dos 270 poemas. As
notas marginais no volume revelam tanto a leitura aplicada
do estudante de alemão que traduz para melhor compreender
os textos, como o poeta que traduz e ali esboça seus próprios
versos.
Para que se tenha uma idéia do diálogo da criação de
Mário de Andrade com a “jovem poesia alemã”, apresen-
tamos, em fac-símile, a tradução por ele esboçada nas entre-
linhas e nas margens do poema de Jakob van Hoddis, “Wel-
tende” (“Fim do mundo”), p.3. Ao lado dela, no intuito de
divulgar este belo poema do expressionismo alemão, acres-
cento a tentativa de traduzir, minha e de Telê Ancona Lopez,
que incorporou, por certo, soluções aventadas pelo poeta de
Paulicéia desvairada.

Sobre Jakob van Hoddis


Nascido Hans Davidson em 1887, em Berlim, van Ho-
ddis era o filho mais velho de um médico judeu. Seguindo
a profissão do pai, atuou na Primeira Guerra. O nome Jakob
van Hoddis foi por ele cunhado em 1909, como um ana-
grama do próprio sobrenome. Publicado pela primeira vez na
revista Der Demokrat, no mesmo ano da fundação do Neuer
Klub (Novo Clube), 1911, “Weltende”, é considerado como o
ponto de partida dos poemas expressionistas que trazem uma
visão apocalíptica do mundo. Em 1912 van Hoddis passou
por uma crise nervosa, a primeira de várias que lhe cau-
saram internações até 1942, quando, em 30 de abril, foi de-
portado para a Polônia. Morreu entre abril e maio do mesmo
ano possivelmente no campo de concentração de Sobibor.

4 PINTHUS, Kurt. Nach 40 Jahren. In: Menschheitsdämmerung: ein Dokument


des Expressionismus. 32. Aufl. (32ªed.). Berlin, Rowohlt, 2003, p.8.

153 revista do ieb n 43 set 2006


Exemplar na biblioteca
de Mário de Andrade
(IEB-USP)

154
Tradução

“O fim do mundo”

O chapéu do burguês voa da cabeça estreita,


Por toda parte ecoa a gritaria,
Os que montam telhados despencam e se espatifam
As marés explodem, contam os jornais.

A tempestade irrompe, os mares avultam selvagens


Sobre a terra estourando os grandes diques.
Os homens, a maioria funga e choraminga .
Os trens precipitam-se das pontes.
Jakob van Hoddis

(Tradução de Mário de Andrade, Rosângela Asche de Paula e


Telê Ancona Lopez)

Mário de Andrade dialoga com van Hoddis


Van Hoddis desnuda a figura do burguês, sempre ob-
jeto do sarcasmo expressionista. Cada verso preserva uma
independência categórica. São “semelhantes a manchetes de
jornal”, como bem apontou Cláudia Cavalcanti 5.
O espaço do poema é a cidade. O tempo é o da angústia
daqueles que vivenciam a atmosfera social e econômica do
Império, que depois culminaria na Primeira Grande Guerra.
Neste poema, van Hoddis inaugura o uso da orde-
nação assindética das frases, o que causa um grande des-
conforto no leitor, segundo Cláudia Cavalcanti, uma vez que
os elementos do grotesco e da ironia se vêem revestidos de
métrica e rima precisas.
Poema anotado por Mário e lido provavelmente entre
1920-1921, “Weltende” mostra sobre o texto impresso apenas
traduções de palavras. Porém, enquanto matriz, o poema
ganha um alcance muito maior.

Transcrevo as anotações marginais de Mário:


Notas MA a lápis preto:

Verso 1: grifo em spitzen e tradução: “pontuda”


Verso 3: grifo em Dachdecker e tradução: “entelhadores”
Verso 3: grifo em stürzen e tradução: “caem”
Verso 3: grifo em gehn entzwei e tradução: “espatifar”
Verso 4: grifo em steigt e tradução: “sobe”
Verso 6: grifo em Dämme e tradução: “diques”
Verso 7: grifo em Schnupfen e tradução: “deflusso”
5 CAVALCANTI, Cláudia. Poesia expressionista alemã; uma antologia. São
Paulo: Estação Liberdade, 2000, p.27.

155 revista do ieb n 43 set 2006


As notas marginais de Mário apontam elos entre o
poema lido, a tradução visando uma compreensão e a conse-
qüente criação. Esta última, vai desembocar nos versos 13-
14 e 20-23 da “Ode ao burguês”6 , em Paulicéia desvairada:

Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
[...]
Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
Morte ao burguês-cinema! Ao burguês-tílburi!

Inserido no livro modernista de Mário de Andrade em


1922, esse poema exibe também elementos de renovação de
linguagem, assim como a utilização do grotesco no ataque
ao burguês e, de certa maneira, à arte que este representa.
Ambos os poetas destinam o seu ódio ao burguês, movidos
por questões da esfera política, social ou cultural.
Van Hoddis canta a destruição de tudo que se liga ao
burguês através da visão apocalíptica do fim do mundo –
Weltende. A fantasia ultrapassa a revolta interna e faz com
que o próprio mundo burguês destrua a figura em que se es-
pelha.
O poema de Mário, desde o título, “Ode ao burguês”,
que soa sarcástica e ambiguamente como “ódio ao burguês”,
em seu tom de pilhéria e ironia não poupa ataques, empre-
gando sobretudo os pares de substantivos (marca do futu-
rismo adotada pelos expressionistas) com função de adje-
tivar depreciativamente, reforçado pelo uso parcimonioso
dos adjetivos. Em Paulicéia desvairada não é o mundo que
destrói, mas sim a invectiva na linguagem que, ao longo
do poema pinta o burguês como ser decadente e odiado por
força de sua alienação:

Come! Come-ti a ti mesmo, oh! Gelatina pasma!


Oh! purée de batatas morais
Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas! (v. 29-31)

Conclusão
Brasil e Alemanha se encontram, nesta pesquisa, não
apenas no diálogo travado por Mário de Andrade com os
expressionistas, como nas lacunas que são preenchidas à
medida que se compara os dois acervos.

6 ANDRADE, Mário de. Paulicéia desvairada. São Paulo: Casa Mayença,


1922, p.67-9.

156
O olhar sobre as obras do expressionismo literário
alemão, em ambos, acusa proximidade e distanciamento, la-
cunas. Eles tocam quando, nos catálogos, há coincidência de
títulos. Além disso, na biblioteca de Mário de Andrade, pre-
servada em sua integridade material no Instituto de Estudos
Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), conta-
se também com a possibilidade de conhecer a localização
dos volumes na casa da rua Lopes Chaves (cômodo, estante,
prateleira e posição do volume na mesma). Assim acontece
graças ao projeto coordenado por Antonio Candido que, na
década de 1960, promoveu o tombamento da biblioteca e o
registro da marginália, e ao fichário original por autores e
obras. Por outro lado, na Staatsbiblítohek, o distanciamento
se impõe, uma vez que apenas registros anteriores à Guerra
proporcionam a “reconstrução” do acervo, em catálogos re-
cuperados.
A destruição de bibliotecas, conforme Mathew Bat-
tles7, é um fenômeno que se intensificou no século XX, con-
trariando o movimento de criação das mesmas, no século
XIX. E as guerras são as maiores causadoras dessas perdas.
O que a História fixou quanto à expansão do III Reich re-
pete-se agora na Bósnia e em Bagdá.
Eliminar o contingente intelectual e a produção cul-
tural de um povo tem por trás a intenção de aniquilá-lo. A
identidade de uma nação ou de uma população liga-se, de
modo indissolúvel, ao conjunto das manifestações culturais.
Não se joga uma bomba em uma biblioteca ou em um museu
por engano. Como a própria história mostrou, são alvos im-
portantes em uma guerra.

7 BATTLES, Mathew. A conturbada história das bibliotecas. Trad.: João


Vergílio Gallermani Cuter. São Paulo: Planeta do Brasil, 2003, p. 157.

157 revista do ieb n 43 set 2006


Manuscritos de Outros Escritores no
Arquivo Mário de Andrade: Perspectivas
de Estudo*
Márcia Jaschke Machado**

Em 15 de setembro de 1942, Mário de Andrade escreve


a Sérgio Buarque de Holanda, solicitando-lhe os manuscritos
de Monções, ensaio de fôlego ao qual o historiador então se
dedicava, visando apresentá-lo em um concurso nos Estados
Unidos. Na carta se lê: “Concebi um desejo ousado. Vamos
a ver se desta vez eu chego antes do Rodrigo1. Como você
deve saber, bibliófilo inveterado e sem vergonha como todos,
tenho uma coleção de originais (manuscritos ou datilogra-
fados de primeira versão, corrigidos) que é uma já bonita
coisa. Entre outras importâncias tem o Brás, Bexiga e Bar-
rafunda, o João Miguel e As Três Marias da Raquel, um Lins
do Rego, um Marques Rebelo, um quarteto inédito do Hen-
rique Oswald, etc etc. Já uns quarenta números sem contar
as poesias está claro, Manuel, o Drummond, o livro retirado
do mercado do Murilo Mendes etc. Acresce que deixo tudo
pro Estado, Biblioteca Municipal, não deixo pra família.
Concebi a idéia de ter os originais, projetos, rascunhos,
etc. do livro que você está escrevendo pro tal concurso nos
States, é possível? Ficava numa vaidade danada, e havia de
tomar um drinque bom em honra vossa. Mande contar se é
possível, pra eu ficar me rindo todo”.2
Mário colecionador, que assim se manifestava em
1942, novamente perdeu para Rodrigo Mello Franco de An-
drade, outro grande amigo, a quem Sérgio Buarque de Ho-
landa já prometera os manuscritos. As afinidades de Mário

* Este artigo retoma o estudo de abertura da dissertação de Mestrado


A série Manuscritos de outros escritores no Arquivo Mário de Andrade:
perspectivas de estudo, apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo em 29 de março de 2005.
A pesquisa, sob orientação da Profª Drª Telê Ancona Lopez, no Programa
de Pós-Graduação de Literatura Brasileira no Departamento de Letras
Clássicas e Vernáculas teve financiamento da CAPES.

** Márcia Regina Jaschke Machado, mestre em Literatura Brasileira pela


Universidade de São Paulo e integrante da Equipe Mário de Andrade no
Instituto de Estudos Brasileiros-USP.

1 Referindo-se a Rodrigo Mello Franco de Andrade, Diretor do Serviço do


Patrimônio Artístico e Histórico Nacional, SPHAN.

2 Documento no CEDAL, UNICAMP, no Arquivo Sérgio Buarque de Holanda.

159 revista do ieb n 43 set 2006


de Andrade com Rodrigo, como bem se vê, somavam o re-
conhecimento da importância da salvaguarda do patrimônio
histórico e artístico do país à bibliofilia. A carta ao amigo
historiador, contudo, registra, com tintas de testamento do
homem público, um importante desejo: destinar ao Estado
todo o material que lograsse coletar. Sabia do valor dos do-
cumentos de arquivos pessoais, enquanto fontes primárias
do trabalho historiográfico; em 1944, focalizará diretamente
o assunto no artigo “Fazer a história”, na Folha da Manhã.
Há muito tempo empenhava-se em reunir documentos que
pudessem servir a futuros pesquisadores, ciente da impor-
tância do período em que vivia: “Tudo será posto a lume um
dia, por alguém que se disponha a realmente fazer a his-
tória”, sentencia, então, em 1944. Fiel a seus propósitos de
democratização da cultura, Mário nega o colecionismo par-
ticular, tantas vezes sujeito à imobilização fetichista. Mas, o
que não imaginava, é que os manuscritos por ele coligidos,
assim como todo o seu acervo, composto de biblioteca, ar-
quivo e coleção de artes plásticas, em 1968 viria justamente
integrar o patrimônio do Instituto de Estudos Brasileiros da
Universidade de São Paulo, fundado por Sérgio Buarque de
Holanda em 1962. No IEB-USP, o arquivo, sob a curadoria
de Telê Ancona Lopez, nas séries que o constituem, vem
sendo objeto de organização e difusão.

Vertentes na coleção de manuscritos de outros escritores


No segundo semestre de 1943 e no início de 1944, di-
versas entrevistas e reportagens celebraram os 50 anos de
Mário de Andrade (nascido em 3 de outubro). Em duas delas
os jornalistas desvelam, com entusiasmo, o espaço da casa
da rua Lopes Chaves, dando destaque ao trabalho do inte-
lectual e à riqueza de suas coleções. Mário da Silva Brito,
no Diário de S. Paulo de 2 dezembro de 1943, assim se ex-
pressa:

“Decididamente cometi uma imprudência indo procurar


Mário de Andrade para uma entrevista. É que ele, há já algum
tempo, anda enfermo, necessitando de repouso e tranqüilidade,
duas coisas que, jamais, um espécula de jornal poderá ofertar.
Era meu dever fazer-lhe apenas uma ‘visitinha de médico’. Mas
quem diz que fui capaz. Conversa puxa conversa, hora vem e
hora vai, quando tive que dar ‘boa-noite!’ – os ponteiros do re-
lógio tocavam-me da sala – meu Deus do céu!, já tinha acon-
tecido a inevitável e prevista imprudência. De quem a culpa?
Minha, por ser curioso. Dos leitores, que querem notícias. De
Mário de Andrade, em torno de quem sempre há um grande in-
teresse.

160
Devolvido o escritor ao seu merecido sossego, lá fui eu
melancólico pelas ruas, os olhos ainda lembrados do ambiente
acolhedor da casa de Mário: quadros de Portinari, de Segall e de
Tarsila, pastas de artigos, revistas, álbuns de arte, recortes de
jornal e mil e uma outras coisas. E um bem-estar com visgo.”3

E Francisco de Assis Barbosa, repórter de Diretrizes,


o secunda, em janeiro de 1944, percorrendo o sobrado onde
vivia o escritor: “É uma casa simples, sem luxo. Mas está
cheia de quadros, de livros, de músicas. Lhote, Picasso, Por-
tinari, Segall. Sem falar na coleção de desenhos e gravuras,
que sobem a oitocentos mais ou menos. E os livros? Há de
tudo. A parte principal é sobre arte e literatura. As mú-
sicas estão embaixo, numa sala pequena, que tem o retrato
de Beethoven. Sei que existem para mais de vinte mil peças,
todas devidamente catalogadas na biblioteca Mário de An-
drade”.4
Testemunhavam, os dois jornalistas, o esforço de uma
vida inteira. Mário de Andrade devotado à tarefa de reunir
documentos de seu tempo mostra-se, pela primeira vez,
entre 1909 e 1910. Em um volume de contabilidade, certa-
mente descartado pelo pai, contador do Conservatório Dra-
mático e Musical de São Paulo, ele improvisou, aos 16 anos,
um álbum de recortes. No volume encadernado em pano-
couro preto, as folhas marcadas pelas colunas “Datas”,
“Deve” e “Haver”, as páginas numeradas a carimbo, dispôs
textos e imagens tirados de jornais e revistas dos anos re-
feridos, discriminadas as áreas de filosofia, literatura, ciên-
cias, história universal, música, geografia, estatística, pin-
tura e escultura. Colou na capa o cartão de visita: “Mário
Raul, /Largo do Payssandú, 26, São Paulo”, sobre o qual se
lê, em letra floreada, o título A Batalha das Notas, seguido
da assinatura “MRAndrade”. Ao guardá-lo em seu arquivo,
o moço e depois o intelectual consciente não permitiram
que o tempo apagasse esse marco dos seus primeiros inte-
resses no campo cultural de seu tempo e do seu gosto de co-

3 Entrevista de Mário da Silva Brito: “Trabalhos de Mário de Andrade. O


mais organizado intelectual do Brasil”. Diário de S. Paulo. São Paulo, 2
dez., 1943. (Arquivo Mário de Andrade – IEB – USP).

4 “Acusa Mário de Andrade: ‘Todos são responsáveis! Os intelectuais


puros venderam-se aos ‘donos da vida’’”. Entrevista de Mário de Andrade
a Francisco de Assis Barbosa, Diretrizes, a 4, nº 184. Rio de Janeiro, 6
jan., 1944, p. 1, 25, publicada em LOPEZ, Telê Ancona, org. ANDRADE,
Mário de. Entrevistas e depoimentos. São Paulo, T. A. Queiroz/ FAPESP,
1983. O jornalista recolheu o texto em seu livro Testamento de Mário de
Andrade e outras reportagens. Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa
Nacional, 1954, p. 8-9.

161 revista do ieb n 43 set 2006


lecionar. O álbum de recortes baliza o despertar, bem mais
tarde rememorado para a discípula Oneida Alvarenga:

“Que mistério, que intuição, que anjo-da-guarda,


Oneida, quando aos 16 anos e muito resolvi dedicar-me à
música, me fez concluir instantaneamente que a música
não existe, o que existia era a Arte?... E desde então, desde
esse primeiro momento de estudo real (antes, por uns meses
apenas, estudara piano sozinho, só pra gastar o tempo),
desde então, assim como estudava piano, não perdia con-
certo e olhava a vida dos músicos, também não perdia ex-
posições plásticas, devorava histórias de arte, me atrapa-
lhava em estéticas mal compreendidas, estudava os escri-
tores e a língua, e, com que sacrifícios nem sei pois vivia
de mesada miserável, comprava o meu primeiro quadro!
Por sinal que, não caçoe, eram umas ninfeáceas roxas num
lago, com um fundo de grandes árvores florestais, obra do
Torquato Bassi! não caçoe, menina. Mas eu amei aquela
água que parecia profunda mesmo.”5

O álbum de recortes, posto ao lado da aquisição do pri-


meiro quadro, anuncia o futuro colecionador de livros, ma-
nuscritos e obras de arte. Esse gosto lhe chegara no próprio
ambiente familiar. O avô materno, Joaquim de Almeida Leite
Morais, o pai que imprimia livros, o primo de Araraquara,
19 anos mais velho, Pio Lourenço Correa, a quem Mário cha-
mava de tio. Este, em uma das cartas que endereçou a Mário
de Andrade, datada de Araraquara, 11 de outubro de 1923,
dá conta da presença de um exemplar do “grande Saint Hi-
laire”, na biblioteca do avô. Nessa correspondência e em ou-
tras que se ligam ao escritor modernista, como nas que en-
volvem Sérgio Milliet, Sérgio Buarque de Holanda ou Murilo
Miranda, desenha-se o colecionador e o bibliófilo.
Ao longo dos anos, vivendo em São Paulo, à rua
Lopes Chaves, de 1922 até morrer em 25 de fevereiro de
1945, com exceção do período em que morou no Rio de Ja-
neiro entre junho de 1938 e março do ano de 1941, Mário
fez da casa, onde se radicou, o espaço do acervo. Pouco a
pouco, os quadros tomaram as paredes; os cômodos se sub-
meteram às necessidades do colecionador estudioso que
buscava, cada vez mais, lugar para seus móveis de moderno
design destinados a abrigar seus teres e haveres.6 Livros,

5 ALVARENGA, Oneida, org. Mário de Andrade - Oneyda Alvarenga:


cartas, p. 270-271, carta a Oneida Alvarenga de 14 de setembro de 1940.

6 Sobre o interesse de Mário de Andrade pelo design alemão, v. PAULA,


Rosângela Asche de. “Mário de Andrade ‘Designer’ aprendiz”. Revista D. O.
Leitura. São Paulo, Imprensa Oficial do Estado, nº 3, ano 19, mar. 2001, p. 14-21.

162
partituras, esculturas, imagens de santos, objetos do fol-
clore e relacionados à Revolução de 1932, bem como instru-
mentos musicais de índios, fotos, programas de concertos,
desenhos infantis, fichários de pesquisas e leituras, manus-
critos, correspondência traduzem, nesse acervo, o prazer da
conquista do conhecimento e o trabalho.
Aos olhos de quem transitava pela residência, desco-
bria-se o acervo organizado segundo a lógica deste cole-
cionador que conjugava o prazer de possuir ao de compar-
tilhar, como se vê neste trecho da carta que endereçou a
Paulo Duarte, em 23 de abril de 1943: “Neste momento em
que lhe escrevo, 16 horas desta Sexta-Feira Santa, estou
aqui cheio de universitários mineiros que vieram ver mi-
nhas coisas. Cada um está pra seu lado, mexendo em livro,
lendo meus contos inéditos, mexendo na minha coleção de
desenhos. São gente que veio pras Olimpíadas Universitá-
rias e ando com a casa cheia de moços, dia e noite”7.
No que se refere aos manuscritos de outros escri-
tores, a coleção tem início na segunda metade da década de
1910, movida possivelmente por um escopo de nuances feti-
chistas. Mário de Andrade adquire, nesse momento, Jacinto,
o pequeno cesteiro, um conto para crianças da segunda me-
tade do século XIX, na pena de Alexander Hummel, dina-
marquês que viera morar no Brasil. Depois, em junho de
1919, quando faz sua primeira viagem às cidades históricas
de Minas Gerais, tendo já publicado Há uma gota de sangue
em cada poema, ao visitar Alphonsus de Guimaraens em
Mariana, o encontro rende-lhe a preciosidade de um autó-
grafo do grande simbolista, Fatum, bem como a cópia por
ele assinada de Soneto, feita na hora pelo visitante. Este,
ávido em sua admiração, copia ainda dois sonetos de Pauvre
Lire, livro publicado em 1921. A esses textos a coleção soma
dois outros cujo significado é único no universo do acervo
que o autor de Macunaíma construiu. São aqueles que
marcam a lembrança do pai, Carlos Augusto de Andrade,
escritor bissexto, falecido em 1917: o poema “É certo? A
teus pés prostrado” e a peça de teatro A Mão da Caridade.
No início da década seguinte, em 1922, Mário de An-
drade conhece o poeta Manuel Bandeira, com quem inicia
uma amizade para toda a vida, retratada na extensa cor-
respondência com ele trocada, na qual estão interminá-
veis discussões sobre a produção literária de ambos. Mário
de Andrade e Bandeira são artistas que se encontram em
um mesmo patamar, donos cada de seus respectivos pro-
jetos e caminhos. Cultivam o hábito de remeter um ao outro
7 CAMARA, Cristiane Yamada. Mário na Lopes Chaves. São Paulo,
Fundação Memorial da América Latina, 1996, p. 52.

163 revista do ieb n 43 set 2006


os textos em fase de criação, esperando o comentário sin-
cero, a sugestão que, muitas vezes, muda o destino da es-
crita. Mário de Andrade colecionador vai assim agregando
à ainda incipiente coleção, manuscritos que chegam para
Mário de Andrade poeta, o qual, nesse período de eferves-
cência modernista, pleno de experimentação, dialoga com
outros pares seus, em São Paulo, no Rio e em Paris. Assim,
recebe os originais de Cocktails, livro que Luís Aranha
nunca publicou de motu próprio 8 , poemas que Tácito de Al-
meida deixaria inéditos, bem como as poesias Ronald de
Carvalho que integrariam Jogos Pueris. Enquanto isso, da
capital da França, Sérgio Milliet envia-lhe Cartões Postaes
e o aproxima de escritores de lá que também marcam pre-
sença com manuscritos, como Ivan Goll, poeta de Absolu-
ment, e Nico Horigoutchi, este ocupado com La Poésie Ja-
ponaise Contemporaine e com a tradução de haikais para o
francês. É interessante notar que o modernista brasileiro,
ao receber os dois últimos textos, está se abrindo para essa
nova forma de poesia que, naquela hora, entusiasmava o
Ocidente. E, logicamente, expandindo o circuito do diálogo
interpares nascido de sua amizade com Bandeira.
Mas é na segunda metade dos anos 1920 que a co-
leção dos manuscritos de outros escritores tem seu volume
aumentado consideravelmente e ganha novo e importante
traço, vinculado prioritariamente, à crítica literária como
prática. Nessa época, o autor de Paulicéia Desvairada é pro-
curado por jovens poetas, admiradores seus de Belo Hori-
zonte, como Francisco Martins de Almeida, Pedro Nava,
João Alphonsus, e de Cataguases, no grupo organizado em
torno da revista Verde, Rosário Fusco, Ascânio Lopes, Hen-
rique de Rezende e Francisco Inácio Peixoto. Haviam en-
trado em contato com Mário de Andrade quando ele, na
caravana da “viagem da descoberta do Brasil”, estivera na
capital mineira, e em Cataguases, assim como em outras
cidades. Agora, isto é, a partir de 1925, dirigem ao amigo
inquietações, textos e o constituem mentor. Mário, que há
bastante tempo iniciara sua marginália, ao apor seus co-
mentários nas páginas dos livros de sua biblioteca, passa
a redigir suas impressões de leitura e notas críticas nas
margens dos manuscritos que recebe, esboços os quais,
na maioria das vezes, vão estribar comentários com que
orienta, em cartas, aqueles moços que se aventuravam nas
plagas da literatura. Transfere, pois, esses comentários para
cartas e para artigos que publica em jornais e revistas.

8 O fato de Luís Aranha estar vivo em 1984 e ter autorizado a edição de


Cocktails (São Paulo, Brasiliense, 1984), organizada por Nelson Archer e Rui
Moreira Leite, não significa que ele, autor, tenha tomado essa iniciativa.

164
Neste ponto, nas relações de Mário mentor dos mi-
neiros, surge uma situação importante: a de Carlos Drum-
mond de Andrade, cujos primeiros manuscritos convalidam
o mentor, mas, que, no crescer de sua poesia logo se equi-
para ao poeta de Clã do jabuti, na vertente do diálogo in-
terpares da coleção.
Depois dos mineiros, muitos e muitos vieram, mo-
vidos pelo desejo de receber uma leitura correta no apontar
enganos e possibilidades, capaz de confessar dúvidas e per-
plexidades como no caso dos contos de Murilo Rubião. É
importante lembrar que, mesmo aceitando o trabalho de
orientação severa, ligado à prática de crítico e correspon-
dente pontual, Mário de Andrade recusa o rótulo de mentor.
Quando escreve a Henriqueta Lisboa, em 24 de fevereiro de
1940, manifesta-se a respeito do assunto e distingue, inclu-
sive, o proveito do crítico: “E agora sou eu que lhe peço me
envie os versos que está fazendo. Não que eu me tenha por
mentor de ninguém, mas porque sou seu amigo [...]. Pois
nesta intimidade nem temerei ser pedante e lhe direi, com
o máximo rigor, o que descobrir ou inventar nos seus po-
emas. Mas mande muitos, mande de novo os já mandados
(pra me evitar o trabalho de procurá-los neste apartamento
de barafunda) e muitos mais, o maior número que puder.
O elemento comparação é imprescindível num estudo e só
mesmo tendo um grupo vasto de poemas, poderei compre-
ender milhor. Mande e nem de longe receie me atrapalhar,
sou eu que preciso de você”.9
À medida que se alastra pelo Brasil a difusão dos li-
vros de Mário e que se multiplicam seus contatos com outros
escritores, de diferentes estados brasileiros vão chegando tra-
balhos, pedidos de leitura e orientação. Luís da Câmara Cas-
cudo, além de aparecer na coleção como o poeta que poucos
conhecem, apresenta a Mário os poemas de seu conterrâneo
potiguar, Jorge Fernandes, o qual também se corresponderá
com o mentor. O Rio Grande do Sul comparece com a poesia
de Augusto Meyer; Manuel Bandeira proporciona ao poeta
Dante Milano a oportunidade de ser lido, nos manuscritos
que faz chegar às mãos do amigo em São Paulo.
O diálogo interpares, nascido em 1922, expande-se
quando nele ingressa a América do Sul, com a participação
dos argentinos Bernardo Graiver e Marcos Fingerit, além do
peruano Alberto Guillén. Sublinha o interesse de Mário por
essa nova frente de interlocução. Intencionam ser divul-
gados entre os escritores daqui. Mário de Andrade, naquela

9 CARVALHO, Abigail de Oliveira (org.). Querida Henriqueta. Cartas de


Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa. Rio de Janeiro, José Olympio,
1991, p.3-4.

165 revista do ieb n 43 set 2006


época interessado na produção intelectual e artística dos
países vizinhos, tenta o papel de intermediário divulgando
o trabalho, principalmente dos argentinos, para alguns po-
etas como Manuel Bandeira.10
Em 1930 chega ao acervo de Mário de Andrade, no
bojo de um propósito diverso, a versão em autógrafo, os
originais de Brás, Bexiga e Barra Funda. Quem a oferece
não é um estreante, nem um companheiro de ofício que al-
meja a opinião do leitor rigoroso antes de ultimar a obra.
Trata-se do reconhecimento de uma coleção, feito por An-
tônio de Alcântara Machado, o autor, quando entrega ao
amigo e confrade modernista o manuscrito do livro publi-
cado em 1927, atendendo ao pedido dele, pelo que se pode
entender, com base na declaração na carta de 1942 a Sérgio
Buarque. Neste autógrafo a tinta preta crivado de rasuras
que testemunham, nas etapas de redação, o percurso da
criação dos contos, não se vêem anotações da leitura do
crítico, ao contrário de muitos outros manuscritos no ar-
quivo dele. Os manuscritos nessa vertente reatam o elo com
os primeiros momentos do colecionador e não são, como os
que se instalam nas vertentes do mentor e do diálogo inter-
pares, versões passadas a limpo. Não visam, de imediato, a
leitura e conservam, na escrita despreocupada com o olhar
de terceiros, o compromisso maior do criador com a própria
escritura. Junto de Brás, Bexiga e Barra Funda alinham-se
As Três Marias e João Miguel, de Raquel de Queiroz, Riacho
Doce, de José Lins do Rego, A Poesia de Jorge de Lima, do
português Manuel Anselmo, A Luz no Sub-solo, de Lúcio
Cardoso, O Sinal de Deus, originais do livro de Murilo
Mendes retirado do mercado11 e a peça de teatro Rua Alegre
nº 12, de Marques Rebelo. Henriqueta Lisboa, ao passar a
limpo em letra esmerada e encadernação cuidadosa, os po-
emas de A Face Lívida, para presente de aniversário do
mentor que tanto prezava, não se desvia, com isso, dessa
vertente; mas, de modo indelével a acentua.
Na chave do colecionador, são agregados à coleção
textos peculiares, como receitas de doces e um conto in-
fantil da cultura popular, Maria Borralheira, enviados por
Stella Gris, esposa do escritor pernambucano Ascenso Fer-
reira. E as receitas coligidas por Alcântara Machado, a

10 Sobre esse tema V. ARTUNDO, Patricia Maria. Mário de Andrade e


a Argentina: um país e sua produção cultural como espaço de reflexão.
Tradução de Gênese Andrade. S.Paulo, EDUSP, 2004.

11 O livro de Murilo Mendes foi retirado do mercado porque Adalgisa


Nery, a musa do poeta, acabara de se casar com Lourival Fontes, o encar-
regado de redigir os discurso de Getúlio Vargas, no Estado Novo.

166
do doce fudge, e pelo médico e escritor paraense Gastão
Vieira, a de tacacá. Esses documentos corroboram as di-
mensões de Mário de Andrade pesquisador da cultura po-
pular e de “gourmet”. Na verdade, em termos de autoria,
manuscritos desse naipe significam compilações norteadas
por interesses afins aos do escritor. A chave do colecio-
nador abrange também a pesquisa de Nicanor Miranda em
1937, sobre a classificação das idades infantil e juvenil, na
qualidade de participante do projeto educacional dos par-
ques infantis, coordenado por Mário de Andrade, então Di-
retor do Departamento de Cultura da Prefeitura da Muni-
cipalidade de São Paulo. Do mesmo modo, essa vertente
acolhe o texto da fala radiofônica de Paulo Duarte na Na-
tional Broadcasting Corporation de Nova Iorque, em feve-
reiro de 1942. Exilado do Estado Novo, o jornalista amigo
e antigo companheiro do Departamento de Cultura, no pro-
grama que mantinha sobre livros brasileiros na NBC, ali
focalizou Poesias, de Mário de Andrade.
Nos anos de 1940, a coleção dos manuscritos de ou-
tros escritores já apresenta as vertentes que atualmente a
configuram. Nessa década, na verdade reduzida a cinco
anos, pois Mário de Andrade morre em fevereiro de 1945, o
conjunto cresce principalmente na parcela que contempla o
mentor. Muitos são os moços que se dirigem ao escritor já
consagrado. Dentre eles, destacam-se dois amigos mineiros
inseparáveis, Hélio Pellegrino e Otto Lara Resende, ambos
poetas, nesse momento12 . E Henriqueta Lisboa, também mi-
neira, que se torna grande amiga.

O sentido da coleção
Os manuscritos que Mário de Andrade salvaguardou,
chegavam-lhe de maneiras distintas, a maioria encaminhada
pelos próprios escritores, alguns por terceiros, sem contar os
textos raros, que ele procurava obter. São datiloscritos, au-
tógrafos e alguns impressos rasurados que, assim, se trans-
formam em manuscritos. A maioria se apresenta com poucas
rasuras, pois aqueles que vinham acompanhados do pedido
de leitura, eram antes passados a limpo e, certamente, na
releitura precedendo a cópia, no autógrafo ou no datilos-
crito, recebiam correções a erros flagrados e transformações
decorrentes de um novo momento na criação.
Representam, salvo as receitas culinárias e alguns
registros da cultura popular, elos perdidos da criação lite-

12 Otto Lara Resende, aliás, se mostra, na série Manuscritos de Outros


Escritores, com um poema redigido no Cassino da Pampulha e dedicado a
Mário de Andrade.

167 revista do ieb n 43 set 2006


rária, que tanto se ligam aos documentos de processo em
uma determinada obra, fora do âmbito da coleção, como se
transmutam em parcelas desta. Como bem analisa Walter
Benjamin quando examina a questão das transferências,
passam a pertencer a um novo espaço em outro universo,
o da coleção.13 Paralelamente, segundo Benjamin, com ex-
ceção dos livros − e dos manuscritos, acrescentamos −,
todos os objetos, quando colecionados, perdem o seu valor
de uso e ganham uma nova significação; podem, mesmo,
ser vistos como souvenirs. No caso de xícaras coletadas em
viagens, por exemplo, pois elas deixam de ser o recipiente
onde se bebem líquidos; não entram em armários de co-
zinha, mas são expostas em estantes. Com os livros, se-
gundo o filósofo, isso não ocorre, pois independente de se
apresentarem ou não como souvenir, não perdem o valor de
uso, continuam servindo à leitura.14 Nesse sentido, os ma-
nuscritos de outros escritores coletados por Mário de An-
drade, perdem apenas em parte o seu valor de uso. Nas es-
tantes do crítico e colecionador, separam-se do dossiê pri-
mordial da criação de um determinado texto, e não são
mais alcançados pela vontade de quem os produziu. Poetas,
ficcionistas e ensaístas não podem mais interferir naquele
texto que é de sua lavra, mas que dela se distancia fisica-
mente enquanto documento específico. A partir do mo-
mento em que aportam à coleção, os manuscritos ficam
à mercê do colecionador que os transforma em objeto do
prazer do seu olhar, da sua leitura ou, no caso de Mário de
Andrade, de seu trabalho de crítico literário. Assim se passa
com boa parte dos manuscritos conservados por Mário que,
nas modificações nascidas de sua leitura de crítico e su-
geridas aos autores nas notas marginais, em geral a lápis,
transformava ele próprio os textos alheios; tornava-os di-
ferentes, outros, atuando como co-autor, à revelia ou com
pleno consentimento de quem o procurava. Um excelente
exemplo disso está na capa que Mário desenha para Co-
cktails de Luís Aranha, depois de ler, comentar e sugerir
uma ordem para os poemas no livro de Aranha que não viu
publicado.
Além disso, na esfera da crítica genética, conclui-se
que as observações de Mário de Andrade nas margens dos

13 Bernard Vouilloux também trata desse assunto no artigo “Discours du


collectionneur, discours de la collection au XIX siècle”, na Poétique-Revue
de Théorie et d’Analyse Litteraires, nº. 127 (Paris, Seuil, septembre 2001).

14 BENJAMIN, Walter. “The Collector”. In: The arcades project. 3ª ed.


Translated by Howard Eiland and Kevin McLaughlim. The Belknap Press
of Harvard University Press, 2002.

168
manuscritos apresentam-se, em vários casos, como notas
prévias de artigos ou cartas por ele remetidas aos escri-
tores. Assim, pode-se lembrar que, nos poemas recebidos de
Luís Aranha em 1921-1922, estão observações oriundas de
uma leitura atenta, como a que se mostra na margem su-
perior de Minha amada: “Não ha rapidez nenhuma que eli-
mine aqui o te. Cui- | dado! É preciso saber sempre onde
canta o galo. E tu, que desempenhas pelos teus livros as ca-
taractas, insecáveis helas!, dos | teus pronomes, artigos e
pendu- | ricalhos indecentes, bem podes | aumentar aqui o
te que falta”. No cotejo dessas notas marginais autógrafas
com o texto do artigo publicado em 1932, “Luiz Aranha ou
a poesia preparatoriana”15 , percebe-se que o crítico volta ao
manuscrito dez anos depois e efetivamente transforma seus
comentários em notas prévias. Nessa ocasião, aproveita ele-
mentos da análise realizada e apóia o artigo em trechos dos
poemas que, em 1932, destaca com traços a lápis vermelho
à margem e a indicação “citar”, os quais aparecem, de fato,
transcritos na versão que saiu na Revista Nova. Dentre os
comentários esboçados em 1922, reelaborados no artigo,
pode-se trazer este: “Me envaideço mesmo de ter de alguma
forma provocado o aparecimento do Luís Aranha original.
O maltratava com uma crítica exasperada que não perdoava
senões, e blagueava, desprezando, sobre o excesso de ‘uns’
e possessivos gálicos nos versos dele”. Quanto às cartas, um
bom confronto entre as notas marginais nos manuscritos e
os textos que seguiram para os destinatários, desvendará,
por certo, a natureza de textos fragmentários prévios dos
comentários críticos esboçados durante a leitura de Mário
de Andrade. Tal confronto está fadado a excelentes resul-
tados, se comparar os manuscritos de Carlos Drummond,
Manuel Bandeira, Henriqueta Lisboa, Alphonsus de Guima-
raens Filho, Oneida Alvarenga, entre outros, e as cartas que
estes escritores receberam do correspondente contumaz.
É possível adiantar essa possibilidade ao considerar,
no autógrafo do poema de Manuel Bandeira Quando minha
irmã morreu16 que exibe, à margem do verso “veio para ao
pé de mim”, a nota a lápis preto de Mário de Andrade: “Pa-
raopeba”. Nota solitária, ganha sentido na carta que ele es-
creveu para Bandeira, de São Paulo, possivelmente antes
de 13 de setembro de 1925: “‘Quando minha irmã morreu’.

15 “Luiz Aranha ou a poesia preparatoriana” in Revista Nova, nº 7, 1932,


também publicado em Aspectos da literatura brasileira Rio, Americ= Edit.,
1943.

16 O poema foi publicado com o título “O Anjo da Guarda” em


Libertinagem Rio, Paulo, Pongetti& C., 1930.

169 revista do ieb n 43 set 2006


Outra delícia silenciosa. Só não gosto daquele ‘para ao pé’
que você botou, talvez para evitar a repetição de ‘para junto’
que vem dois versos depois. ‘Para ao pé’ é horrível. Deve de
ser lusitanismo. É feio em si e lembra paraopeba. Mude isso,
porém cuidado em não perder o agudo ‘mim’ acabando o
verso”. Em 1930, na 1ª edição de Libertinagem, o poema apa-
rece com o verso refeito: “Veio ficar ao pé de mim”.
Os manuscritos de outros escritores ligam-se, por-
tanto, à correspondência e à biblioteca. Nesse sentido, mis-
turam-se à trama do acervo, a ser descoberta ou recom-
posta pelo pesquisador que precisa dela para compreender
correlações e traçar hipóteses que tentem preencher lacunas
na documentação e no tempo.
Ao focalizar a trama do acervo, vale recorrer às ano-
tações marginais nos manuscritos de Oneida Alvarenga,
a qual, aos 19 anos, em 1931, se torna aluna de piano de
Mário de Andrade. A inclinação para literatura que a ga-
rota demonstra chama a atenção do professor que passa a
orientá-la e a lhe pedir exercícios poéticos. Ela lhe entrega,
então, a série de poemas Elogio da Vida, a qual, já no tí-
tulo, é objeto de protesto veemente na nota a lápis preto na
margem do manuscrito: “Elogio da Vida | (é horrivel. | ‘A
menina boba’ ‘A menina louca’ | ‘Potranca’ não ter medo |
das palavras fortemente objeti- | vas. São as que mais dão
a | sensação nova. E pro | poema, o título tem | que ser
vivaz”. Em 1938, depois de muitas idas e vindas para lei-
tura do mentor, na capa do livro ficará A Menina Boba
(S.Paulo, Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais). Du-
rante os sete anos que separam o primeiro encontro da
jovem com seu mestre de piano, de música, de literatura e
de vida, muitas cartas levam a ele os poemas e são respon-
didas com sugestões que ampliam, de forma didática, as
anotações marginais do crítico. A maioria dessas suges-
tões é levada em conta na versão publicada. No exemplar de
A Menina Boba na biblioteca, a dedicatória confirma, por
assim dizer, os caminhos do trabalho que cerca esta coleção
de manuscritos: “Mario | com a minha mais per- | feita
amizade e minha imensa | gratidão, guarde este livro | que
é seu. | Oneyda. | 18-V-1938”.
Tanto no diálogo interpares quanto na relação dos es-
critores com o mentor, presencia-se a co-autoria virtual.
No caso de Oneida Alvarenga, Breno Accioly, Alphonsus de
Guimaraens Filho, Henriqueta Lisboa, na vertente da in-
terlocução com o mentor, e no de Manuel Bandeira, Sérgio
Milliet, Drummond, entre outros, a questão da colaboração
na criação surge com muita riqueza e sempre demanda o
confronto com as obras publicadas ou versões posteriores

170
àquelas remetidas a Mário de Andrade. Entretanto, esses
laços entre versões no manuscrito, cartas e versões publi-
cadas não esgotam as interrogações sobre co-autoria vir-
tual. Esta alimentada também pelo diálogo implícito com a
obra publicada de Mário, tomada como norte e matriz por
muitos escritores.
O colecionador, mentor e interlocutor de seus pares
certamente compreendeu que, além de preservar uma im-
portante parcela da produção cultural de seu tempo, reunia
um testemunho significativo dos processos de escritura,
bem como dos suportes e meios da escrita de muitos nomes
da literatura. Na verdade, protegia do esquecimento os bas-
tidores da criação que mostram, mais do que os livros, o
estilo de sua época, o arte-fazer de determinados grupos
daquele período. Seu conjunto de manuscritos de outros es-
critores, do mesmo modo que os demais conjuntos docu-
mentais de seu arquivo, uma vez transpostos para o patri-
mônio do Instituto de Estudos Brasileiros em 1968, sofreu
mudança de natureza e função17. Ao ingressar na esfera
dos bens públicos, afastando-se da propriedade particular,
passou a receber tratamento arquivístico destinado a dispo-
nibilizar os documentos para consulta no Setor de Arquivos
no IEB. Como os demais conjuntos, tornou-se uma série do
Arquivo Mário de Andrade, cuja organização se liga a pro-
jetos coordenados pela curadora, Profª. Telê Ancona Lopez.
Procurando sempre a função dos documentos e respeitando
a teia de relações que constitui um arquivo e um acervo,
esta organização trabalha o processamento das séries e a
divulgação dos respectivos conteúdos.

Um catálogo analítico
No processo de organização do Arquivo Mário de An-
drade para consulta, a série Manuscritos de outros escri-
tores havia recebido classificação prévia que identificou
e ordenou sumariamente os documentos, contando com o
trabalho das estagiárias Teresa de Almeida Arco e Flexa,
Flávia de Oliveira Nunes e Ivani Cristina Silva Fernandes.
Faltava, porém, uma nova classificação, a qual, além de
rever a primeira parcela realizada, pudesse compreender o
material como reflexo de determinados aspectos da traje-
tória intelectual de Mário de Andrade, classificação asso-
ciada a uma análise detida, atenta à tarefa de sanar lacunas
e apta a desenvolver notas explicativas de cunho histo-
17 O Arquivo entrou como doação feita pela Família Mário de Andrade ao
IEB, vinculada à aquisição das outras parcelas do acervo, isto é, a biblio-
teca e a coleção de artes visuais, feita pela Universidade de São Paulo, em
1968, para o referido Instituto.

171 revista do ieb n 43 set 2006


riográfico, bem como breves estudos genéticos, já que se
inclina sobre manuscritos da criação literária. Em suma,
capaz de produzir o chamado catalogue raisoné, ou seja, um
catálogo analítico, juntando a arquivística e a codicologia à
pesquisa historiográfica no âmbito da Literatura Brasileira,
enriquecida com recursos da Crítica Genética que tanto
contribuem para a crítica literária. Um catálogo analítico
que supõe, logicamente, o estudo das relações de Mário de
Andrade com os documentos da coleção que ele reuniu.
Deste modo, o Catálogo analítico da série Manuscritos
de outros escritores, no Arquivo Mário de Andrade, a ser
disponibilizado brevemente no site do IEB-USP, decorreu de
metodologia vinculada a este projeto de mestrado, a qual
tanto contemplou a rigorosa classificação de cunho arqui-
vístico (identificação, ordenação, análise documentária, re-
produção fac-similar dos documentos por meio de “scanner”
e arranjo material), como identificação das notas deixadas
pelo crítico nas margens dos manuscritos (Notas MA), a
maior parte recebeu transcrição diplomática. Foram desen-
volvidas, também, Notas da pesquisa com breve abordagem
do trajeto da escritura, análise historiográfica e gené-
tica dos documentos. Nesse sentido, abre perspectivas para
novos estudos.
O catálogo procura compreender cada título nas ver-
tentes da série que dizem respeito à natureza e à proveni-
ência dos manuscritos, o que implica também a análise das
relações de Mário de Andrade com um elenco de escritores
seus contemporâneos, consagrados ou estreantes. A análise
forneceu à pesquisa três vertentes principais, discriminadas
nas Notas de pesquisa:
Mário de Andrade colecionador – (MAc) – que parte
do prazer individual da posse e evolui para a responsabili-
dade da partilha democrática quando o colecionador deter-
mina que os documentos sejam confiados a uma instituição
pública. Nesta vertente, Mário de Andrade recolhe tanto
obras raras e antigas como originais de obras de seu tempo,
além de arrebanhar documentos de pesquisa de terceiros
que vinham ao encontro de interesses seus de estudioso da
cultura popular brasileira;
Mário de Andrade no diálogo interpares – (MAd) –
que apreende a interlocução com escritores contemporâneos
de seu mesmo porte artístico, do Brasil e de outros países,
vertente na qual aparece a importante questão da co-au-
toria virtual;
Mário de Andrade mentor – (MAm) – quando reflete
uma pedagogia da escritura literária decorrente do ofício
do crítico, voltada para os escritores estreantes que procu-
ravam o artista consagrado.

172
A transcrição diplomática da maior parte das notas
autógrafas de Mário de Andrade, apostas aos manuscritos
– Notas MA –, vale como divulgação de fragmentos críticos
inéditos do escritor.

Algumas conclusões
Como destaca Bernard Vouilloux em “Discours du
collectionneur, discours de la collection au XIX siècle”18 ,
as ações de organização e de salvaguarda conferem às co-
leções novos rumos e novos sentidos. Assim, a organização
particular dada pelo colecionador, respondendo a necessi-
dades e interesses dele, é sucedida por uma nova disposição
elaborada na entidade pública, de forma a disponibilizar
fontes para investigações de cunho epistemológico.
No caso da série Manuscritos de outros escritores,
novos rumos e sentidos abrem-se para pesquisadores de
distintas áreas − literatura, música, antropologia, história,
psicanálise −, visto que os documentos possuem elementos
significativos para todas elas. Além disso, os manuscritos
transbordam os limites do arquivo enquanto elos perdidos
de dossiês da criação de outros escritores, porque guardam
fases do processo da escritura de muitos textos. Dialogam
igualmente com os demais tipos de documentos presentes
tanto no arquivo, como na biblioteca e na coleção de artes
de Mário de Andrade, presos à teia sutil formadora dos
acervos, recomposta pelas pesquisas atentas aos vínculos
e relações. O diálogo se estende até os estudos de Mário de
Andrade, pois, mesmo quando os fólios não mostram nas
notas marginais a ação direta do leitor e crítico, o fato dos
originais terem sido salvaguardados por ele significa uma
escolha, uma interferência. Não foi simplesmente o acaso
que os reuniu, e sim os propósitos e as inquietações intelec-
tuais de Mário.
Enquanto fontes para os estudos literários, a série
Manuscritos de outros escritores acrescenta dados a tudo
que se pode captar nos textos publicados por aqueles ali
representados. Na teia, na malha do arquivo, por força da
intertextualidade e das estreitas relações dos manuscritos
com correspondência, as leituras e a marginália de Mário
de Andrade, surge ainda o pensamento de autores e de de-
terminados grupos. A crítica genética oferece, então, ins-
trumentos valiosos para análise desse material. Conforme
Roberto Brandão, essa área de estudos nos auxilia a “com-
preender, não apenas a obra acabada, mas sobretudo as
implicações históricas, lingüísticas, estéticas e literárias
que nela atuaram de modo a torná-la o que ela é ao fim
18 VOUILLOUX, Bernard. Op. cit.

173 revista do ieb n 43 set 2006


do processo”19. Assim, o exame que focaliza a apreensão
do que não é literatura na leitura da literatura 20 pode ser
prolongado até o acervo, compreendendo este como um
grande texto.
O arquivo constituído ao longo da vida representa,
talvez, a grande obra do autor de Macunaíma, seu maior
“texto”, aquele que proporciona a leitura e a interpretação
de uma página da história do pensamento brasileiro. Nessa
obra estão reflexões que abarcam aspectos significativos da
produção intelectual de uma época, processos de co-autoria
implícitos em textos de nossa literatura, questões de leitura
e de escrita, de crítica genética, reflexões sobre identidade
nacional. São oferecidos aos pesquisadores dispostos a se
enredar na malha desse arquivo.

19 BRANDÃO, Roberto. “A crítica genética é filha de seu tempo”. In:


Roberto Zular (org.). Criação em processo. S.Paulo, Iluminuras / Capes /
Fapesp, 2002, p. 9-10.

20 Valendo-me da expressão de João Alexandre Barbosa no ensaio


“Intervalos da leitura”. In: A Leitura do intervalo. S.Paulo, Iluminuras /
Secretaria de Estado da Cultura, 1990.

174
Traduzindo a literatura brasileira para o
tcheco – entrevista com Pavla Lidmilová
Sarka Grawova�

Comparada com outros países europeus, a literatura


brasileira começou a ser traduzida na República Tcheca tarde
e estreou com um título um tanto inesperado: se deixamos
de lado Histoire d’un voyage faicte en la terre du Brésil
(1578) do calvinista francês Jean de Léry, vertido em tcheco
por dois irmãos protestantes já em 1590, o primeiro livro
traduzido foi O Cortiço de Aluísio de Azevedo, em 1938. Não
menos surpreendente é, porém, o quanto um ambiente cul-
tural pode mudar no decurso de uma vida humana. No dia
28 de Outubro de 2005, uma tradutora de literatura brasi-
leira e portuguesa, Pavla Lidmilová, já condecorada com a
Ordem de Rio Branco, recebeu o Prêmio Nacional de Tra-
dução, a maior distinção que um tradutor tcheco pode obter.

Pavla, quantos livros brasileiros você traduziu?

No total, foram 27 livros publicados e um que está no prelo.


No momento, estou trabalhando na tradução do último livro de
crônicas de Paulo Coelho que se chama Ser como o livro que flui.
E tenho mais dois livros traduzidos, como se diz, “na gaveta“, o
que no caso significa na gaveta dos editores vacilantes: um livro
de contos índios de Hernâni Donato e Vastas Emoções e Pensa-
mentos Imperfeitos de Rubem Fonseca – um autor que já teve
êxito junto ao público tcheco com uma antologia de contos. Há
poucos dias soube que, com a ajuda da Embaixada Brasileira em
Praga, há uma boa chance de ver também estes livros publicados.

Como é que você chegou a traduzir livros de literaturas lu-


sófonas – num tempo em que o português aqui nem sequer
existia como uma disciplina lecionada nas Universidades?

Minha carreira de tradutora, de fato, começou com tradu-


ções do espanhol, só depois passei para português. Comecei com
textos curtos, lembro-me de um conto de Lúcia Benedetti, publi-
cado numa antologia de literatura juvenil, e do conto “Paulinho
Perna Torta“, que fala dos marginais da grande cidade, de João
Antônio, em que reconheci uma voz muito original. Aliás, com
João Antônio tive depois uma correspondência de muitos anos.
Ele foi um daqueles que, além de longas cartas, me mandava li-
vros de autores brasileiros.

177 revista do ieb n 43 set 2006


Isso era na década de 60, em que mesmo nós, na antiga
zona de influência da União Soviética, pudemos respirar um
pouco mais livres…

A década de 60 deu-nos, além de mudanças políticas, al-


gumas – poucas − liberdades e possibilidades também na esfera
de letras. Um dos primeiros contatos pessoais que tive com es-
critores brasileiros foi com os concretistas de São Paulo, Au-
gusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari. A poesia con-
creta, promovida na Tchecoslováquia por Josef Hiršal, ele
mesmo um poeta notável, e Bohumila Grögerová, teve entre nós
uma repercussão notável. Os autores brasileiros chegaram a vi-
sitar Praga e seus textos foram publicados no volume Palavra,
Letra, Ação, Voz − Para a Estética da Era de Tecnológica (Slovo,
písmo, akce, hlas − K estetice kultury technického věku) que
reunia ensaios, manifestos e programas de arte, aparecendo em
1967. Foi uma das manifestações mais originais do espírito da
década de 60 na cultura tcheca.

Mas para você a década de 60 foi, antes de tudo, o período


de um feliz encontro com a obra de Guimarães Rosa.

As estórias de Guimarães Rosa foram para mim, naquele


tempo, há mais de 40 anos, uma revelação. Primeiro, traduzi al-
guns contos dele que ofereci a uma excelente revista literária
que se chamava Světová literatura − Literatura mundial (ou
mesmo universal) − e durante dezenas de anos apresentava aos
leitores tchecos os melhores escritores do mundo inteiro, vários
autores brasileiros, portugueses e africanos incluídos.
Světová literatura esteve também na origem da minha
correspondência com Guimarães Rosa. Em 1966, quando a re-
vista publicou, num belo desenho gráfico, as traduções dos
contos “A terceira margem do Rio”, “Os irmãos Dagobé” e “Ne-
nhum, nenhuma” junto com uns desenhos de Luís Jardim que
aparecem na segunda edição das Primeiras estórias, vários
exemplares da revista foram mandados ao autor, por intermêdio
da nossa Agência literária. Depois de receber os exemplares e
estudar a tradução − com base de seu conhecimento de russo e
com ajuda de uma moça, filha de tchecos, que então vivia em
São Paulo − João Guimarães Rosa enviou-me, através da em-
baixada do Brasil, em Praga, uma carta muitíssimo amável que
me emocionou, assim como o exemplar de Tutaméia que recebi,
em 1967, com a sua dedicatória. Traduzi vários textos das “Ter-
ceiras estórias” e adorei especialmente o “Presepe”. Gostaria de
juntar alguns contos de Natal brasileiros e portugueses e pu-
blicá-los um dia num pequeno volume ao lado desta estória de
Guimarães Rosa.

178
Sua obra, que se poderia chamar sem grandes exageros he-
róica, era, porém, a tradução de Grande sertão: veredas que
apareceu em 1971, um ano depois da edição italiana. Em-
brenhar-se naquele mundo do sertão numa época em que os
contatos entre tchecos e brasileiros foram parcos tinha que
ser um ato de grande coragem.

Trabalhei naquela tradução numa época em que meu país


passava por um período politicamente difícil e pesado. Como
sabe, o processo tchecoslovaco de democratização foi interrom-
pido por uma intervenção de militares do Pacto de Varsóvia e
as esperanças num futuro mais satisfatório foram frustradas.
Traduzir, naquele tempo, era para mim uma segunda vida,
Grande sertão tornou-se minha paixão de sempre – hoje já nem
consigo recordar a força daquela convivência com um texto li-
terário. Tive imensa pena que a correspondência com Guimarães
Rosa não pôde continuar por causa da morte deste em novembro
de 1967 e que não tinha possibilidades de pedir conselhos a res-
peito de tanta coisa que me intrigava naquele livro, como fez o
tradutor italiano Edoardo Bizzarri. E fico com pena de ele não
chegar a escrever A Fazedora das Velas, uma prosa que me disse
ter posto de lado, com um pressentimento da morte.

Como foi que leu “o sertão” uma tradutora que nunca tinha
estado no Brasil?

O que me fascinou desde o início foi o fato de o sertão ter,


no livro de Rosa, uma dimensão ao mesmo tempo real e simbó-
lica. Acho que naquele tempo não li o livro no contexto da litera-
tura brasileira, de maneira como se lê hoje na universidade, mas
relacionava-o com os livros que conhecia, como O Labirinto do
Mundo e Paraíso do Coração do polígrafo tcheco Jan Ámos Ko-
menský ou Moby Dick de Herman Melville, onde a luta com a
baleia assume um significado tão ambíguo como a luta dos ja-
gunços. Do ponto de vista da língua, havia uma possibilidade de
comparação com Vladimír Holan, um grande poeta checo.

O livro saiu numa segunda edição revista em 2003, num


momento muito diferente do primeiro. Qual foi a diferença
principal para você?

Primeiro, pude recorrer a vários livros e estudos publicados


tanto no Brasil como no exterior, especialmente a correspondência
de João Guimarães Rosa com Bizzarri, que contém uma riqueza de
informações para qualquer tradutor. A edição revista ficou pronta
para o prelo já no início da década de 90, mas a publicação es-
barrou em obstáculos relacionados com as transformações polí-

179 revista do ieb n 43 set 2006


ticas e econômicas na ex-Tchecoslováquia. Quando afinal saiu, co-
locou-se no inquérito anual do Lidové noviny, um dos grandes jor-
nais tchecos, entre os 10 livros mais bem recebidos do ano 2003.
Não é preciso dizer que fiquei muito contente.
Na República Tcheca (originada da pacífica separação da
ex-Tchecoslováquia em dois países, República tcheca e República
eslovaca que, entre outras coisas, falam línguas diferentes) Gui-
marães Rosa tornou-se uma referência quase obrigatória. É ob-
jeto de teses e também ganhou uma nova tradutora, Vlasta Du-
fková, que já traduziu “Dão-lalalão” e, no momento, está traba-
lhando na tradução da novela “Buriti” de Corpo de baile.
Eu, por mim, fiquei fascinada pela notícia de que o nome
de Guimarães Rosa foi dado, em 1969, ao pico culminante da
Cordilheira Curupira, na região limítrofe entre o Brasil e a Ve-
nezuela, que se levanta a 2.150 metros. Tem uma beleza simbó-
lica: Guimarães Rosa enquanto um pico que sobe muito acima
da paisagem circundante, erguendo-se mais alto do que chega o
olhar dos homens comuns.

Quais foram os outros escritores com os quais você teve uma ex-
periência de intensidade comparável? Como chegou a conhecê-los?

Além de Guimarães Rosa, “descobri” Murilo Rubião e Cla-


rice Lispector e, dos portugueses, Fernando Pessoa, o qual aliás
traduzi de uma edição brasileira. Nestes casos empenhava-me
muito para que os seus livros chegassem aos leitores tchecos.
Já nos finais da década de 60, entrei em contato com
uma brilhante revista literária que foi o Suplemento Literário
de Minas Gerais, criado por Murilo Rubião, em 1966. Os contos,
poemas e ensaios que publicava e que não eram só de autores
mineiros, mas tinham escopo muito mais abrangente, ofere-
ceram-me uma visão mais ampla da literatura brasileira. Com
meu saudoso amigo Murilo Rubião mantive um contato epistolar
por longos anos, assim como com outros escritores mais jovens.
Recebia suas obras e, dentro das possibilidades, divulgava-as
em revistas e antologias.
Naquele tempo, Murilo Rubião enviou-me os manuscritos
de vários contos que depois apareceram no livro O Convidado.
Ainda conservo esses textos, escritos à máquina, os quais, se
não fosse a nossa situação política tão difícil, que se projetava
inclusive no trabalho das redações e das editoras, teriam apare-
cido em tcheco antes de serem publicados no Brasil. No entanto,
“Teleco, o coelhinho“ veio à luz na Světová literatura, em 1969,
e “O Ex-mágico da taberna minhota“ em 1970, numa revista que
por uma coincidência se chamava Host do domu, que quer dizer
“O convidado“, onde também saiu um ensaio sobre a literatura e
consciência nacional de Antonio Candido, um conto de Antônio
de Alcântara Machado e, com uma participação de tradutores-

180
poetas checos, poemas de Carlos Drummond de Andrade, Ma-
nuel Bandeira, Geir Campos e Fernando Fortes.
Os contos de Murilo Rubião foram publicados em volume
sob o título Dům U červené slunečnice (A Casa do Girassol Ver-
melho) somente em 1986 e, nas livrarias de Praga praticamente
toda a tiragem vendeu-se logo no dia do lançamento. Em 1994,
já depois das mudanças políticas no Leste europeu, seguiu-se
um outro volume ilustrado por Jiří Voves e, em 1995, foi pre-
miado como um “belo livro” numa Feira do livro. Jiří Voves, ar-
tista plástico, tornou-se um apaixonado da obra literária de Mu-
rilo e organizou também uma exposição de seus desenhos ins-
pirados nos contos deste escritor mineiro.

Clarice Lispector é outra escritora de sua predileção cuja


obra você também começou a traduzir logo no início de sua
carreira. A tradução tcheca de Perto do coração selvagem foi
publicada já em 1973.

Clarice Lispector, no contexto da literatura publicada na-


quele tempo no meu país, fez-me impressão. Em Perto do Co-
ração Selvagem aparece a perspectiva feminina, a sondagem in-
trospectiva de uma mulher rebelde que não se sujeita a conven-
ções e mestres, cheia de força vital e decidida a seguir seu pró-
prio caminho. Esta prosa foi acolhida muito bem pelo público,
especialmente pelo público feminino, e abriu caminho a outras
obras suas, nomeadamente A Hora da Estrela, publicada em
1982, uma antologia de contos intitulada Felicidade Clandestina
(1996) e Água Viva (2000).
Quanto a Clarice Lispector, há uma história curiosa re-
lacionada com os tchecos. Uma das nossas cantoras de mú-
sica popular, até hoje ativa e famosa, Helena Vondráčková, ia
se apresentar no fim dos anos 60 em um festival do Rio do Ja-
neiro uma canção que se chamava “Voz Longínqua” e me enco-
mendaram uma tradução da letra para o português. Clarice Lis-
pector leu o texto num jornal brasileiro e reproduziu-o no seu
romance Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. Em 1970,
quando a escritora mandou-me o livro, onde a protagonista Lóri
diz assim: “Todos lutavam pela liberdade – assim via pelos jor-
nais, e alegrava-se de que enfim não suportasse mais as in-
justiças. No jornal de domingo viu reproduzida a letra de uma
canção da Tchecoslováquia. Copiou-a com a letra mais linda
de professora que tinha, e deu-a a Ulisses. Chamava-se “Voz
longínqua” e era assim…. Eis um exempo da intertextualidade
inesperado!

A perspectiva feminina está presente também na obra lite-


rária de outra escritora brasileira que você traduziu, Lygia
Fagundes Telles.

181 revista do ieb n 43 set 2006


A ficção de Lygia Fagundes Telles, de quem traduzi duas
antologias de contos, publicados em 1984 e 2003, é muito atrativa
para o leitor, dramática, cheia de suspense, de humor e de fan-
tasia, escrita em estilo elegante. É pena que, naquele tempo, não
consegui que seu romance As Meninas fosse aceito para publi-
cação, no nosso contexto humano e político teria calhado bem.
Infelizmente o leitor da editora ficou irritado com sua “literatura
demasiado feminina” e escreveu um parecer todo negativo.

Devemos mencionar mais uma autora brasileira cuja obra


você traduziu e que alcançou um sucesso na República tcheca
– Lygia Bojunga Nunes.

Na Corda Bamba foi publicada em tcheco em 1989 graças


ao Prêmio Andersen que a autora recebeu em 1982. E também
aqui há uma história interessante.
Ainda antes da concessão do Prêmio Andersen, a Socie-
dade dos Amigos do Livro Infanto-Juvenil, seção tcheca da IBBY,
pediu-me pareceres sobre todos os livros da autora, destinados ao
membro eslovaco do júri do Prêmio (naquela altura, tchecos e es-
lovacos ainda viviam numa república federal). Li todos aqueles li-
vros que puseram a meu dispor e, mais uma vez, fiquei entusias-
mada com um autor brasileiro. Provavelmente consegui transmitir
esse entusiasmo ao membro do júri, que depois me escreveu que
tinha votado a favor da escritora brasileira.
Assim, a editora do livro infantil, numa época em que a
concorrência na esfera da literatura infanto-juvenil no mercado
tcheco era muito grande, resolveu publicar Na Corda Bamba. O
livro saiu bonito, ilustrado, em uma tiragem de 30.000 exem-
plares. Para uma população de 10 milhões não é nada mau.
Fiquei muito contente com o fato de que a escritora foi
galardoada, em 2004, com o Prêmio Astrid Lindgren.

Um caso especial de sua carreira de tradutora é Paulo Co-


elho, um autor que virou mesmo moda. Quantos livros seus
traduziu?

Da obra de Paulo Coelho primeiro li O Alquimista que me


encantou e cuja publicação cheguei a propôr a vários editores
tchecos, ainda num tempo em que ele não era tão conhecido – e
de fato, seu êxito demorou. Hoje, O Alquimista tornou-se um
“livro eterno”, reeditado, gravado nas fitas e CDs, apresentado
no teatro e na rádio. Paulo Coelho, de quem traduzi a maior
parte dos livros publicados, é hoje lido até pelos nossos ho-
mens de negócios, empresários, médicos ou padres – um público
muito diversificado.

182
Há um livro brasileiro que você gostaria de ter traduzido e
por alguma razão não o fez?

Acho que cheguei a traduzir todos os livros que real-


mente quis, às vezes mesmo sem ter um contrato com editor.
Há tantos autores brasileiros de que gosto e que tenho tradu-
zido, com uma enorme variedade de linguagens, estilos e temas
– Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Rubem Fonseca, Sérgio
Sant’anna, Luiz Vilela, Darcy Ribeiro, Moacyr Scliar, Duílio
Gomes, Ildeu Brandão, José J. Veiga, Adonias Filho, Orígenes
Lessa, Sílvio Fiorani – e muitos mais. Mas hoje em dia, há ou-
tros bons tradutores tchecos que estão divulgando as obras de
escritores brasileiros de peso, como Machado de Assis, Jorge
Amado, Osman Lins, Ana Miranda ou Mário de Andrade. Um
estímulo muito importante tem sido o apoio financeiro da Fun-
dação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e, ultimamente,
temos um grande apoio na Embaixada Brasileira em Praga.

183 revista do ieb n 43 set 2006


Um mapa para se estudar Chico Buarque

Walter Garcia*

Chico Buarque
Fernando de Barros e Silva, Publifolha, 2004.

Sabe-se que não é tarefa fácil interpretar toda a obra


de Chico Buarque de Holanda – canções, peças teatrais e ro-
mances, sem contar uma novela –, tendo ainda a preocu-
pação de valorizar “algumas passagens marcantes” da vida
do artista, celebrando os 60 anos que ele então completava,
em um livro de bolso. E é prudente que um projeto assim,
seja quais forem seus acertos ou lacunas, se anuncie como
“uma tentativa parcial de interpretação do autor e sua obra”
(p. 9). Penso que talvez se possa comparar sua realização a
um traçado cartográfico: se o texto conseguir, por um lado,
recolher as melhores informações de que se dispõe até o mo-
mento e, por outro, apontar para desdobramentos de análise
possíveis, em outros mapas que se tirem com as minúcias
necessárias, terá cumprido bem sua função.
Chico Buarque, de Fernando de Barros e Silva, tem
precisamente esse caráter, constituindo-se um mapeamento
útil e inteligente do tema, em que pese a brevidade própria
de um volume da série Folha Explica, em sua ambição de se
oferecer tanto “para o leitor geral” como para “quem domina
os assuntos” (p.178).
Silva afirma, na Apresentação (p. 9), que seu trabalho
se sustenta “por uma idéia que de alguma maneira orga-
niza as demais”, idéia essa elucidada em seus termos “já no
primeiro capítulo”: “Sua figura [de Chico] reúne o sonho do
compromisso e da identidade entre uma elite esclarecida e
um povo que enfim teria encontrado seu lugar e destino. Se
há um fio vermelho que atravessa e unifica sua obra imensa
e variada é aquele que faz dela ao mesmo tempo registro e
memória do ‘país da delicadeza perdida’. (...) Sua música é
expressão de uma promessa histórica e testemunho de suas
sucessivas frustrações” (pp. 16-17).
Mais do que para a idéia em si, gostaria inicialmente
de chamar a atenção para a forma como ela se constrói. No

* Walter Garcia é doutor em Literatura Brasileira pela FFLCH-USP,


professor da PUC-SP e músico popular. É autor de Bim Bom: a contradição
sem conflitos de João Gilberto (São Paulo: Paz e Terra, 1999).

187 revista do ieb n 43 set 2006


meu modo de entender, temos aqui o primeiro exemplo de
um tipo de raciocínio bastante responsável pelos momentos
mais interessantes do ensaio. Mantém-se um olho no artista,
outro na sua produção, intenção já referida. Mas também
se olha a história brasileira na qual ambos surgem, da qual
ambos participam e a qual ambos refletem de um modo pe-
culiar. Assim, a investigação que vai do processo histórico
ao conjunto autor-obra (e vice-versa) se dá dialeticamente,
na tradição dos estudos que buscam esclarecer o sentido de
uma trajetória artística singular interpretando-a no todo
de um contexto histórico-cultural. E (outra vez) vice-versa,
pois se busca igualmente esclarecer o sentido de um con-
texto histórico-cultural por meio da interpretação de uma
determinada trajetória artística.
Há nisso tudo uma evidente e não disfarçada influ-
ência sobretudo do trabalho de Roberto Schwarz. A afir-
mação, entenda-se, não é elogio nem reprovação, mas um
dado relevante para que se compreenda melhor o ensaio. Já
em um comentário anterior de Fernando de Barros e Silva
sobre Arrigo Barnabé, incluído em outro volume da mesma
série,1 a análise se construía como um exercício dialético.
Diga-se de passagem, um comentário de muita acuidade
que, em apenas três páginas, sintetizava admiravelmente a
questão central de três décadas de composição de Arrigo.
No entanto, para os leitores de Schwarz era bastante curioso
deparar-se lá com o seguinte parágrafo:

“A obsessão pelo kitsch nessa música merece uma nota à


parte. O balcão de fórmica vermelha, a calcinha imitando pele de
leopardo, o drink no drive-in, as balas collored – há aí, nessa
enumeração aleatória, um mosaico de referências que, sendo gro-
tescas ou simplesmente cafonas, aspiram à elegância. É nesse
descompasso que reside a sua graça. O leitor dirá se é exagerado
vê-los todos como exemplos palpáveis de uma promessa de vida
burguesa que desandou e degenerou em cortiço. Clara Crocodilo
é a crônica sarcástica do encortiçamento da cultura e dos centros
nervosos do país. Mais contemporâneo, impossível”,

no qual, até que se chegasse à última frase – talvez


destoante das outras por ser quase um clichê jornalístico
–, os termos e as expressões, a sintaxe, a forma de armar
o pensamento e o próprio salto interpretativo ecoavam
certo estilo de Roberto Schwarz. Não é isso o que se nota
no livro Chico Buarque. Nele a influência vem explicitada
em notas de rodapé. Não me refiro especialmente ao artigo

1 Cf. Música popular brasileira hoje, organizado por Nestrovski, Arthur.


São Paulo, Publifolha, 2002, pp. 38-41.

188
de Schwarz sobre Estorvo servir tanto às observações de
Silva acerca desse romance como para fechar o comentário
das canções “Pivete”, “O meu guri” e “Brejo da Cruz”, pois
há outros autores utilizados de modo mais fundamental na
visão que se apresenta de artista e obra. O que ocorre é que
o sentido do processo histórico brasileiro é percebido com
base principalmente em interpretações de Roberto Schwarz
que, como se sabe, em seu trabalho procura articular forma
artística e dinâmica social – método aliás que Antonio Can-
dido, para ficarmos no âmbito brasileiro, já iniciara ante-
riormente.2
Há, entretanto, uma importante diferença de metodo-
logia a assinalar entre os estudos desses dois críticos literá-
rios e o livro de Fernando de Barros e Silva. Em sua abor-
dagem, Silva não desenvolve uma análise da estrutura in-
terna das obras com vistas a, nos termos de Candido, levar
em conta o elemento social “como fator da própria cons-
trução artística, estudado no nível explicativo e não ilus-
trativo”.3 À parte o tipo de publicação exigir por vezes uma
concisão extremada, a análise estética em Chico Buarque fica
circunscrita ao comentário perspicaz sobre letras de canções
(em relação à parte musical, falarei adiante) e enredos de li-
vros, refletindo basicamente sobre seus conteúdos, não sobre
suas formas (com o perdão pela linguagem ultrapassada).
Uma apreciação, portanto, que não chega a ser uma
crítica no sentido rigoroso da palavra, ficando entre o en-
saio sociológico e a interpretação jornalística – já que esta
última é cada vez mais rara na imprensa, dedicada a copiar
ou redigir releases, quando não a fazer circular a marca do
veículo ou o marketing pessoal do jornalista, pode-se cogitar
que a série Folha Explica seja oferecida pela empresa Folha
da Manhã como sucessora de um espaço que, de fato nunca
muito extenso, anda hoje em vias de extinção. A estratégia
nem é propriamente uma novidade, se lembrarmos que já há
algum tempo a grande reportagem se tornou basicamente
um gênero de livro. Para quem se interessa por conheci-
2 Sobre o assunto, ver Arantes, Paulo Eduardo. Sentimento da dialética na
experiência brasileira: dialética e dualidade segundo Antonio Candido e
Roberto Schwarz. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992.

3 Cf. Candido, Antonio. “Crítica e Sociologia”. Literatura e sociedade. São


Paulo, T. A. Queiroz/ Publifolha, 8ª edição, 2000, p. 8. A questão também
foi discutida na clássica introdução de Formação da literatura brasileira
(vol. 1). 7a ed. Rio de Janeiro/Belo Horizonte, Itatiaia, 1993, pp. 23-37.
De Roberto Schwarz, entre outros textos, vale destacar “Pressupostos,
salvo engano, de ‘Dialética da malandragem’. Que horas são?, São Paulo,
Companhia das Letras, 1987, pp. 129-155. Caso se prefira ver o método na
prática, creio que “A carroça, o bonde e o poeta modernista” seja um bom
exemplo (Idem, pp. 11-28), ensaio aliás citado por Fernando de Barros e
Silva, à p. 51.

189 revista do ieb n 43 set 2006


mento, entretanto, a questão que se coloca é em que medida
essa alteração contribui para aprofundar o texto jornalístico
interpretativo e em que medida ela acaba rebaixando o nível
da reflexão crítica.

Quatro contribuições
Em seus aspectos mais positivos, a perspectiva ado-
tada no trabalho de Silva apresenta quatro boas contribui-
ções, na minha opinião. Número um, os apontamentos sobre
as “Raízes de Chico”, que colocam obra e artista em relação
a duas utopias. De um lado, “uma espécie de utopia esté-
tica” aprendida com Tom Jobim e Oscar Niemeyer: “a ilusão
de que a mesma chave que podia reparar as injustiças de
uma herança histórica pesada serviria também para abrir as
portas da nossa modernidade”. A chave de que se fala seria
a conciliação de nossos vários antagonismos (“o local e o
cosmopolita, o sertão e o litoral, o folclore e a vanguarda, o
popular e o erudito”), em um projeto “coletivo, ainda que di-
fuso”4 de integração nacional, do qual Brasília “seria a sín-
tese, a materialização”. O problema é que somente o sentido
histórico dessa utopia é apresentado, não se descrevendo
como ela se deu esteticamente ou, em outras palavras, como
ela era para ter o sentido histórico que tem. De modo aná-
logo, a alusão feita a Guimarães Rosa nesse quadro é válida,
e acredito que acertada, mas tampouco descreve, apenas
exemplifica (p. 15).
De outro lado, haveria uma “utopia social” herdada de
Sérgio Buarque: “a crença de que a construção de um país
viável dependia e passava pela adoção de uma democracia
de massas, na qual a maioria pobre tivesse a liderança do
processo histórico” (p. 26; grifo do autor), sobre o quê, há
um aspecto a ser debatido mais adiante.
Contribuição número dois do livro de Silva, a uti-
lização de quase quarenta anos de entrevistas de Chico –
muitas delas disponíveis no site oficial dedicado ao artista
(www.chicobuarque.com.br), uma ótima fonte de pesquisa –,
além dos perfis escritos pelos jornalistas Humberto Werneck
e Regina Zappa 5 e de depoimentos dados ao próprio autor.
Há desde entrevistas já meio míticas, como a para o Pas-
quim em 1970, até comentários mais recentes, como o sobre

4 Os termos são de Chico Buarque, em entrevista citada por Fernando de


Barros e Silva; todos os outros trechos que transcrevo na passagem, inclu-
sive o grifo, são de Silva, pp. 15-16.

5 Werneck, Humberto. “Gol de letras”. Buarque, Chico. Chico Buarque,


letra e música (vol. 1). São Paulo, Companhia das Letras, 1989. Zappa,
Regina. Chico Buarque: para todos. Rio de Janeiro, Relume Dumará/
Prefeitura, 1999.

190
o uso escamoteado da seleção de futebol húngara de 1954
em Budapeste, “brincadeira, aparentemente gratuita, [que]
se integra à engenharia do romance, todo ele construído
como um jogo de espelhos em torno de identidades fugidias
e cambiáveis”, na ótima observação de Silva (p. 108). A reu-
nião e o aproveitamento de todo esse material é um trabalho
jornalístico muito bem realizado que também revela um es-
forço de acumulação, sem o qual há sempre o risco da mera
repetição de idéias anteriores, ou de o conhecimento da
questão tratada não avançar como poderia.
Um rápido parêntese. Se não estou enganado, esse é
um problema encontrado no texto “A utopia lírica de Chico
Buarque de Hollanda”, de Renato Janine Ribeiro, que expõe,
aparentemente sem saber, algumas idéias semelhantes às de
Adélia Bezerra de Meneses, Walnice Nogueira Galvão, José
Miguel Wisnik e Guilherme Wisnik. Não se trata de plágio,
entenda-se bem, e é verdade que o trabalho se constrói a
partir de um novo ângulo de observação – a tradição filosó-
fica –, o que realmente enriquece o que já se sabia, à parte
o enriquecimento garantido pela qualidade de seu próprio
autor. No entanto, estou certo de que, caso tivesse conside-
rado seus pares, o texto teria levado mais longe reflexões
como: “a transgressão é justamente o que formula a utopia
de Chico Buarque”; “o samba, ou o amor, ou o Eros, é o
ponto que pode efetuar essa grande transformação social”; e
“o que temos em Chico Buarque será a conversão – sempre
recíproca, sempre em duas mãos – do íntimo e do pessoal,
no coletivo e no social”. Além disso, parece-me realmente
injustificado Janine Ribeiro não mencionar a célebre noção
de cordialidade apresentada por Sérgio Buarque mesmo ob-
servando que, nas canções de Chico, a utopia “passa por
um recuo da lei, no seu teor repressor”, pois nessa utopia “o
fator que liberta é a intensificação dos elementos amorosos
ou afetuosos”.6
Publicado no mesmo ano, o livro de Fernando de
Barros e Silva apresenta uma disposição diversa, como já foi
6 Cf. Ribeiro, Renato Janine. “A utopia lírica de Chico Buarque de
Hollanda”. Cavalcante, Berenice; Starling, Heloísa & Eisenberg, José
(orgs.), Decantando a República, volume 1: Outras conversas sobre os jeitos
da canção. Rio de Janeiro, Nova Fronteira/ São Paulo, Ed. Fundação Perseu
Abramo, 2004, pp. 149-168. O texto de Walnice Nogueira Galvão a que me
refiro é “MMPB: uma análise ideológica”. Sacos de gatos. 2a ed. São Paulo:
Duas Cidades, 1976, pp. 93-119. A noção de cordialidade é formulada por
Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil (3a ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1956). Sobre os textos dos outros autores, ver notas 7, 8 e
10. Ressalte-se que, na mesma série em que se encontra o texto de Janine
Ribeiro, Heloísa Starling nos apresenta um bom exemplo de interpretação
de Chico Buarque construída a partir de esforços anteriores (cf. “Uma
República pelas tabelas”; Decantando a República, volume I1: Retrato em
branco e preto da nação brasileira, pp. 105-116).

191 revista do ieb n 43 set 2006


falado, à qual também se liga a sua terceira contribuição.
Depois de haver enunciado a articulação, na obra de Chico,
entre uma utopia estética e uma utopia social, ambas his-
toricamente cortadas pelo golpe de 1964, o trabalho for-
mula aquela “idéia que de alguma maneira organiza as de-
mais”: em suas canções, Chico “faz como se escrevesse a
história duas vezes, nos revelando o que somos e aquilo que
não nos tornamos” (p. 17). E a ela seguem-se outros racio-
cínios, também construídos dialeticamente: a obra de Chico
Buarque se dá na intersecção entre a experiência coletiva e
a subjetividade (p. 17); trata-se de um escritor que registra
a História mas, nas suas próprias palavras, não consegue
“escrever coisa que não seja ficção”, um escritor cuja prosa,
para Silva, “se resolve em poesia” (p. 18); o lirismo das suas
primeiras canções, no pós-golpe de 64, assinala uma utopia
que se opõe criticamente à realidade, utopia cuja felicidade é
nostálgica, “fugaz e sempre relacionada a motivos musicais
e próprios da cultura popular”: “O poeta desencantado canta
– e no seu canto traz de volta por um instante – algo que se
perdeu” (pp. 41-42).

Aprimorando o conhecimento
Ocorre que todas essas idéias foram concebidas com
base no aprofundamento de textos anteriores. A idéia prin-
cipal defendida por Silva tem como matrizes o ensaio “O
artista e o tempo”, de José Miguel Wisnik e Guilherme
Wisnik,7 e o artigo “Estorvo”, de Marcelo Coelho,8 devendo-

7 Cf. Winsnik, José Miguel e Wisnik, Guilherme, “O artista e o tempo”.


Wisnik, J. M. Sem receita. São Paulo, Publifolha, 2004, pp. 241-259.
(Publicado anteriormente em Songbook Chico Buarque, vol. 2. Rio de
Janeiro: Lumiar, 1999, pp. 8-20.) Desse ensaio Fernando de Barros e Silva
também extraiu e desenvolveu outras sugestões importantes como a abor-
dagem, nas canções, “da emergência lenta e gradual dos pivetes (‘Pivete’
[em parceria com Francis Hime], 1978, ‘O meu guri’, 1981, ‘Brejo da cruz’,
1984)” (cf. Wisnik, op. cit., p. 243) e o contraponto entre o compositor e
o romancista (cf. Wisnik, pp. 248-249; Silva, pp. 116-117), assunto aliás
tratado anteriormente pelo próprio Chico Buarque: “Eu sou o homem
cordial. Eu sou um homem que age por impulso. Esse meu lado afetivo
está talvez na música, que sofre esses arroubos afetivos. Eu faço uma
distinção bastante clara: na literatura sou um cidadão sem afetos. O fato
de estar solitário escrevendo um livro que vai ser apresentado em público,
e que vai ser lido individualmente, isso me despe um pouco desse sujeito
atirado e algo ingênuo. Já a música me emociona, eu fico em lágrimas.
Eu sou um bobo como músico. Mas tenho o outro lado, racional e muito
crítico, muito seco, que é um lado que quase não cabe na música, que
precisa de outro veículo” (cf. “Chico Buarque volta ao samba e reme-
mora 30 anos de carreira”, entrevista a Augusto Massi, Folha de S. Paulo
(Ilustrada), 9/1/1994, p. 6-5).

8 Cf. Coelho, Marcelo. “Estorvo”. Gosto se discute. São Paulo, Ática, 1994,
pp. 61-65. (Publicado anteriormente na Folha de S.Paulo, 7/8/1991, com o
título “Chico Buarque faz um livro impopular”.)

192
lhes a formulação, o que aliás é dito em notas de rodapé. A
segunda idéia também é retirada de “O artista e o tempo”,
e a terceira, agora sem indicação no rodapé, é parcialmente
inspirada no release que José Miguel Wisnik escreveu para
o lançamento do romance Budapeste.9 Mas não se trata de
uma mera compilação, pois essas idéias sobre a trajetória ar-
tística de Chico Buarque são postas em diálogo com o con-
texto histórico-social tratado a partir de Roberto Schwarz.
O resultado é que, no trabalho de Silva, as relações entre o
artista, sua obra e o processo histórico ficam mais concretas
do que estavam, melhorando-se o que se sabia até então.
Embora não seja apresentada, reitere-se, uma análise esté-
tica com força de contraprova, o livro assinala de modo bem
mais nítido um bom caminho para estudos subseqüentes.
Também a última idéia, acerca do potencial crítico do
lirismo, retoma um estudo anterior, Desenho mágico, de Adélia
Bezerra de Meneses.10 A propósito, Silva tem o cuidado de
fazer três citações desse livro, acompanhando as três princi-
pais modalidades em que Meneses divide a canção de Chico:
“lirismo nostálgico” (p. 42), “variante utópica” (p. 81) e “ver-
tente crítica” (p. 71).11 Apenas a quarta modalidade ficou
de fora, “canções de repressão”, o que parece ser uma estra-
tégia. O ensaio de Silva se mostra interessado em contestar a
imagem pública de Chico Buarque como compositor de pro-
testo, que lutou contra a ditadura militar durante a década de
1970 e, perseguido pela censura, foi o principal herói da es-
querda. Trata-se de uma revisão que, à primeira vista bastante
original, na verdade acompanha um desejo do artista mani-
festado em várias entrevistas desde aquela época, uma delas
inclusive citada no próprio livro. Apesar disso, deve-se objetar
que no fim das contas Silva dá muito pouca importância a um
enfrentamento que, embora superdimensionado até agora, de
fato existiu, à revelia ou não de seu protagonista.

9 “Budapeste, no exato instante em que termina, transforma-se em


poesia”. Cf. Wisnik, José Miguel. “O autor do livro (não) sou eu”, op. cit.,
p. 164. Outra passagem desse texto é citada por Fernando de Barros e Silva
à p. 123.

10 Cf. Meneses, Adélia Bezerra de. Desenho mágico. 2a ed. São Paulo,
Ateliê Editorial, 2000. (1a ed., Hucitec, 1982.) A fim de complementar
o que já se disse acerca de bases teóricas, vale lembrar que Meneses se
apóia, entre vários textos diversos, em “Palestra sobre lírica e sociedade”,
de Theodor W. Adorno, conforme a autora explicita à p. 146. Esse texto
de Adorno também é referido, mas apenas de passagem, por Fernando de
Barros e Silva (p. 126).

11 O fundamento para a divisão da obra de Chico Buarque – abordada


como poesia de resistência – nessas três categorias vem de O ser e o tempo
da poesia, de Alfredo Bosi, conforme Meneses esclarece à p. 40, nota 18,
de Desenho mágico.

193 revista do ieb n 43 set 2006


A quarta boa contribuição do livro de Fernando de
Barros e Silva é o capítulo “Nem toda loucura é genial”, que
trata das relações entre a trajetória artística de Chico Bu-
arque e a dos tropicalistas, notadamente Caetano Veloso.
Silva argumenta, uma vez mais em construção dialética, que
Chico se torna alvo dos tropicalistas, na década de 1960,
por conta da “complexidade de sua [de Chico] posição, di-
fícil de enquadrar aqui ou ali, aliada à facilidade com que
sua música se expressava, [o que] resultava numa figura ao
mesmo tempo simples e sofisticada, popular e aristocrática,
na qual a novidade do que fazia parecia incorporar o melhor
da tradição que a inspirava” (pp. 55-56). E, após passar em
revista quatro décadas, Silva aponta que Caetano e Chico
descrevem movimentos contrários: em relação a Caetano,
“sendo sempre diferente, sua obra será sempre a mesma”;
sobre Chico, “sendo sempre a mesma, sua obra será sempre
diferente” (grifos do autor; pp. 64-65).
Sistematizando as coisas, ainda que um tanto atro-
peladamente, nota-se que o “claro contraponto” entre as
trajetórias “notáveis” de ambos apresenta, para Silva, uma
base bem definida: se Caetano “segue rebolando conforme
o ritmo do momento”12 (p. 53); e se Chico tem uma atitude,
herdada “do pai”, “discreta e às vezes brincalhona, avessa
aos alardes de si mesmo” (p. 22), bem como se ele conserva
distância “deste país anômalo em que nos transformamos
– meio novo-rico, sem deixar de ser meio miserável” (p. 53);
essa diferença se dá porque Caetano adere com regozijo à
mercantilização da arte, comportando-se como uma marca
de carro ou de roupa que muda “de cor praticamente a cada
estação, mas mantendo-se por isso mesmo sempre fiel à
imagem tropicalista que inventou para si mesmo”13 (p. 64);
enquanto Chico nos apresenta quase um enigma: “Não deixa
de ser curioso que alguém tão consagrado esteja tão decidi-
damente na contramão da cultura dominante e tão pouco à
vontade com os ares do mundo” (p. 11).
Dessa visão procede a única divergência que Fernando
de Barros e Silva assinala, num outro capítulo (p. 91), entre
12 Não deve ter sido essa a intenção de Fernando de Barros e Silva, mas
sua escolha das palavras leva a frase, também no contexto original, a soar
preconceituosa, como a alguns leitores pode ter parecido aqui.

13 Fernando de Barros e Silva não escreve “marca de carro ou de roupa”,


mas “camaleão”, utilizando uma imagem que, cito de memória e posso
estar enganado, o próprio Caetano Veloso forjou para si (não me refiro à
canção “Rapte-me, Camaleoa”, dedicada à atriz Regina Casé, mas a textos
jornalísticos). A modificação aqui proposta, como se nota, sai do âmbito
da natureza e procura sublinhar o caráter econômico-social da atuação de
qualquer artista de mídia em nosso tempo. Devo a idéia a uma conversa
informal com Milton Ohata, mas é evidente que a responsabilidade por
uma idéia lançada em conversa ter sido escrita é apenas minha.

194
o seu livro e o ensaio de José Miguel Wisnik e Guilherme
Wisnik. Em “O artista e o tempo”, os autores afirmaram que
a letra de “Bye Bye, Brasil” (música de Roberto Menescal)
corresponde “até certo ponto” à “profecia tropicalista”, atri-
buindo sinal positivo a essa correspondência. Ocorre que,
desde a década de 1970, os estudos de José Miguel Wisnik
sobre canção popular sempre demonstraram, em graus di-
versos, uma atitude tropicalista de incluir a ambigüidade ou
a ambivalência no método de interpretação, atitude fundada,
entre outros aspectos, na percepção de que a realidade bra-
sileira se estrutura de forma ambígua ou ambivalente. De
fato, creio que não se possam entender, nesses estudos, as
várias influências que o próprio Wisnik já listou – Antonio
Candido, Roberto Schwarz, Davi Arrigucci Jr., Alfredo Bosi,
José Antonio Pasta Jr. –, mesmo somadas à sua aproximação
com a psicanálise e à sua formação musical, quando não se
leva em conta a afinidade do ensaísta com “o espírito do
tropicalismo baiano”.14
Por sua vez, Fernando de Barros e Silva, acompa-
nhando Roberto Schwarz, observa que “era impossível dis-
cernir em suas [dos tropicalistas] apostas, sempre muito
entusiasmadas, onde terminava o esforço crítico e onde co-
meçava o oportunismo publicitário – até porque o próprio
movimento tratava de confundir reiteradamente as duas
coisas”15 (p. 52). A ambigüidade e a ambivalência, como se
vê, nesse pensamento ganham sinal negativo. Ao afirmar,
14 As influências teóricas de José Miguel Wisnik são por ele comen-
tadas em Wisnik, op. cit., pp. 526 a 531; as influências da tropicália e,
em especial, de Caetano Veloso, são comentadas às pp. 490; 496; 501;
503 a 505. Note-se que já em 1985, escrevendo sobre Arrigo Barnabé,
Wisnik assim considerava a situação geral da canção de massa no Brasil:
“Caetano Veloso é quem mais tem essa cancha, historicamente conseguida,
de midializar as mínimas sutilezas poéticas num máximo de referências
culturais, que vão das mais literárias e eruditas ao samba, ao rock e ao
brega. A sua capacidade de vazar a massificação trabalhando dentro dela
é impressionante, e foi possível graças à conjunção entre o seu talento e o
lugar privilegiado que a música ocupa no Brasil, seu trunfo e seu triunfo
polêmico. Caetano se impregnou de tal modo da própria dinâmica geral
da música popular brasileira, fazendo dela a sua matéria e o seu mito
máximo, que se poderia aplicar a ele uma expressão de Lévi-Strauss no
‘Pensamento selvagem’: o indivíduo como espécie, espécime único dotado
de uma tal generalidade estrutural que nos faz crer que pertencem ao
sistema da música popular atributos que são dele” (cf. “Inovação versus
redundância na MPB”, Folha de S.Paulo (Folhetim), 28/4/1985, p. 3).

15 Fernando de Barros e Silva, em nota de rodapé (p. 53), esclarece que


a passagem se inspira em “Nacional por subtração”, ensaio de Roberto
Schwarz publicado em Que horas são?, o que fica evidente na frase
seguinte à que transcrevi. Novamente se não estou enganado, contudo,
também há a inspiração de “Cultura e política, 1964-1969: alguns
esquemas” (citado por Silva à p. 37) e “Nota sobre vanguarda e confor-
mismo”, textos publicados por Schwarz em O pai de família e outros
estudos [2a ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992].

195 revista do ieb n 43 set 2006


portanto, que “‘Bye Bye, Brasil’ é antes o avesso da profecia
tropicalista, ou sua crítica interna pela exposição de sua re-
alização histórica” (p. 91), Silva acaba retomando a histó-
rica oposição Chico versus Caetano, tomando o partido do
primeiro, note-se, num nível bem mais elevado do que pro-
punha o velho clima de briga de torcidas uniformizadas: o
que está em jogo, nessa análise, são dois projetos diferentes
de nação.
No entanto, se o autor identifica na obra de Chico Bu-
arque um claro “mal-estar” com o Brasil “que somos” e o
Brasil “que não nos tornamos”, restaria levar essa crítica
adiante e investigar a curiosidade da consagração desse ar-
tista “tão pouco à vontade com os ares do mundo”, o que
Silva não faz. Este é o primeiro ponto, dentre dois, que eu
gostaria de discutir, finalizando meu comentário.

Duas discussões
Ao posicionar a obra de Chico na tradição de um
“pensamento radical” brasileiro, apoiando-se inteligente-
mente em considerações que Antonio Candido faz sobre
Sérgio Buarque de Holanda, Silva defende a identificação
daquele artista “com um radicalismo nada doutrinário, que
tem na mobilização popular seu ponto de apoio” (pp. 26-27).
Mas o lugar social desse radicalismo e os limites daí decor-
rentes não são pesquisados, o que é um passo atrás em re-
lação às próprias reflexões em que Silva se baseia. Refiro-
me à apresentação do radicalismo feita por Candido: “Ge-
rado na classe média e em setores esclarecidos das classes
dominantes, ele não é um pensamento revolucionário, e, em-
bora seja fermento transformador, não se identifica senão
em parte com os interesses específicos das classes trabalha-
doras, que são o segmento potencialmente revolucionário da
sociedade. (...) O revolucionário, mesmo de origem burguesa,
é capaz de sair da sua classe; mas o radical, quase nunca.
Assim, o revolucionário e o radical podem ter idéias equiva-
lentes, mas enquanto o primeiro chega até a ação adequadas
a elas, isto não acontece com o segundo, que em geral con-
temporiza na hora da ruptura definitiva”.16
Sei que o texto de Candido, apresentado em 1988 e
publicado pela primeira vez em 1990, para muitos recorre a
um vocabulário e a um horizonte político atualmente sem
razão de ser na dinâmica da economia mundial. Ainda que
eu não concorde exatamente, aceito a objeção – mas meu
contra-argumento é que qualquer análise posterior não de-
veria ignorar, e sim fazer avançar o que ali se diz, corri-
16 Cf. Candido, Antonio. “Radicalismos”. Vários escritos. 3ª ed. São Paulo,
Duas Cidades, 1995, pp. 266-267. O texto é citado por Fernando de Barros
e Silva na bibliografia.

196
gindo o que parecesse necessário. Não seria um caminho
adequado para um melhor entendimento sobre a consa-
gração do artista?
Não se trata, entenda-se, de enxergá-lo sob o prisma
de uma determinada atuação política, como muito já se fez.
Trata-se de levar às últimas conseqüências o próprio método
utilizado por Fernando de Barros e Silva. Há um silêncio,
no livro, sobre o lugar específico da sociedade a partir do
qual essa obra é produzida, no qual é bem veiculada e bem
consumida, apesar (ou por causa?) do “mal-estar” represen-
tado. Por exemplo, diante de uma afirmação de Silva (p. 28)
de que, a partir da década de 1980, “a conquista da demo-
cracia irá defrontar-se com o fato paradoxal de um país de
agora em diante impossibilitado de realizar as promessas
de que ela própria era portadora. Ficamos todos, por assim
dizer, a ver navios – ou como passageiros da embarcação
que ‘navega para trás’, na bela imagem do ‘Xote de nave-
gação’ [parceria com Dominguinhos]”, resta a pergunta bá-
sica: a quem exatamente se refere o pronome “nós”, aliás um
sujeito oculto?17
Nesse sentido, talvez seja sintomático que Silva acolha
um pensamento exposto por Marcelo Coelho no artigo “Es-
torvo”: “Se, nos países socialistas, a esquerda traiu o povo,
o desespero com relação ao Brasil é inverso. De certo modo,
o povo traiu a esquerda; o desespero, o rancor de Chico Bu-
arque a partir dos anos 70, a referência não mais utópica,
mas irônica, de suas canções depois dessa época significam,
acima de tudo, a derrota que se abateu sobre um país que
não se reconhece mais a si mesmo”.18
17 A indicação de alguns outros textos de Antonio Candido talvez ajude
a esclarecer minhas considerações. Veja-se, por exemplo, em Literatura e
sociedade, o ensaio “O escritor e o público”, em que o autor relaciona, “na
nossa literatura oitocentista”, o desenvolvimento de “um certo confor-
mismo de forma e fundo, apesar das exceções”, ao “caráter, não raro assu-
mido pelo escritor, de apêndice da vida social, pronto para submeter sua
criação a uma tonalidade média, enquadrando a expressão numa certa
bitola de gosto”, tudo isso feito muitas vezes por “homens ajustados à
superestrutura administrativa” (op. cit., p. 76); ou o ensaio “A literatura e
a vida social”, em que um dos tópicos discutidos é justamente “A posição
do artista”. No âmbito dos estudos sobre canção popular, veja-se “Seguindo
a canção”: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969),
de Marcos Napolitano [São Paulo, Annablume/Fapesp, 2001], trabalho
praticamente isolado em seu propósito, realizado de modo excelente, de
tentar “entender as formas concretas de atuação de artistas e intelectuais
que acreditaram na possibilidade de engajar-se, ao mesmo tempo que
atuavam no mercado musical” (p. 17).

18 Cf. Coelho, Marcelo. op. cit., pp. 63-64. O jornalista chega a esse pensa-
mento a partir de duas comparações que faz, ambas aproveitadas por
Fernando de Barros e Silva (pp. 44 e 63): uma, entre as canções “A banda”
e “Vai passar” (parceria com Francis Hime); outra, entre “Quem te viu,
quem te vê” e “Essa moça tá diferente”.

197 revista do ieb n 43 set 2006


Em chave quase caricata, poderíamos lembrar uma
fala de Terra em transe, de Glauber Rocha: “– O povo não
tem culpa!” O caso, porém, é outro. Se, por um lado, o livro
de Fernando de Barros e Silva silencia sobre a diversidade
das forças históricas que atuaram na ruína daquela “pro-
messa histórica” de que a obra de Chico é testemunho – o
que requereria uma análise bem mais extensa e, desse modo,
muito além dos limites impostos pelo tipo de publicação –,
por outro, menciona-se uma traição do povo “a si mesmo”
(na formulação de Silva, p. 44); restando então perguntar:
de que lugar se atiram pedras no povo traidor?
Some-se a tudo isso um outro silêncio que há, quando
se fala de “Assentamento”. Como talvez algumas pessoas
ainda recordem, a canção foi “feita para o livro Terra, do fo-
tógrafo Sebastião Salgado, e depois [a mesma gravação foi]
incluída em as cidades”, nas palavras de Silva (p. 129). O
que ele omite, porém, é que as fotografias retratam, con-
forme Sebastião Salgado esclarece nas legendas: “a digni-
dade e a pobreza” de trabalhadores brasileiros “de uma es-
trutura agrária ainda feudal”; famílias de retirantes, em
período de seca no Nordeste do Brasil; “gente que, em sua
grande maioria, trabalhava no campo produzindo alimentos”
e que, em São Paulo, “depende da caridade para comer”; e
pessoas que fazem parte das “dezenas de milhares de famí-
lias brasileiras que vivem em acampamentos à beira das es-
tradas em vários pontos do país”, em situação “pior que a
dos campos de refugiados na África”, e que integram o MST
(Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra), a quem
foram cedidos os direitos autorais do livro – e do CD que o
acompanha.19
Em sua interpretação de “Assentamento”, Silva afirma:
“A primeira leitura conduz imediatamente à oposição entre
o campo e a cidade. Sim, mas o ponto central não é esse. O
movimento pendular da canção, que ‘zanza daqui, zanza pra
acolá’, não é geográfico, mas entre o ser/não ser de uma ci-
vilização. Ela é ao mesmo tempo canção do exílio e do re-
torno para casa, lamento de uma derrota e expressão de
uma esperança que renasce, morte e vida – luto e reconci-
liação histórica” (pp. 130-131).
Como se vê, Silva considera que tanto a inspiração das
fotografias quanto a finalidade do livro não são assim tão
relevantes para o entendimento profundo da canção: mais
importante é inseri-la no projeto estético de Chico, um en-
tendimento aliás que parece acompanhar mais uma vez a

19 Cf. Salgado, Sebastião. Terra. São Paulo, Companhia das Letras, 1997,
pp. 138-143.

198
opinião do próprio artista; ou talvez não, mas isso não é im-
portante aqui.20 Ocorre que as citações de Guimarães Rosa,
que abrem e fecham a letra, e o ar jobiniano, que se sente
na música, são destacados por Silva como, respectivamente,
“imagens daquele que alcançou em sua obra – particular-
mente em Grande Sertão: Veredas – a síntese que o Brasil
ficou devendo a si mesmo” e marcas de “‘uma promessa que
o Brasil fez ao mundo, e ainda não cumpriu’”21 (p.131). “As-
sentamento”, enfim, para Silva configuraria “o Brasil que
ficou suspenso no ar” (p. 132). Se a interpretação está cor-
reta, como fica o diálogo entre a utopia algo fantasmagórica
dessa “espécie de ‘morto que não morre’” (p. 131) 22 e a situ-
ação concreta do MST, a qual é silenciada ao longo de toda
a análise, mesmo tendo sido o estímulo inicial para a com-
posição, via imagens fotográficas?
20 “A música ‘Assentamento’, por exemplo, as fotos do livro do Salgado
(Terra) me serviram de motivação, de inspiração, ou o que você quiser,
para escrever aquela música, mas ela foi criada dentro do meu universo
poético, a partir daí eu fiquei satisfeito porque a música, enquanto
música, entrou no livro do Salgado, e o livro tinha uma finalidade prática
mesmo, até pecuniária, os direitos do livro foram cedidos para os sem-
terra, aí é outra coisa. ‘A música já está criada e vamos ver o que a gente
faz com ela.’ A gente cria um objeto de arte, a gente pode criar a partir
dessa música uma utilidade prática, mas criar uma música pensando na
sua finalidade objetiva me parece perigoso, empobrecedor mesmo.” Cf.
“Chico, o craque de sempre”, entrevista a Caros amigos, São Paulo, Casa
Amarela, ano 2, no 20, dez. 1998, p. 23. Vale lembrar, sobre o assunto,
que já se tornou opinião corrente considerar várias canções de Chico como
discursos que dão “voz àqueles que em geral não têm voz”, conforme
escreveu Adélia Bezerra de Meneses no início dos anos 80 (op. cit., pp.
118-128; ver também, da autora, Figuras do feminino. São Paulo, Ateliê
Editorial/Boitempo, 2000, capítulo 2; e “Utopia renitente: Levantados
do chão/Assentamento”; Cavalcante, Starling, & Eisenberg (orgs.),
Decantando a República, volume III: A cidade não mora mais em mim.
Rio de Janeiro, Nova Fronteira/ São Paulo, Ed. Fundação Perseu Abramo,
2004, pp. 113-122).

21 Como diz Fernando de Barros e Silva, em nota: “A frase é de Lorenzo


Mammì, no prefácio do Cancioneiro Jobim (Rio de Janeiro, Jobim Music,
2000), p. 18”.

22 Se não estou enganado, a expressão, referindo-se ali à “promessa


histórica” cantada por Chico, bem como os próprios termos da interpre-
tação de Silva para “Assentamento” retomam a seu modo o pensamento
do crítico literário José Antonio Pasta Jr., originado em outro contexto:
“essa contradição em ato que é o Brasil, cuja própria história, se assim se
pode dizer, é a da alternância fastidiosa da construção e da ruína e, de
certo modo, a conjunção de ambas, ‘nação’ indefinidamente límbica, que a
barbárie faz tender entre impulsos contrários a Céu e Inferno, mas que o
pêndulo parado da má-infinidade mantém, por isso mesmo, suspensa entre
um e outro, num limbo ou limiar do além, sem que de todo ganhe um
corpo ou o perca, sem que de todo ganhe ou perca uma ‘alma’”. Cf. Pasta
Jr., José Antonio. Pompéia (A metafísica ruinosa d’O Ateneu). São Paulo,
FFLCH-USP, 1991, tese de doutoramento, p. 225.

199 revista do ieb n 43 set 2006


Caso optasse pelo diálogo, Silva faria jus a um prin-
cípio básico da democracia – o direito à fala e ao dissenso –,
não importando qual fosse o seu posicionamento. Operando
com o silêncio, Silva contorna, de modo um tanto autori-
tário, o choque que parece haver entre as utopias estética e
social de pessoas esclarecidas e bem-postas na sociedade,
que se sentem “uns desterrados em nossa terra” como for-
mulou Sérgio Buarque, e a ação de “deserdados da terra”, na
expressão de Salgado. 23
Fica assim a pergunta, que tenta sintetizar esse pri-
meiro ponto que discuto: entre a omissão da existência de
um movimento social organizado e a menção ao povo que
faltou (à revolução?), o leitor mais atento não deveria refletir
sobre o ponto de vista do livro, o qual também não examina
o lugar social onde se realiza a obra de Chico Buarque?
Como segundo e último ponto, gostaria de chamar a
atenção para os comentários de Silva sobre a parte musical
das canções. Esse assunto é sempre muito delicado, pois
no Brasil ainda são raros os estudos sobre canção popular
que conseguem dar conta desse aspecto, integrando-o como
etapa de uma interpretação mais ampla das obras.24 Nos jor-

23 Inspiro-me em uma passagem de Francisco de Oliveira: “Todo o esforço


de democratização, de criação de uma esfera pública, de fazer política,
enfim, no Brasil, decorreu, quase por inteiro, da ação das classes domi-
nadas. Política no sentido em que a definiu [Jacques] Rancière (...): a da
reivindicação da parcela dos que não têm parcela, a da reivindicação da
fala, que é, portanto, dissenso em relação aos que têm direito às parcelas,
que é, portanto, desentendimento em relação a como se reparte o todo,
entre os que têm parcelas ou partes do todo e os que não têm nada”. Cf.
“Privatização do público, destituição da fala e anulação da política: o
totalitarismo neoliberal”; in: Oliveira, Francisco de & Paoli, Maria. C.
(orgs.), Os sentidos da democracia. 2a ed. Petrópolis (RJ), Vozes/ Brasília,
Nedic, 1999, pp. 60-61.

24 Destaque-se, como um excelente exemplo, Feitiço decente, de Carlos


Sandroni [Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed./ Ed. UFRJ, 2001]. Veja-se, por
outro lado, que às vezes algum cochilo de análise põe em risco toda uma
interpretação interessante, como ocorre no ensaio “Canção do exílio”, de
Lorenzo Mammì ( Nestrovski, Arthur et alii, Três canções de Tom Jobim.
São Paulo, Cosac Naify, 2004, pp.12-29). Ótimo crítico, Mammì se equi-
voca na análise da harmonia de “Sabiá” (Tom Jobim/ Chico Buarque), não
percebendo que a primeira parte, que ele diz estar na tonalidade de em Mi
menor, na verdade começa na tonalidade de Ré Maior, modula para o VIo
grau (Si menor, o relativo menor) e retorna a Ré Maior. Por conta desse
erro, a sua conclusão de que “‘Sabiá’ é uma canção sem tonalidade defi-
nida, que acaba num lugar diferente daquele onde começa” também está
um tanto equivocada. A terceira parte da canção termina na tonalidade de
Ré menor, portanto próxima da inicial. O que ocorre é que o mais usual (e
bastante comum) na música popular é o movimento inverso, parte inicial
em menor, parte final no tom homônimo Maior, e com modulação bem
definida separando as partes (como “Último desejo”, de Noel Rosa, “Chega
de saudade”, de Tom e Vinicius, ou “Quem te viu, quem te vê”, de Chico, à
parte as especificidades de cada um desses casos). Já em relação às modu-

200
nais, via de regra, ficamos na melhor das hipóteses com im-
pressões de bons ouvintes, sem formação musical mas com
intuição e muitas informações, o que por vezes gera pistas
importantes para investigações mais criteriosas. No livro de
Silva, esse é o caso da aproximação entre Chico e Jobim, na
toada “Assentamento”, ou do comentário sobre o arranjo de
Rogério Duprat para “Construção” (p. 71), ou ainda da im-
pressão, tomada de empréstimo a Pedro Alexandre Sanches,
provocada pelo arranjo de “Bancarrota Blues” (p. 95), par-
ceria de Chico com Edu Lobo.
A dificuldade aparece quando Silva mistura impres-
sionismo a termos técnicos. Sobre “O futebol” (p. 111), por
exemplo, se diz que “a música vai costurando em zigue-
zague, no sentimento diagonal de sua harmonia, uma es-
pécie de jogada de movimentos perfeitos”, o que rigorosa-
mente não quer dizer nada. Um outro exemplo: em meio a
observações realmente perspicazes do autor sobre as letras
de “Estação derradeira” e “Carioca” (pp. 126-128), afirma-se
que esta última “tem uma das harmonias mais trabalhadas
de toda a obra de Chico – um labirinto cromático, por onde
se avança num ritmo rascado, feito de soluços, pequenos vá-
cuos, movimentos bruscos e cortes inesperados – em opo-
sição à melodia, que flutua no ar com leveza e alegria”. Ora,
o ritmo do violão executando a harmonia é regular durante
toda a canção (à parte a surpresa que causa, num primeiro
momento, o fato de esse desenho rítmico, nos seus ataques
de acordes, inverter a batida da marcha-rancho – esta, utili-
zada, por exemplo, em “Futuros amantes”).25 E o cromatismo
auxilia no encadeamento dos acordes de uma harmonia

lações durante a segunda parte de “Sabiá”, não se passa pela tonalidade


de Si bemol menor, como o crítico afirma, mas do Ré Maior vai-se para Fá
Maior (apenas por quatro compassos) e, daí, para Lá bemol Maior (simpli-
ficando, modulações para o IIIo grau do modo menor homônimo – mas
com substituições bastante complexas de acordes, nos encadeamentos), de
onde se volta para Ré Maior. (Devo essa análise harmônica a uma aula que
tive com o maestro Cláudio Leal Ferreira, a quem dou crédito eximindo-o,
obviamente, de qualquer responsável por aquilo que eu escrevi.)

25 A batida da marcha-rancho é quaternária, mas se a dividimos em


duas partes (transformando um compasso 4/4 em dois 2/4), teremos duas
células rítmicas de ataques de acordes (desprezo aqui, para efeito de
análise, tanto os bordões como as notas abafadas). Essas células trocam
de ordem na batida de “Carioca”, resultando numa estilização original do
samba-reggae; ou, nas palavras do músico Luiz Claudio Ramos (arranjador
dos trabalhos recentes de Chico Buarque), resultando num ritmo que é
“meio bossa nova, meio Olodum”:

marcha-rancho “Carioca”

201 revista do ieb n 43 set 2006


tonal, ou seja, na chamada “condução das vozes”, o que me-
receria ser analisado mas nada tem de labiríntico.
Sei que talvez eu esteja exagerando no nível de exi-
gência diante de um livro que realmente contribui, com
qualidade e dentro de seus limites, para o conhecimento da
obra de Chico Buarque. Acontece que equívocos assim es-
pantam os músicos, cuja melhor reação acaba sendo a indi-
ferença – o que não é justo, pois se trata de um trabalho que
merece ser discutido.

202
História do Brasil Guloso

Claude G. Papavero*

História da Alimentação no Brasil.


Luís da Câmara Cascudo. Global, 2004.

A reedição recente da: História da Alimentação no


Brasil, de Luís da Câmara Cascudo, trouxe de volta às prate-
leiras das livrarias uma obra pioneira sobre o tema da for-
mação de uma dieta alimentar brasileira. Trata-se de uma
análise das práticas alimentares dos povos que formaram o
Brasil, leitura obrigatória para estudiosos interessados no
surgimento de uma identidade cultural brasileira em terras
do Novo Mundo.
Em seu estudo inaugural sobre a evolução de um jeito
brasileiro de comer e viver, escrito entre 1962 e 1963 e pu-
blicado em 1967/ 1968 (contemporâneo, portanto, dos es-
forços de Fernand Braudel para incentivar as investigações
históricas sobre manejos alimentares ilustrando condições
de vida material associadas às representações sociais1), Câ-
mara Cascudo, nascido em 1898, no Rio Grande do Norte,
formado durante os anos 20 do século XX, e escritor ativo
até meados dos anos 70, delineou os parâmetros brasileiros
do novo campo de estudo.
Na primeira parte da obra prevalece um enfoque de
cunho histórico. O famoso ensaio do naturalista von Mar-
tius2 , escrito em 1844 para o concurso da Revista do Insti-
tuto Histórico e Geográfico Brasileiro, serve de referência
à organização dos dados. Recorrer ao tema das três raças
formadoras da nacionalidade brasileira permitiu ao autor
fundamentar a discussão do processo de elaboração de um
paladar brasileiro a partir de uma seleção local de gêneros
comestíveis e de hábitos alimentares tomados por emprés-
timo a diferentes etnias. Em três capítulos distintos: Car-

* Doutoranda em Antropologia Social no Departamento de Antropologia


da FFLCH-USP

1 No começo dos anos 60, com efeito, Braudel solicitou aos historiadores
ar No começo dos anos 60, com efeito, Braudel solicitou aos historiadores
artigos sobre o tema da alimentação e incluiu alguns ensaios em cada
número da Revista das Annales publicado durante aquela década.

2 Schwarcz, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças São Paulo, Companhia


das Letras, 2000. p. 112.

203 revista do ieb n 43 set 2006


dápio indígena, Dieta africana e Ementa portuguesa, Câmara
Cascudo examina, portanto, a fusão de usos e costumes que
gerou uma sociedade mestiça.
Na segunda parte da obra o autor focaliza diversos as-
pectos da culinária brasileira, privilegiando um olhar sin-
crônico, sociológico. Contudo, a consciência da temporali-
dade dos hábitos de consumo nunca deixa de marcar pre-
sença ao longo da argumentação. Evidencia uma erudição
invejável. O autor recorreu a enorme acervo bibliográfico
de fontes primárias e secundárias para fundamentar seu es-
tudo. Entrelaçou depoimentos de cronistas portugueses dos
séculos XVI, XVII, e XVIII, descrições de viajantes euro-
peus do século XIX, observações de pioneiros dos estudos
etnológicos ou históricos e análises de americanistas. Causa
impacto também, na leitura da obra, a versatilidade de seu
conhecimento de campo. Entrevistou inúmeros informantes
de diversas condições sociais: pescadores, filhos de ex-es-
cravos, senhores de engenho e suas esposas.
Os primeiros capítulos desvendam temas coordenados:
sociologia da alimentação, elementos básicos, técnicas culi-
nárias e ritmo da refeição. Em seguida, o estudioso aborda
um leque multifacetado de questões atreladas aos procedi-
mentos alimentares. Parece ter se deixado guiar antes pela
rica experiência de vida e pelo conhecimento dos signifi-
cados sociais atribuídos aos hábitos alimentares, do que pela
metodologia científica de seu tempo. A análise se desdobra
entre diversos temas indiretamente correlacionados e a ta-
refa complexa de compor um panorama das práticas de nu-
trição brasileiras, escalonadas ao longo de diversos tempos e
lugares, resulta numa obra um tanto heterogênea.
Por exemplo, no primeiro encontro entre portugueses
e ameríndios em Porto Seguro, relatado por Pero Vaz Ca-
minha, Câmara Cascudo apenas descreve a ementa oferecida
aos índios que visitaram a nau de Cabral. Não comenta de
forma crítica as reações dos indígenas frente aos alimentos
estranhos. Certos usos alimentares derivados de preceitos de
medicina hipocrática são apresentados como sobrevivência
de superstições. E ainda, há os dados coligidos sobre alguns
gêneros comestíveis importantes, que voltam à tona em di-
versos momentos da análise, diluídos no contexto de dife-
rentes capítulos, o autor esquivando-se de aglutinar informa-
ções. Mas, paradoxalmente, tais recorrências, que poderiam
lhe ser imputadas como falhas, atestam seu conhecimento
dos critérios de manejo dos ingredientes. O lugar esparso,
que os principais gêneros comestíveis ocupam no livro, su-
blinha a importância das conexões nativas existentes entre
os diversos códigos de conduta social, configurando em con-
junto as formas de consumo. O viés descritivo da redação en-

204
cobre, assim, uma percepção etnográfica aguda das lógicas,
que norteiam os procedimentos, e muitos fatos interessantes
surgem nas entrelinhas, como no caso da presença discreta
do feijão no cardápio colonial dos primeiros séculos, se afir-
mando posteriormente como alimento predileto. É, portanto,
necessário debulhar o texto atentamente.
Talvez tenha sido esta peculiar associação de descri-
ções particulares e de valores culturais, marcante na es-
crita de Câmara Cascudo, que incentivou José Reginaldo
Santos Gonçalves a enfatizar o caráter etnográfico da es-
crita dotada de forte viés nativo3. O estudioso afirma: “Não
por acaso, Cascudo jamais veio a ser reconhecido como um
“cientista social” em sentido estrito. Ainda que fosse um fol-
clorista reconhecido nacional e internacionalmente, sempre
ocupou uma posição marginal no sistema acadêmico brasi-
leiro”. Mais adiante, Gonçalves acrescenta: “Em seus escritos
etnográficos, é possível reconhecer não o clássico “eu estive
lá” dos antropólogos sociais ingleses e dos antropólogos cul-
turais norte-americanos, mas alternativamente, o “eu sempre
estive aqui”, próprio do etnógrafo nativo”.
De fato, a perspectiva analítica de Câmara Cascudo
se aproxima muito das teias de significações que os homens
tecem e nas quais enredam suas vidas, de Clifford Geertz 4 ,
com significados anotados em campo e descritos em textos
“densos” por observadores que “estiveram lá”. Na medida em
que a obra de Geertz prolonga a metodologia culturalista
de Boas e de discípulos como Robert Lowie ou Margareth
Mead citados por Câmara Cascudo, o comentário procede.
Porém, curiosamente, além de promover um estudo cultura-
lista da alimentação brasileira, centrado nas peculiaridades
do sistema instituído e de considerá-lo por um prisma difu-
sionista apropriado a incorporações de práticas alimentares
herdadas de diversos povos, há algo que prevalece na abor-
dagem dos temas: é a intuição de Câmara Cascudo, que pa-
rece antecipar o uso atual dos conceitos de “fato social total”
e de “homem total” de Marcel Mauss5 nas análises de fenô-
menos alimentares (perspectiva analítica recente de antro-
pólogos da alimentação como Claude Fischler6 ). Com efeito,

3 Gonçalves, José Reginaldo Santos. “A fome e o paladar: a antropologia


nativa de Luís da Câmara Cascudo”, Estudos Históricos, Vol. Alimentação,
33, pp. 40-55, Janeiro/ Junho, Rio de Janeiro, Fundação G. V., 2004.

4 Geertz, Clifford. A Interpretação das Culturas, LTC, Rio de Janeiro, 1989.

5 Mauss, Marcel. “Ensaio sobre a dádiva, forma e razão da troca nas socie-
dades arcaïcas” e “As técnicas do corpo”, Sociologia e Antropologia, São
Paulo, Cosac & Naify, 2003.

6 Fischler, Claude. L’Homnivore, Paris, Poche, Odile Jacob, 2001.

205 revista do ieb n 43 set 2006


Mauss, etnólogo pouco lido no Brasil, antes de Lévi-Strauss
reivindicá-lo como precursor do estruturalismo, mesmo sem
ser citado, se faz quase presente na História da alimentação
no Brasil, quando Câmara Cascudo ressalta a importância
do ponto de vista sociológico para a constituição de regras
sociais, modelando formas de satisfazer a fome fisiológica,
e repercutindo na manutenção ou na transformação dos há-
bitos culinários. Vale a pena escutá-lo quando declara:

“A Fome em si mesma determina um complexo socioló-


gico, político, econômico, artístico, literário, lírico, pictórico,
sem modificação no próprio status carencial que pertence aos
problemas da nutrição, suficiente e racional. Um sistema de cír-
culos concêntricos amplia a projeção dessa “consciência”, arti-
culando-a a todos os corpos doutrinados decorrentes das neces-
sidades imediatas e naturais do homem”7.

Entremeando, pois, princípios de sociologia, de fisio-


logia e de psicologia, o folclorista “marginal no sistema aca-
dêmico brasileiro”, mais parece afinal um precursor sem
instrumental teórico para fazer valer seu profundo conhe-
cimento do objeto de estudo. Mas consegue, a despeito das
limitações da metodologia disponível, delinear em seus es-
critos os modos brasileiros e nordestinos de ser à mesa e à
vida, compondo uma obra de leitura agradável, que perma-
nece atual e merece ser lida, saboreada e assimilada.

7 Cascudo, Luís da Câmara. Op. Cit., p. 342.

206
A contribuição italiana, segundo
Sérgio Buarque de Holanda
Lucy Maffei Hutter *

A contribuição italiana para a formação do Brasil,


Sérgio Buarque de Holanda.
Florianópolis: NUT/NEIITA/UFSC, 2002.

Trata-se aqui de um ensaio de Sérgio Buarque de Ho-


landa, originariamente escrito em italiano e publicado em
1954, em Siena (Itália), na revista Ausonia (IX, nº 5), então
sob a direção de Luigi Fiorentini. Traduzido para o portu-
guês em 2002, cuja publicação da Universidade Federal de
Santa Catarina é bilíngue, conta com uma introdução – Iti-
nerari italiani di Sérgio Buarque de Hollanda (Itinerários ita-
lianos de Sérgio Buarque de Hollanda) de Aniello Angelo
Avella, professor da Universidade de Roma - que, como o
próprio título indica, mostra o relacionamento do autor do
ensaio com a cultura italiana e a brasileira.
Buarque de Hollanda, ao longo do texto, demonstra
como são as culturas, brasileira e italiana, “tão próximas
nas suas raízes comuns e seculares”, concluindo que seria,
por si, razão suficiente para o estímulo do “conhecimento
recíproco entre os dois povos”.
Analisa, inicialmente, como sempre com muita lu-
cidez, os diferentes caminhos seguidos de um lado pelos
países de colonização espanhola, na América e, de outro, o
Brasil colonizado pelos portugueses, embora ambos de cul-
tura ibérica. O sistema de governo no Brasil, uma vez inde-
pendente, refletiu o arraigamento às raízes européias.
Com a manutenção da Corte, que serviu como um obs-
táculo à luta entre facções, teria o Brasil conseguido manter
um território de tamanhas proporções, sem uma subdivisão
como ocorreu com as terras de dominação espanhola.
Faz referência à maneira diversa de encarar a riqueza,
em se tratando dos portugueses e daqueles originários da
Península Itálica: enquanto Portugal não a separava da pro-
priedade fundiária atribuindo uma importância maior às
conquistas territoriais, o mesmo não se dava com genoveses,

* Pesquisadora do IEB-USP. Publicou, entre outros, A Imigração Italiana


em São Paulo de 1902 a 1914 (IEB-USP, 1986) e Navegação nos Séculos
XVII e XVIII – Rumo: Brasil (EDUSP, 2005).

207 revista do ieb n 43 set 2006


venezianos e pisanos que consideravam mais os lucros ad-
vindos da conquista. Diferença esta, todavia, não conside-
rada, pelo autor, essencial.
No auge da expansão, as possessões coloniais fundadas
pelos portugueses, continham traços de semelhança com al-
fândegas e entrepostos implantados no litoral do Mediter-
râneo e do Mar Negro, pelas cidades marítimas italianas.
Outra comparação é feita com aqueles da Península
Itálica: se nos finais do século XV chegaram os portu-
gueses à Índia, por via marítima, conseguiram eles atingir
uma meta, anteriormente já tentada, na década de 90 do sé-
culo XIII, pelos genoveses Ugolino e Valdino Vivaldi. Sugere
mesmo que os portugueses “procuravam prolongar através
do oceano a obra de seus antecessores: os navegadores e os
mercadores italianos”.
Provavelmente tenha aqui o autor se valido tão so-
mente de uma força de expressão, já que sendo a navegação
um dos meios mais antigos de transporte, e não havendo
possibilidade de se determinar nem quando e nem em que
local ou locais se iniciou, nos parece que as tentativas de
navegação se davam simultaneamente, em várias regiões do
planeta, sem que existisse a preocupação, propriamente dita,
de seguir determinados antecessores, mas, sim, o interesse
em novas conquistas e lucros daí advindos.
Com relação à chegada dos portugueses às terras pos-
teriormente denominadas Brasil, usa o autor o termo “desco-
bertas”, generalizando - o que tudo faz crer – as terras onde
aportaram tanto genoveses, venezianos, pisanos, quanto
os portugueses. Em Raízes do Brasil é também utilizado o
termo “descobrimento”, referindo-se ao Brasil, termo este,
aliás, de consenso na ocasião, quando foram elaboradas
essas obras.
É detalhada a chegada dos portugueses ao Brasil, a
caminho da Índia, e os primeiros contactos desses euro-
peus com os habitantes da terra. Aqui, mais uma vez, é feita
comparação com os da referida Península, ou seja, tiveram
eles a mesma atitude “ao se adaptarem aos usos, às exigên-
cias e às necessidades das terras descobertas”.
Tece considerações sobre a harmonia reinante entre
colonizadores e os naturais da terra, ao chegar a esquadra
portuguesa, em 1500, momento tido como primeiro encontro
entre ambos.
Tanto esse aspecto como as eventuais possibilidades
da Coroa portuguesa de extrair algum lucro da terra - visão
de Caminha - são comentados pelo autor.
Tratando da primeira riqueza da colônia, a saber, o de-
senvolvimento da produção de cana, agregada à importação
do escravo e ao trabalho insano deste, volta a tecer a ligação

208
com aqueles de orígem itálica, destacando o genovês Filippo
Adorno, em São Vicente - então capitania de São Paulo – e
o florentino Filippo Cavalcanti estabelecido em Pernambuco,
conhecido entre os conterrâneos, desde os finais do século
XVI como administrador de “grandes negócios”, com fabri-
cação de açúcar, e “homem de grande autoridade”.
Procede a análise da questão do sistema de coloni-
zação portuguesa, capitanias e governo-geral, e da inade-
quação do mesmo diante da expansão do domínio territorial,
com a penetração dos habitantes de São Paulo, no século
XVII, interior adentro, atingindo locais distantes em busca
do índio e de minérios preciosos. E, quanto à região norte,
do Brasil, a interiorização se fez, facilitada, até certo ponto,
pelos rios. Resultado dessa expansão: reconhecimento da Es-
panha, pelo Tratado de Madrid, da ampliação dos domínios
portugueses.
Não só o domínio de um território maior, mas,
também a luta anterior pela expulsão dos holandeses, entre
outros fatores, teriam induzido os descendentes dos coloni-
zadores à noção de uma certa autonomia e “das diferenças
que tendiam a separar dos portugueses da Europa”.
Já a questão educacional, na colônia, entregue às or-
dens religiosas e, sobretudo à Companhia de Jesus, propiciou
a vinda de missionários tanto portugueses como de outras
orígens, entre estes, italianos que, por vezes, chegaram a fa-
vorecer seus conterrâneos e até mesmo a contrariar ordens
de Portugal, como foi o caso de Gian Antonio Andreoni, na-
tural de Luca, autor do livro Cultura a e opulência do Brasil
por suas drogas e minas.
Comenta Buarque de Holanda a influência da cultura
italiana na prosa e no verso elaborados no Brasil Colônia.
Manuel Botelho de Oliveira, por exemplo, primeiro brasi-
leiro a publicar um livro em verso, o fez em italiano: Mu-
sica del Parnaso (ed.1705, Lisboa). Aqueles que se voltavam
mais para os outores italianos o faziam em contraposição ao
espanholismo, na tentativa da “reconquista de uma tradição
nacional perdida”, durante o domínio espanhol.
Na década de 60 do século XVIII, um melodrama de
Metastasio foi apresentado no Rio de Janeiro, tendo por
atores um grupo de mulatos dirigidos por um padre. Ao
mesmo autor Metastasio, José Basílio da Gama enviou o seu
poema épico O Uraguay, editado em Lisboa, acompanhado
de uma carta. Tanto esta como a resposta estão reprodu-
zidas nesse ensaio de Buarque de Holanda, chamando ele a
atenção para o tom pouco sincero enquanto demasiadamente
elogioso de ambas, não propriamente como uma crítica,
mas, com o intuito de mostrar a psicologia setecentista e a
maneira de se expressar de uma época.

209 revista do ieb n 43 set 2006


Para Buarque de Holanda, se de um lado os autores
portugueses, voltando-se para os escritos italianos, viam
nessa atitude uma maneira de se afastar definitivamente do
domínio espanhol, os autores brasileiros, seguindo a mesma
linha, teriam achado um caminho para definir sua auto-
nomia perante Portugal.
Alerta para o fato de que aqueles escritores do
Brasil, na maioria das vezes, tinham sido inf luenciados
pelas academias literárias – instituição importada da Pe-
nínsula Itálica – bem como pela Arcádia, de mesma proce-
dência, o que teria levado a um amadurecimento que das
letras passsaria à política. O arcadismo, enfatiza ele, “é
um dos aspectos pelo qual a inf luência italiana foi mais
eficaz na formação brasileira”.
Se de um lado Buarque de Holanda faz, nesse en-
saio, uma análise do influxo da cultura italiana no Brasil,
de outro, ele mesmo se viu influenciado por aquela cultura,
tema este tratado por Aniello Angelo Avella, acima referido
- quando analisa a influência italiana no pensamento de
Sérgio Buarque de Holanda – e o retoma na introdução, já
mencionada, que precede o ensaio do historiador, ao abordar
os itinerários italianos de Sérgio Buarque de Holanda.

210
Ana Berstein: a crítica cúmplice

Vilma Arêas*

A Crítica Cúmplice – Décio de Almeida Prado e a Formação do


Teatro Moderno Brasileiro,
Ana Berstein, Instituto Moreira Salles, 2005.

Qualquer comentário sobre A Crítica Cúmplice - Décio


de Almeida Prado e a Formação do Teatro Brasileiro Mo-
derno de Ana Berstein deve estabelecer o ponto de partida
do ensaio para avaliar devidamente seu sentido e alcance.
Trata-se de uma dissertação de mestrado em História Social
da Cultura, editada com esmero pelo Instituto Moreira Sales,
e elaborada de 1993 a 1995 sob a orientação de Flora Süs-
sekind, no programa de pós-graduação da PUC/RJ. A autora
obedece, assim, às novas orientações e prazos vigentes no
Brasil para a produção acadêmica. Digo isso, não para dimi-
nuir o ensaio. Ao contrário, para ressaltá-lo, pois raras pes-
soas conseguem nesse tempo record elaborar algo de útil e
importante, qualidades do livro que temos nas mãos.
É verdade que a autora tem um percurso diferenciado
e uma vinculação incomum com o universo teatral, o que a
distingue dos pesquisadores acadêmicos de praxe. Foi crítica
de teatro no Jornal do Brasil entre 1992 e 1993 e no Jornal
de Artes Cênicas em 1994, desenvolvendo também um tra-
balho regular de atriz durante os anos 80. Uma das peças,
Baden Baden e a Didática de Estar de Acordo, de Brecht,
deu-se sob a direção de José Celso Martinez Corrêa. Uma
vez terminada a dissertação, Ana foi curadora de festivais
internacionais de teatro no Rio de Janeiro, diretora da Di-
visão de Artes Cênicas da RioArte e ainda organizou um
ciclo de debates sobre a crítica teatral no teatro Glória.
Essa carreira diversificada, centrada embora no teatro,
não deixa de espelhar de algum modo o percurso de Décio
-ator e diretor amador, escritor, crítico militante, acadêmico
e pesquisador- com as diferenças impostas a Bernstein pela
transformação do trabalho intelectual, questão que é tema-
tizada no livro. O tempo estreitou o espaço e as possibili-
dades de interferência cultural da arte e sua crítica, enfra-
quecendo, no caso do teatro, o contato entre trabalho inte-
* professora no Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP e autora
de, entre outros, Trouxa Frouxa (2000) e Clarice Lispector (2005), ambos
pela Companhia das Letras.

211 revista do ieb n 43 set 2006


lectual sistemático e prática cênica, conforme sublinha Flora
Süssekind em seu prefácio ao ensaio. Um dos exemplos ci-
tados por Ana, de interferência e harmonia entre trabalho
teórico e prática teatral, foi a sugestão de Décio feita a dois
alunos, um deles o diretor José Renato, para que adotassem
o formato arena (daí o nome do nosso teatro) para baratea-
mento das montagens, à inspiração do Theatre-in-the-Round,
desenvolvida por Margo Jones no Dallas Civic Theatre, ex-
periência pioneira nos Estados Unidos (p.147).
Apesar da intensa atividade antes e depois da pes-
quisa, Bernstein fez um levantamento minucioso do per-
curso intelectual e da obra de Almeida Prado, determinando
os pontos de apoio das escolhas estéticas do autor, os prin-
cípios que as regulam e suas transformações no correr do
tempo. Além disso, como o tema do ensaio é não apenas o
crítico, mas a crítica por ele elaborada, Bernstein contex-
tualiza o encontro feliz, mas não fortuito, da renovação de
nosso teatro (preparada pela atuação dos grupos amadores
na década de 1930) com o surgimento da verdadeira crítica
teatral, consequência da elevação da temperatura intelec-
tual pela criação da Universidade de São Paulo. Esta, por
sua vez, tornou possíveis as condições para a existência da
revista Clima da década seguinte, fundada por seus antigos
alunos, que provaram ser mais tarde “algumas das maiores e
mais influentes vocações críticas da cultura e das artes bra-
sileiras”1 no século XX.
Em entrevista de 19972 Décio reconhece que o grupo
a que pertenceu dedicou-se “às raízes do País: Antonio
Candido na literatura; Paulo Emílio no cinema; Gilda de
Mello e Souza, na pintura do século XIX”. Acrescentamos:
ele, no teatro.3 Muito havia que fazer no meio acanhado
de São Paulo na época, com avenidas e bairros residen-
ciais de que os paulistas se orgulhavam, mas também com
“a pobreza, o atraso, a caipirice, as boiadas atropelando
os bondes”4 etc, que valeu o poema de Oswald de Andrade
analisado por Roberto Schwarz5 , lembrado pela ensaísta.

1 Cf. Pontes, Heloisa. Destinos mistos -os críticos do Grupo Clima em São
Paulo, 1940-1968, S. Paulo, Companhia das Letras, 1998, a respeito dos
processos sócio-culturais desses anos.

2 O Estado de S. Paulo, 9/ago/1997.

3 Cf. Arantes, Paulo. “Décio de Almeida Prado e o papel do teatro no


sistema da cultura brasileira”, em Revista Vozes nº 6, nov/dez 1995.

4 Prado, Décio de Almeida. “Saudades de Lévi-Strauss”, Jornal de


Resenhas, Discurso Editorial/USP/Folha de S. Paulo, 12/abr/1996.

5 Schwarz, Roberto, “A carroça, o bonde e o poeta modernista”, Que horas


são?, São Paulo, Companhia das Letras, 1987.

212
Quanto à literatura, nosso autor afirma que os modernistas
eram muito pouco lidos.”Mário de Andrade fez uma tiragem
de 800 exemplares de Macunaíma e, ainda assim, guardava
um monte deles em casa. Quanto ao teatro a coisa é ainda
mais complexa. Conta com muita gente em sua preparação
e não se pode fazê-lo sem pensar em se ter um mínimo de
público”6 . Em consequência era quase inexistente além do
repertório “para rir” (por isso Décio chegou a pensar em ser
crítico de cinema). Uma guerra mundial rebatia numa dita-
dura caseira, exercitando sua censura (Procópio queixando-
se de que não podia falar a palavra “amante”, Cacilda Be-
cker proibida de falar a palavra “gatuno” no grupo amador
liderado por Décio7).
A Crítica Cúmplice sublinha o caráter inaugural do
trabalho de Almeida Prado nesse contexto, pois antes dele
a crítica não passava de mero registro jornalístico e so-
cial. Ele próprio confessa 8 não se lembrar do nome do su-
posto crítico que o antecedeu em O Estado de S. Paulo, sa-
bendo apenas que ele cobria principalmente turismo 9. Todo
esse cenário passou a se modificar a partir da revista Clima
- onde o futuro autor de João Caetano colaborou de 1941 a
1944 e em O Estado de S. Paulo, de 1946 a 1968, ao lado de
Sábato Magaldi. O mesmo cenário anterior explica a “cum-
plicidade” do crítico em relação a seu objeto de estudo, pos-
tura intelectual partilhada por todo o grupo de Clima. Equi-
para-se à “paixão do concreto” referida por Gilda de Mello
e Souza, à defesa da crítica educativa por Lourival Gomes
Machado, por conta do abismo entre “as elites e a massa”
no Brasil, e à crítica interessada de Antonio Candido, con-
forme lemos na Introdução à Formação da Literatura Bra-
sileira. Nessa linha Décio se esforçou para que nosso teatro
se desenvolvesse e ampliasse o repertório, tarefa dos Co-
mediantes, no Rio, que marcaram o início do bom teatro
contemporâneo entre nós10 , e dos grupos amadores em São
Paulo; o encenador, que chegou com Ziembinski, completou
a modernização de nosso palco. O empenho dessa crítica,
entretanto, nada tinha de ufanista, ou de mero “entusiasmo
6 O Estado de S. Paulo, 9/ago/1997.

7 Revista Bravo, março de 2000.

8 Idem.

9 O turismo significava as primeiras excursões de automóvel (de São


Paulo a Santos ou, “maior aventura”, de São Paulo ao Rio), “uma coisa
que depois desapareceu”. (Revista Bravo. cit.)

10 Cf. Magaldi, Sábato. “Panorama Contemporâneo”, Panorama do Teatro


Brasileiro. Rio de Janeiro, MEC/DAC /FUNARTE/SERVIÇO NACIONAL DE
TEATRO, s/d

213 revista do ieb n 43 set 2006


brasileiro”11 e Décio, ao ser denunciado pelo Sbat ao presi-
dente da República (Juscelino Kubitschek) por supostamente
ter diminuído o Brasil “lá fora”, a propósito de uma crítica
dura a Joracy Camargo publicada na revista argentina Fic-
ción, disse com todas as letras que “a arte não tinha nada
que ver com patriotismo”.
Ana Bernstein organiza e avalia a produção da crítica
jornalística de seu autor dividindo-a em três períodos: os
anos de formação, momento ainda não profissional, quando
Décio estréia em Clima. Já trazia entretanto uma experi-
ência rara entre nós, pois frequentava o teatro desde a in-
fância e na juventude participou do teatro amador, como
ator e fundador do Grupo Universitário de Teatro -GUT. Nos
dois meses e meio que passou em Paris com Paulo Emílio
em 1939, assistiu a várias companhias de vanguarda, in-
cluindo-se a de Louis Jouvet, que acabou vivendo dois anos
no Brasil por conta da guerra, e paradoxalmente nos foi ex-
tremamente útil do ponto de vista cultural; após o curso de
filosofia na Universidade da Carolina do Norte, em 1941,
Décio passou uma semana em Nova York, visitando o Ac-
tors Studio e assistindo a vários espetáculos. Portanto, à al-
tura da estréia, o jovem Almeida Prado já tinha uma certa
formação, ou, conforme suas palavras, “um parâmetro para
julgar as coisas”. Quanto à teoria do teatro ele a adquiriu
pouco a pouco, a partir do livro Réflexions du comédien es-
crito por Jouvet, cujas concepções teóricas sintonizavam na-
quele momento com as transformações cênicas na França e
no restante da Europa. Podem ser resumidas na importância
de Copeau quanto à primazia do texto em relação aos outros
elementos cênicos, e a defesa da convenção teatral em opo-
sição ao naturalismo de Antoine e Stanislávski, cujo obje-
tivo confessadamente era “expulsar o teatro do teatro”.
Os leitores poderão ler em anexo, em A crítica cúm-
plice, os 11 textos publicados por Décio em Clima, anali-
sados por Ana no capítulo 212 , dentre os quais o primeiro e
o último sublinham a importância do Teatro “Louis Jouvet”
em São Paulo, na medida mesmo em que não se tratava de
uma mera companhia estrangeira que se deslocava, com
todos os vícios da improvisação - o que já era denunciado
com muito mau humor por Martins Pena em seus Folhetins
do século XIX. Tratava-se, sim, de um grupo articulado de
bons atores, “chefiados por alguém, com um programa mais
ou menos fixo” (p.256).

11 Cf. Schwarz, Roberto. “Sobre a ‘Formação da Literatura Brasileira’”,


Sequências Brasileiras, São Paulo, Companhia das Letras, 1999.

12 Cf. também Pontes, Heloisa, op. cit., p.105 ss.

214
A partir desses primeiros textos, também é fácil ob-
servar o caráter empenhado do crítico iniciante, a compre-
ensão da importância da crítica nas décadas de 1940 e 1950,
quando todos batalhavam por um teatro moderno, sempre
defasado dos centros hegemônicos, e a convicção de que His-
tória e crítica são indissociáveis. “Acho que a crítica é muito
o jogo entre o particular e o universal” - afirma ele numa
entrevista a Ana ( Apêndice-2)- “ Se você fizer uma coisa
puramente universal, você faz, de fato, uma ciência do te-
atro. Se você fizer uma coisa inteiramente particularizada,
você não faz nem crônica; apenas você dá suas impressões”.
Não deixa de ser curioso que alguns aspectos do palco
denunciados por Décio naquelas páginas inaugurais até hoje
persistam. Por exemplo, a existência (por ele condenada)
do virtuose, cujo maior interesse seria a exibição de quali-
dades pessoais, “como se a interpretação fosse um fim em si
mesma” (p.259); o compromisso entre teatro comercial e te-
atro de arte, cruzamento difícil de resolver equilibradamente
em todas as artes, principalmente no teatro, ao mesmo
tempo criação e comércio; o mero uso de fórmulas da moda,
que tornam o espetáculo mecânico; percalços da encenação
de textos clássicos por falta de formação de atores, pois seria
necessário “um longo aprendizado, uma longa preparação da
voz, de respiração, de dicção, de gestos, de movimentação, o
conhecimento profundo de um estilo de representar” , o que
não se faria sem escolas dramáticas). Outras questões são
datadas, por exemplo o desenvolvimento do teatro nacional
pelo amadurecimento de Os Comediantes enquanto grupo,
precedido pela ação renovadora do amadorismo, e culmi-
nando na representação de Vestido de Noiva, em 1943 sob a
direção de Ziembinski, citado acima. Em O Teatro Brasileiro
Moderno Décio comenta o acontecimento, com uma ani-
mação a que não falta certa ironia risonha:

O choque estético, pelo qual se costuma medir o grau de


modernidade de uma obra, foi imenso, elevando o teatro à digni-
dade dos outros gêneros literários, chamando sobre ele a atenção
de poetas como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de An-
drade, romancistas como José Lins do Rego, ensaístas sociais
como Gilberto Freyre, críticos como Álvaro Lins. Repentina-
mente, o Brasil descobriu essa arte julgada até então de segunda
categoria, percebendo que ela podia ser tão rica e quase tão
hermética quanto certa poesia ou certa pintura moderna.
Evocou-se a propósito a grandeza da tragédia grega, dis-
correu-se sabiamente sobre os méritos do expressionismo
alemão, que na véspera ainda ignorávamos, proclamou-se,
com unanimidade raras vezes observada, a genialidade da
obra de Nelson Rodrigues. (p.41)

215 revista do ieb n 43 set 2006


Nos anos de consolidação, segundo Bernstein, de 1946
(coincidindo com o início do teatro empresarial no Brasil)
a 1964, o crítico define e amadurece os conceitos com que
trabalha, mostra-se cuidadoso com a formação da platéia,
o tom didático sobrepujando a livre reflexão estética, assim
como na hierarquia texto/espetáculo, criação literária/crítica
prevaleciam sempre as primeiras alternativas.
No último período, de 1964 a 1968, entendido pela en-
saísta como o da transformação, dá-se a revisão crítica de
alguns conceitos. O teatro amadurecera e crescera, o Arena
e o Oficina, por exemplo, inauguraram novos estilos de re-
presentação, andavam com as próprias pernas, o fervor polí-
tico era grande embora houvesse gorado o desejo de se fazer
um teatro operário13. Afinal quem podia pagar as entradas
era mesmo a classe média. Mesmo assim, apesar de algumas
simplificações ideológicas dos grupos14 , Décio sublinha o
papel do Arena no cenário estético e político:

Por dez anos, de 1958 a 1968, funcionou [o Arena] como


ponta de lança do teatro político brasileiro, encenando alguns
espetáculos memoráveis, revelando atores e autores, e, antes
de mais nada, realizando um notável trabalho de teorização -
quaisquer que sejam as restrições que a posteriori se lhe possam
fazer. (O Teatro Brasileiro Moderno, p.78)

Ana observa que, apesar de alguns pontos, existem


características comuns aos três momentos da atuação de
Décio. Um deles, a diferença entre ciência e crítica, pela in-
terferência da subjetividade que dificulta ou impede juízos
de validade objetiva. Por isso Décio nunca deixou de se con-
siderar um crítico impressionista, mesmo porque, nos anos
do Estado de S. Paulo, tinha de dar uma resposta imediata a
partir do estímulo do espetáculo. Persistiu também a noção
da encenação como um conjunto articulado entre todos os
elementos do palco -o que o afastaria da “antipeça” ou do
teatro da crueldade de sabor artaudiano- além da idéia de
personalidade extraordinária, que definiria a natureza do
grande ator (cf. cap. 4), elemento que se confunde com a

13 Peter Brook chamou ao teatro popular de “rough” (rústico) para evitar


sua confusão com o “teatro burguês popularizado” (cf. cap. 1, The Empty
Space, Penguin Books, 1968). A diferença, acho, evita muitos equívocos.

14 Décio avalia certos procedimentos estéticos da esquerda intelectual


da época a partir de uma “consciência pesada pelo malogro de 1964,
menos talvez pela derrota que pela ausência de luta” (O Teatro Brasileiro
Moderno, São Paulo, Perspectiva,1988, p.76). Curiosamente essa conclusão
é uma das vigas de sustentação de O Motor da Luz (Rio, Ed. 34 Letras,
1994) livro notável de José Almino, que tem no golpe de 1964 um dos
fulcros da fabulação.

216
própria representação, pela efemeridade de sua natureza, so-
brevivendo apenas na memória.
Na orelha que escreve para o livro, Mariangela Alves
de Lima observa que Ana Bernstein não padece “a angústia
relativista da produção teórica contemporânea” e serena-
mente afirma que Décio de Almeida Prado “foi o maior crí-
tico teatral que o Brasil já teve”, afirmação que eu diria
unânime, ou quase. Mais que isso, “este livro foi escrito por
uma pesquisadora que se deixa ensinar pelas coisas”, o que
significa que absorveu valores de seu autor: evitou a para-
lisia da reverência elogiosa e da exaltação superlativa, o que
caracterizaria uma mera opinião, preferindo a pesquisa das
fontes e a leitura criteriosa dos textos na formação do juízo.
Eu acrescentaria ainda outro aspecto: no ítem “a crítica
militante” (capítulo 3), Ana comenta a decisão do crítico
quando decidiu publicar em livro seus textos jornalísticos.
Haveria uma dupla razão: em primeiro lugar, o testemunho
prestado a essa arte fugaz, num tempo em que o recurso do
vídeo ainda não existia.” Reunidos em livro [os textos] se-
riam comparáveis a instântaneos, que fixam rapidamente
o presente do espetáculo, sem nada dizer do passado ou do
futuro” (p.94). A segunda razão dizia respeito à criação de
uma consciência teatral. Ou seja, naquele momento inicial, a
crítica teria sobretudo “um caráter formativo e informativo,
didático, menos preocupado com questões estéticas em si do
que com a forma de tornar essas questões acessíveis e claras
para o público leitor”(p.95).
Ora, sendo A Crítica Cúmplice o primeiro ensaio ex-
clusivamente sobre a produção de Almeida Prado, Ana
Bernstein certamente obedeceu ao mesmo caráter “forma-
tivo e informativo”, indiscutivelmente útil a futuros pesqui-
sadores. Rodeou por todos os lados o objeto de sua análise
-o crítico e sua crítica- esmiuçando circunstâncias conjun-
turais, o diagnóstico cultural do Brasil e de nosso teatro, o
empenho e a responsabilidade estética, social e política (nem
sempre partidária) do Grupo Clima. Desafios intelectuais e
constrangimentos de várias ordens não estão ausentes do re-
trato a bico de pena que é feito de Décio, de quem também
é ouvido o depoimento e sua própria versão de muitos acon-
tecimentos. Não preciso citar a suposta ojeriza do crítico
em relação a Brecht, ou o seu “agradeço, mas não aceito a
exclusão” no episódio da devolução dos prêmios ao Estado
de S. Paulo em 1968, quando a classe teatral rompeu com
todo e qualquer vínculo com aquele órgão da imprensa, ex-
cluindo-se entretanto os nomes de Décio e de Sábato Ma-
galdi. Não custa lembrar também que diante das críticas ao
TBC, inclusive por seu “italianismo”(de um certo momento
em diante virou moda criticar o TBC, como, numa certa

217 revista do ieb n 43 set 2006


época, o CPC) a resposta de Décio foi clara: após concordar
com a crítica (e listou todos os nomes estrangeiros) con-
vidou os opositores “a raciocinarem em outro plano”:

seríamos capazes de imaginar a fisionomia de São Paulo


sem a contribuição dada pelos italianos, sucessivamente na agri-
cultura, na indústria e nas artes? Desqualificaríamos também
brasileiros de primeira ou segunda geração, como Portinari,
Volpi, Pancetti, Camargo Guarnieri? Em que categoria colocarí-
amos Brecheret e Gianfrancesco Guarnieri, nascidos na Itália,
de pais italianos? Onde, exatamente começa o Brasil? Há brasi-
leiros mais brasileiros que outros? Ou todos que moram e traba-
lham aqui merecem esse título, certamente não racial? 15

O texto dispensa comentários.


Terminando essas notas, considero uma pena que o
privilégio dado por Bernstein às críticas jornalísticas16 , dei-
xasse à produção acadêmica apenas o último capítulo17. É
verdade que se trata de uma ampliação do que foi defen-
dido como dissertação de mestrado, procurando a ensaísta
articular os dois tipos de produção, direcionada sempre pelo
caráter formativo. Mesmo assim eu gostaria de ter podido
acompanhar de maneira mais detalhada, em A Crítica Cúm-
plice, características da capacidade interpretativa de Al-
meida Prado, seja através da descrição mais minuciosa de
algumas análises formais, seja quando ele rearruma a his-
tória de nossa literatura teatral, recolocando nesse painel al-
gumas figuras capitais. Interpretando os textos sempre em
relação somos muitas vezes surpreendidos por Décio. Por
exemplo, quem suspeitaria que a febre de aforismos e para-
doxos dos anos 20 do século passado tivesse algo a ver com
o teatro de Oswaldo de Andrade, que só conhecemos como
teatro ao final dos anos 60? Quem diria que a produção
crítica de Alcântara Machado, “apocalíptico” e “profeta de
uma nova era” poderia aproximá-lo, pelo tom doutrinário, e
apesar de suas limitações, à pregação naturalista de Zola ou
à campanha de Bernard Shaw a favor do ibsenismo?
No entanto, se esses textos de Alcântara Machado são
nosso verdadeiro Prefácio de Cromwell, atacando violenta-

15 Em O Estado de s. Paulo, 10/out/1998.

16 Sobre a idéia de que o Suplemento não se pretendia “jornalístico”, cf.


Pontes, Heloisa, op. cit., p.209.

17 Flora Sussekind explica no prefácio do livro que o último capítulo


foi ampliado para a publicação da tese, procurando conectar “os estudos
históricos de Décio sobre a formação do teatro brasileiro à sua preocu-
pação fundamental com a consolidação do teatro moderno e com o caráter,
a seu ver, necessariamente formativo da crítica”(p.14).

218
mente os pilares básicos da cultura oficial brasileira, eles
não foram lidos e caíram no vazio. E quando de fato se ini-
ciou a renovação teatral, entre 1940 e 1950, “esta se fez sem
plano de conjunto, por avanços e recuos, por iniciativas às
vezes antagônicas, quase todas de caráter individual”18.
Os exemplos desse quilate não são poucos. Mas com-
preendo que isso fugiria ao projeto de Ana Bernstein, com o
pouco tempo de que dispôs para elaborar um trabalho de fô-
lego como este. Que ela continue, é o que todos desejamos.

18 Prado, Décio de Almeida. “O Teatro e o Modernismo”, Peças, Pessoas,


Personagens, São Paulo, Companhia das Letras, 1993, p. 15 ss.

219 revista do ieb n 43 set 2006


Uma Enciclopédia Amazônica

Antonio Porro*

Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas,


Pe. João Daniel, Rio de Janeiro, Contraponto / Belém, Prefeitura
Municipal, 2004. 2 vols.

São as riquezas do rio Amazonas e o tesouro de que falo,


a grande fertilidade das suas terras, as preciosas especiarias das
suas matas e as copiosas colheitas dos seus frutos, porque nos
frutos da terra e bens estáveis consiste a mais estimável riqueza
dos homens, e não nos ouros, pratas e preciosas gemas, que de
repente se podem perder e desaparecer em um momento ...
Eu bem sei que exponho a muitas censuras esta obra, pelo
que contém de novo e desusado aos que já estão habituados no
antigo cultivo daquelas terras, porque sempre as novidades cau-
sarão admiração aos antigos ... [e porque] só os que têm cópia
de escravos que lhes façam o serviço dos roçados blasonam e se
chamam ricos, ainda que a maior parte deles perdendo [agora]
os escravos pela justíssima lei das liberdades promulgada no
ano de 57, em que se declaram libertos todos os índios ...
Não pretendo dar regras a quem as não quer tomar; ... o
meu intento é só insinuar, aos povoadores que de novo vão con-
correndo e a todos os que não têm escravos nem acham jorna-
leiros (porque na verdade os não há nas conquistas, por se ven-
derem e blasonarem de fidalgos todos os que lá chegam, embora
que na Europa e na sua pátria fossem mochilas, lacaios ou ma-
riolas), um meio mais útil, fácil e acomodado para principiarem
a sua vida.

Bastam esssas poucas frases, pinçadas ao longo de


uma obra monumental e ainda pouco lida, para atestar que
o grande livro do jesuíta João Daniel, além de ser, nas pa-
lavras de José Honório Rodrigues, a “mais importante fonte
para o estudo do Amazonas no século XVIII ... uma obra
enciclopédica, um tratado, um tesouro de todo o Amazonas”,
é também o produto singular de uma aguçada sensibilidade
* Antonio Porro é doutor em antropologia pela Universidade de São Paulo
e especialista em etno-história da Mesoamérica e da região amazônica.
Desenvolve atualmente pós-doutorado junto ao IEB e é autor, entre outras
obras, de O messianismo maya no período colonial, As crônicas do rio
Amazonas e O povo das águas.

221 revista do ieb n 43 set 2006


e de atentas reflexões sobre os problemas sociais e econô-
micos da colônia, traço incomum na literatura setecentista
da região, que o colocam em lugar de destaque na história
da cultura luso-brasileira.
A biografia e a obra do autor foram estudadas por Se-
rafim Leite1 e por José Honório Rodrigues2 . João Daniel, diz
o seu registro no cárcere do Forte de Almeida, nascera em
Travaçós, diocese de Viseu, a 24 de julho de 1722, filho de
Manuel Francisco Canario e de Maria, “de que se não sabe
o sobrenome”; Serafim Leite sugere que seria Maria Daniel,
posto que era costume dos jesuítas usar o sobrenome ma-
terno quando o do pai, por insólito, “parecesse menos grave”
(1942, pp. 79-80). Ainda conforme o historiador da ordem,

João Daniel entrou na Companhia, em Lisboa, dia 17 de


dezembro de 1739; e dois anos depois, com menos de vinte, em-
barcou para o Estado do Maranhão e Grão Pará. Estudou Hu-
manidades (3 anos) e Filosofia no Colégio Máximo de S.Luiz.
Em 1747 era aluno distinto de Física, estudando ao mesmo
tempo Teologia ... Ordenou-se sacerdote este mesmo ano [1750]
ou princípio do seguinte, dado que neste de 1751 se apresenta
já como Padre, entregue a ministérios sobretudo no Pará, per-
correndo Aldeias e Fazendas ... [Anos depois], já em plena ba-
talha e enquanto esperava o exílio, emitiu a profissão solene de
quatro votos a 20 de novembro de 1757. (op. cit., p. 80)

É só isto, praticamente, o que se sabe da vida de João


Daniel até a sua expulsão de Belém . Havia sido proficiente
em Física, matéria anual que, depois da Lógica e antes da
Metafísica, compunha o triênio de estudos de Filosofia, e
nela devem ter-se fundamentado tanto a sua capacidade
de sistematizar as coisas da natureza, como a racionali-
dade do seu juízo crítico. Fôra preparado para ser o cronista
da sua Vice-Província e instrumentos para isso os tinha,
visto que nos colégios do Maranhão e Grão Pará as biblio-
tecas jesuíticas já reuniam mais de 12.000 livros. Ao mesmo
tempo, porém, observa Serafim Leite, João Daniel era do-
tado “daquele decidido criticismo com que os missionários
da América ... temperaram as prepotências ou os abusos
dos grandes do mundo”. E teria sido a pretexto de um seu
sermão de sexta-feira santa, quando investira pouco vela-
1 Leite, Serafim. “João Daniel, autor do ‘Tesouro descoberto no máximo rio
Amazonas’”. Revista da Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, Vol. 63,
1942, pp. 79-87. E na História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro,
Imprensa Nacional, Vol. IV, 1943 ; pp. 325-9 e Vol. VIII, 1949, pp.190-2.

2 Rodrigues, José Honório. História da História do Brasil. 1ª. parte:


Historiografia Colonial. São Paulo, Ed. Nacional / Brasília, INL, 1979
(“Brasiliana” Grande Formato, 21), pp.95-100.

222
damente contra os repetidos ataques que o governador Men-
donça Furtado e o bispo D. Miguel de Bulhões faziam aos
jesuitas (“Anás e Caifás faziam a sua vontade e os apóstolos
de Cristo estavam a dormir”), que João Daniel foi, entre os
jesuítas desterrados, um dos poucos a sofrer o castigo mais
rigoroso: a prisão perpétua (op. cit., pp. 80-81).
Banido da colônia ao final de 1757, João Daniel
passou os primeiros quatro anos de cativeiro no Forte de
Almeida, em condições de extremo rigor. Por crueldade, sa-
bendo que o que lhe restava era escrever, mas também por
precaução, pois tentara dirigir uma petição ao rei, eram ne-
gados, a ele e a seus companheiros, papel e tinta para es-
crever. As condições adversas do seu longo cativeiro le-
varam mais de um autor a se perguntar como poderia João
Daniel, na masmorra em que passou os seus últimos dezoito
anos e privado de suas fontes e até mesmo de papel para es-
crever, ter produzido obra tão extensa e documentada. Foi
sugerido que a obra teria sido escrita ainda no Pará 3, mas
isso é desmentido pelo seu zeloso carcereiro, Manuel Freire
de Andrade, comandante da Praça do Forte de Almeida,
que em ofício a Sebastião José comprazia-se em relatar que
havia sequestrado aos prisioneiros todos os papéis que tra-
ziam consigo: “Como lhes falta o papel, porque nem para as
fontes lho consinto há muito tempo ... Mandei-lhes entregar
os Breviários para continuarem as rezas, arrancando-lhes
primeiro todas as folhas brancas, e tirando-lhes alguns re-
gistos, porque nas costas de dous tinha o Padre João Da-
niel feito duas petições para Sua Majestade, que Vossa Ex-
celência verá, por irem inclusos nos papéis pertencentes ao
dito Padre” (op. cit. p. 82). Que a obra, de fato, tenha sido
redigida de memória, sem o apoio de anotações prévias, é
sugerido pelas muitas lacunas do texto quando o autor, nar-
rando ocorrências específicas, deixa em branco nomes pró-
prios, datas ou distâncias.
Em fevereiro de 1762 João Daniel foi transferido para
a Torre de S.Julião da Barra, onde estavam relegados os pa-
dres considerados “grandes criminosos”. Lá, por outro lado,
a disciplina foi menos rigorosa e deve ter recebido o papel e
a tinta com que, no decorrer dos cinco anos seguintes, es-
creveu o seu Tesouro, como ele mesmo diz, para lhe servir
“de honesto divertimento em tanta miséria”. Distribuídos de
dois em dois ou de três em três em cada uma das 28 celas de
S.Julião, os condenados trocavam recordações e certamente
depoimentos; alguns, pela idade e pela experiência, conhe-
ciam a Amazônia muito mais do que o próprio João Daniel :

3 Papavero, Nelson. “Relíquia do século 18”. Ciência Hoje, Vol. 35, 2004,
n. 208, p. 77.

223 revista do ieb n 43 set 2006


“Um missionário que viveu e missionou quase toda a sua
vida nas missões daquele rio, donde veio com os mais a morrer
nestas catacumbas, lendo este meu parecer (além de outros)
me confessou que ... não havia outro meio, nem mais propor-
cionado nem mais fácil, do que este que aponto. O mesmo me
[as]segurou outro, ... que além da prática que teve muitos anos
daquelas terras, tem a lição de todos os historiadores que as têm
descrito, e muitas outras notícias particulares que quer deixar
aos vindouros em um curioso tomo que intitulou Atlas ameri-
cano, o qual fazendo-me a graça de também me dar nestes es-
critos o seu parecer, o expressou nestas poucas palavras: V.R.
guarde estes papéis, porque o seu parecer em quase tudo se con-
forma com o meu juízo, etc. etc. etc.” (Parte Quinta, Introdução).

Outra circunstância a indicar que o isolamento car-


cerário do autor acabou sendo atenuado, é o fato de que em
1767 ele pôde remeter a Sexta Parte do seu manuscrito, bem
como uma versão abreviada da Quinta, ao seu sobrinho Frei
Gregório José Viegas, que com elas presenteou o seu mestre
Frei Manoel do Cenáculo Vilas Boas, bispo de Évora, que as
incorporou à biblioteca local (Anônimo, provavelmente Aze-
redo Coutinho, Advertência à edição de 1820 do Tesouro;
Wilson Lousada, Nota Explicativa à edição de 1976). A ser
correta a data daquela remessa, 1767 é o terminus ante quem
da redação do Tesouro.
João Daniel faleceu na prisão, aos 53 anos de idade,
em 19 de janeiro de 1776, um ano antes da queda de Pombal
e da anistia de D. Maria I aos presos políticos. Foi sepultado
na igreja de S. Julião da Barra.

*****

O Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas


compõe-se de seis partes, algumas delas publicadas indivi-
dualmente ainda no século XIX; a primeira edição integral
sò viria à luz em 1976:
Quinta Parte do Thesouro Descoberto no Rio Ama-
zonas. Rio de Janeiro, Impressão Régia, 1820, 151 pp. Esta
edição baseou-se em ‘fiel cópia’ do manuscrito da quinta
parte existente na biblioteca de Évora (vide adiante).
“Parte Segunda do Tesouro Descoberto no Rio Ama-
zonas”. Rev. Inst. Hist. Geogr. Bras., Rio de Janeiro, Vol. 2
(1840), 2ª. ed., 1856, Vol. 2, pp. 321-364, 447-500; Vol. 3, pp
39-52, 158-183, 282-297, 422-444.
“Parte Sexta do Thesouro descuberto no Rio Máximo
Amazonas”. Rev. Inst. Hist. Geogr. Bras., Vol. 41 (I), 1878,
pp.33-142. Também reproduz manuscrito de Évora.

224
Tesouro descoberto no rio Amazonas. Separata dos
Anais da Biblioteca Nacional, v. 95, t. 1-2, 1975. Rio, 1976,
437 + 440 pp. O manuscrito das partes 1 a 5, de 766 pá-
ginas, pertencia à Real Biblioteca de Lisboa; veio para o
Brasil com a família real em 1808 e está agora na Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro. Na biblioteca de Évora existe
outra versão, diferente e muito mais reduzida, da 5ª. parte,
bem como uma 6ª. parte inexistente no códice da Biblioteca
Nacional, que as recebeu em microfilme e que integram esta
edição.
A Primeira Parte, sem título, mas que costuma ser de-
signada pelo do seu primeiro capítulo (“Descrição geográ-
fico-histórica do rio Amazonas”), trata na verdade da hidro-
grafia (capítulos 1 a 13), dos peixes e anfíbios (14 a 16), das
aves (17-18), dos mamíferos (19 a 21), dos insetos (22 a 27) e
das cobras e antídotos para seus venenos (28-29).
A Segunda Parte, “Notícia geral dos índios seus natu-
rais e de algumas nações em particular, etc.”, trata generi-
camente da sua aparência, caráter, crenças, costumes, apti-
dões, guerra e antropofagia (capítulos 1 a 15); diz alguma
coisa dos Incas e dos Maina do alto Amazonas peruano e
passa a tratar mais em particular dos Cambeba do Soli-
mões, dos Uriquena do rio Negro, dos Purus do rio homô-
nimo, dos Mura deste e do Madeira, dos Torases e Urupases
do Madeira, dos Arapium, Gurupá e Jaguaim do Tapajós,
dos Juruna, Acipóias e Carnises do Xingu, dos Maraguás
do Cumá, dos Tupinambá do litoral, dos Tupinambarana do
médio Amazonas, dos Nheengaiba e Mamainases da foz do
Amazonas, dos Pacajás do rio homônimo, dos Cabaços e dos
Gamelas do Maranhão, dos Canoeiros do Tocantins, e final-
mente dos Goianases, Iranambés e Barbados, não localizados
(capítulos 16 a 19); trata a seguir da condição física e do-
enças dos índios (20) e conclui com uma descrição de Belém
e das vilas e povoados do interior, até o baixo Madeira (21).
A Terceira Parte “Dá notícia da sua muita riqueza nas
suas minas, nos seus muitos e preciosos haveres e na muita
fertilidade das suas margens” e se compõe de seis tratados:
1º. Das minas de ouro e prata e diamantes, anunciado como
“compendiosa notícia dos seus muitos e inexauríveis mine-
rais”, mas que se resume às duas páginas iniciais, visto faltar
todo o restante (três ou quatro capítulos) no manuscrito da
Biblioteca Nacional e, consequentemente, na edição inte-
gral de 1976 e na de 2004 aquí resenhada. 2º, do qual, pela
mesma razão, falta o enunciado e parte do primeiro capítulo
e que, portanto, nas duas edições, vem constituir equivo-
cadamente os capítulos 2 a 8 do 1º. Tratado; versa sobre as
plantas silvestres e cultivadas. 3º. Da riqueza do Amazonas

225 revista do ieb n 43 set 2006


na preciosidade da sua madeira, trata, em seis capítulos, das
árvores, arbustos e ervas úteis. 4º. Das palmeiras da América
(capítulo único). 5º. Do principal tesouro do rio Amazonas,
que em sete capítulos trata dos produtos naturais e benefi-
ciados de origem vegetal, animal e mineral. 6º. Das tintas
mais especiais do rio Amazonas (dois capítulos).
A Quarta Parte, sem título e com treze capítulos, é
uma descrição analítica da economia amazônica: agricul-
tura, engenhos de açúcar, embarcações, missões religiosas,
viagens ao sertão para coleta de drogas, pecuária, pesca, co-
mércio e olaria.
A Quinta Parte, “Em que se mostra um novo e fácil
método da sua agricultura ... povoação e comércio”, faz con-
traponto à quarta, arrolando em oito tratados inúmeras su-
gestões para se obterem melhores resultados econômicos com
justiça e boa ordem social: 1º. na agricultura, com o aban-
dono do onipresente e ineficiente cultivo da mandioca e a
adoção de trigo, milho e outros cereais; 2º. na navegação,
que deveria ficar a cargo de transportadores profissionais; 3º.
na horticultura, que deveria substituir o extrativismo preda-
tório e dispendioso; 4º. na construção de embarcações, com
o abandono da tradicional canôa indígena e a introdução de
barcos de pranchas; 5º. na pesca; 6º. nas missões religiosas,
que propõe fortalecer mas também livrar de velhos vícios; 7º.
no povoamento da região, com liberdade para os índios e in-
cremento planejado da imigração européia e, 8º. nas técnicas
de conservação e beneficiamento das colheitas.
Segue-se, com título semelhante mas reduzida a
menos que a metade da extensão, a Quinta Parte na versão
do manuscrito de Évora acima referido.
A Sexta Parte, em catorze capítulos, “Contém inventos
úteis e curiosos para a melhor navegação, fazendo prós-
peros todos os ventos, ainda os mais ponteiros e contrários,
e para fazer nas calmarias boa viagem. Com nova invenção
de represar as marés para mo[v]erem fábricas e engenhos de
moto contínuo. Acrescem algumas outras idéias de engenhos
manuais para serrar madeira, fazer açúcar, e muitos outros
não menos curiosos que úteis à vida humana”.

*****

Não deve surpreender que uma obra de tal magni-


tude, versando sobre temas tão variados e escrita em con-
dições tão penosas, seja de qualidade e valor desigual. Até
certo ponto, a própria matéria condiciona o discurso e o es-
tilo; as três primeiras partes (que nesta nova edição corres-
pondem ao Vol. I), são essencialmente descritivas e percebe-

226
se nelas maior ou menor familiaridade com os assuntos, di-
ferentes graus de objetividade e até um inesperado senso de
humor. A seção de peixes e anfíbios abre-se com um escla-
recimento: “Não pretendo aquí descrever toda a variedade
de peixe ... mas só descrever os mais principais e menos co-
nhecidos na Europa ou que excedem no mimoso”; asseve-
rando este propósito, o primeiro gênero a integrar aquela fa-
mília é o do homem marinho, em que entram sereias e seres
humanos que teriam-se mudado para o fundo dos rios; se-
guem-se, pela ordem, jacarés, lagartos, camaleões, tarta-
rugas, lontras e tatus. Mais adiante, o primeiro dos mamí-
feros a ser apresentado é a anta, que “tem a grandeza de um
grande jumento ... mas parece [que] não é tão asno como
o burro, porque a ninguém dá ancas [i.e., não se deixa ca-
valgar]” e que “talvez mereça os primeiros méritos pelo seu
delicioso gosto nos banquetes”. Pouco decoro no estilo, como
entendeu Varnhagen4 referindo-se talvez a passagens como
esta, ou sadia higiene mental para tentar sobreviver em
tanta miséria ?
Mas este lado imaginoso (a sentença é de Euclides
da Cunha 5 ) de João Daniel restringe-se a uma minoria de
temas que ele, provavelmente, impusera-se abordar para
construir o seu quadro da natureza, mas que devia julgar
mais de entretenimento e ilustração do que propriamente
dignos de mais detidas considerações. De fato, em temas que
tocam mais de perto as necessidades e o cotidiano da popu-
lação colonial e dos índios aldeados, o superficial, a cren-
dice e o chiste dão lugar, via de regra, à exposição organi-
zada e meticulosa do mundo natural e das suas possibili-
dades de aproveitamento econômico. É assim para os peixes,
aves, plantas, madeiras e essências nativas mais importantes
para a alimentação, a indumentária, o abrigo, a navegação
e a medicina popular da Amazônia. É assim nos seis capí-
tulos em que esmiuça o mundo dos insetos, vermes, aracní-
deos e outras pragas pestilentes que atormentam e debilitam
a saúde humana e animal. E é assim na longa e minuciosa
descrição geográfica da bacia do Tocantins (o mais impor-
tante caminho de Belém para as minas de Goiás e o centro-
sul do Brasil), ordenada em 61 parágrafos que remetiam a
outros tantos pontos assinalados num mapa que acompa-
nhava o Tesouro, e que se perdeu. Em relação à natureza e
aos direitos dos índios, o seu julgamento não é livre de am-
biguidades: de um lado, afirma que “só pelas feições pa-
4 Varnhagen, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil. 6ª. ed.. São
Paulo, Melhoramentos, 1959, vol. IV, p.143..

5 Cunha, Euclides da. Contrastes e confrontos. Porto, 1907.

227 revista do ieb n 43 set 2006


recem gente, [mas] no viver e trabalhar se devem entender
por feras ... exceto os poucos que já pela notícia e comuni-
cação dos europeus, e pelas contínuas lições dos missioná-
rios se têm feito homens e cristãos”; de outro, ao criticar os
que justificam a servidão dos índios por serem “rústicos”,
pergunta-se: “mas quem dirá que, por ser rústico, um por-
tuguês se [submeta], nas suas mesmas terras, a trabalhar e
servir a qualquer estranho que nelas se meta?”
Não obstante as muitas repetições em que incorre,
a arquitetura geral da obra está sempre clara na mente
do autor. Tendo-se desincumbido das partes descritivas
“com rústicas expressões suficientes a formar nos leitores
algum conceito do seu descoberto tesouro”, ele se propõe,
na Quarta parte, a “dar a desejada notícia da maestria e in-
dústria com que os seus naturais, índios e europeus, se uti-
lizam dos seus haveres” e, na Quinta, a “mostrar o modo de
se poderem extrair essas riquezas ... com [o] qual não só se
não perderão os novos colonos, mas se saberão utilizar para
viver com fartura e para enriquecer com brevidade”. E aquí
se revela, já mais livre da retórica barroca, do pedantismo
de ofício e das ocasionais frivolidades, o melhor de João Da-
niel. Na Quarta parte é o observador atento e bom conhe-
cedor das técnicas extrativistas, da pecuária e da agro-in-
dústria; dos pontos nodais da produção, transporte e distri-
buição da mercadoria; da dupla função, material e espiritual,
da missão religiosa em seus papéis inevitavelmente contra-
ditórios dentro da ordem colonial. E na Quinta, verdadeira
peça de resistência do Tesouro, como também na Sexta, é o
criativo, polêmico, por vezes ingênuo mas sempre generoso
reformador da economia e da sociedade, esperançoso de um
futuro melhor para o país que adotou e que perdeu:

“Falo, propriamente, com os novos povoadores que da Eu-


ropa, onde vivem uma vida pobre, laboriosa e miserável, vão
concorrendo a buscar naquelas terras o seu remédio, de que
se vão povoando cada vez mais aqueles estados, que em algum
tempo virá a ser o mais rico e invejado do mundo; com estes,
pois, fala o meu método e direções, porque sem elas pasmam os
novos colonos quando se vêem naquela vastidão de terras in-
cultas, à vista de matas inacessíveis, sem mais cultura que a da
natureza e sem mais benefício que o da terra; e desanimados se
encolhem os braços e se atam as mãos, sem tomar outra reso-
lução mais do que dar-se a uma calaçaria, porque lhes parece
impossível o poder cultivar sem o adjutório de muitos operários,
que não têm ...”

É impossível, diante de tais declarações de princípios,


não fazer um paralelo entre o Tesouro de João Daniel e Cul-

228
tura e Opulência do Brasil, de Antonil6 (s.d. [1711]), obra
que o precedeu nos primeiros anos do século XVIII. Pode-
se dizer que, afora o fato das duas obras tratarem da eco-
nomia colonial e de seus autores serem jesuítas, nada mais
elas têm em comum. São diferentes no alcance (naturalista
e enciclopédico um, técnico-econômico o outro) e no âmbito
sócio-geográfico (periférico e despovoado um, dinâmico e
concentrador de riqueza o outro), mas acima de tudo no en-
foque, na postura e no propósito. João Daniel analisa o sis-
tema, diagnostica os seus males e propõe soluções alterna-
tivas para promover o progresso econômico e com isso be-
neficiar “os novos povoadores que ... vivem uma vida pobre,
laboriosa e miserável”. Antonil, muito mais competente e
exaustivo na descrição do processo econômico, erige e de-
dica o seu monumento “aos que, nos engenhos do açúcar,
nos partidos e nas lavouras de tabaco, e nas minas do ouro,
experimentam o favor do céu com notável aumento dos bens
temporais”. Nos dias de hoje, um teria sido o cientista social,
reformista e polêmico; o outro, o eficaz administrador, iden-
tificado e leal ao sistema.

*****

Há trinta anos, a Biblioteca Nacional atendeu à ne-


cessidade imediata dos estudiosos com a primeira edição in-
tegral do Tesouro de João Daniel. Na ocasião, José Honório
Rodrigues observou: “É pena que esta edição contenha de-
ficiências inaceitáveis, tal como a falta do sumário da ma-
téria, a falta de índice e uma introdução muito inferior ao
livro, que revela não conhecê-lo, nem ter-se dado ao prazer
de olhar, ainda que por cima, o original de impressão. As
notas limitam-se à tradução de expressões latinas, mas ne-
nhuma é histórico-geográfica e antropológica” (1979, p.
97). Dada a restrita circulação daquela primeira edição e o
tempo que transcorreu, cumpre, agora, louvar a iniciativa da
editora Contraponto e da Prefeitura de Belém por esta pri-
meira edição de grande circulação e de condigna apresen-
tação gráfica. Pena que poucas das deficiências apontadas
por J.H.Rodrigues na primeira edição tenham sido sanadas
nesta segunda. Que não tenha havido novo cotejo com o có-
dice e os microfilmes da Biblioteca Nacional, ainda é admis-
sível, embora devesse ser explicitado claramente, o que não
ocorre na Nota do Editor. Mais grave é não ter sido acres-
cida ao texto uma única nota (e muitas eram necessárias) e

6 Antonil, André João (João Antonio Andreoni) - Cultura e opulência do


Brasil por suas drogas e minas (1711). Introdução e vocabulário de A.P.
Canabrava. São Paulo, Ed. Nacional, s.d.

229 revista do ieb n 43 set 2006


é frustrante a ausência de um índice analítico, que com os
recursos hoje disponíveis teria sido perfeitamente factível.
A Apresentação é muito superior à da primeira edição, mas
contém falhas de revisão (v.g. as datas da morte de João
Daniel, p.11, e do terremoto de Lisboa, p.16) e mesmo con-
ceituais, como uma suposta aliança, em meados do século
XVIII, entre “aristocracias rurais atraídas para a cidade” e
a “burguesia” de Belém (p.18), ou “a economia igualitária
das aldeias indígenas, espécie de socialismo missioneiro, que
modificara o comunismo tribal” (ibid.). Isto relevado, não há
como não saudar a tão esperada reedição de uma obra fun-
damental para a história da cultura brasileira.

P.S. Esta resenha já estava entregue para publicação,


quando localizei, entre os documentos do Arquivo Histórico
Ultramarino de Lisboa (Projeto Resgate, Capitania do Pará),
os capítulos da Terceira Parte faltantes no códice da Biblio-
teca Nacional e nas duas edições integrais. Paleografados e
anotados, estão publicados nas páginas 127 a 148 neste nú-
mero da Revista do IEB.

230
Poemas de Zuca Sardana

umas que outras, em terzas-gralhas

FURO
Furo da Gazetta
o Purgatório fabrica
as turbinas do Inferno

MADAME
Madame du Barry
esqueceu as rendas
da calcinha no missal

PLUTONE
Ma’ que’ !!!
Non mijate en la Porta
Xérbero !!!...

CASSINO
Pistão entupido
Juízo Final adiado
Fazzam suas apostas

JUSTIZZA
Pirralhos trocados
mães aos sopapos
Salomão deu os dois
pruma so’

Zuca Sardana é diplomata aposentado e vive em Berlim. Publicou,


entre outros, Às de Colete (Ed. UNICAMP, 1994), Osso do Coração (Ed.
UNICAMP, 1993) e Babylon (Companhia das Letras, 2005).

233 revista do ieb n 43 set 2006


poemas de Fabrício Corsaletti

não estão mortos


foram para outra cidade
a que não sei como chegar

História

Na cidade em que nasci


havia um bicho morto em cada sala
mas nunca se falou a respeito
os meninos cavávamos buracos nos quintais
as meninas penteavam bonecas
como em qualquer lugar do mundo
nas salas o bicho morto apodrecia
as tripas cobertas de moscas
(os anos cobertos de culpas)
e ninguém dizia nada
mais tarde bebíamos cerveja
as brincadeiras eram junto com as meninas
a noite aliviava o dia
das janelas o sangue podre
(ninguém tocava no assunto)
escorria lento e seco
e a cidade fedia era já insuportável

parti à noite despedidas de praxe


embora sem dúvidas chorasse

234
Dois poemas para minha sombra

1.

minha sombra
sob o sol absurdo
copia o meu ser original

mas o que sabe de mim


na noite íntima?

2.

minha sombra
não é a alma que perdi

Onde ela vive não importa

um pequeno sol
como uma moeda
no bolso da camisa

Fabrício Corsaletti é formado em Letras pela FFLCH-USP, publicou


Movediço (Labortexto, 2001) e O Sobrevivente (Hedra, 2003). Estudos para
o seu Corpo, incluindo os dois anteriores e mais poemas inéditos, será
publicado pela Companhia das Letras em 2007.

235 revista do ieb n 43 set 2006


Ambulância

Airton Paschoa

Como viver assim, costumam perguntar os amigos que


me restam, raros mas extremosos. Retribuo sempre, para
confortá-los, com algum aceno afável. Ultimamente, porém,
não sei por quê, têm me insatisfeito as respostas. É como se
tivesse, de repente, de chegar a uma palavra... Resultado que
o corpo reage mal, começa a se inquietar. Devagar, mas co-
meça.
De onde vem a urgência, também não sei explicar.
Nunca me faltou a consciência que nasci e vou morrer nesta
cama, por isso não creio em sinal nenhum. Tenho uns bons
pares de anos, mas me aguarda quadra igual de vida, senão
maior, se Deus quiser. A saúde geral é boa, e a bomba pro-
mete não explodir tão já, segundo atesta o positivo do
cárdio.
Morar perto de santa casa não explica tudo. A sirene
sempre fez parte de nossa vida. Vivemos em meio ao ber-
reiro desde o berço, hospital, escola, fábrica, família, mídia,
mercado, política, crematório. Sempre dormi com esse ba-
rulho. Agora, no entanto, temo pela minha sorte.
Ontem me virei e descobri. Sei que uma hora puxo a
coberta, pego no sono, mas o tempo que ando levando! Fico
escutando sem querer, orelhas arregaladas, esse mundo de
gente correndo... Basta estender a mão para alcançá-la, por
enquanto, mexo pouco, mas quando penso que posso um dia
precisar levantar, cubro a cabeça. Como viver assim... Não
sei, honestamente. Só sei que vou ao pronto-socorro.

Airton Paschoa é doutor em Teoria Literária pela FFLCH-USP e autor de


Contos Tortos (Nankin, 1999) e Dárlin (Nankin, 2003).

236
CORPO

Ricardo Lísias

UM
Se eu tivesse mais coragem, voltaria ao pátio só para
ver se aquele homem estava mesmo com um relógio de bolso
pendurado no colete. Mas agora que eu já cheguei até aqui,
acho melhor não voltar para trás: tenho medo de perder
a coragem e não conseguir falar tudo para ela. Dessa vez,
prometo, vou ter coragem. Ela merece. Por isso, inclusive,
resolvi vestir a minha melhor roupa. Eu me sinto mais co-
rajoso assim. A minha melhor roupa me deixa mais forte.
Mais seguro. Um relógio de bolso, pensando bem, me daria
mais controle. Forte, seguro e controlado, certamente eu
teria coragem para falar tudo o que eu sempre quis. Só que
eu precisaria de um bolso no colete para pendurar o relógio.
Modelos de bolso ficam elegantes apenas no bolso. Um bolso
me deixaria mais controlado, e um relógio, pois eu teria
onde esconder as mãos se ficasse com vergonha.

DOIS
Não preciso ter vergonha: provavelmente, Maria seria
internada aqui mesmo se nunca tivesse me conhecido. Não
é isso, claro, que eu pretendo dizer. Se fosse, aliás, eu não
precisaria de um bolso para esconder as mãos se sentisse
vergonha. O bolso seria importante apenas se eu tivesse
vindo visitá-la carregando um relógio de bolso. Ele me dei-
xaria mais controlado. E também me obrigaria a ter um
bolso. Se eu ficasse envergonhado, poderia colocar as mãos
no bolso. Ou ver as horas, ou até mesmo comentar a sua
elegância. Maria sempre foi uma mulher muito vaidosa. Se
estou bem lembrado, nunca a vi com os cabelos despente-
ados ou com a roupa amassada. Muito menos com a mão no
bolso. Bom, isso eu posso falar. Não vou sentir vergonha e,
portanto, poderei continuar com as mãos livres. Mas um re-
lógio, sem dúvida, me deixaria mais controlado.

237 revista do ieb n 43 set 2006


TRÊS
Não posso dizer com certeza se aquele homem tinha
mesmo um relógio de bolso pendurado no colete. Parece que
os pacientes estão sempre mexendo as mãos. Isso os deixa
mais controlados. Talvez lhes dê também mais coragem, mas
não tenho certeza. Eu prefiro colocar as mãos no bolso para
ter mais coragem. É, de fato eu deveria mesmo ter trazido
um relógio. Voltar para trás agora, porém, seria covardia.
E para dizer o que estou sentindo, não preciso necessaria-
mente de muito controle. Já vesti a minha melhor roupa
e sei que isso é suficiente para deixar Maria orgulhosa.
Se eu esconder as mãos, pode ser que ela perceba meu re-
ceio e sinta vergonha. Uma das últimas coisas que eu quero
na vida é que ela tenha vergonha de mim. Por isso vesti a
minha melhor roupa, para que ela sinta orgulho de mim en-
quanto eu estiver falando. Vou falar tudo sem colocar a mão
no bolso, pois não tenho motivo para me descontrolar. Um
relógio me deixaria assim, mas não tenho certeza.

QUATRO
Por outro lado, é verdade que um relógio de bolso a
deixaria orgulhosa: ele é sempre um acessório muito ele-
gante. Mas como eu vesti a minha melhor roupa, posso dis-
pensá-lo. Eu me sinto seguro assim e dificilmente vou ter
vontade de colocar as mãos no bolso. Claro, um bolso me
deixaria mais controlado, como aquele senhor do pátio que,
se não estou enganado, tinha um relógio pendurado no
bolso. Um acessório muito elegante. Mas como vesti a minha
melhor roupa, vou ter coragem para dizer tudo. Não quero
deixar passar nem mais um dia, por isso eu vesti a minha
melhor roupa. Hoje eu vou dizer tudo e, se ficar com ver-
gonha, coloco as mãos no bolso. Maria vai ter que me per-
doar, mas foi por isso que eu vesti a minha melhor roupa,
para não sentir vergonha e para ela me perdoar.

238
CINCO
Acho que Maria não sente raiva de mim. Não posso
garantir, claro, mas acho que ela é suficientemente observa-
dora para perceber que eu vesti a minha melhor roupa. Eu
me sinto bem assim, sabendo que ela não sente raiva. Isso
me deixa mais seguro e me dá coragem para falar tudo de
uma vez. Se estivesse com raiva, não me receberia. Ela deve
estar sabendo que vim hoje. Telefonei antes e, como se não
bastasse, deixei o meu documento na portaria. Aliás, foi lá
perto que vi o homem com o relógio de bolso pendurado no
colete. Se eu tivesse colocado um colete, poderia ter vindo
de relógio, o que me deixaria mais controlado. Mas se Maria
me deixou entrar, é porque não tem raiva de mim. Não pre-
ciso ter receio disso. Sempre a achei uma mulher decidida:
se ela não quisesse me receber, teria falado alguma coisa
para os enfermeiros. Disso não preciso ter receio, pois ela
sempre foi uma mulher decidida, com certeza vai me ouvir
até o final.

SEIS
Eu só não quero que ela me julgue, que tire conclu-
sões precipitadas. Por isso vesti a minha melhor roupa: para
Maria saber que nunca fiz pouco caso. Se eu tivesse vindo
antes, talvez ela se recusasse a me receber. Agora que eu
vesti a minha melhor roupa, porém, posso falar tudo. O ideal
é não perder tempo e ir direto ao assunto. Maria sempre
foi uma mulher decidida, acho que ela não vai gostar se eu
ficar enrolando. Qualquer coisa, coloco as mãos no bolso.
Isso sempre me deixa mais seguro. E um relógio, mais con-
trolado. Acho que não vai ser necessário, pois se eu esti-
vesse com raiva, ela certamente não aceitaria me receber.
Ora, bastava ele dizer a um dos funcionários que não queria
me ver. Quanto a isso, posso ficar tranqüilo. O problema vai
ser se Maria me interromper.

239 revista do ieb n 43 set 2006


SETE
Retardado, imbecil e fedorento é você, seu cavalo filho
da puta de uma égua, sua mãe não tem uma casa nada para
morar, seu filho de uma égua desgraçada que não tem casa
nenhuma, não tem casa nenhuma aquela puta da sua mãe,
seu cavalo filho de uma puta, não tem casa, sua mãe não
tem casa nenhuma, aquela égua, seu cavalo filho da mãe,
aquela égua é uma fedorenta desgraçada, seu filho de uma
puta fedida e sem casa, a sua mãe é uma égua, seu cavalo
filho de uma vaca desgraçada, a sua mãe não tem casa, não
tem casa nenhuma aquela égua filha de uma puta, aquela
puta fedorenta, não tem casa, não tem casa nenhuma seu
desgraçado filho de uma égua desgraçada, aquela puta não
tem casa, seu desgraçado filho de uma égua fedorenta, a sua
mãe não tem casa, aquela égua filha de uma puta, aquela
vaca desgraçada, seu filho de uma puta que não tem casa,
seu desgraçado fedorento filho de uma égua desgraçada, não
tem casa, não tem casa seu filho de uma puta desgraçada,
não tem casa, não tem casa nada.

OITO
Maria acha, inclusive, que é por isso que o Mane-
quim se recusa a falar com ela: só pode ser vergonha. Mas
se o motivo for esse, ele pode ficar tranqüilo: ontem mesmo
Maria comprou uma casa. Ela podia ter alugado ( já que não
pretende passar o resto da vida aqui), mas seria bobagem.
Por que dar dinheiro para o proprietário, se a gente pode
fazer o nosso próprio investimento? Toda alegre, Maria fe-
chou a janela, trancou a porta que dava para a rua e foi
contar a novidade para o Manequim. É, um homem vai-
doso como ele nunca toparia sair com uma mulher que não
tivesse uma casa. Um defeito, claro, mas quem não tem os
seus? Maria, por exemplo, vive com a cabeça no mundo da
lua: esqueceu a janela aberta! Depois de fechá-la e trancar
a porta da rua, ela foi contar a novidade para o Manequim.
Na esquina da loja, porém, reparou que o tempo estava es-
curecendo. Se a água entrasse pela janela, estragaria todo o
colchão. Sem sombra de dúvida, o Manequim iria detestar.
Correndo, Maria voltou para a casa nova, fechou a janela e
trancou a porta que dava para a rua. A verdade é que ela
deveria ter comprado a casa em outro lugar: no ponto de
ônibus, os passageiros ficam curiosos e olham as coisas que
ela colocou dentro do quarto. O jeito, pensou enquanto fe-
chava a janela e trancava a porta da rua, vai ser comprar
uma cortina.

240
NOVE
Muito indignada, Maria gritou que aquelas mulheres
olhavam para o Manequim feito putas. Duas cadelas que
não tinham educação suficiente para respeitar o homem dos
outros. Uma gente sem vergonha, mais do que isso, um tipo
de pessoa que não tem dignidade para manter um relacio-
namento sério. Um casamento cheio de amor, era o que ela
pretendia dizer. Antes, gritou que, se quisessem, podiam
ir até o endereço dela tirar satisfações. Não qualquer uma,
de jeito nenhum. Orgulhosa, Maria gritou de longe para o
Manequim que voltaria mais tarde. Assim poderiam con-
versar com mais tranqüilidade, longe daquelas putas que
não se davam ao respeito. Que olhassem, que olhassem a
tarde inteira. E se quisessem, se precisassem, ela tinha en-
dereço. Não qualquer um, um que se dava ao respeito. Era
isso, aliás, que ela queria conversar com o Manequim: que
agora tinha um endereço de respeito. Uma casa de família,
de família inclusive. Mas se aquelas putas aparecessem no
quintal, aí não, aí Maria não sabe do que é capaz. A casa é
arrumadinha, de gente honesta, mas o Manequim que des-
culpe.

DEZ
No entanto, fecharam a loja na cara dela e o Mane-
quim não falou nada, não teve a dignidade de reclamar ou
ao menos de pedir para que a deixassem entrar. A primeira
sensação, claro, é a pior de todas: as pernas ficam fracas.
Parece um pouco com a sensação de fome (mas nunca a de
frio), as pernas amolecem. Mesmo assim Maria conseguiu
voltar para casa, trancou pelo lado de dentro a porta que
dava para a rua, fechou a janela e, lacrimejando de raiva,
deitou na cama. Deu vontade de xingar, de mandar para a
puta que o pariu, aquele desgraçado, mas Maria teve pa-
ciência, fez um gesto brusco e fechou a janela. Gente in-
trometida. Deitada outra vez, prometeu para si mesma que
não ria chorar, isso não, não daria o gostinho. A sensação
é parecida com a de fome. Com o frio, jamais. De madru-
gada, Maria pensou em se levantar e andar um pouco. Tinha
curiosidade para ver se as pernas estavam um pouco mais
fortes. Além disso, sentia fome.

241 revista do ieb n 43 set 2006


ONZE
E um pouco de frio. Mas ela não tinha muita vontade
de se mexer. Sentia um pouco de preguiça, e um peso muito
grande logo acima da barriga. Ainda antes de clarear, Maria
procurou forçar a concentração e, com um movimento pare-
cido com o dos insones, tentou sentir o próprio corpo sem se
mover. Queria ter a certeza de que estava viva. Os pés pare-
ciam um pouco gelados, mas os joelhos estavam protegidos
pelo cobertor. Poderia se encolher um pouco mais, só que
isso atrapalharia a operação. Depois, fez muita força para
sentir os quadris. Conseguiu. A barriga estava como sempre
ali, mas ela não conseguiu ir acima dos seios. Não sentiu a
cabeça. Confusa, porém, concluiu que se tinha conseguido
coordenar todas essas sensações, devia estar com a cabeça
no lugar. Dá uma raiva, é verdade, uma sensação de ódio
e de desespero. Se fechasse a janela, talvez se sentisse um
pouco mais tranqüila. Mas para isso ela precisaria se mexer.

DOZE
Até hoje ela conseguiu agüentar. Uns dizem que é or-
gulho demais. Mas, na mesma situação, muita gente reage
exatamente como ela. É fácil jogar pedra no telhado dos
outros. De vez em quando um pássaro entrava pela janela.
Maria tentou apanhar um deles. Ao erguer a mão direita,
porém, percebeu que o bichinho estava longe. Com dois
dedos, cobriu o sol. Depois, divertiu-se escondendo com as
mãos muitas janelas de um prédio. O tamanho das coisas
sempre parece tão surpreendente. Alegre com isso, Maria
achou que podia se levantar. De fato, ela não precisou se-
quer se apoiar no braço da cama: forçou as pernas encostada
nas janelas daquele mesmo prédio que ela tinha coberto e,
ereta, resolveu mais uma vez tentar sentir o corpo parte por
parte. Agora, queria ter certeza de que conseguiria chegar à
cabeça.

Ricardo Lísias é doutor em Literatura Brasileira pela FFLCH-USP e autor de


Capuz (Hedra, 2001), Dos Nervos (Hedra, 2004).“Corpo” é a novela que deu
origem ao romance Duas Praças (Globo, 2005)

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