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Scriptura

N um a época sem fundamentos,


o resgate do aficerce bíbfico

Joel Beeke
John Armstrong
John MacArthur, )r.
Michael Horton
RC Sproul
Sinclair Ferguson
E outros
Sola Scriptura © 1995, Soli Deo Gloria Publications. Todos os direitos são
reservados.

1* Edição - 2000
3.000 exemplares

Tradução:
Rubens Castilho

Revisão:
Claudete Água de Melo
Flávia Bartkevicius Cruz

Editoração:
Aldair Dutra de Assis

Capa:
Paulo Munhoz

Publicação autorizada pelo Conselho Editorial:


Cláudio Marra (Presidente).
Aproniano Wilson dc Macedo.
Augustus Nicodenius Lopes.
Fernando Hamilton Costa.
Sebastião Bueno Olinto.

CDITORA CULTURA CRISTÃ


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Superintendente: Ha vera Ido Ferreira Vargas


Editor: Cláudio Antônio Batista Marra

impressão e acabamento:
assahi eiállca e editora lida.
índice

Apresentação dos Autores............................................................05

Prefácio..............................................................................................09
Dr. Bruce Bickel

Introdução.........................................................................................11
Reu M ichael H orton

1. O Que Entendemos Por Sola Scriptural·...................................17


jOr. R obert G odfrey

2. Sola Scriptura e a Igreja Primitiva............................................... 35


Rev. Jam es White

3 .0 Estabelecimento da Escritura...............................................65
Dr. R.C. Sproul

4. A Autoridade da Escritura....................... 89
Dr. John A rm strong

5. A Suficiência da Palavra Escrita..............................................129


Dr. John M acArthur, Jr.

6. Escritura e Tradição...................................................................151
Dr. Sinclair Ferguson

7. O Poder Transformador da Escritura................................... 177


Dr. Jo el Beeke e Rev. Ray Fanning

Pós-escrito...................................................................................... 217
Rev. Don K istler
Apresentação dos Autores

Dr. W Robert Godfrey — Presidente do Seminário Teológi­


co Westminster da Califórnia, situado na cidade de Escondi­
do. É também professor de História da Igreja. Possui graus
de bacharel, mestre e doutor da Universidade Stanford, e de
mestre em Divindade do Seminário Teológico Gordon-
Conwell. Ensinou no Seminário Teológico Westminster (tan­
to na Pensilvânia como na Califórnia) por mais de vinte anos.
Foi ordenado ministro na Igreja Cristã Reformada. Colabo­
rou nas seguintes obras: John Calvin: Fíis Influence on the Western
W orld (Calvino e Sua Influência No Mundo Ocidental);
R eform ed Theology in A m erica (A Teologia Reformada na Amé­
rica); e Scripture and Truth (Escritura e Verdade). Foi editor do
W estminster TheologicalJournal por vários anos, sendo atualmente
orador freqüente em conferências cristãs. O Dr. Godfrey é
oriundo da Califórnia. Ele e sua esposa, Mary Ellen, são pais
de William, Mari e Robert.

Rev. James White — Doutor Residente do Colégio de Estudos


Cristãos da Universidade Grand Canyon, no Arizona, o Rev.
White é, também, Professor Adjunto de Grego no Seminário
Teológico Batista Golden Gate. Possui o grau de bacharel em
Bíblia e fez estudos secundários em Grego Bíblico na Univer­
sidade Grand Canyon onde se graduou com distinção. Possui
também o grau de mestre em Teologia do Seminário Teológi­
co Fuller, Pasadena, Califórnia. Ministro batista ordenado, White
é autor de sete livros, incluindo The Fatal Flaw (O Defeito Fa­
tal), A nswers Ιό Catholic Claims (Respostas às Alegações Católi­
cas), Justification by Faith (Justificação Pela Fé), T etters to a M ormon
E lder (Cartas a Um Élder Missionário Mórmon), e The King
Jam es Only Controversy (A Única Controvérsia da Versão King
A

James). Como diretor dos Ministérios Alfa e Omega, um mi­


nistério de apologética cristã sediada em Phoenix, White tem
travado numerosos debates públicos com os principais apolo­
gistas católico-romanos em todo o país sobre assuntos como
sola Scriptura, a Missa, o Papado e a justificação pela fé.

Dr. R.C. Sproul — Fundador e Presidente dos Ministérios


Ligonier de Orlando, Flórida, obteve sua graduação do Semi­
nário Teológico Westminster, na Filadélfia, e também na Uni­
versidade Livre de Amsterdã. Autor prolífico, é ministro orde­
nado na Igreja Presbiteriana da América. Sproul é constante­
mente requisitado como orador e escritor. Escreveu muitos
livros, entre os quais A Santidade de Deus, E leitos de Deus, publi­
cado pela Editora Cultura Cristã, em 1998, A bortion:Λ Rational
Look at an EmotionalIssue (Aborto: Um Exame Racional de Uma
Questão Emotiva), e Knowing Scripture (Conhecendo a Escritu­
ra). Sproul participou da autoria do livro Justification by Faith
ALONE! (Justificação pela Fé Somente!), publicado previa­
mente pela editora Soli Deo Gloria, nos E.U.A.

Dr. John H. A rm strong — D iretor de Reform ation &


Revival Ministries, Inc., Carol Stream, Illinois. Ele é tam­
bém editor do Reform ation & Revival Journal. O Dr.
Armstrong é pregador itinerante e conferencista, além de
autor dos livros Can Fallen Pastors B e R estored? (Podem os
Pastores Caídos Ser Restaurados?), publicação da Moody
Press em 1995, e A V iew o f Rame (Uma Visão de Roma),
publicado pela Moody Press em 1995). Ele editou Roman
C atholicism : E vangelical P rotestants A nalyse W hat U nites & D i­
vides Us (Catolicismo Romano: Protestantes Evangélicos Anali­
sam o Que Nos Une e Divide), publicação da Moody Press
em 1994, e The Coming E vangelical C riús: M odem Challenges to the
A uthority o f Scripture & the G ospel (A Futura Crise Evangélica:
Desafios Modernos à Autoridade da Escritura e ao Evange­
lho), 1996. Ele colaborou em numerosos jornais e revistas,
incluindo Christianity Today, Trinity Journal e The Standard, ten­
do ainda participado como co-autor de Justification by Faith
A TON E! (Justificação pela Fé Somente!).

Dr. John MacArthur — Pastor-educador da Igreja Comuni­


dade da Graça, em Sun Valley, Califórnia. Graduado pelo Se­
minário Teológico Talbot, o Dr. MacArthur pode ser ouvido
diariamente por toda a América do Norte em seu programa
radiofônico “Graça Para Você”. Ele é autor de inúmeros best­
sellers, entre os quais The G ospelA ccording to Jesus (O Evangelho
Segundo Jesus), The V anishing C onscience (A Consciência
Desvanecente), Faith Works (A Fé Funciona), Charismatic Chaos
(Caos Carismático), e seu novo livro sobre discernimento,
Reckless Faith (Fé Irresponsável). O Dr. MacArthur coopera
também como Presidente do Master’s College e do Seminá­
rio do Sul da Califórnia. Foi também um dos co-autores de
Justification by Faith Α ΤΟΝ Ε! (Justificação pela Fé Somente!).

Dr. Sinclair Ferguson — Professor de Teologia Sistemática no


Seminário Teológico Westminster, na Filadélfia, graduou-se na
Universidade de Aberdeen, Escócia, obtendo o grau de M.A.
(Mestre de Artes em Teologia) e o doutorado da mesma insti­
tuição. Desde 1976 o Dr. Ferguson é editor-assistente da Banner
o f Truth Trust. E também autor de numerosos livros, entre eles
Taking the Christian Life Seriously (Assumindo Seriamente a Vida
Cristã), Know Your Christian L ife (Conheça Sua Vida Crista), Grow
in Grace (Cresça na Graça), Discovering God’s W ill (Descobrindo a
Vontade de Deus), A H eartfo r God (Um Coração Para Deus),
Kingdom L ife in a Fallen World (Vida do Reino num Mundo Arru­
inado), e Handle with Care (Manuseie Com Cuidado). O Dr.
Ferguson foi ordenado na Igreja da Escócia e mantém um mi­
nistério universal, pregando e ensinando em igrejas e fazendo
conferências. Ele e sua esposa Dorothy têm quatro filhos.
Dr. Joel R. Beeke — Exerce as seguintes atividades: Pastor da
Congregação Tradicional Reformada da Holanda, em Grand
Rapids, Michigan; Presidente e Professor de Teologia Sistemá­
tica no Seminário Teológico Reformado Puritano; editor do
b an ner o f Sovereign Grace Truth·, Presidente da Reformation
Heritage Books; Presidente da Inheritance Publishers; Vice-Pre-
sidente da Sociedade de Tradução Holandesa Reformada; e ati­
vidade pastoral por meio do rádio para a Europa e América
Latina. Obteve o Ph.D. em Teologia da Reforma e da Pós-Re-
forma no Seminário Teológico Westminster, na Filadélfia, onde
atua como preletor e professor adjunto de Teologia. E autor de
A ssurance o f Faith: Calvin, English Puritanism, and The Dutch Second
Rtformation (Certeza da Fé: Calvino, Puritanismo Inglês e Segun­
da Reforma Holandesa), bem como vários outros livros e nu­
merosos artigos. Ele é freqüentemente solicitado a fazer pales­
tras em seminários e falar sobre a Reforma na América do Nor­
te e pelo mundo. Ele e sua esposa, Mary, são pais de três filhos.
O Dr. Beeke foi um dos autores que colaboraram no livro
Justification by Faith ALONE! (Justificação pela Fé Somente!).

Rev. Ray B. Lanning — Pastor da Igreja Reformada Indepen­


dente de Cuderville, em Grand Rapids, Michigan. E gradua­
do no Seminário Teológico Westminster e realizou trabalho
para graduação no Seminário Teológico Calvino. Ordenado
ministro em 1977, tem servido em igrejas presbiterianas e
reformadas em várias partes dos Estados Unidos e Canadá.
Com sua esposa, Linda, tem quatro filhos.
Prefácio

O Cristianismo fundamenta-se na revelação. Se Deus, em


sua soberana majestade, tivesse decidido não se revelar aos se­
res humanos, não teríamos conhecimento sobre ele nem a pos­
sibilidade de um real relacionamento com ele. Nosso conheci­
mento de Deus abrange aquilo que lhe aprouve revelar-nos a
respeito de sua Pessoa. Todos os esforços humanos destina­
dos a conhecê-lo levam a falsas religiões ou misticismos. Con-
seqüentemente, a questão básica que determina nosso relacio­
namento com Deus é a submissão, seja à sua revelação ou à
nossa imaginação, A primeira requer que acreditemos em uma
influência sobre nossa mente, que deve ser submissa à verdade
do Revelador. A segunda depende do conjunto de proposi­
ções, teses e tradições: uma mescla de Filosofia, Psicologia e
Teologia — artifício “filopsicoteológico”. Sob tal atmosfera,
as palavras da revelação divina jamais conterão os sentidos a
elas designados pelo Espírito Santo, antes afirmarão os misté­
rios das religiões ou idolatrias criadas pelo homem.
A doutrina protestante histórica da sola Scriptura— somente
a Escritura — afirma que Deus tem um plano eterno para tor­
nar conhecidos os mistérios do evangelho, os quais ele deseja
que compreendamos. Assim, a teologia protestante (doutrinas a
respeito de Deus) decorre do ato da vontade divina, por meio
da qual ele deseja tornar conhecida para nós a verdade consu­
mada em suas palavras ou obras, conforme reveladas em Cristo.
“N inguém jam ais mu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é
quem o reveloiT (Jo 1.18). A revelação divina de sua mente e von­
tade, que temos na sola Scriptura, depende da revelação do pró­
prio Deus. Um exemplo do misericordioso favor de Deus para
com a humanidade caída foi a sua vontade de que todo conhe­
cimento necessário para um relacionamento com ele e para a sua
correta adoração deva ser proporcionado p or ele. Se assim não
fosse, tropeçaríamos em razão da nossa própria cegueira. É para
a revelação da mente divina expressa na sola Scriptura que todos
os nossos pensamentos e toda a doutrina, nossa adoração e
obediência a ele, devem sempre estar conformes.
É por essa razão que esta obra foi publicada. O espírito de
nossa época levaria a igreja a desconsiderar esse assunto em
favor da unidade. A unidade bíblica deve basear-se na verdade
bíblica, não em intenções humanas. O exemplo da unidade que
temos na Escritura é a Trindade, que está em plena concordân­
cia a respeito de todas as coisas! Com muita freqüência, o que
passa por unidade é, na verdade, concessão. E melhor estar­
mos divididos pela verdade do que unidos no erro.
E também por causa do nosso amor pela igreja que produzi­
mos este livro. O amor, o verdadeiro amor, não pode estar divor­
ciado da verdade. A Escritura é bem clara ao afirmar que o amor
“regozija-se com a verdade”! Não se pode professar amor quan­
do não há preocupação com a verdade. A verdade da Escritura
deve ser predominante para quem ama verdadeiramente. Numa
época em que a autoridade absoluta da Escritura tem sido
desconsiderada para favorecer acordos em prejuízo de diferenças
doutrinais, devemos ser lembrados de que, para haver real unida­
de entre cristãos, devemos basear-nos na verdade inalterável do
Evangelho de Jesus Cristo contido unicamente nas Escrituras.
Uma consciência que se identifica com a Palavra de Deus
é uma força à qual nenhuma nação, sistema ou época pode
resistir. É nosso desejo conclamar o povo de Deus de volta a
uma posição de poder — o poder da sola Scriptura.

Dr. Bruce Bickel


Presidente do Conselho Diretor
da Editora Soli Deo Gloria

Mr. John Bishop Rev. Don Kistler


A nnapolis, M D Pittsburgh, PA
Mr. Peter Neumeier Rev. Lance Quinn
A tlanta, GA Sun Valley, CA
Introdução

Era um tempo de prosperidade e conforto, a paz reinaria


nas fronteiras costumeiramente alvoroçadas, uma vez que as
nações vizinhas, que haviam construído impérios ameaçado­
res, entraram em decadência interna e letárgica. Atraído pe­
los ídolos das nações, o povo de Deus caiu novamente na
idolatria, e essa corrosão moral levou-o a abismos inacreditá­
veis de injustiça social e imoralidade. Embora as igrejas esti­
vessem cheias e, de acordo com os relatos, a adoração fosse
fervorosa, Deus não estava satisfeito. Cerca de oitocentos anos
antes do nascimento de Cristo, Amós — um cidadão “pau
para toda obra” (pastor de ovelhas, colhedor de figos e
tangedor de bois) — foi chamado por Deus para cuidar do
seu rebanho espiritual, cuja condição de vida satisfeita consi­
go mesma tinha-o levado à apostasia. “E is que vêm dias, di% o
SENHOR Deus, em que enviareifom e sobre a terra, não de pão, nem
sede de água, mas de oumr as palavras do SEN H OR A ndarão de
m ar a m ar e do N orte até ao O riente; correrão p o r toda parte, procuran­
do a palavra do SEN HOR e não a acharão” (Amós 8.11,12).
A Palavra de Deus era o centro da vida de Israel, como
tinha sido desde a própria Criação: “D isse D eus: H aja lu%” E a
própria elocução divina que cria o universo e preserva-o ao
longo da História. E sua Palavra que prometeu abençoar Adão
e sua posteridade pela obediência e advertiu-o de maldição
por quebrar o pacto solene. Aquela mesma palavra anunciou
o julgamento por transgressão e, depois, justificação por meio
do Messias que viria. Pela fé naquele prometido, por sua Pa­
lavra vinda do alto, o condenado podería ser redimido e re­
conciliado com Deus. A expressão direta de seu próprio ca­
ráter e vontade, a Palavra de Deus não podia ser distinguida
— muito menos separada — do próprio Deus. Seu povo
nunca concebeu tais expressões pronunciadas como simples
reflexões da humanidade em sua indagação espiritual, porém
nunca soube que a fala de Deus era equivalente a sua pessoa.
Sua Palavra, tanto ao emitir uma ordem ou fazer uma pro­
messa, não era somente a última palavra, mas a primeira pala­
vra e todas as palavras de permeio, em todas as questões refe­
rentes à doutrina e à vida cristã.
Entretanto, nós, pecadores decaídos, somos pessoas cria­
tivas. Não gostamos que nos digam lá de cima no que deve­
mos crer e como devemos nos conduzir nesta vida. “Fiz do
meu modo” exprimia o sentimento do coração humano re­
belde. Israel procurou adorar a Deus à sua própria maneira,
de sorte que satisfizesse suas necessidades de adorador. Ou­
tras “palavras” eram adicionadas, de modo a desviá-lo do cla­
ro e simples ensinamento da Escritura, e muito embora esse
caminho sempre o levasse ao castigo divino por meio de exí­
lios, o povo jamais pareceu aprender suas lições sobre acrésci­
mos à Escritura (legalismo) ou subtrações dela (antinomianis-
mo). Mas a Palavra de Deus é o que é, admitamos ou não. Em
caso de a rejeitarmos, a Palavra de Deus julga-nos de qualquer
maneira. Se, ao contrário, a aceitarmos, ela anuncia sua pro­
messa salvífica de vida eterna em Cristo. Ao longo da literatura
profética, notamos um tema comum: os falsos profetas dizem
ao povo o que ele deseja ouvir, batiza seu ensino com o nome
de Deus e apresenta-o como a última palavra para o seu povo.
Como ocorreu nos dias dos juizes, reis e profetas, assim é
em nossos dias: Há fome na terra pela Palavra de Deus. Fal­
sos profetas proliferam prometendo “paz, paz, quando não
há paz”, enquanto o pastor da fazenda é substituído pelo pro­
prietário, e o pastor da Palavra é trocado pelo empresário-
terapeuta-treinador-ator.
Como Israel, desejoso de experimentar Deus, porém em
seus próprios termos, a igreja medieval preferiu a idolatria
como adoração verdadeira e confiou em formas visuais cria­
das pela imaginação humana, quando deveria ter sido susten­
tada pela Palavra escrita e falada. Em nossa própria época,
vemo-nos também imersos em cultura visual, na qual as pala­
vras geralmente são, ao mesmo tempo, desimportantes e vis­
tas com crescente cinismo. Refletindo a atitude contemporâ­
nea tanto nas escolas como na cultura popular, um grupo de
música p op canta: “Para que servem as palavras?”
Entretanto, o Cristianismo é uma religião de palavras, uma
religião do Livro. Como os reformadores, não devemos nos
acomodar a uma cultura visual e experimentalmente orienta­
da para o interesse do sucesso mercadológico; devemos, sim,
investir todas as nossas energias em uma comunidade centra­
lizada na palavra, por mais descompassados que estejamos
em relação à sociedade. Os reformadores insistiram que a
Escritura não somente tem a última palavra, como é também
o princípio form a l de tudo o que cremos sobre doutrina e con­
duta. Isto é, ela delineia e forma nossa fé. Não significa sim­
plesmente desconsiderar essencialmente as definições secu­
lares da realidade emprestadas da psicologia, do comércio, da
sociologia, da política e dos setores correlatos. Antes, é mais
provavelmente subverter nossas pressuposições. Nesse aspec­
to, os reformadores distinguiam entre “coisas celestiais” e
“coisas terrenas”. No âmbito destas últimas, inclusive ciên­
cia, arte e filosofia, os descrentes podiam contribuir para o
avanço do conhecimento e da experiência. Afinal, A Escritu­
ra não está interessada em dizer-nos todas as coisas sobre
tudo, e o mundo de Deus está aberto à investigação de todos.
Mas as realidades transcendentes do caráter de Deus, suas
ordens e sua obra salvadora, não estão disponíveis ao filóso­
fo, cientista, artista ou terapeuta. A sabedoria secular pode
nos levar à verdade sobre a revolução dos planetas, mas não
pode explicar a natureza de Deus, o eu, a culpa e a redenção.
Ela não pode nos levar à verdade acerca de como somos sal­
vos da ira de Deus, pois recusa-se a crer que isso seja sequer
uma realidade para início de conversa. “A palavra da cruz é
loucura para os que se perdem”, disse o apóstolo Paulo, por­
que ela não se amolda às perguntas — muito menos às res­
postas — da sabedoria secular.
Mas, em nosso tempo, pregar não pode ser loucura. Deve
ser “relevante” — palavra que aplicamos ao mercado para sig­
nificar esforço de convencimento sobre o comprador-alvo. Em
contraste, a mensagem da cruz faz supor o terror da Lei, a ira
divina sobre os pecadores (e não apenas seus pecados) e a ne­
cessidade de um sacrifício substitutivo para aplacar a justiça
divina. Ela estabelece que o maior problema enfrentado pela
humanidade é o pecado original e o presente — rebeldia pes­
soal contra um Deus santo— e não tensão nervosa, baixa auto-
estima e fracasso em realizar o pleno potencial do indivíduo.
Com todos esses desafios — uma sociedade visualmente
orientada e o consumismo forçado — surgiu outra necessi­
dade da Palavra de Deus na terra. Sua Lei, constituída de to­
dos os mandamentos e advertências da Bíblia por violação da
santidade divina, reduziu-se a princípios úteis para o bem-
estar pessoal, de modo que o indivíduo pode sentir-se insa­
tisfeito, nunca, porém, condenado. Seu evangelho, que con­
tém todas as promessas bíblicas de salvação para os pecado­
res em virtude da vida, morte, ressurreição e dos atributos
salvíficos perfeitos de Cristo, tem sido, de igual modo, redu­
zido a um lugar-comum. Resumindo, a Palavra de Deus tem
sido substituída por palavras humanas, não somente nas igre­
jas tradicionais, mas também dentro do atual movimento evan­
gélico. Esquecemo-nos, ao que parece, que a Palavra cria vida
e é a fonte de crescimento e amadurecimento da igreja.
Devemos não somente restabelecer o compromisso ofi­
cial da suficiência da Escritura; ela deve ser a única voz a ou­
virmos daqueles que assumem a importante tarefa de porta-
vozes de Deus. E os porta-vozes de Deus devem insistir nes­
se ponto. Embora este livro tenha em mente a visão da Igreja
Católica a respeito da Escritura, quando endossa a posição
do Protestantismo, é o Protestantismo que este livro está ten­
tando visar, tanto quanto Roma! Este livro lamenta que Roma
seja tão intransigente em seu erro, mas, ao mesmo tempo,
que o Protestantismo seja tão inerte em sua aquiescência! Não
é justo que as muralhas da cidade estejam sendo atacadas,
apesar de parecer que a Igreja Protestante tenha jogado a chave
da cidade aos invasores!
Mas este livro não é tão-somente uma lamentação; é um
passo adiante. Aqui a posição protestante é atestada majes­
tosamente; aqui a Escritura é exaltada. Este livro procura ava­
liar a situação presente com a idéia de conclamar os pastores
de Israel a ouvirem novamente a voz de Deus e torná-la clara
a uma nova geração. Consumada em Cristo, possa a profecia
de Amós receber nova importância neste nosso tempo: “N a­
quele dia, levantarei o tabernaculo caído de Davi, repararei as suas
brechas; e, levantando-o das suas ruínas, restaurá-lo-ei como fo ra nos
dias da antiguidade;para quepossuam o restante de Edom e todas as nações
que são chamadaspelo meu nome, d f o SENHOR, quefatç estas cornai'
(Amós 9.11,12), Oremos ao Senhor da seara para aliviar-nos
dessa fome, e por fartura espiritual nos anos vindouros!

Michael Horton
Dezembro 1995
O Que Entendemos Por
Sola Scriptura ?

Dr. 'R obert G odfrey

Há duas questões principais que dividem os protestantes


católicos dos católicos romanos. Os dois grupos afirmam ser
católicos, isto é, derivam da igreja apostólica e universal de Je­
sus Cristo. Os católicos romanos crêem que nós, protestantes,
afastamo-nos da igreja no século XVI. Os protestantes católi­
cos crêem que os católicos romanos afastaram-se antes.
O tema deste capítulo de abertura é um dos aspectos que
ainda nos dividem: a fonte da verdade religiosa para o povo
de Deus. (Outro importante aspecto, o de como o homem é
feito justo perante Deus, foi abordado no livro Justification by
Faith A LON E! [Justificação pela Fé Somente!], publicado pela
editora Soli Deo Gloria, em 1995.) Como protestantes, sus­
tentamos que somente a Escritura é nossa autoridade. Nos­
sos opositores romanos afirmam que a Escritura por si mes­
ma é insuficiente como autoridade do povo de Deus, e que a
tradição e a autoridade de ensino da igreja devem ser acres­
centadas à Escritura.
Este é um tema solene. Não é tempo para brincadeiras.
Devemos buscar a verdade. Deus declarou que, se alguém fi­
zer qualquer acréscimo à sua Palavra, ou tirar qualquer coisa
dela, está sujeito à maldição. A igreja romana tem declarado
que nós, protestantes, somos malditos (anatematizados) por
subtrairmos a Palavra de Deus oriunda da tradição. Os protes­
tantes têm afirmado que a igreja romana é uma igreja falsa por
introduzir tradições humanas na Palavra de Deus. A despeito
dos sinceros debates por eminentes apologistas há cerca de
quinhentos anos, as diferenças permanecem basicamente como
eram no século XVI. Não diremos muita novidade nessa ex­
posição, mas devemos continuar reiterando a verdade.
Apesar da dificuldade de tal incumbência, estou ansioso
para associar-me a esse elenco de apologistas protestantes na
defesa da doutrina de que somente a Escritura é a nossa au­
toridade religiosa definitiva. Estou convicto de que se pode
demonstrar que essa é a nítida posição da própria Escritura.
E espero, pela graça de Deus, que aqueles que se alinham
com a doutrina romana da tradição cheguem à constatação
do trágico erro de denegrir a suficiência e evidência da Pala­
vra inspirada pelo próprio Deus.
Permita-me iniciar com alguns esclarecimentos no intuito
de evitar que venha a ser malcompreendido. Não estou argu­
mentando que toda verdade deve ser encontrada na Bíblia,
ou que a Bíblia seja a única forma pela qual a verdade de
Deus é comunicada a seu povo. Não estou afirmando que
cada versículo da Bíblia seja igualmente compreendido por
todos os leitores. Tampouco estou defendendo que a igreja
— tanto o povo de Deus como o ofício ministerial — não
seja de grande valor e ajuda para a compreensão da Escritura.
Como afirmou William Whitaker em sua valiosa obra: “Afir­
mamos também que a igreja é intérprete da Escritura, e que o
dom de interpretação reside somente na igreja; negamos, po­
rém, que ela pertença a pessoas em particular, ou esteja vincu­
lada a qualquer autoridade isolada ou por herança de homens.”1
A posição protestante, e minha posição, é que todas as
coisas necessárias à salvação e concernentes à fé e à vida são
ensinadas na Bíblia com suficiente clareza para que o crente
comum as encontre e compreenda.
A posição que estou defendendo é certamente a que está
contida na Bíblia. Por exemplo, Deuteronomio 31.9 declara:
“E sta lei, escreveu-a M oisés...” Moisés instruiu os israelitas es­
crevendo a lei e, em seguida, ordenou que ela fosse lida a eles,
“para que ouçam, e aprendam, e temam o SENHOR, vosso Deus, e
cuidem de cum prir todas as palavras desta leP (Dt 31.12). Moisés
anunciou a todo Israel: “A plicai o coração a todas aspalavras que,
hoje, testifico entre vós, para que ordeneis a vossosfilh o s que cuidem de
cum prir todas as palavras desta lei. Porque esta palavra não épa ra vós
outros cousa vã; antes, ê a vossa vid d ’ (Dt 32.46,47).
Notemos os claros elementos dessas passagens:
1. A Palavra de que Moisés falou era escrita.
2. O povo podia e devia ouvi-la e aprendê-la.
3. Nessa Palavra o povo pode encontrar vida.
O povo não precisa de qualquer instituição adicional para
interpretar a Palavra. Os sacerdotes, profetas e escribas de
Israel certamente agiam para ajudar o povo ministerialmente.
Mas a Palavra, por si só, era suficiente para a salvação. Os
profetas, que eram inegavelmente inspirados, vieram com
certeza no espírito de Miquéias, que disse: “E le te declarou, ó
homem, o que é bom” (Mq 6.8). A função dos profetas e sacer­
dotes não era a de acrescentar algo à lei ou mesmo esclarecê-
la; antes, aplicavam-na às pessoas que eram pecaminosamen-
te indiferentes.
Se esse princípio da suficiência e clareza da Palavra é ver­
dadeiro no Antigo Testamento, podemos admitir que ele é
ainda mais verdadeiro no Novo. Este cumpre gloriosamente
o que o Antigo promete. Mas nem precisamos admiti-lo, pois
o próprio Novo Testamento evidencia que o caráter da Es­
critura é ser suficiente e clara. Encontramos um exemplo dis­
so em 2 Timóteo capítulos 3-4. Aqui Paulo escreve a seu jo­
vem irmão na fé, Timóteo, que fora instruído na fé por sua
mãe e sua avó, tendo ainda aprendido tudo a respeito do en­
sino paulino (3.10). Ele foi extensamente auxiliado mediante
todo tipo de ensino verbal, alguns dos quais sobre o aposto-
lado. Entretanto, Paulo escreve-lhe estas palavras:
Ora, todos quantos querem viver piedosamente em Cristo Jesus
serão perseguidos. M as os homens perversos e impostores irão de
m al a pior, enganando e sendo enganados. Tu, porém , perm anece
naquilo que aprendeste e de que fo ste inteirado, sabendo de quem
o aprendeste. E que, desde a infância, sabes as sagradas letras,
que podem tornar-te sábio para a salvação p ela fé em Cristo Jesus.
Toda a Escritura é inspirada p o r Deus e útilpara o ensino, para
a repreensão, para a com ção, para a educação najustiça, a fim de
que o homem de Deus seja perfeito e peifeitam ente habilitado para
toda boa obra. Conjuro-te, perante Deus e Cristo Jesus, que há de
ju lga r vivos e mortos, pela sua manifestação e pelo seu reino: prega
a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repreende,
exorta com toda a longanimidade e doutrina. Pois haverá tempo
em que não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, cercar-se-ão
de m estres segundo as suas próprias cobiças, como que sentindo
coceira nos ouvidos; e se recusarão a dar ouvidos ã verdade, entre-
gando-se às fábulas. Tu, porém , sê sóbrio em todas as cousas,
suporta as aflições, fa%e o trabalho de um evangelista, cumpre
cabalmente o teu ministério (2Tm 3.12-4.5).

Note o leitor que Paulo recorda a Timóteo que as Escri­


turas são aptas para fazê-lo sábio para a salvação em Cristo
Jesus (3.15). Ele lhe ensina que as Escrituras são úteis para o
ensino e repreensão, corrigindo e habilitando para a educa­
ção na justiça (3.16). Porque as Escrituras têm esse caráter,
elas habilitam plenamente o homem de Deus para toda boa
obra (3.17). Por isso, Paulo insta Timóteo a pregar essa Pala­
vra, muito embora se aproxime o tempo em que os que a
ouvirem não a aceitarão, antes buscarão mestres de acordo
com sua própria conveniência, sendo instruídos em mitos em
vez da verdade da Palavra (4.1-4).
A força e clareza do ensino do apóstolo são admiráveis. A
despeito do ensino verbal que Timóteo recebeu, cumpre-lhe
pregar as Escrituras porque elas proporcionam-lhe claramente
tudo quanto ele necessita para obter sabedoria e preparação
para instruir o povo de Deus na fé e em toda boa obra. A
Escritura torna-o sábio para a salvação e garante-lhe todas as
coisas necessárias para capacitá-lo a fazer toda a boa obra
requerida do pregador de Deus. A suficiência e clareza da
Palavra são ensinadas reiteradamente nesse trecho da Escri­
tura. João Crisóstomo parafraseou o significado das palavras
de Paulo a Timóteo desta forma: “Você tem a Escritura por
mestre, e não eu; a partir de agora você pode aprender qual­
quer coisa que deseje conhecer.”2
Tenho ouvido vários debates gravados em fita sobre esse
assunto. Os debatedores protestantes freqüentemente têm
citado 2 Timóteo capítulo 3 contra os opositores romanos. A
resposta costumeira dos apologistas católicos é afirmar repe­
tidamente que 2 Timóteo 3 não ensina a suficiência. Algumas
vezes eles se referem a Tiago 1.4, Mateus 19.21, ou Colossenses
1.28 e 4.12 como textos paralelos, alegando que a palavra
“perfeito” em 2 Timóteo 3.17 não tem o sentido de suficien­
te. Tais passagens, entretanto, não são paralelas; uma palavra
grega completamente diferente é usada. Onde 2 Timóteo 3.17
usa exarti^p, que corresponde a ser adequado para uma tarefa,
essas outras passagens usam a palavra grega teleios, que se re­
fere à maturidade ou ter alcançado um fim desejado.
Afirmações repetidas não provam uma proposição; isso é
somente uma técnica da propaganda. Nossos opositores pre­
cisam retrucar de forma responsável e completa. ·
A confiança que Paulo tinha nas Escrituras, e que ensinou
a Timóteo, foi claramente compreendida pelo grande pai da
igreja, Agostinho. Em seu tratado de preparação de líderes
da igreja, de acordo com a compreensão bíblica (Da D outrina
Cristã), escreveu: “Entre as coisas que são ditas abertamente
na Escritura devem ser encontrados todos esses ensinos que
envolvem a fé, os hábitos de vida, a esperança e a caridade
que temos discutido.”3
Não deve surpreender-nos que o apóstolo Paulo, o A n­
tigo Testamento e o maior mestre da igreja antiga se manti­
vessem adeptos da suficiência e clareza da Escritura. Foi a
posição que Jesus tomou em um dos momentos mais impor­
tantes de sua vida. No começo de seu ministério público, Je­
sus enfrentou a tentação do Diabo no deserto. Ele a enfren­
tou como Filho de Deus, mas também como o segundo Adão
e o verdadeiro Israel. E como ele enfrentou a tentação? Ele
não recorreu à tradição de Israel; não apelou para a autorida­
de dos rabinos ou do sinédrio; nem mesmo apelou à sua pró­
pria divindade ou à ajuda do Espírito Santo. Diante da tenta­
ção, nosso Salvador apoiou-se três vezes nas Escrituras. “Está
escrito”, ele disse.
As Escrituras fizeram-no sábio; elas o equiparam para toda
boa obra. Elas foram claras, de tal modo que até mesmo o
Maligno as conhecia. Quando o Diabo citou a Escritura, Je­
sus não recorreu a outra autoridade. Antes, afirmou: “Tam­
bém está escrito.”
Enquanto Satanás ou seus representantes distorcem a Bí­
blia, ou insinuam que ela não é clara, Jesus nos ensina a olhar­
mos com mais profundidade para a Palavra escrita, e jamais
afastarmo-nos dela.
Os debatedores romanos tentam convencer-nos de que es­
ses textos da Escritura não traduzem daramente o que afirmam.
Permita-me antecipar alguns de seus argumentos e prepará-lo
para algumas das maneiras em que eles tendem a responder.
1. A Palavra de Deus. Primeiro, eles procurarão dizer que
a frase “Palavra de Deus” pode significar mais do que apenas
a Bíblia. Já o admiti. A questão diante de nós é se, hoje, alguma
outra coisa, além das Escrituras, é necessária para o conheci­
m ento da verdade de Deus para a salvação. Os textos
escriturísticos que citei mostram que nada mais é necessário.
Nossos opositores não predsam mostrar que Paulo se refere
à sua pregação, tanto quanto aos seus ensinos como Palavra
de Deus; mas precisam mostrar que Paulo ensinou que as
instruções orais dos apóstolos seriam necessárias para suple­
mentar as Escrituras para a igreja no decurso das épocas. Eles
não podem mostrar isso porque Paulo não ensinou isso, e as
Escrituras como um todo tampouco o ensinam.
2. Tradição. Nossos oponentes romanos, ao passo que
valorizam a tradição, nunca a definirão realmente ou dirão
qual é o seu conteúdo. Tradição é uma palavra que pode ser
usada com vários sentidos. Ela pode referir-se a uma certa
escola de compreensão das Escrituras, tais como a tradição
luterana. Pode referir-se a tradições — provavelmente dos
apóstolos — que não se encontram na Bíblia. Ela pode refe-
rir-se a tradições desenvolvidas ao longo da história eclesiás­
tica, as quais não são nitidamente de origem antiga. Geral­
mente, entre os antigos pais da igreja, a palavra “tradição”
refere-se à interpretação padrão da Bíblia entre eles. E nós,
protestantes, valorizamos tais tradições.
Na realidade, porém, o que os apologistas romanos que­
rem dizer quando declaram a autoridade da tradição? Histo­
ricamente, eles não são concordes acerca da natureza e con­
teúdo da tradição. Por exemplo, um diz que a tradição nada
acrescenta à Escritura. Porém, quase todos os apologistas
romanos, por mais de trezentos anos após o Concilio de
Trento, argumentam que a tradição é realmente acrescida às
Escrituras. Alguns apologistas romanos crêem que todo o
conjunto da tradição foi ensinado pelos apóstolos, enquanto
outros que a tradição evolve e desenvolve-se ao longo dos
séculos da igreja, de sorte que há tradições necessárias para a
salvação que nunca foram conhecidas dos apóstolos. E im ­
possível conhecer a real posição romana sobre esse ponto.
O Segundo Concilio Vaticano expressou-se com delibe­
rada ambigüidade: “Essa tradição que vem dos apóstolos de-
senvolve-se na igreja com a ajuda do Espírito Santo. Porquanto
há um desenvolvimento na compreensão das realidades, as
quais nos têm sido legadas.... Pois, à medida que os séculos
transcorrem, a igreja avança continuamente para a plenitude
da verdade divina, até que as palavras de Deus alcancem seu
cumprimento total nela [igreja].”4O que isso significa? Certa­
mente, não nos traz qualquer compreensão clara do caráter
ou conteúdo da tradição.
Como de costume, Roma tenta esclarecer sua posição ao
declarar que sua autoridade está na Escritura, na tradição e na
igreja, simultaneamente. O Vaticano II declarou: “É claro,
portanto, que a Tradição Sagrada, a Escritura Sagrada e o
ensino da autoridade da igreja, de acordo com o desígnio mais
sábio de Deus, estão de tal forma unidos entre si que um não
pode permanecer sem os outros, e que todos, em conjunto e
cada um de sua própria maneira, sob a ação do Espírito San­
to, contribuem eficazmente para a salvação de almas.”5
Na verdade, porém, se observarmos cuidadosamente, no­
taremos que a verdadeira autoridade de Roma não é nem a
Escritura nem a tradição, e sim a igreja. O que é a Escritura e
o que ela ensina? Somente a igreja pode dizê-lo. Como o teó­
logo romano João Eck disse — “As Escrituras não são autên­
ticas, a não ser pela autoridade da igreja”.6 Como o Papa Pio
IX disse por ocasião do Primeiro Concilio Vaticano, em 1870
— “Eu sou a tradição”.7 A arrogância opressora de tal mani­
festação é surpreendente, mas confirma nossa alegação de que,
para Roma, a única autoridade verdadeira é a igreja: sola ecclesia.
Então o Protestantismo levantou-se no século XVI em
reação a tais alegações e ensinos da igreja de Roma. Na Idade
Média, a maioria dentro da igreja acreditava que a Bíblia e a
tradição da igreja ensinavam as mesmas doutrinas, ou eram
pelo menos complementares. Entretanto, quando Lutero e
outros estudaram a Bíblia com cuidado e aprofundamento
maiores do que a igreja fizera durante séculos, começaram a
descobrir que a tradição, na realidade, contradizia a Bíblia.
Descobriram, por exemplo, que:
(1) A Bíblia ensina que o ofício de bispo e presbítero é
igual para ambos (Tt 1.5-7), mas a tradição diz que são ofícios
diferentes.
(2) A Bíblia ensina que todos pecaram, exceto Jesus (Rm
3.10-12; Hb 4.15), mas a tradição afirma que Maria, mãe de
Jesus, era sem pecado.
(3) A Bíblia ensina que Cristo ofereceu seu sacrifício de
uma vez por todas (Hb 7.27, 9.28,10.10), mas a tradição re­
pete o sacrifício de Cristo por meio do sacerdote na missa,
sobre o altar.
(4) A Bíblia ensina que não devemos nos inclinar diante
de imagens ou estátuas (Ex 20.4,5), mas a tradição defende a
idéia de que devemos nos curvar diante delas.
(5) A Bíblia ensina que todos os cristãos são santos e sa­
cerdotes (Ef 1.1; lPe 2.9), mas a tradição sustenta que os
santos e sacerdotes pertencem a uma classe dentro da comu­
nidade cristã.
(6) A Bíblia ensina que Jesus é o único Mediador entre
Deus e o homem (lTm 2.5), porém a tradição afirma que
Maria é co-mediadora com Cristo.
(7) A Bíblia ensina que todos os cristãos devem saber que
têm vida eterna (ljo 5.13), mas a tradição diz que os cristãos
não podem e não devem saber que têm vida eterna.
Os reformadores notaram que as palavras de Jesus aos
fariseus aplicavam-se igualmente à sua época: “invalidastes a
palavra de Deus, p o r causa da vossa tradição” (Mt 15.6).
Os reformadores também descobriram que a tradição se
contradiz. Por exemplo, a tradição da igreja romana ensina
que o papa é a cabeça da igreja, um bispo sobre bispos. Mas
Gregório o Grande, papa e santo no final do período da igre­
ja antiga, disse que tal ensino veio do espírito do Anticristo
(“Afirm o confiante que qualquer que se intitular sacerdos
universalis, ou desejar ser assim chamado por outrem é, em
seu orgulho, um precursor do Anticristo”).8
Mais diretamente relacionado à nossa discussão é a evi­
dente tensão na tradição acerca do valor de ler a Bíblia. The
Index o f Forbidden Books (índice dos Livros Proibidos) do Papa
Pio IV, em 1559, declarava:

Uma vez que a experiência ensina que, se a leitura da


Bíblia Sagrada na língua vernácula é geralmente permiti­
da sem discriminação, mais prejuízo do que vantagem
resultará por causa da ousadia dos homens, o julgamen­
to dos bispos e inquisitores deve servir como orientação
neste caso. Os bispos e inquisitores podem, de acordo
com o conselho do sacerdote e confessor local, permitir
traduções católicas da Bíblia para serem lidas por aque­
les que se convencerem de que tal leitura não causará
prejuízo, mas sim aumento da fé e da devoção. A per­
missão deve ser dada por escrito. Qualquer pessoa que
leia ou tenha uma tradução em seu poder sem esta per­
missão, não poderá ser absolvido de seus pecados até
que devolva essa Bíblia [ao superior].9

Em marcante contraste, o Vaticano II afirma: “Fácil aces­


so à Escritura Sagrada deve ser proporcionado a todo cristão
fiel... Uma vez que a palavra de Deus deve estar disponível em
todos os tempos, a igreja, com cuidado materno, olha favora­
velmente que traduções apropriadas e corretas sejam feitas
em diferentes idiomas, especialmente de textos originais dos
livros sagrados.”10A tradição acredita que a Bíblia é perigosa
ou útil? A Bíblia provou-se perigosa no século XVI; muitos
que a leram cuidadosamente tornaram-se protestantes!
Tais descobertas sobre a tradição levaram os reformado­
res de volta para a Bíblia. Ali aprenderam eles que as Escritu­
ras devem permanecer como juiz de todo ensino. A Escritu­
ra ensina que ela é a revelação de Deus, sendo, portanto, ver­
dadeira em tudo o que ensina. Entretanto, em lugar algum a
Escritura diz que a igreja é verdadeira em tudo o que anuncia.
Antes, embora a igreja como um todo seja preservada na fé,
lobos surgirão no seu seio (At 20.29,30), e até mesmo o ho­
mem da ilegalidade sentar-se-á no meio da igreja ensinando
mentiras (2Ts 2.4).
3. Isso leva-nos à nossa terceira preocupação, a igreja e o
cânon [ensinos sagrados]. Nossos oponentes romanos usa­
rão repetidamente a palavra “igreja”. Aqueles de nós que são
protestantes estarão normalmente inclinados a interpretar o
uso da palavra “igreja” como referindo-se ao corpo dos fiéis.
Mas esse não é o modo como eles caracteristicamente usam a
palavra. Quando se referem à autoridade da igreja, querem
significar o ensino infalível da autoridade de concílios e pa­
pas. Trazem essa visão da igreja da Idade Média e, de modo
romântico, retrocedem ao período da igreja iniciante. Portan­
to, observe com muito cuidado como eles usam a palavra
“igreja”. E lembre-se de que nem as Escrituras, nem a grande
maioria dos pais daquela antiga igreja, entendem a autoridade
da igreja da maneira como eles o fazem.
Permita-me apresentar como ilustração dois exemplos da
obra de Agostinho, freqüentemente citado contra a posição
protestante sobre a questão da autoridade da igreja. Em um
ponto de seu debate com os pelagianos, um bispo de Roma
apoiou Agostinho, e Agostinho declarou: “Roma falou, o as­
sunto está decidido.” Mais tarde, porém, outro papa se opôs
a Agostinho sobre esse caso, e Agostinho respondeu dizen­
do: “Cristo falou, o assunto está decidido.” Agostinho não se
curvou à autoridade do bispo de Roma, mas apegou-se à pa­
lavra de Cristo para avaliar o ensino de Roma.
O utra afirm ação de A gostinho, m uito citada pelos
apologistas romanos, diz: “Eu não teria crido, se a autoridade
da igreja católica não me persuadisse.” Isso parece muito forte
e claro. Mas, em outro lugar, Agostinho escreveu: “Eu nunca
teria entendido Plotinus, se a autoridade de meus mestres
neoplatônicos não me convencesse.” Esse paralelo mostra que
Agostinho não está falando sobre uma autoridade absoluta, in­
falível da igreja, e sim sobre a obra ministerial da igreja e sobre
professores que ajudaram os estudantes a compreenderem.
Vejamos a igreja um pouco mais levantando um proble­
ma relacionado: o cânon da Escritura. Os romanistas tenta­
rão evidenciar muito a questão do cânon. Eles dirão que a
Bíblia sozinha não pode ser a autoridade, porque a Bíblia não
nos diz quantos livros estão contidos nela. Eles argumentarão
que a igreja deve nos dizer que livros devem estar na Bíblia.
Quando eles afirmam que a igreja nos diz, eles querem sugerir
que os papas e os concílios devem nos dizer. Isso significa que
não tínhamos uma Bíblia até que o Papa Dâmaso I apresentas­
se uma lista do cânon no ano 382, ou, talvez, até 1546, quando
o C oncilio de Trento tornou-se o prim eiro concilio
“ecumênico” para definir o cânon. Entretanto, evidentemente,
o povo de Deus tinha a Bíblia antes de 1546 e antes de 382.
Em primeiro lugar, a igreja sempre teve a Escritura. A pre­
gação apostólica e os escritos do século I verificaram exaustiva­
mente seus ensinos ao citá-los do Antigo Testamento. As cita­
ções do Antigo Testamento e as alusões a ele são abundantes
no Novo Testamento. O Novo Testamento não rejeita o Anti­
go, mas complementa-o (Rm 1.2; Lc 16.29; Ef 2.19,20). A igre­
ja sempre teve um fundamento canônico no Antigo Testamento.
Em segundo lugar, podemos notar que os apóstolos per­
ceberam que a nova aliança inaugurada pelo Senhor Jesus le­
varia a um cânon novo e acrescido. O cânon e a aliança são
inter-relacionados e interdependentes na Bíblia (leia The
Structure o f B iblical A uthority [A Estrutura da Autoridade Bí­
blica], de Meredith G. Kline). Pedro testifica a respeito desse
cânon emergente quando inclui as cartas de Paulo como par­
te das Escrituras (2Pe 3.16).
Em terceiro lugar, cumpre-nos observar que o cânon da Es­
critura é, em sentido real, estabelecido pela própria Escritura,
porque os livros canônicos são auto-autenticáveis. Como reve­
lações de Deus, eles são reconhecidos pelo povo de Deus como
sendo a própria Palavra de Deus. Como disse Jesus — “Eu sou o
bom pastor; conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem a m im .... elas
ouvirão a minha 0o 10.14,16). Em sentido mais profundo, po­
demos julgar a Palavra, mas a Palavra nos julgará. “Porque apalavra
de Deus é viva, e eficat5 e mais cortante do que qualquer espada de dois
gumes, epenetra até aoponto de dividir alma e espírito,ju ntas e medulas, e ê
apta para discernir ospensamentos epropósitos do coração” (Hb 4.12). O
caráter auto-autenticável do cânon é demonstrado pela notável
unanimidade alcançada pelo povo de Deus sobre o cânon.
Em quarto lugar, devemos notar que, historicamente, o
cânon não foi formado por papas e concílios; tais instituições
simplesmente reconheceram o consenso espontâneo do povo
de Deus ao reconhecer a autenticidade das Escrituras. Indubi­
tavelmente, quaisquer critérios usados por papas e concílios
para o reconhecimento do cânon (autoria, estilo, conteúdo,
testemunho do Espírito, etc.), estes mesmos critérios esta­
vam disponíveis ao povo de Deus como um todo.
Podemos observar essa compreensão básica da formação
do cânon afirmada na N ova E nciclopédia Católica por estas pa­
lavras: “O cânon, já presente implicitamente no período apos­
tólico, tornou-se gradualmente explícito por meio de uma série
de fatores providenciais formadores e fixadores dele.”11
Podemos ainda ver esse ponto básico para o cânon refleti­
do nas palavras de Agostinho, escritas em seu importante tra­
tado intitulado Da Doutrina Cristã. Esse tratado foi escrito en­
tre os anos 396 e 427 — após a suposta decisão autoritária do
Papa Dâmaso I sobre o cânon, e depois que um concilio insta­
lado em Hipona havia discutido o cânon. Agostinho escreveu:

Na questão das Escrituras canônicas, ele deve seguir a


autoridade do maior número de igrejas católicas, entre
as quais estão aqueles que mereceram ocupar assentos
apostólicos e receber epístolas. Ele observará essa regra
a respeito das Escrituras canônicas: preferirá aqueles [pon­
tos] aceitos por todas as igrejas católicas, e não as que
alguns não aceitam; entre aqueles que não são aceitos
por todos, ele deve preferir aqueles que são aceitos pelo
maior número de igrejas importantes, em vez dos apoia­
dos por poucas igrejas pequenas de autoridade inferior.
Se ele descobrir que alguns são mantidos pela maioria
das igrejas, outros pelas igrejas de autoridade com maior
peso, ainda que esta condição não seja plausível, deve
manter para que haja igual valor.12

Essa afirmação mostra que Agostinho não dependia de


papas e concílios para a solução da questão do cânon. Ele
reconhecia a variedade entre as igrejas, e a conveniência de
uma pluralidade delas. Incentivava todos os estudantes da
Escritura a examinarem a questão e observava o consenso
espontâneo entre o povo de Deus. Como Agostinho, não
depreciamos o valor do testemunho do povo de Deus com
vista ao cânon. Valorizamos o ministério da igreja nisso, como
em todas as coisas. Mas negamos que a igreja por seus ofícios
ou concílios estabeleça autoritariamente a Escritura com base
em algum conhecimento ou poder geralmente indisponível
aos cristãos. O caráter dos livros canônicos atrai o povo de
Deus para eles.
4. Unidade. Observe como os católicos usam a palavra
“unidade”. Eles sugerem que nós, protestantes, desmentimos
nossa alegação quanto à clareza da Escritura por nosso fra­
casso em concordarmos sobre o significado da Escritura. Re­
conhecemos que os protestantes estão divididos em várias
denominações, mas todos os protestantes herdeiros da Refor­
ma estão unidos na compreensão do evangelho e no respeito
uns para com os outros como irmãos em Cristo. Todos nós
temos encontrado claramente o mesmo evangelho na Bíblia.
Quando discutimos unidade e autoridade, devemos estar
certos de estar fazendo comparações justas e acuradas. Nossos
oponentes romanos querem comparar a teoria romana com as
práticas protestantes. Isso não é apropriado. Devemos compa­
rar teoria com teoria ou prática com prática. Na prática, nem um
nem outro grupo tem o entendimento que deveriamos ter.
Lembremos que, enquanto Roma é organicamente unida,
ela é, por outro lado, tão dividida teologicamente quanto é
amplamente compreendido o Protestantismo. A instituição
de um papa infalível não criou uma unidade teológica na igre­
ja romana. Pelo contrário, os teólogos romanos estão cons­
tantemente discordando entre si sobre o que os papas têm
ensinado, bem como quanto a se esses ensinos são de fato
proclamados ex cathedra, sendo, portanto, infalíveis. A situa­
ção atual da igreja romana não tem mostrado, realmente, que
a instituição do papado tenha esclarecido o conteúdo neces­
sário da verdade cristã. Acredito que todo membro honesto
da igreja romana reconhece isso.
No transcurso do século XVII o teólogo reformador
Francis Turretin notou sérias divisões teológicas na igreja
romana e indagou por que razão o papa não conciliou aque­
las disputas considerando que seu ofício era tão efetivo. Tais
problemas teológicos são, seguramente, maiores hoje do que
na época de Turretin, e a questão continua sem resposta quan­
to à ineficácia papal.13
Não devemos ficar surpresos por haver divisões na igreja.
Cristo e seus apóstolos predisseram que havería. O apóstolo
Paulo disse que tais divisões são úteis. Ele escreveu: “Porque
até mesmo im porta que haja partidos entre vós, para que também os
aprovados se tom em conhecidos em vosso meio” (1 Co 11.19). As dife­
renças devem humilhar-nos e compelir-nos a retomarmos às
Escrituras para a verificação de todos os aspectos da verda­
de. Se não aceitarmos as Escrituras como nosso padrão e
juízo, não haverá, por certo, esperança de unidade.
A igreja deve ter um padrão pelo qual julgará todas as
alegações contidas na verdade. Ela deve ter um padrão da
verdade pela qual possa reformar e purificar a si mesma quan­
do surgirem divisões. A igreja não pode advogar que ela é o
padrão e defender essa alegação apelando a si mesma. Tal
raciocínio circular não é somente inconvincente; é também
autodestrutivo. O argumento de Roma concentra-se nisto:
devemos crer em Roma porque Roma diz isso.
A Bíblia nos ensina que a Palavra de Deus é a luz que nos
habilita a andar nos caminhos de Deus. Ouça os Salmos
119.99,100,105,130: “Compreendo m ais do que todos os m eus m es­
tres, porque medito nos teus testemunhos. Sou m ais prudente que os
idosos, porque guardo os teus preceitos. Lâmpada para os m eus p és ê a
tua palavra e lu% para os m eus caminhos. Λ revelação das tuas pala­
vras esclarece e dá entendimento aos sim p lest
Os opositores romanos contrapõem-se costumeiramente
ao apelo do Salmo 119 pelo fato de ele estar falando da Pala­
vra de Deus, e não da Bíblia, e, por conseguinte, podería in­
cluir nesse louvor tanto a tradição como a Escritura. Mas seu
argumento é irrelevante para nosso uso do Salmo 119, por­
que o estamos usando para provar a clareza, não a suficiência
da Escritura! O salmista está dizendo aqui que a luz da Pala­
vra brilha com tanta luz e clareza que, se eu meditar sobre ela
e a obedecer, serei mais sábio do que qualquer mestre ou
ancião. O simples pode compreendê-la. A Palavra é como
um poderoso holofote em uma floresta escura. Ela permite
que eu caminhe pelo atalho sem tropeçar.
Devemos ouvir as Escrituras para podermos agir como a
Palavra de Deus nos ensina. Consideremos a história de Pau­
lo em Beréia, em Atos 17.10-12. Ele pregava em uma sinago­
ga da cidade e muitos judeus responderam à sua pregação
com avidez. Sabemos que, após ouvirem Paulo dia após dia,
eles examinavam as Escrituras para verificar se o que Paulo
dizia era verdade. Como Paulo reagiu àquela atitude daqueles
ouvintes? Disse ele que as Escrituras não eram claras, e que
somente ele, como apóstolo ou rabino ou membro do sinédrio,
podia dizer a eles o que as Escrituras realmente queriam signi­
ficar? Ou disse ele que eles não deveríam esperar encontrar a
verdade nas Escrituras por serem elas incompletas e deveríam
ser suplementadas pela tradição? Ou disse ele que eles esta­
vam insultando sua autoridade apostólica, e que deveríam sim­
plesmente submeter-se a ele como intérprete infalível da Bí­
blia? Ou disse Paulo que eles deveríam recorrer a Pedro como
o único que podería interpretar a Bíblia? Não! Ele não disse
nenhuma dessas coisas. A atitude dos ouvintes de Beréia é
louvada na Bíblia. Eles são chamados de nobres porque ava­
liaram todas as coisas com base na Palavra escrita de Deus.
Se somos filhos fiéis de Deus, se somos nobres, devemos
proceder como os ouvintes de Beréia. Devemos seguir o exem­
plo de Moisés, de Paulo e de nosso Senhor Jesus. Não ponha
sua confiança na sabedoria dos homens que alegam possuírem
a infalibilidade. Apóie-se, antes, no apóstolo Paulo, que escre­
veu em 1 Coríntios 4.6: “não ultrapassas o que está escrito.”1

1 William Whitaker, A Disputation on Holy Scripture (Cambridge:


University Press, 1849), p. 411.

2 Citado em Whitaker, p. 637.

3 Agostinho, On Christian Doctrine, traduzido por D.W. Roberston, Jr.


(Nova York: Liberal Arts Press, 1958), 11:9.

4 The Documents o f Vatican II, ed. Walter M. Abbott (Nova York:


Herden and Herden, 1966), p. 116. Dei Verhum, 8.

5 Ibid., p. 118.
6 João Eck, Enchiridion o f Commonplaces, traduzido por Ford Lewis
Battles (Grand Rapids: Baker, 1979), p. 13.

7Josef Rupert Geiselmann, The Meaning o f Tradition (Montreal: Palm


Publishers, 1966), p. 16, nota nas pp. 113-114.

8 Citado em Cambridge MedievalHistory, seção escrita por W H. Hutton,


editado por H.M. Gwatkin e J.P. Whitney (Nova York: The MacMillan
Co., 1967) 11:247.

9 James Townley, Illustrations o f biblical Literature, vol. 2 (Londres:


impresso por Longman, Hurst, Rees, Orme e Brown, 1821), p. 481.

10 Documents o f Vatican II, pp. 125-126.

11 Citado em uma fita gravada por William Webster intitulada ‘T he


Canon”, disponível em Christian Resources, 304 West T Street,
Batdeground, W A 98604. Esta fita é a parte 3 de uma série de 16,
sob o título Roman Catholic Tradition: Its Roots and Evolution.

12 On Christian Doctrine, Livro 2, seção VIII, traduzido por D.W.


Roberston, Jr. (Nova York: Liberal Arts Press, 1958), p. 41.

13 Francis Turretin, Institutes o f Elenctic Theology, Vol. 1, traduzido por


George Musgrave Giger, editor James T. Dennison, Jr. (Phillipsburg:
P&R, 1992), p. 156.
S o la S c rip tu ra e a Igreja Primitiva
Jam es W hite

Com referência aos divinos e sagrados mistérios da fé,


nem mesmo a mínima parte deles pode ser transmitida
sem as Escrituras Sagradas. Não se deixem levar por pa­
lavras sedutoras e argumentos engenhosos. Mesmo com
respeito a mim, que lhes digo estas coisas, não se apres­
sem em acreditar, a menos que recebam das Escrituras
Sagradas a prova das coisas que lhes anuncio. A salvação
em que acreditamos não é provada por raciocínio enge­
nhoso, mas das Escrituras Sagradas.1

Se alguém não conhecia a fonte dessas palavras, pode tê-


las ouvido de algum ministro cristão ao receber dele instru­
ções em uma classe de neoconvertidos. Entretanto, essas pa­
lavras foram escritas há mais de seiscentos anos por Cirilo de
Jerusalém. Sua visão era incomum? Os modernos apologistas
católicos romanos estão certos quando se referem à doutrina
da sola Scriptura como sendo uma “novidade”? Ou encontra­
mos muitos testemunhos da crença na suficiência da Escritu­
ra nos escritos desses antigos líderes da fé?

Lembre-se da Q uestão R eal

Antes de examinarmos os escritos da igreja antiga, é im­


portante recordar os pontos centrais que separam protestan­
tes e católicos romanos na questão da suficiência da Escritu-
ra. Embora haja alguns modernos teólogos católico-roma-
nos que não professam mais com estridência uma posição
como a definida em documentos romanos oficiais, não po­
demos definir a teologia com base em uma minoria de teólo­
gos modernos, tanto quanto a teologia protestante não pode
ser definida com referência a uma minoria de teólogos libe­
rais.2 Os documentos oficiais da Igreja Católica Romana de­
vem definir a questão em pauta. A declaração mais clara de
Roma encontra-se no Concilio de Trento:

E também claramente notado que essas verdades e re­


gras estão contidas nos livros escritos, recebidos e nas
tradições não-escritas, as quais são recebidas pelos pró­
prios apóstolos e a eles transmitidos pelo Espírito Santo.
Elas vieram até nós como foram transmitidas, por assim
dizer, de mão em mão. Seguindo, pois, os exemplos dos
Pais ortodoxos, [a igreja] recebe e venera com um senti­
mento de piedade e reverência todos os livros, tanto do
Antigo como do Novo Testamento, uma vez que o único
Deus é o autor de ambos; bem como as tradições, quer
se relacionem à fé ou à moral, como tendo sido ditadas,
quer oralmente por Cristo ou pelo Espírito Santo, e pre­
servadas na Igreja Católica em sucessão ininterrupta.3

A reivindicação de Roma é que a “Tradição Sagrada” existe


nos “livros escritos” e nas “tradições não-escritas”. Essas tradi­
ções não-escritas, defende Roma, foram recebidas pelos após­
tolos e preservadas na Igreja Católica Romana em “sucessão
ininterrupta”. Somos informados também que os “pais orto­
doxos” receberam e veneraram tanto os livros escritos como as
tradições não-escritas. Por conseguinte, Roma fez uma alega­
ção, como parte da infalível declaração do dogma romano
nas palavras do Concilio de Trento, que os “pais ortodoxos”
receberam e veneravam sua idéia de tradição, sua idéia de “tra­
dições não-escritas” — revelação que é nitidamente de ori­
gem divina (“ditadas... por Cristo ou pelo Espírito Santo”) e,
portanto, necessária para qualquer um que queira possuir o
pleno conselho de Deus. Essa plenitude, podemos ver pron­
tamente, só pode ser encontrada no seio de Roma, a guardiã
dessa “outra” parte da revelação de Deus. Segundo Roma,
quando colocadas lado a lado, as duas formas de tradição,
escrita e oral, compõem a “Tradição Sagrada”.4
Não nos surpreende que os modernos defensores do ca­
tolicismo romano tenham tentado evitar as posições ruido­
sas de Trento. Assim como os modernos historiadores roma­
nos empenham-se em defender os pronunciamentos do
Vaticano I no tocante à infalibilidade papal, de modo seme­
lhante os defensores de Trento vêem-se forçados a prover
substância significativa àquelas proposições extravagantes do
sínodo. Especificamente, demonstrando a existência dessa
“tradição oral” inspirada que existe fo ra da E scritura e foi pro­
cedente de Cristo e dos apóstolos é uma ordem exorbitante.
Na realidade, ela é simplesmente impossível, uma vez que tal
coisa não existe. Eis por que alguns pretendem ver essa “tra­
dição” como meramente de conteúdo interpretativo, negan­
do-lhe a condição de inspirada.5
Qual tem sido o resultado da doutrina da tradição romana?
Basta apenas observar tais conceitos, como a infalibilidade pa­
pal e as doutrinas marianas (Concepção Imaculada e sua As­
censão Corpórea) para constatar como Roma tem sido desejo­
sa de definir defid e a doutrina com base nessa alegada “tradi­
ção”. E, com referência à visão romana da Bíblia, tomamos
como exemplo as palavras de um escritor popular, John O’Brien:

Grande como é nossa reverência pela Bíblia, a razão e a


experiência compelem-nos a afirmar que ela sozinha não
é um guia competente nem seguro quanto ao que deve­
mos crer.6
Afirmação semelhante encontra-se no livro popular Where
We Got the Bible (Onde Descobrimos a Bíblia), de Henry Graham:

Venerável e inspirada como os católicos vêem a Bíblia,


grande como é sua devoção por ela no tocante à sua
leitura espiritual e suporte doutrinário, entretanto não
pretendemos depender somente dela como a Regra da
fé e dos costumes. A o lado dela recebemos aquela gran­
de Palavra que nunca foi escrita, a Tradição, preservadas
tanto uma como a outra e interpretadas pela voz viva da
Igreja Católica, que fala por meio da sua Cabeça Supre­
ma, o infalível Vigário de Cristo.7

O leitor é estimulado a comparar e contrastar tal afirmação


com as citações que serão providas pelos antigos pais da fé.

Testando os Pais

A pessoa que deseja saber se os pais ancestrais deram apoio


rea lço conceito romano de “tradição”, como foi definida acima,
reconhecerá que se torna necessário um tipo muito específico
de uso do termo. Citar simplesmente passagens em que o ter­
mo “tradição” é encontrado dificilmente será suficiente, em­
bora isso seja, com muita freqüência, o que nos é oferecido.8
Ao lado da óbvia consideração de que o termo “tradição”
pode conter muitos sentidos,9 é claramente necessário de­
monstrar que, quando um Pai da igreja se refere à “tradição”,
ele quer significar com isso o mesmo conceito como foi o
enunciado em Trento: uma tradição inspirada, transmitidafora
da E scritura, sem a qual não podem os apropriarmo-nos de toda
a verdade revelada de Deus.
Apresentarei apenas dois exemplos de como os antigos
pais são injustiçados pelos apologistas romanos em sua bus­
ca de encontrar suporte para sua visão da tradição oral. A
primeira foi extraída de Irineu, bispo de Lyon (c. 130-c. 200).
Uma série de suas afirmações é freqüentemente usada para
evidenciar a existência de uma “tradição” extrabíbüca que,
dizem-nos, dão suporte às alegações de Roma. De sua obra,
A gainst H eresies (Contra as Heresias), lemos:

Neste relato somos forçados a evitá-los, mas para fazer a


escolha das coisas pertencentes à Igreja com a máxima
diligência, e apropriarmo-nos da tradição da verdade. ...
Pois, como seria se os próprios apóstolos não nos tives­
sem deixado os escritos? Não seria necessário, em tal
hipótese, seguir o curso da tradição que eles transmiti­
ram àqueles que foram confiados às igrejas?10

Certamente tal passagem parece falar da “tradição” como


uma coisa extrabíbüca, exatamente como em Trento. E esse
não é o único lugar onde Irineu falou assim. Na primeira par­
te da mesma obra ele tinha escrito:

Como já observei, a Igreja, tendo recebido essa prega­


ção e essa fé, apesar de espalhada por todo o mundo, no
entanto, como se estivesse ocupando somente uma úni­
ca casa, preserva-a cuidadosamente. ... Pois, embora as
linguagens do mundo sejam diferentes, a importância da
tradição é uma e a mesma.11

Citações como essas parecem conter grande peso; bem


entendido, até que olhemos mais de perto os contextos. Em
ambos os exemplos descobre-se um fato muito importante.
Nosso autor não deixou de definir para nós o que era exata­
mente essa “tradição”:

Todos estes declararam-nos que há um Deus, Criador


do céu e da terra, anunciado pela lei e pelos profetas; e
um Cristo, o Filho de Deus. Se alguém não concorda
com essas verdades, despreza os companheiros do Se­
nhor; e, ainda mais, despreza o próprio Cristo, o Senhor;
e despreza também o Pai, tornando-se autocondenado,
resistindo e opondo-se à sua própria salvação, como é o
caso de todos os hereges.12

Aqui está a “tradição” de Irineu, e notamos imediata­


mente como ela em nada se coaduna com a versão de Roma.
O ponto importante a notar, ao lado do fato de que itens
como a infalibilidade papal e a ascensão corpórea de Maria
estão ausentes da definição de Irineu (itens que Roma tinha
definido com base na tradição), é que essas verdades são
derivadas das próprias E scrituras. Não há um único item arro­
lado por Irineu que não possa ser demonstrado diretamen­
te das páginas do texto sagrado. Por conseguinte, obvia­
mente, sua idéia de “tradição” não concede a Trento qual­
quer sustentação, pois a definição de Trento não reivindica
um resumo escriturístico derivado da verdade do evange­
lho, mas uma revelação inspirada transmitida oralmente por
intermédio do episcopado. A visão de Irineu não é a mes­
ma de um católico romano.
Para que ninguém pense que esse é o único lugar em que
Irineu definiu sua tradição, notemos brevemente essas pala­
vras que se seguem imediatamente à primeira citação apresenta­
da acima:

À qual [doutrina] muitas nações daqueles bárbaros [gre­


gos ou não-judeus] que acreditavam em Cristo assenti-
ram, tendo a salvação escrita em seus corações pelo Es­
pírito, sem papel nem tinta, e preservando cuidadosa­
mente a tradição antiga, acreditando em um Deus, o
Criador do céu e da terra, e todas as coisas neles conti­
das, por meio de Cristo Jesus, o Filho de Deus;...13
Voltando-nos, agora, de Irineu, concentremo-nos em nos­
so segundo exemplo, extraído de Basílio de Cesaréia, na
Capadóda, um dos grandes pais (c. 330-379). Em seu tratado
On the S pirit (Sobre o Espírito) Basílio apresentou as seguin­
tes famosas observações:

Das crenças e práticas preservadas pela Igreja, quer as


geralmente aceitas como as publicamente impostas, al­
gumas são originárias do ensino escrito; outras nos fo­
ram entregues “em mistério”, pela tradição dos apósto­
los; e ambas, em relação à verdadeira religião, têm a mes­
ma força. E estas ninguém contestará; — ninguém, acon­
teça o que for, ainda que razoavelmente versado nas ins­
tituições da Igreja. Se nós fôssemos, por acaso, tentar
rejeitar tais costumes por não terem a autoridade escrita,
alegando, como pretexto, que a importância que eles
possuem é pequena, ofenderiamos, sem intenção, o evan­
gelho em sua própria essencialidade; ou, antes, faríamos
de nossa pública definição uma mera frase e nada mais.14

Com certeza, temos aqui uma posição romana, não te­


mos? Uma “tradição” extrabíblica postulada que se harmoni­
zaria total e gloriosamente com Trento, não é verdade? A
importância de observar todos os pormenores é novamente
considerada, pois tanto o contexto como o alcance maior do
ensino de Basílio contradizem tal conclusão. Primeiro, obser­
vemos a continuação de suas palavras, as quais freqüente-
mente não estão incluídas na citação:

Por exemplo, partindo do exemplo inicial e mais genera­


lizado, quem ensinou por escrito a fazer o sinal da cruz
àqueles que acreditavam em nosso Senhor Jesus Cristo?
Que escrito nos ensinou a fazermos nossa oração volta­
dos para o Oriente? Qual dos santos nos deixou por es-
ctito as palavras de invocação ao erguer o pão da euca­
ristia e o cálice da bênção? Pois não estamos contentes,
como é bem sabido, com o que o apóstolo ou o evange­
lho registrou, pois tanto na introdução como no encer­
ramento acrescentamos outras palavras como sendo de
grande importância para a validade da administração, e
estas se originam do ensino verbal. Além disso, abençoa­
mos a água do batismo e o óleo da crisma, bem como o
catecúmeno que está sendo batizado. Com base em que
autoridade escrita fazemos isso? Nossa autoridade não é a
tradição silenciosa e mística? E não apenas isso, por meio
de qual palavra escrita a própria unção com óleo foi ensi­
nada? E de onde vem o costume de batizar três vezes?15

Seja como for que consideremos as crenças de Basílio, uma


coisa é certa: as questões que ele aponta como sendo atribuídas
à “tradição” não são exatamente as práticas que Roma deseja
que aceitemos como sendo parte da sua “tradição oral”. Basílio
está falando das tradições com referência às práticas e à pieda­
de. Notamos com alguma ironia que Roma não acredita que
Basílio esteja certo em suas alegações nessa passagem. Roma
diz que devemos voltar a face para o Oriente em oração? Roma
insiste no batismo trino à maneira oriental? Entretanto, essas
são as práticas cp e. Basílio define como sendo oriundas da “tradi­
ção”. E, ainda mais, outras afirmações desse mesmo Pai insulta­
ram as alegações romanas. Por exemplo, ao tratar de verdades
realmente importantes, tais como a própria natureza de Deus,
Basílio não recorreu a alguma tradição nebulosa. Como poderia
ele fazê-lo, especialmente quando encontrou outros que afir­
mavam que suas crenças tradicionais deveríam ser tidas como
sagradas? Consideremos suas palavras a Eustáquio, o médico:

A queixa deles é que seu costume não aceita isso e que a


Escritura não o corrobora. Qual é minha réplica? Não
considero justo que o costume que se adota entre eles
deva ser visto como lei e regra ortodoxa. Se o costume
tem de ser considerado como prova do que é correto,
então ele é certamente idôneo para que eu passe a colo­
car ao meu lado o costume consagrado. Se eles rejeita­
rem isso, não estamos decididamente forçados a segui-
los. Portanto, deixemos que a Escritura inspirada por
Deus decida entre nós; e em qualquer lado que forem en­
contradas doutrinas em harmonia com a palavra de Deus,
será lançado em favor delas o voto de confiança.16

Um sentimento impossível de alinhar-se com Trento! Esse


mesmo Pai também insistiu: “Os ouvintes ensinados nas Es­
crituras devem testar o que é dito pelos mestres e aceitar o
que se harmoniza com as Escrituras, porém rejeitar o que é
estranho.” E, em outro lugar: “E obviamente uma apostasia
da fé e uma ofensa atribuída ao orgulho, quer rejeitar qual­
quer das coisas que estão escritas como introduzir coisas que
não estão escritas.”17
Indubitavelmente, portanto, Basílio não é adepto das ale­
gações romanas.18
Antes de avançarmos em direção a outras testemunhas da
antiga crença na suficiência da Escritura isenta de acréscimos
da “tradição oral”, de acordo com o que Roma definia, con­
vém notar o problema apresentado pelo testemunho patrístico.
Os protestantes podem respeitar grandemente os pais dos
primeiros séculos e aprender com eles, sem terem de atri­
buir-lhes a infalibilidade. Podemos despender algum tempo
reconhecendo que eles também tinham seus problemas e fa­
lhas. Por essa razão, quando encontramos um dos antigos
pais desviando-se do caminho, não ficamos aborrecidos ou
preocupados por isso. Mas, para a igreja católica a situação é
diferente. As pretensões de Roma são fundamentalmente di­
ferentes, e, por conseguinte, um problema é levantado pela
presença, desde os períodos mais distantes da igreja, de cren­
ças dos pais que são incompatíveis com o que Roma alega
serem de fato tradições e doutrinas “apostólicas”. E quando
os protestantes podem caminhar “passo a passo” com a Igre­
ja Católica ao citarem os antigos pais, a posição de Roma so­
fre abertamente, pois ela tem de defender a idéia de que suas
tradições estavam “lá” no começo, que a sua é a “fé constan­
te” da Igreja.19

Testemunhos Patrísticos

O espaço não permite senão um conhecimento superficial


do testemunho disponível à pessoa que queira permitir que
os venerandos pais falem por si mesmos. Satisfazemo-nos
em ouvir primeiro algumas palavras do grande bispo de
Hipona, Agostinho, e, em seguida, encerraremos examinan­
do de perto o grande defensor da fé nicena, o bispo de
Alexandria, Atanásio. Começaremos com amostras da visão
de Agostinho sobre o assunto:

Que mais eu vos ensino além do que leio no apóstolo?


Pois a Escritura Sagrada fixa a regra para a nossa doutri­
na, a menos que ousemos ser mais sábios do que deve­
mos. ... Portanto, não devo ensinar-vos qualquer outra
coisa, a não ser expor-vos as palavras do Mestre.20

Não devo forçar a autoridade de Nicéia contra vós, nem


vós a do Arianismo contra mim; não reconheço um, as­
sim como vós não reconheceis o outro; cheguemos, pois,
a um consenso que é comum a nós ambos — o testemu­
nho das Sagradas Escrituras.2’

Não ouçamos: Isto eu digo, isto vós dizeis; mas, assim diz o
Senhor. Certamente são os livros do Senhor, em cuja autori­
dade ambos concordamos e nos quais ambos cremos. Bus­
quemos a igreja, lá discutiremos o nosso caso.22

Deixemos que sejam removidas de nosso meio as coisas


que citamos uns contra os outros, não com apoio nos
livros canônicos divinos, mas de outras fontes quaisquer.
Talvez alguém possa perguntar: Por que desejais remo­
ver essas coisas do vosso meio? Porque não queremos a
santa igreja aprovada por documentos humanos, mas sim
pelos oráculos divinos.23

Seja o que for que possam apresentar, e de qualquer [fon­


te] que possam citar, procuremos, se somos suas ove­
lhas, ouvir a voz do nosso Pastor. Portanto, busquemos
para a igreja as sagradas Escrituras canônicas.24

Nem ouse alguém concordar com bispos católicos, se


por acaso eles errarem em alguma coisa, resultando que
sua opinião seja contra as Escrituras canônicas.25

Se alguém pregar, seja com referência a Cristo ou à sua


igreja, ou a qualquer outro assunto que se refira à nossa
fé e vida, não direi se nós, mas sim o que Paulo acrescen­
ta: se um anjo vindo do céu pregar qualquer coisa além
do que recebestes pela Escritura sobre a Lei e os Evan­
gelhos, que seja anátema.26

Deveis notar e reter particularmente em vossa memória


que Deus quis lançar um firme fundamento nas Escritu­
ras contra erros traiçoeiros, um fundamento contra o
qual ninguém, que de algum modo fosse considerado
cristão, ousasse falar. Porquanto, quando ele se ofereceu
ao povo para que o tocasse, isso não o satisfez, exceto se
ele também confirmasse o coração dos crentes com base
nas Escrituras, pois ele anteviu que o tempo chegaria em
que não havería coisa alguma a tocar, porém teria algu­
ma coisa a ler.27

Devemos crer que Agostinho quis dizer, na citação imedia­


tamente anterior— “Ele anteviu que o tempo chegaria, quan­
do nada teríamos para tocar senão uma coisa para ler, e outra
coisa foi transmitida verbalmente”? Agostinho não fez refe­
rência à tradição? Sim, ele o fez, porém não o fez no mesmo
contexto, como Basílio fez acima.28
O conflito é freqüentemente uma grande e rica fonte de
informações com respeito às crenças dos antigos pais. Quan­
do eles enfrentavam a oposição, os Pais “mostravam suas ver­
dadeiras opiniões”, por assim dizer. Como eles se comporta­
vam ante as alegações de seus contraditores? Como os mo­
dernos católicos romanos se referiam à “tradição” como a
base de suas crenças doutrinárias? Ou encontramo-los apre­
sentando as Escrituras como sua autoridade final e plena?
Nenhum dos pais responde a essa pergunta mais clara­
mente e com mais poder do que Atanásio. Durante anos ele
ergueu-se contra as forças combinadas do império e da igre­
ja, apegando-se firmemente à fé nicena na plena deidade de
Jesus Cristo. Por um tempo ele se levantou contra a sé roma­
na sob Libério, o bispo de Roma, que cedeu às pressões que
lhe foram impostas.29Na verdade, isso foi considerado como
A thanasius contra mundum, “Atanásio contra o mundo”. Que
surpreendente atitude protestante foi revelada por esse bispo
de Alexandria! Contra o peso da igreja combinada, ele agar­
rou-se ao testemunho da Escritura e refutou seus inimigos não
por meio de referência a alguma “tradição” oral mítica, mas
por exegese lógica e criteriosa da Escritura inspirada por Deus.
Começaremos expondo as objeções mais fortes da oposi­
ção e demonstrando que mesmo aqui Atanásio confunde-os.
Em seguida, apresentaremos somente alguns dos numerosos
testemunhos que essa rica fonte propicia para a nossa defesa da
sola Smptura. Começamos por examinar uma passagem que tem
sido citada como evidência de que Atanásio negou a sola Smptura:

Entretanto, o que também é fundamental, permitam-nos


observar que a própria tradição, ensino e fé da Igreja Ca­
tólica Romana que o Senhor lhe deu desde o início, foram
pregadas pelos apóstolos e preservadas pelos pais. Sobre
isso foi a Igreja estabelecida; e se alguém se afasta disso,
ele não é nem jamais deve ser chamado de cristão.30

Essa seção é citada porque é seguramente inclinada a


ser lida com olhos e entendimento modernos. “Ah-ah!” vem
o brado, “Vejam! Atanásio fala de tradição!” Mas, o que
Atanásio entende por “tradição”? Eu simplesmente reconheço
que a citação deve continuar, de modo que Atanásio possa
falar por si mesmo. O que é essa “tradição” a que ele está se
referindo?

Há uma Trindade, santa e perfeita, reconhecida como


Deus, em Pai, Filho e Espírito Santo, nada tendo de es­
tranho ou externo mesclado com ela, não composta de
um formador e uma origem, mas inteiramente criativa e
modeladora... e assim é pregado na igreja um Deus, “que
é sobre todos, por meio de todos, e em todos. ...” E
porque esta é a fé da igreja, que eles de algum modo
compreendam que o Senhor enviou os apóstolos e
comissionou-os para fazer disso o fundamento da igreja,
quando disse: “Ide ensinar todas as pessoas, batizando-
as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.31

Isso é muito importante, pois é indiscutível que Atanásio


desenvolve, e defende, a Trindade com base na Escritura. Ele
não recorre a essa verdade com base em alguma revelação
não escrita que existefo ra da Escritura e que contenha revela­
ção não encontrada na Escritura. Isso deve ser levado em
consideração quando se define sua visão do termo “tradi­
ção” e o que ela inclui. Essa “tradição”, como vemos, é se­
cundária e subordinada às Escrituras.32
Outra passagem que é fieqüentemente realçada contra os
muitos testemunhos comuns que apresentaremos de Ataná-
sio é a seguinte:

Àquilo que eles agora alegam dos Evangelhos deram cer­


tamente interpretação discordante, podemos ver facil­
mente, se agora consideramos a extensão daquela fé que
mantemos, e usando-a como regra, apliquemo-nos, como
o apóstolo nos ensina, a ler a Esdritura inspirada. Porque
os inimigos de Cristo, sendo ignorantes dessa extensão,
desviaram-se do caminho da verdade...33

Os apologistas romanos apontam para o termo “extensão”34


e dizem: “Aqui está uma regra a que Atanásio se refere, a qual
transgride qualquer conceito de sola Scriptura? E de novo, toma­
do isoladamente, pode-se ver como tal conclusão podería ser
extraída. Mas essa passagem não existe isolada. Ela está no ter­
ceiro discurso dos quatro escritos de Atanásio contra os aria­
nos. Antes de chegar àquele ponto, Atanásio tinha apresentado
uma ampla lista de assuntos. Com certeza, no primeiro discur­
so, ele chegou a um ponto que lhe propiciou a oportunidade
perfeita de cantar louvores à “tradição oral”. Ele escreveu:

Se tal confusão e falatório vazio procede da ignorância, a


Escritura lhes ensinará que o Diabo, o autor das heresi­
as, por causa do mau cheiro que se lhe apega, apropria-
se da linguagem da Escritura, e, com a dissimulação com
que o solo é semeado, leva junto também o próprio ve­
neno, e seduz os simples.35
Como os modernos apologistas romanos manuseiam as
afirmações feitas por hereges que reivindicam apoio escritu-
rístico? Não se referem eles imediatamente à necessidade de
algo m ais do que a Escritura? Não vemos freqüentemente as
seitas e os “ismos” usados como razões do porquê de a sola
Scriptura não alcançar maior predomínio? Entretanto, não
encontramos tais louvores à “tradição oral” em Atanásio. Pelo
contrário, vemo-lo dizendo: “Vede, pois, que tomamos a di­
vina Escritura e, por meio dela, discorremos com liberdade
sobre a Fé religiosa. ...”36 E no início do parágrafo seguinte:

Qual das duas teologias anuncia nosso Senhor Jesus Cristo


como Deus e Filho do Pai, esta que vós rejeitastes ou aquela
que falamos e sustentamos com base nas Escrituras?

Que é seguida de perto por essa declaração:

Porquanto, se eles falarem, seguir-se-á uma condenação;


e se suspeitarem, provas da Escritura serão lançadas so­
bre eles de todos os lados.

Provas da Escritura? Por que não apenas lançarmos so­


bre eles o peso da tradição oral e encerrarmos a questão? E
certamente desse modo que devemos lidar com tais doutri­
nas, como a infalibilidade papal e a ascensão corpórea de Maria!
Mas esse não é meio usado por Atanásio. Em vez disso, ele
mostra a consistência de sua própria crença na Escritura, e a
inconsistência das crenças heréticas, tudo de acordo com o
mesmo padrão:

Tampouco a Escritura lhes proporciona qualquer pre­


texto; pois tem sido mostrado muitas vezes, e será mos­
trado agora, que sua doutrina é estranha aos oráculos
divinos.37
O que se segue a isso é também outra discussão extensa
sobre a eternidade do Filho, toda ela, sem exceção, baseada
na própria Escritura, que ele assim conclui:

É manifesto, pois, com base no que foi dito acima, que


as Escrituras declaram a eternidade do Filho.38

O restante do primeiro discurso tem o propósito de ofe­


recer uma interpretação ortodoxa de várias passagens levan­
tadas pelos hereges. Aqui, novamente, temos uma oportuni­
dade de notar a visão de autoridade de Atanásio, pois esse
trecho começa assim:

Entretanto, uma vez que eles acusam os oráculos


divinos e impõem-lhes uma interpretação errônea,
de acordo com o molde de seu entendimento pes­
soal, torna-se necessário nos opormos a eles visan­
do justificar essas passagens, mostrando-lhes que
elas contêm um sentido ortodoxo, e que nossos
oponentes incorrem em erro.39

E como Atanásio faz isso? Ele recorre à tradição não-


escrita para provar que a interpretação dos hereges está erra­
da? Não. Ele faz a exegese das próprias passagens e mostra a
inconsistência das interpretações arianas. Assim como eu re­
trucaria a uma Testemunha de Jeová que usasse as mesmas
mensagens, Atanásio já fez há mil e quinhentos anos.
Reiteramos a parte acima citada desse discurso. Como já
vimos, o contexto é um aspecto vital da citação dos pais. Nesse
exemplo, o sentido do termo “extensão” é definido logo adi­
ante, no próximo parágrafo:

Agora a extensão e o caráter da Escritura, como várias


vezes dissemos, são estes — ela contém uma dupla ca­
racterização do Salvador: Ele foi sempre Deus, e é seu
Filho, sendo a Palavra de Deus e o Resplendor e a Sabe­
doria; e que, posteriormente, em nosso favor, revestiu-se
da carne de uma virgem, Maria, a genitora humana de
Deus, e foi feito homem. E essa extensão deve ser en­
contrada em toda a Escritura inspirada, como o próprio
Senhor disse: “Examinais as Escrituras.,, são elas mesmas
que testificam de mim” (Jo 5.39).40

Essa “extensão” de que falamos “deve ser encontrada em


toda a Escritura inspirada”. Portanto, obviamente, não é al­
guma coisa que existe separadamente da Escritura. Assim como
posso dizer— “O conceito da soberania de Deus é uma cren­
ça que deve ser encontrada em toda a Escritura”, Atanásio
refere-se à verdade da natureza de Cristo da mesma forma.
Por conseguinte, essa “extensão” não qualifica o conceito ro­
mano da tradição oral, e Atanásio não é considerado como
violador da doutrina de sola Scriptura,
Que dizer então do testemunho positivo de Atanásio?
Observamos primeira e fundamentalmente as palavras cris­
talinas de sua obra contra os pagãos;

Pois, certamente, as Escrituras santas e inspiradas por


Deus são auto-suficientes para a pregação da verdade.41

Nessa passagem Atanásio começa com um princípio fun­


damental de sua fé: a plena suficiência da Escritura para a
proclamação da verdade. E adianta-se imediatamente em pon­
derar que Deus também usa outras fontes para o ensino da
verdade, incluindo homens piedosos com discernimento so­
bre a Escritura. Mas ele inicia onde protestantes e católicos
romanos dividem a parceria: com a suficiência da Escritura.
Ele havia aprendido tais coisas com aqueles que o antecede­
ram. E chega a mencionar as palavras de Antony: “As Escri-
turas são bastantes para instruir, mas é uma boa coisa incen­
tivar uns aos outros na fé, e incitar-se com palavras.”42 Ao
escrever aos bispos egípcios, ele afirmou:

Porém, uma vez que a Escritura Sagrada é, sobre todas


as coisas, a mais suficiente para nós, e por isso recomen­
dando-a àqueles que desejam conhecer mais dessas ques­
tões, para lerem a palavra divina, apresso-me agora a ex­
por diante de vós aquilo que mais exige atenção, e por
causa da qual principalmente escreví essas coisas.43

A visão superior da Escritura continua nesta passagem da


obra de Atanásio sobre a Encarnação da Palavra de Deus:

Amado em Cristo, permite que esta seja nossa contribui­


ção a ti, ainda que valendo-nos de um resumo rudimen­
tar de pouca extensão, sobre a fé em Cristo e em seu
divino aparecimento. Servindo-te de tal oportunidade,
se compreenderes o texto das Escrituras, aplicando-lhes
com eficácia sua mente, aprenderás por meio delas, mais
completa e claramente, os exatos pormenores do que
temos dito. Pois eles foram escritos por Deus, por meio
de homens que falaram por ele.44

Procuraríamos em vão uma referência em que esse Pai


descreve a “tradição oral” dessa forma, e no entanto Trento
não receou falar em “tradição”. Em lugar de achar que a idéia
de O’Brien de que a Escritura não é um “guia seguro” quan­
to ao que devemos crer, Atanásio disse: “...pois as provas da
verdade são mais exatas na Escritura do que em quaisquer
outras fontes.”45 Essas “outras fontes” incluíam os concílios
da igreja, tais como o de Nicéia, que Atanásio defendeu vigo­
rosamente. Entretanto, ele não imaginou que sua suficiência
não era baseada na alegada autoridade de um concilio, e sim
que o poder daquele concilio veio de sua fidelidade à Escritu­
ra. Consideremos suas palavras com referência aos arianos:

Inutilmente então eles correram de um lado para outro


com o pretexto de que requereram aos concílios com
relação à fé; pois a Escritura divina é suficiente acima de
todas as coisas; porém, se um concilio é insuficiente nes­
se ponto, há as posições dos pais, pois os bispos nicenos
não negligenciaram essa questão, mas afirmaram as dou­
trinas tão exatamente que as pessoas, lendo suas pala­
vras honestamente, não podem deixar de ser lembradas
por eles da religião relacionada a Cristo e anunciada na
Escritura divina.46

Por enquanto a frase “pois a Escritura divina é suficiente


acima de todas as coisas” deve ser familiar, uma vez que ela é
um elo constante nos escritos de Atanásio. E é fundamental
notar que o peso do concilio niceno é caracterizado em ter­
mos da consistenda dos ensinos do concilio com a “religião
relacionada a Cristo e anunciada na Escritura divina”.

Conclusões

O que podemos concluir do nosso breve retrospecto de a-


penas alguns poucos materiais patrísticos disponíveis? Nota­
mos de início que a posição tradicional católico-romana a res­
peito de uma “tradição oral” isoladamente não é a unânime,
nem a antiga, nem a constante fé da igreja. A idéia de que as
Escrituras são insuficientes, carecendo de um importante con­
trapeso na tradição oral, e são incompetentes para funcionar
como guia para o que devemos acreditar, é obviamente o theological
novum, o desenvolvimento posterior, o afastamento da antiga fé.
Entretanto, encontramos apologistas católicos romanos que ten­
tam fazer parecer que sola Scriptura é uma inovação.
No processo de atacar sola Scriptura, os apologistas romanos
vêem-se forçados a deturpar perversamente os materiais
patrísticos e comprometer-se com o que chamo de “interpreta­
ção anacrônica”, a leitura das antigas fontes, conceitos e idéias
que em nenhuma hipótese faziam parte do contexto original.
Roma faz isso com quase todas as suas singulares — e falsas —
doutrinas (o papado, as doutrinas marianas, etc.). Infelizmente,
porém, muitos protestantes são ludibriados por esses argumen­
tos. Muitos protestantes são ignorantes em sua visão da igreja e
têm pouco, se é que têm algum, conhecimento da história da
igreja. Mesmo aqueles com alguma preparação muitas vezes dei­
xam de separar algum tempo para o exame das fontes originais,
das quais os apologistas romanos derivam suas citações fora de
contexto. Se reservarmos tempo para reconhecer claramente o
que Roma está propagando, e então voltar-nos às fontes
patrísticas, constataremos uma patente inconsistência. As
asserções de Roma sobre o fundamento histórico são escassas,
não somente aqui com referência a sola Scriptura, mas em todos
os seus dogmas inusitados e tardiamente gerados, os quais ela
amontoa sobre os homens sob o castigo do anátema.
Como ocorre com todos os elementos da verdade cristã, o
amplo exame sempre constata, confirma e fortalece. Sola
Scriptura tem sido há muito a regra do povo cristão fervoroso,
antes mesmo de se tornar necessário usar a terminologia espe­
cífica contra os inovadores tardios que usurpam a supremacia
das Escrituras na igreja. Temos o ensino das Escrituras a res­
peito de si mesmas (2Tm 3.16,17, Mt 15.1-9, etc.), e encontra­
mos amplo e profundo testemunho do mesmo nos pais da fé,
como vimos. Agradeçamos a Deus a graciosa dádiva de sua
Palavra suficiente e provedora de vida — a Escritura Sagrada.1

1 Cirilo de Jerusalém, Catechetical L ectum 4:17. Uma tradução alter­


nativa pode ser encontrada em Schaff e Wace, Λ Select Library o f
Nicene and Post-Nicene Fathers o f the Christian Church (daqui por diante
NPNF), Série II (Grand Rapids: Eerdmans, 1980) VII:23.

2 O leitor é incentivado a ler o ensaio de Robert Strimple, “The


Relationship Between Scripture and Tradition in Contemporary
Roman Catholic Theology” (Westminster Theological Journal\ outono
de 1977, 40:22-38), com vistas a um excelente resumo das posições
de muitos desses católicos romanos modernos, que negam a visão
romana mais tradicional do partim-partim, isto é, “parcialmente-par-
cialmente”, parcialmente na Escritura, parcialmente na tradição.
Strimple chama a atenção para o fato de muitos dos teólogos cató-
lico-romanos, identificados como “progressistas” no sentido de ne­
garem o conceito partim-partim , estão, na realidade, muito distantes
da posição protestante conservadora, devido à sua visão pós-Ilumi-
nista da revelação como um todo.

3 Tradução do Rev. H.J. Schroeder em The Canons and Decrees o f the


Councial o f Trent (Rockford, IL: TAN Books, 1978), p. 17. Para o
latim do texto ver Philip Schaff, The Creeds o f Christendom (Grand
Rapids: Baker, 1985), 11:80.

4 Os escritos católico-romanos estão cheios de ambiguidades a respeito


da natureza exata da “tradição”. Até a diferença no uso das letras maiús-
culas pode ser relevante. Por exemplo, enquanto muitos escritores ro­
manos usam “Tradição Sagrada” para representar tanto a tradição ver­
bal como a escrita combinadas, o Vaticano II usou a forma em minúscu­
las, “tradição sagrada”, para referir-se à oral em distinção à escrita: “Con-
seqüentemente, não é somente da Escritura Sagrada que a igreja deriva
sua certeza acerca de todas as coisas que foram reveladas. Portanto, tan­
to a Tradição Sagrada como a Escritura Sagrada devem ser aceitas como
veneráveis com o mesmo sentido de devoção e reverência” (Dei Verbum
9). E, “a Tradição Sagrada e a Escritura Sagrada formam um depósito
sagrado ou a palavra de Deus, que é confiada à Igreja. ... Ela sempre
considerou as Escrituras juntamente com a Tradição Sagrada como re­
gra suprema da fé, e assim sempre o fará” (Dei Verbum 10,21).
5 Tamanho é, de fato, o vazio da alegação de “suficiência material”
por parte dos apologistas romanos, que podemos prontamente vê-
lo nessas palavras de John Hardon, The Catholic Catechism (Nova York:
Doubleday, 1975), p. 161, por meio das quais ele expõe a fonte do
dogma da Ascensão de Maria:

O Papa Pio [IX) definiu a Ascensão de Maria como uma


verdade divinamente revelada. Das duas fontes de revela­
ção, os teólogos dizem comumente que a Ascensão estava
implícita na Tradição, a despeito da ausência prática da
evidência documental antes do ano 300 d.C. Não obstante,
o Papa finalmente declarou que a doutrina estava na reve­
lação. Como sabermos? Sobre a resposta dessa questão
repousa uma inferência da Tradição Cristã, que vem ga­
nhando impulso desde o século XVIII. Resumidamente
exposta, a Tradição está vindo para identificar-se mais com
o magistério ou ofício de ensino, e menos exclusivamente
como fonte junto à Escritura das verdades da salvação....
“Junto com as fontes de revelação (Escritura e Tradição)
Deus tem dado à sua Igreja um magistério vivo para
elucidar e explanar o que está contido no depósito da fé
apenas obscuramente, e, caso assim fosse, por implica­
ção.” O grau de obscuridade, podemos acrescentar, é
irrelevante. Dada essa faculdade por seu fundador, cujo
Espírito da verdade reside com ela o tempo todo, a Igreja
pode infalivelmente discernir o que pertence à revelação,
não importando quão obscuro o conteúdo possa ser.

O que se ganha por admitir tal visão? O apologista romano não tem
de defender a idéia de uma tradição oral inspirada, mas agora tem de
defender a idéia de que o próprio magistério romano é tão divina­
mente guiado que tal tradição pode “discernir infalivelmente” o que
é e o que não é revelação, e que não importa qual seja o “grau de
obscuridade”, em razão do qual uma verdade divina pode estar oculta!
Em nível prático, o que isso significa é realmente pior do que a visão
tradicional de que Roma pode “encontrar” seja o que for que queira
na “revelação”, e impor essa “verdade” suposta sobre todos os cren­
tes, e isso com a punição do anátema. Ela fez exatamente isso com
a Ascensão de Maria, uma doutrina absolutamente ausente da Escri­
tura e da história da igreja iniciante. Entretanto, é uma crença que
deve ser abraçada de fide, e, nas palavras do Papa Pio IX, “se alguns
pensarem em seus corações de outra maneira do que definimos (o
que Deus proíbe), eles saberão e compreenderão plenamente que,
por seu próprio julgamento, serão condenados, pois causaram uma
destruição com respeito à fé, e se afastaram da unidade da Igreja: e,
além disso, eles, por esse ato, sujeitam-se a penalidades ordenadas
pela lei, se, por palavra ou por escrito, ou por outros meios externos,
ousarem expressar o que pensam em seus corações”. Os apologistas
romanos que adotam essa visão não estão optando pela “Escritura e
tradição”. Estão, na realidade, optando pela “Escritura e a Igreja”.

6 John O ’Brien, Finding Christ’s Church (Notre Dame, IN: Ave Maria
Press, 1950), p. 18.

7 Henry G. Graham, Where We Got the Bible (Rockford, IL: TAN


Books, 1977, p. 152.

8 Por exemplo, veja a seção “The Fathers Know Best” em This Rock,
a revista católica romana da organização apologética Cathode Answer,
outubro 1990, ρρ. 21-22.

9 Martin Chemnitz identificou e ilustrou pelo menos oito usos dife­


rentes do term o “tradição” nas fontes patrísticas em seu livro
Examination o f the Council o f Trent (Saint Louis: Concordia Publishing
House, 1971), 1:219-307.

10 Irineu, A gainst Heresies, 3.4:1. Ver Alexander Roberts e James


D onaldson, editores, The A nte-N icene Fathers (Grand Rapids:
Eerdmans, 1981), 1:416-417. Essa passagem é citada no artigo
‘Traditions o f God, Not Men” de This Rock.
11 Ibid., 1,10:2.

12 Ibid., 3,1:1. E importante esclarecer por que Irineu estava tão


preocupado acerca do ensino da “tradição” de que há um Deus que
criou todas as coisas por meio de Jesus Cristo. Ele está lutando con­
tra o Gnosticismo, um sistema que negava que o único Deus verda­
deiro criou todas as coisas. A o contrário, os gnósticos interpunham
seres entre o único Deus verdadeiro e a criação.

13 Ibid., 3,4:2. O mesmo é verdadeiro da citação d e Against Heresies,


1,10:2 — essa tradição é claramente exposta por inteiro em 1,10:1, e
isso repleto de numerosas citações diretas da Escritura!

14 Basílio, On the Spirit, 66 em NPNF, Série II, VIII:40-41. Essa mes­


ma passagem é citada no artigo This Rock, iniciando e encerrando
no mesmo ponto.

15 Ibid.

16 NPNF, Série II, VIII:229. Ver também a defesa de Basílio sobre a


Trindade e sua plena confiança na “Escritura inspirada por Deus”, não
a “tradição oral”, em certos lugares como sua carta a Gregório encon­
trada no mesmo volume, pp. 137-141, particularmente a seção 4.

17 De conformidade com fonte católica romana, William Jurgens,


TheFaith o f theFLarlyFathers (Collegeville, MN: Liturgical Press, 1979),
11:24. Jurgens fornece uma nota bem ilustrada nesta passagem: “Os
termos άθετέΐν τι των γεγραμμένων e έπεισόγειν των
μνη γεγραμμένων podem ser considerados equivalentes a “re­
jeitar qualquer coisa que esteja na Escritura e introduzir qualquer
coisa que não esteja na Escritura.”

18 Pode-se notar que, com o passar do feto, ambos os pais até aqui
examinados são também problemas para as alegações romanas com
respeito à supremacia papal, a saber: Irineu em sua censura a Vítor,
e Basílio em sua rejeição da interferência de Roma na questão de
Melécio de Antioquia. Com respeito ao texto da advertência de Irineu
a Vítor, ver The Ante-Nicene Fathers, 1:569, e sobre o apoio de Basílio
a Melécio contra Roma, ver NPNF, Série II, VIIL253.

19 Frases como “a fé constante da Igreja” e o “unânime acordo dos


pais” são tiradas diretamente dos postulados de Trento e Vaticano I,

20 Agostinho, De bono viduitatis, 2. Ver NPNF, Series 1 , 111:4-42 para


tradução alternativa. Migne (PL 40:431) proporciona o texto: “Quam
id quod apud Apostolum legimus? Sancta enim Scriptura nostras
doctrinae regulum figit, ne audeamus sapereplus quam oportet sapere ·,....
Non sit ergo mihi aliud te docere, nisi verba tibi doctoris exponere.”
Observe especialmente o uso da frase “Scriptura nostrae doctrinae
regulam figit”, pois sola Scríptura é a doutrina que ensina que a Escri­
tura é a única e suprema “regula fidei”, a “regra de fé” para a Igreja.

21 Agostinho, “To Maximin the Arian”, citado por George Salmon,


The Infallibility o f the Church (Grand Rapids: Baker, 1959), p. 295.
Salmon assim apresenta o texto: “Sed nun nec ego Nicaenum, nec
tu debes Ariminense, tanquam praejudicaturus, proferre concilium.
Nec ego hujus auctoritate, ne tu illius detineris. Scripturarum
auctoritatibus, non quorumque propriis, sed utrique communibus
testibus, res cum re, causa cum causa, ratio cum ratione concertet”
(Agostinho, Cont. Maximin Arian, ii. 14, vol. VIII:704).

22 Agostinho, De unitate ecclesiae, 3, citado por Martin Chemnitz,


Examination o f the Counril o f Trent, Part 1 (Saint Louis: Concordia
Publishing House, 1971), p. 157.

23 Ibid.

24 Ibid.

25 Ibid., 10, dtadas por Chemnitz, p. 159.


26 Agostinho, Contra Litteras Petiliani, Livro 3, cap. 6. Migne (PL
43:351) contém o texto: “Proinde sive de Christo, sive de ejus
Ecclesia, sive de quacumque alia re quae pertinet ad fidem vitamque
vestram, non dicam nos, nequaquam comparandi ei qui dixit, Licet
si nos·, sed om nino quod secutus adjecit. Si angelus de calo vobis
annuntiaverit p m ter quam quod in Scripturis legalibus et evangelicis
accepistis, anathema sit.”

27 Agostinho, In Epistolam Johannis tractus, 2. Ver NPNF Série I,


VII:469. A frase final em latim é: “in quo quod palpemus nos non
habemus, sed quod legamos habemus” (Migne, PL 35: 1989).

28 Veja especialmente a carta de Agostinho a Januário para obter


uma completa discussão de sua visão sobre esse ponto (NPNF, Sé­
rie I, 1:300-303). Observe espedalmente o fato de que o próprio
Agostinho diferencia entre as práticas baseadas na Escritura e as
baseadas na “tradição” (Capítulo 6).

29 Veja a discussão de Libério e todo o conceito da infalibilidade papal


em Philip Schaff, The Creeds o f Christendom (Grand Rapids: Baker, 1985),
1:13 4 -18 8, e sua H istory o f the Christian Church (Grand Rapids:
Eerdmans, 1985), 111:635-636, especialmente a nota de rodapé 2.

30 Atanásio, To Serapion, 1, 28, como foi citado em Jurgens, The Faith


o f the Early Fathers, 1 :336. Texto em Migne, Patrologia Cursus Completus,
Series Graeca (1857), 26:593-596 (daqui por diante PG).

31 Ibid.

32 Compare o uso da frase “padrões subordinados” em referência a


várias confissões protestantes como exemplo do uso moderno des­
se conceito.

33 Atanásio, Four Discourses Against the Arians, 111:28, em NPNF, Series


II, IV:409. Texto em Migne, PG, 26:384-385.
34 Em grego é σκοπό".

35 NPNF, IV:310; Migne, PG, 26.28.

36 NPNF, IV :311; Migne, PG, 26:28.

37 NPNF, IV:312; Migne, PG, 26:33.

38 NPNF, IV:313; Migne, PG, 26:37.

39 NPNF, IV 327-328; Migne, PG, 26:37.

40 NPNF, IY:409; Migne, PG, 26:385.

41 Tradução do autor. O texto grego encontrado em R obert


Thomson, editor, Athanasius: Contra Gentes and De Incarnatione (Oxford
Clarendon Press, 1971), p. 2. Ou Migne, PG, 25:4. O grego lê:
αύτάρκεις μεν γάρ είσιν α'ι άγιαι κάι θεόπνευστοι
γραφα'ι πρός την τής άληθε'ιας άπαγγελ'ιαν. Com refe­
rência ao termo αύτάρκεις, observamos a definição apresentada
por Bauer, “suficiência, uma competência” e “contentamento, auto-
suficiência”. Ver Bauer, Arndt, Gingrich e Danker, A Greek-English
Lexicon o f the New Testament and Other Early Christian Literature, 2nd ed.
(Chicago: University o f Chicago Press, 1979), p. 122. A obra mais
útil de Louw and Nida, Greek-English Lexicon o f the N ew Testament
Based on Semantic Domains (United Bible Societies: 1988), p. 680, diz
do termo, “uma condição de adequação ou suficiência— ‘o que é
adequado, o que é suficiente, o que é necessário, adequação. ...’ Em
várias línguas o equivalente dessa expressão em 2 Coríntios 9.8 pode
ser ‘tendo sempre o que necessitais* ou, afirmado negativamente,
‘nada faltando em qualquer coisa’”.

42 Atanásio, Vita S. Antoni, 16 NPNF, Series II, IV:200. O texto grego


diz: τάς μέν γραφάς Ικανάς είναι πρός διδασκαλ'ιαν (cita­
do por Ε.Ρ. Meijering, Athanasius: Contra Gentes (Leiden: E.J. Brill, 1984),
ρ. 10; Migne, PG, 26:868. Não se pode deixar de notar o íntimo paralelo
das palavras de Paulo em 2 Timóteo 3.16, onde ele escreve que as Escri­
turas inspiradas por Deus são ώφέλίμΟζ TtpOÇ διδασκαλίαν. Os
apologistas romanos tentam enfraquecer o termo ώφέλίμος o máxi­
mo possível, asseverando que a Escritura é meramente proveitosa. E in­
teressante notar como Atanásio compreende claramente o significado
de ώφέλίμος como sendo paralelo de ÍKOtVÒCÇ, um termo que fala
nitidamente de suficiência (ver a próxima nota).

43 A d Episcopos JEgyptice, em NPNF, Series II, IV:225. O texto grego


é encontrado em Migne, PG, 25:548. Ele diz: Επειδή δέ ή θεία
Γραφή πάντων έστιν Ικανωτέρα, τούτου χάριν τοις
βουλεμένοις τά πολλά περ\ τούτων γινώ σκ ειν
συμβουλεύσας έντυγχάνειν τοις θε'ιοις λόγοις, αύτός
νυν τό κατεπειγον έσπούδασα δηλώσαι, διό μάλιστα
κάΐ ούτως έγραψα. Ο termo que Atanásio usa aqui para descre­
ver a suficiência da Escritura é Ικανωτέρα. A forma comparativa
aqui usada é traduzida como “de todas as coisas a mais suficiente”,
ou “é mais suficiente do que todas as coisas”. A forma substantiva é
definida como “aptidão, habilidade, qualificação” por Bauer; a for­
ma adjetiva, “suficiente, adequada, assaz grande”; a forma verbal,
“fazer o suficiente, qualificar”; e a forma adverbial, “sufidentemen-
te” (Bauer, Greek-Eng/ish Lexicon, p. 374). Tão comum é o uso por
Atanásio de ambos ϊκανα e αύτόρκείς (ver notas 41 e 42) com
referência à Escritura, que ele as combina em sua carta a Serapião
(1:19; Migne, PG, 26:573) como segue: μόνον τά έν τάΐς ΓραφοΤίς
μανθανέτω. Αύτάρκη γάρ κάι Ικανά τά έν ταύταις
Κείμενα (“Aprendamos somente as coisas que estão na Escritura.
Porquanto são sufidentes e adequadas as coisas nesse sentido”). Os
apologistas romanos devem rejeitar totalmente a compreensão ób­
via de Atanásio do termo “provdtosa” [ou “útil”] em 2 Timóteo
3.16 com referênda à suficiênda e adequação.]

44 Atanásio, De Incarnatione Verbi Dei, 56, em NPNF, Series II, IV:66.


A frase final é έκέίναι μ'εν γάρ διά θεολόγων άνδρών παρά
θεού έλαλήθησαυ κα'ι έγράφησαν. Texto em Meijering,
Athanasius: Contra Gentes, p. 10, e Migne, PG, 25:196.

45 Atanásio, De Decretis, 32, em NPNP, Series II, IV: 172; Migne, PG,
25:476.

46 Atanásio, De Synodis, 6, em NPNF, II, IV:453; Migne, PG, 26:689.


O texto que se refere à suficiência da Escritura já é familiar:' ECTTl
μ'εν λάρ ϊκανωτερ[α] πάντων ή θεία Γραφή.
O Estabelecimento da Escritura
Dr. K C . S p rou l

“Norma das normas e sem norma.” Com essas palavras a


igreja histórica confessava sua fé na autoridade da Escritura
Sagrada. A frase “norma das normas” destinava-se a indicar
o grau superlativo de modo semelhante à expressão usada no
Novo Testamento para Cristo, no sentido de ser ele Rei dos
reis e Senhor dos senhores. Ser Rei dos reis é ser o Rei supre­
mo que governa sobre todos os demais reis. Ser Senhor dos
senhores é ser exaltado acima de todos os senhores. De modo
semelhante, a expressão “norma das normas” indica tratar-se
de norma que está acima de todas as demais. A frase comple­
mentar, “sem norma”, designa o caráter normativo da Escri­
tura como norma suigeneris, isto é, a norma em si mesma. Ela
figura em condição exclusiva, não operando como norma
prim us inter pares, a primeira entre suas iguais.
Quando falamos do Canon da Escritura, estamos falando
de uma norm a ou regra. O termo “cânon” deriva por
transliteração da palavra grega kanon, que significa uma régua
ou vara linear para medição, “regra” ou “norma”. Em uso
popular, o termo Cânon refere-se uma coleção de livros indi­
viduais, que juntos compreendem o Antigo e o Novo Testa­
mentos. E a lista completa de livros que é recebida pela Igreja
e é codificada naquilo que chamamos Bíblia. A palavra “Bí­
blia”, por sua vez, procede da palavra grega que corresponde
a “livro”. Em sentido estrito, a Bíblia não é um livro, e sim
uma coleção de 66 livros. A Bíblia clássica protestante con-
tém 66 livros. A Bíblia católico-romana inclui os livros
apócrifos, o que significa que ela contém alguns livros a mais
[no Antigo Testamento], ficando, portanto, um pouco maior
do que os 66 livros. Isso levou ambas as correntes a um con­
tínuo debate quanto à precisa natureza do Canon. Roma e o
Protestantismo histórico discordam quanto à composição ade­
quada do Canon bíblico. Os credos protestantes excluem os
apócrifos do Cânon.
Essa discórdia em torno dos livros apócrifos leva a um
problema de conseqüência maior que envolve a questão
canônica. Como o Cânon foi estabelecido? Por que autorida­
de? O Cânon está fechado para novos aditamentos? Essas e
outras perguntas contribuem para ampliar o debate sobre a
natureza do Cânon bíblico.
Um dos pontos mais importantes acerca do Cânon é o da
compilação histórica. O Cânon formou-se por decreto da igre­
ja? Ele já existia na comunidade cristã primitiva? Foi ele esta­
belecido por intervenção especial da Providência? E possível
que certos livros que entraram no Cânon atual não deveriam
ter sido incluídos? E possível que livros que foram excluídos
deveriam ter sido incluídos?
Sabemos que, ao menos por um período temporário,
Lutero questionou a inclusão da Epístola de Tiago no Cânon
do Novo Testamento. O fato de Lutero referir-se à Epístola
de Tiago como “Epístola de Palha”, ou epístola desgarrada, é
um caso a se registrar. Os críticos da inspiração bíblica não se
cansaram de mencionar esses comentários de Lutero para
argumentar em favor de sua causa que Lutero não acreditava
na infalibilidade da Escritura. Esse argumento não somente
falha em fazer justiça às repetidas afirmações de Lutero so­
bre a autoridade divina da Escritura e sua ausência de erro,
mas falha também mais seriamente em fazer a adequada dis­
tinção entre a questão da natureza da Escritura e também sua
extensão. Lutero foi consistente em sua convicção de que toda
a Escritura é inspirada e infalível. Sua questão a respeito de
Tiago não foi da inspiração da Escritura, mas uma questão
de saber se Tiago era de fato Escritura.
Embora Lutero não tenha desafiado a infalibilidade da
Escritura, ele o fez muito enfaticamente sobre a infalibilida­
de da igreja. Ele admitiu a possibilidade de a igreja errar,
mesmo quando ela estabeleceu a questão de quais livros per­
tenciam corretamente ao Canon. Para notar mais claramente
esse ponto controverso, podemos referir-nos a uma distin­
ção muitas vezes feita pelo Dr. John Gerstner. Gerstner dis­
tingue dessa maneira a visão católico-romana sobre o Cânon
e a visão protestante sobre o Cânon:

PONTO DE VISTA CATÓLICO-ROMANO: A Bíblia é


uma coleção infalível de livros infalíveis.

PONTO DE VISTA PROTESTANTE: A Bíblia é uma


coleção falível de livros infalíveis.

A distinção aqui considerada refere-se à convicção da


Igreja Católica Romana de que o Cânon da Escritura foi
declarado infalível pela igreja. Por outro lado, a posição pro­
testante é no sentido de que a decisão da igreja a respeito
dos livros que devem compor o Cânon foi uma decisão
falível. Ser falível significa que é possível que a igreja errou
em sua compilação dos livros encontrados no atual Cânon
da Escritura.
Quando Gerstner faz essa distinção, não está nem afir­
mando nem sugerindo que a igreja de fato errou em seu julga­
mento quanto ao que pertence adequadamente ao Cânon. Sua
interpretação não tem o desígnio de lançar dúvida sobre o
Cânon, mas proteger-se simplesmente da idéia de uma igreja
infalível. Uma coisa é dizer que a igreja pode ter errado; outra
coisa é dizer que a igreja efetivamente, errou.
A fórmula de Gerstner tem sido freqüentemente a de opor-
se tanto à consternação como à crítica mordaz nos círculos
evangélicos. Isso parece indicar que ele e aqueles que concor­
dam com sua avaliação estão solapando a autoridade da Bí­
blia. Nada, porém, pode ir além da verdade. Como Lutero e
Calvino antes dele, Gerstner tem sido um defensor ardoroso
da infalibilidade e inerranda da Escritura. Sua fórmula é sim­
plesmente destinada a reconhecer que havia um processo his­
tórico de seleção pelo qual a igreja determinou quais livros
eram realmente Escritura e quais não eram. O caso é que,
nessa seleção criteriosa ou processo de seleção, a igreja pro­
curou identificar os livros que deveríam realmente ser julga­
dos como Escritura.
Podemos dizer que Roma leva uma certa “vantagem” com
respeito à infalibilidade. Roma acredita que a igreja é infalível,
tanto quanto a Escritura é infalível. Tal infalibilidade esten­
de-se não somente à questão da formação do Cânon, mas
também à questão da interpretação bíblica. Resumindo, po­
demos dizer que, de acordo com Roma, temos uma Bíblia
infalível, cuja extensão é decretada infalivelmente pela igreja
e cujo conteúdo é interpretado infalivelmente por ela. O in­
divíduo cristão está entregue à sua própria falibilidade en­
quanto procura compreender a Bíblia infalível interpretada
pela igreja infalível. Ninguém está estendendo a infalibilidade
ao crente individual.
Para o protestante padrão, embora o crente tenha o direi­
to à interpretação pessoal da Escritura, reconhece-se clara­
mente que o leigo está sujeito a interpretar equivocadamente
a Bíblia. Ele tem a condição de distorcer a Escritura, porém
jamais o direito de fazê-lo. Ou seja, com o direito de exercer
a interpretação pessoal é-lhe conferida também a responsa­
bilidade da interpretação correta. Em hipótese alguma temos
o direito de distorcer o ensino da Escritura. Ambos os lados
concordam que o leigo é falível quando procura compreen­
der a Escritura. O Protestantismo histórico limita a extensão
da infalibilidade às próprias Escrituras. A tradição e os cre­
dos da igreja podem errar. Os intérpretes individuais da Es­
critura podem errar. Somente as Escrituras em si mesmas
estão isentas de erro.
Embora esteja claro que a igreja passou por uma seleção
ou processo de escolha na fixação de uma lista formal dos
livros canônicos, isso não significa que não havia um Cânon
ou regra anterior às decisões dos concílios da igreja. Os tex­
tos do Novo Testamento serviram como um Cânon funcio­
nal desde o início. B.B. Warfield assinala:

A igreja não se desenvolveu por lei natural: ela foi funda­


da. E os mestres competentes enviados por Cristo para
fundar sua igreja conduziram-na à frente, tornando-se
sua mais preciosa posse um corpo das Escrituras divi­
nas, que impuseram à igreja que fundaram como seu có­
digo de lei. Nçnhum leitor do Novo Testamento precisa
provar isso; em cada página desse livro espalha-se a evi­
dência de que, desde o começo, o genuíno Antigo Testa­
mento foi tão zelosamente reconhecido como lei pelos
cristãos quanto pelos judeus. Assim, a igreja cristã nunca
operou sem uma “Bíblia” ou um “Cânon”.1

A afirmação de Warfield de que a igreja foi fundada cha­


ma a atenção para o fato de a igreja possuir um fundador e
uma fundação. O fundador foi Cristo. A fundação foram os
escritos dos profetas e apóstolos. Na imagem da igreja como
edifício, a metáfora visualiza Cristo como a principal pedra
angular. Ele não é a fundação da igreja. E o fundador. A fun­
dação da igreja foi assentada por Cristo e em Cristo. Ele é a
Principal Pedra Angular, sobre a qual essa fundação está
embasada. Repetindo: são os profetas e os apóstolos que são
considerados a fundação na metáfora do edifício.
O Cânon do Novo Testamento assenta-se sobre uma “tra­
dição”. O termo “tradição” é visto freqüentemente através de
um olho preconceituoso entre os evangélicos. Eles padecem do
problema de culpa por associação. A fim de se isolarem do pa­
pel desempenhado pela tradição em Roma, evangélicos zelosos
enfrentam o perigo de jogar fora o bebê com a água do banho.
O princípio Reformador de sola Scriptura rejeita enfaticamente a
teoria da dupla fonte de Roma com respeito à revelação especial.
Na IV Sessão do Concilio de Trento, Roma declarou que a ver­
dade de Deus é encontrada tanto nas Escrituras como na tradi­
ção da igreja. Os Reformadores rejeitaram essa dupla fonte e
recusaram-se a elevar a tradição eclesiástica a tal nível.
Cristo censurou os fariseus por se colocarem acima da
palavra de Deus com as tradições dos homens. Esse julga­
mento da tradição humana associado à aversão ao ponto de
vista dos católicos romanos levaram alguns evangélicos a re­
jeitarem inteiramente a tradição. O perigo disso está em omi­
tir o papel importante que a tradição desempenha no âmbito
da própria Escritura. As Escrituras não rejeitam toda a tradi­
ção. Elas repudiam as tradições dos homens, mas confirmam
outra tradição — a tradição divina. Paulo, por exemplo, fala­
va freqüentemente da tradição em sentido positivo. Ele fala
daquele corpo de verdade que foi transmitido à igreja por
Cristo e pelos apóstolos. Estamos falando daparadosis, a “trans­
missão” da verdade de Deus.
A tradição positiva da qual a Escritura fala pode ser refe­
rida como sendo a Tradição Apostólica, a qual teve um de­
sempenho considerável na formação do Cânon. A igreja não
criou uma nova tradição por meio do estabelecimento do
Cânon. Indubitavelmente, não é de fato apropriado falar do
estabelecimento do Cânon pela igreja. Não foi a igreja que
estabeleceu o Cânon; foi o Cânon que estabeleceu a igreja. A
igreja não estabeleceu o Cânon, mas o reconheceu e subme-
teu-se ao seu governo.
No âmago da questão do Cânon está o aspecto da autori­
dade apostólica. No Novo Testamento, o apóstolo ('apostolos)
é “o que foi enviado”. O ofício do apóstolo Ínveste-o da au­
toridade daquele que o envia ou autoriza-o a falar como seu
representante. A tradição apostólica tem início com o Deus
Pai. O Pai é aquele que primeiro comissionou um apóstolo.
O primeiro apóstolo do Novo Testamento é o próprio Cris­
to, pois foi enviado pelo Pai e falou com a autoridade que lhe
foi concedida pelo Pai. E a Cristo que o Pai delegou “toda a
autoridade no céu e na terra”. O segundo apóstolo é o Espí­
rito Santo, que foi enviado por ambos — o Pai e o Filho. Na
seqüência de autoridade delegada estão os apóstolos do Novo
Testamento, tais como Pedro e Paulo, ao lado dos demais.
No período patrístico da história da igreja, Irineu com­
preendeu esse vínculo. Ao defender os apóstolos contra os
hereges, Irineu argumentou que rejeitar os apóstolos era re­
jeitar aquele que os enviou, a saber, Cristo. Rejeitar Cristo é
rejeitar aquele que o enviou, ou seja, o Deus Pai. Portanto,
para Irineu, a rejeição do ensino apostólico era a rejeição de
Deus. Nesse sentido, Irineu estava simplesmente ecoando as
palavras de Jesus, quando disse a seus apóstolos que todo
aquele que os recebesse estaria recebendo a ele, e todo o que
os rejeitasse também estariam rejeitando a ele.
Foi a tradição apostólica que foi codificada na formalização
do Cânon do Novo Testamento. A tradição apostólica não
estava limitada exclusivamente aos escritos dos próprios após­
tolos. Antes, o Cânon da Escritura contém os escritos dos
apóstolos e seus companháros. Warfield comenta novamente:

Entretanto, deixemos claramente entendido que não foi


exatamente a autoria apostólica que, na avaliação das igre­
jas mais antigas, constituiu um livro ou parte do “cânon”.
A autoria apostólica, certamente, foi cedo confundida
com a canonicidade. Havia dúvida quanto à autoria apos­
tólica de Hebreus, no Ocidente, e de Tiago e Judas, evi­
dentemente, o que serviu de base para a lentidão da in­
clusão desses livros no “cânon” de certas igrejas. Porém
no início não foi assim. O princípio da canonicidade não
foi autoria apostólica, mas imposição pelos apóstolos como
“lei”. Por isso o nome de Tertuliano para o “cânon” é
instrumentum ; e ele fala do Antigo e Novo Instrumentos, como
os chamamos Antigo e Novo Testamentos.2

Pode-se constatar, desde o começo, o fato de a igreja ter


um “cânon funcional” oriundo dos escritos do próprio Novo
Testamento. Pedro, em 68 d.C., refere-se aos escritos de Pau­
lo como incluídos em “outras Escrituras” (2Pe 3.16). Paulo
também cita o Evangelho de Lucas em 1 Timóteo 5.18. Des­
de o período inicial da era pós-apostólica, os pais tratavam os
escritos do Novo Testamento como Escritura. Embora os
antigos pais não usassem costumeiramente a palavra “Escri­
tura”, eles tratavam os escritos com autoridade escriturística.
Citações tiradas dos escritos do Novo Testamento e citadas
como autoridades podem ser encontradas nos documentos de
Clemente, Inácio, Policarpo, Pápias, Justino Mártir e outros.
Perto do final do século II, o D iatessaron de Taciano con­
tinha uma harmonia dos Evangelhos. O Cânon Muratoriano
(provavelmente do final do século II) continha uma lista dos
livros do Novo Testamento, que tinha por objetivo, provavel­
mente, opor-se ao falso cânon criado pelo herege Marcião. O
cânon de Marcião era uma tentativa deliberada de dar uma
versão expurgada do Novo Testamento para acomodar sua
visão negativa do Deus do Antigo Testamento. O “Novo Tes­
tamento” de Marcião incluía o Evangelho de Lucas e dez das
epístolas de Paulo.
Desde o período mais remoto de sua história, é claro que
a ampla maioria de livros que estão agora contidos no Cânon
do Novo Testamento estava funcionando como “Cânon” na
igreja. Algumas dúvidas foram levantadas em relação a uns
poucos desses livros, incluindo Hebreus, Tiago, 2 Pedro, 2 e
3 João, Judas e Apocalipse. Esses livros não contavam com o
endosso universal. Foi somente no século IV que as disputas
terminaram e a sanção formal de todo o Canon do Novo Tes­
tamento completou-se. Atanásio de Alexandria citou todos
os 27 livros em 367 d.C. Em 363 o Concilio de Laodicéia
havia arrolado todos os livros presentes, exceto o Apocalip­
se. No Terceiro Concilio de Cartago, em 397 d.C., foram in­
cluídos todos os livros que figuram atualmente no Cânon.
Durante os debates dos primeiros séculos foram suscita­
dos certos critérios, com base nos quais os livros foram con­
siderados canônicos. Estes notae canoniátatis incluíram (1) ori­
gem apostólica, (2) aceitação pelas igrejas originais, e (3) con­
formidade com a incontestável essência dos livros canônicos.
A origem apostólica incluía não somente os livros escritos
pelos próprios apóstolos, como também os que foram auto­
rizados por eles. Temos, como exemplos, o Evangelho de
Marcos, tido como recomendado por Pedro, e o Evangelho
de Lucas, que recebeu a sanção de Paulo.
O acolhimento dos livros pelas igrejas dos primeiros tem­
pos tinha como propósito seu uso nos cultos de adoração e no
ensino aos prosélitos dentro das igrejas. A palavra latina recipere
era usada no Cânon Muratoriano para indicar que a igreja “re­
cebeu” os livros do Novo Testamento.3Os livros excluídos do
cânon continham escritos tais como o Didaquê, o Pastor de Hermas,
a Epístola de Barnabé e a epístola I Clemente. Um estudo desses
livros indica imediatamente sua posição subcanônica. Um claro
reconhecimento, por exemplo, é o de existir uma linha que se­
para a autoridade apostólica da subapostólica.
E.F. Harrison escreve a respeito desses livros subcanônicos:

H.E.W. Turner observa que uma extensão do conflito


podia surgir na aplicação desses critérios. Um livro podia
ser recebido e apreciado amplamente e, no entanto, tor­
nar-se não-apostólico. Tal foi o caso do Pastor de H em as,
que teve de ser excluído do uso na adoração pública,
porém foi permitido para propósitos de edificação pes­
soal. Isso ajuda a explicar a origem de uma classe da lite­
ratura cristã primitiva, conhecida como eclesiástica, dife­
renciada igualmente dos escritos canônicos e dos espú­
rios, contendo tais obras como a Epístola de Clemente e
a Epístola de Barnabé, bem como o Pastor de H em asS

Além desses livros, a igreja rejeitou uma avalancha de li­


vros espúrios que apareceram já no século II, conhecidos
como livros apócrifos, os quais foram freqüentemente asso­
ciados aos escritos dos hereges gnósticos, que procuravam usur­
par a autoridade de que os apóstolos do Novo Testamento
foram investidos. Os gnósticos alegavam ter uma elite especial
de conhecimento (gnosis) que transcendia o conhecimento co­
municado pelos apóstolos. Ao mesmo tempo, tentavam ob­
ter credibilidade apostólica para os seus livros, alegando que
eles foram escritos pelos próprios apóstolos. Esse foi um
exemplo da propaganda da literatura que tentou solapar a tra­
dição apostólica. Orígenes disse a respeito desses escritos:

A igreja acolhe somente quatro evangelhos; os hereges


têm muitos, tais como o evangelho dos egípcios, o evan­
gelho de Tomé, etc. Lemos esses [escritos] para que não
pareçamos ignorantes àqueles que pensam que conhe­
cem alguma coisa extraordinária, se estão familiarizados
com aquelas coisas registradas nesses livros. Ambrósio é
merecedor de crédito quando afirma que "lemos esses
[escritos] para que eles [os que ouvem] não passem por
ignorantes; lemos [tais livros] não para acatá-los, mas para
que os rejeitemos; e para podermos conhecer o que di­
zem essas coisas, das quais eles tanto se vangloriam.5
Os assim chamados evangelhos apócrifos propagam-se
com histórias imaginárias e ensino herético. Alguns tentam
povoar de detalhes os anos da infância de Jesus. O Evange­
lho de Tomé, por exemplo, contém uma relação de milagres
fúteis realizados pelo menino Jesus, tais como moldar pássa­
ros com barro e, em seguida, fazê-los voar.

0 Cânon do A ntigo Testamento

A principal diferença entre o cânon católico-romano e


o cânon protestante está na inclusão dos Apócrifos no A n­
tigo Testamento. Os Apócrifos (não confundir com os es­
critos apócrifos do Novo Testamento) referem-se a uma
série de livros compostos durante o período intertestamen-
tário. A Igreja Católica Romana incluiu os Apócrifos e o
Protestantismo histórico os excluiu. As Escrituras Hebraicas
são costumeiramente mencionadas como “a Lei, os Profe­
tas e os Escritos”. A controvérsia focaliza-se no episódio
da extensão do cânon do Antigo Testamento. O Cânon
Judaico inclui os Apócrifos?
Freqüentemente faz-se referência à diferença entre o
Cânon Palestinense e o Cânon Alexandrino. A História indi­
ca que o Cânon dos Judeus Helenizados de Alexandria inclui
os Apócrifos, porém acrescenta que a Bíblia Hebraica do
Cânon Palestinense os exclui. R.K. Harrison escreve:

Em qualquer discussão sobre o cânon do Antigo Testamen­


to é importante distinguir entre o da Bíblia Hebraica e sua
contraparte em outras versões da Escritura. O grau de dife­
rença na idéia de um cânon de escritos sagrados pode ser
visto por referência, de um lado, na versão samaritana, na
qual somente o Pentateuco estava em concórdia com a
canonicidade, e, por outro lado, na versão dos Setenta, que
incluía os escritos conhecidos como Apócrifos.6
O debate sobre a questão dos Apócrifos é complexo e con­
tínuo. Alguns têm argumentado que, mesmo no cânon
Alexandrino, os Apócrifos eram considerados de posição se­
cundária e vistos como “deuterocanônicos”. Esse ponto de vis­
ta é debatido pelos estudiosos católico-romanos, que defendem
que os Apócrifos pertencem ao cânon judaico original.
Os Reformadores excluíram os Apócrifos porque esta­
vam persuadidos de que eles não pertenciam ao cânon
hebraico reconhecido no tempo de Jesus. Turretin comenta:

A igreja judaica, à qual os oráculos de Deus foram confia­


dos (Rm 3.2), nunca considerou canônicos [os Apócrifos],
mas manteve o mesmo cânon conosco (como foi admitido
por Josefo em ContraApião, ... Eles nunca são citados como
canônicos por Cristo e pelos apóstolos, como os outros. E
Cristo, ao dividir todos os livros do Antigo Testamento em
três classes (a lei, os Salmos e os profetas), aprova claramen­
te o cânon dos judeus e exclui aqueles livros que não estão
incluídos nessas classes. A igreja cristã, durante quatrocen­
tos anos, reconheceu conosco os mesmos livros canônicos,
e não outros. ... Os autores não foram nem profetas nem
homens inspirados, uma vez que os textos foram escritos
depois de Malaquias (o último dos profetas); nem foram
seus livros escritos na língua hebraica (como aqueles do
Antigo Testamento), e sim em grego. Por essa razão, Josefo
reconhece que as coisas que foram escritas por seu povo
depois da época de Artaxerxes não foram igualmente acre­
ditadas e competentes como aqueles que os precederam “por
não terem sido uma sucessão incontestável de profetas”.7

Igreja e Cânon

Uma das grandes controvérsias da Reforma concentrou-


se na autoridade da igreja e da Escritura. Diz-se com fre-
qüência que, embora sola Fide tenha sido a causa material da
Reforma, sola Scriptura foi sua causa formal. Lutero insistiu
que ambos, os papas e os concílios da igreja, podiam errar.
Ele baseava sua defesa da justificação com apoio somente
nas Escrituras. Roma contra-argumentou que, em sentido real,
a Escritura devia sua autoridade à autoridade da igreja, por­
que foi a igreja que “criou” o cânon. Essa posição foi forte­
mente criticada por Calvino:

Nada, portanto, pode ser mais absurdo do que a ficção,


no sentido de que o poder de julgar a Escritura cabe à
igreja, e que aquela depende certamente do comando
desta. Quando a igreja a recebe e lhe confere o timbre de
sua autoridade, ela contrariamente não torna autêntica a
que era duvidosa ou contravertida, mas reconhece-a como
a verdade de Deus; fiel ao dever, ela mostra sua reverên­
cia por meio de uma aceitação resoluta. Quanto à per­
gunta — Como seremos persuadidos de que isso veio de
Deus sem recorrer a um decreto da Igreja? E exatamente
o mesmo que fosse perguntado — Como aprendemos a
distinguir a luz da treva, o branco do preto, o doce do
amargo? A Escritura ostenta em sua face evidência tão
clara de sua verdade, quanto o branco e o preto fazem de
sua cor, e o doce e o amargo fazem de seu paladar.8

Para Calvino, a Bíblia é objetivamente a Palavra de Deus e


recebe sua autoridade dele, e não da igreja. A igreja não cria a
Escritura, mas recebe-a (recipimus) e submete-se a uma autori­
dade que já está lá. Calvino desconhecia uma Bíblia que so­
mente “se torna” a Palavra de Deus após a declaração de uma
igreja, ou então após a iluminação do Espírito Santo.
Para os Reformadores a Bíblia era “cânon” tão logo foi
escrita. A Palavra de Deus tem autoridade inerente. A igreja é
obrigada a reconhecer essa autoridade e submeter-se a ela.
0 Problema da Redução do Cânon

O problema da redução do cânon pode manifestar-se


quer em termos rudes e ruidosos, ou de forma refinada e
discreta. O antigo herege Marcião representava a forma rude
de tal redução por rejeitar as partes do Novo Testamento
que se referiam ao Deus do Antigo Testamento sob uma
luz positiva. A antipatia de Marcião por Jeová controlava
sua escolha de livros a serem incluídos em sua versão redu­
zida do Novo Testamento.
As formas mais modernas de redução do cânon são mais
refinadas e algumas vezes sutis. Essa forma alcança um propó­
sito semelhante por prover um cânon dentro de um cânon.
Desde a obra épica de Albert Schweitzer TheQuestfo r the H istorical
Jesus (A Busca do Jesus Histórico), muitas tentativas subseqüentes
têm sido feitas para se chegar à “verdadeira” história do Jesus
subjacente ou subentendido na obra do Novo Testamento. A
forma atual do Novo Testamento é visualizada como a criação
da igreja iniciante com redações por editores que enfeitam a
narrativa histórica de Jesus. Essa tentativa de olhar a grama cres­
cer a uma distância de quase dois mil anos atinge o seu ponto
mais baixo na obra contemporânea do “Seminário Jesus”.
A obra mais importante da redução do cânon no século
XX talvez tenha sido a empreendida por Rudolf Bultmann.
O programa de “desmitologização” do Novo Testamento
preconizado por Bultmann foi uma tentativa de escoimar o
Novo Testamento de sua casca mitológica para penetrar no
âmago da verdade encoberta por essa casca. Foi uma tentati­
va de reconstruir a história original extrapolada do kerygma
(proclamação). Bultmann declarou:

Isso tudo é a linguagem da mitologia, e a origem de vári­


os temas pode ser facilmente traçada na mitologia con­
temporânea do Apocalíptico Judaico e no resgate dos
m itos do Gnosticism o. Assim sendo, o kerygma é
inacreditávelpara o homem moderno, pois ele está convenááo de
que a visão mítica do mundo está ultrapassada. Cabe-nos, por­
tanto, perguntar se, quando pregamos o evangelho nos
dias de hoje, esperamos que nossos convertidos aceitem
não somente a mensagem do evangelho, mas também a
visão mítica do mundo, no qual ele se enquadra. Se as­
sim não for, incorpora o Novo Testamento uma verda­
de totalmente independente de seu ambiente mítico? Se
assim é, a teologia deve assumir a tarefa de despojar o
ketygma de sua estrutura mítica, a de “desmitologizar”.9

Bultmann expõe a tarefa de libertar o evangelho infinito


de uma estrutura mítica amordaçada. Ele buscou uma teolo­
gia sem temporalidade, uma teologia que seria relevante para
o hic e f nunc. Ele oferece-nos um cânon “aqui e agora”, que
reduz o cânon original pelo método crítico radical da tesoura
e da cola. Para que o Evangelho seja relevante para o homem
moderno, deve o intérprete vir ao texto com uma “compre­
ensão prévia”, um certo V orverstandnis, que Bultmann desco­
briu por conveniência na filosofia de Martin Heidegger.
Para que as pessoas modernas descubram alguma coisa
significativa para a fé, elas devem ir ao texto da Escritura e
fazer as perguntas corretas. Essas perguntas são formadas
pela intuição apreendida por meio da filosofia existencial. Para
Bultmann a salvação não está vinculada às camadas da Histó­
ria, mas é minuciosa. Ela não ocorre no plano horizontal do
tempo e do espaço, mas vem a nós em um momento de deci­
são, de cima para baixo.
Nesse esquema, o evangelho deve ser libertado do uni­
verso de três paradeiros da visão bíblica universal, que ca­
racteriza uma terra situada embaixo do céu, que está acima, e
o inferno, abaixo da terra.
Ele escreve:
O conhecimento e o domínio do homem no mundo avançou a tais
extremos, por meio da ciência e da tecnologia, que já
não é mais possível a alguém manter seriamente a visão
do Novo Testamento sobre o mundo— na verdade, não
há ninguém que o faça. Que significado, por exemplo,
podemos associar a tais frases do credo como “desceu
ao inferno [ou hades]”, e “subiu ao céu”? ... É impossí­
vel usarmos a luz elétrica e a radiotelefonia, beneficiarmo-
nos das modernas descobertas médicas e cirúrgicas, e,
ao mesmo tempo, acreditarmos no mundo de espíritos e
milagres do Novo Testamento. Podemos pensar em va-
lermo-nos disso em nossa própria vida, mas esperar que
outros o façam é tornar a fé cristã incompreensível e
inaceitável para o mundo moderno.10

Encontramos aqui a redução do cânon com uma desfor­


ra. G.C. Berkouwer notou certa vez, a respeito da visão de
Bultmann, que a Teologia não poderia descer mais fundo.
Essa visão confiante do assunto revela que Berkouwer estava
lendo a História através de lentes cor-de-rosa. Tal observa­
ção ocorreu antes do movimento Morte de Deus na Teologia
e do mais recente Seminário Jesus, no qual a crítica bíblica
degenerou em vandalismo bíblico.
Essa mudança no foco, manifestada em Bultmann, revela
uma mudança na atenção sobre a questão do Cânon, quanto
à autenticidade de livros específicos para a questão da auten­
ticidade do material contido em certos livros, aos quais tinha
sido concedida a condição canônica. O programa de Bultmann
atacou a natureza form a l do Cânon ao atacar várias formas de
literatura encontradas no Cânon histórico.
Normalmente, os tópicos abordados pela Crítica Superior
são vistos como sendo principalmente tópicos de hermenêu­
tica e não sobre o Cânon. Mas a nova hermenêutica está cheia
de implicações quanto ao Cânon. Este é efetivamente reduzi-
do não pela subtração de livros da Bíblia, a partir de uma lista
designada, mas por cortes no conteúdo da Escritura causados
pela pena da hermenêutica. No caso da Reforma, a hermenêu­
tica esboçava o princípio normativo da exegese gramático-his-
tórica. Porém, uma vez que o conteúdo da Escritura fosse reti­
rado de sua estrutura histórica, a norma era abolida.
A hermenêutica Reformada representava um compromis­
so de procurar o significado “objetivo” do texto histórico.
Bultmann evitou essa metodologia argumentando que a in­
terpretação objetiva da Bíblia era não somente impossível
como, o que é mais importante, nem mesmo desejável. De
sua vantagem estratégica, toda uma leitura objetiva da Escri­
tura resultaria para nós em um evangelho preso a uma
irrelevante visão mitológica mundial.
A crise do Canon é atualmente uma crise da visão do mun­
do. Ela é resultante de uma luta contínua entre o naturalismo
e o supernaturalismo. A moderna hermenêutica é uma tenta­
tiva de restabelecer um Canon naturalístico partindo de uma
mensagem da Escritura concebida sobrenaturalmente. Todos
aqueles traços de algo sobrenatural são excluídos logo de iní­
cio. O novo “Canon” é o Canon rígido do naturalismo.
Brunner estava certo quando logo observou a esse respeito
que o verdadeiro aspecto que enfrentamos nesse debate é
uma crise de descrença. O bultmannismo e a teologia pós-
bultmannista são um monumento de tal descrença, na qual o
“Cristo da Fé” tem pouco a ver com o Cristo da História, ou
o Cristo do Novo Testamento.
Os círculos evangélicos não escaparam dessas modernas
form as de reducionism o. A controvérsia a respeito da
inerrância no século XX não foi meramente uma guerra en­
tre o modernismo e o fundamentalismo, ou entre o liberalis­
mo e a ortodoxia. Ela cortou pela raiz o próprio evangelismo
professo, enquanto os evangélicos professos dividiram-se
acentuadamente sobre a questão.
Uma forma de redução de cânon surgiu nas fileiras evan­
gélicas por meios algumas vezes sutis. Os conceitos de “iner­
randa limitada” e a “visão orgânica da Escritura” efetuaram
uma redução na função normativa da Escritura. Por exem­
plo, a alegação histórica de que a Escritura Sagrada é a “única
regra infalível de fé e prática” passou por uma mudança sutil
em alguns quartéis. A nova expressão foi articulada pela fór­
mula: “A Bíblia é infalível somente em questões de fé e práti­
ca.” Essas fórmulas soam bem semelhantes, mas significam
duas coisas totalmente diferentes. Para discriminá-las entre
si, examinemo-las mais de perto:

Premissa A: A Bíblia é a única regra infalível de fé e prática.


Premissa B: A Bíblia é infalível somente em questões de fé e
prática.

Na Premissa A o termo “única” é restritivo com respeito


às normas. Ele declara que há unicamente uma norma ou
regra que é infalível, ou seja, a Bíblia. Isso indica que a Bíblia
como um todo e em todas as suas partes é uma regra ou
norma infalível.
Na Premissa B o termo “somente” é restritivo em senti­
do totalmente diferente. Aqui, o que é restrito é o âmbito da
infalibilidade dentro da Bíblia. Isto é, somente parte da Bíblia
é infalível, ou seja, a parte da Bíblia que fala de questões de fé
e prática. Temos aqui um Cânon que está reduzido àquele
conteúdo da Escritura que trata de aspectos de doutrina e
ética. Quando a Bíblia fala de outros aspectos, tais como His­
tória, por exemplo, ela pode ser falível. Isso, naturalmente,
causa um enorme impacto sobre as próprias doutrinas, mas é
freqüentemente desconsiderado.
A segunda diferença crítica nessas duas fórmulas pode
ser vista em seu uso das palavras “fé e prática”. Na Premissa
A, as palavras “fé e prática” definem e delineiam a vida do
cristão e a vida da igreja. Que mais o cristão e/ou a igreja
tem além da fé e prática? Aqui, a fé e a prática referem-se à
vida cristã como um todo. A Premissa A, portanto, quer
dizer que temos somente uma regra infalível, a qual gover­
na toda a nossa vida.
A função das palavras “fé e prática” é completamente di­
ferente na Premissa B. Aqui, fé e vida são limites do âmbito
da regra bíblica. Ela restringe a infalibilidade a certas porções
da Escritura que falam de fé e prática, e, por essa razão, reduz
o âmbito da regra canônica.

A créscim o ao Cânon

O Cânon da Escritura é suscetível não somente de ser


reduzido, como também de ser aumentado. Uma forma gros­
seira disso seria consumada simplesmente acrescentando-se
livros à lista das Escrituras canônicas. Há poucas pessoas, tal­
vez, que estejam em atividade visando incluir escritos con­
temporâneos no Novo Testamento. A propósito, vivemos
tempos em que informações incontáveis de novas revelações
estão sendo anunciadas. A teologia neopentecostal freqüen-
temente constata mensagens comunicadas em línguas ou pela
elocução de “profecia” como novas formas de revelação. Al­
gumas vezes essas revelações são tidas como verdadeiras,
porém não necessariamente normativas para a igreja (a des­
peito de freqüentemente conterem informações que podem
beneficiar toda a igreja). Se, de fato, essas são novas revela­
ções que têm valor para a igreja, perguntamos, por que não
deveríam elas ser acrescentadas ao Cânon?
São muitas as alegações individuais de novas revelações.
Comumente, o pastor Pat Robertson recebe a “palavra do
conhecimento” em televisão de âmbito nacional nos Estados
Unidos da América. Deus revela doenças específicas de pes­
soas que vivem em várias partes do país enquanto ele ora.
Tenho-o visto dizer coisas como — “Alguém em Topeka, no
Estado de Kansas, nesse exato momento está sendo curado de
bócio”. Isso é uma coisa espantosa. Eis um homem, a centenas
de quilômetros, em cena, que está recebendo uma revelação
sobrenatural de uma cura de uma doença específica em uma
cidade específica. O que me confunde é a especificidade restrita
dessas revelações. A doença e a cidade são mencionadas, porém
nunca o nome e o endereço da pessoa que está sendo curada.
Assim a profecia não pode ser verificada nem desmentida.
Oral Roberts diz à mesma nação que Deus tem revelado a
ele que sua vida lhe será tirada se não receber uma grande
quantia de dinheiro em donativos. Robert Tilton promete a
seu público que enviará pelo correio uma mensagem de Deus
a cada um, se lhe enviarem seus donativos. Essas, evidente­
mente, são formas cruas de reivindicação para o acréscimo
da revelação. Como essas reivindicações são acolhidas pelos
crédulos é, para mim, um caso de consternação.
Mas existem episódios mais sutis. Ouvimos líderes cristãos
respeitáveis alegando que Deus “tem lhes falado” e comunica­
do orientação e instruções específicas, segundo as quais eram
obrigados a agir e obedecer. Eles tomam o cuidado de notar
que essa enunciação divina não foi em forma audível e há uma
negação de que se trata de uma nova “revelação”. E, ainda mais,
a mensagem que é “depositada sobre o coração” é tão clara e
poderosa que desobedecer a ela é desobedecer à voz de Deus.
Não estou falando aqui da obra do Espírito Santo, por meio do
qual ele ilumina o texto da Escritura de forma tão nítida a ponto
de convencer-nos e orientar nossos caminhos. Mas aqui o Espí­
rito opera na Palavra e p o r meio da Palavra. Estou falando da
manifestação oral do Espírito, que os homens alegam estar ope­
rando em separado da Palavra e em adição à Palavra.
Embora tais testemunhos sejam mais freqüentes do que
ausentes por causa da negação de que constituam revelação, a
forma como eles funcionam é a de uma revelação, de modo
que a distinção entre eles e a revelação de boa-fé é, na
atualidade, uma distinção sem diferença.
O verdadeiro Canon da Escritura é a regra de Deus que
contém todo o conselho de Deus, nada menos, nada mais.
Quando subtraímos desse conselho, somos culpados de
reducionismo do Canon. Talvez a subtração prática mais co­
mum em nosso tempo dentro da comunidade evangélica seja
a subtração do Antigo Testamento em geral e a Lei de Deus
em particular. A união, pelos Reformados, da Lei e do Evan­
gelho tem sido quase destruída no evangeüsmo moderno.
Lutero e Calvino não foram neonomianistas que procuraram
construir uma nova forma de legalismo. Foram opositores
ferrenhos tanto do legalismo quanto do antinomianismo.
Criam firmemente, entretanto, que tudo da Escritura é reve­
latorio. Em certo sentido, a Reforma testemunhou uma
redescoberta do Antigo Testamento. O Antigo Testamento
revela o caráter de Deus. Embora Calvino, por exemplo, te­
nha argumentado que certas porções do Antigo Testamento
foram ab-rogadas por seu perfeito cumprimento em Cristo,
apesar de a Lei desempenhar ainda um papel salutar na vida
cristã. Essa tese foi defendida por Calvino por meio do uso
que fez do famoso argumento triplo em favor da Lei.
Talvez estejamos vivendo o período mais antinomiano da
história da igreja. É um tempo em que a atenção à Lei de
Deus não é considerada tão importante. Isso representa uma
forma perniciosa de reducionismo do Canon. A verdadeira regra
do próprio Deus é removida de nossa consideração por ela.

Canon e Providência

Embora os tempos atuais sejam perigosos para a igreja


por causa da função normativa da Bíblia em nossa vida, con­
tinuamos otimistas quanto ao futuro. Esse otimismo baseia-
se em nossa convicção sobre a providência de Deus. Foi por
sua providência singular que a Bíblia foi concedida original­
mente sob sua supervisão e sua inspiração. Foi também por
sua providência que os livros originais da Bíblia foram pre­
servados e harmonizados com a estrutura do Canon. E na
providência que confiamos para o futuro da igreja. A Confis­
são de Westminster declara:

Como a providência de Deus estende-se, em geral, a to­


dos os crentes, também de um modo muito especial ele
cuida da igreja e tudo dispõe a bem dela (V.VII).

Pelo fato de o Canon ter sido estabelecido originalmente


por um processo de seleção histórica, assumido depois por
seres humanos falíveis e instituições falíveis, nenhuma razão
há para excluirmos de nossa consideração o papel da provi­
dência de Deus nesses assuntos. Alguns, na tradição Refor­
mada, apontam para a providentia speciatissima (providência es­
pecial) nesse sentido. Abraham Kuyper referiu-se especifica­
mente à nossa capacidade de traçar o curso da providência
no estabelecimento do Canon.111 É a mão invisível da Provi­
dência na história da igreja, juntamente com as promessas
explícitas da Escritura a respeito da igreja, que provêem con­
forto à nossa alma, enquanto permanecemos confiantes na
obra permanente da mesma Providência.

1 Benjamin Breckinridge, Warfield, 'Revelation and Inspiration (Grand


Rapids: Baker, 1927), p. 451.

2 Ibid., p. 455.

3 G.C. Berkouwer, De Heilige Schrifi (Kampen: J.H. Kok, 1966), p. 89).


4 Everett E Harrison, Introduction to the New Testament (Grand Rapids:
Eerdmans, 1964), p. 112.

5 Ibid., p. 455.

6 R.K. Harrison, Introduction to the Old Testament (Grand Rapids:


Eerdmans, 1969), p. 262.

7 Francis Turretin, Institutes o f Elenctic Theology, Vol. 1, trad. George


Musgrave Giger, ed. James T. Dennison, Jr. (Phillipsburg: P&R, 1992),
p. 102.

8 João Calvino, Institutes o f the Christian Religion, Vol 1, trad. Henry


Beveridge (Grand Rapids: Eerdmans, 1969), p. 69.

9 Rudolf Bultmann, Ketygma and M ith (Nova York: Harper & Row,
1961), p. 3.

10 Ibid., pp. 4-5.

11 Berkouwer, De Heilige Schrifil, p. 93.


A Autoridade da Escritura
Dr. Joh n H. A rm stron g

A Bíblia tem muita coisa a dizer sobre a sua própria auto­


ridade. Na realidade, “a autoridade das Escrituras é o grande
pressuposto de toda a pregação e doutrina bíblica”.1
Os escritores das Sagradas Escrituras afirmam constante­
mente que escreveram a Palavra viva de Deus. Quando o
Antigo Testamento é citado no Novo, lemos freqüentemente
afirmações como “diz o Senhor” e “o Espírito Santo diz”, ou
equivalentes (p.ex., At 1.16; 3.24,25; 2Co 6.16). O que “a Es­
critura diz” e o que “Deus diz” são, na realidade, simples­
mente a mesma coisa, caso após caso. A Escritura é até per­
sonificada, como se fosse Deus (cf. G13.8; Rm 9.17). Foi B.B.
Warfield quem constatou acuradamente que os escritores do
Novo Testamento podiam falar da Escritura fazendo exata­
mente o que a Escritura registra como sendo Jeová fazendo.
“E isto naturalmente subentende autoridade”, acrescenta
Ridderbos.2 A frase “está escrito” {gegraptai), usada muitas ve­
zes no Novo Testamento, comprova-o fartamente acima de
qualquer dúvida.
Quando examinamos os escritos do Novo Testamento,
notamos de imediato que nada menos do que a autoridade
dos escritos do Antigo Testamento é atribuída aos escritores
do Novo Testamento (cf. Rm 1.15; lTm 2.7; G1 1.8,9; lT s
2.13). G egraptai é usado em textos do Novo Testamento e o
texto apostólico é colocado paralelamente com escritos do
Antigo Testamento (cf. 2Pe 3.15,16; Ap 1.3). O conceito de
fé encontrado no Novo Testamento é coerente com esse tes­
temunho, pois a fé é simplesmente obediência ao testemu­
nho dos apóstolos, ou seja, a Escritura do Novo Testamento
(cf. Rm 1.5; 16.26; 10.3). Devemos observar:

O testemunho apostólico distingue-se fundamentalmente


a esse respeito de outras manifestações do Espírito, que
exige da congregação (ekklesià) não somente obediência,
mas também discernimento crítico entre o verdadeiro e
o falso (cf. lTs 5.21; ljo 4.1). Pois esse testemunho me­
rece fé e obediência incondicionais, em seu escrito e tam­
bém em sua forma verbal.3

Portanto, a autoridade da Escritura não está na inteligên­


cia ou no testemunho. Ela não é encontrada na pessoa de
Moisés, Paulo ou Pedro. A autoridade é encontrada no pró­
prio Deus soberano. O Deus que “soprou”4 as palavras por
meio dos escritores humanos está por trás de toda afirmação,
toda doutrina, toda promessa e toda ordem contidas na Es­
critura. Afinal, aconteceu que “Deus, outrora, [falou], m uitas
vestes e de m uitas maneiras, aos pais, p elos p rcfeta i' (Hb 1.1).
Posteriormente, o apóstolo Paulo fez uma afirmação tão
arrojada que deve nos impressionar, se a lermos cuidadosa­
mente. Ele disse à igreja de Corinto — “Se alguém se considera
profeta ou espiritual, reconheça ser mandamento do Senhor o que vos
escrevo” (ICo 14.37). Sua autoridade, como um escritor da Es­
critura soprada por Deus, está aàm a de toda outra autorida­
de. Por quê? Porque ele é um apóstolo, o qual, breve veremos
claramente, é comissionado especialmente pelo Senhor para
lançar a fundação da igreja cristã (cf. E f 2.20; Ap 21.2,14).
Ele era um enviado especial do próprio Senhor. Sua palavra,
portanto, era o mandamento real do Senhor!5
Todos devem submeter-se à autoridade dessa Palavra, sem
rebelião ou reserva. Por quê? Porque essa Palavra tem uma
autoridade da mais distinta natureza. Ela tem sua origem na
vontade de Deus, não do homem. E é ao mesmo tempo com­
pleta e final (cf. Hb 1.2, “nestes últim os dias, n osfaloupelo Filho”).
Sobre essa autoridade Paulo escreve:

Porque as armas da nossa m ilitia não são carnais e sim poderosas


em Deus, para destruirfortalezas; anulando nós, sofismas e toda
altivez se levante contra o conhecimento de Deus, e levando
cativo todo pensam ento à obediência de Cristo, e estando prontos
para pu n ir toda desobediência, uma vez completa a vossa submis­
são. (2Co 10.4-6).

O teólogo luterano Edward WA. Koehler, escrevendo no


início do nosso século, conclui corretamente que “ela [isto é,
essa autoridade que nos vem da própria Bíblia] requer aceita­
ção imediata e absoluta de cada afirmação da Bíblia da parte
do homem”.6
Nosso Senhor Jesus, ao estabelecer sua própria autori­
dade durante seu ministério terreno, em seu corpo encar­
nado, fundamentou seu julgamento final em sua palavra
falada, a qual julgará os homens no último dia. Isso é verda­
deiro precisamente porque sua palavra é a própria Palavra
do próprio Deus, com toda a autoridade de Jeová por reta­
guarda. Ele disse:

Se alguém ouvir as minhas palavras e não as guardar, eu não o


ju lgo ; porque eu não vim pa ra ju lga r o mundo, e sim pa ra salvá-
lo. Q uem me rejeita e não recebe as minhas palavras tem quem o
ju lgu e; a própria palavra que tenho proferido, essa o ju lgará no
último dia. Porque eu não tenho falado p o r mim mesmo, m as o
Pai, que me enviou, esse m e tem prescrito o que dizer e o que
anunciar. E sei que o seu mandamento ê a vida eterna. A s
cousas, pois, que eu fa lo, como o Pai mo tem dito, assim fa lo. (Jo
12.47-50).
John R.W. Stott observou corretamente que a submissão
à autoridade de Cristo como Senhor é “a única atitude possí­
vel da mente para abordar nosso estudo de Jesus Cristo e da
autoridade da Palavra de Deus”. Stott acrescenta que “a cren­
ça na autoridade da Escritura e submissão à autoridade da
Escritura são conseqüências necessárias de nossa submissão
ao senhorio de Jesus”.7
Koehler conclui: “Ignorar, negligenciar ou rejeitar qual­
quer doutrina da Bíblia é rebelião contra a autoridade de Deus,
e não ficará impune.”8

O Q ue Se E ntende P or ‘!A utoridade’’?

De modo geral o conceito de autoridade é uma idéia


relacionai. Essa palavra significa superioridade ou domina­
ção. Foi dito apropriadamente que:

Ter autoridade é ter um direito de mandar e uma reivin­


dicação para exercer controle. A autoridade é expressa
em diretrizes e reconhecida por complacência e confor­
midade. A palavra “autoridade” é usada tanto abstrata­
mente para a qualidade de comandar que o líder alega
ter, como também concretamente para a fonte ou fon­
tes daquelas alegações — “a autoridade” ou “as autori­
dades”. Em ambos os usos a idéia de dominação legíti­
ma continua fundamental.9

A idéia de autoridade aparece regularmente na conversa­


ção habitual. Falamos de sábios como “autoridades”, identi­
ficando aqueles que usam documentos originais, fontes, etc.;
ou falamos de árbitros em jogos de futebol como aqueles
que têm “autoridade”, porque eles impõem as regras do jogo.
Os legisladores têm autoridade para fazer leis, enquanto os
juizes exercem uma autoridade inerente às próprias leis.
O conceito de autoridade do cristão, entretanto, é bem
diferente desses conceitos. Encontramos aqui uma autorida­
de divina, autoridade essa inerente ao próprio Deus trino —
Pai, Filho e Espírito Santo, isto é, a autoridade revelada preci­
samente porque nos foi dada, final e completamente, na Pala­
vra de Deus. A Palavra de Deus tem autoridade precisamente
porque é a comunicação verbalizada de Deus às suas criatu­
ras pensantes. Ela é

verbalizada tanto no modo indicativo como no impera­


tivo, e particularizada em relação a cada pessoa a quem
ela é enviada. As analogias humanas mais próximas a
esta são a autoridade de legislação decretada por um re­
gente absoluto, e as ordens emitidas por um comandan­
te militar supremo, pois em ambos os casos o que é pro­
nunciado é, ao mesmo tempo, o que a pessoa com auto­
ridade disse (na ocasião em que as leis ou ordens foram
enunciadas inicialmente) e também o que ele diz no
presente momento desde que suas leis, ou ordens, conti­
nuem a ser aplicadas a todo aquele que se mantém sob
sua autoridade aqui e agora.10

Esse conceito de uma autoridade distintamente cristã não


é meramente a criação de mentes teológicas imaginativas. Ele
pode ser visto no capítulo mais longo da Escritura, o Salmo
119, no qual todos os 176 versículos, exceto um, “falam ex­
plicitamente ou implicitamente da resposta devida àquilo que
o salmista de várias formas chama de a palavra de Deus —
palavras, preceitos, estatutos, lei, promessa, testemunhos e
decretos, que especificam seus caminhos e sua retidão, isto é,
sua vontade revelada para a raça humana”.11
Como a autoridade dessa Palavra chega a nós em nossa
época, como sua mensagem deve ser descoberta e compre­
endida e de que maneira as opiniões humanas se relacionam
com essa Palavra escrita são todas questões relevantes para
essa questão maior da autoridade de Deus. Tudo o que estou
afirmando no início desse capítulo é um fato simples, porém
muito necessário — o que é autoridade final para um cristão
deve ser a Palavra de Deus, que vem do Criador como a pala­
vra unificadora da sua aliança. Que Deus deve, por necessi­
dade, como Criador e soberano, ter autoridade sobre todas
as suas criaturas, é fato. A verdadeira controvérsia entre aqueles
que professam submissão a Cristo como Senhor não é sobre
o conceito da autoridade em si. Para os cristãos, a controvér­
sia é sobre como considerar sua autoridade por ser ele Se­
nhor sobre todos.
Nossa pergunta é a seguinte: “Como nós, que chegamos a
aceitar a autoridade de Deus, submetemos nossa vontade e
nossa vida, explicitamente, a essa autoridade que procede de
Deus?” Ou, mais diretamente relacionado ao que veremos
nesse capítulo, “que papel humano exercem as opiniões, cre­
dos, concílios e autoridades da igreja nessa questão da autori­
dade da Escritura?” Há um consenso, entre todas as tradi­
ções cristãs, de que Deus se revelou na pessoa e obra de Jesus
Cristo. Essa Palavra viva é “o caminho, a verdade e a vid d ’ Go
14.6). Mas, como exatamente Cristo torna conhecida de seu
povo a vontade do Pai? Essa é a pergunta que deve interes­
sar-nos agora.

A Base da A utoridade

Como observamos anteriormente, a Escritura reivindica


abertamente para si a autoridade. Ela o faz de várias manei­
ras. A declaração usada repetidamente “está escrito” (46 ve­
zes na Escritura, 33 somente no Novo Testamento) arroga-
se claramente uma autoridade oriunda da Palavra escrita. Além
disso, notamos o uso freqüente da frase “a Escritura diz”
(sete vezes) e a frase “de acordo com as Escrituras” (três ve-
zes), ambas indicando que uma autoridade não qualificada
está localizada no próprio texto escrito. Acrescente-se que
temos repetidos apelos de Jesus para a “lei e os profetas” (38
vezes; Lc 24.44-47 é um exemplo clássico).
Indubitavelmente, a declaração “de acordo com as Escritu­
ras” usada amiúde é uma chave das mais significativas para o
ministério, morte, sepultamento e ressurreição de Jesus. As
epístolas não foram escritas como meras expressões de opi­
niões humanas — embora sejam importantes opiniões religio­
sas — e sim como uma regra ou cânon competente para ambas,
a doutrina e a prática (p.ex., 2Pe 3.2,16; lTm 5.8; 2Ts 3.6). Acres­
cente-se a isso Apocalipse 22.18,19 concluindo o cânon com a
mais forte advertência imaginável. Qualquer pessoa que mani­
pular as palavras desse Apocalipse (e possivelmente toda a Es­
critura está aqui considerada) como sendo outra coisa que não
seja a verdadeira Palavra de Deus, com toda a autoridade ine­
rente em tal afirmação, está sujeita ao juízo eterna
Ao longo dos séculos, tanto teólogos como a igreja fiel
têm, em geral, acatado a autoridade da Escritura como auto­
ridade de Deus. Mesmo quando outras autoridades se colo­
cam em evidência, essa ênfase ainda prevalece, pelo menos
inicialmente. Como em todas as épocas, ainda hoje novas au­
toridades (visões, profecias, sinais do céu, etc.) estão quase
sempre sujeitas subservientemente à Escritura, incluindo-se
aqueles que as apoiam.
Santo Agostinho acentuou bem isso quando escreveu —
“Nos ensinos que estão claramente baseados na Escritura en­
contra-se tudo o que diz respeito à fé e à conduta de vida”
(ênfase minha). Foi este mesmo Agostinho que disse: “O que
a Escritura diz, Deus diz!”
Devemos ainda considerar que a autoridade reivindicada
em favor da Bíblia não é meramente uma autoridade histórica,
embora esse tipo de autoridade seja reivindicado para as Es­
crituras. Tenhamos em conta por um momento este simples
fato — quase tudo o que se conhece a respeito da obra re­
dentora de Deus sob a Antiga Aliança, bem como o que se
conhece da vida e ministério do Senhor Jesus, encontram-se
nas Escrituras. Além disso, embora ouçamos freqüentemen-
te discussões a respeito da “igreja primitiva” e de suas cren­
ças, as únicas coisas que realmente sabemos sobre os prim ei­
ros cristãos e a prim eira igreja estão todas virtualmente contidas
nas páginas das Escrituras. Esses escritos não são apenas pri­
mários para o nosso conhecimento histórico de Cristo, mas
virtualmente exclusivos. Sua autoridade histórica pode ser vista
de uma forma peculiar, segundo a qual eles falam como fon­
tes de primeira mão e com relatos testemunhados dos even­
tos que se desenrolaram diante de seus olhos. Simplificando:
o que conheceriamos de Jesus de Nazaré sem o Novo Testa­
mento? Francamente, muito pouco!
Essa autoridade histórica, como fonte material original, é,
sem dúvida, muito importante. Não creio que possamos fa­
zer muito disso. Muitos documentos antigos, porém, fazem
reivindicações semelhantes e, como tais, são fontes primárias
para as informações sobre os homens e os movimentos reli­
giosos. O que torna a Escritura singular? Seus escritos rela­
tam acontecimentos de uma forma que requer do leitor, espe­
cificamente, crer de uma certa forma e viver de conformidade
com ela. A Bíblia, vista de modo simples, é a nossa única teste­
munha das palavras e dos grandes atos redentores de Deus.
Ela faz mais do que transmitir informações historicamente au­
torizadas; reiteradamente, ela tem o hábito resoluto de fazer
exigências impositivas sobre nossa crença e nossa prática.
Toda a Cristandade histórica — Católica Romana, Pro­
testante e Ortodoxa — concorda nesse ponto: a Escritura é a
Palavra de Deus e, como tal, tem a autoridade de Deus! Vox
Scriptura, vox Dei; “a voz da Escritura é a voz de Deus”. A
autoridade da Escritura é, fundamental e finalmente, a auto­
ridade de Deus.
Outras A utoridades?

A autoridade ímpar da Escritura tem sido aceita quase


universalmente pela igreja cristã histórica. Entretanto, o pon­
to nevrálgico da controvérsia entre várias tradições cristãs tem
como resultado o seguinte: surgiram outras autoridades, as
quais, pelo menos em princípio, contradizem ou qualificam a
autoridade da Escritura. Como devemos lidar com essas ou­
tras autoridades?
E importante que compreendamos que há várias autorida­
des proeminentes que caminham p a ripassu com a Escritura.
1. Tradição Oral. Observemos a autoridade da tradição oral.
O argumento é muito simples. O que está escrito na Escritura
foi primeiro falado. Porque foi primeiro falado, ele é uma pala­
vra viva em forma falada, e somente mais tarde se torna
“escrituriiçadã” ou escrita. Essa tradição oral tem uma posição
igual à da palavra escrita, uma vez que os ensinos e práticas não
anotados tinham autoridade na igreja primitiva. Se as coisas não
anotadas tinham posição igual às das Escrituras, segue-se que
elas também devem ter a mesma condição em nossos tempos.
A prioridade cronológica da palavra falada não está em
discussão. Isso já é um fato. Eu aceitaria até que, com base
em nosso conhecimento, Jesus, na realidade, nunca escreveu
qualquer porção da Escritura. Isso, porém, seria fugir da im­
portante questão em pauta.
A transmissão verbal é muito mais sujeita a mudanças,
desvios e corrupção do que a comunicação escrita. Com ma­
nuscritos escritos (como o exemplo do estudo da Escritura)
podemos comparar textos e vários manuscritos e famílias de
manuscritos, procurando o tempo todo retornar à própria
fonte. Simplesmente, isso não pode ser feito por muito tem­
po na comunicação verbal.
A comunicação verbal precisava de um padrão, uma bússo­
la, um ponto de referência. A Escritura escrita supriu essa ne-
cessidade. O que é proclamado verbalmente desde a era apos­
tólica é bom em si. Ele pode mesmo ter o selo da antigüidade.
Mas ele não tem a autoridade conclusiva ou necessária. Por quê?
Por faltar-lhe o mesmo timbre da comunicação escrita. Pedro
afirma isso bem claro quando escreve na Escritura Sagrada:

Temos, assim, tanto mais confirmada a palavra profética, efiavais


bem em atendê-la, como a uma candeia que brilha em lugar tene­
broso, até que o dia clareie e a estrela da alva nasça em vosso
coração, sabendo, primeiramente, isto: que nenhuma profecia da
Escritura provém de particular elucidação; porque nunca jam ais
qualquer proferia fo i dada p o r vontade humana; entretanto, ho­
mens [santos] falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito
Santo. (2Pe 1.19-21).

Somente o que foi falado por (verdadeiros) profetas e,


depois, tornado escritura por Deus pode ser cuidadosamente
ponderado e finalmente reconhecido como autoridade real e
final ao longo do tempo. Homens que foram verdadeiramen­
te “movidos pelo Espírito Santo” escreveram finalmente aqui­
lo que pôs o crente sob extrema coação e necessidade. A co­
municação verbal será sempre necessária. Certamente, ela é
ainda o meio primário de trazer homens e mulheres à fé. Mas
o que determina sua validade e autoridade é que ela esteja
claramente estabelecida no texto da Escritura.
Além disso, nenhum advogado verdadeiro da suprema e
final autoridade da Escritura declararia que os ouvintes ime­
diatos da pregação de Jesus, ou dos apóstolos, estariam livres
para escolher aquilo a que seriam submetidos, uma vez que
não o receberam em forma escrita. O que é declarado ao crer-
se que somente a Escritura tem autoridade final e plena é
isto: Deus revelou sua Palavra verbalmente e temporariamente
pelos profetas e apóstolos, e então, subseqüentemente, por
meio do texto tornado escrita.
A comunicação verbal, na era pós-apostólica, é poderosa
precisamente porque ela confia tão fielmente na palavra “mais
segura” da própria Escritura. Concluamos, pois, com o após­
tolo, ele próprio um fiel pregador: “E, assim, a fé vem p elap rega ­
ção, e a pregação, p ela palavra de Cristo.” (Rsc\ 10.17).
2. Λ Igre/a. A segunda autoridade que rivaliza com a Escri­
tura é a igreja. Eis o argumento: A igreja é, ela própria, divi­
namente instituída (Mt 16.18-20, texto em que Jesus se refere
à “minha igreja”), e a igreja veio antes da Escritura. Certamen­
te, a pregação e o ensino sobre os quais a própria Escritura
está baseada vieram antes do cânon da Santa Escritura. A
igreja, argumenta-se, deu-nos o cânon da Escritura, e ela, igreja,
com sua função disciplinar apropriada em cada era, expõe e
interpreta a Palavra de Deus.
Esses argumentos, em si mesmos, são outra vez corretos.
O que está errado é admitir que eles provam que a autoridade
da igreja é igual ou m aior do que a autoridade da própria E scritura.
Permita-me explicar mais plenamente.
O equívoco na conclusão decorrente das teses acima é a
de falhar em compreender a primazia do apostolado. Quem
foram exatamente os apóstolos? Que autoridade possuíam?
Essa autoridade é, sobre alguma base constante, a fundação
atual para futura revelação? De que maneira?
A igreja é identificada em Efésios como “ concidadãos dos
santos, e... da fa m ília de Deus, edificados sobre o fundam ento dos
apóstolos e profetas, sendo ele mesmo, C risto Jesus, a ped ra a n g u la i
(2.19,20). N otem os que o texto não diz que a igreja é
construída sobre Cristo, mas sim sobre os apóstolos e pro­
fetas. Cristo é a pedra angular que mantém íntegra a igreja,
mas a fundação sobre a qual esse templo é estabelecido e
sobre a qual os crentes, “com o ped ras que vivem, sois edificados
casa espiritualp a ra serdes sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sa­
crifícios espirituais agradáveis a D eus p o r interm édio de Jesu s C ris­
to” (lP e 2.5) é o apostolado.
Por definição, as questões fundamentais têm correlação com
as coisas que estão no começo. Não lançamos seguidas funda­
ções para uma casa que está em construção. A proposição deve
ser óbvia. Aqueles que ensinam que precisamos de novos após­
tolos, mesmo de nível secundário, que acrescentarão sobre a
obra original do século I, estão, na realidade, dizendo que preci­
samos de novas fundações. Isso, logicamente, requerería uma nova
pedra angular para cada nova fundação. Cristo ainda está cons­
truindo sua igreja, mas ele a está construindo pedra por pedra
preciosa sobre a fundação já lançada, porque Jesus, o sacerdote,
ofereceu “para sempre, um único sacrifício pelos p ecadoi' (Hb 10.12).
A palavra apostolos é uma palavra única e a mais descritiva
do Novo Testamento. John Stott sugere que a palavra tem
uma dupla formação — uma antiga e outra contemporânea.
Esta última, sugere ele, ajuda-nos a compreender o significa­
do do termo e por que Jesus escolheu essa palavra para iden­
tificar o papel único daqueles construtores da fundação.
A formação antiga dessa palavra pode ser vista no seu repe­
tido uso no Antigo Testamento com a idéia referente aos profe­
tas de Deus, que eram “enviados” com a comissão divina de
falar em nome de Jeová (cf. Êx 3.10; Nm 16.28,29; Is 6.8; Jr 1.7;
Ez 2.3; Jr 35.15; onde, em cada um desses casos, o “envio” é
“não um vago despacho, mas uma comissão específica para as­
sumir o papel do profeta e falar a palavra de Deus para o povo”).12
Quando Jesus usou essa palavra específica, é evidente que ele
estava assemelhando os homens que chamou para serem após­
tolos aos profetas de Jeová durante a era da Antiga Aliança.
Stott sugere, além disso, que há uma razão contemporâ­
nea para o uso dessa palavra por Jesus e pelo Novo Testa­
mento. A postolos é a palavra grega equivalente ao aramaico
shaliach, o qual

Já possuía um significado bem definido como um mes­


tre enviado pelo sinédrio para instruir os judeus da Dis-
persão. Como tal shaliach portava a autoridade daqueles
que representava, dizia-se que “aquele que é enviado é
como aquele que o enviou”. Da mesma forma Jesus en­
viou seus apóstolos para representá-lo, a fim de exercer
sua autoridade e ensinar em seu nome, de modo que ele
podia dizer a respeito deles: “Quem m s recebe a mim me
recebe" (Mt 10.40; cf. Jo 13.20).1’

O apóstolo era um emissário especialmente escolhido, um


portador da mais alta autoridade nele investida pelo próprio
Deus. O que isso significa é que os apóstolos eram represen­
tantes de seu Senhor. Antes do Pentecostes os doze eram
apenas infreqüentemente referidos como apóstolos (Mt 10.1,2;
cf. também o registro de João). Eles eram, como os outros,
mais freqüentemente denominados “discípulos”. Porém, após
a ressurreição e o dom do Espírito Santo, esses homens úni­
cos tornaram-se representantes ou prepostos, que ficaram vir­
tualmente no lugar de Cristo, possuindo autoridade única.
Tinham seu poder único e seu ensino único (p.ex., 2Co 12.12,
que identifica “as credenciais do apostolado... sinais,prodígios epode­
res miraculoso.r”). As palavras de um apóstolo possuíam uma
autoridade totalmente diferenciada das palavras de um mi­
nistro, sacerdote ou papa de nossos dias. Que isso é verda­
deiro pode ser visto no modo como um apóstolo escreve
essa exortação: [Recordai as palavras] “que, anteriormente,foram
ditasp elo s santosprofetas, bem como do mandamento do Senhor e Sal­
vador, ensinado p elos vossos apóstolos’’’ (2Pe 3.2).
Os apóstolos foram testemunhas oculares do Senhor res­
suscitado e, por necessidade, cada um deles foi “testemunha...
da sua ressurreição" (At 1.22). Paulo, um apóstolo exclusivo para
os gentios, foi usado para estabelecer ainda mais claramente
o evangelho e a única nova aliança. Ele foi uma testemunha
do Senhor ressurreto mediante uma forma especial. Três ve­
zes em Atos dos Apóstolos (notemos o nome específico des-
se quinto livro do cânon) Paulo testificou sua visão do Cristo
ressuscitado na estrada para Damasco. Ele confirmou isso
em três ocasiões diferentes (cf. At. 22.6-8; ICo 9.1; 15.4-8).
As palavras de Jesus em João 16.13 são interpretadas de
forma variada. O que é óbvio é que a promessa de que “o
Espírito... vos guiará a toda a verdade” não é geral, e sim, uma
promessa muito específica que, como apóstolos, eles ensina­
riam (e portanto escreveríam) a verdade, nada mais do que a
verdade. Mais adiante eles receberam a promessa de que se
lembrariam de tudo o que ele lhes havia ensinado.
Quando alguém lê as declarações dos pais da igreja do
século I (ou seja, os escritos mais antigos fora dos escritos do
Novo Testamento) torna-se imediatamente evidente que es­
ses escritores consideravam tudo o que escreveram com o
intuito de reiterar e referendar uma autoridade anterior mais
fundamental encontrada nos escritos dos apóstolos. Inácio,
por exemplo, disse em 117 d.C. que não era competente para
escrever à igreja, como se fosse um apóstolo: “Como Pedro e
Paulo, não publico preceitos a vós. Eles eram apóstolos.”
Assim, a questão da canonicidade não é tampouco uma
das que foram finalm ente decididas pela igreja. E uma decisão
baseada principalmente na autoria: “Foi escrita por um após­
tolo ou com aprovação e envolvimento apostólico (como
exemplos da categoria posterior incluímos Marcos e Tiago)?”
Essa é a questão importante. A igreja nunca decidiu quais os
livros que foram inspirados e quais foram autorizados. Isso
já tinha sido decidido por designação do apostolado pelo pró­
prio Senhor ressurreto. A igreja reconheceu esse fato e recebeu
apropriadamente o cânon.
Sim, a igreja deve julgar e ela decide. A igreja tem tomado
decisões importantes no transcurso do tempo. E faríamos
bem em estudar essas decisões e procurar saber por que elas
foram tomadas e o que aconteceu a elas. A autoridade da
igreja jamais deve ser tratada superficialmente, como os cris­
tãos norte-americanos fizeram nestes últimos tempos. A au­
toridade deve estar sempre apoiada em autoridade preceden­
te, mais importante — especialmente nos escritos dos após­
tolos. Concluímos, pois, que somente quando a igreja fala bi-
blicamente, sua autoridade é absoluta. Quando ela não fala
em sintonia com a Palavra de Deus, ela perde a sua luz e é
lançada na escuridão (cf. Is 8.20).
3. Credos, Concüios da Igreja e os Pais. Uma terceira fonte de
desafio à plena e consumada autoridade da Escritura tem sido
a dos credos, confissões e até mesmo a dos pais da igreja pós-
apostólica. E correto que a igreja faça pronunciamentos ofi­
ciais e não-oficiais sobre questões de moral e doutrina que
afetem sua vida em cada época, questões estas que devem
estar enraizadas na Palavra de Deus. Tais declarações, como
são encontradas nos credos históricos, têm uma autoridade
real. Cumpre-nos lê-las, consultá-las e compreendê-las crite­
riosamente. Porém sua autoridade nunca é decisiva. E sem­
pre uma autoridade relativa. A maior parte da obra dos concí-
lios históricos da igreja, e muito do pensamento inserido em
confissões reconhecidas, é idôneo e bom. E tolice nossa, sem
levarmos em conta os pós-modemos, que não precisamos de
tais contribuições históricas. Não obstante, mesmo estes de­
vem ser julgados por uma autoridade absoluta, suprema.
E convicção dos vários colaboradores deste volume que a
Reforma do século XVI foi, fundamentalmente, o restabele­
cimento da autoridade plena e final da Escritura. Ela propor­
cionou uma resposta correta e corretiva aos numerosos desa­
fios à autoridade da Escritura que foram suscitados no curso
de vários séculos.
Se a igreja atual se voltasse, com genuína sinceridade e
verdadeira compreensão, à autoridade definitiva da Escritu­
ra, ela, igreja, evitaria numerosos problemas presentemente
ignorados ou mal interpretados. Ser-nos-á proveitoso ouvir o
conselho de Martinho Lutero nestas palavras:
Jesus... submete o mundo inteiro aos apóstolos, por meio
somente de quem ele precisa e deve ser instruído.... To­
das as pessoas no mundo — reis, príncipes, nobres, eru­
ditos, sábios, homens santos — têm de sentar-se enquan­
to os apóstolos se levantam para submetê-las a acusa­
ções e condenações, com sabedoria e santidade, como
pessoas que não conhecem nem doutrina, nem vida, nem
o reto relacionamento com Deus.14

O A rgum ento E ssencialpara a A utoridade da E scritura

O argumento essencial em prol da supremamente autori­


zada, unicamente revelada e verbalmente inspirada Escritura
Sagrada, é o de ela não ser difícil de compreender. Toda ela
guia-nos ao retorno da autoridade única do próprio Jesus. Foi
ele quem validou as Escrituras do Antigo Testamento como
Palavra de Deus, tanto em declarações específicas como ao usá-
las (p.ex., Mt 5.17-20; 12.18-27; 26.52-54; Lc 10.25,26; 15.17).
Adém disso, foi ele quem anteviu a elaboração das Escrituras
da Nova Aliança e quem fez provisão para isso ao nomear os
apóstolos como seus representantes, de modo que pudessem
assentar a fundação da igreja sobre sua única pessoa e obra.
Mas não seria esse um argumento cíclico ou circular, como
sugerem alguns? Dizem eles que os evangélicos argumentam
desta maneira: “A Escritura é inspirada porque o divino Filho
de Deus disse isso, mas conhecemos o divino Filho de Deus
somente por meio das Escrituras.” Tal resposta estereotipada
falha, realmente, em compreender o argumento e, assim, de­
turpa-o seriamente.
O argumento, como Stott mostrou habilmente, “não é
circular, mas linear”.15 Chegamos aos Evangelhos e suas his­
tórias de Jesus e, ao aceitarmo-los por seu valor real, como os
relatos testificam, encontramo-nos com Cristo, por meio da
obra iluminadora do Espírito Santo. Tendo encontrado o
Cristo, que é o Senhor, ouvimo-lo e, então, descobrimos que
esse Senhor outorga-nos uma doutrina da Escritura e sua au­
toridade. Este não é um argumento circular, mas que edifica
sobre um começo e, em seguida, move-se em uma direção a
partir daquele ponto inicial. Dito simplesmente, chegamos aos
“documentos históricos, [os quais] evocam nossa fé em Jesus,
o qual outorga-nos então uma doutrina da Escritura”.16
Não pode o leitor perceber que o ponto essencial aqui
relaciona-se com o próprio Cristo?

A utoridade e o Grande D ivisor

Sendo a Escritura a Palavra de Deus, por virtude de sua


inspiração ela deve conter propriedades divinas ou atributos
divinos. Essas propriedades incluem não somente sua autori­
dade, mas também sua eficácia, perfeição e clareza.17Presen­
temente, meu propósito é examinar a natureza da autoria da
Escritura Sagrada mais claramente, como ela se relaciona com
essas propriedades particulares. Cada uma delas será consi­
derada tanto em termos do ensino da própria Escritura como
do desafio a cada uma suscitado pela contínua recusa de algu­
mas tradições cristãs de submeter-se à autoridadefin a l de Deus
exclusivamente na Escritura.
Essa inquietação foi expressa mais claramente no grande
debate que se desenvolveu no século XVI sobre a doutrina
da sola Scriptura. Os Reformadores acreditavam que a Igreja
Católica Romana tinha corrompido a doutrina da autoridade
da Escritura, e assim havia alterado materialmente a própria fun­
dação da Igreja Cristã. Na realidade, a discussão da Reforma
acerca da autoridade da Escritura não foi como a discussão
em nossa época. A posição da Reforma foi mais diretamente
sobre a autoridade única·, assim, a palavra sola estava associada
à Escritura na agora famosa expressão sola Scriptura. (A pro­
pósito, eis por que as confissões protestantes históricas con­
têm pouco· a respeito de questões de autoridade, que foram
mais tarde levantadas no século XIX.) Vejamos retrospectiva e
brevemente essa discussão sobre a autoridade única.

E scritura: Λ Única Fonte de A utoridade

Henrich Heppe, escrevendo no século XIX, refere-se à


Escritura Sagrada como “a única fonte e norma de todo o
conhecimento cristão”.18Nas palavras de Judas, a fé da Igreja
Cristã é aquela que “uma vec^por tod a sfoi entregue aos santo/’ (v.
3). A Escritura, como já se mencionou, tem uma única auto­
ria. Mas, por quê? Porque ela é primeira e única, e não prim us
inter pares (“primeira entre as iguais”). Se ela fosse a última,
então seria uma fonte igual a outras em certos aspectos. Mas
somente a Escritura tem sua fonte em Deus, que, mediante o
Espírito Santo, é seu Autor.
Mas a Escritura tem também uma autoridade que é nor­
mativa. Por isso quero dizer que a Escritura tem uma autori­
dade que é muito mais que descritiva. Este é precisamente o
ponto vital alcançado por várias confissões protestantes his­
tóricas que afirmam isso. Observe o seguinte:

A Igreja de Cristo não estabelece leis ou ordens sem a


Palavra de Deus. Por isso, todas as tradições humanas,
que são chamadas de mandamentos eclesiásticos, obri­
gam-nos somente na medida em que elas estejam basea­
das na Palavra de Deus e ordenadas para ela.19

Cremos que a Palavra de Deus contida nesses livros pro­


cedeu de Deus, e recebe sua autoridade somente dele, e
não de homens. E enquanto ela for a regra de toda a
verdade, contendo tudo o que é necessário para o servi­
ço de Deus e para a nossa salvação, não é lícito para os
homens, nem mesmo para os anjos, acrescentar a ela, ou
suprimir dela, ou mudá-la. Por conseguinte, segue-se que
nenhuma autoridade, seja de antiguidade, ou costume,
ou números, ou sabedoria humana, ou julgamentos, ou
proclamações, ou editos, ou decretos, ou concílios, ou
visões, ou milagres, possam contrapor-se a esta Escritura
Sagrada, mas, por outro lado, todas as coisas devem ser
examinadas, reguladas e reformadas de acordo com elas.20

E indo mais diretamente ao que foi chamado de o teste­


munho interno do Espírito, outra confissão acrescenta:

Recebemos esses livros, somente esses, como santos e


confirmação de nossa fé; acreditando sem qualquer dú­
vida em todas as coisas contidas neles, não tanto porque
a igreja recebe-os e aprova-os como tais, mas mais espe­
cialmente porque o Espírito Santo testemunha em nos­
so coração que eles procedem de Deus, a respeito do
que eles contêm a evidência em si mesmos.21

Em acréscimo a isso, concluímos que receber as Escritu­


ras como nossa única fonte e norma, tanto para a fé como
para a prática, é submetermo-nos ao próprio Cristo, como
vimos anteriormente.

Portanto, não admitimos qualquer outro juízo senão o


próprio Cristo, que proclama por meio da Escritura Sa­
grada o que é verdadeiro, o que é falso, o que deve ser
seguido, ou o que se deve rejeitar.22

De modo uniforme, sem qualquer equívoco, aqueles evan­


gélicos do século XVI elevaram a autoridade da Escritura a
um patamar acima de todas as outras autoridades da igreja.
Eles assim fizeram acreditando que estavam mantendo Cris­
to no lugar da única autoridade sobre tudo o que pertencia à
igreja. Portanto, de uma forma mais importante, solus Christus
(isto é, “somente Cristo”) foi não somente ligado à solafid e, e
assim à doutrina da salvação, mas também à sola Scriptura, ou à
base autorizada para a fé.
A visão católico-romana, que permanece em pronunciada
diferença daquela apresentada acima, foi claramente postulada
no Concilio de Trento. O Concilio mostrou ter rejeitado funda­
mentalmente os esforços dos Reformadores no sentido de cha­
mar a igreja de volta à autoridade da Palavra de Deus. Em sua
quarta sessão (8 de abril de 1546), o Concilio de Trento ensina:

Que a própria pureza do Evangelho deve ser preservada na


Igreja: o qual (Evangelho) antes prometido por meio dos
profetas nas santas Escrituras, nosso Senhor Jesus Cristo, o
Filho de Deus, primeiro promulgou com sua própria boca,
e depois ordenou que fosse pregado por seus Apóstolos a
toda criatura, como a fonte de todos, tanto a verdade que
salva como a disciplina moral; e vendo claramente que essa
verdade e disciplina estão contidas nos livros escritos, e nas
tradições não-escritas, recebidas pelos apóstolos da boca do
próprio Cristo, ou dos próprios apóstolos, ditadas pelo Es­
pírito Santo, vieram até nós plenamente, transmitidas
como foram de mão em mão: [o Sínodo], seguindo os exem­
plos dos pais ortodoxos, recebe e venera com igual afeição
em piedade e reverência, todos os livros tanto do Antigo
como do Novo Testamento — vendo que o único Deus é o
autor de ambos — como também as ditas tradições, como
também aquelas pertencentes à fé, tanto quanto aos costu­
mes, como tendo sido ditadas, quer pela própria palavra da
boca de Cristo, ou pelo Espírito Santo, e preservadas na
Igreja Católica por contínua sucessão.23

É da maior importância que o leitor compreenda a ques­


tão em risco aqui. Não se trata de que — “tudo o que Cristo
ensinou é encontrado na Escritura?” (cf. Jo 20.30). E não se
trata de — “o que é Escritura?” (ou seja, a questão do cânon,
ou de quais livros formaram o Novo Testamento). Eis a per­
gunta: Devem as tradições orais, credos, pais da igreja, ou
escritos de um tipo extrabíblico alguma vez figurar ao lado da
Escritura Sagrada com igual autoridade? Usando uma pers­
pectiva diferente, podemos perguntar: A que corte suprema
são dirigidas todas as apelações sobre fé e prática? A resposta
de Roma era, e ainda é, clara. Trento diz que “as tradições
não-escritas, quer se refiram à fé ou à conduta, devem ser
recebidas com o mesmo sentimento piedoso como a Escritura”
(itálicos do autor). A igreja católica moderna tem confessado
abertamente a mesma visão no Catecismo da Igreja C atólica
(1994), quando diz:

E a [Santa] Tradição transmite em sua totalidade a Palavra


de Deus, a qual foi atribuída aos apóstolos por Cristo o
Senhor e o Espírito Santo. ... Como resultado, a Igreja, à
qual a transmissão e interpretação da Revelação é confia­
da, não deriva sua certeza acerca de todas as verdades re­
veladas somente da Escritura Sagrada. Tanto a Escritura
como a Tradição devem ser aceitas e honradas com iguais
sentimentos de devoção e reverência. (“A Relação Entre
Tradição e Escritura Sagrada”, Parte Um, II, p. 26).

Certos apologistas católicos têm se referido à autoridade


explícita e implícita. Por isso eles querem dizer que a Escritu­
ra é insuficiente em sentido direto, necessitando ser suple­
mentada por meio do papel interpretative da igreja. (Isso pode
ser visto na citação acima do moderno Catecismo.) Somente,
pois, em um sentido limitado, pode-se falar de autoridade e
suficiência da Escritura.
Historicamente, os apologistas protestantes têm sido rá­
pidos em opor-se a eles, insistindo em que unicamente a Es-
cri tura deve ser o canon et regula fid ei (isto é, “o cânon e a regra
da fé”), porque uma regra que é insuficiente, ou incompleta e
não final, de modo nenhum é uma regra. Turretin, um erudi­
to Reformado do século XVII, argumentou que, como o
Novo Testamento é a disposição e o testamento finais de
Cristo, e uma vez que ninguém ousa fazer acréscimo ao pro­
pósito de uma pessoa morta, como, pois, ousa alguém acres­
cer alguma coisa ao propósito divino de Cristo (cf. G13.15)?
Somente com uma autoridade suprema, fin a l e suficiente pode a
própria igreja ter alguma coisa que seja digna de confiança,
internamente sólida e jamais distorcida. Essa autoridade deve
estar somente na Escritura.

E sta A utoridade D ivina Observada

1. A utoridade D ivina e Testemunho do E spírito. Mas, como a


Escritura torna-se realmente autoridade divina para nós? A
certeza cristã (fides divina) é criada exclusivamente pelo auto-
testemunho da Palavra de Deus mediante o poder do Espíri­
to Santo operando nela, não por meio do concurso de provas
humanas. Este é o sentido óbvio de 1 Coríntios 2.4,5: “A minha
palavra e a minha pregação não consistiram em linguagem persuasiva de
sabedoria, mas em demonstração do Espírito e depoder, para que a vossa f é
não se apoiasse em sabedoria humana e rim no poder de Deus.” Jesus
ensinou o mesmo quando disse: “D efato, a vontade meu Pai é que
todo homem que vir o Filho e nele crer [isto é, ouve a palavra de Cristo
e acredita salvificamente nele] tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei
no último dia.”Qo 6.40). E no capítulo seguinte de João — “Se
alguém quiserJazera vontade dele, conhecerá a respeito da doutrina, se ela ê
de Deus ou se eu fa lo p o r mim mesmo” 0o 7.17). Nas palavras do
teólogo luterano Francis Pieper, “a Palavra da Escritura, sen­
do a Palavra de Deus, é um objeto de percepção que cria seu
próprio órgão de percepção, de fé, e assim a própria Escritu­
ra dá testemunho à sua [própria] autoridade divina”.24
Por isso quer-se significar a doutrina do testim onium
Spiritus S ancti internum , ou o assim chamado testemunho
interno do Espírito. Esse testemunho não existe simples­
mente nas emoções humanas. Ele já está presente na pró­
pria Escritura e manifesta-se com a fé forjada pelo Espírito
no testemunho da Escritura. Essa é a idéia inerente às pala­
vras do apóstolo, que escreve:

Se admitimos o testemunho dos homens, o testemunho de Deus é


m aior; ora, este é o testemunho de Deus, que ele dá acerca do seu
Filho. A quele que crê no Filho de Deus tem, em si, o testemunho.
A quele que não dá crédito a Deus ofa% mentiroso, porque não crê
no testemunho que Deus dá acerca do seu Filho, (ljo 5.9,10).

Esse testemunho interno pode ser visto na carta de Paulo


aos Tessalonicenses, onde ele escreve:

Outra ra%ão ainda temos nós para, incessantemente, dar graças a


Deus: é que, tendo vós recebido a palavra que de nós ouvistes, que
ê de Deus, acolhestes não como palavra de homens e dm como, em
verdade é, a palavra de Deus, a qual, com efeito, está operando
eficatçmente em vós, os que credes. (lTs 2.13).

Eis, além disso, por que a Escritura fala de fé na Palavra


de Deus como sendo um selo, ou uma confirmação, da abso­
luta veracidade divina (cf. Jo 3.33). Mas não é essa uma dou­
trina sem conseqüêndas práticas n o nível da verdadeira auten­
ticação? De modo algum. Quando somos assaltados por dú­
vidas sobre a autoridade da Escritura, o que devemos fazer?
A resposta a essa verdade é que devemos ter um relaciona­
mento mais profundo com a própria Palavra de Deus. Nes­
se caso, enquanto lemos, meditamos e estudamos a Escritu­
ra, estamos agindo sob a suprema autoridade da Palavra me­
diante o autotestemunho da Escritura.
Roma faz objeção a essa doutrina precisamente porque
ela continua a colocar a igreja e o papado acima das Escritu­
ras. Os modernos geralmente procuram cravar uma cunha
também aqui, abrindo brecha na fé da autoridade inerente da
própria Escritura. E um fato, porém, observável e comum
que aceitamos uma coisa pelo fato depercebê-ία. Acredito, por
exemplo, que a Lua brilha em sua plenitude em uma certa
noite porque percebo-a brilhando.
Ao lado da fid es divina, também reconhecemos uma fid es
humana, ou um argumento para a autoridade da palavra divi­
na baseada na razão humana. Esse argumento expressa: As­
sim como uma observação natural, racional da criação revela
Deus como seu Criador (cf. Rm 1.18ss.), também uma obser­
vação racional do ensino da Escritura Sagrada aponta para
Deus como seu autor. Quando a Escritura é comparada com
outros livros “divinos” ou “santos” no mundo (p.ex., o Corão),
vemos o poder assombroso da Escritura, tanto em suas dou­
trinas como em seu efeito sobre aqueles que a ouvem. Essa é
a área em que ocorre o trabalho mais formal da apologética
(Cristo parece ter usado tal argumento, ou apologética, em
Mt 22.29). Extremos de ver ora muito, ora pouco demais nessa
abordagem deveríam ser evitados cuidadosamente. No final
das contas, ela deve ser a dádiva de Deus dafid es divina, median­
te o testemunho interior do Espírito Santo, que outorga à pes­
soa confiança na Escritura como autoridade suprema de Deus.
E extremamente importante compreendermos que esse
testemunho interior do Espírito está diretamente vinculado
ao próprio Evangelho, isto é, à mensagem de “Cristo e este
crucificado” (ICo 1.18-2.5). O indivíduo deve chegar à cren­
ça, como ensinaram os Reformadores, satisfactio C hristi vicaria,
isto é, pela expiação vicária da morte de Cristo por ele como
pecador. Sem essa realidade, o testemunho interior do Espí­
rito quanto à verdade da Escritura não será jamais conheci­
do. Qualquer testemunho no tocante à Escritura que não tra-
ga o recebedor salvificamente ao Evangelho e, portanto, a
Cristo crucificado em seu lugar, não é obra do Espírito e, por
conseguinte, não dará à pessoa confiança na autoridade da
Escritura Sagrada.
O testemunho do Espírito Santo quanto à autoridade da
Escritura está presente quando estamos cheios de alegria na
riqueza e poder da verdade. Mas ele também está presente
quando não é tão obviamente sentido. O coração pode anelar
por Deus e apegar-se a ele na palavra da Escritura. Eis por
que Lutero escreveu corretamente que “o Espírito é conce­
dido não àquele sem a Palavra e fora dela; ele é concedido
somente por meio da Palavra”.25
Portanto, a situação é a seguinte: o Espírito Santo, que
originalmente transmitiu sua Palavra por intermédio dos após­
tolos e profetas, permanecerá unido à sua Palavra até o Dia
do Juízo. Por meio dessa Palavra, o Espírito opera a fé que
crê com base na própria Palavra e não com base em argu­
mentos racionais ou autoridades humanas. Essa é a fé cristã
ou divina (fides divina) em contraste com uma mera opinião
humana, ou convicção fid es humana).26
2. A utoridade e E ficácia Divinas. A igreja não possui nenhu­
ma palavra própria. Lutero afirmou isso corretamente quan­
do escreveu: “Nenhum livro ensina qualquer coisa a respeito
da vida eterna, exceto unicamente este.”27 Nessa expressão
ele quis dizer que, se qualquer outro livro ou escrito ensinar
corretamente a respeito da vida eterna, ele o faz exatamente
porque é fiel à Escritura.
Mas, de que consiste essa eficácia? Respondo: na maneira
como ela afeta o homem. Ela faz isso de formas que excedem
todo poder terreno e humano. A Lei tem poder, por meio da
Palavra de Deus, para inculcar a convicção do pecado (cf. Rm
3.20). O Evangelho tem poder inerente para operar a fé no cora­
ção humano pela pregação de sua verdade (cf. Rm 10.17). Pieper
é, para nós, novamente um valioso instrutor quando escreve:
A Palavra do Evangelho, apresentada na Escritura, tem
o poder inerente de escrever a Lei de Deus no coração
do homem, isto é, de mudar de tal modo o homem inte­
rior que ele se sujeite alegre e intencionalmente à Lei de
Deus e com deleite ande nos caminhos de Deus, de acor­
do com o novo nome, que foi criado nele por meio da fé
no Evangelho. A força humana e a instrução humana
não podem realizar essa mudança.28

Na esfera dos reformadores protestantes havia pontos de


vista diferentes sobre essa questão, parecendo, porém, que
todos concordaram que esse poder divino nunca operou fora
da Palavra de Deus, nem mesmo paralelamente a ela, mas sim
p o r m eio da Palavra. Portanto, há uma autoridade inerente na
Palavra que opera eficazmente somente por intermédio do en­
sino da Escritura, ou, ainda mais literalmente, por meio da
pregação de Cristo (cf. novamente Rm 10.17).
3. A utoridade D ivina e Suficiência. Está a Escritura capacita­
da a julgar entre verdade e erro em todas as questões de fé e
prática? A doutrina da autoridade única da Escritura respon­
de com um “sim” inconfundível. A Escritura não é uma enci­
clopédia que abrange todas as áreas do conhecimento huma­
no. Há uma área de razão natural e de experiência humana
que não é tratada na Palavra de Deus.
Além disso, as Escrituras não revelam toda a verdade
divina (ICo 13.12; Rm 11.33,34). O mistério é ainda uma
parte razoável de nossa fé na presente era. Há muita coisa
que não compreendemos, mas a Escritura ensina tudo o
que é necessário sabermos para conquistarmos a vida eter­
na e viver na glória de Deus (2Tm 3.15). Quenstedt, um
teólogo luterano, afirmou:

A Escritura Sagrada é perfeita... no sentido de uma per­


feição restrita, à medida que ela ensina todas as coisas
que um cristão necessita para saber crer corretamente e
levar uma vida santa e piedosa aqui na terra.29

É evidente, pois, dada essa perfeição da autoridade escri-


turística, que a Palavra de Deus não precisa ser suplementada
por quaisquer fontes de doutrina, sejam elas encontradas em
tradições, decretos, confissões ou papas. Na verdade, se essa
perfeição e essa suficiência são subordinadas, a real autorida­
de da Palavra de Deus será subordinada.
O que Roma tem feito a propósito desse argumento? Ela
tem argumentado que há uma perfectio implicita Scripturae Sacrae,
isto é, uma Escritura que é perfeita somente quando suple­
mentada pela “igreja”. Isso significa que, sem o papa e o ma­
gistério da igreja, não há verdadeiramente nenhuma autorida­
de completamente suficiente encontrada na Escritura. De acordo
com essa forma de pensar, a Escritura tem sido chamada de
norma remissiva (uma norma enfraquecida e relaxada), porém
essa não é, em qualquer circunstância, uma autoridade real.

De acordo com essa noção, a Escritura teria sido sufi­


ciente se ela tivesse dito: “Ouçam a Igreja”, ou antes, de
acordo com a interpretação romana: “Ouçam o Papa!”
Mas o papa não é o homem de quem a Escritura diz: “a
ele ouvÍ\ Mateus 17.5.30

4. A utoridade D ivina e C lareia. De acordo com a Igreja Ca­


tólica, o dogma da Escritura torna-se claro somente median­
te a luz que emana da própria igreja. Segundo os modernos
carismáticos e entusiastas de todos os tipos, a Escritura é ilu­
minada, ou tornada clara, por virtude de uma luz interior pes­
soal ou individualizada, a qual é comunicada direta ou ime­
diatamente à alma. De acordo com as modernas teologias de
vários tipos, a Bíblia apresenta um misto de verdade e erro e,
por meio de uma experiência cristã, a pessoa separa tudo e
esclarece o assunto. Como tem sido observado, os teólogos
Reformados vêem um fim comum — isso tudo faz do ho­
mem o fator decisivo.
Essa doutrina da clareza da Escritura significa que não
encontramos nenhuma dificuldade para interpretar a Palavra
de Deus, nenhuma dificuldade exegética, nenhuma palavra
difícil na Palavra? É evidente que não. Isso seria notoriamen­
te um absurdo. Além disso, essa doutrina não significa que
não necessitamos de habilidades, lingüística ou técnica para
estudar cuidadosamente a Palavra de Deus. (Precisamos de
treinamento ministerial para a edificação da igreja.)
Mas, tendo dito isso, devemos observar que, quando
Erasmo declarou abertamente quão verdadeiramente as Es­
crituras eram obscuras, Lutero respondeu-lhe corretamente:

Admito, pot certo, que muitas passagens nas Escrituras


são obscuras e difíceis de elucidar, porém que isso se deve
não à natureza elevada de seu assunto mas à nossa própria
ignorância lingüística e gramatical; e isso de forma alguma
nos impede de conhecermos todos os conteúdos da Es­
critura, Pois, que verdade solene podem as Escrituras ain­
da ter escondidas, agora que os selos estão partidos, a pe­
dra foi rolada da porta da sepultura, e o maior de todos os
mistérios foi trazido à luz — que Cristo, Filho de Deus,
fez-se homem, que Deus é Três em Um, que Cristo sofreu
por nós e reinará para sempre? Não são essas coisas co­
nhecidas e cantadas em nossas ruas? Tire-se Cristo das
Escrituras — e o que mais encontrareis nelas? Vede, pois,
que todo o conteúdo das Escrituras foi agora trazido à
luz, muito embora algumas passagens contenham certas
palavras desconhecidas que permanecem obscuras.31

Basicamente, a clareza significa que a Bíblia é auto-inter-


pretável quanto às suas verdades essenciais. Essas verdades pa­
recem pressupostas, como de fato o são, em Lucas 16.29:
“E les têm M oisés e os P rofetas; ouçam-nosS Lemos, em palavras
que saíram dos lábios de nosso Senhor: “E xaminai as E scritu­
ras” (Jo 5.39). Esse conselho não teria sentido se todos os
leitores pudessem conhecer a verdade por meio das Escritu­
ras. Além disso, os cidadãos de Beréia foram elogiados como
sendo os mais nobres de todos os primeiros cristãos porque
“receberam a palavra com toda a avider$ examinando as E scrituras
todos os dias” para ver se os ensinos verbais, mesmo de um
apóstolo, eram fiéis ao texto (cf. At 17.11). Repetindo o que
já foi dito, a suposição é realmente que, na busca das Escritu­
ras, a verdade pode ser claramente descoberta. O fato é este:
muitas das epístolas do Novo Testamento foram escritas para
congregações inteiras lerem em público. Se elas não pudes­
sem ser claramente compreendidas, então a igreja não pode­
ría conhecer as orientações do apóstolo.
Mas devemos ir além disso. Não somente essa idéia é de
clareza prossuposta, por textos tais como os acima, mas é mais
nitidamente ensinada por vários outros. A Escritura fala de si
mesma como “uma candeia que brilha em lugar tenebroso” (2Pe 1.19)
e como uma “Eâmpadapara os m euspés... e lu% para os m eus cami­
nhos” (SI 119.105). Muito especificamente Paulo diz ao jovem
Timóteo que “desde a infânria, sabes as sagradas letras” [a Escritu­
ra Sagrada] (2Tm 3.15), e o salmista diz que “o testemunho do
SENHOR [a Palavra do Senhor]... dá sabedoria aos sím plicei’ (SI
19.7). Atacar a clareza da Escritura será um ataque não muito
sutil sobre a verdadeira autoridade da própria Escritura.
Mas o detrator objeta: “Se as Escrituras são tão claras, o
ofício público do mestre não é realm ente necessário.” Respon­
do que uma verdade não exclui a outra. Somos ensinados
pela Escritura que precisamos de tais mestres na igreja (Ef
4.11,12), e a mesma Escritura nos ensina sua própria clareza.
Evidentemente, aqueles que são ensinados na igreja são li­
vres para julgar, com base na Escritura, se os seus mestres
são profetas verdadeiros ou falsos. Isso deve ser feito com
base no caso de seus mestres se afastarem da Palavra pregada
pelos Apóstolos (cf. Mt 7.15; Rm 16.17). A instituição dos
mestres para a igreja mostra realmente o quanto Deus está in­
teressado no bem-estar de seu povo. Ele percorre imensas ex­
tensões para iluminar seus filhos, se eles para isso o buscarem.
O próprio .Lutero reconheceu que “é certamente verda­
deiro que algumas passagens na Escritura são obscuras”.32
Pieper afirmou claramente esse ponto:

Essas passagens obscuras também não pertencem direta­


mente à doutrina cristã, mas fornecem dados cronológi­
cos, topográficos, arqueológicos, etc., ou, se não dizem
respeito à doutrina, a mesma matéria é afirmada em outro
lugar da Escritura demonstrado-a clara e explicitamente.33

E Santo Agostinho acrescenta: “Nas passagens claras da


Escritura encontram-se todas as coisàs que pertencem à fé e
à vida.” E, como Lutero aconselha sabiamente, “se não podeis
compreender o obscuro, então permanecei com o claro”.34
Agostinho, de fato, resume bem a minha posição ao escrever:

O Espírito Santo dispôs a Escritura Sagrada de uma for­


ma tão magnificente e proveitosa que, por meio das cla­
ras passagens, ele sacia a fome, e por meio das passagens
obscuras ele evita a aversão. Porque dificilmente alguma
coisa provém das passagens obscuras, mas o que é afir­
mado em outra parte é mais claro.35

Como demonstramos anteriormente, a verdadeira luz da


Escritura brilha somente para o coração daqueles que rece­
bem a fé pelo Espírito Santo (cf. 2Co 4.1-6). A verdade dou­
trinária da Escritura é clara em certo nível, mas somente aque­
les que foram regenerados pelo Espírito de Deus compreen­
dem, amam e aceitam o ensino da Escritura, como vindo de
Deus. Isso não pode ser exagerado simplesmente. O que o
Espírito Santo opera naqueles que recebem as doutrinas da
Escritura é a fé verdadeira, e essa é uma fé especifica — ela
consiste da confiança no crucificado, o Senhor Jesus Cristo.

O Q ue Significa "Autoridade” N esta É poca?

Em que aspectos a verdade da autoridade bíblica é con­


testada em nosso tempo? Sugiro que a autoridade está sendo
desafiada de cinco formas, pelo menos. Vamos considerá-las.
1. P or lim itar a naturecça e o alcance da inspiração, portanto da
autoridade. Um liberal famoso disse certa vez: “É perfeitamente
verdadeiro que a Bíblia é inspirada, mas assim também o são
muitos outros tesouros literários do mundo.” Como vimos,
isso requer a pergunta — de que inspiração realmente se tra­
ta? Outro erudito mais conservador argumenta que “as ver­
dades é que são inspiradas, não as palavras”. Mas, o que isso
pode de fato significar uma vez que as palavras são os veículos
escolhidos para comunicar as próprias verdades? Um livro fa­
lível “inspirado por Deus” é uma contradição, uma ilogicidade.
2. P or restringir a aplicação da autoria escriturística. Dizer, como
fazem alguns, que a Bíblia tem autoridade em questões de fé e
conduta, e, entretanto, negar sua autoridade em aspectos im­
portantes tais como adoração, aconselhamento, missão e mú­
sica é negar sua autoridade. Quando a Bíblia fala, Deus fala. Se
isso ainda é assim, então devemos aprender a aplicar a Escritu­
ra a toda a igreja, bem como ao crente mais diretamente.
3. A influência da filosofia opõe-se à autoridade da E scritura. O
Evangelho nada deve à sabedoria humana. Ele é uma revela­
ção de Deus. A Escritura não é produto da opinião humana,
mas sim um meio de tornar acessível a nós o pensamento de
Deus. Devemos compreender como os homens pensam (isso
é filosofia), mas não devemos forçar a Palavra de Deus a adap-
tar-se à filosofia humana. Devemos permitir intencionalmente
que ela julgue nossas filosofias degradadas.
4. Versões m odernas do ensino da Palavra e da f é atacam a autori­
dade da E scritura. “Deus me disse” é bastante ruim, mas agora
temos “palavras de conhecimento” especiais, que chegam aos
entusiastas modernos.
Os Reformadores tiveram suas próprias versões disso no
século XVI. Lutero ocupou-se diretamente com um grupo
de carismáticos (“entusiastas”). Um observador desse encon­
tro escreveu:

Ele ouviu pacientemente o profeta relatar suas visões; e,


quando a arenga terminou, disse: “O senhor nada men­
cionou da Escritura.” O anabatista Thomas Muntzer quei­
xou-se: “A doutrina de Lutero não é suficientemente es­
piritual. Os divinos [clérigos] devem... adquirir um espí­
rito de profecia; do contrário, seu conhecimento de teo­
logia não valerá sequer um tostão.” Lutero acrescentou:
“O senhor mesmo deve ouvir a voz de Deus.” Disseram
eles: “A Bíblia nada significa. Não são cristãos aqueles que
pretendem ir além da Palavra... mesmo que se vangloriem
de estar cheios e transbordantes de dez espíritos santos”.36

Em certa ocasião, Lutero observou sarcasticamente:


“Qualquer ensino que não se harmonize com a Escritura deve
ser rejeitado, mesmo que chovam milagres todos os dias.”37
Calvino acrescentou que devemos falar somente quando a
Escritura fala e estar em silêncio quando a Escritura está quie­
ta. Sábio conselho!
As modernas palavras pessoais vindas repetidamente de
Deus estabelecem a autoridade da Escritura. Além disso, os
modernos proponentes das reformas da psicoterapêutica pre­
cisam ser rejeitados como falsos mestres, quando escrevem:
“Onde a Reforma do século XVI retornou nossa focalização
sobre a Escritura Sagrada como única regra infalível para a fé
e a prática, a nova reforma retornará nossa focalização sobre
o sagrado direito de cada pessoa à auto-estima.”38 O resulta­
do de tudo isso é, e continuará a ser, o caos. “A lei e ao testemu-
nho! Se eles nãofalarem desta maneira,jam ais verão a alvdy (Is 8.20).”
5. Interpretações seriam ente distorcidas desafiam a autoridade
da E scritura. O que tem sido chamado de analogia fid ei, ou
“analogia da fé” (isto é, “segundo a proporção da fé”, em
Romanos 12.6), deve ser observado nas Escrituras. Por isso
queremos dizer que, à luz da verdade esmagadora da Escri­
tura, toda Escritura encontra seu sentido pretendido. Ne­
nhuma porção da Escritura deve ser posta contra outra.
Este é o principal ingrediente ausente em muita exegese
moderna da Escritura.
Lutero explicou apropriadamente essa verdade vital quan­
do escreveu:

Qualquer pessoa que se aventure a interpretar palavras


das Escrituras por outras diferentes das escritas, está obri­
gado a provar tal alegação do texto da mesma passagem
ou por um artigo de fé.39

Aqui, tanto os exegetas católicos como os fundamentalistas


erram, estranhamente de forma semelhante. A autoridade da
tradição da igreja antiga conserva algumas exegeses católicas
do sentido claro de muitos textos, embora isso tenha muda­
do entre alguns estudiosos católicos em anos recentes. Para
muitos fundamentalistas, suas próprias tradições artificiais,
freqüentes apenas por umas poucas décadas, obstruem a pa­
lavra mais clara da Escritura na busca da sua essência. (Como
exemplo, tente o leitor envolver os fundamentalistas acerca
do assunto da regeneração e logo descobrirá que suas noções
mecânicas prevalecerão geralmente sobre seu sério procedi­
mento com o texto de João 3.)
Por outro lado, a Escritura requer interpretação que de­
corra do que tem sido chamado método histórico-gramati-
cal. Tenho em vista aqui perguntas como: “Qual foi o propó­
sito ou intenção do autor? E quanto aos seus leitores?” De­
vemos fazer um cuidadoso exame no texto da Escritura, usan­
do recursos apropriados históricos, linguísticos e lexicográfi-
cos. A exegese, afinal de contas, significa “extrair de”. Ela
nunca intenta acrescer ao que não está lá. E a Escritura deve
ser interpretada em seu sentido literal, especificando que subs­
tantivos são substantivos, verbos são verbos, e milagres são
realmente milagres. R.C. Sproul sugeriu corretamente que,
quando a unidade da Escritura se perde nas modernas inter­
pretações da Escritura, ela torna-se algo como assistir a uma
partida de tênis sem uma rede entre os jogadores.
Além disso, o legalismo solapa a autoridade escriturística
da mesma maneira. Michael Horton mostrou habilmente que,
sempre que impomos expectativas morais sobre nós mesmos,
ou sobre os outros, o que não estiver clara e perfeitamente
revelado na Escritura nos leva a estabelecermos nossas pró­
prias normas para o que se convencionou e, por esse meio,
tr iv ia lio ra autoridade da Escritura. Que o leitor esteja alerta!
Vivemos um tempo estranho, por certo, em que os cren­
tes sabem mais sobre o Anticristo e a Besta do Apocalipse do
que sobre justificação, pecado original, eleição, custo do verda­
deiro discipulado e juízo eterno. Entretanto, somos informa­
dos reiteradamente de que essas questões proféticas um tan­
to especulativas são “verdades profundas da Escritura”.
Estes tempos são também um sinal da nossa falta de
reverência pela autoridade da Escritura em razão de termos
milhares de cristãos sentados em grupos perguntando um
ao outro — “O que essa passagem diz a você?”, resposta:
“Quem se preocupa com o que ela diz a você?” É como se
a interpretação da Bíblia tivesse se tornado uma questão de
múltipla escolha.
Conclusão

Vários pontos importantes emergiram de nosso estudo.


Precisamos mencioná-los brevemente em conclusão.
1. O dano é sempre o resultado quando autoridades rivais
são colocadas ao lado da Escritura.
Se qualquer autoridade é estabelecida na condição de igual
perante a Escritura, o plano normativo da autoridade da Escri­
tura é seriamente perturbado e os resultados são danosos. Sem
uma âncora, a vida do crente é atirada de um lado para outro, de
uma maneira que abala a fundação assentada na Escritura.
2. Contrariamente, o reconhecimento da autoridade da
Escritura realmente estabelece a autoridade apropriada de ou­
tras fontes que nos ajudarão a amadurecer como crentes.
Geoffrey W Bromiley bem disse que “o caráter absoluto
da Bíblia não é absolutismo”. Quando confissões e credos
são vistos em seu lugar apropriado, quando os escritos dos
pais da igreja estão relacionados com a Escritura como últi­
mo tribunal de apelação, quando a igreja e seu ministério pú­
blico são responsáveis somente perante a Escritura, então tudo
isso tem um lugar adequado. Seu peso, como fontes secundári­
as, é importante; na verdade é muito importante, pois aqui te­
mos mentes e corações zelosos e bem-treinados, lutando com
a legítima autoridade da própria Palavra. Desconsiderar essas
contribuições, ainda que secundárias, é o píncaro da arrogância
contemporânea e lera inevitavelmente à insensatez indepen­
dente. O evangelismo moderno precisa ouvir essa mensagem!
3. A verdade de que as fontes secundárias têm sua própria
autoridade, embora subordinadas à Escritura, é um lembrete a
todos de que não somos, afinal de contas, os juizes da verdade.
Podemos honestamente perguntar: “Esse ensino é fiel à
Escritura?” Devemos “examinar as Escrituras”, como fize­
ram os ouvintes de Beréia e devemos submeter a provas o
ensino de qualquer ministro da Palavra somente com a Pala-
vra, e com espírito honesto. Como Bromiley apropriadamen­
te escreveu,

Mesmo onde temos razão para suspeitar que eles podem


estar em erro, devemos proceder com a devida cautela e
respeito, reconhecendo que, no final, eles podem ainda
ter o melhor argumento. Como a tradição, o indivíduo
cristão é infalível somente onde é verdadeiramente bíbli­
co, e ele nem sempre é tão bíblico como pensa. A o
lembrá-los disso, [saibam que] as autoridades secundári­
as exercem um papel de inestimável valor.40

O bispo evangélico Thomas Cranmer disse em séculos pas­


sados — “A Palavra de Deus está acima da igreja”. Assim é. E
James I. Packer há vários anos acrescentou: ‘A religião na qual
nosso Senhor foi criado, foi primeira e prioritariamente uma
religião de sujeição à autoridade de uma Palavra divina escrita.”
Sem a Escritura, o crente fica sem autoridade alguma, pois
não terá a palavra profética confirmada que o guia e ilumina
(2Pe 1.19). Com a Escritura, o cristão mais comum e fraco
tem um palavra vinda de Deus que será sempre achada “ú til
p ara o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na
ju stiça, a fim de que o homem de D eus seja perfeito e perfeitam ente
habilitadopara toda boa obrei' (2Tm 3.16,17). Tal autoridade sem­
pre fará dele e de sua vida alguma coisa para verdadeiramente
ser considerada na presente vida e na vindoura.1

1 Herman Ridderbos, Studies in Scripture and its A uthority. (Grand


Rapids: Eerdmans, 1978), p. 20.

2 Ibid., p. 21.

3 Ibid, p. 21.
4 O sentido de “inspirado” é “soprado por Deus”. A palavra grega
composta theopneustos significa, literalmente, “Deus soprou”. O que
importa é que as palavras resultantes são afiançadas como sendo
aquelas que Deus desejou, por que ele as soprou. A inspiração não é do
autor humano, tanto quanto o é a inspiração do próprio texto resultante.

5 Os apóstolos foram extraordinários em termos de revelação. As­


sumir a autoridade apostólica é ainda muito importante e era uma
ênfase importante na igreja até a época da Reforma. A igreja romana
tinha acrescentado o dogma da sucessão apostólica à doutrina bíbli­
ca da fundação apostólica. Em reação, devidamente, à sucessão apos­
tólica, o Protestantismo tem freqüentemente refutado, em graus
variáveis, a importante verdade do fundacionalismo apostólico.

6 Edward W.A. Koehler, A Summary o f Christian Doctrine (Saint Louis:


Concordia: 1939), p. 10.

7 John R.W. Stott, The A uthority o f the Bible (Downers Grove, IL:
InterVarsity Press, 1974), p. 6-7.

8 Koehler, Summary o f Christian Doctrine, p. 10.

9 James I. Packer, “The Reconstitution o f Authority”, in Crux, Vol.


18, no. 4 (December 1982), p. 2.

10 Ibid., p. 3.

11 Ibid., p. 3.

12 Stott, A uthority o f the Bible, p. 19.

13 Ibid., p. 20.

14 Martin Luther, Luther’s Works, Vol 21 (Saint Louis: Concordia), p. 61.

15 Stott, A uthority o f the Bible, p. 29.


16 Ibid., p. 30.

17 Francis Pieper, Christian Dogmatics, Vol 1 (Saint Louis: Concordia,


1950), p. 307.

18 Heinrich Heppe, Reformed Dogmatics (Grand Rapids: Baker, 1950,


rpt. 1978), p. 12.

19 The Theses o f Berne (1528).

20 A Confissão de Fé Francesa (1559).

21 A Confissão Belga (1566).

22 The Second H elvetic Confession (1566).

23 The Councilo f Trent, “The Decree Concerning Canonical Scriptures”.

24 Pieper, Christian Dogmatics, p. 315.

25 Ibid., citado em Pieper, p. 315.

26 Pieper, Christian Dogmatics, p. 315.

27 Ibid., p. 315.

28 Ibid., p. 316.

29 Citado em Ibid., p. 319.

30 Citada em Ibid., p. 319.

31 Martinho Lutero, The Bondage o f the W ill [Servidão da Vontade]


(Westwood, NJ: Revell, 1957), p. 71.

32 Martinho Lutero, T uther’s Works, Vol. 5 (Saint Louis: Concordia),


p. 335.
33 Pieper, Christian Dogmatics, p. 324.

34 Ibid., 324.

35 Ibid., p. 324.

36 Citado em Victor Budgen, C harism atics and the W ord o f God.


(Welwyn: Evangelical Press, 1985), p. 126.

37 John Blanchard (compilador), Gathered Gold: Λ Treasury o f Quotations


fo r Christians (Welwyn: Evangelical Press, 1984), p. 70.

38 Robert Schuller, Self-Esteem: TheN ew Reformation (Waco, TX: Word),


p. 30.

39 Citado em Paul Cook, The W hole Truth (Londres: The British


Evangelical Council, s.d.), p. 9.

40 G eoffrey W. Bromiley, “The Inspiration and Authoritity o f


Scripture” (s.d.) publicado em reimpressão especial de E ternity e a
Holman Family R eference Bible (Nashville, TN: Holman, s.d.), p.6.
A Suficiência da Palavra Escrita
Resposta aos Modernos Apologistas Católico-romanos
D r. Joh n F. M acA rthur, Jr.

A tendência de venerar a tradição é muito forte na religião.


O mundo está cheio de religiões que vêm seguindo tradições
estabelecidas há centenas — ou mesmo milhares — de anos.
As culturas surgem e desaparecem, mas a tradição religiosa
demonstra uma surpreendente continuidade.
Na verdade, muitas religiões antigas— incluindo o Druidis-
mo, as religiões nativas americanas e vários cultos orientais —
não deixaram registros escritos da sua fé, preferindo transmitir
suas lendas, rituais e dogmas de boca em boca. Tais religiões
geralmente tratam seu conjunto de tradições como uma autorida­
de defacto, semelhantes aos escritos sagrados de outras religiões.
Mesmo entre as religiões que reverenciam escritos sagra­
dos, porém, a tradição e os escritos são freqüentemente mis­
turados. Isso ocorre no Hinduísmo, por exemplo, em que os
antigos vedas são as escrituras, e as tradições legadas por gurus
alimentam a fé da maioria dos seguidores.
A tradição, com efeito, torna-se uma lente através da qual
a palavra escrita é interpretada. Portanto, a tradição mantém-
se como a mais alta de todas as autoridades, porque ela repre­
senta a única interpretação autorizada dos escritos sagrados.
Essa tendência de considerar a tradição como autoridade
suprema não é exclusiva das religiões pagãs. O Judaísmo tradi­
cional, por exemplo, segue o modelo “Escritura mais tradição”.
Os livros familiares do Antigo Testamento, isoladamente, são
tidos como Escritura, mas a verdadeira ortodoxia é de fato de­
finida por um conjunto de antigas tradições rabínicas conheci­
das como Talmude. Com efeito, as tradições do Talmude con­
têm uma autoridade igual ou maior que as Escrituras inspiradas.

Ensinando os Preceitos dos H omens Como D outrinas

Não há nenhum desenvolvimento recente no Judaísmo.


Os judeus do tempo de Jesus também colocavam a tradição
em pé de igualdade com a Escritura. Na realidade, porém,
eles tornaram a tradição superior à Escritura, porque essa era
interpretada pela tradição e, portanto, sujeita a ela.
Toda vez que a tradição é elevada a tal nível de autoridade,
ela se torna inevitavelmente prejudicial à autoridade da Escri­
tura. Jesus tocou nesse exato ponto quando confrontou os
líderes judeus, mostrando-lhes que, em muitos casos, suas
tradições realmente anulavam a Escritura. Por isso, ele os cen­
surou em termos ásperos:

Bem profetizou Laias a respeito de vós, hipócritas, como está


escrito: ‘E ste povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está
longe de mim. E em vão me adoram, ensinando doutrinas que são
preceitos de homens.’
N egligenciando o mandamento de Deus, guardais a tradição
dos homens. E disse-lhes ainda: Játosam ente rejeitais o preceito de
D eus para guardardes a vossa própria tradição. Pois M oisés dis­
se: ‘H onra a teu p a i e a tu a m ãé e \Quem m aldissera seu p a i ou
a sua mãe seja punido de morte.' Vós, porém , dizeis: ‘Se um
homem disser a seu p a i ou a sua mãe: A quilo que poderías apro­
veitar de mim é Corbã, isto é, oferta para o Senhor ’, então o
dispensais de fa z er qualquer cousa em fa vo r de seu p a i ou de sua
mãe, invalidando a palavra de Deus pela vossa própria tradição,
que vós mesmos transmitistes; e fa z eis muitas outras cousas seme­
lhantes (Marcos 7.6-13).
No Judaísmo era indesculpável que a tradição fosse eleva­
da ao nível da Escritura, porque, quando Deus outorgou a lei
a Moisés, ele o fez de forma escrita por uma razão: para torná-
la permanente e inviolável. O Senhor deixou muito claro que
a verdade que ele estava revelando não era para ser mistura­
da, aumentada ou diminuída de qualquer forma. Sua Palavra
era a autoridade final em todas as matérias: “N ada acrescentareis
àpalavra que vos mando, nem dim inuireis dela, para que guardeis os
mandamentos do SENHOR, vosso Deus, que eu vos mando” (Dt
4.2). Eles deviam observar seus mandamentos assiduamente,
e não aumentá-los ou suprimi-los por qualquer outro tipo de
“autoridade”: “Tudo o que eu te ordeno observarás; nada lhe acres­
centarás, nem dim inuirádT fãt 12.32).
Portanto, a Palavra de Deus revelada, e nada mais, era a
autoridade suprema e única no Judaísmo. Somente esse era o
padrão da verdade entregue a ele pelo próprio Deus. Moisés
foi instruído a anotar as exatas palavras que Deus lhe deu (Ex
34.27), e aquele registro escrito da Palavra de Deus tornou-se
a base para a aliança de Deus com a nação (Ex 24.4,7). A
Palavra escrita foi colocada na Arca da Aliança (Dt 31.9), sim­
bolizando sua autoridade suprema na vida e na adoração dos
judeus para sempre. Deus reiterou seu mandamento ao su­
cessor de Moisés, Josué: “sêforte e m ui corajoso p a ra teres o cuida­
do defa^ er segundo toda a lei que meu servo M oisés te ordenou; dela não
te desvies, nem para a direta nem para a esquerda, para que sejas bem-
sucedido p o r onde quer que andares. N ão cesses de fa la r deste livro da
lei; antes, m edita nele dia e noite, para que tenhas cuidado de fa ^ er
segundo tudo quanto nele está escritd’ (Js 1.7,8).
Evidentemente, outros livros da Escritura inspirada, ao
lado daqueles escritos por Moisés, foram mais tarde acres­
centados ao cânon judaico — porém isso foi uma prerrogati­
va exclusiva do próprio Deus. Sola Scriptura foi, portanto,
estabelecida em princípio com a outorga da lei. Nenhuma
tradição foi transmitida pela palavra falada, nenhuma opinião
rabínica e nenhuma inovação sacerdotal deveria ser reconhe­
cida como autoridade igual à da Palavra de Deus revelada
como foi registrada na Escritura.
Agur compreendeu esse princípio: “ T odapalavra de D eus é
pura; ele é escudo para os que nele confiam. N ada acrescentes às suas
palavras,para que não te repreenda, e sejas achado mentiroso” (Pv 30.5,6).
Portanto, as Escrituras deveríam ser o único padrão, pelo
qual todos os que alegam falar por Deus deveríam ser testa­
dos: “A lei e ao testem unho! Se eles nãofalarem desta maneira,ja m ais
verão a a lvd ’ (Is 8.20).
Em resumo, a tradição não tinha nenhum lugar legítimo
de autoridade na adoração de Jeová. Tudo devia ser provado
pela Palavra de Deus conforme o seu registro nas Escrituras.
Eis por que a censura de Jesus aos escribas e fariseus foi tão
áspera. Sua verdadeira fé na tradição rabínica era, em si mes­
ma, uma séria transgressão da aliança e dos mandamentos de
Deus (cf. Mt 15.3).

A A scensão e Ruína da Tradição Católica

Infelizmente, a cristandade tem seguido muitas vezes a mes­


ma estrada trágica do paganismo e do Judaísmo em sua tendên­
cia de elevar a tradição à posição de autoridade igual ou maior
que a Escritura. A Igreja Católica em particular tem seu próprio
corpo de tradição, que funciona exatamente como o Talmude
judaico: ela é o padrão pelo qual a Escritura deve ser interpreta­
da. Na verdade, a tradição suplanta a voz da própria Escritura.
Como isso aconteceu? Conforme James White demons­
trou em seu capítulo sobre “Sola Scriptura e a Igreja Primiti­
va”, os pais da igreja do século I enfatizaram fortemente a
autoridade da Escritura sobre a tradição oral. Discussões ca­
lorosas foram travadas na igreja ancestral sobre questões vi­
tais, como a divindade de Cristo, suas duas naturezas, a Trin­
dade e a doutrina do pecado original. Os concílios daquela
igreja iniciante abriram aquelas questões recorrendo à Escri­
tura como a mais alta de todas as autoridades. Os próprios
concüios não emitiram meramente decretos ex cathedra, mas
examinaram as coisas com base na Escritura e estabeleceram
seus critérios adequadamente. A autoridade estava no apelo à
Escritura, não nos concílios em si.
Infelizmente, a questão da própria autoridade escriturística
não foi sempre delineada com clareza na igreja ancestral, e como
a igreja cresceu em poder e influência, os líderes eclesiásticos
começaram a defender uma autoridade que não estava baseada
na Escritura. A igreja como instituição tornou-se aos olhos de
muitas pessoas a fonte de autoridade e o árbitro de todas as
questões de veracidade. Os apelos começaram a ser feitos mais
freqüentemente à tradição e não à Escritura. Como resultado, as
doutrinas extrabíblicas foram canonizadas, e um elenco de opi­
niões que não encontravam nenhum suporte na Escritura come­
çaram a ser declaradas como sendo infalivelmente verdadeiras.
A doutrina católico-romana está repleta de lendas, dogmas
e superstições que não têm absolutamente nenhum apoio bí­
blico. A via-sacra, a veneração de santos e anjos, as doutrinas
marianas, tais como a Conceição Imaculada, a Assunção, e a
noção de que Maria é co-mediadora com Cristo — nenhuma
dessas doutrinas pode ser confirmada pela Escritura. Elas
são o produto da tradição católico-romana.
Oficialmente, a Igreja Católica é muito franca a respeito da
mescla de Escritura e tradição. O Catecismo da Igreja Católica, re­
centemente publicado (daqui para frente CIC, citações referin­
do-se a número de parágrafo em lugar de número de página),
reconhece que a Igreja Católica Romana “não deriva somente
da Escritura Sagrada sua certeza sobre todas as verdades revela­
das. Tanto a Escritura como a Tradição devem ser aceitas e honradas com
iguais sentimentos de devoção e reverência” (CIC 82, ênfase acrescida).
Portanto, a tradição, de acordo com o Catolicismo Roma­
no, é tanto “a Palavra de Deus” como a Escritura. De acordo
com o Catecismo, Tradição e Escritura “estão intimamente
ligadas e comunicam-se entre si. Pois ambas, fluindo da mes­
ma fonte divina, unem-se de algum modo para formar uma
única coisa e mover-se em direção da mesma meta” (CIC 80).
O “sagrado depósito da fé” — essa mistura de Escritura e
tradição — foi supostamente confiado pelos apóstolos a seus
sucessores (CIC 84), e “A tarefa de dar uma interpretação
autêntica da Palavra de Deus, quer em sua forma escrita ou
na forma da Tradição, tem sido confiada ao ofício vivo e
ensinador da Igreja som ente.... Isso significa que a tarefa de
interpretação tem sido confiada aos bispos em comunhão com
o sucessor de Pedro, o Bispo de Roma”(CIC 85).
O Cateàsmo apressa-se em negar que isso faça a autorida­
de ensinadora da Igreja (chamada magisterium), em hipótese
alguma, superior à própria Palavra de Deus (CIC 86). Mas,
em seguida, continua a advertir os fiéis de que devem “ler a
Escritura dentro da ‘viva tradição de toda a Igreja’” (CIC 113).
Nesse ponto o Cateàsmo cita “um dito dos pais [:] A Escritura
Sagrada é escrita principalmente no coração da Igreja, e não
em documentos e registros, pois a Igreja contém em sua Tra­
dição o memorial vivo da Palavra de Deus” (CIC 113).
Portanto, na realidade, a tradição não é apenas igualada à
Escritura, mas transformada na verdadeira Escritura, escrita
não em documentos, porém misticamente dentro da própria
Igreja. E quando a Igreja fala, sua voz é ouvida como se ela
fosse a voz de Deus, provendo o único sentido verdadeiro às
palavras dos “documentos e registros”. Portanto, a tradição
suplanta e substitui plenamente a Escritura.

Λ M oderna A pologética Católica e Sola Scriptura

Em outras palavras, a posição católica oficial sobre a Es­


critura é que a Escritura não fala, nem pode falar, por si mes­
ma. Ela deve ser interpretada pela autoridade ensinadora da
Igreja e à luz da “tradição viva”. Defa cto isso diz que a Escri­
tura não possui uma autoridade inerente, mas, como toda
verdade espiritual, deriva sua autoridade da Igreja. Somente
o que a Igreja diz é julgada a verdadeira Palavra de Deus, a
“Escritura Sagrada... escrita principalmente no coração da
Igreja, e não em documentos e registros”.
Essa posição obviamente enfraquece a Escritura. Isso
ocorre por que a posição católica contra sola Scriptura tem sem­
pre causado um problema mais sério para os apologistas ca-
tólico-romanos. De um lado, por enfrentarem a tarefa de
defender a doutrina católica, e, por outro lado, por desejarem
afirmar o que a Escritura diz de si mesma, eles ficam entre a
cruz e a caldeirinha. Não podem afirmar a autoridade da Es­
critura sem esbarrar com o inconveniente de que a tradição é
necessária para explicar o real significado da Bíblia. De modo
bem claro, isso faz da tradição uma autoridade superior. Além
disso, realmente ela faz com que a Escritura se torne supér­
flua, pois, se a tradição católica, infalível, abarca e explica toda
a verdade da Escritura, segue-se que a Bíblia é simplesmente
redundante. Compreensivelmente, por essa razão sola Scriptura
tem sido sempre um argumento altamente eficaz para os de­
fensores da Reforma.
Portanto, não é difícil compreender por que, em anos re­
centes, os apologistas católicos atacaram sola Scriptura com es­
pírito de vingança. Se eles puderem derrubar essa doutrina
específica, todos os pontos em discussão caem com ela. Por­
quanto, sob o sistema católico, qualquer coisa que a igreja
disser deve ser o padrão por meio do qual toda a Escritura
deve ser interpretada. A Tradição é a “verdadeira” Escritura,
escrita no coração da Igreja. A Igreja — não a Escritura es­
crita nos “documentos e registros” — define a verdade sobre
a justificação pela fé, veneração de santos, transubstanciação,
e uma infinidade de outras matérias que separam os Refor­
madores de Roma.
Expondo isso de outra forma, se aceitamos a V02 da Igre­
ja como infalivelmente correta, segue-se que tudo o que a
Escritura diz sobre essas questões é, no final das contas,
irrelevante. E na prática é exatamente isso o que acontece.
Para citar apenas um exemplo, a Escritura afirma com muita
clareza — ‘ ‘'Porquanto há um só D eus e um só M ediador entre D eus e
os homens, Cristo Jesus, hometri' (lTm 2.5). Não obstante, a Igreja
Católica insiste em que Maria é “co-mediadora” do Filho.1
E aos olhos de milhões de católicos, o que a igreja diz é
visto como a Palavra de Deus final e impositiva. 1 Timóteo
2.5 é, portanto, anulada pela tradição da igreja.
Evidentemente, se Roma pode provar sua posição contra
sola Scriptura, ela aniquila todos os argumentos da Reforma
com um golpe fatal. Se ela pode estabelecer sua tradição como
uma autoridade infalível, nenhum mero argumento bíblico
terá qualquer efeito contra os seus ditames.
Por isso, os apologistas modernos da Igreja Católica ar­
maram cuidadosamente um ataque visando sola Scriptura. Na
expectativa de transformar a maior força da Reforma em ar­
gumento contra a Reforma, eles começaram a propalar que é
possível ridicularizar a sola Scriptura usando somente a própria
Escritura! Essa linha de argumentação está sendo empregada
agora pelos católicos contra o evangelismo em praticamente
toda tribuna concebível.
Como exemplo, temos estes trechos extraídos de artigos
divulgados pela Internet:

O ensino protestante de que a Bíblia é a única autorida­


de espiritual — sola Scriptura — em parte alguma é en­
contrado na Bíblia. São Paulo escreveu a Timóteo dizen­
do que a Escritura é “útil” (o que é uma dedução), po­
rém nem ele nem outro qualquer na Igreja Primitiva en­
sinou sola Scriptura. E, na realidade, ninguém acreditava
nisso até a Reforma.2
Em nenhum lugar a Bíblia ensina que ela é a única auto­
ridade em matéria de crença. De fato, a Bíblia ensina que
a Tradição — os ensinos orais transmitidos por Jesus e
os apóstolos e seus sucessores, os bispos — é uma fonte
paralela da crença autêntica. [Conforme citações de 2
Tessalonicenses 2.15 e 1 Coríntios 11.2].3

De alguns livros escritos por apologistas católicos:

De forma alguma [a Bíblia] reduz a Palavra de Deus unica­


mente à Escritura. Contrariamente, a Bíblia nos diz em mui­
tos lugares, que a Palavra autorizada de Deus deve ser en­
contrada na igreja: em sua tradição (2Ts 2.15; 3.6), bem como
em sua pregação e ensino (lPe 1.25; 2Pe 1.20,21; Mt 18.17).
Eis por que penso que a Bíblia sustenta o princípio cató­
lico de sola verbum Dei, “a Palavra de Deus somente” [com
a “Palavra de Deus” abrangendo tanto a tradição como
a Escritura], em lugar do moto protestante, sola Scriptura,
a “Escritura somente”.4

A Bíblia realmente nega que ela seja a regra de fé completa.


João nos diz que nem tudo o que se refere à obra de Cristo
está na Escritura (Jo 21.25), e Paulo diz que muito do ensi­
no cristão deve ser encontrado na tradição, que é transmiti­
da pela palavra [saída] da boca (2Tm 2.2). Ele nos instrui a
“perm anecei firm es e guardai as tradições que vos foram ensina­
das, seja p o r palavra, seja p o r epístola nossd ’ (2Ts 2.15). Os
primeiros cristãos deveríam perseverar “na doutrina dos após-
tolos” (At 2.42), a qual era o ensino oral dado muito antes de
o Novo Testamento ser escrito — e séculos antes que o
cânon do Novo Testamento fosse estabelecido.5

E extraído de um debate público sobre a questão sola


Scriptura·.
A própria sola Scriptura deve ser provada somente pela
Escritura. E se ela não puder fazê-lo, sola Scriptura é uma
proposição auto-refutável, e portanto é falsa.6

[Em] 2 Tessalonicenses 2.15, Paulo ordena que a Igreja


permaneça firme e retenha as tradições que lhes haviam
sido concedidas, quer oralmente, falada ou por meio de
uma epístola. Portanto, em outras palavras, a tradição é
de maior categoria, havendo dois subgrupos em uma
categoria: tradição oral, tradição escrita. E isso o que a
Palavra de Deus diz.7

Muitas dessas alegações serão refutadas em partes deste


livro. Meu objetivo principal será a explanação de passagens
bíblicas citadas em sustentação à veneração da tradição cató­
lica. Mas permita-me uma breve réplica resumida aos ataques
de todos esses argumentos.

Λ Suficiência da E scritura

Primeiro, é necessário compreender o que sola Scriptura


faz e o que ela não declara. O princípio Reformador da sola
Scriptura associa-se à suficiência da Escritura como nossa auto­
ridade suprema em todas as questões espirituais. Sola Scriptura
significa simplesmente que toda verdade necessária para nossa sal­
vação e vida espiritual é ensinada tanto explicita como implicitamente
na Escritura.
Não se pretende que toda verdade de todo tipo seja en­
contrada na Escritura. Os defensores mais ardorosos da sola
Scriptura admitem, por exemplo, que a Escritura tem pouco
ou nada a dizer acerca das estruturas do DNA [ácido
ribonucléico], microbiologia, regras da gramática chinesa ou
a ciência dos foguetes interplanetários. Esta ou aquela “ver­
dade científica”, por exemplo, pode ou não ser realmente ver­
dadeira, pode ou não ser abonada pela Escritura — mas a
Escritura é uma “Palavra mais segura”, mantendo-se acima
de toda outra verdade em sua autoridade e exatidão. Ela é
“mais confiável”, de acordo com o apóstolo Pedro, do que os
dados que conseguimos de primeira mão por intermédio de
nossos sentidos (2Pe 1.19). Conseqüentemente, pois, a Escri­
tura é a autoridade mais alta e suprema acima de qualquer
matéria em que ela se manifeste.
Há muitas questões importantes, porém, sobre as quais a
Escritura silencia. Sola Scriptura não diz o contrário. Nem advo­
ga que tudo o que Jesus ou os apóstolos ensinaram está preser­
vado na Escritura. Ela tão-somente indica que tudo o que nos é
necessário, tudo o que se acumula em nossa consciência e tudo
o que Deus requer de nós é proporcionado pela Escritura.
Além disso, somos proibidos de acrescentar ou retirar pa­
lavras ou conceitos da Escritura (cf. Dt 4.2; 12.32; Ap
22.18,19). Fazê-lo é pôr sobre os ombros das pessoas um
fardo que o próprio Deus não tencionou que elas carregas­
sem (cf. Mt 23.4).
A Escritura é, portanto, o padrão perfeito e único de ver­
dade espiritual, revelando infalivelmente tudo o que devemos
crer para nossa salvação, e tudo isso devemos fazer para glo­
rificar a Deus. Isso — nem mais, nem menos — é o que sola
Scriptura ensina.
A Confissão de F é de W estminster define a suficiência da Es­
critura nestas palavras: “Todo o conselho de Deus concer­
nente a todas as coisas necessárias para a glória dele e para a
salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado
na Escritura ou pode ser deduzido dela. À Escritura nada se
acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do
Espírito, nem por tradições dos homens”(1.6).
Os Trinta e N ove A rtigos da Igreja Anglicana incluem a se­
guinte declaração sobre sola Scriptura “A Escritura Sagrada con­
tém todas as coisas necessárias à salvação: de modo que tudo
quanto não fot lido nela, nem puder ser provado por meio
dela, não deve ser requerido de nenhum homem” (artigo 6).
Portanto, sola Scriptura proclama simplesmente que a Es­
critura é suficiente. O fato de Jesus ter feito e ensinado mui­
tas coisas não registradas na Escritura (Jo 20.30; 21.25) é to­
talmente irrelevante para o princípio da sola Scriptura. O fato
de a maioria dos sermões dos apóstolos nas primeiras igrejas
formadas não terem sido escritos e preservados para nós não
diminui em nada a verdade da suficiência bíblica. O que é
certo é que tudo quanto é necessário está na Escritura — e
estamos proibidos de ultrapassar o que está escrito (ICo 4.6).
Como outros capítulos neste volume têm demonstrado e
demonstrarão, a Escritura invoca para si mesma essa sufi­
ciência — e em lugar algum mais nitidamente do que em 2
Timóteo 3.15-17. Um breve resumo dessa passagem é apro­
priado também aqui. Em resumo, o versículo 15 afirma que a
Escritura é suficiente para a salvação: “...desde a infância, sabes
as sagradas letras, que podem tornar-te sábio para a salvação p ela fé em
Cristo Jesus.” O versículo 16 declara a autoridade absoluta da
Escritura, a qual é “inspirada por Deus” (em grego, theopneustos)
e útil para a nossa instrução. E o versículo 17 diz que a Escri­
tura é capaz de equipar o homem de Deus “para toda boa
obra”. Portanto, a afirmação de que a Bíblia por si mesma
não ensina sola Scriptura é simplesmente equivocada.

Como Conhecemos a D outrina dos A póstolos1?

Examinemos agora as passagens-chave que Roma cita para


tentar justificar a existência de tradição extrabíblica. Uma vez
que muitas dessas passagens são semelhantes, será suficiente
responder às principais. Examinaremos primeiro os versícu-
los-chave que falam a respeito de como a doutrina apostólica
foi transmitida, e a seguir exploraremos o que o apóstolo Paulo
quis dizer quando falou de “tradição”.
2 Timóteo 2.2: “E o que de minha p arte ouviste através de
muitas testemunhas, isso mesmo transmite a homens fiéis e também
idôneos para instruira outrosV Aqui o apóstolo instrui Timóteo,
um pastor jovem, a treinar outros homens fiéis para a tarefa
da liderança na igreja. Nenhuma insinuação há nesse versículo
sobre sucessão apostólica, nem qualquer sugestão de que, trei­
nando aqueles homens, Timóteo estaria passando a eles uma
tradição infalível com autoridade igual à Palavra de Deus.
Pelo contrário, o que esse versículo expõe é simplesmen­
te o processo do discipulado. Longe de conceder a esses ho­
mens alguma autoridade apostólica que garantisse sua infali­
bilidade, Timóteo deveria escolher homens que haviam pro­
vado sua fidelidade, ensinar-lhes o evangelho e prepará-los
nos princípios da liderança da igreja, como ele tinha aprendi­
do de Paulo. O que Timóteo lhes estava incumbindo era a
verdade essencial que o próprio Paulo tinha pregado “através
de muitas testemunhas”.
O que é essa verdade? Não era alguma tradição não reve­
lada, tal como a Assunção de Maria, que seria ora desconhe­
cida ora discutida por séculos até que um papa declarou ex
cathedra que aquilo era verdade. O que Timóteo estava trans­
mitindo a outros homens era a mesma doutrina que Paulo
tinha pregado diante de “muitas testemunhas”. Paulo estava
falando do próprio evangelho. Era a mesma mensagem que
Paulo ordenara a Timóteo que pregasse, e é a mesma mensa­
gem preservada na Escritura e suficiente para preparar todos
os homens de Deus (2Tm 3.16-4.2).
Em resumo, esse versículo é totalmente irrelevante para a
alegação católica de que a tradição recebida dos apóstolos é
preservada infalivelm ente por seus bispos. Nada nesse
versículo sugere que a verdade que Timóteo ensinaria a ou­
tros homens fiéis seria preservada sem erro de geração em
geração. Isso é, sem dúvida, o que a Escritura diz de si mes­
ma: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensi-
no” (2Tm 3.16), porém jam ais afirmação como essa foi profe­
rida para transmitir oralmente a tradição.
Como Timóteo, devemos guardar a verdade que nos foi
confiada. Mas o único cânon confiável, a única doutrina infa­
lível, os únicos princípios coerentes, e a única mensagem
salvadora, é a verdade da Escritura inspirada por Deus.

A tos 2.42: “E perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comu­


nhão, no p artir do pão e nas orações.” Esse versículo afirma simples­
mente que a igreja primitiva seguia o ensino dos apóstolos como
sua regra de fé. Novamente, a passagem nada informa acerca
da sucessão apostólica e não contém qualquer alusão a uma
garantia de que “o ensino dos apóstolos” seria preservado in­
falivelmente por meio de quaisquer meios que não a Escritura.
Observe-se também que esse versículo espelha a atitude
dos primeiros convertidos ao Cristianismo. A palavra “eles” no
início do versículo refere-se ao versículo 41 e às três mil al­
mas que se converteram no Pentecostes. Eram, em sua maior
parte, pessoas leigas comuns. E sua única fonte da doutrina
cristã (isso antes de qualquer texto do Novo Testamento ter
sido escrito) era o ensino oral dos apóstolos.
Esse versículo é até mais irrelevante quanto à questão da
tradição infalível do que 2 Timóteo 2.2. O único ponto que ele
sustenta que é remotamente associado à questão é que a fonte
de autoridade para a igreja primitiva era o ensino apostólico.
Ninguém que apóie a doutrina da sola Scriptura contestará esse
ponto. Afirmemos tão claramente como possível: os protestan­
tes não negam que o ensino oral dos apóstolos era com autori­
dade, verdade infalível, que se impunha como uma regra de fé
sobre aqueles que ouviam. Além disso, se houvesse alguma promes­
sa na Escritura de que as palavras exatas ou o sentido completo
da mensagem apostólica seria infalivelmente preservado pela
palavra da boca em uma sucessão ininterrupta de bispos, sería­
mos forçados a obedecer a essa tradição como regra de fé.
Entrentanto, a Escritura, que <?inspirada por Deus, nunca
fala de qualquer outra autoridade inspirada por Deus; ela nunca
nos autoriza a ver a tradição de um plano de autoridade igual
ou superior; e, enquanto ela faz a alegação de inerrância por
si mesma, ela nunca reconhece qualquer outra força infalível
de autoridade. A tradição palavra-de-boca nunca se conside­
ra theopneustos, inspirada por Deus ou infalível.

Λ Q ue Tradição Paulo Ordenou Q ue Se Fizesse .Adesão?

Já observamos, porém, que os apologistas católicos en­


xergam versículos na Escritura que conferem autoridade à
tradição. Mesmo versões não-católicas da Escritura falam de
uma certa “tradição”, que deve ser recebida e obedecida com
reverência inquestionável.
Que versículos? Geralmente os protestantes acham esses
versículos difíceis de explicar, mas, na realidade, eles apresen­
tam argumentos melhores contra a posição católica do que
contra a sola Scriptura. Examinemos as principais:
1 Coríntios 11.2 : “Defato, eu vos louvoporque, em tudo, w s lembrais
de mim e retendes as tradições assim como vo-las entregueiS Tais palavras
de Paulo aos coríntios falam de tradição, não é mesmo?
Entretanto, como muitas vezes se evidencia, o sentido é
claro quando examinamos o contexto. Ao fazê-lo, constata­
mos que ele não apresenta nenhuma sustentação em qualquer
aspecto para a suposição católico-romana da tradição infalível.
Em primeiro lugar, o apóstolo não está se referindo a tra­
dições transmitidas aos coríntios por outro alguém pela pala­
vra. Essa “tradição” não é outra senão a doutrina que os co­
ríntios tinham ouvido diretamente dos lábios do próprio Paulo
durante seu ministério naquela igreja. A palavra grega tradu­
zida como “tradições” é paradosis, traduzida para “ordenan­
ças” na Versão King James. A raiz grega contém a idéia de
transmissão, e essa idéia é sem dúvida a doutrina que fora
transmitida por meio oral. Nesse caso, porém, ela se refere
somente à própria pregação de Paulo — não a outra pessoa
que estivesse se referindo ao que Paulo ensinou.
Os coríntios tiveram o privilégio de ouvir o ministério do
apóstolo Paulo por um ano e meio (At 18.11), de modo que
seria irônico que entre todas as igrejas mencionadas no Novo
Testamento, a de Corinto fosse a única mais problemática. A
primeira epístola de Paulo a essa igreja trata de uma série de
problemas profundos relacionados à disciplina e práticas da
igreja, incluindo um pecado sério no seu meio, desunião entre
irmãos, desordem nas reuniões da igreja, cristãos que estavam
arrastando uns aos outros ao tribunal, abuso dos dons espiri­
tuais, etc. A segunda epístola à mesma igreja é uma longa defe­
sa do ministério de Paulo diante da oposição e da hostilidade.
Alguém na igreja — possivelmente até alguém a quem Paulo
tivesse confiado uma posição de liderança — tinha fomenta­
do uma rebelião contra Paulo durante sua longa ausência.
Os coríntios conheciam Paulo. Ele tinha sido seu pastor.
Entretanto, estavam afastando-se do ancoradouro que ele
havia estabelecido com tanto cuidado durante seu pastorado
naquela igreja. Longe de serem instrumentos por meio dos
quais a tradição de Paulo era preservada e transmitida infali­
velmente, os coríntios estavam rebelando-se contra o seu apos-
tolado! Eis por que Paulo incentivou-os a se lembrarem da­
quilo que tinham ouvido dele pessoalmente e reiterado por
carta. O que Paulo ensinou-lhes durante aquele ano e meio
de convívio? Não dispomos de meio algum para saber preci­
samente, mas temos todos os motivos para crer que o con­
teúdo de seu ensino era a mesma verdade que está registrada
ao longo de suas epístolas e em outras partes do Novo Testa­
mento. Uma vez mais, insistimos que nós sabemos com cer­
teza que tudo quanto era essencial na preparação dos cristãos
para a vida e a piedade foi preservado na Escritura (2Tm 3.1 Ξ­
Ι 7). O restante não ficou registrado, e nada, em qualquer lu-
gar na Escritura, indica que ela tenha sido transmitida pela
tradição oral — especialmente não por qualquer meio que
garantisse que ela fosse inspirada e infalível.
Especificamente, 1 Coríntios 11.2 não ensina tal coisa. A
carta nada mais é do que a exortação de Paulo aos crentes no
sentido de recordarem o seu ensino apostólico e obedecerem
a ele. Ela reflete a própria luta pessoal de Paulo na proteção e
preservação da tradição doutrinária que havia sido estabelecida
tão cuidadosamente em Corinto. Portanto, reiteramos, nenhu­
ma implicação há de que o apóstolo esperava que essa tradi­
ção significasse outra coisa que não a Escritura. Antes, ao
contrário, Paulo preocupava-se com a possibilidade de que seu
ministério entre os coríntios tivesse sido em vão (cf. 2Co 6.1).

2 Tessalonicenses 2 .1 5 : “A ssim, pois, irmãos, perm aneceifir­


m es e guardai as tradições que vos foram enánadas, seja p o r palavra,
seja p o r epístola nossa!' Esse versículo talvez seja o favorito dos
apologistas católicos, quando desejam uma sustentação ao
recurso católico da tradição, porque o versículo delineia cla­
ramente entre a palavra escrita e as “tradições” orais.
A palavra grega é, de novo,paradosis. Nitidamente, o após­
tolo está falando de doutrina, e não há como negar que a dou­
trina que ele tem em mente é a verdade autorizada e inspirada.
Portanto, o que é essa tradição inspirada que os crentes
receberam “por palavra”? Não está ela antes apoiando a posi­
ção católica?
Não, não está. Outra vez, o contexto é essencial para uma
compreensão clara do que Paulo está dizendo. Os tessaloni­
censes tinham sido claramente enganados por uma carta for­
jada, supostamente do apóstolo Paulo, dizendo-lhes que o
Dia do Senhor já tinha vindo (2Ts 2.2).
Evidentemente, toda a igreja ficou desapontada com isso
e o apóstolo estava ansioso por incentivá-la. Primeiro, ele de­
sejava advertir os fiéis a não serem logrados por ‘Verdade
inspirada” mentirosa. E disse-lhes então claramente como re­
conhecer uma epístola genuína dele — a qual seria assinada
por ele mesmo: “A saudação é de próprio punho: Paulo. E ste é o
sinal em cada epístola; assim é que eu assino” (2Ts 3.17). Ele queria
assegurar-se de que eles não fossem ludibriados novamente
por epístolas forjadas.
Entretanto, mais importante ainda, ele queria que eles se
apegassem ao aprendizado que haviam recebido dele. Ele já
lhes havia dito, por exemplo, que o Dia do Senhor seria pre­
cedido da apostasia e da revelação do “homem da iniqüidade,
o filho da perdição”. '‘N ão w s recordais de que, ainda convosco, eu
costumava di^er-vos estas cousas?” (2Ts 2.5). Não havia razão para
que ficassem perturbados em razão de uma carta espúria, pois
já haviam recebido a verdade genuína de sua própria boca.
Assim sendo, ninguém — nem mesmo o mais apaixona­
do paladino da sola Scriptura— negaria que Paulo ensinou aos
tessalonicenses muitas coisas pela palavra oral. Ninguém ne­
garia que o ensino de um apóstolo continha absoluta autori­
dade. O ponto de discussão entre católicos e protestantes é
quanto ao ensino ter sido infalivelmente preservado pela pa­
lavra falada. Assim, a simples referência à verdade recebida
de primeira mão do próprio Paulo é, insistimos, irrelevante
como amparo à posição católica.
Certamente, nada aqui sugere que a tradição que Paulo
ensinou aos tessalonicenses é preservada infalivelmente em
qualquer lugar além da própria Escritura. De fato, a essência
real do que Paulo está escrevendo aqui é antitético ao espírito
da tradição católico-romana. Paulo não está incentivando os
tessalonicenses a receberem alguma tradição que tenha sido
entregue a eles por meio de relatos de segunda ou terceira
mão. Pelo contrário, ele estava ordenando-lhes que recebessem como
verdade infalível somente o que tinham ouvido diretamente de seus lábios.
Paulo estava muito preocupado em corrigir a inclinação
dos tessalonicenses a serem induzidos ao desvio por falsas
epístolas e tradição espúria. Desde o começo, os tessaloni-
censes não tinham aceito a mensagem do evangelho tão no­
bremente como os crentes de Beréia, que “receberam a palavra
com toda a avide^ examinando as E scrituras todos os dias para verse
as cousas eram, defato, assini' (At 17.11).
É altamente significativo que os crentes de Beréia fossem
explidtamente apreciados por examinarem a mensagem apostóli­
ca à luz da Escritura. Eles tiveram a prioridade correta: a Escri­
tura é a regra suprema de fé pela qual todas as demais coisas
devem ser testadas. Inseguros a respeito de poderem confiar na
mensagem apostólica — que, a propósito, era tão inspirada, in­
falível e verdadeira como a própria Escritura — os ouvintes de
Beréia removeram todas as suas dúvidas por terem comparado
a mensagem com a Escritura. Entretanto, os católicos romanos
são proibidos por sua igreja de seguirem o mesmo caminho!
Eles ficam sabendo que a igreja, por meio de seus bispos, mi­
nistra o único conhecimento verdadeiro e infalível da Escritura.
Portanto, é inconseqüente testar a mensagem da Igreja
Católica pela Escritura; porque, se ocorrer uma dúvida no
significado escriturístico — e não se engane, há muitas —
Roma diz que suas tradições têm mais validade do que a in­
terpretação bíblica dos críticos.
O que o apóstolo estava dizendo aos tessalonicenses em
nada diferia do que Roma diz aos católicos fiéis. Paulo estava
instando os tessalonicenses a testarem todas as verdades con­
tidas na Escritura com as palavras que tinham ouvido pesso­
almente de seus próprios lábios. E uma vez que somente as
palavras dos apóstolos preservadas infalivelmente estão na
Escritura, segue-se que nós, como os crentes de Beréia, deve­
mos comparar cada ponto da Escritura para a verificação de
que a palavra é correta.
Os apologistas católico-romanos protestam que somente
uma fração das mensagens de Paulo aos tessalonicenses este­
jam preservadas em duas breves epístolas escritas por ele àquela
igreja. É verdade, mas não podemos admitir que o que foi ensi­
nado aos tessalonicenses sejam as verdades genuínas encontra­
das em generosa medida em todas as suas epístolas — a justifi­
cação somente pela fé, o verdadeiro evangelho da graça, a sobe­
rania de Deus, o Senhorio de Cristo, e um elenco de outras
verdades? O Novo Testamento apresenta-nos uma teologia cristã
universal. Quem pode provar que alguma coisa essencial foi omi­
tida? Ao contrário, estamos confiantes de que a Escritura é su­
ficiente para a salvação e para a vida espiritual (2Tm 3.15-17).
Em que lugar a Escritura já sugeriu que há verdades não-escri-
tas necessárias ao nosso bem-estar espiritual? Uma coisa é certa
— as palavras de 2 Tessalonicenses 2.15 não inferem tal coisa.

2 Tessalonicenses 3 .6 : “N ós vos ordenamos, irmãos, em nome


do Senhor Jesus Cristo, que m s aparteis de todo irmão que ande desor­
denadamente e não segundo a tradição que de nós recehestesP Este é
outro dos únicos versículos em todo o Novo Testamento em
que Paulo usa a palavra tradição ou tradições para falar da
verdade apostólica à qual devemos obedecer.
A propósito, o uso desse termo por Paulo deve ser bem
estabelecido. Essa não pode ser uma referência à verdade
transmitida de geração em geração. Novamente, Paulo está
falando de uma “tradição” recebida por ele em primeira mão.
Trata-se, aqui, da parte de encerramento da epístola. Pau­
lo está fazendo um resumo. E, uma vez mais, ressalta a im ­
portância do ensino que os tessalonicenses tinham recebido
diretamente de sua boca. A “tradição” de que ele está falando
aqui é uma doutrina decisiva, segundo a qual qualquer pessoa
que se recusar a dar-lhe atenção e viver de conformidade com
ela, deverá ser rejeitada pela comunidade.
O que é essa “tradição”? E a teologia mariana, o dogma
acerca da eficácia das relíquias ou outros ensinos peculiares ao
catolicismo romano? De modo algum — é uma doutrina apos­
tólica simples e prática, ensinada e exercitada por exemplo, en­
quanto Paulo estava entre os tessalonicenses. Paulo continua a
definir especificamente qual é a “tradição’’ que ele tem em mente:

pois vós mesmos estais cientes do modo p o r que vos convêm imitar-
nos, visto que nunca nosportam os desordenadamente entre vós, nem
jam ais comemos pão à custa de outrem; pelo contrário, em labor e
fadiga, de noite e de dia, trabalhamos, a fim de não sermospesados
a nenhum de vós; não porque não tivéssemos esse dirnto, mas p or
term os em vista oferecer-vos exemplo em nós mesmos, para nos
imitardes. Porque, quando ainda convosco, vos ordenamos isto: se
alguém não quer trabalhar, também não coma. Pois, de fato, esta­
mos informados de que, entre vós, há pessoas que andam desordena­
damente, não trabalhando; antes, se intrometem na vida alheia. Λ
elas, porém , determinamos e exortamos, no Senhor Jesus Cristo,
que, trabalhando tranquilamente, comam o seu próprio pão. E vós,
irmãos, não vos canseis defaster o bem. (2Ts 3.7-13).

Em outras palavras, Paulo estava falando de doutrina sim­


ples e prática, sobre administração em geral, a responsabili­
dade de um homem de trabalhar e prover para sua família, e
disciplina pessoal na vida diária. Essas verdades são agora
parte da Escritura, em razão da inclusão de Paulo nessa epís­
tola. Ponha isso junto com todas as outras coisas dos regis­
tros do Novo Testamento e terá cada parte da mensagem
apostólica preservada infalivelmente para nós.
A soma da verdade escriturística é uma regra de fé suficiente
para o cristão? Temos a certeza da própria Bíblia que é. A Escri­
tura por si mesma é suficiente para levar-nos à salvação e prepa­
rar-nos completamente para a vida e a eternidade (2Tm 3.15-
17). Portanto, podemos saber com certeza que cada aspecto
essencial da mensagem apostólica está incluída na Escritura.
Observemos que Paulo olhava claramente suas epístolas
como Escritura inspirada e autorizada. Ele admoestou os tes­
salonicenses com a seguinte instrução: “Caso alguém não preste
obediência à nossapalavra dadapor esta epístola, notai-o; nem w s associeis
com ele, p ara quefiq u e envergonhada (2Ts 3.14).
Portanto, as palavras escritas da Escritura impõem e com­
prometem. A pregação apostólica foi igualmente impositiva
e comprometedora para aqueles que a ouvem da própria boca dos
apóstolos. Além disso, a Escritura não lança nenhum fardo so­
bre os ombros de alguém. Antes, graças a Deus, sua própria
Palavra assegura-nos que a Escritura é plenamente suficiente
para levar-nos à salvação e à capacitação espiritual para tudo
o que Deus requer de nós.
Nenhum homem, nenhuma igreja, nenhuma autoridade
religiosa tem qualquer permissão de Deus para aumentar a
inspirada Palavra da Escritura com tradições adicionais, ou
alterar o claro sentido dela por sujeitá-la aos rigores de um
sentido “tradicional” não encontrado na própria Palavra. Fazê-
lo é invalidar a Palavra de Deus claramente — e sabemos o
que nosso Senhor pensa sobre isso (Mt 15.6-9).1

1 Dos documentos do Vaticano II, Gumen Gentium, 62.

2 De um attigo de Geotge Sim Johnston, divulgado pda Catholic


Information Network.

3 De um panfleto emitido por Catholic Answers.

4 Scott Hahn, Rome S m et Home (San Francisco: Ignatius, 1993), p. 74.

5 Karl Keating, CathoMsm andFundamentalism (San Francisco: Ignatius,


1988), p. 136.

6 Patrick Madrid, em um debate com James White. Informações


sobre pedidos desse teipe podem ser obtidas por escrito a Alpha
and Omega Ministries, P.O. Box 37106, Phoenix, AZ 85069.

7 Ibid.
ó

Escritura e Tradição
A Bíblia e a Tradição no Catolicismo Romano
Dr. Sinclair Ferguson

O ano de 1996 assinalou os 450 anos da morte de Martinho


Lutero, cujas famosas 95 teses provocaram um incêndio reli­
gioso na Europa, o qual a Igreja Católica Romana não foi
capaz de extinguir. O conflito teológico resultante disso tem
sido freqüentemente caracterizado pela focalização sobre os
chamados quatro “somentes” da Reforma: sola gratia, solo Christo,
solafide, sola Scriptura— salvação somente pela graça, somente
em Cristo, somente pela fé, e tudo o que é necessário para a
salvação é ensinado somente na Escritura. Cada um desses
princípios, e certamente todos os quatro associados, servi­
ram como um cânon pelo qual o ensino da Igreja Católica
Romana era avaliado e considerado deficiente.
Nesses grandes lemas, os substantivos — graça, Cristo,
fé e Escritura — foram e são de grande importância. Mas,
em cada caso, a qualificação sola (somente) era de certo modo
ainda mais significativa. Pois Roma tinha sempre ensinado
que a salvação era pela graça mediante a fé em Cristo, e
tinha sempre defendido que a Bíblia era a Palavra de Deus
— porém nunca som ente. Falar de sola Scriptura quase sempre
era visto em Roma como uma receita para a anarquia espi­
ritual, sob a qual cada um criaria para si mesmo a mensa­
gem da Bíblia. A única salvaguarda contra isso era a tradi­
ção viva da Igreja vista como um canal suplementar da re­
velação divina.
A máquina impressora (e, portanto, o acesso mais amplo
à Bíblia) é um fenômeno da Renascença; no entanto, os ní­
veis de alfabetismo eram baixos na Idade Média. Entretanto,
esse fato em si não explica as histórias espantosas da Refor­
ma sobre a ignorância disseminada da Bíblia entre os sacer­
dotes e o povo. Não obstante, seria descaridoso extrapolar
daqueles dias escuros ao tempo presente, como se não tives­
se havido contra-reformas nesse ínterim. Isso revelaria con­
siderável ignorância dos protestantes, se não admitissem que
no último século ocorreu dentro da Igreja Católica Romana
um interesse generalizado pela Bíblia.
Pode-se dizer, pois, que deparamos agora com uma nova
situação no catolicismo romano? Pela primeira vez desde a
Reforma, estão sendo publicadas Bíblias “comuns” a ambas
as correntes. Além disso, não somente dentro do Conselho
Mundial de Igrejas (amplamente dominado pela teologia li­
beral), mas também dentro do evangelismo, uma aproxima­
ção significativa tem sido vista como possível ainda em nossa
atualidade. Portanto, ocorre-nos uma pergunta oportuna:
Alguma coisa nunca vista aconteceu dentro da Igteja Católi­
ca Romana a respeito da interpretação da Bíblia, a ponto de
antigas diferenças, por fim, serem relegadas ao esquecimento?
Durante o último século e um quarto — desde o Concilio
Vaticano I (1870) até a publicação da importante obra, Λ In­
terpretação da B íblia na Igreja (1993), da Comissão Bíblica
Pontifícia — o Magistério Romano tem publicado uma série
de afirmações significativas sobre a natureza, interpretação e
papel da Bíblia na Igreja. Tais manifestações começaram no
século XIX durante a crise disseminada resultante do pensa­
mento do Iluminismo, e, em seguida, pelo ataque furioso do
humanismo científico, que encontrou seu impulso no evo-
lucionismo no final do século XIX. Os pronunciamentos con­
tinuaram a surgir até o nosso tempo, quando o Vaticano pro­
curou juntar os métodos histórico-críticos contemporâneos
da interpretação bíblica aos antigos dogmas da Igreja. Cada
uma dessas declarações é de interesse em si mesma; juntas
elas assinalam um desenvolvimento que tem sido importante
para o trabalho de numerosos biblicistas especializados da
Igreja Católica Romana.
A história desse desenvolvimento não é bem conhecida
entre os protestantes. Com certeza, provavelmente muitos ca­
tólicos romanos também não estão bem familiarizados com
ela. Vale a pena narrar o fato, pelo menos em linhas gerais.

D esenvolvimentos em Roma

Em 1893 o Papa Leão XIII publicou a Encíclica Providentissimus


Deus. Foi a primeira tentativa extensa da Igreja Católica Ro­
mana para tratar especificamente do impacto das metodologias
críticas, que chegaram a caracterizar o conhecimento teológi­
co na última parte do século XIX. Nelas, a Bíblia era tratada
como um antigo texto do Oriente Próximo e avaliada de um
ponto de vista da investigação crítico-histórica e desenvolvi­
mento lingüístico-religioso. Em termos teológicos sofistica­
dos, a “humanidade” da Escritura foi explorada (e, de fato,
sua divindade foi crescentemente desconsiderada e negada).
Contra esse pano de fundo, em que a idéia da evolução
humana desempenhava importante papel, PromdentisúmusD eus
insistia sobre um princípio duradouro de ortodoxia cristã: Se
Deus é o Autor tanto da Natureza como da Escritura, esses
dois “livros” da revelação divina devem estar em harmonia
entre si. A encíclica enfatizava que, por conseguinte, não po­
dería haver nenhum conflito fundamental entre a Bíblia e tanto
as ciências naturais como a investigação histórica. Ela per­
suadia tanto os teólogos como os cientistas a respeitarem os
limites de suas próprias esferas. Além disso, os exegetas bí­
blicos que se valiam dos frutos do cientificismo secular e dos
estudos históricos foram aconselhados a recordar a impor­
tância da analogafidet (analogia da fé): as Escrituras devem ser
interpretadas sempre de acordo com a regra de fé apostólica,
à qual a igreja assentiu. A última palavra sobre o que a Bíblia
ensinava cabia ao Magistério Romano.
Providentissimus D eus era, portanto, caracterizada por um ca­
ráter conservador (alguns teriam dito “reacionário’^, expresso
particularmente em suas críticas negativas à forma como os
princípios histórico-críticos estavam sendo usados. A ansieda­
de subjacente de toda a encíclica consistia de que os resultados
desse movimento crítico provariam ser injuriosos à fé, da qual
a Igreja fora chamada para ser a guardiã e não a destruidora.
Cinqüenta anos depois a face da Europa tinha mudado
dramaticamente. A Primeira Grande Guerra travou-se de 1914
a 1918; a Segunda Grande Guerra, de 1939 a 1945, estava em
plena ação. O otimismo mal empregado e antropocêntrico
da teologia liberal do século XIX tinha sucumbido, destroça­
do diante da enormidade da necessidade humana; a noção de
que a humanidade evoluía de uma condição moral inferior
para superior sofrerá um golpe intempestivo. O “evangelho”
da universal Paternidade de Deus e a fraternidade dos ho­
mens ficaram expostos em toda a sua própria pobreza. Sur­
giu ali um novo sentido de carência de alguma palavra pode­
rosa de Deus. No protestantismo aflorou a “teologia da cri­
se”, e o que veio a ser conhecido como o movimento “Teolo­
gia Bíblica” foi incentivado à vida.
Avanços significativos estavam também ocorrendo no âm­
bito universal do estudo bíblico católico-romano. A Comis­
são Bíblica Pontifícia foi criada por Leão XIII em 1902.
Publicada a Providentissimus D eus, suas respostas (responsa) a
perguntas de interpretação bíblica eram caracterizadas por
reação negativa sob a mais forte reprovação. Porém, no devi­
do tempo (ela foi completamente reorganizada em 1971, após
o Concilio Vaticano II), ela provaria ser uma ponta de lança
da nova forma de leitura da Bíblia.
Em 1943, Pio XII promulgou sua Pdntíclica D ivino A fflante
Spiritu. A promulgação deu-se quando a Segunda Grande
Guerra estava no auge da luta, mas seu pleno impacto come­
çou a ser sentido somente na virada da década. Então surgiu
uma notícia favorável. Primeiro, os especialistas bíblicos da
Igreja Romana estavam totalmente livres do fardo que opri­
miu os estudiosos por séculos: o uso da Vulgata (tradução
bíblica latina de Jerônimo). Ela tinha sido considerada texto
autorizado para uso eclesiástico desde o tempo do Concilio
de Trento (e até então ela ainda era declarada “livre de todo
erro em questões de fé e de costumes”).
De uma forma que lembrava os humanistas da Renascen­
ça, com o moto adfontes (“volta às fontes originais”), os estu­
diosos católicos podiam experimentar uma nova liberdade e
um ímpeto renovado para obter e aplicar sua habilidade na
linguagem bíblica que lhes permitia uma verdadeira compre­
ensão do texto da Escritura. Um novo valor era reconhecido
no uso de tais ferramentas, ou seja, textual, literário e crítica
convencional. Era-lhes assegurada a importância da História,
Etnologia, Arqueologia “e outras ciências”. O “verdadeiro
significado”, mais apropriadamente “sentido literal” da Es­
critura deveria também abranger o “significado espiritual”.
Os meios pré-críticos de leitura da Bíblia foram amplamente
(mas não inteiramente) substituídos por um novo critério.
Então, uma clara distinção se fez entre o “sentido” [ou inter­
pretação por contexto] do escrito original e a aplicação atual
(“significado” [tradução transliteral]) dele. Os princípios de
interpretação que têm sido de longa data familiares aos pro­
testantes estão sendo agora crescentemente reconhecidos
como essenciais à exegese bíblica apropriada. O método his-
tórico-crítico tinha chegado para ficar.
Tudo isso foi incentivado (dificilmente podería ter sido
evitado, mas a índole de Roma, diferentemente de Wittenberg
e Genebra, sempre manteve sua capacidade de se contrapor a
tendências opostas). O princípio fundamental era que as Escri­
turas não poderíam ser acusadas de erro. Quaisquer tensões
entre a Escritura e a “realidade” deveríam ser resolvidas sem­
pre em favor da integridade bíblica. A harmonização era uma
chave essencial para ler a Bíblia como um católico m oderna
Os tempos mudam, e nós mudamos com eles. A segunda
metade do século XX assistiu ao contínuo movimento bíbli-
co-intelectualista na Igreja Católica Romana. Isso não acon­
teceu sem uma sangria eclesiástica (a certa altura dos traba­
lhos, professores do Instituto Bíblico foram banidos do ensi­
no!). Mas o resultado geral foi que alguns dos estudos bíbli­
cos mais eruditos foram publicados durante esse período
ostentando o im prim aturs o nihil obstat, que os identifica como
obras dos especialistas católico-romanos que foram declara­
das “livre de erro doutrinário ou moral”.
A mais recente e sucinta expressão desse desenvolvimen­
to pode ser vista na declaração da Comissão Bíblica Pontifícia
sobre a interpretação bíblica, publicada em 1993. Aqui, os
frutos da erudição crítica expressos no contexto da tradição
da Igreja são cordialmente bem-vindos. De fato, é estranha
agora — em vista da importância do princípio da harmoniza­
ção a todo custo que marcou os primeiros pronunciamentos
da Igreja Católica —uma abordagem fundamentalista da Es­
critura ao estilo protestante, com a qual a igreja parece ter-se
tornado muito crítica, e talvez muito receosa.
Mas, por que esse desdobramento desde 1870 deve ser de
interesse dos cristãos protestantes? Por uma razão que so­
bressai em muitos pontos da própria postura crítica católica.
Há uma clara consciência no estudo bíblico do catolicismo
romano de que existe um abismo — ou, pelo menos, uma
certa distância — entre o que o texto da Escritura Sagrada
afirma e o ensino da Tradição Sagrada da Igreja. Há também
o reconhecimento de que as palavras de Jesus registradas em
João 16.12-15, freqüentemente tomadas como uma promes­
sa específica que assegura a verdade e infalibilidade da Tradi­
ção Sagrada, não se referem, em absoluto, à Tradição!1 Por
necessidade, portanto, alguns intérpretes católico-romanos da
Escritura consideraram necessário desenvolver uma nova vi­
são do relacionamento entre Escritura e Tradição, a fim de
mantê-las juntas: a Tradição acrescenta à Escritura, mas a Es­
critura está “aberta” para a Tradição.
Pode esse argumento ser prontamente ilustrado pelo co­
nhecimento bíblico dos católicos romanos?
Em discussão crítica é sempre uma grande tentação tratar
os exemplos mais extremos do ponto de vista oposto como
se eles fossem ilustrativos. Esta, porém, é uma tática desonrosa
e, freqüentemente, apenas aviva os preconceitos de ambos os
lados. Neste contexto, porém, o ponto pode prontamente ser
ilustrado não pelos piores exemplos históricos da interpreta­
ção bíblica católico-romana, mas — ainda que de uma amos­
tra necessariamente limitada — pelo que for visto largamen­
te como sua melhor parte.
Seria difícil encontrar melhor ilustração da nova aborda­
gem à Bíblia no catolicismo romano do que os recente e am­
plamente aclamados comentários sobre Romanos de Joseph
A. Fitzmyer. O professor Fitzmyer é um estudioso católico-
romano de primeira linha, cujos dons acadêmicos de projeção
impregnam seus comentários de quase oitocentas páginas.
Embora seja geralmente verdadeiro na questão de comentá­
rios que “a carne de um homem é o veneno de outro ho­
mem”, é impossível imaginar que qualquer estudante da Es­
critura deixe de encontrar proveito considerável da erudição
e estímulo da obra de Fitzmyer. Raymond E. Brown, o desta­
cado professor americano católico joanino, descreve Fitzmyer
como “o mais douto estudioso do Novo Testamento no ce­
nário católico americano”.2Em outra parte ele fala a respeito
de sua obra sobre Romanos que “pode-se afirmar tratar-se
do melhor comentário sobre Romanos em língua inglesa”.3
Mesmo aqueles que possam atribuir o mérito a outro alguém
que não Fitzmyer reconhecem o valor da recomendação.
Mas, é precisamente p o r causa da qualidade desse comentá­
rio que seu conteúdo é tão significativo. Um desejo por cuida­
dosa exegese associada à fidelidade ao Magistério da Igreja leva
Fitzmyer (um jesuíta) a afirmar, embora com sensibilidade e
discrição apropriadas, que o ensino das Escrituras não pode
simplesmente identificar-se com os ensinos da Tradição Sagra­
da. A seleção de ilustrações que se segue ressalta esse assunto.

Um Católico-romano Sobre Romanos

Em extenso capítulo introdutório sobre a teologia paulina,


Fitzmyer inclui um ensaio sobre a fé. Na teologia desenvolvi­
da no período medieval, os teólogos tinham falado e escrito
muito sobre fid es caritate form ata, fé justificadora que era “fé
formada pelo amor”. Essa, e não a “fé somente” justifica.
Essa visão foi confirmada no Concilio de Trento.
Muitas das declarações tridentinas revelam equívocos no en­
sino de Lutero e de outros Reformadores; entretanto, seu ensino
nessa associação é claramente pretendido como uma rejeição dos
princípios que os Reformadores consideravam essenciais ao evan­
gelho. O Decreto de Trento sobre Justificação é do seguinte teor:

Se alguém disser que as pessoas são justificadas quer por


somente imputação da retidão (justícia ) de Cristo, ou por
somente remissão de pecados, com exclusão da graça e
caridade que é vertida em seus corações mediante o Es­
pírito Santo e inere a eles; ou mesmo que a graça pela
qual somos justificados seja somente o favor de Deus,
que ele seja anátema.4

O grande temor de Roma tinha sido sempre que sola fid e


fomentasse o antinomianismo e a licença moral. Os cristãos,
estava assegurado, eram preservados disso pelo fato de que a
justificação se dá mediante a fé, que é formada por amor; isto
é, a justificação envolve transformação pessoal.
Entretanto, comenta Fitzmyer, a noção de Paulo da fé que
“floresce” no amor deve ser distinguida dessafid es cantateformata.

Essa é uma transposição filosófica do ensino paulino —


aceitável ou não, dependendo de a pessoa concordar com
a filosofia envolvida — mas a idéia paulina genuína de “fé
operando por si pelo amor” é implícita em Romanos... ele
não iguala a fé ao amor; nem atribui ao amor o que ele faz
à fé (isto é, justificação, salvação), muito embora ele reco­
nheça a necessidade de ambos agirem conjuntamente.5

Aqui está um reconhecimento importante do fato que deve­


mos distinguir entre o que a Tradição tem ensinado e o que as
Escrituras realmente afirmam. A idéia de a fé e o amor serem
instrumentos na justificação não pode ser tomada fora do texto
como tal. Ela não é parte da exegese das palavras de Paulo.
Observe, porém, que Fitzmyer é cauteloso ao sugerir ape­
nas que há uma distância entre o que é afirmado por Paulo e
o que é afirmado na Tradição. Ele não afirma que há alguma
contradição necessária entre a Escritura e a Tradição.
Mais deve ser dito adiante. Em comentário sobre a passa­
gem central, Romanos 3.21-26, Fitzmyer afirma que Paulo for­
mula aqui “três, ou possivelmente quatro, efeitos do evento Cristo
[isto é, a obra de Cristo]....: justificação, redenção, expiação, e
possivelmente perdão”, e acrescenta que “é importante reco­
nhecer que tais efeitos do evento Cristo são apropriados por
meio da fé em Cristo Jesus, e somente pela fé. Ela é o meio pelo
qual os seres humanos experimentam o que Cristo tem feito”.6
Aqui, novamente, o texto paulino deve ser lido em seus
próprios termos, sem recorrer aos desenvolvimentos pós-
paulinos na Igreja. Fitzmyer sabe que dentro da Igreja tem
havido sempre aqueles que lêem as palavras de Paulo como
que insinuando o princípio da sola fid e.
Seria totalmente equivocado (e com certeza ingênuo), en­
tretanto, ler esse distanciamento entre os pronunciamentos da
Igreja e as afirmações do texto bíblico como uma capitulação à
exposição protestante. Para Fitzmyer é não menos cauteloso
chamar a atenção para a diferença entre o texto e o modo como
ele tem sido interpretado dentro das igrejas protestantes.
Em uma página da citação anterior encontramos o Pro­
fessor Fitzmyer rejeitando a interpretação de um estudioso
protestante em virtude de “que a leitura introduziría uma dis­
tinção feita por Anselmo para o texto paulino, que não a san­
ciona”.7Porém, mesmo aqui, o propósito é permitir que Pau­
lo fale por si mesmo distintamente da leitura visual da cons­
trução de uma tradição pós-bíblica (nesse caso alguém que
também recorreu ao protestantismo). Queiramos ou não, a
crítica de Fitzmyer é acurada; o que à primeira vista é digno
de nota é o modo pelo qual seu reconhecimento da ênfase de
Paulo sobre o exclusivo papel da fé pode facilmente estar
equivocado ante o comentário de um exegeta protestante.
Há outras ilustrações dignas de nota de uma exegese que
autoconscientemente procura permitir que as Escrituras fa­
lem por si mesmas, livres da ascendência da tradição teológi­
ca. Nesse sentido, o intérprete católico-romano está exami­
nando o texto de maneira semelhante à do protestante.
Comentando as palavras “justificados gratuitamente, por
sua graça” em Romanos 3.24, Fitzmyer observa:

Seria supérfluo enfatizar... que, ao usar dorean e te autou


chariti, Paulo não esteja se referindo à eficiente causa da
justificação pela anterior e a causa formal pela posterior
(como se charis fosse “graça santificadora”). Isso é exegese
anacrônica, uma distinção oriunda da teologia medieval
tardia e da tridentina.8
Novamente aqui, sem rejeitar o ensino tridentino como
tal, uma distinção é feita entre o que o próprio texto afirma e
a teologia que se desenvolveu dentro da tradição católica.
Os comentários mais inesperados que podem perturbar a
mente protestante são encontrados na exposição do Profes­
sor Fitzmyer sobre Romanos 3.27-31. Foi em sua tradução
de Romanos 3.28, no ano de 1522, que a opção de Lutero por
sola fid e desabrochou como uma planta para o entendimento
do evangelho pela Reforma. Fitzmyer reconhece que, na rea­
lidade, tal expressão ocorreu muito tempo antes de Lutero,
podendo ser encontrada nos escritos dos antigos pais. Ele
afirma abertamente que “nesse contexto” Paulo quer dizer
“somente pela fé”, embora sustente que, no sentido luterano,
seu uso é uma extensão do que Paulo diz. Isso, inevitavel­
mente, suscita perguntas quanto à natureza dessa “extensão”,
e indaga se há algum “sentido” católico-romano em que a
justificação é genuinamente “somente pela fé”.
A mesma distância entre a Escritura e a Tradição é mais
adiante indicada quando Fitzmyer retorna à exposição de Ro­
manos 5.12. A interpretação tradicional católico-romana desse
texto levou-a a notar nele uma referência ao pecado “origi­
nal”. Isso foi aceito explicitamente pelo Concilio de Trento,
que não só apôs seu imprimátur a essa exegese das palavras
de Paulo, como também proibiu qualquer outra interpreta­
ção de sua afirmação. Fitzmyer comenta:

Essa tradição encontrou sua expressão conciliar formal


no documento tridentino Decretum de peccato originali, Ses­
são V, 2-4 ... Esse decreto deu uma interpretação defini­
tiva ao texto paulino no sentido de que suas palavras
ensinam uma forma do dogma do Pecado Original, um
texto raro que possui tal interpretação.
Deve-se tomar cuidado, porém, com o discernimento
do que Paulo está dizendo e não transformar seu modo
de expressão muito simplesmente para a precisão do
desenvolvimento dogmático posterior ... O ensino de
Paulo é tido como germinativo e aberto ao desenvolvi­
mento dogmático posterior, mas ele não diz tudo o que
o decreto tridentino diz.9

Aqui, novamente, não podemos deixar de notar o cuida­


do que surge com respeito à leitura da Tradição da Igreja
apoiada na Escritura. O dogma como tal não é rejeitado; o
que se torna claro é que ele não deve ser identificado sim pliciter
com o ensino contido no Novo Testamento.
Em seguida, ao comentar Romanos 6.12, Fitzmyer refe­
re-se ao ensino do Concilio de Trento no tocante ao que Pau­
lo chama algumas vezes de “pecado” (tal como em Romanos
6.12, por exemplo) não é descrito do mesmo modo como a
Igreja Católica Romana, porém é, antes, entendido como o
fom es peccati. A alusão nesse texto é a uma das mais surpreen­
dentes (e certamente embaraçosas) declarações nos documen­
tos de Trento, no Decreto Concernente ao Pecado Original:

Essa concupiscenda, que o apóstolo algumas vezes cha­


ma de pecado, o santo Sínodo declara que a Igreja Cató­
lica Romana nunca entendeu chamá-la de pecado, como
sendo verdadeira e adequadamente pecado naqueles nas­
cidos de novo, mas porque ela é do pecado, e inclina-se
para o pecado. E se alguém é de sentimento contrário,
que ele seja anátema.10

Não devemos também cometer o equívoco de pensar que


Fitzmyer deixou de ser um filho fiel à Igreja. Pois isso, ele
observa (de conformidade com o professor bíblico Marie
Joseph Lagrange), “pode ser uma transposição teológica
exata”, mas é uma precisão ainda não encontrada no texto
paulino.
Nossa preocupação nessas considerações não é discutir a
precisão da teologia envolvida nessa afirmação, mas salientar
uma vez mais a lacuna — embora para Fitzmyer obviamente
não um abismo histórico intransponível — que está fixada
entre a revelação, como nos foi entregue da Escritura, e o que
a Igreja tem recebido como sua Tradição autoritária.
Seguramente, toda essa abordagem causa ansiedade nos
corações católico-romanos que são conservadores e tradicio­
nalistas (há “fundamentalistas” tanto no catolicismo romano
como no protestantismo). Eles podem encontrar algum alí­
vio na maneira como a cooperação do Professor Fitzmyer
com a Tradição tem dado notável expressão ao seu desenvol­
vimento do ensino de Paulo sobre a justificação. O Professor
Fitzmyer matiza o significado de dikaioo na direção de “sen­
do feito justo”. Aqui, talvez no ponto mais crítico, sua exegese
se harmoniza com a tradução da Vulgata do dikaioo por justum
fa cere do Novo Testamento.
Apesar da presença dos simpatizantes do luteranismo, o
Concilio incumbiu a Igreja de examinar irrevogavelmente a
doutrina transformativa da justificação.

Justificação... não é apenas a remoção dos nossos peca­


dos, mas também a santificação e renovação do homem
interior pela aceitação voluntária da graça e de outros
dons pelos quais, sendo um homem injusto (ex injusto),
torna-se justo, e sendo um inimigo torna-se amigo, de
modo que possa ser um herdeiro de acordo com a espe­
rança da vida eterna.11

Mesmo a qualificação posterior de Fitzmyer — ele ob­


serva que essa justificação opera-se “gratuitamente por meio
da poderosa afirmação de Deus da absolvição” — não eli­
mina uma exegese caracteristicamente tridentina, como ele
esclarece:
O ser humano pecador não é somente “declarado jus­
to”, mas é “feito justo” (como em 5.19), pois a condição
do pecador mudou.12

Há muito risco nesse ponto. Em muitas áreas em que a


Tradição Sagrada não está presente e evidente na Escritura
Sagrada, Fitzmyer e outros estudiosos católico-romanos re­
duzem a distância entre o que é ensinado no texto bíblico e o
dogma da Tradição Sagrada por um apelo ao caráter “aberto”
do ensino bíblico. Dessa forma, eles minimizam a força da crí­
tica da Reforma de que a Tradição contradiz as Escrituras.
A lavagem dos pés dos apóstolos realizada por Jesus e sua
exortação a eles para imitá-lo (Jo 13.1-15) oferece um exem­
plo desse caráter “aberto” da Escritura. A lavagem dos pés
bem podería ter evoluído para um sacramento, de uma ma­
neira paralela ao desenvolvimento que tomou lugar em outra
passagem “aberta”, Tiago 5.14. Nesse ponto, “sob o desen­
volvimento da Tradição guiada pelo Espírito”, o texto tor­
nou-se a base para o sacramento da unção do doente.13
Mas nenhum apelo à teoria do caráter “aberto” da Escri­
tura pode ser proveitoso no tocante à doutrina da justifica­
ção. Para Fitzmyer simplesmente não seria possível, nessa
conjuntura, concordar com a exegese da Reforma sobre a
justificação como afirmativa somada à atribuição da retidão,
e paralelamente apelar ao caráter “aberto” do ensino de Pau­
lo e à obra contínua do Espírito na Igreja, infundindo ao
mesmo tempo a plenitude do sentido da justificação e da re­
tidão; porquanto as duas coisas mantêm-se em contradição.
A interpretação de Fitzmyer é, entretanto, baseada sobre
um apelo exegético — para sua própria exegese de Romanos
5.19: “Porque, como, p ela desobediência de um só homem, m uitos se
tornaram [foram feitos] pecadores, assim também, p o r um só ato de
ju stiça veio a graça sobre todos os homens para a justificação que dá
vidcT [edição Almeida, 1969].14Ele usa o verbo kathistanai (“fo­
ram” feitos) no sentido de condição subjetiva, isto é, em sen­
tido transformacional.
Duas coisas devem ser ditas aqui. Primeiro, cremos que a
interpretação de Fitzmyer de Romanos 5.19 pode, por demons­
tração, estar errada.15 E, segundo, sua lógica está equivocada.
Mesmo que kathistanai tenha sido compreendida em sentido
subjetivo-transformacional, não significa necessariamente que o
uso de dikaioo por Paulo é transformacional em vez de argumen-
tativo e declaratório. Conseqüentemente, interpretar “justificar”
à luz dessa suposição é um procedimento exegético injustificável!
Porém, mesmo aqui, há um reconhecimento formal do
princípio: a Escritura Sagrada deve ser distinguida da Tradi­
ção Sagrada; não devemos pressupor que a posterior seja uma
exegese da anterior.
Naturalmente, os protestantes vêem essa distinção através
de óculos protestantizados. Qualquer pessoa convencida da au­
toridade e suficiência únicas da Escritura é levada a perguntar
como é possível que um erudito de integridade reconheça esse
vácuo e, apesar disso, continue sendo um católico-romano fiel.
E muito simples, porém, usar uma interpretação para con­
cluir que temos aqui uma duplicidade evidente. De fato, a con­
sistência geral e a clareza com que a exegese de Fitzmyer ilustra
o vazio entre a Escritura e a Tradição mostra claramente o mo­
tivo pelo qual o fato de os protestantes recorrerem somente à
Escritura para refutar os dogmas católico-romanos, parece não
ter a menor influência: para Roma, nem a Escritura nem a Tra­
dição podem manter-se isoladamente. A razão fundamental disso
deve ser agora esclarecida: na Igreja Católica Romana, a Tradi­
ção Sagrada coloca-se ao lado da Escritura Sagrada, ambas como
fontes válidas e autorizadas da revelação divina. Na verdade,
ambas emanam de um e mesmo contexto: a Igreja Católica.
Compreender esse princípio nos ajuda a perceber a rigi­
dez do critério da Igreja Católica Romana na interpretação da
Bíblia em tal circunstância.
Hscritura e Tradição

Para Roma, a Bíblia em si emana da Igreja. A Igreja existe


antes da Bíblia; a Bíblia é, ela mesma, uma expressão da voz
viva da Igreja — em seu próprio julgamento é a Tradição.
Nas palavras do recente Catecismo da Igreja Católica, “o próprio
Novo Testamento demonstra o processo da Tradição viva”.16
O Novo Testamento é Tradição — a mais antiga tradição es­
crita para diferenciar da Tradição viva, que surge de dentro da
vida contínua da Igreja no contexto da sucessão apostólica.
Essa perspectiva é bem atestada na sucessão das declara­
ções doutrinárias autorizadas de Roma.
O apelo, nesse contexto, é feito à Profissão de Fé com­
posta em conexão com o Segundo Concilio de Constantinopla
(553), o Concilio de Latrão (649) (Equívoco: O Primeiro
Concilio de Latrão foi em 1123 e o quinto e último reuniu-se
de 1512 a 1517 - Não houve concilio em 649 —N.T.) e o
Segundo Concilio de Nicéia (787). Entretanto, foi no contex­
to da Contra-Reforma que a posição da Igreja foi estabelecida
concretamente pelo Concilio de Trento:

O Concilio de Trento, ecumênico, santo e geral... entende


claramente que essa verdade e regra estão contidas nos livros
escritos e nas tradições não-escritas que nos foram transmiti­
das. ... Seguindo, pois, o exemplo dos pais ortodoxos, ele re­
cebe e venera com o mesmo sentido de lealdade e reverência
todos os livros do Antigo e do Novo Testamentos — pois
Deus somente é o autor de ambos —- juntamente com todas
as tradições referentes à fé e aos costumes, como tendo vindo
da boca de Cristo ou sendo inspiradas pelo Espírito Santo e
preservadas em contínuas sucessões na Igreja Católica.17

A implicação disso, especificamente extraída pelo próprio


Concilio, foi que ninguém deveria ousar interpretar a Escri-
tura de modo contrário à permissão unânime dos pais, muito
embora tais interpretações não se destinassem à publicação.
Deixando de lado o conceito duvidoso de “permissão unâ­
nime dos pais”, fica notório aqui por que a Tradição se torna
o elemento principal na conexão Escritura-Tradição. Histori­
camente, tem ocorrido o fato de uma palavra de revelação
“viva” (no sentido contemporâneo) tornar-se defa cto a regra
para os cristãos (seja o que for que se declare em contrário).
Isso é virtualmente uma inevitabilidade psicológica. No caso
de Roma, o que pode ter começado como conceito limitativo
(o regulum fid ei) evoluiu para conceito principal.
Essa posição foi posteriormente confirmada pela Igreja
no Concilio Vaticano I, na Constituição Dogmática D ei Filius
(1870). Um quarto de século depois, Providentissim us D eus
(1893) beseou-se no princípio da analogia da fé compreendi­
da como o consensus fidelium como princípio essencial para a
exposição católica. Os exegetas católico-romanos foram ins­
truídos a usar habilidades críticas com a agenda específica de
confirmar a interpretação recebida.
Tudo isso foi declarado no contexto da afirmação de Leão
XIII sobre a inerrância e infalibilidade da Escritura. Entre­
tanto, o contínuo impacto do modernismo foi tal que no es­
paço de duas décadas foi anunciado o D ecree Lamentabili (1907)
com o intuito de estancar a onda de corrupção teológica. O
documento repudiava e condenava a visão que “o ofício de
ensinar da Igreja não pode, mesmo por definição dogmática,
determinar o significado real da Escritura Sagrada”.18
Na obra recente, resumida porém frutífera, da Comissão
Teológica Internacional, Λ Interpretação das Verdades Teológicas
(1988), Roma continuou a afirmar que qualquer conflito en­
tre exegese e dogma é causado por exegese inexata. A exegese
genuinamente católica, por definição, sempre procurará e
encontrará a harmonia adequada entre o texto bíblico e o dogma
eclesiástico. Sob essa luz, a Comissão Bíblica Pontifícia comenta:
Falsos atalhos [a saber, na exegese] serão evitados se a
atualização da mensagem bíblica começar com uma inter­
pretação correta do texto e continuar na corrente da Tra­
dição viva, sob a orientação do Magistério da Igreja.19

O círculo de raciocínio aqui parece ser “vicioso”.


No século XIX o Magistério reconheceu que o surgi­
mento da alta crítica e do modernismo teológico poria em
risco a fé dos católicos (como já havia feito entre os protes­
tantes). Mas Roma enfrentou um outro problema. O en­
tendimento de que a Tradição Sagrada é também Revela­
ção significa que a Tradição possui os atributos da Revela­
ção, incluindo infalibilidade e inerrância. Conseqüentemente,
a Tradição tinha de ser olhada como infalível. O correlativo
inevitável disso surgiu na Constituição D ogm ática do
Vaticano I, Pastor A .eternus, no qual a infalibilidade papal foi
promulgada como um “dogma divinamente revelado”. As
definições de fé do papa ex cathedra foram afirmadas como
“irreformáveis em si mesmas e não por consentimento da
Igreja” (“Eu mesmo sou a Tradição”, comentou Pio IX).
O anathem a sit era pronunciado sobre qualquer que “con­
tradisser essa nossa definição”.
Os pronunciamentos posteriores do Concilio Vaticano II
continuaram basicamente a afirmar o que era historicamente
olhado como a visão tridentina do relacionamento entre Es­
critura e Tradição, reafirmada na Constituição Dogmática
Sobre a Fé Católica, D ei Fidus, no Vaticano I. A Tradição,
declarou o Vaticano II,

...derivada dos apóstolos, desenvolve-se na Igreja com a


ajuda do Espírito Santo... As palavras dos santos pais
testemunham a presença dessa tradição viva... Por meio
da mesma tradição, todo o cânon dos livros sagrados da
Igreja é conhecido. ,.”20
Especialmente significativa é a declaração feita sobre a re­
lação entre Tradição e Escritura. Ela emprega a fraseologia
de Trento, aparentemente por insistência papal (presumida-
mente em vista da necessidade de conciliar as alas tradiciona­
lista e progressiva da Igreja):

Há, portanto, uma íntima conexão e comunicação entre


a Tradição Sagrada e a Escritura Sagrada, pois ambas,
fluindo da mesma fonte divina, de certa forma fundem-
se em uma unidade e visam ao mesmo fim. Pois a Escri­
tura Sagrada é a Palavra de Deus, enquanto a Tradição
Sagrada toma a Palavra de Deus entregue por Cristo, o
Senhor, e pelo Espírito Santo aos Apóstolos, e a trans­
mite aos seus sucessores em sua pureza total. Conseqüen-
temente, não é somente da Escritura Sagrada que a Igre­
ja deriva sua certeza a respeito de todas as coisas que têm
sido reveladas. Por isso, tanto a Tradição Sagrada como
a Escritura Sagrada devem ser aceitas e veneradas com o
mesmo sentido de lealdade e reverência. A Tradição Sa­
grada e a Escritura Sagrada formam um depósito sagra­
do da Palavra de Deus, entregue à Igreja.

É claro, portanto, que a Tradição Sagrada, a Escritura


Sagrada e a autoridade do ensino da Igreja, de acordo
com o altamente sábio desígnio de Deus, são de tal for­
ma assemelhadas e unidas que uma não pode manter-se
sem a outra, e que amalgamadas e cada qual em sua pró­
pria maneira, sob a atuação do único Espírito Santo, con­
tribuem eficazmente para a salvação dos homens.21

Não devemos cometer o engano de supor que a Igreja


Católica Romana é completamente monolítica. Como temos
observado, ela também tem uma ala conservadora e uma li­
beral. Problemas e discórdias surgem na pesquisa e no de-
senvolvimento da exegese da Tradição, tanto quanto na exe­
gese das Escrituras! Assim, por exemplo, tem-se tornado ca­
racterístico de muitos estudiosos católico-romanos a releitu-
ra da Tradição de uma forma tão ecumênica quanto possível.
Um dos desenvolvimentos mais interessantes dentro desse
contexto tem sido o surgimento de uma escola de pensamento
especialmente estimulada pela obra do teólogo de Tübingen
(escola alemã), J.R. Geiselmann. Essa escola argumenta que a
visão de que a Escritura e a Tradição são fontes gêmeas da reve­
lação, que se completam mutuamente, é uma leitura equivocada
do ensino do Concilio de Trento. Geiselmann recorreu ao que
ele sustentava ser a mudança importante introduzida no texto
final do decreto pela influência do Bispo Pietro Bertano de Fano
e Angelo Bonucci, superior geral dos servitas [religiosos
esmoladores]. O rascunho do Decreto sobre a Escritura e a
Tradição tinha afirmado que a verdade revelada deveria ser en­
contrada em parte nos livros da Escritura e em parte nas Tradi­
ções ( "partim in libris...partim in... traditionibus’). Mas o documen­
to final falava dessa verdade contida nos livros bíblicos e nas
tradições não-escritas ( "in libris scriptis et sine scripto traditionibus’).
Geiselmann argumentou, a partir dessa mudança, que Trento
não negou que toda a verdade salvifica está contida nas Escritu­
ras. A verdade da revelação divina é encontrada não em parte
na Escritura, enquanto o restante é encontrado nas tradições (a
formulação do rascunho); ela está toda na Escritura. É também
encontrada toda na tradição. Poder-se-ia argumentar, portanto,
que o princípio da sola Scriptura, adequadamente compreendida,
é coerente com Trento.22
Por outro lado, em resposta à posição de Geiselmann, o
Cardeal Ratzinger (agora Prefeito da Sagrada Congregação
da Doutrina e da Fé) vem argumentando que

como teólogo católico, [Geiselmann] deve afirmar os


dogmas católicos como tais, porém nenhum deles deve
ter sido a sola Scriptura, nem tampouco os grandes dogmas
da antigüidade cristã, aos quais pertenceu uma ve 2 o
consensus quinquestecularis e, muito menos, os novos dogmas
de 1854 e 1950. Nesse caso, entretanto, que sentido há
em falar acerca da suficiência da Escritura?23

Em uma palavra, o depósito da fé (depoútum fidei) está con­


tido tanto na Escritura como na Tradição, e a tarefa de inter­
pretar é “confiada aos bispos em comunhão com o sucessor
de Pedro, o Bispo de Roma”.24
O documento recente da Comissão Bíblica Pontifícia, Λ
Interpretação da Bíblia na Igreja, continua a afirmar essa posição,
embora de forma menos polêmica e dogmática e em feitio
ecumenicamente consciente: “O que caracteriza a exegese
católica é que ela se coloca deliberadamente dentro da tradi­
ção viva da Igreja.”25 Nesse contexto, porém, a Comissão é
cautelosa ao acrescentar:

Toda compreensão prévia, entretanto, traz riscos em si.


Quanto à exegese católica, o risco é o de atribuir aos
textos bíblicos um sentido que eles não têm, sendo, po­
rém, o produto de um desenvolvimento posterior den­
tro da tradição. O exegeta deve acautelar-se de tal risco.24

Nenhuma insinuação de crítica é feita sobre o fato de a


Tradição Sagrada requerer a crença no dogma que não é
encontrado na Escritura Sagrada. Mas está presente aqui
uma insinuação no sentido de que os exegetas no passado
(e até hoje) podem ler o Novo Testamento como se ele
tivesse sido escrito à luz da Tradição, e assim distorcem o
ensino da Escritura Sagrada (e, por implicação, possivel­
mente também a função da Tradição). Implícito nisso está
o reconhecimento da significativa distância entre a Escritu­
ra Sagrada e a Tradição Sagrada.
O Protestantismo histórico considera que esse distancia­
mento torna-se abismai em certos pontos estratégicos. Há
uma discrepância insuportável, não meramente uma tensão
saudável, entre a Escritura Sagrada e a Tradição Sagrada em
muitos aspectos.
No manuseio antigo da Escritura pela Igreja Católica Ro­
mana, qualquer distância entre a exegese da Escritura e o con­
teúdo da Tradição era minimizada. O exegeta católico fiel
não devia, nem mesmo secretamente, fazer a exegese de for­
ma contrária à Tradição:

Além disso, a fim de reprimir os espíritos petulantes, é


decretado [pelo Concilio] que ninguém, confiando em
sua própria habilidade, deve — em questões de fé e de
costumes concernentes à edificação da doutrina cristã
— deturpar a Escritura Sagrada a seu próprio juízo, pre­
sumir interpretar a dita Escritura contrariamente ao sen­
tido que a santa mãe Igreja — que deve julgar o sentido
e a interpretação verdadeiros das Escrituras Sagradas —
tem preservado e preserva; ou mesmo contrariamente
ao acordo unânime dos pais; muito embora tais inter­
pretações nunca tenham tido [a intenção] de ser publica­
das. Os supervisores eclesiásticos farão saber aos con-
traventores sua condenação, sendo punidos com os cas­
tigos estabelecidos por lei.27

Uma ampla variedade de fatores contribuiu para a eclosão


da Reforma no século XVI. Entre os principais fatores está a
descoberta, alimentada pelo espírito adfontes da Renascença,
de que o distanciamento entre o ensino claro da Escritura e o
ensino da Tradição chegou ao ponto de envolver não somen­
te o desenvolvimento, mas a contradição.
Os estudiosos católico-romanos, tais como o Professor
Fitzmyer, desfrutam a liberdade de explorar o que a Escritu­
ra ensina. Acham-se esses homens olhando por cima dos
ombros os tradicionalistas católico-romanos, os quais não
escondem sua preocupação de que tal distanciamento notó­
rio entre a Escritura e a Tradição seja a ruína da Igreja. Con-
seqüentemente, seu refrão característico é que a diferença entre
o conteúdo da Escritura e o conteúdo da Tradição não envol­
ve contradição, mas apenas desenvolvimento.
O que se torna mais claro do que nunca, porém, é que o
princípio da sola Scriptura permanece como linha divisória.
Como o Cardeal Ratzinger quase admitiu em sua reação con­
tra Geiselmann, há importantes doutrinas romanas que sim­
plesmente não se encontram nas Escrituras. Nesse sentido, a
Escritura isolada não pode ser olhada como suficiente para a
vida da Igreja.
Mas devemos ir além. Há ensinos importantes na Tradi­
ção que não são somente adicionais, mas diferentes e contrá­
rios ao ensino da Escritura Sagrada. Esses ensinos incluem
as mesmas doutrinas que foram questões vitais da luta da
Reforma: natureza da justificação; importância do princípio
da sola fide\ número de sacramentos; suficiência da obra de
Cristo, efeito do batismo, presença de Cristo na Ceia, sacer­
dócio dos crentes, celibato do sacerdócio, natureza e papel
de Maria, e muito mais. Quanto mais a Escritura é esquadri­
nhada na exegese em seus próprios termos, mais fica eviden­
te que nesses aspectos a Tradição Sagrada não apenas acres­
centa à Escritura Sagrada, mas a contradiz. E se assim o faz,
poderá ela ainda assim ser “sagrada”?
Um importante desenvolvimento ocorreu, então, na in­
terpretação católico-romana da Escritura. Podemos ser gra­
tos por isso. Não devemos m inim izar com suspeita a
redescoberta da Bíblia. Na verdade, isso poderia nos ajudar
muito, se nos lembrássemos mais freqüentemente de que a
responsabilidade pela confusão no entendimento da justifi­
cação da parte de Roma recai, parcialmente, sobre os ombros
do próprio grande Agostinho, que muitas vezes considera­
mos, como Calvino, “inteiramente nosso”.
Tendo dito isso, porém, é agora mais claro do que nunca
(pace Geiselmann) que a Igreja Católica Romana não pode e
não aprovará a sola Scriptura. Ela deve negar a suficiência da
Bíblia sozinha. E, como os Reformadores reconheceram, en­
quanto Roma recorrer a ambas as fontes, ou mesmo a tributá­
rios, da revelação — os conteúdos da Escritura e a essência da
sua própria Tradição — inevitavelmente ela resistirá à mensa­
gem da Escritura e da Reforma: sola gratia, solo Christo, solafide.1

1 Leia, por exemplo, Raymond E. Brown, The Gospel According to


John, Vol. 2 (Garden City, NY: Anchor Press, 1966), pp. 714-717.

2 Raymond E. Brown, Biblical Exegesis and Church Doctrine (Nova York:


Paulist Press, 1985), p. 9.

3 Citada na capa protetora do livro de Joseph A. Fitzmyer, Romans


(Nova York, 1994).

4 Decreto Sobre Justificação do Concilio de Trento, Canon XI. Ver Rev.


H.T. Schroeder, O. P. Canons and Decrees o f the Council o f Trent (Rockford,
HI.: Tan, 1978).

5 Fitzmyer, Romans, p. 138.

6 Ibid., p. 342.

7 Ibid, p. 343.

8 Ibid, p. 348.

9 Ibid, p. 348.
10 Decree Concerning Original Sin do Concilio de Trento, Session V in
Schroeder.

11 Decreto sobre a Justificação, do Concilio de Trento, Sessão VII in


Schroeder.

12 Fitzmyer, Romans, p. 347.

13 J.A. Fitzmyer, Scripture, The Soul o f Theology, p. 78.

14 A tradução é de Fitzmyer.

15 Veja, por exemplo, Douglas Moo, Romans, Vol. 1 (Chicago: Moody,


1991), pp. 358-9; J. Murray, The Epistle to the Romans, Vol. 1 (Grand
Rapids: Eerdmans, 1959), pp. 205-6, 336-362.

16 Catechism o f the Catholic Church (Liquori, MO: Liquori, 1994), p. 26,


#83.

17 Decrees on Sacred Books and on Traditions to be Received, 1546.

18J. Neuner e J. Dupois, eds., The Christian Faith in the Doctrinal Documents
o f the Catholic Church, rev. ed. (Staten Island: Alba, 1982), p. 79.

19 The Interpretation o f the Bible in the Church (Boston, 1993), p. 121.

20 Dogmatic Constitution on Divine Revelation, 11:8. (No livro org. por


Walter M. Abbott, The Documents o f Vatican II, Nova York: Crossroad,
1966, encontram-se os pronunciamentos do Vaticano II).

21 Ibid., II. [10].

22 A posição que Geiselmann rejeita tem sido a posição dos maiores


apologistas desde Trento. Para conhecer um breve relato, veja J.R.
Geiselmann, “Scripture, Tradition, and the Church: A n Ecumenical
Problem” em D.J. Callahan, H.A. Obermann, e D.J. O ’Hanlon (org.),
Christianity Divided (Londres, 1962), pp. 39-72.

23 J. Ratzinger em K. Rahner e J. Ratzinger, Revelation and Tradition,


traduzido do alemão, Offenbarung und Überlieferung, por WJ. O’Hara
(Nova York, 1966), p. 33, As referências a 1854 e 1950 são dirigidas
à Bula Ineffabilis Deus que promulgou a doutrina da Concepção
Imaculada (isto é, a perpétua impecabilidade de Maria) e à Consti­
tuição Apostólica Munificentissimus Deus, que promulgou a Assunção
Corpórea da virgem Maria ao céu.

24 Catechism o f the Catholic Church, p. 27, n°85.

25 The Interpretation o f the Bible in the Church, p. 89.

26 Ibid.

27 “Decreto Concernente à Edição, e ao Uso, dos Livros Sagrados”,


em Phillip Schaff, The Creeds o f Christendom, Vol. 2 (Grand Rapids:
Baker, 1966), p. 83.
O Poder Transformador
da Escritura
D r J o e l R B eek e e Rev. R ay B. L a m in g

Em décadas recentes, uma torrente infindável de livros e


artigos afirmou a infalibilidade, inerrância e autoridade das
Escrituras Sagradas.1Essas doutrinas são essenciais à confis­
são da verdade da igreja e autoridade da Palavra de Deus. É
ao mesmo tempo necessário e confortador ao cristão conhe­
cer e crer que toda a Escritura é inspirada por Deus, que cada
palavra de cada linha do texto emana do Deus vivo (2Tm
3.16). O crente não teria nenhuma autoridade para declarar
“assim diz o Senhor” pela fé e pela prática, se Deus não tives­
se superintendido todo o processo de composição da Escri­
tura em cada jota e tdl (Mt 5.18). Para ser inteiramente confiável,
a Escritura deve ser inteiramente verdadeira e totalmente digna
de confiança.
Embora tais afirmações sejam necessárias, para muitos
evangélicos sola Scriptura tornou-se amplamente uma doutri­
na polêmica usada para opor-se às ameaças da neo-ortodoxia
e do liberalismo. Como resultado, os evangélicos têm estado
preocupados em defender sua posição no tocante à Escritu­
ra, tornando-se freqüentemente mais envolvidos em enunci­
ar o que a Palavra é, em vez de se preocupar com o que a
Palavra dt% e fa%
A simples afirmação da infalibilidade, inerrância e autori­
dade da Escritura não é suficiente para o crente genuíno. A
Escritura é Deus falando a nós como um pai fala a seus fi-
lhos. Na Escritura, Deus entrega-nos sua Palavra, quer como
uma palavra de verdade, quer como uma palavra de poder.
Como palavra de verdade, podemos confiar e descansar nela
todo o nosso ser, aqui e na eternidade. Podemos também
olhar para a Escritura como a fonte do poder transformador
usada pelo Espírito de Deus para renovar nossa mente.
Como cristãos protestantes, devemos complementar a de­
fesa da doutrina da inerranda bíblica com uma demonstra­
ção positiva do poder transformador da Palavra. Esse poder
deve ser manifestado em nossa vida, nosso lar, nossa igreja e
nossa comunidade. Precisamos mostrar sem ostentação que,
embora outros livros possam nos informar ou mesmo nos
reformar, somente um Livro pode nos transformar, e nos
transforma, fazendo-nos conformados à imagem de Cristo.
Somente como crentes “m anifestos como carta de Cristo” (2Co
3.3) podemos esperar vencer “a batalha em favor da Bíblia”
em nosso tempo. Se metade da força despendida em atacar
ou defender a Palavra de Deus fosse dedicada a conhecer e
viver as Escrituras, quantas pessoas mais seriam alcançadas
pela influência de seu poder transformador! Neste capítulo
consideraremos o chamado de Deus a seu povo para ser trans­
formado; as operações transformadoras de sua Palavra; as
perfeições da Palavra de Deus, que explicam seu poder trans­
formador; como a Palavra deve ser usada como meio de trans­
formação; e os frutos da transformação produzida pela Pala­
vra nos crentes.

O Chamado para a Transformação

É a “boa, aceitável e perfeita” vontade de Deus que seu


povo seja transformado. E pela “soberana vocação” de Deus
em Cristo Jesus que os crentes são conformados à imagem
de seu Filho encarnado (Fp 3.14; Rm 8.28,29). Essa transfor­
mação, ou “metamorfose”, deve ser cumprida pela renova­
ção de sua mente; assim escreve Paulo em Romanos 12.2: “E
não vos conform eis com este século, mas transform ai-vos p ela renovação
da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e
perfeita vontade de Deus.” O que se inicia como uma transfor­
mação da mente será um dia completado na transformação
ou mudança do nosso corpo “num momento, num abrir e fech a r
d'olhos, ao ressoar da última trombeta. A trombeta soará, os mortos
ressuscitarão incorruptíveis, e nós serem os transformados. Porque ê ne­
cessário que este corpo corruptível se revista da incorruptibilidade, e que
o corpo m ortal se revista da imortalidade” (ICo 15.52,53).
O Novo Testamento atribui essa transformação do povo
de Deus a duas grandes agências divinas e super naturais: o
Espírito de Deus e a Palavra de Deus. Por um lado, o apósto­
lo Paulo diz claramente que os crentes serão “transformados...
de glória em glória... como p elo Senhor, o ’E spírito”. Mas isso aconte­
ce quando, sob a pregação do evangelho pelos “ministros do
novo testamento”, os crentes serão capacitados a ver a glória
de Deus revelada em Cristo. “E todos nós, com o rosto desvendado,
contemplando, como p o r espelho, a glória do Senhor, som os transforma­
dos, de glória em glória, na sua própria imagem, como p elo Senhor, o
E spírito” (2Co 3.18). Conseqüentemente, não é tão-somente
pela Palavra, mas pela obra do Espírito junto com a Palavra
que a transformação do povo de Deus é consumada.
Por outro lado, deve-se ter cuidado para que ninguém seja
levado a pensar que a Palavra em si mesma não tem poder
transformador. É uma grande blasfêmia exaltar o Espírito
em detrimento da Palavra de Deus, pois Deus tem engrande­
cido sua Palavra acima de seu nome (SI 138.2). Antes, Deus
transforma por meio de uma junção desses dois grandes po­
deres, indispensáveis entre si, e ambos inseparavelmente uni­
dos, de modo a cumprirem toda a vontade de Deus para com
seu povo. Portanto, as Escrituras identificam a Palavra como
uma ferramenta bem forjada para uso de um artífice; uma
arma poderosa de guerra para a mão de um poderoso na bata­
lha; e boa semente a ser lançada ao solo bem preparado para
ser tratada por um agricultor diligente. Em cada caso, um é
ajustado e indispensável ao outro; assim é com a Palavra e o
Espírito. Stephen Charnock expressou-se da seguinte forma:

Nenhuma espada pode cortar sem a mão que a maneja,


nenhuma prensa modela o aço sem o controle do opera­
dor. A Palavra é... útil em si mesma, eficaz pelo Espírito
Santo. ... A Palavra revela Cristo e o Espírito sensibiliza
o coração para aceitá-lo; a Palavra mostra sua excelência
e o Espírito incita fortes apelos perante ele; a Palavra
declara as promessas e o Espírito ajuda a suplicá-las;... a
Palavra mostra o caminho e o Espírito capacita a andar
por ele; a Palavra é a semente do Espírito e o Espírito é
o incentivador da Palavra; a Palavra é o enxerto e o Espí­
rito é o enxertador; a Palavra é o tanque de água e o
Espírito agita a água para fazê-la curar.2

A s Operações Transformadoras da Palavra de D eus

A Palavra de Deus opera de várias formas como poder


transformador. Na Escritura, essas formas são identificadas
pelo uso de várias comparações, tais como lâmpada, martelo,
espada e semente.3

A Palavra de Deus Como Lâmpada


“A revelação das tuaspalavras esclarece e dá entendimento aos sim ­
p l e r (SI 119.130). E em uma veia mais pessoal: “hâm padapara
os meusp és é a tua palavra elut^ para os meus cam inhor (SI 119.105).
Assim o salmista expressa a maneira como a Palavra de Deus
age como uma fonte de iluminação espiritual, compreensão e
orientação. Essa luz é importante tanto na regeneração do
pecador como na vida diária do crente. Por um lado, a condi­
ção natural do homem caído é de trevas, ignorância e ceguei­
ra (Ef 4.18); por outro, o próprio povo de Deus deve, às ve­
zes, caminhar em condição de treva espiritual na qual somen­
te a luz da Palavra de Deus pode proporcionar-lhes algum
conforto ou esperança (SI 130.5,6; Is 50.10).
“A menos que a Palavra de Deus ilumine o caminho”,
escreveu Calvino, “toda a vida dos homens é envolta em treva
e neblina, de sorte que eles não podem senão extraviar-se
miseravelmente.”

A P alavra de D eus com o um M artelo


“N ão é a m inha palavra fogo, di\ o SENHOR, e m artelo que
esm iuça a p en h a ?' (Jr 23.29). Não há aspecto mais horrendo
e desalentador do que a condição do homem decaído pela
obstinação produzida pelo pecado e por sua permanência
no pecado. A Escritura fala de homens endurecendo seu
coração, sua mente, seu pescoço e seu rosto em um esforço
determinado de apresentar-se a Deus em corpo e alma, mas
demonstrando a mais obstinada resistência à vontade divi­
na para a sua vida. Tal é o peso e a força inerentes à Palavra
de Deus que um golpe demolidor do Espírito Santo bran­
dindo a Palavra como um martelo é suficiente para romper
em pedaços o coração mais endurecido. Dessa maneira, a
alma mais resistente pode ser vencida e as fortalezas do
pecado, demolidas.
Devemos acrescentar aqui que um dos mais temíveis de
todos os mistérios ligados à pregação da Palavra é a maneira
como pecadores empedernidos podem realmente tornar-se
mais determinados a endurecer.4 Essa é a vontade de Deus
para sua destruição e sua maior condenação. Foi assim quan­
do Moisés levou a Palavra de Deus ao Faraó; e foi assim quan­
do Paulo pregou aos judeus na sinagoga de Efeso, ocasião
em que vários deles “se mostravam em pedernidos e descrente/’ (At
19.9). Quão insondáveis são os juízos de Deus, e quão ines-
crutáveis os seus caminhos!
A Palavra de Deus Como Espada
Em sua descrição da armadura completa de Deus, o após­
tolo Paulo enumerou em Efésios 6 as armas do cristão, das
quais somente duas são ofensivas. Uma delas é apresentada
como “toda oração e súplica” e a outra como “espada do Espírito,
que é a Palavra de D eus” (Ef 6.17,18). São essas as armas do
cristão para o combate, as quais, diz o apóstolo, “não são car­
nais e sim poderosas em Deus, para destruirfortalezas” (2Co 10.4).
De modo semelhante, Hebreus 4.12 menciona a Palavra
de Deus como uma arma, porque ela é “m ais cortante do que
qualquer espada de dois gu m ei\ O ponto comparativo aqui é o
uso da espada para penetrar e ferir o inimigo com efeito
mortal. Assim, a Palavra de Deus pode perfurar e penetrar o
coração do homem, penetrando tão profundamente e cor­
tando com tal eficácia que divide alma e espírito, como “ju n ­
tas e m edulai’. E em sua investida para perfurar e dividir, a
Palavra de Deus expõe e sujeita ao seu reto juízo “ospensam en­
tos epropósitos do coração”.
A experiência aqui apresentada é bem conhecida entre os
cristãos. Ela não é, de modo algum, uma experiência rara en­
tre aqueles que ouvem fielmente a pregação da Palavra de
Deus, para receberem do púlpito palavras que expõem tão
correta e agudamente a condição de seu próprio coração e
vida, ao ponto de fazê-los sentirem-se totalmente expostos,
envergonhados e condenados.5

A Palavra de Deus Como Semente


“ O salário do pecado é a m orti’’, escreveu Paulo em Romanos
6.23. A condição espiritual do homem, como criatura sub­
metida à escravidão do pecado e vivendo nela, é uma das
mortes em delitos e pecados (Ef 2.1). Se ele precisa ser liber­
tado de tal condição mortal, terá de ser vivificado ou “ressus­
citado”. Essa vivificação é citada na Escritura como “nascer
de novo”. Esse novo nascimento ou regeneração é obra do
Espírito (Jo 3.5) usando a “semente incorruptível” da Palavra
de Deus (lP e 1.23). De modo semelhante, Tiago declara que
Deus é o Pai de todos os cristãos, dizendo: “Pois, segundo o seu
querer, ele nos gerou p ela palavra da verdade, para quefôssem os como
queprim íáas das suas criaturas.” (Tg 1.18).
Nessas passagens, a Palavra é comparada a uma semente
com sua preciosa carga de vida, um grande potencial armazena­
do à espera somente das condições propícias para germinar,
crescer e produzir muito fruto. Tudo isso é confirmado porme-
norizadamente na Parábola do Semeador, apresentada pelo Se­
nhor. Lucas registra que ele disse explicitamente — “a semente é
a palavra de Deu/’ (Lc 8.11). A Palavra é o meio pelo qual, na
frase de Henry Scougal, “a vida de Deus” é plantada “na alma
do homem”.6 Miraculoso é o resultado, e muitos são os frutos,
quando a preciosa semente é lançada na “boa terra” do coração
daqueles que são “destinados para a vida eterna” (At 13.48).
Tal é a profundidade e extensão da transformação efetuada
pela Palavra de Deus na vida do povo de Deus. Os pecadores
são tirados das trevas e levados para a luz. A dureza de seu
coração é quebrada, e o coração, conquistado; eles são chama­
dos a ver e conhecer as profundezas de seu próprio pecado e
miséria; e nascem de novo para a vida eterna. A Palavra de Deus
é exaltada como a lâmpada da sua verdade, o martelo de sua
justa ira, a espada do seu Espírito, e a semente da vida eterna.

A s P e feiçõ es da Palavra Transformadora de D eus

Quais são os traços peculiares ou característicos da Pala­


vra de Deus que a tornam uma ferramenta tão útil e uma
arma tão poderosa nas mãos do Espírito Santo? Hebreus 4.12
e os Salmos 19.7-9 respondem diretamente a essa pergunta.
De Hebreus 4.12 aprendemos que a Palavra de Deus é “viva
e eficaz”. Dos Salmos 19.7-9 aprendemos que a Palavra de
Deus é perfeita e firme; reta, pura e limpa; verdadeira e justa.
A Palavra de Deus é Ativa e Poderosa
Por “ativa” queremos significar viva ou im prestada de vida.
Essa vida da Palavra não é menos do que a própria vida de
Deus, pois assim como Deus é, assim deve ser a sua Palavra.
Essa vida é também p od er o u energia — poder equipado para o
trabalho. A vida da Palavra de Deus é ordenada e aplicada
para a realização de seus propósitos: “[A palavra de Deus]...
não voltará para mim vasrfa, m as fa rá o que me apraiζ e prosperará
naquilo p ara que a d esign er (Is 55.11). Como semente viva, a
Palavra de Deus tem o poder de produzir fruto na vida dos
crentes como está ilustrado na Parábola do Semeador, onde
semente é a palavra de Deu/’ (Le 8.11). Porque a Palavra de Deus
“vive e é perm anenti’ (lPe 1.23), sua vitalidade e potência man­
têm-se tanto inesgotáveis quanto irredutíveis ao longo do tem­
po. Os crentes descobrem com Lutero que “a Bíblia é viva, ela
fala a mim; ela tem pés, corre atrás de mim; ela tem mãos, ela
me agarra. A Bíblia não é antiga nem moderna. Ela é eterna.”

A Palavra de Deus é Perfeita e Firme


Por um lado, a Palavra de Deus épefeitam ente completa. Ela é
tudo quanto Deus pretendeu que ela fosse. Essa é a perfeição
orgânica da rosa, e não a perfeição mecânica como, por exem­
plo, do motor de combustão interna. Uma é perfeita e comple­
ta em todo o estágio do seu desabrochar; o outro é o resultado
de muitas tentativas e erros do esforço inventivo. A história
desabrochada da redenção é também a história desabrochada
da revelação. Em cada ponto, a Palavra de Deus proporcionou
aos crentes tudo quanto precisavam para a fé e a vida.7
A Palavra de Deus é também livre de qualquer im perfeição
ou mancha introduzida pela mão do homem. Por ser per­
feita, a Palavra de Deus é também firm e. Como testemunho,
ela é verdadeira e confiável. A Palavra de Deus é firme como
revelação do que o homem deve crer a respeito de Deus, e
como uma regra de qual obrigação Deus requer do homem.8
Como Jeová nunca muda (Ml 3.6), assim também sua Pala­
vra permanece firme, estável, como verdade imutada e imu­
tável. “Para sempre, ó SENHOR, está firm ada a tua palavra no
céu” (SI 119.89).

A Palavra de Deus é Reta, Pura e Limpa


Aqui está a afirmação do Velho Testamento sobre a dou­
trina da inerrância bíblica. Dizemos que a Palavra é reta ou
direita porque ela não se desvia da perfeita conformidade de
qualquer padrão justo pelo qual a verdade é medida. A Pala­
vra é pura como uma luz pura é clara e brilhante. Aqui está
uma lâmpada cuja luminosidade não vacila ou treme, e cujos
raios rompem as profundezas da escuridão do homem. A
Palavra é limpa por ser isenta de toda corrupção e de qualquer
coisa que corrompe ou polui.

A Palavra de Deus é Verdadeira e Justa


Mais precisamente, a Palavra de Deus é verdade (Jo
17.17). É um livro de verdade, sem qualquer mistura, falsi­
dade ou erro. Ele é igualmente um livro totalmente de ju sti­
ça. É justo naquilo que requer do homem como criatura e
servo de Deus, justo no julgamento que pronuncia contra
toda a impiedade dos homens, e justo na promessa de lon­
go tempo mantida de justificação pela fé e paz com Deus
mediante nosso Senhor Jesus Cristo.

Como U sar a Palavra de D eus Como M eio de Transformação

Como o crente experimenta o poder transformador da Pa­


lavra de Deus? A resposta da Reforma é por fazer uso da Pala­
vra de várias formas como um meio de graça. Em primeiro
lugar, pela leitura das Escrituras; segundo, pela pregação da Pala­
vra de Deus; terceiro, por ouvirá. Palavra de Deus; e quarto, por
cantara Palavra de Deus, isto é, por entoar os salmos.9
Let a Palavra de Deus
A Escritura nos ensina que a Palavra de Deus deve não
apenas ser lida publicamente em adoração (At 15.21; lTm
4.13), mas também serve como bênção quando pessoalmen­
te a lemos, ouvimos e obedecemos. “Bem-aventurados aqueles
que leem e aqueles que ouvem as palavras da p rofeà a e guardam as
cousas nela esen ta i’ (Ap 1.3).
Mas, como devemos ler? Muitos escritores nos têm pro­
vido com ampla orientação. Uma das mais antigas obras dos
Puritanos sobre como ler as Escrituras foi publicada por
Richard Greenham (c. 1535-1594) sob o título Uma Proveitosa
Obra, Contendo Orientação para a Leitura e Compreensão das E scri­
turas Sagradas}0Depois de estabelecer que a pregação e leitura
da Palavra de Deus são inseparavelmente unidas por Deus na
obra da salvação do crente, Greenham concentra-se sobre
nosso dever de ler as Escrituras regularmente e a sós, recor­
rendo ao apoio de Deuteronomio 6.6, 11.18; Neemias 8.8;
Salmo 1.2; Atos 15.21; 2 Pedro 1.19.
Tornando-se mais prático, Greenham afirma que os ho­
mens pecam não somente quando negligenciam a leitura das
Escrituras, mas também “...ao lerem erroneamente; portan­
to, as formas apropriadas de leitura reverente e fiel devem ser
anotadas, como segue:

1. Diligência 5. Conferência
2. Sabedoria 6. Fé
3. Preparação 7. Prática
4. Meditação 8. Oração111

Os números 1 a 3 devem preceder a leitura; os números 4


a 7 devem seguir-se à leitura; o número 8 deve preceder,
acompanhar e seguir-se à leitura. Aqui está a essência do con­
selho de Greenham:
1. D iligência — deve ser aplicada à leitura das Escrituras,
mais do que se faz na vida secular. Devemos ler nossa Bíblia
com mais diligência do que os homens escavam em busca de
tesouros enterrados. A diligência torna planos os lugares aci­
dentados; torna fácil o difícil; torna saboroso o insípido.
2. Sabedoria — deve ser usada na escolha do conteúdo, or­
dem e tempo. No tocante ao conteúdo, o crente não deve ten­
tar mudar do que é revelado para o que não é revelado, nem
consumir tempo considerável nas partes mais difíceis da Escri­
tura. Se o ministro deve adaptar sua pregação da Palavra ao
nível de seus ouvintes, “de igual modo muito mais os ouvintes
devem aplicar sua própria leitura à sua capacidade individual”.12
Na questão da ordem, o leitor zeloso da Escritura procu­
rará estar firmemente baseado em todos os “pontos princi­
pais da doutrina”. Além disso, a leitura da Escritura deve se­
guir uma ordem, em lugar de leitura dispersiva. Somente uma
Bíblia consistente fará um cristão consistente.
O tempo também deve ser utilizado criteriosamente. Todo
o sábado deve ser devotado a tais exercícios como a leitura
das Escrituras, mas, quanto aos outros dias, um trecho da
Escritura de manhã, ao meio-dia e à noite é um equilíbrio
sábio (Ec 3.11). Em qualquer circunstância, nenhum dia deve
passar sem alguma leitura das Escrituras.
3. Preparação adequada é fundamental. Sem ela a leitura da
Escritura raramente é abençoada. Tal preparação divide-se
em três propósitos: Primeiro, devemos nos aproximar da
Escritura com temor reverente de Deus e de sua majestade.
Devemos nos aproximar da Palavra estando “prontos para ou­
vir, tardiosparafalat3’ (Tg 1.19), determinados a guardar a Pala­
vra de Deus em nosso coração. O temor reverenciai é sempre
abençoado, quer por termos nossa compreensão esclarecida
ou por outras boas emoções sentidas.
Segundo, devemos nos aproximar da Escritura com fé em
Cristo, olhando para Ele como o Messias, “o leão da tribo de
Judá, a quem é dado abrir o livro de Deus”. Se chegarmos à
Escritura com reverência perante Deus e fé em Cristo, não
abrirá o próprio Cristo nosso coração, como fez aos discípu­
los a caminho de Emaús?
Terceiro, devemos nos aproximar da Escritura sinceramente
desejosos de aprender com Deus. Aqueles que produzem fru­
tos são precisamente os que recebem a palavra “na boa terra [o
coração]”; são os que frutificam com perseverança (Lc 8.15).
Muitas vezes não obtemos proveito da leitura da Bíblia porque
chegamos a ela “sem coração” para o ensino divino.
4. M editação — após a leitura é tão decisiva como na pre­
paração antes da leitura da Escritura. Pode-se ler diligente­
mente, mas a leitura não produz fruto algum, se a meditação
não ocorrer após o que foi lido. A leitura pode dar alguma
amplitude, mas somente a meditação e o estudo proporcio­
narão o aprofundamento. A diferença entre leitura e medita­
ção é como a diferença entre flutuar à deriva em um barco e
remar em direção ao porto de destino. “A meditação sem lei­
tura é errônea, e leitura sem meditação é infrutífera. ... A
meditação faz com que aquilo que é lido torne-se nossa pos­
sessão. Bem-aventurado é aquele que medita na lei de dia e de
noite” (Salmo l) .13
A meditação envolve nossa mente e compreensão, tanto
quanto nosso coração e afetos. Para alcançar um julgamento
profundo e estável sobre diversas verdades, a mente deve ser
levada à compreensão meditativa. A meditação, porém, tam­
bém “absorve” esse julgamento estável, e leva-o a agir sobre
nossas afeições. Se nossas afeições não ficarem envolvidas,
nossa profunda compreensão meditativa diminuirá. As Es­
crituras devem penetrar por toda a textura da alma.
5. Conferência — Por conferência Greenham está referin­
do-se a uma conversa devota com ministros ou outros cren­
tes. “Como oferro com oferro se afia, assim, o homem, ao seu amigo”
(Pv 27.17). O piedoso deve partilhar o que ele está absorven­
do das Escrituras, não de maneira orgulhosa, falando além
do que os outros conhecem, mas com humildade, confiando
que onde dois ou três se reúnem para uma conversação espi­
ritual, Deus estará no meio deles. Tal comunhão não deve
abranger muita gente, nem tampouco isolar-se em círculo fe­
chado de uns poucos.14
6. F é — Nossa leitura da Escritura deve mesclar-se com a
fé. A fé é a chave para o proveitoso recebimento da Palavra
(Hebreus 4.2); “sem fé é impossível agradar a Deus” (Hb 11.6).
Ler sem fé é ler em vão. Na verdade, todas essas oito diretrizes
para a leitura da Escritura devem ser seguidas no exercício da
verdadeira fé.
Além disso, por meio da leitura da Palavra pela fé, nossa
fé também será refinada. Nossa leitura da Escritura deve pro­
var nossa fé muitas vezes, não somente nas coisas gerais da
nossa vida, mas também nos aspectos pessoais da nossa vida
— especialmente nas aflições. Como o ouro é purificado no
fogo, assim nossa fé deve suportar o fogo da aflição.
7. Prática — O fruto da fé deve ser prático. A prática “traz
o aumento da fé e do arrependimento”.15 A prática é o me­
lhor caminho para o aprendizado; e quanto mais colocamos
em prática a Palavra pela obediência diária da fé, mais Deus
aumenta nossos dons para seu serviço e para o aumento da
nossa prática. Quando o Espírito lança luz sobre nossa cons­
ciência de que estamos praticando a Palavra que lemos, rece­
bemos também o grande benefício de estarmos seguros de
que temos fé.
8. Oração — Essa prática é indispensável ao longo de toda
a leitura da Escritura — precedendo, acompanhando e se­
guindo. Em leitura pública da Escritura, não é possível fazer
pausa e orar após cada versículo. Na leitura em privacidade
faremos bem em temperar constantemente a Escritura com
sal, usando petições curtas, ardentes, aplicáveis de acordo com
sugestões específicas dos versículos diante de nós. Lutero es­
creveu: “Faça uma pausa em cada versículo da Escritura e
agite, por assim dizer, cada galho dele, para que possivelmen­
te algum fruto venha a cair.”
Se oramos pelo alimento para o nosso corpo a cada refei­
ção, quanto mais devemos orar pelo alimento espiritual pro­
vido em toda leitura da Bíblia! Se não ousamos tocar nosso
alimento e líquido antes de orarmos à mesa, como ousamos
tocar o Livro santo de Deus — nosso alimento e nossa bebi­
da — sem oração?
A oração, necessariamente, também envolve ações de gra­
ças: “Se somos levados a louvar a Deus quando ele alimenta
nosso corpo, quanto mais devemos fazê-lo quando ele ali­
menta nossa alma?”16 Não sejamos fervorosos ao pedir e, em
seguida, frios ao dar graças. Antes, oremos para ler com te­
mor piedoso e humilde gratidão, lembrando-nos de que o
crente que é superficial na leitura da Bíblia será superficial na
vida cristã.
Se a Bíblia existe para influenciar-nos, devemos recorrer a
ela. “A Bíblia que está amarrotada”, escreveu Vance Havner,
“geralmente pertence a alguém que não está.” Negligenciar a
Palavra é negligenciar o Senhor, porém aqueles que lêem a
Escritura, nas palavras de Thomas Watson, “como uma carta
de amor que lhes foi enviada por Deus”, desfrutarão seu po­
der afetuoso e transformador.17

Pregar a Palavra de Deus


Se a Escritura é uma força tão poderosa para transformar
a vida do povo de Deus, com que grande diligência e zelo os
pregadores devem expor a Palavra esculpida de Deus! Se, por
indicação do próprio Deus, a pregação fiel da Palavra é a pri­
meira marca de uma igreja verdadeira e o meio fundamental
da graça doadora e transformadora de vida para o povo de
Deus, que responsabilidade solene recai sobre aqueles que
são chamados a proclamar as “insondáveis riquezas de Cris­
to” reveladas nesses “oráculos de Deus”.18
Mas isto nos constrange a fazer uma pergunta inquiri-
dora: Se aceitamos que a Bíblia é um livro miraculoso, po­
deroso, vivificante, inerrante e autorizado, sendo o próprio
sopro de Jeová, por que não há maior evidência de seu po­
der transformador em nossas congregações? Por que mui­
tos perm anecem tão “intransformados” e mundanos na
conversação e na ação? Não há dúvida de que uma grande
parcela da resposta é atribuída à falta de leitura e do ouvir
apropriadamente a Palavra, atitude agravada pelas investidas
de Satanás, um mundo tentador e o próprio coração peca­
minoso e vida indisciplinada das pessoas. Afinal, quando a
televisão é assistida por mais tempo que o dedicado à Pala­
vra de Deus, e o jornal é lido mais seriamente do que as
Escrituras, o que se pode esperar?
Entretanto, o problema de uma falta de tranformação não
está somente no banco da igreja. Ele ocorre também conos­
co, na qualidade de ministros, quando falhamos em respon­
der à Palavra “em obediência a Deus, com inteligência, fé e
reverência”,19e, conseqüentemente, falta de poder da Palavra
e do Espírito em nossa pregação. Devemos nós, portanto,
ficar surpresos quando as pessoas sentadas nos bancos não
são vidas transformadas?
Para que a Palavra de Deus transforme vidas em nossa
congregação, devemos evidentemente depender da ação do
Espírito Santo. Mas essa não é a resposta completa. A histó­
ria da igreja evidencia que o Espírito Santo honra a pregação
que possui certas marcas decisivas e escriturísticas. Como
pregadores, temos a responsabilidade de examinar nossa pre­
gação à luz de várias perguntas de alcance íntimo e profundo:
Primeiro, estou verdadeiramente pregando a Palavra? A ordem
de Paulo a Timóteo é “pregue a palavra” (2Tm 4.2). A ordem
define a tarefa. Timóteo deve abrir, explicar e aplicar as Es­
crituras Sagradas, que ele conheceu desde a infância (2Tm
3.15). Ele deve ser um m inistro ou servo da Palavra. As Escritu-
ras devem ser para ele o que o amo é para o escravo: todo
comando, toda providência, toda determinação.
Isso explica por que a pregação da Reforma era expositiva.
O Dr. Martin Lloyd-Jones definiu a pregação expositiva nes­
sas palavras:

O sermão sempre deve ser expositivo. Nele, o tema ou


doutrina é alguma coisa que se origina do texto e do
contexto. Portanto, o sermão não deve tomeçar como o
assunto em si; ele deve começar com o texto bíblico que
contenha uma doutrina ou tema. Essa doutrina deve,
então, ser tratada em termos desse escopo.20

O ministro da Palavra deve entregar-se a essa tarefa e ser­


vir a seu Mestre com devoção e concentração sinceras.
Fidelidade ao exemplo dos apóstolos e Reformadores re­
quer que o pregador se dedique à oração, bem como ao mi­
nistério da Palavra (At 6.4). Não pregar a Palavra é não pregar
absolutamente nada. Não orar para que o Espírito use a Pala­
vra como um poder transformador é pregar em vão.
Segundo, estou pregando todo o conselho de D eus? Cada pregador
deve ter sempre em mente duas coisas. Primeiro, ele assume
uma responsabilidade pessoal pelo bem-estar eterno de seus
ouvintes. Segundo, ele deve, em tempo oportuno, apresentar
uma prestação de contas de sua administração no ofício de
pregador da Palavra. Ao despedir-se dos presbíteros efésios,
Paulo fez duas grandes afirmações (At 20.20,27). Primeiro, > '
mais deixando de vos anunciar cousa alguma proveitosd\ Ele tinha
ensinado a seus ouvintes tudo quanto era necessário à sua sal­
vação e bem-estar eterno. Segundo, “jam ais deixei de w s anunciar
todo o desígnio de D eu i'. Como mensageiro, Paulo tinha entrega­
do plena e fielmente a mensagem a ele confiada por Deus.
Tudo isso aponta para a necessidade de sistema, equilí­
brio, diligência e focalização pastoral na pregação. Dois expe­
dientes foram empregados nas igrejas da Reforma para asse­
gurar esses objetivos. O primeiro é lectio continua, ou exposi­
ção em série das Escrituras. Versículo por versículo, capítulo
por capítulo, livro por livro, as Escrituras eram abertas,
explicadas e aplicadas. Esse método é tão antigo quanto Ulrico
Zuínglio e João Calvino, e tem como precedente a pregação
nas sinagogas, onde ela era associada à leitura sistemática da
Lei e dos Profetas (Lc 4.16-21).
Outro método é a pregação do catecismo, favorecido es­
pecialmente pela Igreja Reformada Holandesa. A pregação
do catecismo, mais comumente o Catecismo de Heidelberg,
que era dividido em 22 porções para os 52 domingos do ano.
O catecismo é, de um lado, uma apresentação completa e
equilibrada da doutrina bíblica, e, de outro lado, uma aplica­
ção perscrutadora da doutrina para as necessidades do cris­
tão, tanto como pecador quanto como fiel.
Cada método tem suas forças e fraquezas, porém ambos
vão longe ao visarem alcançar os grandes objetivos de dizer
tudo o que é necessário, do ponto de vista do ouvinte, e dizer
tudo o que Deus deseja que digamos como seu conselho,
entregue aos homens e proclamado em todo o mundo.
De qualquer forma, esse conselho sadio necessita pregar
impassivelmente, sem sombra de dúvida, a análise devasta­
dora da condição humana que a Escritura apresenta (Gn 6.5;
E f 2.1). Ele precisa pregar a graça divina e soberana como
totalmente suficiente, como resposta vitoriosa à condição do
homem (Ef 2.5; Rm 9.16). Ele precisa envolver o pecados
nessa graça, chamando-o à fé e ao arrependimento, e ofere­
cendo esperança exclusivamente em Jesus Cristo para a “sabe­
doria, eju stiça, e santificação, e redenção” (ICo 1.30). Ele precisa
pregar que o cristão deve apresentar-se “p o r sacrificio vivo, santo
e agradável’ a Cristo (Rm 12.1).21 Ele precisa impulsionar as
orientações imutáveis da Escritura e as amplas exigências para
cada esfera da vida, em lugar de seguir o programa caleidos­
cópico dos homens. Como disse Lutero, em lugar de pregar
contra espantalhos, o pregador fiel apresenta a Palavra de Deus
para testemunhar cada verdade específica que ele conhece e
nas quais sua congregação (com suas tentações peculiares)
precisa ser doutrinada.
Terceiro, estoupregando a Palavra de Deus mm clamça e ardor? O Dr.
Martin Iioyd-Jones definiu a pregação como “lógica em chamas!”

Que é pregação? Lógica em chamas! Razão eloqüente!


Será isso uma contradição? E evidente que não. A razão
a respeito da Verdade deve ser poderosamente eloqüente,
como a vemos no caso do Apóstolo Paulo e de outros.
É a teologia em fogo. E uma teologia que não se infla­
ma, afirmo, é uma teologia imperfeita; ou, pelo menos, a
compreensão do homem sobre ela é imperfeita. Pregar é
teologia saindo de um homem que está ardendo.22

Todo pregador deve lutar com as tendências de sua pró­


pria personalidade. Alguns inclinam-se a ser orientados inte­
lectualmente, e sua pregação é metódica, substanciosa, e, en­
tretanto, completamente desapaixonada e fria. Outros são ori­
entados emocionalmente, tendendo a “ir às entranhas”. O
alvo de todo pregador deve ser uma mescla eficaz de ordem e
paixão, lógica e fogo.
É pelo ensino da Escritura que somos salvos “p ela santifi­
cação do TLspírito e f é na verdadd’ (2Ts 2.13). O evangelho é pala­
vra (Jogos), “discurso” (rbemà), “mensagem” (,kerygma) e “dou­
trina” (diâachè). Pregar o evangelho de forma descuidada, con­
fusa e ilógica é negar o seu próprio caráter. Ao mesmo tem­
po, o pregador está lidando com assuntos da maior significa­
ção e conseqüência para si mesmo e para os seus ouvintes.
Ele deve conhecer os terrores do Senhor, e pregar com medo
e tremor. Ele deve ser constrangido pelo amor de Cristo e
pregar com amor e lágrimas (2Co 5.9-21).
A história da igreja tem sustentado que o Espírito trans­
forma vidas mais freqüentemente pela pregação bíblica que
se manifesta com a lucidez que constrange e com convicção
sincera. Em nossa própria terra, essa poderosa associação foi
o segredo fundamental utilizado poderosamente por gran­
des pregadores experimentados, como Jonathan Edwards e
Samuel Davies.23
Q uarto, estou pregando a Palavra de D eus experiencialmente e tam­
bém doutrinariamente? Pregar experiencialmente (ou experimen­
talmente) é tratar de assunto vital da experiência cristã, e em
particular da forma como o cristão experiencia [ou prova] a
verdade da doutrina cristã em sua vida. O termo “experi­
mental” vem do latim experimentum, com o sentido de “teste”,
derivado do verbo experior, que significa “experimentar, pro­
var, tentar, submeter a teste”. O mesmo verbo também pode
ser interpretado como “achar, ou conhecer por experiência”,
e assim dá nascimento à palavra experientia, com o sentido de
“teste, experimento” e “conhecimento obtido por experimen­
to”.24 Calvino usou “experiencial” (experientia) e “experimen­
tal” (experimentum) como termos equivalentes, uma vez que
ambas as palavras, da perspectiva da pregação bíblica, indi­
cam a necessidade de “examinar” ou “testar” o conhecimen­
to experiencial pela pedra de toque da Escritura.25
A pregação experiencial enfatiza a necessidade de “co­
nhecer por experiência” as grandes verdades da Palavra de
Deus. A pregação experiencial procura explanar, em termos
da verdade bíblica, como as coisas vão e como elas têm de ir na.
vida cristã, e visa aplicar a verdade divina a toda a extensão da
experiência do crente, tanto como indivíduo quanto em to­
dos os seus relacionamentos na família, na igreja e no mundo
em volta dele. Como Paul Helm escreve:

A situação [hoje] requer uma pregação que abranja toda


a extensão da experiência cristã, junto com uma teologia
experíencial desenvolvida. A pregação deve dar orienta­
ção e instrução aos cristãos com base em sua experiência
atual. Ela não deve ocupar-se de irrealismos ou tratar as
congregações como se elas vivessem em séculos diferen­
tes ou em circunstâncias totalmente diversas. Isso impli­
ca tomar a plena extensão da nossa situação moderna e
entrar com total afinidade nas experiências reais, as es­
peranças e temores, do povo cristão.26

A pregação experíencial deve, em primeiro lugar, ser uma


pregação discriminativa. Esse tipo de pregação determina a
diferença entre o cristão e o não-cristão. Ela é a chave por meio
da qual o reino do céu abre-se para os crentes e fecha-se para
os descrentes. A pregação discriminativa promete perdão dos
pecados e vida eterna a todos quantos, por meio de uma fé
genuína, recebem a Cristo como Salvador e Senhor; de igual
modo, ela proclama a ira de Deus e a condenação eterna como
juízo divino sobre os não-crentes, não-arrependidos e não-con-
vertidos. Tal pregação nos ensina que, a menos que nossa reli­
gião seja experíencial, pereceremos— pois a experiência por si
salva, uma vez que o Cristo que salva pecadores deve ser expe­
rimentado pessoalmente como a rocha sobre a qual a casa de
nossa esperança eterna é edificada (Mt 7.22-27).
A pregação experíencial é aplicadora também. Ela apli­
ca o texto a cada aspecto da vida e da necessidade do ou­
vinte. Desse modo, ela procura promover uma religião que
seja realmente um poder, e não mera aparência (2Tm 3.5).
Essa espécie de religião experíencial foi caracterizada por
Robert Burns como “cristianismo atuante no dia-a-dia das
atividades e no lar. ... Em uma palavra, o princípio sobre o
qual a religião experimental se apóia é simplesmente este
— que o cristianismo não deve ser apenas conhecido, com­
preendido e crido, mas também sentido, desfrutado e exer­
cido praticamente”.27
Quão diferente é essa pregação da maioria das pregações
atuais! A Palavra de Deus é freqüentemente pregada hoje em
dia de uma forma que jamais transformará alguém, porque
ela nunca diferencia e nunca aplica. A pregação consiste en­
tão em limitar-se à leitura, fazer uma demonstração, oferecer
um cardápio de boas coisas para o conforto dos ouvintes, ou
uma forma de “experiencialismo” extraído dos fundamentos
da Escritura. Tal pregação falha em não expor o que os Re­
formados chamavam de religião vital·, como um pecador é
continuamente despojado de toda a sua própria retidão; como
ele é conduzido desolado a Cristo para obter a plena salva­
ção; como ele encontra alegria na simples confiança na pre­
sença de Jesus e empenha-se em obedecer-lhe; como ele des­
cobre a praga do pecado arraigado, como batalha contra a
apostasia e alcança a vitória pela fé em Cristo.
Não surpreende que, quando a Palavra de Deus é pregada
experiencialmente, ela se mostre a grande força para a trans­
formação de homens e nações, como “0p od er de D eus para a
salvação” (Rm 1.16). Pois tal pregação proclama desde as por­
tas do inferno, por assim dizer, que aqueles que não são nas­
cidos de novo logo atravessarão essas portas para morarem
eternamente em completo abandono no inferno se não se
arrependerem (Lc 13.1-9). Tal pregação proclama das portas
do céu que o regenerado, aquele que pela graça reservada de
Deus persevera na santidade, logo atravessará aquelas portas
para a eterna glória e incessante comunhão com o Deus Trino.
Essa pregação é transformadora porque corresponde à expe­
riência vital dos filhos de Deus (cf. Rm 5.1-11); ela expõe clara­
mente os sinais e os frutos da graça salvadora imprescindíveis
para o crente (Mt 5.3-12; G15.22-23); ela coloca diante do crente
e do descrente, de igual modo, seu futuro eterno (Ap 21.1-9).28
Q uinto, o estilo de minha pregação e todo o meu m inistério confir­
mam a mensagem que proclam o? Um dos problemas do púlpito
contemporâneo é o contraste dissonante entre a natureza sé-
ria da mensagem proclamada e o modo casual e mesmo im­
provisado como ela é apresentada. Os pregadores que, por
seu jeito de transmitir dão a impressão de que não têm nada
especialmente importante a dizer, não devem ficar surpresos
ao notar que ninguém lhes presta atenção.
O estilo de nossa pregação deve combinar com a serieda­
de do que devemos dizer. Os teólogos da Assembléia de
Westminster compreenderam essa ligação fundamental entre
o estilo e a substância. Eles concluem sua discussão sobre o
método de pregação em The D irectory fo r the Public Worship o f
G od (1645) — um compêndio de procedimentos cerimoniais
em culto de adoração — estabelecendo a questão de estilo ou
forma, e advertindo todos os pregadores que tanto sua pre­
gação como todo o seu ministério devem ser desempenha­
dos no espírito das sete características seguintes: (1) aplicada-
mente, isto é, meticulosamente, não negligentemente; (2) clara­
mente, de modo que os menos instruídos possam ser capazes
de compreender o ensino da Escritura; (3) fielm ente, ansiando,
para a honra de Cristo, pela salvação do perdido e edificação
dos crentes; (4) sabiamente, ensinando e admoestando da for­
ma mais apropriada para ser bem-sucedido com os ouvintes;
(5) solenemente, de acordo com o caráter da Palavra; (6) amoro­
samente, com zelo piedoso e desejo sincero pelo bem-estar
das almas; (7) seriamente, sendo persuadido intimamente da
verdade de Cristo e andando perante o rebanho de maneira
devota, quer em sua privacidade ou publicamente.29Se essas
sete características forem exemplificadas inteiramente na pre­
gação e no ministério dos nossos dias, não veremos ainda
mais o poder transformador da Palavra de Deus nas igrejas?
Os ministros devem possuir graça para edificar a casa de
Deus com ambas as mãos: a sua doutrina e a sua vida. A
doutrina deve produzir vida, e a vida deve adornar a doutri­
na. Os pregadores devem ser aquilo que pregam e ensinam.
Eles devem não somente dedicar-se aos seus textos, mas de­
vem, também, dedicar seus textos a si mesmos.30“Aquele que
prega mais”, escreveu John Boys, “vive melhor.” Talvez Robert
Murray M ’Cheyne tenha dito isso melhor: “A vida do minis­
tro é a vida do seu ministério.... Em grande medida, de acor­
do com a pureza e perfeições do instrumento, ele será um
sucesso. Não são os grandes talentos que Deus abençoa, e
sim a semelhança com Cristo. Um ministro santo é uma arma
terrível na mão de Deus.”31

Ouvindo a Palavra de Deus


Muito do que Richard Greenham disse acima sobre a lei­
tura da Escritura aplica-se também ao ouvir a Palavra. Thomas
Watson oferece uma ajuda específica com respeito a ouvir a
pregação da Palavra de Deus.32 A medida que lemos os itens
abaixo seria proveitoso perguntar após cada um deles: E stou
realmente ouvindo a Palavra de D eus? Sou um bom ouvinte do evange­
lho proclam ado?
1. Quando você vem à casa de Deus para ouvir sua Pa­
lavra, não se esqueça também de preparar sua alma com
oração.
2. Venha com um santo apetite pela Palavra (lP e 2.2). Um
bom apetite proporciona uma boa digestão.
3. Venha com um coração afável, predisposto, perguntan­
do: “Senhor, que queres que eu faça?” (At 9.6). E tolice espe­
rar bênção, se vier com um coração endurecido e com pensa­
mentos mundanos.
4. Esteja atento à Palavra pregada. Em Lucas 19.48, lemos
que os ouvintes de Jesus estavam dominados por suas pala­
vras. Lídia demonstrou possuir um coração aberto pelo Se­
nhor predispondo-se a aceitar a mensagem (At 16.14). Tal
atenção também concorre para o afastamento de todos os
pensamentos errantes, frouxidão da mente e sonolência (Mt
13.25). Considere o sermão como ele verdadeiramente é —
uma questão de vida ou morte (Dt 32.47).
5. “ ...acolhei, com mansidão, a palavra em vós im plantada' (Tg
1.21). A mansidão enseja uma disposição submissa do cora­
ção — “uma boa vontade de ouvir os conselhos e repreen­
sões da Palavra”. Por meio da mansidão, a Palavra é “implan­
tada” na alma e produz “o doce fruto da retidão”.
6. Misture a Palavra pregada à fé: “...apalavra que ouviram
não lhes aproveitou, visto não ter sido acompanhada p ela f i ' (Hb 4.2).
“A fé”, escreveu Lutero, “não é uma conquista, é uma dádiva.
Entretanto, ela vem somente por meio de ouvir e estudar a
Palavra.” Se o ingrediente principal de um remédio está au­
sente, o remédio não será eficaz; portanto, esteja seguro de
não omitir o ingrediente principal, a fé, quando ouvir um ser­
mão. Creia na Palavra e concentre-se nela. Concentre-se em
Cristo quando ele é anunciado (Rm 13.14); concentre-se nas
promessas quando são faladas.
7. Empenhe-se em reter e ore sobre aquilo que ouviu.
Não permita que o sermão escoe de sua mente como a água
que escoa pela peneira (Hb 2.1). “Nossas lembranças devem
ser como a arca [do Tabernáculo], onde a lei foi colocada.”
Como Joseph Alleine aconselhou, “venha de joelhos para o
sermão, e vá do sermão para seus joelhos”.
8. Pratique o que ouviu. Absorva os sermões que ouve.
Ouvir o que não reforma sua vida nunca salvará sua alma. Os
cumpridores da Palavra são os melhores ouvintes. Que valor
tem a mente cheia de conhecimento que não combina com
uma vida frutífera?
9. Peça a Deus que faça acompanhar sua Palavra com a
bênção efetiva do Espírito Santo (At 10.44). Sem o Espírito,
o remédio da Palavra pode ser engolido, mas não proporcio­
nará a cura.
10. Familiarize-se com o que você ouviu. Quando chegar ao
lar, fale a seus amados sobre o sermão de maneira edificante. “A
minha língua celebre a tua lei' (SI 119.172). Relembre cada sermão
como se fosse o último que ouviu, pois pode ser este o caso.
Com a bênção do Espírito, se estes “dez mandamentos”
para ouvir a Palavra forem obedecidos conscienciosamente,
a Palavra pregada será um poder transformador em sua vida.
Se, por outro lado, essas orientações forem ignoradas, e a
Palavra não for efetiva para a nossa salvação, ela será efetiva
para a nossa condenação. Watson conclui apropriadamente
que: “A Palavra será efetiva de uma forma ou de outra; se ela
não fizer seu coração melhor, ela fará suas correntes mais
pesadas. ... Terrível é o caso daquele que vai carregado de
sermões para o inferno.”33
Deve ter ficado evidente pelas considerações precedentes
que para que possamos ler, pregar e ouvir a Palavra de Deus
corretamente, e assim experimentar seu poder transforma­
dor, precisamos da ajuda do Espírito Santo. O Catecismo de
Heidelberg afirma: “Deus dará sua graça e o Espírito Santo
àqueles somente que com anelo genuíno incessantemente
pedem a ele e dão graças por eles.”34O L ivro da Oração Comum
(1662) oferece para o segundo Domingo do Advento um mo­
delo de tal oração para os cristãos de hoje:

Bendito Senhor, que propiciaste que todas as sagradas Es­


crituras fossem escritas para nossa aprendizagem: Conce­
de que possamos dessa forma ouvir, ler, assinalar e absor­
ver intimamente tua Palavra, que pela paciência e confor­
to de tua santa Palavra possamos abraçar e sempre nos
apropriar da bendita esperança da vida eterna, que tu nos
deste em nosso Salvador Jesus Cristo. Amém.35

Entoando a Palavra de Deus


Uma quarta maneira de os crentes experimentarem o po­
der transformador da Palavra é o cântico dos salmos. Eis aqui
um dos usos negligenciados da Palavra de Deus em nossos
dias, tanto na adoração pública como na devoção pessoal e
familiar. As gerações anteriores do povo de Deus usavam in-
tensivamente os salmos. Não somente eram os salmos usa­
dos na adoração pública, tanto em prosa como em versículos
metrificados, mas também na adoração em família e a sós. Os
cristãos foram incentivados a memorizar os versículos metri­
ficados dos salmos, de modo que pudessem louvar verdadei­
ramente a Deus, de coração.
Esse uso dos salmos tem uma história antiga. Embora
sua composição e uso na adoração estejam associados espe­
cialmente ao Rei Davi, está claro na Escritura que pelo me­
nos algumas porções do saltério são muito mais antigas e fo­
ram usadas há muito tempo, como as dos dias de Moisés. Um
dos Salmos mais conhecidos e mais amplamente usados tem
o subtítulo “ Oração de M oisés, homem de Deu/’ (veja o SI 90). As
muitas citações do Livros dos Salmos entremeadas no texto
do Novo Testamento lembra-nos o lugar que eles tinham na
adoração e pregação da igreja apostólica.
Nas igrejas do período da Reforma, o cântico de salmos
floresceu como nunca antes acontecera. Na opinião de
Calvino, o cântico dos salmos métricos servia como uma for­
ma de oração associada ou comum. Entoar salmos em adora­
ção pública, no lar ou no trabalho, e até no campo de batalha,
tornou-se a marca genuína de um protestante. Embora o uso
de outros textos, tanto canônicos como os demais, encon­
trassem algum lugar em muitas igrejas Reformadas, os sal­
mos logo alcançaram um lugar de preeminência, que não foi
suplantado por muito tempo.
Não é difícil encontrar a razão dessa prática. Como escre­
veu o Dr. Henry Beets em sua “Introdução Histórica e Ex­
plicativa”, impressa com a edição de 1927 de O Saltério, a qual
era usada na Igreja Reformada Cristã naquela época: “Os sal­
mos vêm ao encontro da grande necessidade de louvarmos,
exaltando a Deus em seu ser e obra, e contendo confissões
de nosso desmerecimento, nossa fé, nossa gratidão, nossas
necessidades.” Citando uma fonte não identificada, Beets
acrescenta: “ ‘Nos salmos ouvimos a nota permanente, eter­
na, fundamental ressoando no coração piedoso.’ ”
Se alguém perguntar por que os salmos devem ser usados
com destaque ou com preferência sobre outros hinos e cânti­
cos conhecidos e usados nas igreja protestantes hoje, duas coi­
sas devem ser ditas. Primeiro, os salmos são a Palavra de Deus,
dada por inspiração do Espírito Santo. Segundo, é a vontade
Deus e o mandamento de Deus que seu povo o louve com
salmos (veja SI 95.2,98.5,105.2; Ef 5.19; Cl 3.16; Tg 5.13).36
Porque o uso privativo e devocional dos salmos é uma
forma de meditar sobre a Palavra de Deus, é bom que eles
sejam “guardados no coração” por meio da memorização.
Os versículos metrificados dos salmos adaptam-se especialmen-
te bem a esse propósito. O domínio dos conteúdos do saltério
habilita o crente com uma rica teologia de experiência cristã e
um manual de louvor e oração amplamente desenvolvido. Os
pais cristãos devem lembrar-se de sua obrigação bíblica de en­
sinar os salmos a seus filhos como “os louvores do SENHOR”
(SI 78.4) e “dos cânticos de Sião” (SI 137.3). De maneira clara, o
uso da Palavra de Deus dessa forma propicia à família piedo­
sa grande deleite espiritual e muita força e ajuda necessárias.
Pode ser dito, com ponderação, que a Reforma não teria
sido aquele movimento poderosamente transformador, não
fosse o cântico dos salmos, que não somente enriqueceu a
adoração pública e unida das igrejas, mas também levou o
poder da Palavra de Deus aos caminhos e lugares públicos
das nações, e aos lares e corações do povo de Deus. Queira o
Espírito Santo agradar-se em reavivar as igrejas em nossos
dias, e uma evidência de tal reavivamento será o retorno do
cântico cheio de espiritualidade dos salmos, quer na adora­
ção pública, quer na devoção privativa.37
Cumpre-nos, finalmente, indagar: Como podemos saber
se a Palavra que está sendo lida, ouvida, pregada e entoada
está sendo realmente aplicada a nós pelo Espírito de Deus?
Podemos saber por aquilo que antecede essa intervenção, a
acompanha e se segue a ela. Antes da influência do Espírito, a
alma prepara o espaço para receber a Palavra. A influência do
Espírito enseja uma percepção de conformidade e poder —
quer seja um poder suave, “um cicio tranqüilâ’ do evangelho (lR s
19.12), ou um trovão, como o do Sinai (Ex 19.16) — que nos
convence de que estamos recebendo para o bem-estar de nos­
sa alma precisamente a palavra e instrução de Deus que preci­
samos receber. E, mais importante, quando Deus infunde sua
Palavra em nossa alma, “o fru to dejustiça, o qual é mediante Jesus
Cristo, para a glória e louvor de DeuΓ (Fp 1.11) começa a manifes-
tar-se. A velha natureza é mortificada e o culto pecaminoso do
eu começa a desfazer-se; a nova natureza é vivificada e cresce
em nossa vida a presença de Cristo. Onde falta esse fruto e
evidência da obra do Espírito com a Palavra, esta não está sen­
do usada corretamente, pois “pelo fru to se conhece a árvorè’’ (Mt
12.33). Quais são alguns dos frutos ou efeitos do poder trans­
formador da Palavra? Consideremos aqui quatro: a verdadeira
conversão, sabedoria, alegria e luz para o moribundo.38

Os Frutos da Transformação

A Verdadeira Conversão
“A l é do SENHOR é perfeita e restaura a alm a'’ (SI 19.7). A
Palavra de Deus é mencionada aqui como ‘le i” ou “instrução”,
ou, mais propriamente, “doutrina”. Sob a instrução de Jeová,
dada por meio de sua Palavra, a vida interior do homem é
mudada e redirecionada. A Palavra de Deus desperta no co­
ração uma tristeza sincera por termos provocado a Deus com
nossos pecados, inspira um ódio santo àqueles pecados, e
desperta em nós um impulso de fugir deles. Ao mesmo tempo,
a Palavra de Deus enche o coração de alegria em Deus por
meio de Cristo, e implanta em nós um novo amor e deleite de
viver de acordo com a vontade de Deus na obediência da fé.39
Eis o que se entende por conversão da alma. O caráter e o
direcionamento da vida interior do homem são revoluciona­
dos. Esse novo direcionamento não é, porém, uma nova par­
tida, mas sim um retorno ao caminho pelo qual Deus orde­
nou a Adão que andasse. O apóstolo Paulo declara-o nos se­
guintes termos: “e w s renoveis no espírito do vosso entendimento, e
w s rewstais do novo homem, criado segundo Deus, em ju stiça e retidão
procedentes da verdade” (Ef 4.23,24). Tal conversão é verdadei­
ramente uma restauração da alma (SI 19.7, nota marginal).

Sabedoria
Um segundo fruto do poder transformador da Palavra de
Deus é a posse de um novo conhecimento, uma sabedoria
espiritual a respeito de Deus. A Escritura qualifica o pecado
de insensatez, irracionalidade, e não há maior irracionalidade
do que a insensatez da descrença. “Di% o insensato no seu cora-
ção:N ão há D eus” (SI 14.1). Essa insensatez é repreensível por­
que insulta a evidência proporcionada pelo “livro mais gracio­
so”40 da própria criação. “ Os céus proclam am a glória de Deus, e o
firm am ento anuncia as obras das suas mãos.” (SI 19.1). “Porque os
atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a
sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do
mundo, sendo percebidos p o r meio das cousas queforam criadas” (Rm
1.20). Reconhecendo que alguns dos grandes intelectuais e
filósofos da humanidade negaram a existência de Deus, Pau­
lo declara: “Inculcando-sepor sábios, tornaram-se loucos” (Rm 1.22).
Tal insensatez pode ser vencida somente pelo testemu­
nho da Escritura Sagrada, confirmado pelo testemunho do
Espírito no coração. A verdadeira sabedoria, e a vida eter­
na, é conhecer Deus e Jesus Cristo, a quem ele enviou (Jo
17.3). A insensatez do descrente é banida quando os ho­
mens recebem o firme testemunho da Palavra de Deus e
nela descansam: “ O testemunho do SEN H OR é fie l e dá sabe­
doria aos sim plices” (SI 19.7).
Alegria
O homem moderno é atormentado pela infelicidade,
ansiedade, depressão e desesperança. Nossa época de abun­
dância material deu início a uma era escura da alma, a uma
era de pobreza e escassez. O vazio, a aridez e a feiúra da
arte, música, literatura e filosofia modernas testemunham a
triste condição do homem amai. Não é mera coincidência
que essa era de esterilidade e degradação cultural tenha sido
acompanhada de um amplo abandono da cultura do cris­
tianismo bíblico e da subversão dos padrões de conduta
ensinados na Palavra de Deus.
Quão diferente é a vida para aqueles que se dedicam fiel­
mente à Palavra de Deus! “O spreceitos do SENHOR são retos e
alegram o coração” (SI 19.8). Os estatutos são estáveis, padrões
universais, normas duradouras; Deus proveu para seu povo
essas leis, padrões e normas em sua Palavra. Por eles devemos
“regular nossa vida em toda honestidade para a glória de Deus,
de acordo com a sua vontade” (iConfissão Belga, Artigo 25).
Essa obediência à lei de Deus está longe de ser opressiva
para o cristão: “os seus mandamentos não sã op en osoi’ (ljo 5.3). E,
antes, um caminho de alegria e regozijo, ao passo que a po­
breza espiritual dá lugar à riqueza espiritual. “A chadas as tuas
palavras, logo as com i; as tuas palavras meforam go^o e alegria para o
coração” (}r 15.16). “M ais me regosçijo com o caminho dos teus teste­
munhos do que com todas as riquezas” (SI 119.14). Felizmente, há
pelo menos alguns em nosso tempo que estão abandonando
a ilegalidade e confusão do mundo do homem moderno, e
redescobrindo a alegria de viver uma vida ordeira, produtiva
e satisfatória mediante a Palavra de Deus.

Luz para o Moribundo


“o mandamento do Senhor ép u ro e ilumina os olhos” (SI 19.8).
Aqui a Palavra de Deus é caracterizada como mandamento·, o
uso do singular nos lembra ao mesmo tempo a origem divi­
na, a unidade orgânica e a autoridade suprema da Escritura
Sagrada como “o mandamento do Senhor”.
As palavras do salmista revelam seu sentido mais profun­
do quando visto no contexto da morte e do moribundo, o
mais temível e universal de todos os problemas da existência
humana. Como escreveu Joseph A. Alexander:

Iluminar os olhos é entendido por alguns como iluminação


intelectual com respeito às coisas espirituais. Porém, é
mais agradável para o uso hebraico supor uma alusão à
obscuridade dos olhos produzida por extrema fraqueza
e aproximação da morte, cujo restabelecimento é repre­
sentado figurativamente como uma iluminação do olho.41

Perante a morte iminente, a sabedoria do homem falha e


a autoridade humana deve recuar. Um homem moribundo é
deixado em abandono e sem conforto à medida que a luz
esmaece e a treva aprofunda-se em volta dele. Homens e
mulheres podem discutir abertamente os detalhes mais ínti­
mos da sexualidade humana, porém entram em silêncio
desconfortável quando surge o assunto da morte do moribun­
do. Por rejeitarem as Escrituras, os que não são salvos nada
têm a viver p o r e , conseqüentemente, nada têm a morrer com.
Somente a Palavra de Deus lança luz sobre esses assuntos
sombrios: “esse é Deus, o nosso D eus para todo o sem pre; ele será
nosso guia até à m orte'’ (SI 48.14). Quando uma lei da Palavra de
Deus em vigência serve-nos bem ao vivermos nossa vida de
dia em dia, ela serve melhor ainda como guia, quando entra­
mos no “vale da sombra da morte" (SI 23.4). Para aqueles que
recebem a Palavra de Deus como sua lâmpada da verdade,
essa luz brilha com brilho que não vacila nem falha, uma luz
pura reveladora dos segredos do mundo invisível.
De um lado, somos alertados do fogo abrasador eterno, a
treva exterior e o bicho que não morre; tal é o julgamento
preparado para o ímpio. O tormento do moribundo deve
prolongar-se na morte perpétua. Por outro lado, sabemos a
segurança, bem-aventurança e descanso concedidos àqueles
que morrem na fé, guardando as promessas. E, o melhor de
tudo, aprendemos que “deixar o corpo” é “habitar com o Senho?'
(2Co 5.8). Somente aqueles que conhecem e crêem pela graça
o que revela a Palavra de Deus podem dizer com Paulo que
“o m orrer é lucro” (Fp 1.21).
John Flavel resumiu bem: “As Escrituras ensinam o modo
melhor de viver, o modo mais nobre de sofrer, e o modo
mais confortável de morrer.”

Conclusão

Pela discussão anterior podemos notar a razão por que os


líderes da Reforma decidiram confiar exclusivamente na Pa­
lavra de Deus como única regra de fé e vida, e focalizaram
tão intensamente a obra da pregação. Em primeiro lugar, eles
aceitaram e afirmaram com toda sinceridade o próprio teste­
munho da Escritura, o qual, por sua vez, foi confirmado pelo
Espírito em seus corações:

Recebemos todos estes livros, e estes somente, como san­


tos e canônicos, para a regulamentação, fundação e confir­
mação da nossa fé; crendo sem dúvida todas as coisas neles
contidas, não tanto porque a Igreja os recebeu e aprova como
tais, porém mais especialmente porque o Espírito Santo tes­
temunha em nossos corações que elas são de Deus, de que
elas possuem em si mesmas a exata evidência.
— Confissão Belga, Artigo 5

Notemos a alegação impetuosa feita a respeito da fé dos


Reformadores: E les creram sem dúvida em todas as coisas contidas na
Escritura. Parte da fraqueza do evangelismo moderno é que,
por todos os seus protestos em nome da inerrânda bíblica, há
exemplos excessivos em que este ou aquele estudioso põe em
dúvida alguma afirmação ou ensino particular da Escritura.
Em segundo lugar, os Reformadores agiram sobre a lógica
de sua posição. Eles abandonaram todas as outras tendências e
entregaram-se à pregação como a obra suprema de sua vida.
Eles deram grande ênfase à sua pregação, e esperaram um gran­
de resultado de sua sólida pregação da Palavra. Novamente,
aqui o evangélico moderno está em falta, pois ele coloca muito
pouco peso em sua pregação por meio do conteúdo ou subs­
tância, sob o pretexto de que o homem moderno tem alguns
problemas singulares para ouvir a Palavra. E por isso talvez
que se vêem resultados escassos desse tipo de pregação.
Infelizmente, parece que o pregador evangélico moderno
está despercebido de ter adotado uma visão de pregação auto-
derrotista, do mesmo modo que está inconsciente do quanto
seu evangelismo é carente da fé ricamente bíblica da Reforma.
Em razão disso, as igrejas evangélicas têm estado engajadas há
algum tempo na busca de algum substituto para a pregação
(liturgia eclesiástica elevada, peças, vídeos, bandas dej a ^ dan­
ças “sacras”, etc.) que obteria audiência em nossos dias. Muitas
tentativas têm sido feitas com esses substitutos, e, embora os
resultados sejam constantemente malsucedidos, experiências de­
sesperadas continuam provendo pouco mais do que prepara­
ções de artigos em páginas sobre religião em jornais da nação.
Não sabemos quando essa busca de substitutos cessará,
mas, quanto mais cedo cessarem, melhor. A história da Re­
forma confirma que a pregação da Palavra de Deus é o meio
mais eficaz para levar seu poder transformador ao mundo. A
necessidade não é substituir o púlpito, e sim restaurá-lo. Os
cultos de adoração pública devem ser purgados de todo refu­
go de coisas acrescentadas para competir com a “sermoniza-
ção”, a qual, por sua vez, deve ser escoimada de todo humor
inadequado, intermináveis fatos recontados e, provavelmen-
te, histórias apócrifas, psicologia p op e toda atenção dada aos
esportes, política, televisão e variadas campanhas para refor­
mar os males da sociedade.
Quando toda essa escória tiver sido purificada, os pre­
gadores de hoje poderão retornar ao seu verdadeiro cha­
mado para pregar a Palavra em sua plenitude, riqueza e
poder. Eles descobrirão que a Palavra de Deus tem o poder
de reformar e reavivar a igreja. Eles descobrirão que a Pala­
vra é uma arma poderosa em nossa batalha contra o mun­
do, a carne e o Diabo. Nas palavras de Lutero — “O mun­
do é conquistado pela Palavra, e pela Palavra a igreja é ser­
vida e reconstruída.”
Eles também descobrirão que nada é mais agradável e acei­
tável a Deus; nada é mais honrado pelo Espírito Santo; nada
é mais certo de manter, aumentar e estender a igreja e o reino
de nosso Salvador, Jesus Cristo; e nada é mais apropriado
para levar muitos filhos e filhas pródigos de Deus de volta à
casa do Pai.
Os cristãos de hoje precisam tornar-se intensamente cen­
tralizados na Palavra, na pregação, na oração, na adoração e
no viver. Aqui vão as palavras de Henry Smith:

Aprendamos sempre com a Bíblia na mão


o que nos foi dado, nada aceitando senão
o que nos foi ensinado, nada amando senão
o que nos foi prescrito, nada odiando senão
o que nos foi proibido, nada fazendo senão
o que nos foi ordenado na Bíblia do cristão.42
(Adaptado)

Os tempos esperam por uma geração de leitores, prega­


dores e ouvintes que experimentaram a Palavra de Deus como
um poder transformador em sua vida.
1 Uma bibliografia atualizada anotada desses livros está na série de
artigos de Joel R. Beeke, no Christian Observer, de 5 de maio a 7 de
julho, 1995.

2 Stephen Charnock, “A Discourse o f the Word, The Instrument o f


Regeneration”, em The Complete Works o f Stephen Charnock , B.D.
(Edimburgo: James Nichol, 1865) Vol. 3, pp. 316-17.

3 Os verdadeiros crentes são também transformados por experimentar


que a Palavra de Deus é seu alimento para saciá-los (SI 119.103), sua he­
rança para enriquecê-los (SI 119.72), sua água para limpá-los (SI 119.9),
seu conselheiro para resolver suas dúvidas e multiplicar suas alegrias (SI
119.24), seu fogo para levar seus corações a queimar com afeição (Lc
24.32), sua regra para andar por ela (G16.16), e seu espelho diante do qual
se vestem como praticantes da Palavra e não somente ouvintes (Tg 1.23-25).

4 Cf. João Calvino, Institutes o f the Christian Religion, org. por John T.
McNeill and trad, por Ford Battles (Filadélfia: Westminster, 1960,
III, xxiv, 13-14.

5 Observe que os teólogos da Assembléia de Westminster recomenda­


ram tal pregação nas igrejas de seu tempo, a qual produziría exatamente
esses resultados nos ouvintes (veja o “Directory for the Public Worship
o f God”, em The Confession o f Faith... [Inverness: Publications Committee
o f the Free Presbyterian Church of Scotland, 1970], p. 380, para conhe­
cer suas observações sobre a necessidade de aplicação na pregação).

6: Henry Scougal, The Life o f God in the Soul o f Man (Harrisonburg,


VA: Sprinkle, 1986).

7 Cf. Gerhardus Vos, BiblicalTheology (Grand Rapids: Eerdmans, 1948,


pp. 13-17..

8 Breve Catecismo de Westminster; Q. 3.


9 Cf. Confissão de Fé de Westminster, XXI:5.

10 The Works o f the Reverend and Faithfvl Servant o f Iesvs Christ,


M. Richard Greenham, org. por H[enry] H[oIland] (Londres: Felix
Kingston for Robert Dexter, 1599), pp.389-97.

11 Ibid., p. 390.

12 Ibid., p. 391.

13 Ibid., p. 393.

14 Ibid., p. 394.

15 Ibid., p. 395.

16 Ibid., p. 397.

17 Muitos Puritanos recorreram ao how-to [instruções sobre como


usar] para a leitura da Bíblia. Um dos melhores, reimpresso recente­
mente, é “How We May Read the Scriptures with Most Spiritual
Profit”, de Thomas Watson, em Heaven Taken by Storm: Showing the
Holy Violence a Christian Is to Tut Forth in the Pursuit Λ/ ter Glory, org.
por Joel R. Beeke (Pittsburgh: Soli Deo Gloria, 1992), apêndice 2:113-
129. Um livreto prático do século X X escrito na característica puri­
tana, dispondo de uma seção útil sobre como desenvolver um plano
de leitura, está disponível: veja Geoffrey Thomas, Reading the Bible
(Edimburgo: Banner o f Truth Trust, 1980).

18 Cf. Confissão Belga, Artigo 29; Catecismo de Heidelberg, P. 65.

19 Confissão de Fé de Wetminster, XXI:5.

20 Martin Lloyd-Jones, Preaching and Preachers (Grand Rapids: Zondervan


1971, pp. 71-72.
21 Catecismo de Heidelberg, P. 32.

22 Lloyd-Jones, Preaching and Preachers, p. 97.

23 Works o f Jonathan Edwards, 2 vols. (Edimburgo: Banner o f Truth


Trust, 1974); Sermons o f the Reu Samuel Davies, 3 vols. (Morgan, PA:
Soli Deo Gloria, 1993-96). Cf. Iain Murray, Revival and Revivalism:
The Making and M arringof American Evangelicalism (Edimburgo: Banner
o f Truth Trust, 1994), pp. 3-31.

24 Cassell’s Latin Dictionary, rev. org. por J.R.V. Marchant e J.E Charles
(Nova York: Funk & Wagnalls, s.d.).

25 Willem Balke, “The Word o f God and Experientia according to


Calvin”, in Calvinus Ecclesia Doctor, org por W.H. Neuser (Kampen:
Kok, 1978), pp. 20-21; cf. Calvin’s Commentary on Zechariah 2.9.

26 Paul Helm, “Introduction” em The Works o f Thomas Hajyburton


(Londres: Thomas Tegg, 1835), pp. xiv-xv.

27 Robert Burns, “Introduction” em The Works o f Thomas Halyburton


(Londres: Thomas Tegg, 1835), pp. xiv-xv.

28 Veja o Caterismo de Heidelberg sobre uma afirmação confessional


Reformada que facilita a pregação experiencial. Ela se evidencia por
(1) exposição do Catecismo de um esboço (miséria, livramento e
gratidão) que é verdadeira para a experiência dos crentes; (2) sua
aplicação de muitas doutrinas diretamente à consciência e para o
benefício espiritual do crente; e (3) seu caráter afetuoso e pessoal
pelo qual o crente é constantemente tratado na segunda pessoa.

29 Confissão de F é de Westminster, p. 381).

30 Cf. J.A. Bengel, “Te totum applica ad textum; rem totam applica
ad te” (Aplica inteiramente a ti mesmo o texto, aplica o conteúdo
dele inteiramente a ti mesmo), citado no prefácio de Erwin Nestle,
Novum Testamentum Grace.

31 Andrew A. Bonar, Memoir and Remains o f Robert Murray M ’Cheyne


(Londres: Banner o f Truth Trust, 1966), p. 282.

32 A lista aqui apresentada está em forma reduzida. Watson, Heaven


Taken by Storm , ρρ. 16-18, e Thomas Watson, A Body o f Divinity (Lon­
dres: Banner o f Truth Trust, 1971), pp. 377-79.

33 Ibid., p. 379.

34 Catecismo de Heidelberg, P. 116 (tradução de 1934).

35 Coligida para o segundo Domingo do Advento.

36 A Nova Versão Internacional (The New International Version) supri­


me a menção dos salmos em muitos desses textos (cf. Versão King
James e outras versões inglesas). Note-se também que a frase “sal­
mos, hinos e cânticos”, em Efésios 5.19 e Colossenses 3.16, pode
provavelmente referir-se a vários tipos de salmos, como estão classi­
ficados na antiga versão grega ou na Septuaginta [a versão dos Se­
tenta] do Antigo Testamento.

37 Os saltérios na língua inglesa são facilmente disponíveis. O Genevan


Psalter (Saltério Genebrês), de 1562, apareceu finalmente em sua to­
talidade como versão inglesa publicada no Book c f Praise (Livro de
Louvor), usado pelas Igrejas Reformadas Canadenses. Várias edi­
ções do Scottish Psalter (Saltério Escocês), de 1650, estão ainda em
impressão, incluindo a edição ricamente anotada produzida por John
Brown, de Haddington (The Psalms o f David in M etre with Notes,
Exhibiting the Connection, Explaining the Sense, and f o r Directing and
Animating the Devotion [Os Salmos de Davi em Metrificação com No­
tas, Indicando a Associação, Explicação do Sentido, e Orientação e
Animação da Devoção] (Dallas, TX: Presbyterian Heritage, 1991).
A versão norte-americana mais antiga e mais amplamente usada é o
Saltério Presbiteriano Unido, publicado em 1912, e ainda reimpresso
atualmente por Heritage Netherlands Reformed Congregations, the
Netherlands Reformed Congregations, e Protestant Reformed
Churches, com uma seleção substancial de versões inglesas dos Sal­
mos Genebreses incluída. Os Presbiterianos Reformados (“Cove­
nanters” = Partidários Reformados) publicaram várias versões, a mais
recente das quais é The Book o f Psalmsfo r Sitting (Livro de Salmos para
Cântico). A Igreja Presbiteriana Reformada Associada vem há muitos
anos publicando sua versão do saltério, chamada Bible Songs (Canções
Bíblicas). O saltério americano mais recente é Trinity Psalter (Saltério
Trindade), publicado para uso pela Igreja Presbiteriana da América e
planejado em associação com Trinity Hymnal (Hinário Trindade).

38 Outros frutos incluem a paz (SI 85.8), a doçura (SI 119.103), a


liberdade (Jo 8.31,32), e o louvor (SI 119.171).

39 Cf. Cateàsmo de Heidelberg P. 88-90.

40 Confissão Belga, Artigo 2.

41 Joseph A. Alexander, The Psalms Translated and Explained (Grand


Rapids, MI: Baker, 1975), pp. 89-90.

42 Henry Smith, “Food for New-Born Babes”, em The Works o f Henry


Smith, Vol. 1. (Edimburgo: James Nichol, 1866), p. 494.
Pós-escrito

Rev. Don K istler

A batalha em favor da Bíblia tem sido ardente e furiosa


desde o começo do tempo. Satanás, o grande inimigo das
almas, iniciou sua investida com uma pergunta: “É assim que
Deus disse?” Eva, ao afirmar que Deus lhe havia dito para
não comer nem tocar na árvore proibida, fez um acréscimo ao
que Deus dissera; o primeiro round foi de Satanás.
A peleja continua. Os romanistas acrescentam a tradição
ao que está escrito na Escritura, além de colocá-la em pé de
igualdade com a Palavra de Deus. Alguns vão ainda mais lon­
ge. O Cardeal Cajetano disse a Martinho Lutero que o papa
estava aàma da Escritura.
Muitos carismáticos e evangélicos põem a sua experiência
pessoal par a par com a Escritura, e por esse meio fazem
acréscimo à revelação escrita de Deus. Ouvimos muitos dize­
rem “Deus me disse...”. Certamente, qualquer coisa que Deus
tenha dito é autorizada e vinculada, por isso acrescentam à
Escritura dessa forma.
Atualmente, a experiência subjetiva e as sensações são co­
locadas em paralelo com a Escritura. Um dos veneráveis co­
laboradores deste volume tem sido acusado de manter a Es­
critura em estima demasiado alta. Tenho sido acusado de
“bibliólatra” por ter em elevado apreço a Escritura. Nenhum
dos colaboradores chegou perto de fazer o que o próprio
Deus fez quando declarou no Salmo 138.2 — “magnificaste
aàm a de tudo o teu nome e a tu a p a la vrd ’. Deus magnificou sua
Palavra acima de seu próprio nome; e, claro, isso é certamen­
te o que a palavra “acima” significa em Hebraico: “sobre” ou
“mais alto que”.
A Escritura mantém uma posição de absoluta autoridade na
vida do crente. Eis por que Paulo escreveu a Tito e deu instru­
ções no capítulo 2 para que homens e mulheres seguissem com
o seguinte motivo — “que a palavra de Deus não seja difamada”.
A Escritura é completa. Deus nos disse tudo quanto é
necessário para vivermos a vida santificada, para a qual ele
nos chamou. Nada mais precisa ser acrescido ao que Deus já
revelou em sua Palavra escrita.
Interpretada adequadamente, a Escritura nos diz, ela mes­
ma, essa verdade. E mesmo que não haja um ensino claro na
Escritura acerca da sua suficiência para todas as questões de
fé e prática, o mesmo caráter de Deus nos levará à mesma
conclusão. Deus é o Deus todo-suficiente; todas as coisas a
respeito dele são perfeitamente adequadas. Seguramente, sua
revelação escrita sobre si mesmo não seria algo em que fal­
tasse suficiência para o seu povo!
Quando Cristo foi tentado, ele citou a Palavra escrita, não
a tradição oral. Na verdade, as muitas vezes em que a palavra
“tradição” é usada na Escritura, ela é uma crítica de seu uso
como palavra. O uso que os apologistas romanos normal­
mente fazem para fundamentar seu argumento está em 2 Tes-
salonicenses 2.15, texto referido por John MacArthur em seu
capítulo sobre a suficiência do texto escrito da Escritura.
O perigo de acrescentar texto à Escritura é evidente, acredito.
Se podemos acrescentar ao que Deus disse, sua Palavra, então
por que não podemos acrescentar ao que ele fez, sua obra reden­
tora? Entretanto, é precisamente isso o que Roma tem feito.
Lamentavelmente, o evangelismo moderno é apenas leve­
mente menos culpado. Embora ainda professando que a revela­
ção de Deus na Escritura é suficiente para a salvação, ele quase,
se não virtualmente, abandonou sua posição em favor das teorias
e técnicas psicológicas modernas para a santificação. Como um
participante num programa de entrevistas em Pittsburgh afirmou:
“A terapia salvou minha vida; mas Deus ajudou muito!”
Mas o apóstolo Pedro tinha a palavra final, creio, quando
escreveu que “p elo seu divino p od er [Jesus Cristo], nos têm sido
doadas todas as cousas que conduzem à vida e à piedade (bios bem
como %pè),pelo conhecimento completo daquele que nos cham oupara a
sua própria glória e virtude” (2Pe 1.3). Tudo quanto pertence à
vida e à piedade vem por meio do verdadeiro conhecimento
dele, a qual nos é dada no Santo Escrito. Os céus podem
declarar a glória de Deus, mas aquele conhecimento nunca pode
salvar. Mas o conhecimento salvífico de Cristo, que salva por
meio da fé somente, é dada a nós na Palavra de Deus escrita.
Moisés declarou que a revelação escrita de Deus não eram
apenas palavras vãs, mas a nossa vida. Que nós possamos
lutar por elas como faríamos por nossa vida, pois certamente
elas são a nossa vida!
Numa época sew finidamentos,
o vesqate do alicerce híOlico

Bruce Bickel
Don Kistler
lames White
]oel Beeke
]ohn Armstrong
]ohn MacArthur, |r.
Michael Horton
Raly Lanning
RC Sproul
Robert Godfrey
Sinclair Ferguson

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