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Vinde, e poetizaremos!

Poemas-fichamento sobre
O Mestre Ignorante, de Jacques Rancière

por Suene Honorato

Fortaleza, 2020
Apresentação

Escrevi estes poemas-fichamento sobre


O mestre ignorante: cinco lições sobre
a emancipação intelectual, de Jacques
Rancière (publicado em 2002 no Brasil
pela editora Autêntica, com tradução
de Lílian do Valle), como um modo de me
apropriar de suas palavras lendo com
atenção, criando formas ao imitar. É o
meu Telêmaco. Há entre poemas e livro
aproximações e distâncias, órbitas que
se tocam mas não coincidem.

Tudo aqui —ou quase— está lá. Tudo


está em tudo. Nada subtraio a vocês,
leitoras e leitores, com quem partilho
o convite: “o poema é sempre a ausên-
cia de um outro poema”. Que possamos
escrevê-lo ao infinito!
Pelo entusiasmo
agradeço a

Adelaide Gonçalves
Atilio Bergamini
Paula Godinho
Tiago Coutinho
[história de um pedagogo
extravagante contada em 5 lições]

Esquecer e lembrar
a voz solitária
do estranho pedagogo
de séculos passados
:
sua aventura dissonante
reanima paradoxos.

O processo de ensinar
—instaurado por manuais
sob ideias diversas
e bem intencionadas
no inferno das instituições—
quer sempre a todo custo
diminuir a desigualdade.
Partindo desse pressuposto
termina por confirmar
uma incapacidade.
A isso Jacotot chamou
embrutecimento

9
,o Velho método,
e contra ele
ousou pronunciar
as palavras
da emancipação
:
forçar uma capacidade
que se ignora
ou que se acha
que não se tem
partir da igualdade
das inteligências
e tirar todas as consequências
dessa opinião.

a igualdade é
fundamental e ausente
atual e intempestiva
ela não é
nem formal nem real
não está nos uniformes
escolares da república
nem nas prateleiras

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dos supermercados

A aventura de Jacotot
pode ser que tenha
um desfecho
pessimista:
não altera
a ordem social.
Mas move
pessoas e pessoas
que avançam
contra o curso “natural”
da partilha
e assumem o risco
de manter a dissonância
no horizonte.

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12
1 .

Lição: Uma aventura intelectual


1 • Acaso

No ano de 1818
Joseph Jacotot
exilado da França
foi ensinar
nos Países-Baixos
a língua que aprendera
com seus pais
mas não sabia
como fazê-lo.
Ignorava totalmente
o holandês.

O acaso colocou entre


mestre e estudantes
a coisa comum:
uma edição bilíngue
do Telêmaco.

Solução de improviso
:

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“Aprendam francês
comparando com o holandês
que vocês sabem
repitam o que aprenderam
quando chegarem à metade
e depois narrem aventuras
com suas próprias palavras”
,disse o mestre aos estudantes
com ajuda de um intérprete.

E assim eles aprenderam


abandonados a si mesmos
sem mestre explicador.

Um grão de areia vinha


se introduzir fortuitamente
na engrenagem.

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2 • Surpresa

Um professor consciencioso
—como era o próprio Jacotot—
,isto é,
culto, esclarecido
e de boa-fé,
tem necessidade
da explicação.
Conduz estudantes
do simples ao complexo,
do tatear às cegas
ao método,
dado que estudantes
são ignorantes.
Rima destinação social
com processo educacional,
dado que a partilha
precisa ser mantida.

Cada um no seu quadrado.

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No acaso
,a surpresa
:
Jacotot previra
o lance de dados
mas o número sorteado
jogava à revelia
de suas crenças.

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3 • E agora, Jacotot?

A engrenagem da explicação
que Jacotot cuidara de lustrar
por trinta anos
começou a ranger.
Ele decidiu fazer
do defeito
uma aventura.

Por que o mestre


deve explicar o livro
aberto ante os olhos
dos alunos? O que
fala sua voz que
cala a boca
do livro?
Sem explicação
não podem
entendê-lo?

Se toda gente aprende

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a falar desde pequena
—escutar e reter
imitar e repetir
errar e corrigir
acertar por acaso
recomeçar por método—
se toda gente aprende
a falar desde pequena
a língua de seus pais
é que a gente pode tanto
pelo resto dos seus dias.

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4 • explicação

o explicador
tem necessidade
do incapaz
,não o contrário

a explicação
é o mito da pedagogia
ficção
que divide o mundo em
sábios e ignorantes
que insiste o mundo em
maduros e imaturos
que prossegue o mundo em
capazes e incapazes
que revive o mundo em
inteligentes e bobos

seu nome é
embrutecimento

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5 • Mestre pra quê?

Revendo o acaso
Jacotot se perguntava
qual era a função do mestre
se ele havia feito quase nada
nem nada explicara
se havia ensinado
coisas que ele ignorava.
Ele somente lhes dera
a ordem de atravessar
uma floresta de signos
sem saber o que havia
do outro lado.
A ordem dada se realizava
colocando em movimento
uma capacidade
que toma posse
de seu próprio
poder. Pode-se
aprender sozinho
sem mestre explicador

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quando se queira
pela tensão da vontade
ou pelas contingências
da situação.

E em salas com gente


saindo pelo ladrão
dizia calmamente
:
“É preciso
que eu ensine
que nada tenho
a ensinar”.

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6 • ser de palavra

um filhote de gente
se parece
com gente já grande

um ser de palavra
responde
à palavra humana
que lhe foi dirigida
sob o signo
da igualdade

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7 • Qual mestre?

Os alunos de Jacotot
haviam aprendido
sem mestre explicador
,mas não
sem mestre.
O domínio do mestre
se fazia
de vontade a vontade
deixando livre
a inteligência
do aluno pra livre
encontrar outra
inteligência
a do livro
:
coisa comum
laço igualitário
entre mestre e aluno.

A sujeição

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de vontade a vontade
fez o mestre
emancipador.
A sujeição
de inteligência a inteligência
fez e continua fazendo
e m b r u t e c i m e n t o.

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8 • Círculos

Num círculo de potência


o ignorante
aprende sozinho
o que o mestre não sabe
se o dito mestre
—emancipado e emancipador—
acredita que o ignorante possa
e o force a atualizar
sua capacidade.

Num círculo de impotência


o ignorante
aprende a ciência
explicada pelo mestre.
O mestre valoriza seu saber
quando o explica.
O ignorante valoriza o mestre
quando submete a ele
sua inteligência
desejando ser mestre

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algum dia.

[Num lugar e tempo depois


outro pedagogo extravagante
nos ensinava sobre
“aderência” ao opressor.]

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9 • Acaso de novo

Repetindo a aventura
do acaso
Jacotot compreendeu
:
podia ensinar
o que não sabia
se
emancipasse
o aprendiz
em sua potência
,isto é,
forçasse o aluno
a usar a própria
inteligência.
Ele nada tinha
inventado
o “método”
—embora não fosse
o Velho método—
era tão velho quanto o mundo

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uma maneira de aprender
a que chamou
“Ensino Universal”
:
aprender qualquer coisa
e a isso relacionar todo o resto
segundo o princípio
da igualdade
das inteligências.

E tudo isso porque


um homem de espírito
havia enlouquecido
por não saber o holandês.

29
32
2 .

Lição: A lição do ignorante


1 • Trapaça do Velho

Ouvindo a imponente explicação


e vendo indiferentes os colegas
semblante corajoso e olhar à frente

“Entendo!”, disse o aluno satisfeito.


“Aí é que se engana”, fez o mestre
sorrindo, lhe parece, de bondade.
“Saber toda a verdade por inteiro

agora é prematuro, você não


consegue. Mas insista que lá vem
futuro promissor, talvez em breve
se torne, como eu, explicador”.

Aquilo que fingia dar o mestre


—promessa de saber sempre adiada—
amarra o aluno ao jogo da trapaça.

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2 • Hierarquia das inteligências

Avante! O pequeno cavalheiro


de bons sentimentos
foi instruído a
não olhar atrás de si
o abismo
de ignorância
,cova que cava
pra enterrar
quem não lhe alcança
,tanto mais funda
quanto mais ele
sobre montanhas
se posta como sábio
,ainda que se comova
com quem fica enterrado.
Um dia descerá
ao nível deles.
Triste sina! Lá estarão
mudos os cadáveres
a quem ele queria

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oferecer uma explicação.

Na ignorância
não há hierarquia.

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3 • Livro-ilha

O livro é uma fuga


bloqueada
:
quem o lê não sairá
do exercício
de sua própria
liberdade
sobre ele construirá
estradas
que vão dar
onde se queira
,até mesmo
em nenhum lugar
que também
isso é desejo
enfraquecido
pelo medo.

.a desigualdade
de resultado

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é diferença
de vontade.

O mestre acompanha
a obra do aluno
na ilha-livro,
está à sua porta.
Sabem que nada
se subtraem
que suas inteligências
são iguais.

A ilha circulada
de água
de onde não se sai
—potência da linguagem
que é pensada—
abole a trapaça
da incapacidade.

Há quem fuja a nado


e se abandone

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à tutela dos poderes:
negligência de si mesmo.
Há quem não se saiba
seduzido pela finta
do embrutecimento,
logo saberá.

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4 • Por onde começar

Não há nada
a compreender.
Tudo está no livro.
Basta relatar
:
a forma de cada signo
as aventuras de cada frase
a lição de cada livro.

É preciso
começar
a falar.

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5 • Sapateira

O livro
abole a trapaça
:
o que vês?
o que pensas?
o que fazes
com essas letras?
Calipso não podia,
podes tu dizer
de outros modos
sobre tua
pretensa impotência
e logo dirás
tudo.

O que vês
o que pensas
o que fazes
com essas letras
posso verificar

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na materialidade
do traço.
O livro está pronto
e acabado, mas só
importa
se for lido.
Aprende
qualquer coisa
que tu queiras
com essas letras
e relaciona
a todo o resto.
Saberei ver
se mentes, se falas
sem saber
se apontas no livro
sobre o vazio.
Não enganes
a ti mesma.
O laço de humanidade
reconhece a trapaça
deixemos que se desfaça.

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Humanizemo-nos
com outra coisa:
fiquemos sem trono
em torno
d’As aventuras de Telêmaco
Calipso, Calipso não,
Calipso não podia…
tu podes aprender
o que precisas pra viver
—matemática, química, fortificação—
mesmo que eu sequer
saiba ler. Posso muito
:
verificação.
Sei falar a língua
dos meus pais
e dos sapatos
que fabrico.
Qualquer uma
é terreno
pra emancipação.

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6 • Moinho da distinção

E do grão de areia
no moinho da distinção
o Velho fez farinha
pra alimentar
sua fome de trono.

Não permitirá
que a “decoreba”
instituída pelo Fundador
—todo mundo a repetir
a ladainha:
Calipso, Calipso não,
Calipso não podia…—
chegue a algum lugar.
A repetição
nada ensina, grau abaixo
em capacidade,
como prova a sapateira
martelando
como sapa

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tanoeira
que nada cria
nem fala, balbucia
uma língua
analfabeta.
Não poderá jamais
se transformar
em mestra
das próprias filhas,
menos ainda ser poeta.

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7 • tautologia da potência

a inteligência que escolheu


iniciar a aventura
pela palavra Calipso
é de mesma natureza
da que produziu
as letras pra imprimi-la
:
relacionam
comparam
verificam
com atenção

a memória inventa
a imitação cria formas
a potência não se divide
tudo está em tudo

o todo/pan da inteligência
se manifesta
em cada/ekastos ato

46
:
pan ecást ica

47
8 • método e princípios

quem pergunta “como?”


quer método, mas Jacotot
tinha princípios
:
acreditar na desigualdade
das inteligências
embrutece, seja por qual
caminho for
acreditar na igualdade
das inteligências
emancipa, seja por qual
caminho for
o método é do aluno
não do professor
qualquer ilha serve
pra se fincar pé
o que pode
um emancipado
é ser
emancipador

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9 • mestre explicador

dorme um Sócrates
em todo explicador:
interroga
porque sabe
a resposta

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10 • “Conhece-te a ti mesmo”

A procura que se faz


no conhece-te a ti mesmo
da emancipação
olha pra todos
os lados
inverte Descartes
—sou, logo penso—
enfrenta a partilha
do mercado
—abole o “cada um
no seu quadrado”
pregado por Platão
na república sonhada—
bagunça
a ordem social
se pinta de potência
toma a consciência
do sujeito intelectual
no seio da sociedade.

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11 • Fábricas

Fabricar sapato e nuvens


é a mesma operação
:
artesania que exige
a vontade se dobrar
ao estudo de uma língua
,invenção de novas frases
a partir da imitação.

Aprender bem uma língua


só engano pode ser
rimar com hierarquia.

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12 • verificação

o que embrutece
não é falta de instrução
mas crença
em diferentes degraus
de inteligência
desejo de encontrar
algum trono
por mais baixo
que pareça
a outros reis

um espírito superior
—condenado à incompreensão—
desqualifica o reconhecimento
de inferiores que se dobram
de superiores que se negam
sejam sábios ou poetas

reciprocidade é o cerne
da emancipação

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:
verificação autorizada
exigida pela própria
natureza igualitária
de seres que se falam

53
56
3 .

Lição: A razão dos iguais


1 • Opinião

Opinião e verdade
não se bicam.
Opinião quer busca,
verdade empaca
o movimento.

A igualdade das inteligências


é uma opinião
não precisamos prová-la.
Queremos ver
o que se pode
a partir dela.

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2 • Apóstolos da desigualdade

Os superiores
argumentam com ciência:
opinião é coisa do povo,
precisamos explicar
a causa dos fenômenos.
Já se vê como somos
mais inteligentes
que eles todos.
A desigualdade é fato
que precisa ser justificado.
Espíritos superiores
têm direito
a comandar
espíritos inferiores,
como o homem
comanda os animais.
Nada precisamos
demonstrar;
não compreenderiam,
afinal. Vá lá que sejam

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capazes de pensar
alguma coisa
operar máquinas
varrer calçadas
martelar sapatos
mas não serão jamais
parte dos humanos
imortais
que poetizam e cuidam
dos interesses gerais
da sociedade.
Cada um no seu quadrado!

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3 • Tautologia da impotência

Dá-se o nome de
desigualdade
das inteligências
à diferença de resultado.
O nome de um fato
porém
não é a sua causa.

A desigualdade
é também
uma opinião.
Por mais
que se queira
não se pode
prová-la.

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4 • Animal atento

Atenção
:
fato imaterial
em seu princípio
e material
em seus efeitos
verificáveis
presença ou ausência
intensidades.

A inteligência
realiza qualquer obra
quando tem
necessidade.
Ali onde uma cessa
a outra repousa
a menos que
uma vontade mais forte
se faça ouvir e diga
“Continua! Tu podes,

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busca com atenção”
—tarefa de mestre
que ensina o que ignora.

Uma pessoa
é uma vontade
servida
por uma inteligência.
Tem ideias
faz poemas
quando quer.
Sem vontade
erra.

A distração
é o pecado original
do espírito.

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5 • Mentiras

Há duas mentiras
fundamentais
:
a de quem proclama
“eu digo a verdade”
e a de quem afirma
“eu não posso dizer”.

Dizer é tradução
—distância entre línguas—
que reúne pessoas
numa partilha
entre iguais.

O laço de humanidade
reconhece a trapaça.

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6 • Órbitas

Orbitamos em torno
do núcleo ausente
da verdade
:
cada pessoa descreve
sua parábola.
Não há duas órbitas
coincidentes
ponto a ponto.
O nome desse fato
pode ser
.diversidade.

Um mestre que deseja


a coincidência das órbitas
—dizer a última
palavra
calar a busca—
ensina
como amestrasse

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cavalos:
comanda evoluções
e contramarchas
conserva a dignidade
do mando
desperta admiração
em quem foi posto
sob o chicote
—e outros mais
instrumentos
imateriais
da dominação—

e embrutece.

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7 • Metamorfoses

Cada palavra
é uma larva fecundada
pela vontade
de quem escuta.
Sabe-se lá que seres
nascerão daí.
Monstros não atormentem
nossa consciência!
Esforço de tradução
e contratradução
sempre ausência
da verdade.

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8 • impossibilidade

a verdade não se diz


se sente
impossibilidade
que projeta
à frente
a comunicação

se a verdade
pudesse ser medida
em palavras
não se fariam poemas

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9 • floresta de signos

um lagarto que desliza


do pensamento
pra matéria
é palavra que não faz
uma aventura de espírito

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10 • Convite

O poema é sempre
a ausência
de um outro poema
órbitas diferentes
em torno
da igualdade
das inteligências.

Um poema se faz
à mão, como máquina
ou sapato.
Basta falar
a língua própria
a cada coisa.

Um poema se alinha
à adivinhação
não à escuta passiva.
Nada transmite
convida a fazer

70
a mesma coisa
que busca
tradução.

Um poema não acredita


que sabe mais
dos sentimentos
de quem o leia.
Se esforça
pra tudo dizer
sabendo
que não se pode
dizer tudo.

71
74
4 .

Lição: A sociedade do desprezo


1 • Lei da gravidade

Uma inteligência
procede com razão
não segue
as leis da matéria
:
paira sem conhecer aderências
segue rotas imprevistas
em torno do núcleo
ausente da verdade.
Ela faz um poema.

Uma reunião de inteligências


na sociedade da desrazão
segue as leis da matéria:
gira em torno de um astro
como planetas
impõe verdades
e induz à ação.
Ela perverte o poema.

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Os corpos tendem
a cair igualmente
no precipício.

O centro gravitacional
distribui as leis à massa
matéria a ser ordenada
em castas, hierarquias
de acordo com o peso
nas bacias da (in)justiça
social.

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2 • “Eu não posso”

“Eu não posso, meu deus, eu não posso!”


a cabeça entre as mãos distraída
pensa e goza de humilde a pessoa.
“Não me julguem, ó, superiores!”

O desprezo por si é também


—se talvez retomando a razão
ela veja por sua vontade—
o desprezo por outros mais quem.

Um comércio de glória e desprezo:


cada vez que se faz inferior
ganha em troca medalha distinta.

E assim segue somando a retórica:


“Bem abaixo estão todos mais eu,
menos eu que a alguém submeto”.

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3 • Desrazão social

Porque a desigualdade
é uma paixão primitiva
um cidadão discursa
sobre sua natureza
em busca de uma
justificativa: amarra
razões sem razão
inventa movimentos
cria uma ficção
pra dizer quem sobe
quem desce, quem manda
quem obedece.
Produto de uma inteligência
essa esperta narrativa?
Sim, como não!
Mas se faz distraída
tem preguiça diante
da enorme tarefa
que a igualdade
requer: vertigem.

79
Mais fácil cair
no mundo cego
da gravitação.

Uma pessoa
pode ser
razoável
não o cidadão.

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4 • Verdade ou mentira?

Há quem diga
que a poesia
conquista os domínios
da razão à força
de suas mentiras.
Mas não há linguagem
da razão. O poema
recomenda a quem o diga
não confundir
verdades com fatos e
aventuras de espírito.

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5 • Palavra que cala

Condição poética
:
toda pessoa nasce pra
compreender o que outra
pessoa tem a lhe dizer.
É poeta de si
e das coisas.
Uma palavra é ausência
da próxima; e assim
prossegue
a conversa.

O contrário disso
é retórica, palavra de guerra:
obra humana feita
da ausência de réplica feita
por uma vontade
que destrói outra vontade feita
do consentimento mortal
do tráfico de sangue

82
a que se chamou pátria.

A retórica fala
pra fazer calar.

Não há linguagem
da razão. E a verdade
está fora da palavra
não decidirá
nenhum conflito
em praça pública.
Ela caminha solitária
e sem cortejo
não proclama sanções
não vai de braços dados
com a morte.

O poema é apenas
um poema: sem
potência pra ação.

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6 • impotente cortejo

!supressão
da pena
de morte
ou morte!

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7 • Desrazão insuperável

Jacotot com seus botões


pensava: “Se perguntarem
o que acho da organização
da sociedade, direi que
esse espetáculo
é contrário à natureza. Nada
está em seu lugar
se há lugares diferentes
pra seres que não o sejam
segundo a igualdade
das inteligências.
Pouco importa que se troquem
ordens lugares diferenças”.

85
8 • inferiores superiores

inferiores superiores
não veem contradição:
pra submeter
submissão

86
9 • Razoável desrazoante

Organismos querem
uma ordem qualquer
desde que não sejam
perturbados.
Nenhuma sociedade
se emancipa
presa nas leis
da gravidade.

Apenas pessoas
se emancipam
e se tornam
emancipadoras.
Aprendem a língua
da retórica
:
não pra calar
não pra lacrar
não pra fazer
a desrazão

87
permanecer.
Mas pra ver
o que faz
o que pode
a razão
mantendo-se ativa
no seio da
desrazão.

Mais e mais se somem


a recusar o tombo
no precipício da gravitação
e logo serão todas
emancipadas as pessoas.

88
5 .

Lição:
O emancipador e suas imitações
1 • Perguntas sem respostas

Pergunta o Ministro
cheio de boas intenções:
“Qual é o melhor método
pra instruir o povo?”

Responde o Fundador
sem ser considerado:
“A instrução é como
a liberdade:
não se concede
conquista-se”.

Alguém
na multidão
intervém:
“E as mulheres
ainda permanecerão
belas se souberem
que a superioridade
do ministro
foi inventada?”

92
2 • Inquietação

O Velho repousa
sobre uma explicação.
Mas não repousa
tranquilo.
Uma entre outras
explicações
vão surgindo.
O Velho gostaria
de dizer
a palavra final:
explicar
a desigualdade
por sua
redução
mantendo a distância
intransponível
pela verdade
da dominação.

93
3 • Carneiros

O Ensino Universal
fez sucesso entre imitadores.
Eles o chamaram de “método”
e recomendaram que fosse adotado
pelas instituições competentes.
Mas ficaram de fora
um ou dois detalhes
:
que o “método”
era o método das sapateiras
dos pobres analfabetos
mães e pais de família
pra ensinar seus filhos
a ler palavras
desconhecidas.

Os imitadores fizeram
da igualdade das inteligências
não o ponto de partida
mas o termo de chegada

94
a que no entanto
nunca se chegava
segundo diziam
relatórios empilhados.

Confundiram o povo
com um rebanho
de carneiros a que
se deve guiar:
igualdade virou Progresso
emancipação virou Instrução
pastor veio a ser o Grande Mestre.

95
4 • Progressistas

Uma pessoa
literalmente
progressista
caminha
com os próprios pés
experimenta
modifica
verifica
e assim
de novo
e em diante.

Progressista também
pode ser aquele que crê
no lema da bandeira.
Quem diz Ordem
diz hierarquia
explicação da
desigualdade que quer
permanecer como está.

96
A explicação
é obra da preguiça
:
dispensa
movimento e ação
da inteligência.

97
5 • Coleiras

O Velho pensava
ser velho e cansado
mas eis que o Progresso
se fingiu de método
polindo as coleiras
de tempos passados.
E a desigualdade
se inscreve nas portas
das casas humildes
dizendo “retardo”
mas pela instrução
serão convencidas
a reconhecer
a dominação.

98
6 • Instrução Pública

A instrução das massas


coloca em perigo
governos absolutos.
A ignorância das massas
coloca em perigo
governos republicanos.

Vamos instruir o povo!


A partilha assim jamais
será questionada:
cada um no seu quadrado
cada classe no seu nível.
É preciso saber medir
a própria incapacidade;
pra isso bastam
as básicas operações
da matemática.
Reconhecerão nosso empenho
como compensação
por seu atraso.

99
Ficaremos todos felizes
pois na história da humanidade
se pode aprender
que há sempre alguém
pra ser explorado.
Tudo tudo natural
naturalizado.

100
7 • Partilha

Pessoas são tidas pelo desejo


de tomar sua parte
no sistema dominante
da instrução:
estão agora na universidade!
Elas sabem: não foi
a igualdade das inteligências
que as pôs ali sentadas.
São melhores do que outras
não só mais bem preparadas.
Serão ainda melhores
quando fizerem o mestrado.
Por enquanto a distinção
é se tornarem monitoras
a quem foi concedido
o pequeno poder
da explicação.
Sim! Finalmente
explicarão conteúdos
a seus colegas que

101
—diferentes de si—
não sabem de tudo.

102
8 • Solidão

A aventura intelectual
de Jacotot
a que o acaso fizera
mestre ignorante
foi ao fim e ao cabo
uma aventura de solidão.
A máquina explicadora
seguia recompondo
suas engrenagens
produzindo novas coleiras
pra rebanhos amansados
pela instrução.

Acostumou-se
não sem desespero.
Antes de morrer
viveu o luto
da igualdade, sepultada
sob a ficção do progresso.
Depois de morrer

103
,lápide: Jacotot
veio a ser
o nome próprio
de um saber
de uma prática
que opinava ser possível
uma pessoa se instruir
sozinha
sem mestre.

104
9 • Não vingará, não morrerá

O Fundador havia predito


“não vingará”. E acrescentou
“jamais morrerá”.
Vez por outra
nas voltas que o mundo dá
alguém que se sabe
razoável
e que por isso
não precisa ter razão
alguém que sabe
que a verdade
não se diz, se sente
alguém enfim
rancièreanamente
insiste em tomar parte
na ideia de igualdade
bagunçar a partilha
limitada dos contentes
e refaz noutro tempo
o convite em refrão
:
Vinde, e poetizaremos!

105
[posfácio]

suene,

a teimosia do desejo
intumesce na tua
epopeia do mestre
ignorante que
aprende pouco
a pouco a vertigem
da igualdade a recusa
do tombo no progresso
na tutela no embrutecimento
da máquina explicadora
promessa de infelicidade
que prorroga o gozo
para a próxima
aula pessoal conforme
o cronograma
harmônico regente
do quando
onde como
avesso à aventura

108
dissonante
de jacotot que
assim talhada
com tesoura e cola
de verso
reanima os paradoxos
a libido do livro
coisa comum
que se quer
comer o pão
o poema a prole
do pensamento
analfabeto que
gesta o potente
na vontade
e doa aos apetites
diversos o espaço
de órbitas não
coincidentes mas
comunicantes às
voltas
do núcleo duro
e ausente da verdade

109
luminosa
impossibilidade
que nos adivinha
um futuro já
que se a
verdade
pudesse ser
medida em
palavras não
se fariam
poemas

zeno

110
111
Este livro é uma recriação literária a partir de O

mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação

intelectual, de Jacques Rancière, publicado em 2002

no Brasil pela editora Autêntica, com tradução de

Lílian do Valle.

Distribuição gratuita; destinado a bibliotecas

comunitárias e círculos de leitura livre.

Projeto Gráfico: Yule Bernardo.

Sem Nome Editora


Ficha Catalográfica

Bibliotecária: Perpétua Socorro Tavares Guimarães

- CRB 3 801-98

H 774 v Honorato, Suene

Vinde, e poetizaremos!: Poemas-

fichamento sobre O mestre ignorante

de Jaccques Rancière / Suene Honorato.

- Fortaleza: Plebeu Gabinete de Leitura;

Sem Nome Editora, 2020.

116 p.:

ISBN: 978-65-87771-01-4

1. Literatura brasileira

2. Poemas I. Título
Impresso em papel pólen 80g em dezembro de 2020.

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