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José Maria Vigil

(organizador)

POR UMA
TEOLOGIA
PLANETÁRIA
POR UMA
TEOLOGIA
PLANETÁRIA
José Maria Vigil
(organizador)

Michael AMALADOSS • Marcelo BARROS •


Agenor BRIGHENTI • Edmund Kee-Fook CHIA • Amín EGEA •
Paul F. KNITTER • David R. LOY • Laurenti MAGESA •
Jacob NEUSNER • Teresa OKURE • Irfan A. OMAR •
Raimon PANIKKAR • Peter C. PHAN • Aloysius PIERIS •
Richard RENSHAW • José Amando ROBLES •
K. L. SESHAGIRIRAO • Afonso Maria Ligorio SOARES •
Faustino TEIXEIRA • José Maria VIGIL
A ssociação E cumênica de T eólogos/as do T erceiro M undo

POR UMA
TEOLOGIA
PLANETÁRIA

ASETT
EATWOT ãulinas
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Por uma teologia planetária / José Maria Vigil, (organizador) ; [tradução Cacilda R.
Ferrante, Gilmar Saint’Clair Ribeiro e Vera Joscelyne]. - São Paulo: Paulinas, 2011.

Título original: Por los muchos caminos de Dios V : hacia una teologia planetaría.
Vários autores.
ISBN 978-85-356-2870-8

1. Cristianismo e outras religiões 2. Pluralismo religioso 3. Teologia I. Vigil,


José Maria.

11-09066 CDD-261.2

índice para catálogo sistemático:


1. Teologia planetária: Pluralismo religioso 261.2

Título original da obra: Por los muchos caminos de Dios V -H acia una teologia planetaría
© ASETT-LA (ASSOCIAÇÃO ECUMÊNICA DE TEÓLOGOS/AS
DO TERCEIRO MUNDO - REGIÃO AMÉRICA LATINA)

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Dr. Antonio Francisco Leio
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Dra. Maria Alexandre de Oliveira
Dr. Matthias Grenzer
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Editores responsáveis: Vera Ivanise Bombonatto
Afonso M, L. Soares
Tradução: Cacilda R. Ferrante,
Gilmar Saint'Clair Ribeiro, Vera Joscelyne
Copidesque: Cirano Dias Pelin
Coordenação de revisão: Marina Mendonça
Revisão: Equipe Paulinas
Assistente de arte: Sandra Braga
Gerente de produção: Felício Calegaro Neto
Capa e diagramação: Manuel Rebelato Mlramontes

Ia edição-2 0 1 1

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incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou
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© Pia Sociedade Filhas de São Paulo—São Paulo, 2011
Sumário

C onvite: C aminhando rumo a uma teologia planetária,


ABERTA E LIVRE.................................................................................................9
Os coautores

A presentação............................................................................................... 11
José Maria Vigil

A consulta ....................................................................................................17

P onto de partida: R umo a uma teologia pluralista,


INTER-RELIGIOSA, LAICA, PLANETÁRIA... O FUTURO DA TEOLOGIA
COMO PONTO DE PARTIDA DE NOSSA PESQUISA............................................21
Comissão Teológica Internacional ASETT/EATWOT

As RESPOSTAS.................................................................................................45
S er um cristão- h in d u ............................................................................... 47
Michael Amaladoss

A FRÁGIL TRANSPARÊNCIA DO ABSOLUTO. TEOLOGIA PARA UMA


ESPIRITUALIDADE TRANSRELIGIOSA...............................................................55
Marcelo Barros

T eologia e pluralismo religioso. Q uestões metodológicas.......... 81


Agenor Brighenti

A TEOLOGIA INTERCONFESSIONAL É POSSÍVEL?...........................................93


Edmund Kee-Fook Chia

C ontribuição B ahá ’í para uma teologia “ transreligiosa” ......... 101


Amín Egea

B ases para uma teologia pluralista multiconfessional............... 111


Paul F. Knitter
R eflexões budistas sobre a teologia interconfessional..............121
David R. Loy

T eologia interconfessional: a contribuição nativa africana


para o debate.............................................................................................. 129
Laurenti Magesa

“R eligiões em geral?” É plausível uma teologia


interconfessional na universidade? ....................................................139
Jacob Neusner

A te o lo g ia in te rc o n fe ssio n a l é possível? S e n ão , p o r q u ê ? ....... 149


Teresa Okure

T eologia interconfessional mundial do pluralismo religioso:


UMA PERSPECTIVA MUÇULMANA..................................................................163
Irfan A. Omar

T eologia da libertação e libertação da teologia ..........................173


Raimon Panikkar

C ristologia interconfessional: possibilidade ou aspiração? .....181


Peter C. Phan

F idelidade e imparcialidade na comunidade interconfessional:


rumo a uma teologia de pluralismo religioso .................................191
Aloysius Pieris

A experiência religiosa como fundamento para uma possível


teologia interconfessional .................................................................. 201
Richard Renshaw

R umo a uma teologia pós- confessional e pós- religiosa.


E xperiência religiosa, símbolo e teologia pós- religiosa ............. 215
José Amando Robles

T eologia interconfessional: uma perspectiva hindu......................225


K. L. Seshagiri Rao

O sincretismo à luz de uma teologia interconfessional:


algumas notas preliminares ................................................................. 239
Afonso Maria Ligorio Soares
253
M arcos de uma mística inter- religiosa .
Faustino Teixeira

O SEDUTOR FUTURO DA TEOLOGIA............................................................ 267


José Maria Vigil

C onclusão aberta....................................................................................279
José Maria Vigil, Luiza E. Tomita e Marcelo Barros

Os c o a u to r e s ............................................................................................ 285
Convite:
Caminhando rumo a uma
teologia planetária,
aberta e livre

Este livro está escrito para todos aqueles que estão inquietos
sobre o futuro da teologia: Para onde vai? Para onde pode ir?
Para onde parece que irá?
O resultado da pesquisa que este livro apresenta, dirigida a
pessoas dedicadas à teologia em todo o mundo e nas diferentes
religiões mundiais, faz um balanço não só positivo, mas entu-
siasmante: em que pese o que muitos acreditam, a teologia se
move, está evoluindo, se arrisca, se autoquestiona, se pergunta
sobre as transformações que tem de realizar para ser teologia
de hoje, e teologia do futuro.
Como disciplina religiosa que é, sempre esteve tingida por
uma auréola de eternidade, de indiscutibilidade, de imutabili­
dade. Parecia que a teologia - ciência sagrada! - não poderia
mudar de sua figura clássica como patrimônio das religiões e
das Igrejas. Mas isso acabou. Faz décadas que alguns pioneiros
fizeram a proposta de uma world theology, uma teologia mun­
dial - hoje diríamos uma “teologia planetária”, para incluir não
apenas o mundo humano mas também o mundo cósmico, a Gaia.
Era a proposta de avançar rumo a uma teologia que saísse do
gueto de sua própria confissão religiosa, para ser capaz de falar
a toda a sociedade, esta sociedade atual que cada vez é mais
Convite: Caminhando rumo a uma teologia planetária. aberta e uvbe

religiosamente plural. Neste mundo atual, a teologia estritamente


monoconfessional está condenada a não ser ouvida, talvez até a
não ser sequer entendida pela sociedade como conjunto.
Perguntamos a estes(as) teólogos(as), e suas respostas nos
deixam apresentar um atraente panorama: a teologia do futuro
parece se encaminhar rumo a um modelo pluralista (sem o com­
plexo clássico de superioridade religiosa e sem a exclusividade
da verdade que acompanhou tradicionalmente a teologia), rumo
a uma teologia pluriconfessional, que poderíamos chamar tam­
bém inter-religiosa, ou multirreligiosa, ou (sempre que se matize
bem a palavra) transreligiosa. Há os que falam também de uma
teologia pós-religional (religiosa, porém além das religiões, em
um plano mais profundo), laica nesse sentido, e com uma cons­
ciência planetária nesta nova sociedade do conhecimento que de
alguma maneira está se fazendo presente pouco a pouco em todo
o planeta, até mesmo nos lugares onde acreditam não notá-lo.
Esses profissionais da teologia nos oferecem algumas páginas
apaixonantes, dignas de serem estudadas e meditadas, com seus
argumentos positivos e negativos, para um bom discernimento.
Esperamos que a conclusão de leitores e leitoras seja, como a
nossa, a de que correm bons tempos para a teologia, tempos de
efervescência, de mutação, de novas propostas, de experiências
arriscadas, de futuro aberto. Caminhamos a bom passo, não sem
dificuldades, rumo a uma teologia aberta e livre.
Acompanhe-nos para comprová-lo na leitura destas páginas.
Os Coautores
Apresentação

Por uma teologia planetária é o quinto e último volume do


projeto “Pelos muitos caminhos de Deus”. Esta série de livros
foi fruto de uma iniciativa a princípio organizada pela Comissão
Teológica Latino-Americana da ASETT/EATWOT e assumida
e completada neste último volume pela sua Comissão Teológica
Internacional. A intenção que moveu desde o início este trabalho
coletivo foi a de tentar “cruzar a teologia da libertação com a
teologia do pluralismo religioso”, teologias que, quando come­
çamos este projeto de pesquisa, permaneciam cada uma em seu
âmbito, sem contato nem diálogo. Hoje, ao concluir o projeto,
vários anos depois, podemos dizer que a teologia da libertação
e a teologia do pluralismo religioso não são duas desconhecidas,
e sim que já existe muita reflexão pela frente que testemunha
seu fecundo diálogo.
Mas o objetivo de mútuo encontro e de diálogo entre essas
duas teologias superou as expectativas que abrigávamos no
tocante ao itinerário a percorrer. Depois de nos perguntarmos
pelos “desafios do pluralismo religioso à teologia da libertação”
(primeiro volume), e de dar a seguir os primeiros passos “rumo
a uma teologia cristã e latino-americana do pluralismo religioso”
(segundo), tivemos a ousadia de nos propormos e elaborar já um
primeiro esboço daquilo que seria uma “teologia latino-ame­
ricana pluralista da libertação”, no terceiro volume. No quarto
volume abrimos nossas janelas ao mundo para ampliar nosso
projeto aos cinco continentes, à busca de uma “teologia cristã
libertadora intercontinental do pluralismo religioso”. Havíamos
chegado a uma meta de certa maneira insuperável, além da qual
A presentação

não seria possível encontrar uma forma viável de “teologia”?


Assim nos sugeriam muitos, afirmando que a teologia só pode
se dar no interior de uma confissão religiosa concreta... Seria
possível ampliar mais as perspectivas?
A dinâmica que havia inspirado todo esse processo gradual
de busca acenava para uma última meta, pelo que, ao menos,
haveria de se perguntar, a saber, a de uma teologia que já não
fosse monorreligiosa e confessional, e sim multirreligiosa,
interfaith, talvez nem sequer religional, ou seja, nem sequer
vinculada ou limitada ao marco das religiões, mas aberta às
perguntas mera e simplesmente humanas, e abarcando não só
o antropocentricamente humano como o integralmente biocên-
trico e cósmico, planetário...
Definitivamente, a pergunta última que ficava por enfrentar
e responder era: para onde está, talvez, caminhando a teologia
que se propõe sincera e corajosamente as exigências da evolução
radical desta sociedade não só plural e pluralista, mas também
unida e em vias de unificação cada vez maior entre si e com a
natureza e com o cosmos? Qual seria o último estrato ou nível da
teologia a que hoje nos é permitido sonhar, embora certamente
não nos seja permitido ainda ter acesso?
Com esse objetivo em mente, pusemos em marcha o processo
de consulta e seu resultado é este volume que o leitor tem em
suas mãos. Com os sonhos aos quais este livro dá expressão,
coroa-se o processo de busca que a série representa. Obviamen­
te, como o leitor notará em seguida, o panorama resultante não
oferece um roteiro concreto e delimitado do que seja ou será
essa “teologia planetária” que se deixa intuir... O panorama é,
antes, o de uma intuição brumosa que se adivinha entre as muitas
formas de ver diversas, e em evolução constante. Será preciso
dar tempo ao tempo, para que o horizonte vá se esclarecendo,
mas, em todo caso, acreditamos que a busca que este volume
José Maria Viqll

representa significa a atualização desse debate, já clássico na


ágora teológica, e constituirá uma contribuição positiva a esta
já longa tarefa de ajudar a teologia a dar respostas o mais acer­
tadas possível à nova e sempre cambiante situação de nosso
mundo atual.
Embora a busca que representa este quinto volume esteja
precedida pela dos anteriores, o volume é, como tal, inteiramente
autônomo e suscetível de ser lido independentemente, com pleno
sentido, sem necessitar da leitura dos volumes anteriores. Não
obstante, para concluir esta apresentação, fazemos memória
sucinta dos livros da série, tanto para facilitar sua visão geral
para quem não os conhece como para fazer presente o panorama
completo que emoldura este volume:
1. O primeiro livro, publicado em 2003, se subintitulou
“Desafios do pluralismo religioso à teologia da libertação”.1Só
pretendia desbastar esse novo caminho indicando os principais
desafios que deveriam ser encarados. Em português, foi publi­
cado pela editora Rede.1
23A Editrice Missionária Italiana (EMI),
de Bolonha, o publicou sob o título de I volti Dio
2 .0 segundo livro, publicado em 2004, se subintitula “Rumo
a uma teologia cristã latino-americana do pluralismo religioso” e
pretendeu dar algumas “primeiras respostas” àqueles desafios.4
Sua publicação é sempre dupla, em espanhol, no Equador, e

1 ASETT. Por los muchos caminos de Dios. Desafios dei pluralismo religioso a la
teologia de la liberación. Quito: Verbo Divino, 2003.187p. (Colección “Tiempo
Axial”, n. 1.)
2 ASETT. Pelos muitos caminhos de Deus. Desafios do pluralismo religioso à
teologia da libertação. Goiás: Rede, 2003. 160p.
3 BARROS, M.; TOMITA, L. E.; VIGIL, J. M. (a cura). I volti dei Dio liberatore.
Le sfide dei pluralismo religioso. Bologna: Editrice Missionária Italiana, 2004.
160p. Veja: <http://www.emi.it/schede/1509-3.html>.
4 VIGIL, J. M.; TOMITA, L. E.; BARROS, M. (orgs.). Por los muchos caminos de
Dios. Hacia una teologia cristianay latinoamericana dei pluralismo religioso.
Quito: Abya Yala, 2004. 239p. (Coleccíon “Tiempo Axial”, n. 3.)
A presentação

em português, no Brasil.5 Apareceu também em italiano, pela


mesma editora de Bolonha,6com um amplo “epílogo” do teólogo
Cario Molari,7 que, desse modo, deu início a um diálogo a um
só tempo crítico e acolhedor dos teólogos europeus com os(as)
teólogos(as) latino-americanos(as).
3. O terceiro livro, concluído em 2005, pretendeu ser uma
primeira tentativa de uma inicial “Teologia latino-americana
pluralista da libertação”.8Também foi publicado em português,
no Brasil,9e está em processo de publicação em italiano,101com
uma participação de Maurilio Guasco, continuando o já iniciado
diálogo italiano com a teologia do Terceiro Mundo.
4. O quarto livro apareceu em 2006 e pretende avaliar que
momento atravessa no mundo a construção da “teologia plu­
ralista da libertação”, a partir de um âmbito intercontinental,
portanto já não só latino-americano.11 Também foi publicado
no Brasil.12
5. Como dissemos, na gradação de níveis em que a série foi
concebida este último livro coroa a série, tratando da questão de

5 TOMITA, L. E.; BARROS, M.; VIGIL, J. M. Pluralismo e libertação. Por uma


teologia latino-americana pluralista a partir da fé cristã. São Paulo: Loyola,
2005. 23 lp.
6 BARROS, M.; TOMITA, L. E.; VIGIL, J. M. (a cura). Verso una teologia dei
pluralismo religioso. Postfazione di Cario Molari. Bologna: Editrice Missionária
Italiana, 2005. 270p.
7 Ibidem, pp. 239-267.
3 VIGIL, J. M.; TOMITA, L. E.; BARROS, M. Por los muchos caminos de Dios.
Teologia latinoamericana pluralista de la liberación. Quito: Abya Yala, 2006.
207p. (Colección “Tiempo Axial”, n. 6.)
9 TOMITA, L. E.; BARROS, M.; VIGIL, J. M. (orgs.). Teologia latino-americana
pluralista da libertação. São Paulo: Paulinas, 2006. 309p.
10 Pela Pazzini Editore, de Rimini, Itália.
11 VIGIL, J. M.; TOMITA, L. E.; BARROS, M. Por los muchos caminos de Dios.
Teologia liberadora intercontinental dei pluralismo religioso. Quito: Abya Yala,
2007. 255p. (Colección “Tiempo Axial”, n. 8.)
12 VIGIL, J. M.; TOMITA, L. E.; BARROS, M. Teologia pluralista libertadora
intercontinental. São Paulo: Paulinas, 2007.390p.
José Maria Vigil

uma possível “teologia multirreligiosa e pluralista da libertação”,


a partir de uma perspectiva obviamente mundial. Por “multir­
religiosa” queremos entender algo mais que “inter-religiosa”,
algo mais também que uma teologia dirigida à preocupação
do “diálogo inter-religioso”. Ao fim e ao cabo, o diálogo não
pode ser mais que um meio, que apontará para um fim ulterior.
Como será a teologia quando o diálogo inter-religioso tiver
alcançado seu fim, embora não alcance seu final? Alguns a
chamam teologia interfaith, world theology, teologia mundial,
multirreligiosa, global, planetária... A esse sonho e à sua pro­
blemática está dedicado este quinto livro. Obviamente, de um
modo também multirreligioso.
Quanto à sua publicação em papel e em espanhol, esta série
“Por los muchos caminos de Dios” foi publicada dentro da
coleção teológica “Tiempo Axial”, pela Editora Abya Yala, em
Quito, Equador, e tem sua página na rede: <http://tiempoaxial.
org>. Como dissemos em outras ocasiões, a gradação do iti­
nerário seguido pela série dos cinco livros salta à vista, quase
graficamente, em seus cinco níveis:
• o primeiro livro se limita a apontar os desafios; os quatro
seguintes tratam de construir positivamente uma teologia
nova;
• os dois primeiros estão à busca do “paradigma pluralista”,
enquanto os três últimos já o assumem conscientemente.
• os três primeiros são “latino-americanos” e fazem teologia
latino-americana; os dois últimos superam esse âmbito ge-
ocultural situando-se em uma perspectiva intercontinental
e mundial.
• os quatro primeiros são de teologia “cristã”, enquanto o
quinto já é teologia “multirreligiosa”;
Apresentação

• os cinco livros são teologia da libertação a partir de uma


perspectiva pluralista, cruzando, pois, a teologia da libertação
com a teologia do pluralismo religioso, objetivo da série “Por
los muchos caminos de Dios”.
Não podemos terminar sem expressar nosso agradecimento
muito sincero a todos(as) os(as) autores(as), que, aceitando o
desafio, tornaram possível esta obra coletiva, e renunciaram
aos seus direitos autorais para fazer este livro o mais acessível
possível ao público.
Queremos agradecer uma vez mais ao
chaftliches Instituí, de Aachen, por seu apoio na realização da
edição deste volume. E, sem dúvida, a Paulinas Editora, do
Brasil, que, mais uma vez, generosamente abre um importante
espaço em sua programação para colaborar com a ampliação
do debate aqui proposto.
E agradecemos, finalmente, aos leitores, aos interlocutores,
também a nossos críticos..., sua compreensão, suas críticas e
sugestões para continuarmos avançando na construção dessa
teologia nova, planetária, que se elabora “pelos muitos caminhos
de Deus” e que, esperamos, a cada dia seja mais conhecida e
reconhecida.
A própria realização de um livro como este supõe o exercício
concreto do diálogo como caminho espiritual e humano, que,
esperamos, possa ser um dia a prática cotidiana de todas as
religiões da humanidade.

Com issão Teológica Internacional (2006-2011)


da A ssociação de Teólogos(as) do Terceiro Mundo (ASETT)/
Ecumenical A ssociation o f Third World Theologians (EATWOT).
A consulta

A pesquisa que veicula este livro foi elaborada mediante uma


consulta dirigida a uma seleção de teólogas(os) de diferentes
religiões, de todo o mundo, por meio das quatro Comissões
Teológicas continentais da EATWOT (asiática, africana, latino-
-americana e a representante das minorias dos Estados Unidos).
A consulta foi realizada nestes termos:
Noslivros anteriores desta série fo i estudada a longa ca­
minhada do Cristianismo e da teologia, desde os estágios ar­
caicos do exclusivismo, passando pelo atualmente hegemônico
inclusivismo, caminhando para um “pluralismo de princípio”
e rumo a uma releitura pluralista do Cristianismo. Suposta
esta opção básica por uma teologia sinceramente pluralista
por princípio, a pergunta que nos propomos - especificamente
sobre a teologia - é a seguinte:
Existe na evolução prevista da teologia algum estágio além
da “teologia confessional pluralista”?
É suficiente a chamada “teologia comparativa”, aquela na
qual um(a) teólogo(a), enraizado(a) em sua própria tradição,
desenvolve uma teologia do pluralismo em diálogo com outras
tradições religiosas?
É possível pensar em uma teologia pluralista que se baseie
em, e trabalhe com, categorias, fontes, princípios, imagens e
metáforas não só de uma religião, mas de várias? É possível
uma teologia não monoconfessional, mas aberta e pluriconfes-
sional, além de pluralista?
ACONSULTA

Que papel teriam nela os pobres, a regra de ouro e a opção


pelos pobres?
Finalmente, se o mais importante no mundo de hoje é uma
ação urgente diante:
• da pobreza e da injustiça que sofre meia humanidade,
• dos choques de civilizações e dosfundamentalismos religio­
sos que impedem a paz,
• da ameaça iminente de uma catástrofe ecológica planetária,
como teria de ser a teologia de que hoje o mundo necessita
para conseguir que as religiões se decidam por primeira vez na
história a unir-se para trabalhar pela salvação da humanidade
e da natureza?
A consulta foi resumida em algumas perguntas concisas:
• É possível uma “teologia inter-religiosa, multirreligiosa”,
planetária, world theology...?
• Há elementos concretos, temas e sugestões para desenvolver
uma teologia interfaitW
• Qual a relação entre a teologia intetfaith, a universal “regra
de ouro” e a opção pelos pobres?
• E possível uma espiritualidade interfaitW Além de pluralista,
ela será laica e pós-religional?
O processo de envio e recepção de respostas foi mais traba­
lhoso e demorado do que o previsto. Não poucas das pessoas
consultadas estiveram à vontade com as perguntas: algumas as
consideraram inusuais e desconcertantes; outras as rejeitaram,
como improcedentes. Com outras foi preciso entabular um
diálogo de esclarecimento. É claro que houve quem as tenha
considerado pertinentes, tanto para responder positiva como
José Maria Víoil

negativamente. O variado leque de respostas coligidas dá


testemunho disso. Obviamente, este volume recolhe todas as
respostas que nos chegaram, sem nenhum filtro.

m
Ponto de partida:
Rumo a uma teologia
pluralista, inter-religiosa,
laica, planetária...
O futuro da teologia
como ponto de
partida de nossa pesquisa

O itinerário histórico-teológico que os precedentes volu­


mes da série “Por los muchos caminos de Dios” nos fizeram
percorrer pôs diante de nossos olhos, por um lado, a profunda
evolução que a teologia experimentou nos últimos tempos ao
ritmo de seu encontro com as outras religiões e, por outro lado,
nos fa z suspeitar que essa evolução não se concluiu, mas que,
antes, novas eprofundas transformações esperam a teologia no
futuro. É a própria evolução das sociedades e da humanidade
global que está impulsionando essa transformação incessante
da teologia.
É essa visão e essa intuição que inspiraram e guiaram a
pesquisa que este quinto volume recolhe. Nós a expomos de um
modo “histórico-genético”, sabendo que não pretende defender
nenhuma tese, mas apenasfazer presente o contexto a partir do
qual realizamos essa pesquisa, e criar um marco que permita
deixar voar livremente a imaginação criadora.
As palavras em negrito ao longo deste texto indicam os mar­
cos principais da evolução que está experimentando a teologia.

Tradicionalmente, em princípio, as teologias experimentaram


a mesma evolução que as religiões às quais pertencem: quando
essas religiões eram exclusivistas e pensavam que “extra me
nulla salus”, que fora delas não havia salvação, também as teolo­
gias se sentiram exclusivistas e pensaram que fora de cada uma
delas não havia outra teologia verdadeira, nem sequer verdadeira
teologia. Nessa etapa exclusivista, a teologia de cada religião
era um mundo fechado, circunscrito à própria religião, embora
cada teologia pensasse que fosse - isso sim - uma teologia
universal, e única (dotada de unicidade salvífíca). Paradoxal­
mente, as teologias exclusivistas mais fechadas se sentiam e se
pensavam a si mesmas com a maior universalidade imaginável:
elas e só elas eram “a única teologia verdadeira neste mundo”.
A comunicação e o diálogo entre teologias era, naquela etapa,
verdadeiramente impensável.
Há algumas décadas, pouco a pouco, as perspectivas e atitu­
des exclusivistas deram lugar, em todas as latitudes do mundo, a
outras de cunho inclusivista, tanto nas religiões como em suas
teologias. As teologias passavam a considerar a existência de
outras teologias, embora as olhassem a partir de uma perspectiva
de “superioridade includente”. O inclusivismo traz dentro de si
uma boa dose de exclusivismo, ainda que atemperado. Por isso,
um verdadeiro diálogo, com essas outras teologias, continuava
sendo quase impossível, já que não podia haver “paridade” entre
os interlocutores que o fizesse possível. Também no âmbito do
inclusivismo, cada teologia segue exclusivamente o caminho
de sua própria religião.
Comissão Teológica Internacional ASETVEATWOT

O passado século XX foi o século do ecumenismo cristão.


A Conferência de Edimburgo de 1910 marcou o início de uma
verdadeira eclosão neste campo.1Embora se tratasse de um fe­
nômeno intracristão, portanto não propriamente inter-religioso,
oferece lições muito interessantes para o âmbito inter-religioso.
O ecumenismo cristão não só melhorou as relações entre as Igre­
jas cristãs, mas permitiu o surgimento de uma espiritualidade e
de uma teologia ecumênicas, comuns, já não privativas de uma
determinada confissão. Sem perder a adscrição à sua própria
confissão, teólogos e teólogas chegavam a compartilhar e a viver
uma espiritualidade verdadeira e sinceramente ecumênica, e
chegaram a produzir em muitos casos teologia verdadeiramen­
te interconfessional, realmente ecumênica, sem sinais de uma
confessionalidade exclusiva, uma teologia que estava dirigida a
um público cristão que incluía as diferentes confissões.
Diante dessa experiência do ecumenismo, devemos nos fazer
uma pergunta provocativa: não poderia dar-se algo semelhante,
paralelamente, no âmbito inter-religioso? Podemos imaginar
um suposto “ecumenismo inter-religioso” que chegasse a fazer
possível o surgimento de uma “teologia inter-religiosa”, ver­
dadeiramente tal, sem limites de confessionalidade religiosa,
dirigida a todas as pessoas religiosas em conjunto? Antes de
responder, vejamos que a evolução da teologia tinha diante de
si um longo caminho.
Como um passo ulterior, e muito diferente do ecumenismo
intracristão, deve-se destacar o que se chamou de macroe-
cumenismo, característico da teologia latino-americana da1

1 LATOURETTE, Kenneth. Ecumenical Bearing of the Missionary Movement


and the International Missionary Council. In: ROUSE, Ruth; NEILL, Stephen
(orgs.). A History o f the Ecumenical Movement. Genève: World Council of the
Churches, 1986.
P onto de partida

libertação.2Não era um simplesmente intracristão, mas abrangia


também outras religiões, e até, de modo mais chamativo, incluía
o ateísmo militante e comprometido. Muitos textos e livros de
teologia da libertação - macroecumênica por natureza - foram
não só “ecumênicos” (transversalmente comuns às diferentes
confissões e denominações cristãs), mas “macroecumênicos”,
isto é, dirigidos a um público no qual cabiam pessoas que de
fato não eram cristãs, mas de alguma outra religião, ou até
mesmo pessoas positivamente “ateias”, que compartilhavam a
paixão por uma Utopia libertadora e humanizadora, sobre cujo
nome e natureza nem elas nem nós sentíamos necessidade de
discutir. Essa Utopia mobilizava recursos espirituais capazes de
unir as pessoas em uma esperança comum, com um discurso, a
“teologia macroecumênica”, que não só não separava, mas que
possibilitava uma união muito poderosa.
Também aqui uma pergunta: não chegará a dar-se algo se­
melhante na teologia mundial, quando as condições de infraes-
truturas e espirituais da sociedade tornem possível um discurso
religioso que se responsabilize pela unidade de destino e de
esperança que une toda a humanidade e as suas religiões? Não
chegará a haver algum dia uma teologia “macroecumênica, mas
a um nível inter-religioso”?
A teologia da libertação do século passado foi espontanea­
mente inclusivista. Nas décadas em que nasceu não era pensável
outra coisa, pois não havia sido sequer tematizada a perspectiva
pluralista na área geográfica onde nasceu a teologia da liberta­
ção naqueles anos 1960-1980. Esta tematização, e a elaboração
inicial da teologia pluralista do pluralismo religioso, se fez por

2 CASALDÁLIGA, Pedro; VIGIL, José Maria. Espiritualidad de la liberación.


Managua: Editora Envio, 1992. capitulo “Macroecumenismo”, p. 218. The
Spirituality o f Liberation. London: Bums & Oates, 1994. chapter “Macro-
-Ecumenism”, p. 165. Id., Political Holiness. Maryknoll: Orbis, 1994.

BI
Comissão Teológica Internacional ASETT/EATWOT

aqueles mesmos anos na área anglo-saxã e asiática. Nos últi­


mos anos do século XX se deu o encontro entre alguns(mas)
teólogos(as) latino-americanos(as) com a teologia anglo-saxã do
pluralismo religioso. E só a partir de 2000 - até onde sabemos
- uma entidade como a EATWOT assumiu, em sua Assembléia
Geral, realizada precisamente na América Latina, provocar um
encontro e uma mútua fecundação da teologia da libertação
com a teologia do pluralismo religioso. Como provavelmente
o leitor conhecerá, tal projeto cristalizou na série “Por los mu-
chos caminos de Dios”,3 em uma ordem gradual progressiva,
de encontro, diálogo, união e fecundidade, cujo último volume
é este que o leitor está lendo.
O primeiro processo de encontro e de união deu logo lugar
à teologia da libertação pluralista,4 ou teologia do pluralismo
libertadora, uma forma de fazer teologia que se instala na pers­
pectiva pluralista, por um lado, e, por outro lado, está enraizada
também no “lugar social” da opção pelos pobres, não só em
âmbito latino-americano, mas intercontinental, mundial.
Especialmente nesse âmbito mundial, a convivência religiosa
é religiosamente plural. A sociedade mundial, os países - até
mesmo aqueles tradicionalmente monorreligiosos - , as socieda­
des, as cidades, os bairros, os blocos de moradias... se fizeram
decididamente multirreligiosos. Não é possível querer dirigir-se
à sociedade atual e pretender fazê-lo a partir de uma perspectiva
monoconfessional. Já não é possível entabular um debate de
qualquer tipo com a opinião pública da sociedade como conjunto
e pretender fazê-lo a partir das referências exclusivas de uma
religião ou confissão. Um tal discurso ficaria simplesmente
fora de contexto histórico, deslocado, por desconhecimento da

3 Publicados por Abya Yala, Quito, a partir de 2003.


4 Assim o testemunham os volumes II e III da coleção.
Pomo DE PARTIDA

configuração inevitavelmente plural da sociedade atual. Igual­


mente, uma teologia que queira dirigir sua palavra à sociedade,
ao mundo, à humanidade, já não pode fazê-lo se limitando e
utilizando apenas as referências provincianas de sua própria con­
fissão, levando em consideração somente sua visão confessional,
utilizando somente as referências ao seu próprio patrimônio
simbólico... Expõe-se não só a não ser atendida, mas a não ser
sequer entendida. A sociedade é plural, e a consciência social,
e a opinião pública - e até, diríamos, o “subconsciente coletivo
social” - introjetaram tanto o fato inevitável da pluralidade
como os direitos e obrigações do pluralismo. Quem quiser se
colocar fora desse reconhecimento se automarginaliza, não será
atendido, e provavelmente também não será entendido.
Já o dizia faz alguns anos Paul Knitter:

Hoje os teólogos têm de reconhecer, teórica e praticamen­


te, que a teologia já não pode ser estudada nem elaborada
a partir de dentro de uma única tradição religiosa. Certa­
mente, os teólogos têm de estar enraizados na fé de uma
religião, mas, se permanecem só dentro dela, não estarão
à altura daquilo que seu trabalho exige deles. Não estarão
fazendo teologia no mundo, neste mundo pluralista de
hoje; não estarão perseguindo a verdade que inclui, mas
a que exclui a outros.
Hoje, não se pode estar em busca da verdade, não pode
sequer conhecer-se a si mesmo nem conhecer sua própria
religião, a menos que conheça a de outros.5

O havia dito também Paul Tillich, poucos dias antes de sua


imprevista morte. Durante dois anos, com Mircea Elíade, esti-
vera dirigindo um seminário sobre história das religiões, uma
temática que o afetou profundamente. Em 12 de outubro de 1965,

5 KNITTER, Paul. No Other Name? Maryknoll: Orbis, 1985. p. 224.


Comissão Teológica Internacional ASETT/EATWOT

pronunciou uma conferência na qual - o testemunho é de Mircea


Elíade - “declarou que, se tivesse tido tempo, teria escrito uma
nova Teologia sistemática orientada para toda a história das
religiões e em diálogo com ela”.6 É sabido que a experiência
e o contato com o pluralismo religioso transformam a própria
vivência religiosa e levam a um novo modo de compreender o
panorama religioso, e, consequentemente, à necessidade de re­
escrever a teologia, como confessou Tillich. Hoje está claro para
nós que uma teologia que elabore seu discurso a partir de umas
categorias estritamente confessionais, de seu próprio domínio
doméstico, desconhecendo a pluralidade e as regras e direitos
do pluralismo, será uma teologia de outro tempo, que não estará
à altura das condições reais das sociedades do mundo atual.
A partir dessa consciência de multirreligiosidade, logo se le­
vantou a possibilidade de uma teologia universal das religiões,
que deveria transcender e integrar ao mesmo tempo a identi­
dade de cada religião. Seria uma teologia mundial, adequada
a toda a humanidade e sem vinculação especifica a nenhuma
comunidade religiosa particular, mas uma teologia que receberia
contribuições de todas as tradições religiosas.7
Não podemos deixar de citar aqui Wilfred Cantwell Smith,
um dos teólogos que mais se destacou na defesa dessa linha de
evolução rumo a uma “teologia mundial” ou world theology:8

6 ELIADE, Mircea. Paul Tillich y la historia de las religiones, ensayo introductorio


a P. Tillich. Elfuturo de las religiones. Buenos Aires: Aurora, 1976.
7 TEIXEIRA, Faustino. Teologia de las religiones. Una visiónpanorâmica. Quito:
Abya Yala, 2005. p. 14. (Colección “Tiempo axial”, n. 4.)
8 CANTWELL SMITH, Wilfred. Towards a World Theology. Maryknoll: Orbis,
1986 (publicado anteriormente por Macmillan Press, London, 1981). Também:
SWIDLER, L. Interreligious and Interideological Dialogue. In: SWIDLER, L.
(ed.). Toward a Universal Theology ofReligion. New York: Orbis Books 1987.
p. 5-50.

wa
P onto de partida

Chegará logo o dia em que um teólogo que tente elaborar


sua teologia sem se dar conta de que o faz como mem­
bro de uma sociedade mundial na qual outros teólogos,
igualmente inteligentes, igualmente piedosos, são hindus,
budistas, muçulmanos, e sem se dar conta de que seus
leitores provavelmente são budistas, õu têm uma esposa
muçulmana ou têm colegas de trabalho hindus, tal te­
ólogo estará desatualizado, como quem tenta elaborar
seu pensamento sem conhecer o que pensou Aristóteles
sobre o mundo, ou que os existencialistas suscitaram
novas questões.9

Ewert Cousins concorda:

A teologia cristã sistemática permaneceu enclausurada


na cultura ocidental e em sua história intelectual [...].
A teologia cristã continua impermeável à maioria das
religiões do mundo [...]. Esta situação deve acabar. O
encontro das religiões do mundo reclama a construção
de uma teologia sistemática que possa abraçar dentro
de seu horizonte a experiência religiosa do conjunto da
humanidade [...] É uma tarefa inédita. Nunca antes na
história do Cristianismo se nos apresentou esse desafio.10*

Esta tarefa de reescrever a teologia, e/ou de recriar seu con­


teúdo, não implica apenas uma novidade no objeto, mas exige
também uma novidade no sujeito, isto é, faz-se mister um novo
tipo de teólogo, com um novo tipo de consciência, uma cons­
ciência multidimensional, intercultural.11

9 Id., Faith o f Other Man, p. 123.


10 COUSINS, E. Raimundo Panikkar and the Christian Systematic Theology of the
Future. Cross Currents 29(1979)145-146. Ver também: SLATER, Peter. Towards
a responsive Theology of Religions. Studies in Religion 6(1977)507-514.
" “Esta nova teologia pede um novo tipo de teólogo, com um novo tipo de cons­
ciência: uma consciência intercultural multidimensional”: COUSINS, ibid.
Comissão Teológica Internacional ASETT/EATWOT

Na evolução atual, cada vez mais podemos dizer que vamos


rumo a uma sociedade na qual já não existe uma “religião local”
que exclui outras, mas que se trata de sociedades multirreligio-
sas, plurais, nas quais pode haver uma religião majoritária, mas
não uma religião excludente. A pluralidade veio para ficar, e
para ficar com todos os direitos. E a sociedade culta moderna
já assumiu esses direitos. Além de sua própria confissão reli­
giosa particular, uma sociedade culta - seja na universidade,
na política, nos meios de comunicação, ou na opinião pública
- j á não se conforma com levar em consideração a posição de
uma religião sobre os problemas, mas quer conhecer e levar em
conta as distintas posições e opiniões adotadas pelas diferentes
religiões a respeito desses problemas.12No âmbito da teologia
isso dá lugar à chamada teologia comparada,13 que não é um
sucedâneo menor do enciclopedismo nem implica sincretismo,
mas uma abertura democraticamente conseqüente rumo à
pluralidade religiosa da sociedade. Trata-se de uma teologia à
altura da sociedade onde está, que quer levar em consideração
a condição real de seu contexto social e histórico, que quer
participar de modo responsável na sociedade, e para tanto reco­
nhece sinceramente o interlocutor, sem pretender que seja este
interlocutor -a sociedade à qual se dirige - que deva se acomodar
às peculiaridades únicas de uma teologia confessional.

12 KNITTER, ibid., p. 2ss.


13 Wilfred CANTWELL SMITH (ibid., p. 126) define assim a teologia compara­
tiva: “A comunidade à qual, como pessoas religiosas, cada um de nós estamos
começando a pertencer, é agora a comunidade da humanidade. Os seres humanos
fomos religiosos em uma grande quantidade de formas. A variedade da fé foi
prodigiosa. A tarefa que daí decorre é precisamente a de que algum pensador
que tente formular uma teologia que interprete e reflita essa nossa multiforme
fé. Obviamente, ainda não é possível descrever adequadamente uma tal teologia:
a teologia comparativa das religiões ainda nâo foi escrita. No entanto, ela é a
tarefa pendente. E eu assino embaixo”.
P onto de partida

Mas há mais variações neste itinerário. Embora seja algo


temido por não poucas religiões, já é muito antigo o fato de que
a multirreligiosidade produz não raro inter-religiosidade. Há
crentes que conhecem e vivem tão a fundo a multirreligiosidade
que sentem sinceramente que estão vivendo sua espiritualidade
não só no seio da religião na qual nasceram e cresceram, mas
no seio também da religião ou religiões que estão conhecendo
de perto.
Não é aqui o lugar para discernir o discutido fenômeno da
dupla pertença, ou até da múltipla pertença, para distingui-
-lo do sempre presente fantasma do sincretismo teórico, ou do
sincretismo prático da religiosidade utilitarista que, em certos
estratos populares, lança mão indiscriminadamente de todos os
recursos religiosos que produzam efeitos sanadores ou curativos.
Estamos nos referindo antes ao fenômeno da dupla ou múltipla
pertença, que explorou e documentou numerosas e muito sérias
figuras dos últimos tempos,14bem como também ao fenômeno
que se dá, massivamente até mesmo em zonas populacionais do
mundo com presença multirreligiosa, em zonas - por exemplo
- de população indígena “evangelizadas” antigamente pelo Cris­
tianismo, mas que conservam e recuperam de forma crescente as
marcas de sua religião ancestral, e não sentem a necessidade de
renunciar a nenhum de seus componentes religiosos herdados.
Ou, também, a pertença múltipla que se vive em grandes setores
asiáticos e africanos - por dar outro exemplo - onde essa dupla
pertença é vivida desde sempre com a maior naturalidade. Sem
chegar a ser dupla pertença, é bem conhecida a experiência
da enorme influência que as religiões orientais em geral estão
exercendo nas últimas décadas sobre o Ocidente cristão: são
legiões os cristãos que incorporaram métodos de oração e vias

14 Os monges beneditinos Henri Le Saux e Bede Griffiths são talvez os nomes mais
reconhecidos neste campo.
(omissão Teoláqia Internacional ASETT/IATWOf

de espiritualidade das religiões orientais e se sentem muito à


vontade e muito “identificados” com elas, com certa experiência
de dupla pertença.
É conhecida a abundante literatura existente em tomo da
necessária uniconfessionalidade da teologia,15 como a dificul­
dade de discernir a relação interna das várias pertenças com­
partilhadas na mesma pessoa:16há, por exemplo, pessoas que se
sentem budistas cristãs e outras que se sentem cristãs budistas.17
Que religião representa o substantivo e qual o adjetivo? E o que
significa na realidade essa diferença? Ou talvez exista, além das
várias pertenças confessionais compatibilizadas pela dupla ou
múltipla pertença, outra pertença, instalada em outro nível, mais
além das confissões, e que é “única”, não múltipla?18
Esse fenômeno da múltipla pertença, ou - digamos de ou­
tra maneira - o fenômeno da identidade religiosa que chega a
transcender sua identidade confessional concreta e se instala
além dela e se sente igualmente bem com outras pertenças

ls “Uma teologia não pode ser ao mesmo tempo cristã, muçulmana e hindu. Tem
de ser uma coisa ou outra. Com outras palavras, toda teologia é “confessional”,
no melhor sentido da palavra, ou não é absolutamente nada. Aqui, o atributo
‘confessional’ indica a adesão de fé da pessoa ou da comunidade que é o tema
do fazer teológico”: DUPUIS, J. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo
religioso. São Paulo: Paulinas, 1999. p. 19. Gesii Cristo incontro alie réligioni.
Assisi: Citadella editrice, 1991. p. 345-347.
Não entramos aqui no tema da inevitabilidade atual de certa inter-religiosidade,
por uma espécie de “osmose sociorreligiosa” na sociedade plural atual. “Em
uma sociedade pluralista como a da índia, a religião autêntica implica necessa­
riamente uma relação com as outras religiões [...]; em uma palavra: ser religioso
é ser inter-religioso”: cf. Declaración de la Asociación Teológica Indiana, n. 36,
citado por J. DUPUIS, Verso una teologia cristiana dei pluralismo religioso,
Brescia: Queriniana, 1997, p. 19-20. Cf. também: PHAN, P. Being Religious
Interreligiously. Asian Perspectives on Interfaith Dialogue. Maryknoll: Orbis,
2004.
17 Michael AMALADOSS expressa e matiza sua própria experiência pessoal logo
adiante, no artigo “Ser um cristão-hindu”.
18 Não é este o lugar para dirimir tal assunto.
P onto de partida

confessionais, não só é muito antigo, mas está aprovado pelo


mais prestigioso dos testemunhos religiosos, o dos místicos.
Ibn’Arabi expressou isso de modo inesquecível:

Tempo houve em que eu rejeitava meu próximo se a sua


religião não fosse como a minha. Agora, meu coração se
transformou no receptáculo de todas as formas religiosas:
é prado das gazelas e claustro de monges cristãos, templo
de ídolos e caaba de peregrinos, Tábuas da Lei e Preces
do Corão, porque professo a religião do Amor, e vou para
onde quer que vá sua cavalgadura, pois o Amor é meu
credo e minha fé.19

Se temos o testemunho, recente e antigo, de que é possível a


inter-religiosidade, e de que a multirreligiosidade provoca com
frequência que a identidade religiosa transcenda sua confissão
concreta, e se cremos que isso não é só uma experiência de
pessoas excepcionais que viveram em situações limite, ou de
grandes missionários que viveram na fronteira inter-religiosa,
se sabemos que esta é uma experiência relativamente freqüente,
tanto religiosa como cultural, que se dá em muitas pessoas e
em setores sociais não pequenos, que conseqüências isso pode
ter para a teologia?20 Junto à teologia tradicional, elaborada
por pessoas ou a partir de lugares com um acesso menor à

19 IbrTARABI, Murcia, Espafia, 1165-1240. Cf. GALINDO, Emilio. Pluralismo


religioso de los místicos sufíes, in: Agencia Latinoamericana 2003 - disponível
em: <www.latinoamericana.org>.
20 Na realidade, a partir deste momento da evolução da teologia, terá de deixar de
ser, de alguma maneira “teo”-”logia”, no sentido em que a concebeu a racio­
nalidade grega, porque já não será necessariamente “teísta” nem porá seu eixo
principal no “logos”. A partir deste momento, ainda que continuemos falando
de “teologia” para nos entendermos, é óbvio que estamos utilizando um termo
que fica mais curto para nós.
Comissão Teológica Internacional ASETT/EATWOT

experiência de inter-religiosidade, não poderá dar-se outra


“teologia”21 elaborada por pessoas que, mesmo radicadas pri­
mariamente na religião de sua confissão primária, vivem uma
experiência religiosa transconfessional,22 uma experiência de
alguma maneira de múltipla pertença, pelo que tal teologia não
poderá exibir uma confessionalidade convencional? Será possí­
vel também uma teologia transconfessional,23uma teologia que
se atreva a falar teologicamente às pessoas de hoje, mas não às
de uma determinada confissão religiosa (a do próprio teólogo),
e sim às pessoas que já vivem um tipo de experiência religiosa
inter-religiosa ou transreligiosa? Insistamos aqui também: não
terá de ser este “o” novo modelo para a teologia; não terá de
substituir as formas tradicionais teológicas correspondentes
a necessidades e tarefas mais pequenas;24 mas sim poderá ser
reconhecido como uma nova forma de teologia que vai ter via­
bilidade e plausibilidade na sociedade crescentemente plural e
multirreligiosa em que vivemos.
E esclareçamos também: esta transconfessionalidade não
tem só o aspecto de superação dos limites confessionais, mas
também, positivamente, a capacidade para refletir abarcando e

21 Embora falemos de “teologia” para nos entendermos, é claro que estamos nos
referindo a essa reflexão que tem esse nome no Cristianismo, mas que tem outros
nomes e outras características em outras religiões.
22 Não damos ao prefixo “trans” o sentido de superação e abandono da confissão
religiosa, mas só o de libertação das amarras que a vinculam em exclusiva.
23 Insistimos que não se trata de uma teologia que abandona a confessionalidade,
e sim que a transcende até assumi-la em pluralidade.
24 Por exemplo: a formulação teológica da visão de cada religião, a elaboração de
seus correspondentes “tratados teológicos” destinados, por exemplo, à formação
teológica dentro de cada religião... Essas formas teológicas, confessionais e
particularistas por natureza, sempre serão necessárias dentro de cada religião e
sempre terão cabimento. A teologia ampla, aberta, à altura da evolução religio­
sa da sociedade, a teologia de vanguarda, cujas fronteiras estamos tratando de
discernir, não nega tais formas menores, com as quais se terá de conviver.
Pomo DE PARTIDA

agrupando as religiões, levando-as e ajudando-as a passar a uma


perspectiva nova onde é conatural a cooperação e a unidade.
Existe uma frente de evolução que surge e evolui por um
itinerário distinto ao que até aqui vimos dando seguimento.
Referimo-nos à proposta recorrente e crescente de superação
das religiões. Como dissemos, é uma proposta já antiga, que
aparece e reaparece, cada vez com uma profundidade nova e
maior. Formas últimas de que se revestiu esta proposta foram
a mal chamada teologia da morte de Deus, as interpretações
várias do fenômeno da secularização, o “pós-teísmo”.25
Para evitar um debate teológico no qual não podemos entrar
aqui a respeito de todas essas posições teológicas, podemos pro­
por o desafio a partir de um terreno exterior à teologia, como o
da antropologia cultural. Estudos dessa natureza sugerem que
estamos em um momento de transição cultural muito profundo,
semelhante àquele outro fenômeno histórico que Karl Jaspers
chamou de “tempo axial”, que se deu aproximadamente entre os
anos 800 e 200 a.C. Foi o “momento” em que se transformou a
consciência do ser humano e surgiu uma nova consciência reli­
giosa da humanidade, que se deu em toda a franja de realizações
filosófico-religiosas da época, desde os filósofos da Grécia, os
profetas de Israel, Zaratustra na Pérsia, Confúcio e Lao-tse na
China, os Upanixades e Buda na índia... É o momento em que
surgem aquelas que chamamos “grandes religiões”, que ainda
hoje perduram e de cujo legado nós ainda estamos vivendo.
Essas religiões - afirma tal interpretação antropológico-
-cultural - são a plasmação concreta da religiosidade humana
correspondente à idade agrária, neolítica, por isso é que hoje

25 O expoente atual mais significativo da proposta de superação do teísmo é pro­


vavelmente John Shelby SPONG, com sua prolífica produção como escritor e
como conferencista. Cf. A New Christianityfo r a New World' New York: Harp-
erSanFrancisco, 2000.

mm
Comissão Teológica internacional ASETT/EATWOT

estão em uma crise: porque a mudança que a sociedade atual


está experimentando consiste precisamente nisto, em que está
se acabando a sociedade agrária que vem do neolítico. Os últi­
mos trezentos anos de industrialização foram o preâmbulo da
grande crise atual, provocada pela chegada do fim da sociedade
agrária, impulsionada pela “sociedade do conhecimento”, que
já está se formando. As religiões que conhecemos, enquanto
“religiões agrárias”, não são representativas da “espiritualidade
do ser humano” sem mais nem menos, mas representam a forma
concreta que tal espiritualidade assumiu na sociedade agrária.
A dimensão espiritual do ser humano foi vivida durante muitos
milênios sem religiões. As “religiões” (agrárias) são fundamen­
talmente a configuração sócio-histórica concreta que a socie­
dade humana adotou com o período agrário, articuladas sobre
a base das “crenças”, e incluindo em si mesmas a função de
“programar” a sociedade precisamente mediante o mecanismo
da “submissão” do ser humano nas crenças.
Essa conhecida (hipó)tese antropológico-cultural26 sugere o
seguinte: as “religiões” são uma configuração sócio-histórica
humana congruente com o período “agrário” da humanidade,
período que está precisamente se encerrando ao ser substituído
progressivamente pela “sociedade do conhecimento”. Não sabe­
mos quanto tempo pode durar esta transição, mas a hipótese é
que já estamos nela, e que um futuro “não religional”27 começa
a se fazer presente em muitos lugares: de uma maneira clara e
chamativa na Europa, mas também um pouco por todo o plane­
ta, se se sabe ver bem. Obviamente, a humanidade continuará

26 Para uma visão sintética da mesma recomendamos: CORBÍ, Marià. Religión sin
religión. Madrid: PPC, 1996 - disponível em: <servicioskoinonia.org/biblioteca>.
27 Utilizamos este neologismo para distingui-lo de pós-religioso e não dar lugar a
equívocos: pode-se estar para além das religiões que aqui chamamos “agrárias”,
sem deixar de ser muito religioso no sentido profundo.
P onto ot partida

sendo “religiosa”, no sentido de “espiritual”,28 mas tudo indica


que as “religiões agrárias” irão agonizando, ao ritmo da própria
superação do período agrário e da implantação da sociedade do
conhecimento.
Forçadas por esta conjuntura inédita, poderão as atuais re­
ligiões mundiais se transformar, transmutar-se radicalmente, e
passar a ser a configuração sociorreligiosa da espiritualidade
do ser humano na futura sociedade do conhecimento? Não sa­
bemos. A julgar pelo comportamento que até hoje estão tendo,
a resposta parece se adivinhar como negativa: resistem com
todas as suas forças, como por reação de sua própria genética,
a se traws-mutar.29
Diante desse futuro que vislumbra hipoteticamente a antro­
pologia cultural atual, que será da teologia? Como já dissemos,
as formas tradicionais de teologia também terão seu lugar e seu
sentido, mas é possível pensar que - se esta transição epocal
da sociedade agrária para uma sociedade pós-religional é certa
- surgirá uma teologia nova e inaugurará uma nova via: uma
teologia pós-religional, ou seja, uma teologia para além das
religiões (agrárias). Não só além de “uma” religião concreta,30
mas para além das formas próprias das religiões agrárias en­
quanto tais, isto é: uma teologia sem “crenças”,31sem submissão,
sem programação social, sem dogmas, sem leis, sem verdades
nem doutrinas. Teoricamente, é possível que as atuais religiões

28 Embora não seja uma palavra feliz, a utilizamos, por estar consagrada pelo uso.
29 Os analistas e fenomenólogos da religião insistem em que não é que a religio­
sidade esteja evoluindo ou se transformando, mas que está em uma profunda
“metamorfose” (Cf. MARTÍN VELASCO, J. Metamorfosis de lo sagrado y
futuro dei cristianismoç. Santander: Sal Terrae, 1999). Ao contrário, as religiões
mostram sua história sempitema, de sua “indefectibilidade até o fim dos séculos”
e da fidelidade inquestionável que devem a suas origens.
30 Que foi o que provocou a transformação plural da sociedade.
31 Dizemos isso no sentido técnico com que emprega esta palavra a citada inter­
pretação antropológico-cultural.
Comissão Teológica Internacional ASETT/EATWQT

agrárias se transmutem para uma nova configuração, mas talvez


isso não aconteça por continuidade institucional (instituições
que acometam a tarefa de sua própria transformação), mas por
substituição (desaparecerão as religiões agrícolas e aparecerão
independentemente outras formas religiosas, o que já pareceria
estar acontecendo).
Nesse contexto, o que seria uma teologia pós-religional?
Não é possível defíni-la, mas podemos descrevê-la como uma
teologia laica, simplesmente humana, centrada na própria
religiosidade, na espiritualidade, libertada do serviço a uma
“religião” enquanto instituição hierarquicamente sagrada com
seu sistema de crenças e ritos e cânones. Uma teologia laica será
uma teologia simplesmente humana, simplesmente para os seres
humanos enquanto humanos, antes ou à margem de sua relação
com um “sistema” religioso, antes ou à margem de qualquer
religião. Será uma teologia que se refere à “religiosidade” (no
sentido de espiritualidade) do ser humano enquanto tal, enquanto
humano, pelo simples fato de ser humano, laicamente, antes ou
à margem de qualquer religião institucional.32

Por seu próprio caminho, sem se responsabilizar pelas vá­


rias transformações que aqui vimos elencando, não obstante
converge com essa teologia laica a chamada teologia pública,
em algum sentido, enquanto quer ser um discurso teológico re-
- situado no ambiente acadêmico, em diálogo com as ciências, e
com uma implicação ativa nos debates que se desenvolvem na
esfera pública da sociedade.33

32 Insistimos, como já dissemos em nota anterior, que esta nova forma maior da
teologia não elimina nem substitui as teologias menores, sempre necessárias, isto
é, a teologia interior a cada confissão, a teologia da educação teórica de cada
religião ou confissão, em cada um dos ramos daquilo que seria seu “universa
theologia”.
33 Cf. o programa de Teologia pública do Instituto Humanitas da Universidade
Jesuíta de São Leopoldo (Unisinos). Esta teologia pública, originada no mundo
P onto de partida

Mas, paralelamente à evolução de estágios e de novas exi­


gências que a teologia poderá enfrentar no futuro por causa da
evolução de nossa tomada de consciência religiosa, há outra
dimensão que também vai incidir sobre a evolução da teologia,
que é a irrupção da consciência planetária na sociedade atual.
A sociedade humana vai tomando consciência de que formamos
uma única espécie, de que habitamos um mesmo planeta, de que
estamos ligados em um interligado sistema de sistemas, que
conformam a trama da vida, e que, portanto, a forma fragmen­
tada e individualista de perceber a realidade que até agora nos
acompanhou deve ser superada. Já não faz sentido contemplar
a realidade e o mundo a partir de uma consciência fragmentária
que divide o mundo em países, em raças, em culturas..., ou em
religiões. Somos uma só humanidade, e sabemos que somos
parte da comunidade de vida que surgiu neste planeta, uma parte
indivisível, inseparável, não independente, absolutamente ligada
com toda essa comunidade de vida que surgiu neste planeta
“vivo”, Gaia, já não em uma rocha inerte errante pelo vazio do
cosmos, como durante tanto tempo consideramos. Hoje reconhe­
cemos cada vez mais o planeta como Gaia, e nos sentimos mais
conscientemente unidos aos seus dinamismos vitais profundos.
Estamos voltando às nossas raízes naturais planetárias, voltando
à nossa casa comum, ao nosso lar..., depois de ter estado muito
tempo afastados dele.34Essa nova consciência emergente, a um

anglo-saxão, praticamente desconhecida na América Latina, quer se apresentar


como um prolongamento atual da teologia da libertação enquanto atualizaria essa
“libertação” em termos de cidadania e democracia. Cf. VON SINNER, Rudolf.
Da Teologia da Libertação para uma teologia da cidadania como teologia pública.
Original em International Journal ofPublic Theology, anol, n. 3/4, p. 338-363,
2007.
34 A tese de que, como humanidade, nos equivocamos no momento evolutivo da
revolução agrária, quando abandonamos a sinergia cósmica com a natureza,
que caracterizava a espiritualidade do paleolítico, por uma dessacralização da
natureza e uma projeção da sacralidade fora do mundo, cifrada em um “theos”
sobrenatural e amundano, está sendo crescentemente aceita entre os estudiosos.

m
Comissão Teológica Internacional ASETT/EATWOT

só tempo planetária e ecológica, não terá conseqüências radicais


para a teologia? Não será necessária uma teologia ecológica e
planetária,*35uma teologia elaborada a partir dessa consciência
planetária nova na qual a humanidade está entrando? “Plane­
tária”, aí, quer significar, concentradamente, muitas coisas ao
mesmo tempo:
• planetária enquanto unindo a humanidade mundial;
• planetária enquanto abarcando também todas as suas religi­
ões e posições espirituais;
• planetária enquanto refletindo a nova consciência planetária;
• planetária enquanto assumindo o planeta como o lar para
onde a humanidade volta;
• planetária enquanto o planeta (mais que o mundo, ou a
humanidade, ou até mesmo a vida, simplesmente) pode ser
considerado como o contexto, o sujeito e o marco de refe­
rência novos para uma teologia responsável e à altura dessa
nova consciência.
A visão ecológica e “ecozoica” de Thomas Berry já havia
dito isso faz tempo: as religiões, como a humanidade, viveram
uma “microfase” na qual cada tradição nasceu e cresceu em um
relativo isolamento das demais; mas faz tempo que entramos
em uma “macrofase” da história, na qual cada religião só vai
poder sobreviver através do inter-relacionamento com as demais
religiões.36Desse modo, a teologia reproduziria em si mesma a
evolução irresistível que traz em seus próprios genes humanos.

Cf. 0 ’MURCHU, Diarmuid. Religion in Exile. A Spiritual Homecoming. New


York: Crossroad, 2000.
35 Acreditamos que este seria o melhor nome da que tantas vezes já foi chamada
de a World theology.
36 BERRY, Thomas. Religious Studies in the Global Community of Man. An Integral
View 1(1980)35-43.
P onto de partida

A partir do cosmos surge a Terra, e a partir da geosfera e sua


atmosfera surge a biosfera, e nela a antropogênese, e, a partir
do ser humano, a noosfera. O ser humano é aquele no qual a
evolução dá um salto, e de ser biológica passa a ser cultural e
espiritual. A noosfera, ao princípio individualizada e fragmen­
tada pela separação dos grupos humanos, foi se unificando e
“mundializando” entre si, e agora está se “planetizando”, com
o planeta e toda a comunidade de vida, aos que a humanidade
incorpora como seu próprio corpo e seu próprio lar, dos quais
agora toma consciência e aos quais volta e se une com renovada
consciência. A noosfera, essa esfera das coisas da mente, os
saberes, as crenças, os mitos, as lendas, as idéias, nas quais os
seres nascidos da mente, gênios, deuses, ideias-força, utopias...
passaram a ser o novo âmbito referencial mais amplo e ao mesmo
tempo mais profundo para a humanidade. E, portanto, para a
teologia responsável. Uma teologia planetária seria uma teologia
da noosfera, uma teologia noosférica, ou seja, com a noosfera
como marco e como centro de gravitação, para além de visões
medíocres fragmentadas em países, raças, culturas, religiões...,
nem sequer com uma visão antropocêntrica ou limitada apenas
ao humano, mas aberta à natureza, ao planeta, ao cosmos, ao
mistério da realidade toda.
Todavia, uma tal teologia pluralista, inter-religiosa, trans-
confessional, pós-religional, laica, planetária..., continuará
sendo “teologia”? Certamente, não será nem “teo” nem “logia”,
no sentido que já dissemos. Também não será essa disciplina
teórica que fazia parte do sistema simbólico das instituições
religiosas. Por certo, as antigas “teologias” confessionais oficiais
continuarão existindo: têm tanta esperança de vida quanto as
religiões “agrárias” das quais fazem parte. Tudo o que acaba­
mos de dizer não está contra essas antigas teologias. Mas o que
se desprende dessa evolução que estamos querendo imaginar
Comissão Teológica Internacional ASETT/EATWOT

e percorrer virtualmente é que a teologia essencial, a teologia


profunda, aquilo que permanece quando a teologia já não é nem
teo, nem logia, nem parte oficial de uma religião agrária, ou
seja, a busca profunda de sentido no ser humano, na sociedade,
na humanidade, no mundo, na vida, no planeta, e no cosmos,
essa busca profunda que habitou e inspirou todas as teologias,
terá se emancipado, e tomado a forma de uma nova teologia,37
agora “global, mundial, planetária, pós-religional, laica...”, que
não pertencerá a nenhuma confissão concreta, e não se res­
ponsabilizará por outra “religiosidade” que não seja a própria
humanidade e seu lar planetário.
Gordon Kaufman38 afirma:

Se m eu con ceito da teologia - com o enraizada radical­


m ente nas preocupações com partilhadas da experiência
hum ana - é correto, a te o lo g ia tem um a significação
cultural universal, e não ex iste m otivo para que fique
confinada nos estreitos lim ites paroquiais de um a religião
ou para que seja vista com o um a disciplina esotérica ou
sub-racional.

As preocupações profundas pelas quais as pessoas buscam


a sabedoria teológica não são questões relacionadas com as
religiões formais, mas, antes, com o sentido e com os fins nes­
te complexo mundo em que vivemos. Comumente, as pessoas
chamam “religiosos” a esses temas. Essa “religião”, decidida­
mente, não está morta, não sucumbiu nas mãos do niilismo
Pós-Modemo. O ser humano moderno não tem dificuldades
com a vida espiritual, nem com a “sabedoria teológica”, e sim
com a forma como as religiões a trataram e a apresentaram.

37 Na falta de outra palavra mais adequada, podemos continuar utilizando-a com


as reservas já indicadas.
38 Citado por 0 ’MURCHU, ibid., p. 218.
P onto de partida

A teologia - afirma Diarmuid 0 ’Murchu - está experimen­


tando uma reconfiguração revolucionária. São cada vez mais
leigos - e sobretudo leigas! - que a cultivam e diminui de modo
chamativo a proporção de clérigos entre os teólogos. Ser membro
de uma Igreja já não é tido como essencial, para a boa qualidade
de uma teologia. E, por outro lado, para um número crescente
de teólogos e teólogas, o serviço ao mundo, ao planeta e à hu­
manidade são considerados como critérios mais importantes,
na hora de elaborar a teologia, que o critério do serviço a uma
reflexão eclesiástica. As questões provenientes do mundo, de
suas angústias e esperanças, e da difícil tarefa de humanizar
a humanidade e trazê-la de novo para seu lar, para a placenta
natural planetária da qual equivocadamente se separou nos tem­
pos da revolução agrário-urbana, são cada dia mais importantes
para a nova sabedoria teológica que está emergindo em toda
parte e que está entusiasmando as novas gerações de teólogos
e teólogas. Talvez os represente bem Gordon Kaufman quando
acrescenta: “Esteja a Igreja como instituição viva ou agonize, a
teologia tem um importante papel a desempenhar”.39
Essas perspectivas de evolução da teologia que nos é dado
contemplar imaginativamente ficam muito longe daquelas po­
sições que eram freqüentes entre nós faz apenas alguns anos,
quando acreditávamos que não era possível pensar em uma
teologia que não fosse confessional, que não estivesse ligada a
uma religião40 e não fosse uma função a seu serviço. Amplas
perspectivas, inabarcáveis para a teologia, são as que nos é dado
contemplar.
E esta visão prospectiva foi a “ponto de partida” para a
pesquisa proposta à colaboração de especialistas de vários

39 Ibid.
40 Cf. supra.

B
Comissão Teológica Internacional ASETT/EATWOT

lugares do mundo, escolhidos como representantes de diferentes


religiões, tratando precisamente de abarcar o mais possível as
diferentes tendências e possibilidades.
Tivemos dificuldades sérias, e algumas quase insuperáveis,
para obter a representatividade que desejávamos, embora fizés­
semos tudo o que era possível. Em todo caso, o mais importante
são as contribuições e reflexões dessas pessoas especialistas.
Elas vão nos ajudar a todos a vislumbrar mais claramente
qual será o futuro da teologia que este ponto de partida tentou
esboçar.
Comissão Teológica Internacional
ASETT/EATWOT
AS RESPOSTAS
Ser um cristão-hindu

M ic h a el A m a l a d o ss

Interesse pelo Hinduísmo é uma coisa que tive desde a infân­


cia. Fui criado em aldeias hindus. Meus amigos e companheiros
de brincadeiras eram meninos hindus. Para mim, eles não eram
“outros”, e sim meus amigos. No colégio interno de jesuítas para
onde fui com 11 anos, os hindus estavam ao meu redor como
alunos e professores. Depois entrei para a Companhia de Jesus.
Enquanto estudávamos filosofia, havia um interesse duplo: saber
mais sobre a cultura e as artes indianas para nos tornarmos mais
indiano e aprender mais sobre o Hinduísmo para que pudésse­
mos falar de Cristo para eles. Eu lia avidamente sobre filosofia
hindu e arte indiana. Mais tarde comecei a freqüentar uma escola
de música indiana. Eu era o único cristão na escola e aprendi a
admirar meus professores hindus, para quem a música era um
ato de devoção. Enquanto estudava teologia (1965-1969), fiz uma
peregrinação com dois companheiros jesuítas para visitar ashra-
ms (eremitérios) e centros de peregrinação hindus no Himalaia e
ao longo do rio Ganges, e fiquei impressionado com muitos dos
sannyasis (faquires) hindus. Minha preocupação já era como me
tornar um cristão indiano, estendendo a mão de uma maneira
positiva para os hindus. Dois de meus trabalhos escritos nessa
época foram: Towards an Indian Christian Spirituality e Gan-
dhian Spirituality. Enquanto isso, o Concilio Vaticano II tinha
ocorrido, trazendo com ele um espírito de abertura e diálogo.
Em maio de 1969 participei, como representante dos estudantes,
de um seminário nacional que tinha como foco fazer com que
Seu um cristão- hindu

a Igreja se tornasse mais indiana. A orientação que recebemos


era de estabelecer o diálogo com as culturas e religiões indianas.
Depois de meus estudos para o doutorado (1969-1972), em
Paris, em 1973-1974 fundei um grupo de diálogo inter-religioso
no seminário em que estava ensinando, participei de um semi­
nário nacional sobre Inspiration o f Non-Biblical Scriptures (A
inspiração das escrituras não bíblicas), participei também de
uma comissão que explorava maneiras de fazer com que a cele­
bração eucarística ficasse mais indiana e organizei um seminário
de orações que buscava apresentar aos cristãos os métodos de
orações indianos (hindus). Começamos usando informalmente
textos escriturais hindus em paraliturgias. Tentávamos integrar
símbolos no culto, distinguindo entre religião hindu e cultura
indiana, ou dando uma interpretação cristã a símbolos hindus,
tais como Om. Nossa meta era dialogar com os hindus e, ao
mesmo tempo, promover a espiritualidade cristã indiana em
um profundo diálogo com a tradição espiritual hindu. Ashra-
ms cristãos indianos estavam sendo fundados e cursos sobre
espiritualidade cristã indiana estavam sendo ministrados. Era
comum que orássemos com hindus nos grupos de diálogo. Os
jesuítas promoviam a inculturação na educação de uma maneira
planejada concentrando no contexto social local (dos pobres) e
nas línguas indianas. Colégios teológicos regionais ensinando a
teologia contextual em línguas indianas foram inaugurados em
1979. Estive ativamente envolvido nesses projetos tanto criativa
quanto administrativamente. Tive de me distanciar dessa área
quando mudei para Roma (1983-1995). Mas minha pesquisa,
meus escritos e minha prática pessoal na área da teologia e da
espiritualidade indianas continuaram.
Em virtude do meu diálogo contínuo com o Hinduísmo e com
a cultura indiana, minha abordagem filosófica e teológica mu­
dou com o passar dos anos. Saí de uma teoria do conhecimento
Michael Amaladoss

grega, racional, conceituai, lógica, focada no objeto e dicotô­


mica (ou-ou) e fui para uma teoria do conhecimento indiana
(asiática), simbólica, interpretativa, narrativa, focada no sujeito
e inclusiva (ambos-e). Nisso também tive a ajuda da filosofia
contemporânea europeia, com sua reviravolta para o “sujeito” e
para a linguagem. Abandonei também uma metafísica baseada
na física aristotélica a favor de uma ontologia baseada na pessoa,
não dualista e relacionai. “Ser” é “inter-ser”. Já não falo de coi­
sas e causas, mas sim de pessoas e de relacionamentos que dão
poder e transformam. Com essas novas abordagens, acho que
é mais fácil dialogar não só com os hindus, budistas e taoístas
asiáticos, mas também com os cristãos asiáticos. Meu último
livro é The Asian Jesus (O Jesus asiático). É claro, isso não
está facilitando minha vida intelectual, já que a Igreja “oficial”
ainda está atada à epistemologia neoescolástica e à metafísica.
Começando com uma abordagem positiva às outras religiões
como participantes do plano de salvação de Deus, tenho uma
nova teologia de história que focaliza o Reino de Deus, com a
Igreja passando a ser o símbolo e serviçal daquele Reino. Tenho
também uma nova visão espiritual que busca uma integração
pessoal e cósmica que expliquei detalhadamente em um livro
chamado The Dancing Cosmos (O Cosmos que dança). Deus,
o Espírito, o Verbo e Jesus são vivenciados e vistos de novas
formas.
Porém, os acontecimentos na índia não acompanharam o
ritmo de pessoas como eu. A partir de mais ou menos 1978, a
inculturação na área de liturgia foi sendo lentamente sufocada,
embora o uso de música indiana na liturgia tenha se desenvol­
vido muito. Eu mesmo compus mais de cento e cinqüenta hinos,
além de peças mais técnicas sobre temas cristãos para a dança
clássica indiana. Mas a indianização na teologia e na espiritu­
alidade continuou. Embora ninguém, afinal de contas, possa
S er um cristão- hindu

controlar a maneira como pensamos e oramos, essas maneiras


não se tornaram “oficiais”. Fui um teólogo profissional. Não
sei o que teria feito e o que me teria tornado se estivesse em
um ashram cristão indiano. Hoje me considero e me denomino
cristão-hindu, dando ao termo um sentido especial. O termo
“hindu” na frase não é um substantivo e sim um adjetivo. O
processo não é hibridismo, e sim integração; não é pluralismo,
e sim não dualismo.
Social e institucionalmente sou um cristão, um padre, um
jesuíta. Não procuro uma espécie de identidade híbrida de ser
tanto hindu quanto cristão em um sentido social e comunitário.
Mas para mim o Hinduísmo não é simplesmente uma “outra”
religião. Ele é também uma parte da minha identidade. É a re­
ligião de meus antepassados. Deus falou a meus antepassados
através dele e o que Deus disse a eles tem algum sentido para
mim também - mesmo agora. Portanto, fico feliz de integrar
perspectivas hindus como parte da minha visão e prática es­
pirituais. Isso não significa que me sinto obrigado a acreditar
nas histórias mitológicas do Hinduísmo, ou honrar os deuses
hindus, ou participar de rituais, ou tomar parte no culto religioso
em templos hindus. Mas realmente me inspiro nas escrituras
hindus, como os Upanishads, a Bhagavadgita, ou as canções
devocionais dos santos shivaítas e vaishnavitas. Em um nível
teológico-espiritual busco integrar a visão e a visão do mundo
da advaita ou não dualismo. No nível da prática espiritual bus­
co usar a música, não apenas como algo decorativo, mas como
sadhana, que ajuda a concentração e põe em prática a comu­
nhão. Técnicas de respiração e concentração da ioga também
são úteis. Através dessas técnicas busco integrar o mundo mais
amplo de energia (mais além da ciência) que faz a mediação
entre o espírito, o corpo e o mundo. Algumas dessas técnicas
não são especificamente hindus, embora o Hinduísmo as tenha
Michael Amaladoss

desenvolvido, e é do Hinduísmo que eu as estou aprendendo.


Elas são usadas também pelos jainistas e budistas no Tibete,
na China e no Japão.
Será que sou uma pessoa interconfessional, ou estou fazen­
do teologia interconfessional, ou praticando espiritualidade
interconfessional? Acho que não. Acho que paradigmas como
“exclusivismo-inclusivismo-pluralismo” e “teologia interconfes­
sional” são abstratos. Eles olham para as religiões de fora, por
assim dizer, não tendo tido contato vivo com membros dessas
outras religiões. Não há nenhuma teologia universal ou inter­
confessional. Teólogos de religiões diferentes podem dialogar e
ir na direção de um consenso sobre a defesa de valores humanos
e espirituais comuns. Hoje é o que precisam fazer. Eu falaria,
então, de teologia dialógica e, mais ainda, de espiritualidade.
Quando estou realmente dialogando com um hindu no
contexto sociopolítico da índia, o que parece crucial é o reco­
nhecimento das identidades baseadas na diferença e o respeito
por elas. O diálogo não consiste em procurar um denominador
comum e sim em desenvolver um consenso imbricado que possa
animar uma ação sociopolítica comum. As religiões não são algo
que os humanos criam e com as quais podem brincar. Para um
hindu ou para um cristão, sua religião é uma maneira específi­
ca pela qual Deus estendeu a mão para ele ou ela. É uma coisa
única sobre eles. Não procuramos fundi-las de alguma forma.
Ao contrário, devemos celebrar a diferença. Aprender um com
o outro, ser questionado e transformado pelo outro, integrar o
outro é diferente de algum tipo de sincretismo que facilmente
mistura mundos simbólicos. Eu teria uma justificativa para
re-interpretar um símbolo como Om em um contexto cristão
porque é um símbolo expresso por um som, mais básico até
que a linguagem. Mas não posso pedir emprestados símbolos
mitológicos hindus tais como Rama, Krishna ou Shiva. Eles são
S er um cristão- hindu

seus símbolos e eles os usarão para definir, proteger e celebrar


sua identidade. Eu me relaciono com Deus por intermédio de
Cristo e meu amigo hindu relaciona-se com Deus através de
Krishna ou Shiva. Podemos comparar esses caminhos. Podemos
até considerá-los homólogos. Podemos dizer algo sobre o Deus
transcendente que nós dois estamos tentando alcançar por meio
de nossos respectivos símbolos reais. Não vivenciamos Deus de
alguma maneira não simbólica do próprio Deus. Cristo e Krishna
não são meros símbolos para nós. São mediações. Represen­
tam uma história. Não podemos misturá-los para produzir um
“Krishna-Cristo” inter-religioso!
Ser membro de uma religião é como falar um idioma. Um
idioma pode ser influenciado por outro. Pode pedir emprestadas
frases e expressões do outro. Mas os idiomas são diferentes e
incomensuráveis. Não podemos falar as duas línguas ao mesmo
tempo, nem integrá-las de alguma forma que respeite as identi­
dades de ambas. A crioulização não é um processo enriquecedor.
Assim como sou cristão-hindu - e há outros como eu na
índia - alguns hindus, como Keshub Chandras Sem e Mahatma
Gandhi - foram hindus-cristãos, profundamente influenciados
pelo exemplo e ensinamentos de Cristo. Mahatma Gandhi disse
que se ser cristão significava seguir os ensinamentos de Cristo,
então ele era cristão. Mas obviamente ele se distanciava da
comunidade cristã em um sentido social. Há hindus-cristãos
semelhantes até mesmo nos dias de hoje. Respeitar as religiões
e seus seguidores é respeitar também suas identidades e dife­
renças sociopolíticas.
Acho que os cristãos-hindus como eu e os hindus-cristãos
como Gandhi são pessoas liminares. Somos pessoas que es­
tão nas linhas fronteiriças, permanecendo dentro de nossas
fronteiras e ainda assim abertas para outros, estendendo-lhes
a mão. Podemos ser modelos e facilitadores do diálogo de uma
Michael Amaladoss

maneira especial. Mas qualquer esforço para ter uma perna de


cada lado da fronteira será um desastre. Brahmabandab Upa-
dyaya se dizia um cristão-hindu - hindu socialmente e cristão
religiosamente. Mas suas tentativas posteriores para se tornar
um cristão-hindu religiosamente terminaram mal porque ele
ultrapassou as fronteiras.
Um exemplo mais recente, de alguém que viveu nessa tensão,
foi Swami Abhishiktananda (Henri Le Saux). Swami continuou
fiel à celebração da Eucaristia e recitou os salmos até o fim de
sua vida. Mas durante muitos anos tentou ter a experiência de
advaita ou não dualidade, que ele considerava “hindu”. Em seu
diário afirma ter tido essa experiência - mais de uma vez. Seu
diário narra a luta que ele enfrentou para reconciliar as duas
experiências intelectualmente. Não acho que tenha tido êxito.
Sua racionalidade lógica francesa e sua formação acadêmica
podem ter sido o problema. Mas nos últimos meses de sua vida,
depois de um infarto, ele parece ter superado essa tensão. Em
seus últimos anos ele disse muitas vezes que tinha ido mais
além dos símbolos e rituais de qualquer religião. Por isso, sua
experiência da advaita ou não dualidade estava mais além de
todas as religiões, todas “nome e forma” (namarupa). É possível
que ele estivesse errado ao considerar a advaita como hindu
e ao buscar integrá-la com sua namarupa cristã. Ao mesmo
tempo, ele se sentiu livre para vivenciar o Absoluto por meio
da namarupa cristã - a Eucaristia. Acho que naquele momento
ele não estava praticando qualquer ritual (namarupa) hindu. É
possível que, em seus últimos dias, tenha compreendido que
estava vivenciando Deus - o Absoluto - de duas maneiras di­
ferentes e que não tinha de integrá-las racionalmente, mas sim
apenas desfrutar a diversidade. Aliás, não há nada “hindu” a
respeito da experiência advaitica, socialmente, ritualmente e
institucionalmente, embora ela tampouco possa ser totalmente
SerumcristAo- hinou

separada da tradição espiritual hindu. Isso se aplicará a todas


as experiências místicas que estão enraizadas em uma ou ou­
tra tradição. Teologias negativas são negativas com relação a
alguma coisa positiva.
A frágil transparência
do Absoluto.Teologia
para uma espiritualidade
transreligiosa

M a r c e l o B a rro s

Afirmar a fragilidade do Absoluto parece um absurdo, já


que este sempre é apresentado como “Todo-Poderoso”. Como
pode ser frágil? É preciso que nos entendamos. No século XVI,
o rabino Isaac Luria dizia que, para criar o universo e possibi­
litar que este tivesse vida própria, o Eterno aceitou como que
diminuir-se a si mesmo, ceder algo da sua perfeição. Retraiu-se
para que a sua criatura pudesse existir como ser autônomo.1
Hoje, penso que esta visão de uma divindade que recua ou se
contrai (a expressão hebraica é o Tzimtzum divino) pode ajudar
no caminho do diálogo das religiões. Em si, Deus é mistério in­
decifrável. As religiões procuram representá-lo e até apresentá-lo
ao mundo. Não esgotam o mistério, mas tentam torná-lo mais
transparente. Isso o faz frágil, porque dependente da resposta
que o seu apelo provoca. O seu chamado de amor é traduzido
em mil linguagens e concretizado em todas as culturas. Quanto
mais se identifica com o humano, mais se torna frágil.

1 Cf. SCHOLEM, Gershom. As grandes correntes da mística judaica. 3. ed. São


Paulo: Ed. Perspectiva, 1995. p. 290- 293.
A frágil transparência do A bsoluto.T eologia para uma espiritualidade transreligiosa

Atualmente, o mundo assiste a certa busca espiritualista. Ao


mesmo tempo, as religiões vivem uma crise que não abrange
apenas questões de estrutura religiosa. Toca na própria fé. É tam­
bém crise sobre Deus. Assim sendo, as religiões provocam uma
nova manifestação de fragilidade. Quando uma Igreja opta mais
pelo dogmatismo do que pelo amor, ou quando uma corrente do
Islã insiste na intolerância, o que está em jogo não é apenas a
sobrevivência da religião, o que já seria grave. Trata-se de um
testemunho sobre Deus que fragiliza a própria imagem divina,
à qual a humanidade tem acesso. No campo de concentração de
Auschwitz, a jovem judia Etty Hillesum escrevia:

Se Deus não me ajuda, serei eu quem o ajudará. [...] Meu


princípio será “ajudar a Deus” tanto quanto isso for possí­
vel. [...] Cada vez mais, a cada pulsação do meu coração,
sinto que tu não podes nos ajudar. Somos nós que temos
de ajudar-te e defender-te até o final na mansão que te
guarda em nós.2

Hoje, esta oração de Etty Hillesum pode ser retomada não


mais para defender a Deus do Holocausto nazista, mas para
salvar a honra de Deus diante dos grupos fundamentalistas que
apoiam guerras e imperialismos, como também para salvar a
imagem divina, fragilizada por posturas pouco espirituais de
certos líderes religiosos e por documentos pouco amorosos
emanados de alguns hierarcas.
Na linha do “ver, julgar e agir”, convido vocês a verificarmos
como esta situação atinge os grupos inter-religiosos e associa­
ções consagradas ao diálogo entre as religiões. Aprofundaremos
a teologia subjacente, presente nas organizações inter-religiosas

LEBEAU, Paul. Etty Hillesum, un itinéraire spirituel. Namur: Ed. Racine, 1998.
p. 110.

m
Marcelo Barros

e proporemos uma teologia da libertação, pluralista e transreli-


giosa, para fundamentar o caminho das iniciativas interculturais
e inter-religiosas.

Uma rápida história das


iniciativas inter-religiosas
A história das relações inter-religiosas sempre teve alguns
profetas ou movimentos que buscaram o diálogo. Na Idade
Média, homens de ciência filosófica, como Abelardo e Nicolau
de Cusa, tomaram o diálogo como estilo. Embora fossem diálo­
gos inter-religiosos fictícios e na linha que Panikkar chama de
“diálogo dialético”,3de qualquer modo revelavam a necessidade
de expressar a fé como diálogo. Abelardo escreveu Dialogus
inter philosophum, judaeum et chrístianum (1141). Nicolau de
Cusa escreveu Dialogus de Deo abscondito inter christianus
et gentilis (1453).
No século XIII, enquanto a Igreja oficial pregava Cruzadas,
o filósofo e místico Raimon Lull aprendeu o árabe e tentou
convencer Roma a abrir cátedras de copta, árabe e grego nas
universidades cristãs, para compreender o pensamento do outro.4
Na mesma época, Francisco de Assis assumiu uma atitude amo­
rosa com os muçulmanos. No início da Idade Moderna, Erasmo
de Rotterdam é um cristão precursor do diálogo intercultural.
No mundo muçulmano, vários místicos sufi, como Ibn’Arabi
(século IX) e Rumi (século XI), viviam uma espiritualidade
aberta a todas as religiões, assim como são famosos os diálogos
promovidos por al-Haschim e al-Kindi sob o califa al-Ma’mun
(813-834).

3 PANIKKAR, Raimon. Pace e interculturalità; una riflessionefilosófica. Milano:


Jaca Book, 2002. p. 44.
4 Ibid., p. 53.
A FRÁGILTRAHSMR£HC1A DO AbSOUJTO.TeOIDGIA PARA UMA ESPIRITUALIDADETRANSREUGIOSA

Na Abya Yala dos índios e dos negros trazidos da África,


o contato com a religião dos dominadores se deu de maneira
violenta e forçada, mas o próprio fato de que se tratavam de
cultos pouco centralizados e não havia uma estrutura dogmática
fixa ajudou a realizar um sincretismo que foi uma síntese de
sabedoria espiritual.
Apesar disso, as religiões não tiveram muitas experiências de
diálogo. Somente a partir do final do século XIX surgiu a preo­
cupação sobre a contribuição das religiões para a construção da
paz. Em 1893, em Chicago, por ocasião dos 400 anos da “desco­
berta da América”, o pastor presbiteriano John Henry Barrows,
desautorizado por sua Igreja, fundou o Parlamento Mundial das
Religiões, que, em sua sessão inaugural, conseguiu juntar quatro
mil pessoas. Essa iniciativa não teve continuidade direta, mas,
por todo o mundo, espalhou a ideia de que o diálogo entre as
religiões pode ser útil para a construção da paz e da justiça no
mundo. Na segunda metade do século XX, o Parlamento das
Religiões pela Paz foi retomado. Sua quarta assembléia geral
ocorreu em julho de 2004 em Barcelona, com a participação
de muitos grupos de base e muitos teólogos de várias tradições
religiosas, comprometidos com a paz e a libertação.
A Conferência Mundial das Religiões pela Paz, criada por
cidadãos dos EUA, índia e Japão, teve sua primeira assembléia
em Quioto, no Japão, em 1970, para tratar da questão da paz,
do desarmamento, opor-se a qualquer discriminação, trabalhar
contra o colonialismo e defender os direitos humanos. Ali se
reuniram 139 participantes da Ásia e da África, assim como
77 ocidentais. Entre os conferencistas estavam Helder Câmara,
Raimon Panikkar, Eugene Blake, Thich Nhat Hanh e o metro-
polita Galitski Filarete, de Moscou.
Em 1999, William Swing, bispo anglicano de Los Angeles,
o dalai-lama e o Conselho de Coordenação Inter-Religioso de
Marcelo Barros

Israel lançaram a proposta de uma nova organização mundial


das religiões, semelhante à das Nações Unidas. Criaram a Or­
ganização das Religiões Unidas (URI).5
Na América Latina, no contexto da celebração dos 500 anos
da conquista, grupos ligados a Igrejas e religiões populares se
uniram em um encontro continental e criaram um processo que
se chamou Assembléia do Povo de Deus (APD). Essa iniciativa
oficializou o termo macroecumenismo como “um ecumenismo
que vai além da busca de unidade das Igrejas e além do mero
diálogo entre as religiões para reunir religiões e Igrejas na de­
núncia profética contra o neoliberalismo e no aprofundamento
de uma espiritualidade macroecumênica”. A teologia inerente ao
processo da APD pensava, ainda, de certo modo, as relações a
partir do Cristianismo latino-americano (teologia da libertação).
Por se nutrir de uma teologia aberta ao outro, mas implicita­
mente de tendência inclusivista, não conseguiu aprofundar a
espiritualidade macroecumênica proposta. No começo do pro­
cesso, o diálogo com as religiões populares se deu pela abertura
ao sincretismo com o Cristianismo, ou pela capacidade desses
grupos de conviverem com a cultura corrente no Cristianismo.
Quando o caminho avançou mais, grupos affos e indígenas mais
autônomos não se sentiram representados. Como as autoridades
eclesiásticas cristãs também nunca assumiram o processo da
APD, pouco a pouco este se esvaziou. Fizeram-se três encontros
internacionais (Quito, 1992; Bogotá, 1996; e Santo Domingo,
2000) e, depois, o processo não conseguiu se articular mais.
Nos anos de passagem do século (de 1999 a 2001), ocorreram
inúmeros encontros e congressos inter-religiosos. Diversas enti­
dades com o objetivo do diálogo se manifestaram, mas também
não conseguiram ir além dos grandes congressos.

5 Revista Rocca, n. 15, p. 7, ago./sett. 1999.


Aroteit transparência do AbsolutoJeologia para uma espiritualidade transreligiosa

No processo do Fórum Social Mundial, desde o segundo


Fórum, em Porto Alegre, organismos ecumênicos e grupos
consagrados ao trabalho pela paz uniram representantes de
diversas tradições espirituais em um testemunho de unidade
e compromisso pela justiça e paz. No Brasil, diversas ONGs
educativas (a União Planetária, Unipaz e outras) organizaram
dois fóruns com a pretensão de serem um “Fórum Espiritual
Mundial”. Autoridades religiosas foram convidadas. Pouquís­
simas aceitaram, e para momentos muito específicos. Pastores
da Igreja Católica e de outras Igrejas têm medo de sincretismo
e mesmo de iniciativas que parecem “coisa de Nova Era”.
Mesmo um teólogo como Michael Amaladoss, que se consi­
dera cristão-hindu, que é aberto à busca de um novo caminho,
tem críticas a uma tentativa de diálogo inter-religioso que fosse
como que a tentativa defalar duas línguas ao mesmo tempo.6Ele
tem razão quanto a quem vive tal síntese espiritual e teológica
entre duas tradições espirituais, comumente, não falar em dupla
pertença, porque integra de forma original e única as tradições
diversas em um só caminho espiritual. No mundo atual, quase
nenhum de nós tem uma única identidade ou pertença cultural.
Pertencemos a um determinado grupo cultural ou religioso,
destacamo-nos como profissionais em outro grupo e como se
fosse com uma identidade que nada tem a ver com a primeira
pertença e, ainda, em outro contexto, somos conhecidos como
pessoas de tal posição social e política. Quase todos nós somos,
de certa forma, plurais e, ao mesmo tempo, sem deixar de ser
uma pessoa única e original. Isso tem ocorrido cada vez mais
no plano religioso e até mesmo em um nível transreligioso.

6 Ver o artigo de Michael Amaladoss no presente livro.


Marcelo Barros

Uma tentativa de compreender


teologicamente a crise
Diversos(as) estudiosos(as) do campo das ciências das reli­
giões e da teologia7apontam para o fato de, atualmente, existir
um verdadeiro divórcio entre a maioria das sociedades e as
religiões estabelecidas. As sociedades seculares são, cada vez
mais, baseadas em inovações tecnológicas e de comunicação.
As religiões se mantêm fiéis a linguagens antigas. Ao viver ele­
mentos desse desencontro, são tentadas a um restauracionismo
nostálgico e a um fundamentalismo dogmático que as afastam
do diálogo com a humanidade. Mesmo sociedades tradicionais,
como indígenas e negras, também se revelam em crise. No
passado, essas tradições populares foram vítimas de religiões
que as condenaram e perseguiram. Agora, elas não querem se
diluir na cultura de massas da “Modernidade líquida”, como
chama Zygmunt Bauman. Esse esforço para consolidar costu­
mes tradicionais em uma sociedade fechada ao diferente leva,
às vezes, tais grupos à tendência de se fecharem em seus ritos.
Outra dificuldade é que, como todo diálogo, o contato inter-
-religioso supõe igualdade entre os parceiros. É difícil juntar
padres e pastores vindos das universidades com xamãs indígenas
e mães de santo de cultura oral e popular.8

7 Cf. FABRI DOS SANTOS, Márcio (org.). Teologia e novos paradigmas. São
Paulo: Soter/Paulus, 1998. CORBI, Marià. Indagacions sobre elfutur. Barcelona:
Centre Català de Prospectiva, 1991. Religión sin religión. Madrid: PPC, 1996.
ROBLES, J. Amando. Repensar la religión. De la creencia al conocimiento,
San José de Costa Rica: EUNA, 2001. E outros: BINGEMER, Maria Clara L.
(org.). Violência e religião; três religiões em confronto e diálogo, Rio de Janeiro:
Ed. PUC-Rio/LoyoIa, 2002. KURTZ, Lester R. Gods in the Global Village. The
World's Religions in SociologicalPerspective. Thousand Oaks, Calif.: Pine Forge
Press, 1995. USA, London, New Delhi. Sobre a crise no Cristianismo: W . AA.
Cristianismo em crise? Revista Concilium 311 (2005/3).
8 Os Encontros Intereclesiais de Comunidades de Base no Brasil são encontros
nacionais de CEBs. Desde a década de 1970, tinham-se constituído como ecu-
Amtell TRANSPARÊNCIA DO A bSOLUTO.TeOIOGIA PARA UMA ESPIRITUALIDADETRANSREU6I0SA

A teologia subjacente aos


encontros oficiais
Apesar do risco de generalização, pode-se dizer que existem
dois tipos fundamentais de iniciativa inter-religiosa. O primeiro é
constituído por encontros promovidos por representantes oficiais
das religiões e Igrejas. Esse modelo obedece aos projetos das
instituições religiosas que o promovem. A referência é a própria
teologia. Por exemplo: em 1996, o Papa João Paulo II convocou
o Jubileu do Ano 2000, que visava uma nova evangelização do
mundo e uma renovação da fé cristã nos ambientes católicos.
No contexto do Jubileu, propôs um encontro inter-religioso que,
por ocasião do ano 2000, unisse as religiões abraâmicas (judeus,
cristãos e muçulmanos) para dar um sinal da fé comum no único
Deus. Tal evento não chegou a ocorrer, mas foi pensado dentro
do projeto do Jubileu, cujo conteúdo mais explícito era, ao lado
de insistir no perdão das dívidas dos países pobres, receber em
Roma uma multidão imensa de peregrinos que lá iriam para
ganhar indulgências. O desejo ecumênico do papa em nenhum
momento questionou a tradição católico-romana das romarias e
das indulgências. O próprio fato de se tratar de um encontro das
religiões abraâmicas para testemunhar a fé em um único Deus
continha algo de depreciativo com relação a outros caminhos
espirituais que não fariam essa mesma profissão de fé, assim
como os próprios judeus e muçulmanos poderiam não gostar

mênicos e macroecumênicos, não tanto em sua definição de inter-religiosos, mas


em sua composição popular de abertos a pessoas que fazem a síntese espiritual
entre o Cristianismo e outras religiões. Em tempos recentes, tais encontros, co­
ordenados por bispos católicos anfitriões, têm revelado uma dificuldade cada vez
maior de manter esta abertura. Quem se lembra do 8o Encontro Intereclesial de
Santa Maria, Rio Grande do Sul, em 1992, sabe que os sacerdotes e sacerdotisas
de cultos afros e indígenas foram impedidos de se apresentar como participantes
do encontro. No 12o Encontro, em Porto Velho, em 2009, até mesmo pastores de
Igrejas evangélicas tiveram tal dificuldade. Mais ainda pessoas ligadas a outras
religiões.
Marcelo Barros

da proposta de encontrar-se “a partir de Jesus Cristo”, como


propunha a encíclica Tertio Millenio Adveniente.
A teologia subjacente a esses encontros parte da tradição
de cada Igreja, principalmente daquela que os organiza. Não
é possível nenhum passo adiante do que cada grupo religioso
considera dogma. Ninguém aceita colocar em questão o seu
modo de pensar. Por isso, os encontros se restringem às boas
relações e ao desejo da paz.
Nos encontros inter-religiosos de oração pela paz, que o
papa convocou para Assis, (1986-2003), os convites convoca­
tórios faziam questão de dizer que os líderes das religiões se
encontravam para estar juntos e orar. Não oravam juntos, mas
se encontravam juntos para orar. Havia momentos em comum
e uma declaração final, mas as orações eram vividas separa­
damente. O fato de se encontrarem para orar mas não orarem
juntos é salientado tanto que parece tão ou mais importante do
que o próprio encontro. É como se, ao contrário da proposta do
Papa João XXIII, se frisasse mais o que divide do que o que
já pode unir.
Em setembro de 2007,138 importantes personalidades mu­
çulmanas, entre as quais grandes muftis de 43 nacionalidades
diferentes e até de correntes diversas do Islã, escreveram uma
carta ao Papa Bento XVI. Nessa carta propuseram princípios
de uma teologia comum: “O futuro do mundo depende da paz
entre muçulmanos e cristãos. A base desta paz e desta compre­
ensão mútua já existe. Ela faz parte dos princípios que estão
nas bases das duas religiões: o amor do Deus único e o amor do
próximo...”.9 Até aqui, o Vaticano não respondeu. E o Cardeal
Jean-Louis Tauran, que, no Vaticano, é o presidente do Conselho
para o Diálogo Inter-Religioso, declarou publicamente:

9 L’appel au dialogue. La Vie 3243, semaine du 25 octobre 2007, p. 66.


A FRÁGIL TRANSPARÊNCIA DO AbSOLUTO.TEOLOGIA PARA UMA ESPIRITUALIDADE TRANSRELIGIOSA

Esta carta (dos islamitas) apresenta os dois mandamentos


fundamentais do amor de Deus e do amor ao próximo
como palavra comum que oferece ao diálogo a base
mais teológica possível. Entretanto, neste momento,
não é possível um diálogo teológico com o Islã porque,
contrariamente aos cristãos, que reconhecem a mediação
humana na escritura da Bíblia, os muçulmanos conside­
ram que o Corão vem diretamente de Deus e não pode
ser colocado em causa.101

Parece uma afirmação contrária ao que propunha Pierre Cla-


verie, bispo mártir da Argélia: “O diálogo é um espírito pelo qual
o outro me revela uma parte da verdade que ainda me falta”.11
Em alguns desses encontros oficiais, o cuidado principal
parece ser o de respeitar os graus hierárquicos e que o encontro
sirva, mais do que para unir grupos diferentes, para firmar o
poder sagrado dos hierarcas presentes. Assim sendo, tudo é
previsto de acordo com os dogmas de cada grupo e o cuidado
com a hierarquia dos considerados mais “importantes” (existe
uma hierarquia entre o papa e um babalorixá africano e esta
deve ser respeitada).
O dalai-lama também tem promovido encontros inter-religio-
sos que fortalecem o seu projeto de chamar a atenção do mundo
para o drama do Tibet. A teologia dele é que as religiões são
diversas e isso é bom. Cada pessoa siga a religião que mais o
ajuda a ser um ser humano de compaixão. O normal para um
tibetano é ser budista, como para um brasileiro é ser cristão.
Essa teologia é simpática e inofensiva, mas não ajuda a colocar
os grupos religiosos em processo de crescimento no encontro

10 Cf. La réponse du cardinal Jean-Louis Tauran. La Vie 3243, semaine du 25 octobre


2007, p. 67.
11 ESCAFFTT, Jean-Claude. Défis du débat interreligieux. La Vie 3223,7juin 2007,
p. 94.
Marcelo Barros

com o outro. Cada grupo se dispõe a acolher, mas sem se co­


locar em questão.
Em alguns países da África, autoridades muçulmanas con­
vocam representantes de outras religiões para comemorar datas
importantes do calendário muçulmano, o que é ótimo como
sinal de diálogo, mas, ao mesmo tempo, é limitado pelo próprio
âmbito do encontro. ■ -

Teologias subjacentes a eventos


inter-religiosos mais laicais
O segundo tipo de encontros inter-religiosos é representado
por iniciativas e fóruns realizados por organizações leigas (con­
sagradas à paz, por exemplo), ou por grupos espiritualistas de
tendência íransreligiosa. Nesse modelo, as pessoas se encontram
como crentes e procuradores da comunhão e não como líderes
ou representantes oficiais de cada religião. Esse próprio fato leva
o encontro a ser mais livre e menos preocupado com a exatidão
dos dogmas e os limites das normas canônicas. Nesse tipo de
encontros, os participantes experimentam gestos e ritos muito
expressivos e comoventes, como abraços de paz entre judeus
e muçulmanos, ou celebrações, nas quais uma mãe de santo
abençoa um pastor evangélico.
Frequentemente, uma teologia subjacente a esses encontros
é a de que as religiões são em si relativas e o mais importante
é a espiritualidade que cada uma vive e testemunha. Todas as
tradições religiosas têm uma riqueza e mais do que isso: na sua
diversidade de linguagem ou de expressões culturais, todas, no
plano mais profundo, propõem a mesma coisa, contêm a mesma
verdade. Simplesmente se eqüivalem...
A rateiLtransparência do A bsolutoJ eoiiogia para ÜMA ESPIRITUALIDADE TRANSREUGIOSA

Na maioria das vezes, esse julgamento teológico sobre as reli­


giões é emitido por quem, em geral, não pertence a nenhuma. Às
vezes, parece quase uma forma de se desvencilhar da obrigação
de avaliar cada religião em si mesma. Diz-se algo de todas, “de
fora”, sem a preocupação de verdadeiramente aprofundar cada
uma em sua originalidade.
Mesmo que tal teologia não seja expressa em seus detalhes,
no fundo as autoridades religiosas percebem que é este o pensa­
mento dominante nesses meios espiritualistas ou macroecumê-
nicos mais livres. E vários, principalmente os líderes de Igrejas
cristãs, as autoridades do Judaísmo tradicional e vários grupos
do Islã, por princípio, os rejeitam ou têm com tais grupos uma
relação de desconfiança e certo desprezo. Não os consideram
grupos sérios. Por outro lado, como as pessoas que participam
desses encontros mais abertos não representam o seu grupo
religioso, nem pedem permissão a seus chefes para participar,
não conseguem envolver a comunidade nesse caminho e difi­
cilmente tais encontros têm conseqüências concretas no avanço
do caminho de diálogo e integração das religiões.

Uma breve apreciação dessas teologias


Pode-se dizer que os encontros e fóruns inter-religiosos não
conseguiram, ainda, explicitar uma teologia comum, ou, ao
menos, uma base teórica que fundamente melhor a experiência
dos encontros e possibilite avançar mais na direção da comunhão
e da construção da paz. Não somente falta esta teologia inter-
-faith como é evidente que a teologia ainda vigente nos diversos
grupos religiosos não favorece um encontro que vá além de
uma colaboração comum para os problemas da sociedade e de
relacionamentos cordiais por parte dos representantes religiosos.
Por mais que se tenha boa vontade com o outro, o inclusivismo
Marcelo Barros

teológico não favorece a perspectiva espiritual de um aprender


do outro. No caso da Igreja Católica, é preciso reconhecer que
a escravidão, indígena ou negra, assim como a condenação das
religiões populares, não foram iniciativas macabras de algum
eclesiástico mais desumano do que os outros, mas sim uma
decorrência natural da teologia vigente nos setores eclesiais.
Se não se modifica tal patamar de teologias confessionais
fechadas, como esperar que as novas experiências de diálogo
inter-religioso possam ser aprofundadas?
Tanto no primeiro modelo de encontros inter-religiosos aqui
citados como no segundo tipo, esses eventos podem colaborar
muito para a paz e a transformação do mundo, se as pessoas que
deles participam o fazem por uma verdadeira espiritualidade do
diálogo e da comunhão. Certos elementos dessa espiritualidade
já fazem parte da experiência de muitos participantes. A ética
do diálogo, a humildade de valorizar o outro e, enfim, a mística
da paz, como uma utopia à qual servimos, são ferramentas neste
caminho de construção do mundo transformado.
A falta desses princípios espirituais fundamentais por parte
de alguns participantes pode explicar fragilidades no processo
de diálogo e encontro. A espiritualidade mais explícita evita que
os encontros (qualquer que seja o modelo em que forem feitos)
sejam como meros espetáculos ou instrumentos de propaganda
para um determinado grupo religioso se autopromover. Nem se
restringe a uma diplomacia tão cuidadosa que engessa a profecia.
Em diversos encontros e cursos, é comum escutarmos mis­
sionários católicos que trabalham na Coréia do Sul e em alguns
países da África declararem que, em seus esforços para dialogar
e se integrar com outras religiões, não têm encontrado o mesmo
interesse de diálogo e de trabalho em comum por parte de outras
tradições espirituais. No diálogo inter-religioso, não é justo que
uns definam os outros. Não nos compete dizer o que os outros
A FRÁGILTRAHSPABÊHOA DO ABSOlUTO.TtOUlGIA MBA UMA tSPIMTUAUBADE TRANSREL1GIOSA

pensam ou creem. Entretanto, não se pode negar que, algumas


vezes, o diálogo inter-religioso parece ser mais do interesse dos
cristãos do que de outras religiões. Quando lhes é pedido, há
religiosos de outras tradições que aceitam a proposta do diálogo
e de colaboração mais como concessão do que por convicção e
compromisso espiritual ou teológico. É bom aprofundar as ra­
zões teológicas disso, seja na própria história (os cristãos vieram
como colonizadores e agora querem dialogar?), seja também nos
elementos da própria fé. Por exemplo: como religiões de caráter
oral e de tradição mistérica (íntima ou secreta) podem dialogar
com uma religião dominante, habituada à clareza doutrinai e
que não tem percepção do segredo da fé? Além disso, comu-
mente esses encontros são ligados a preocupações com a paz,
a justiça e o cuidado com a natureza. Nem sempre o modo de
as religiões expressarem a relação entre a fé e o cuidado com
o social é o mesmo.
Da parte das Igrejas cristãs há uma tendência a trabalhar
pelo diálogo inter-religioso em países nos quais o Cristianismo
é minoritário ou marginal (por exemplo, países nos quais o
Islã é a religião oficial do Estado) e não ligar tanto ao diálogo
com outras religiões quando a Igreja é majoritária. Na América
Latina, alguns grupos de religião popular pensam que, depois
de um tempo em que a Igreja os perseguia e condenava, esta
agora os procura para cooptá-los. Como o Cristianismo parece
perder terreno, as Igrejas estariam inventando pastoral afro ou
indígena para reconduzir ao âmbito eclesial grupos e pessoas
que estavam saindo.
Infelizmente, tanto nos encontros inter-religiosos, promovi­
dos por líderes religiosos como nos encontros de caráter mais
livre, feitos por grupos espiritualistas ou de trabalho pela paz,
a dimensão crítico-profética nem sempre é bastante forte. Nos
ambientes dos fóruns sociais, de âmbito mundial, ou de caráter
Maretk) Banos

local, os que se propõem a encontros inter-religiosos tendem a


valorizar a inserção sociopolítica. No entanto, em geral, ainda
não existe uma linha de encontros inter-religiosos, a partir dos
pressupostos e do jeito de ser das comunidades populares e da
teologia da libertação. Não porque os grupos engajados em tais
encontros rejeitem essa influência, mas porque os grupos popu­
lares ainda não se engajaram suficientemente em tal processo de
encontros inter-religiosos e uns não conhecem suficientemente
os outros.
É, então, um desafio urgente aprofundar elementos e instru­
mentos dessa espiritualidade transreligiosa a partir das opções
da teologia da libertação. Ela é transreligiosa não no sentido de
abolir as religiões ou de substituí-las, mas sim de ir além dos
condicionamentos e limitações de cada uma.

Esboços fragmentados de
teologias transreligiosas
Mesmo se não podemos dizer que existe “uma” teologia
transreligiosa elaborada e comum a grupos ou entidades que
atuam nesta área, é possível, sim, afirmar que, nos eventos
macroecumênicos e em entidades consagradas a este assunto
existem elementos teológicos que podem ser reunidos no esbo­
ço de uma teologia interespiritual (o termo é impróprio, mas
expressa uma relação entre tradições espirituais diversas) que
pode também ser transreligiosa (no sentido de unir elementos
de várias religiões). Tradicionalmente, a teologia aprofunda
a expressão de uma fé que é adesão a Deus em um caminho
concreto. Como é expressão de um engajamento que é sempre
pessoal e comunitário, a teologia comumente é cristã evangélica
ou católica, muçulmana sunita ou budista tibetana. Quanto mais
localizada e inserida, mais possível de se aprofundar. Por causa
A FRÁGIL TRANSPARÊNCIA DO ABSOLUTO.TEOLOGIA PARA UMA ESPIRITUALIDADE TRANSREUGIOSA

disso, há quem pense ser impossível falar de uma teologia trans-


religiosa. De um certo modo, isso é verdade. Aqui mesmo fiz
uma alusão crítica a certa teologia que é negativa com relação
às religiões, e é um pensamento desenvolvido por pessoas que
não vivem a experiência em nenhuma comunidade religiosa
concreta, portanto nem as conhece suficientemente para criticar.
Uma teologia transreligiosa não parte desse tipo de pressupostos.
Ela parte da experiência concreta de pessoas e grupos que vivem
a fé e o engajamento de busca da intimidade divina na relação
entre grupos religiosos e espirituais, situando-se na confluência
do transreligioso. Quem conheceu o monge beneditino Bede
Griffis, que foi abade do Mosteiro de Prinash (Inglaterra) e se
tornou sanyasi na índia, sem deixar de ser monge cristão, sabe
que ele viveu uma experiência transreligiosa não por desprezo ou
desenraizamento de uma comunidade concreta, mas sim como
vocação intercultural e interespiritual (no sentido que usamos
aqui). No seu livro Retorno ao Centro, afirma:

Além de ser cristão, preciso ser hindu, budista, jainista,


zoroastrista, sikh, muçulmano e judeu. Só desta manei­
ra poderei conhecer a verdade e encontrar o ponto de
reconciliação de todas as religiões... Esta é a revolução
que se deve processar na mente do ser humano ocidental.
Há séculos, ele vem se voltando para fora, perdendo-se
no espaço exterior. Agora, precisa voltar-se para dentro
e descobrir o seu ser; empreender a longa e difícil cami­
nhada ao Centro, profundo interior do Ser.12

E importante saber que ele escreveu isso antes de todo o


desenvolvimento da teologia pluralista. Ao reler a experiência
de homens como Bede Griffis, como de tantos índios e negros
que há séculos viveram, e ainda vivem, uma espiritualidade de

12 GRIFFITHS, Bede. Retorno ao Centro. São Paulo: Ibrasa, 1992. p. 9.

m
Marcelo Barros

pertença a duas ou três religiões, sem dualismos nem descom-


promisso para com nenhuma, podemos, então, compreender os
fundamentos de uma teologia transreligiosa e interespiritual. Ela
não será uma teologia desligada das teologias particulares de
cada religião, mas poderá ir além delas. Não busca uma síntese
artificial que acabaria sendo colonialista, mas convive com os
fragmentos nem sempre unificáveis de cada caminho. Com
todo o respeito pelo avanço positivo e profético que o esperanto
significa para a babel de línguas no mundo, no campo das teo­
logias particulares uma teologia transreligiosa terá de ser mais
do que uma espécie de “esperanto teológico”, porque ela parte
de uma base e toma como objeto de reflexão experiências que
são, muitas vezes, de grupos e crenças concretas que ela não
pretende substituir, mas sim abrir mais ao outro e completar.
Em resumo: ela se constitui como um conjunto de subsídios a
serem somados às teologias particulares abertas ao pluralismo.
Os elementos esparsos de teologias transreligiosas se refe­
rem, por exemplo, ao que se começa a chamar de ecoteologia e
à espiritualidade ecológica a ela ligada. Se lermos livros sobre
isso, descobriremos que cada tradição parte de elementos da
sua cultura e sublinha aspectos complementares a outras. As
reflexões vindas da tradição hindu ou budista sublinharão a
sacralidade do universo e o principio da compaixão presente
em todas as criaturas. As de tradição cristã, provavelmente,
terão como base uma teologia bíblica da criação e uma refe­
rência à tradição patrística do Oriente muito mais aberta do
que a teologia ocidental no que diz respeito à positividade da
realidade do mundo. Se vierem de tradições afros, insistirão na
sacramentalidade dos elementos naturais e na incorporação da
divindade por cada pessoa. Entretanto, a partir desses pontos
de partida específicos a teologia sobre o cuidado com o am­
biente se constrói de forma tão semelhante entre as tradições
A FRÁGIL TRANSPARÊNCIA DO A bSOLUTO-TeOLOGIA PARA UMA ESPIRITUAL10A0E IRAMSREÜGIOSA

que podemos vislumbrar ali um elemento importante de uma


teologia transreligiosa. O mesmo se poderá dizer sobre uma
teologia da paz, sobre a busca de uma ética comum planetária
e assim por diante.1314
Um dos principais elementos de uma teologia da libertação
é partir sempre da prática. Uma teologia transreligiosa se refere
à prática dos encontros interespirituais que reúnem pessoas de
várias religiões, mas vai além disso. Não só reúnem pessoas
que não são de nenhuma religião, como também convidam
os próprios crentes das diversas tradições a irem além de
suas confissões na formulação prática ou expressão de uma
espiritualidade transreligiosa. O prefixo trans pode significar
através de, como um transatlântico é um navio que atravessa o
oceano Atlântico. É trans porque percorre as diversas tradições
religiosas (portanto, não as rejeita ou supera), mas para levá-las
além de si mesmas, como é a vocação espiritual de toda pessoa
e todo grupo que quer ser de Deus. Esta teologia transreligiosa
é na linha da teologia da libertação quando assume um caráter
crítico com relação à realidade e se compromete em, partindo
dos pequenos, inserir-se em sua caminhada de libertação. Esta
teologia pode fazer de grandes desafios contemporâneos, como
são a ecologia, a justiça internacional, a questão de gêneros e
outras questões, caminhos de espiritualidade e, no caso, espi­
ritualidade transreligiosa ou que vá além da referência a uma
religião apenas. O Espírito que chama a todos para além de si
mesmos reúne pessoas e grupos em um espaço para além das
instituições (transreligioso?)}4

13 BARROS, Marcelo; FREI BETTO. O amor fecunda o universo (ecologia e


espiritualidade). São Paulo: Ed. Agir/Ediouro, 2009. p. 73 ss - principalmente
o terceiro capítulo: O rosto divino da natureza.
14 Apesar da ambigüidade do termo “interespiritual”, emprego-o aqui no sentido
de uma busca que integra não só caminhos religiosos, mas propostas mais livres
e espirituais. Por exemplo: no encontro entre experiências espirituais cristãs e
Marcelo Barcos

Elementos de uma teologia transreligiosa


Seguramente, se quem escrevesse estas páginas fosse de tra­
dição budista ou xintoísta, os elementos sublinhados, certamen­
te, seriam outros. Os aqui destacados são alguns entre outros e os
valorizo apenas para iniciar certa classificação ainda provisória
e a partir de minha experiência de trabalho e de compromisso
com esta causa dos encontros e eventos interespirituais.

O caráter de uma teologia


espiritual apofática
Toda teologia, de qualquer religião que seja, é, antes de tudo,
confissão de fé e adoração do Mistério uno e múltiplo que não
pode ser contido por nenhuma tradição isolada. Uma teologia
possível de ser chamada “transreligiosa”, mais do que qualquer
outra, precisa assumir o caráter de teologia espiritual e apofá­
tica. Isso significa que ela parte da reverência silenciosa e não
pretende explicar o inexplicável. O seu objetivo é aprofundar
teologicamente as intuições e propostas da espiritualidade plu­
ralista e transreligiosa. Valoriza o pluralismo cultural e inter-
-religioso, não apenas como fato inevitável, mas como bênção
divina para a humanidade. Valoriza a diversidade religiosa não
apenas como direito humano, mas como valor espiritual. E se
centra na interioridade. Este “interiorismo” não pode ser con­
fundido com um caminho meramente individual, menos ainda
individualista. Não se trata de negar a dimensão comunitária e
mesmo organizativa das tradições espirituais e sim de buscar
um jeito de tirá-las de uma cultura autorreferente e autocentrada.

budistas elas podem ser inter-religiosas, podem ser transreligiosas, além de serem
interculturais. Uma busca de convergência entre experiências espirituais Xavante
e Guarani não é em si inter-religiosa ou transreligiosa, já que elas têm por trás
uma tradição cultural e espiritual, mas não uma ou duas religiões organizadas e
estruturadas como religiões.
AFBÁ61Í TRANSPARÊNCIA DO ABSOLUTO.TEOLOGIA PARA UMA ESPIRITUALIDADE TRANSRELIGIOSA

Contemplação do mistério uno e múltiplo


A pergunta sobre Deus tem de ser colocada sempre para
ajudar as pessoas que se lançam neste caminho a superar certas
estreitezas das tradições, como, por exemplo, querer definir se é
monoteísta ou politeísta, ou panteísta, ou, ainda, sincretista. Tais
catalogações simplificam demais os conceitos, podem cair em
dogmatismos e não ser justas com a fé de muitas pessoas que
não entram nesses esquemas. Em geral, as tradições indígenas
e negras, por exemplo, reconhecem uma fonte única de tudo,
um Mistério maior que seria um único Deus (Olorum, Zambi,
ou Manitu, ou Tupã) e muitas manifestações e expressões deste
Mistério divino.15
A Teologia Pluralista do Apofatismo tem, hoje, dificuldade
com cultos que, de forma superficial ou quase vulgar, não he­
sitam em nomear Deus como Senhor Todo-Poderoso e reler os
textos da tradição de forma fundamentalista. Nesse sentido, uma
oração centrada na tradição vocal (recitar textos antigos) que,
por muitos séculos, alimentou gerações, hoje não apenas põe
problemas ecumênicos como pode não alimentar quem não se
conforma só em repetir confissões feitas em outros contextos
culturais.
Na Europa, em alguns ambientes tocados pelo secularismo,
grupos cristãos fizeram uma tradução adaptada dos salmos,
tentando explicitar menos atributos divinos, como evitar desig­
nações patriarcalistas e exclusivistas. O esforço, ainda incipiente,

15 Sobre Deus, olhado nesta perspectiva pluralista e inter-religiosa, ver: BARROS,


Marcelo; TOMITA, Luiza. Uno e múltiplo: Deus numa perspectiva pluralista.
Teologia latino-americana pluralista da libertação. São Paulo: Paulinas, 2006.
Terceiro livro da coleção “Pelos muitos caminhos de Deus”, da ASETT, publicado
em português por Paulinas Editora. Serie original completa está disponível em:
<http://tiempoaxial.org/>.
Marcelo Barres

contém uma opção de amor e de cuidado com o outro que indica


esta espiritualidade transreligiosa.
Em muitas religiões, como em muitos eventos transreligiosos,
a teologia subjacente e que pode ser desenvolvida é na linha de
uma pneumatologia macroecumênica. Mesmo tradições não
teístas conseguem sentir-se bem, quando se fala do mistério
como “Espírito” e energia amorosa. É também uma abertura
a uma teologia feminista macroecumênica que vê na figura do
Espírito Mãe e Esposa uma imagem que sintetiza divindades
femininas e o simbolismo de toda mulher.

Abrir-se aos novos sacramentos do outro


O poeta e filósofo Paul Éluard afirmava: “Não convém ver
a realidade tal como eu sou”.16Essa constatação filosófica vale
ainda mais para o campo do encontro intercultural ou interes-
piritual. Infelizmente, a tendência das religiões é serem autos-
suficientes e autorreferentes. Isso faz com que grande parte das
pessoas não consiga mais encontrar nelas aquilo que se espera.
Em 1965, o Concilio Vaticano II afirmava:

O s hom ens esperam das diversas religiões resposta para


os enigm as da condição humana, os quais, hoje com o
ontem , profundam ente preocupam seus corações: que é
o hom em ? qual o sentido e a finalidade da vida? que é o
pecado? donde provém o sofrim ento, e para que serve?
qual o cam inho para alcançar a felicidade verdadeira?
que é a m orte, o ju ízo e a retribuição depois da morte?
finalm ente, que m istério últim o e inefável envolve a nossa
existência, do qual v im os e para onde vam os? (
Aetate, n. 1).

16 Cf. BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. São Paulo; Martins Fontes,


1999. p. 1.

m
A frágil transparência do A bsoluto.T eologia para uma espiritualidade transreligiosa

Se, hoje, as religiões não conseguem cumprir esta missão,


não é o caso de pretender substituir isso por alguma estrutura
transreligiosa ou intercultural. Seria uma nova religião transre-
ligiosa. Theo Sundermeier afirmava: “A religião é uma resposta
coletiva dos seres humanos à experiência da transcendência que,
concretamente, se expressa em ritos e em normas éticas”.17 E
Raimon Panikkar diz: “A religião é o caminho que o ser humano
toma para conseguir a meta da vida. Em resumo: a religião é o
caminho da salvação”.18Ao afirmar isso, parece que ambos os
teólogos se referem mais a uma experiência espiritual das pes­
soas, contida nas religiões, do que, em si, à estrutura religiosa.
Uma teologia espiritual transreligiosa reafirma isso, mas trans­
põe essas afirmações para a experiência espiritual do outro. O
que as religiões ofereciam para a salvação das pessoas, de certa
forma, não lhes pertence. São elementos que, no Cristianismo,
se chamam “sacramentos”, mas existem em todas as religiões.
No Judaísmo, a circuncisão e o Yom Kipur têm características
de sacramentos. No Islã, a esmola feita durante o Ramadã, a
peregrinação a Meca e outros ritos têm densidade semelhante.
No Candomblé, os ritos de iniciação e as festas que adoram os
Orixás nos diversos elementos da natureza... No Santo Daime,
a bebida sagrada... Enfim, em todas as tradições há caminhos
e instrumentos que nos religam ao Divino.
Hoje, o diálogo interespiritual e o próprio encontro com o
outro se constituem como sacramentos fundamentais desta
espiritualidade nova. Tais eventos não são cotidianos e, para
serem profundos e verdadeiros, supõem uma vida espiritual
na qual a referência ao outro seja constante e estrutural. Os
encontros e fóruns inter-religiosos podem nos tornar capazes

17 SUNDERMEIER, Theo. Was ist Religion? Religionswissenschaft im theologis-


chen Kontexí. Ein Studienbuch. Gütersloh, 1999. p. 27.
18 PANIKKAR, R. II dialogo interreligioso. Assisi: Cittadella, 2001. p. 166.
Marcelo Barros

de nos alimentar dos sacramentos que vêm dos outros e podem


nos ligar ao Amor Divino que se comunica conosco mais através
do diferente do que de nossas próprias referências culturais e
religiosas.

Uma mística centrada na Vida


A teologia transreligiosa parte da mesma proposta da teologia
da libertação de ligar profundamente fé e vida, espiritualidade
e compromisso transformador. Isso ocorre quando os encontros
inter-religiosos se centram em assuntos como paz, justiça e eco­
logia. Entretanto, não se trata apenas de grandes temas e sim
do cuidado em testemunhar um tipo de espiritualidade aberto
à vida e grávido de esperança.
Atualmente, no mundo mais secularizado, para que isso possa
se expressar de forma verdadeiramente ecumênica, tal tipo de
expressões (encontros, atos inter-religiosos e cultos) terá de ser
extremamente sóbrio e desapegado de certos estilos que não
ajudam. Por questão de justiça e de opção pelos empobrecidos,
essa teologia transreligiosa tem de valorizar prioritariamente
as expressões espirituais e caminhos tradicionais dos grupos
oprimidos. Na América Latina, mas certamente também na
África, como na Austrália, os grupos tradicionais indígenas e
de religiões autóctones sofreram todo tipo de perseguições. As
próprias culturas dos índios e dos negros tinham sido pratica­
mente consideradas como em extinção. Há dez anos o Padre
Comblin escrevia: “No Ocidente, a cultura ocidental moderna
ainda não acabou de exterminar toda a cultura Pré-Moderna e
ainda o movimento científico como tal entra em contradição
com essa cultura tradicional e a expulsa irreversivelmente”.19

19 COMBLIN, J. Cristãos rumo ao século XXL Nova caminhada de libertação.


São Paulo: Paulus, 1996. p. 250- 268.
A FRÁGIL TRANSPARÊNCIA DO ABSOLUTO.TEOLOGIA RARA UMA ESPIRITUALIDADE TRANSRELIGIOSA

Um sociólogo brasileiro confirmava: “O poder expansivo dos


meios de comunicação parece ter abolido, em vários momentos
e lugares, as manifestações da cultura popular, reduzindo-as à
função de folclore para turismo”.20
Entretanto, apesar de tudo isso, essas culturas não só resistem
como até se fortalecem. Esse movimento transreligioso aprende
muito da vitalidade espiritual e da abertura intercultural dessas
expressões. Mesmo se elas também precisam sempre ser reli­
das, nada disso diminuirá a dimensão do mistério contido no
amor e no respeito profundo ao outro, que toma mesmo uma
fisionomia mística.
O filósofo e espiritualista italiano Ernesto Balducci assim
se expressou:

Depois do universalismo político do Império Romano,


tivemos o universalismo teocrático. Roma passou a ser
o papado. Não se esqueçam que foi a autoridade do papa
que legitimou e tomou cristã a invasão da América e o
genocídio que ali se cometeu. Depois, chegamos ao uni­
versalismo moderno, laical e republicano, mas igualmente
autorreferente e sem sentido do Outro. Martin Buber dizia
que o homem de hoje é um homem sem casa. Mas será
que aceitamos este empobrecimento, ou procuramos segu-
ranças artificiais nos sistemas que nos prometem reforçar
a identidade, mas sem nenhum senso de alteridade?21

20 BOSI, A. Dialética da colonização. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras,


1995. p. 328.
21 BALDUCCI, Ernesto. L 'altro, un orizzonteprofético. Firenze: Ed. Cultura delia
Pace, 1996. p. 13ss.

m
Martelo Barros

O rabino Abraham Heschel expressa tal realidade quando


escreve:

É o sentido do sublime que devemos considerar como


a raiz das atividades criativas do ser humano nas artes,
no pensamento e na nobreza da vida. [...] A tentativa de
comunicar o que vemos e não conseguimos dizer é o
eterno tema da sinfonia inacabada da humanidade. É uma
aventura cuja realizaçãojamais será consumada. Somente
aqueles que vivem de palavras emprestadas acreditam na
sua capacidade de expressão. Uma pessoa sensível sabe
que o intrínseco, o mais essencial, nunca é expresso.22

22 HESCHEL, A. O homem não está só. Sâo Paulo: Paulus, 1974. p. 16.
Teologia e pluralismo religioso.
Questões metodológicas

A genor B righenti

A abordagem em questão apresenta uma dificuldade inicial:


ao relacionar “pluralismo” e “teologia” se poderia pressupor, de
antemão, a pluralidade de teologias como um fato já legitimado.
Entretanto, a pergunta primeira endereçada à própria teologia
é se ela pode ser plural e, em particular, no caso da teologia no
seio da Igreja Católica, se é possível a coexistência de diversas
teologias, sem comprometer a unidade ou a catolicidade da fé.
Outra questão, sem entrar no mérito da discussão do fenômeno
do pluralismo em si, está em precisar o que se entende por “teolo­
gia” e como situá-la no contexto de pluralismo religioso atual. A
terceira se refere às condições de possibilidade de uma teologia
plurirreligiosa ou pluriconfessional, ou, mais radicalmente, de
uma teologia transreligiosa ou transconfessional. Questão esta
que remete, entretanto, a outra dificuldade que lhe é subjacente:
dado que todo saber é contextualizado e que a religião é a alma
de uma cultura, é preciso perguntar antes sobre as condições
de possibilidade de uma teologia pluricultural ou transcultural.
A pluriculturalidade precede a pluriconfessionalidade, assim
como uma possível transculturalidade precede as condições de
possibilidade de uma teologia transconfessional.
Como se pode perceber, são questões que nos remetem
à semântica (“o quê”) e à sintática (“o como”) da teologia.
T eologia e pluralismo religioso. Q uestões metodológicas

Entretanto, dado os limites destas poucas páginas disponíveis,


nossa reflexão não pode pretender ser tão abrangente. Vamos
nos limitar ao âmbito da semântica da teologia em relação ao
pluralismo religioso e, por força das circunstâncias, ao plura­
lismo cultural. Assim, além de deixarmos descoberto o campo
da sintaxe, o da semântica estará longe de ser esgotado. É que o
objetivo destas reflexões, mais do que pretender tirar conclusões
programáticas, quer simplesmente trazer elementos para o deba­
te, que certamente ainda por muito tempo continuará em aberto.

I. Pluralismo e teologia
Segundo Mircea Eliade, a maior descoberta do século XX
foi a existência das culturas1 e, com ela, a descoberta da reli­
gião do outro, a alma de sua cultura. Em decorrência, pouco a
pouco foram adquirindo carta de cidadania a pluriculturalidade
e a plurirreligiosidade, com conseqüências irredutíveis para os
paradigmas da racionalidade moderna - para as ciências em
geral, incluída a teologia.
A conseqüência mediata para a ciência teológica é sua re-
fundação epistemológica e metodológica, certamente a mais
desafiante tarefa no futuro próximo da teologia, mas já em franca
atividade. Tarefa esta que começa pela reformulação do próprio
conceito de teologia. A refundação de sua sintaxe pressupõe a
refundação de sua semântica.
Durante muito tempo, o termo “teologia”, nos círculos
cristãos, foi considerado como propriedade exclusiva do

1 Cf. COMBLIN, J. Evangelização e inculturação. Implicações pastorais. In:


FABRI DOS ANJOS, M. (org.). Teologia da inculturalção e inculturação da
teologia. Petrópolis: Vozes/Soter, 1995. p. 57-89 - aqui, p. 57.

m
Agenor Briqhenti

Cristianismo.2 Falar em teologia era referir-se ao discurso


regrado e normatizado da fé no seio das Igrejas cristãs. E, de
modo mais estreito ainda, por “teologia” não se entendia nem
mesmo a teologia cristã, mas tão somente a teologia elaborada
pelo Cristianismo ocidental, e, ainda, no Primeiro Mundo.3Em
outras palavras, o termo “teologia” se restringia não só a um
eclesiocentrismo tributário de uma postura monorreligiosa,
resquício da teocracia medieval, como era acaparado por um
eurocentrismo, fruto de uma miopia etnocêntrica, que desem­
bocava em um Cristianismo monocultural.
Felizmente, a irrupção da pluriculturalidade e da plurirreli-
giosidade na Modernidade tardia implodiu a semântica teoló­
gica tradicional, obrigando a Igreja e os teólogos a alargarem o
conceito de teologia, de tal modo que ela pudesse abrigar sob
suas asas as novas realidades emergentes. E nisto estamos ainda
hoje, com resultados parciais, ainda que uns mais satisfatórios
que outros.
Um desses resultados é uma semântica teológica que passa de
uma teologia monorreligiosa e monocultural ao outro extremo:
uma teologia transconfessional ou transreligiosa.4 Trata-se da
posição de W. Cantwel Smith: a passagem de uma “teologia
cristã” a uma “teologia mundial”, a um metarrelato elaborado a
partir da interação das várias tradições religiosas existentes no
planeta.5Seria uma teologia para a qual as diferentes expressões
religiosas são sujeito e não objeto de um discurso reflexo das

2 Cf. METZ, J. B. La teologia en el ocaso de la modemidad. Concilium 191(1984)


31-39.
3 DUPUIS, J. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso. São Paulo:
Paulinas, 1999. p. 18.
4 Às vezes, dá a impressão que, historicamente, não há como escapar da “lei do
pêndulo”.
5 Cf. CANTWEL SMITH, W. Towards a World Theology: Faith and the Compara-
tive History o f Religion. Philadelphia: Westminster, 1981.

m
Teologia e hjurausmo reugioso. Questões MEioooidacAS

mesmas e na qual todas as religiões e todas as comunidades


religiosas do mundo se reconheceriam.6 Tal projeto consistiria
numa teologia “da fé em todas as suas formas” ou em uma
“teologia da história religiosa da humanidade”.7Nessa hipótese
de trabalho, não é que uma teologia transconfessional ou trans-
religiosa não fosse uma teologia cristã, seria antes uma teologia
de todos - de cristãos e não cristãos, ou seja, uma teologia
“também” cristã, uma vez que é igualmente judaica, islâmica,
hinduísta, budista etc.
Ora, um tal pluralismo teológico esbarra em dois obstácu­
los: de um lado está a singularidade das diversas experiências
religiosas, de outro lado está a singularidade das múltiplas ma­
trizes culturais que dão suporte a tais experiências. Em outras
palavras, se já não fosse pequeno o desafio da singularidade das
diversas tradições religiosas, soma-se a ele a singularidade das
múltiplas matrizes culturais, não só em relação às diferentes
confissões, como no seio de cada confessionalidade. Por isso,
um caminho mais satisfatório seria partir da hipótese, não da
transconfessionalidade e da transculturalidade da teologia, mas
do pressuposto da pluriconfessionalidade e da pluriculturalidade
da teologia. Uma teologia transconfessional e transcultural per­
deria de vista tanto a singularidade e a especificidade de cada

6 Ibid., p. 124.
7 Ibid., p. 125. Numa perspectiva similar, alguns teólogos europeus e norte-ameri­
canos, como H. Küng, J. Moltman, Tracy, Fox, assumindo o vazio de sujeito no
contexto de Pós-Modemidade, têm postulado a necessidade de uma refundação
da teologia numa teologia não confessional, mas ecumênica e macroecumênica,
ecológica e holística. Sobre o paradigma “crítico-ecumênico” de H. Küng, ver:
KÜNG, H. Teologia para Ia postmodernidad. Fundamentación ecumênica.
Madrid: Alianza Editorial, 1989. Ver também: A la búsqueda de un ethos básico
universal de las grandes religiones. Concilium 228 (1990) 289-309. Sobre a pos­
tura de Tracy, ver: TRACY, D. Más allá dei relativismo y dei fundamentalismo?
La hermenêutica y el nuevo ecumenismo. Concilium 240 (1992) 143-153. Dar
nombre al presente. Concilium 227 (1990) 81-107.

IÜ9
Agenor Briqhenti

confissão religiosa como a singularidade e a especificidade


de cada cultura, até mesmo no seio de uma mesma tradição
religiosa.

2. Confessionalidade e teologia
Em primeiro lugar, do lado da religião, um metarrelato trans-
confessional mundial tipo “teologia da religião comparada” ou
“teologia mundial”, construído por todos, esbarra no fato da
existência de “fés religiosas”,8 que se distinguem por seu con­
teúdo próprio, o que faz com que a diversidade dos conteúdos
das várias expressões de fé dê origem, inevitavelmente, a uma
diversidade de teologias confessionais. Como discurso regrado
e normatizado da fé, a teologia não pode deixar de ser confes­
sional, uma vez que o conteúdo próprio de cada experiência
religiosa se dá na adesão de fé da pessoa ou da comunidade,
e aqui se constitui, em última instância, o objeto da teologia.9
É evidente que o caráter confessional de toda teologia não
se esgota na própria confessionalidade. Ao contrário, a con­
fessionalidade própria se explicitará melhor na medida em
que estiver aberta à totalidade da experiência religiosa da hu­
manidade. O confessional, sem um horizonte autenticamente
universal, desemboca em um confessionalismo, caminho para
o fundamentalismo, incapaz de reconhecer e de se reconhecer

8 Entendemos aqui por “fé” a experiência pessoal e comunitária de Deus, no seio


de uma comunidade religiosa.
9 Ainda que o objeto da teologia seja Deus, como diz Tomás de Aquino, como não
temos dele senão uma compreensão da revelação à nossa medida, na prática,
o objeto da teologia acaba sendo a experiência pessoal e comunitária de Deus.
Daí, de modo tão acertado, a teologia latino-americana entender-se como ato
segundo - “reflexão da práxis da fé” ou da “práxis dos cristãos e das pessoas em
geral”, como gostava de dizer Clodovis Boff.
T eologia e pluralismo religioso. Q uestões metodológicas

nas demais denominações religiosas e de se enriquecer com


outras teologias confessionais.101
Entretanto, como bem aponta R. Panikkar, dado que as “fés”
diferem de modo substancial, assim também o farão as teologias.
Segundo ele, na base do imperativo atual de um pluralismo
teológico não está a necessidade de uma “teologia comum”,
que nivele as diferenças e desemboque em um denominador
comum, mas a obrigatoriedade da admissão da pluralidade e da
diversidade de crenças e da aceitação recíproca, em uma relação
de alteridade gratuita e de enriquecimento mútuo. Em lugar da
assimilação recíproca, mediante um possível reducionismo do
conteúdo da fé das diferentes denominações religiosas, antes
se impõe a necessidade de uma abertura dialogai que permita
o enriquecimento mútuo no contexto da diversidade de tradi­
ções.11Isso não anula a possibilidade de uma “teologia geral das
religiões” que enfoque todas em seu conjunto. Mas, nesse caso,
inevitavelmente, será uma teologia de “todas” as confissões des­
de uma experiência religiosa em particular: uma teologia cristã
das religiões ou uma teologia judaica, hindu ou muçulmana das
religiões e não uma teologia transreligiosa ou transconfessional.

3. Culturalidade e teologia
Do lado da cultura, um metarrelato confessional transcultural
mundial esbarra na pluriculturalidade das experiências religio­
sas das diversas confissões religiosas, até mesmo no interior de
uma mesma confessionalidade. Uma pretensa teologia confessio­
nal transcultural não deixaria de ser uma teologia monocultural,
fruto da universalização de uma determinada particularidade,

10 Aqui reside a importância do diálogo ecumênico e macroecumênico para a


teologia.
11 Cf. PANIKKAR, R. II dialogo intrareligioso. Assisi: Cittadella, 1988.
Agenor Briqhenti

na medida em que sua elaboração não escaparia da contingência


do sujeito a uma determinada cultura.
Por isso, as teologias não só são confessionais como são
culturais, em uma relação de pluriconfessionalidade e de
pluriculturalidade, mas não de transconfessionalidade e de
transculturalidade. Por uma dupla razão: primeiro, porque toda
confessionalidade se dá num contexto cultural e pluricultural;
segundo, porque toda experiência religiosa, mesmo no interior
de uma mesma confessionalidade, também acontece em um
contexto cultural singular, distinto do contexto da experiên­
cia religiosa de outras comunidades, no interior da mesma
confessionalidade.
É que os conteúdos revelados da fé, é verdade, são transcul-
turais, mas são sempre recebidos e transmitidos por sujeitos
contextualizados. Isso lembra o axioma tomista - “cognita sunt
in cognoscente secundum modum cognoscentis”.12Não existe
“revelação” não inculturada, o que faz da teologia um discurso
“sobre” o Absoluto e não um discurso absoluto. A teologia é
sempre um produto humano, inevitavelmente ligado ao “para­
digma de uma época”, como afirma Thomas Kuhn.13Por mais
que queira, ela jamais poderá prescindir daquele conjunto de
convicções, valores, modos de pensar e de agir partilhado por
uma determinada comunidade.14Isso desqualifica toda e qual­
quer pretensão de uma versão de Cristianismo não inculturada
ou transcultural e de uma apreensão da mensagem revelada

12 TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica, II-II, q. 1, a. 2c - “as coisas conhecidas


estão no sujeito que conhece, segundo seu próprio modo de conhecer”.
13 Cf. KUHN, Thomas. La struttura delle rivoluzioni scientifiche. Torino, 1969.
[Ed. bras.: :A estrutura das revoluções científicas. Trad. de Beatriz Vianna Boeira
e Nelson Boeira. São Paulo: Editora Perspectiva, 1994.]
14 BELLINO, Francesco. Filosofia da ciência e religião. Panorama. In: PENZO,
Giorgio; GIBELLINI, Rosino (org.). Deus nafilosofia do século XX. Sâo Paulo:
Loyola, 1998. p. 567.
T eologia e pluralismo religioso. Q uestões metodológicas

independente das contingências em que estão inseridos os


receptores da mesma. O que não empobrece em nada a revela­
ção, pelo contrário, livra-a de tornar-se uma ideologia. Como
também livra a teologia de constituir-se num discurso genérico
ou fundamentalista.

4. Pluralismo teológico e unidade da fé


O Concilio Vaticano II funda na “catolicidade da Igreja” as
“legítimas diversidades”, pelo fato de a obra evangelizadora
assumir “os costumes dos povos”, ou seja, suas culturas (cf. LG,
n. 13). A legítima diversidade litúrgica, espiritual, disciplinar,
diz o Concilio, se estende também “em relação à enunciação
teológica das doutrinas” que, “em vez de se oporem, não poucas
vezes se completam mutuamente” (UR, n. 17,1).
A legitimidade do pluralismo teológico se deve a dois fato­
res. Por um lado, ao fato de a realidade da fé ser transcultural,
mas de sua formulação e expressão serem sempre culturais ou
contextuais.15Do lado do mistério da fé está a superabundância
de sentido do texto revelado, que ultrapassa as possibilidades
de toda e qualquer apreensão e interpretação. Do lado de sua
formulação está a inevitabilidade das condições materiais de
toda prática, incluída a prática teórica e, portanto, também a
prática teológica, como são as contingências dos sujeitos, dos
lugares e do interesse.16Como bem explicitaram os filósofos da
práxis, a contingência dos sujeitos rompe com a pretensão de

15 Neste particular, seguirei de perto C. BOFF, Teoria do método teológico. Pe-


trópolis: Vozes, 1998. p. 493-521. Ver também: RAHNER, K. El pluralismo en
teologia y la unidad de confesión de la Iglesia. Concilium 49/50 (1969) 427-448.
GEFFRÉ, C. Diversidad de teologías y unidad de fe. In: AA.VV. Iniciación a la
práctica de la teologia. Madrid: Cristiandad, 1984. p. 123-148.
16 LIBANIO, J. B. Teologia de la liberación. Guia didáctica para su estúdio.
Santander: Editorial SalTerrae, 1989. p. 116. (Col. Presencia Teológica 55.)
Agenor Brlqhenti

objetividade total. Todo ponto de vista é uma visão a partir de


um ponto. Por sua vez, a contingência dos lugares rompe com
a pretensão de universalismo; toda produção teórica é uma
prática contextualizada. E a contingência do interesse rompe
com a pretensão de neutralidade; todo discurso é de certa forma
ideológico, no sentido de interessado.
Por outro lado, a fé é sempre maior que a teologia, é verda­
de, mas não absolutamente inefável e, por isso, capaz de ser
experienciada e refletida criticamente. E, ao ser experienciada,
toma-se cultura. Consequentemente, enquanto reflexão da ex­
periência de fé, toda e qualquer teologia é um produto cultural,
e toda teologia é uma determinada versão de uma confessio-
nalidade, expressão de uma forma de inculturação da fé e, em
conseqüência, um discurso particular. Por isso, as comunidades
confessionais, no seio das diversas culturas, não só podem como
estão condicionadas a ter sua própria teologia sem, em princípio,
atentar contra a unidade da fé. Pois, se uma é a fé, muitas são
as vivências da mesma (Anselmo) e, consequentemente, muitas
serão as teologias. A diversidade de teologias não só é legítima
como se fazem necessárias várias teologias para enriquecer,
com novas perspectivas, a superabundância de sentido do texto
revelado, acolhido em múltiplas experiências de fé.
Entretanto, o pluralismo teológico não pode cair num relati-
vismo teológico, sob pena de comprometer a transculturalidade
da mensagem revelada. Neste caso, não só a teologia seria um
produto cultural como reduziria a revelação a um dado mera­
mente cultural, comprometendo suatranscendentalidade. Diante
da crise dos metarrelatos, não pode a teologia resignar-se ou
confinar-se em minirrelatos fragmentados e autônomos entre
si. Não se pode perder de vista que a unidade é o pivô sobre o
qual se movem as diferenças, o que faz com que uma teologia
só seja legítima quando está em consonância com o conteúdo
T eologia e pluralismo religioso. Q uestões metodológicas

essencial da revelação.17 É sobre o essencial que as diferenças


precisam estar alicerçadas. No interior do mistério revelado,
nem tudo tem o mesmo valor e implica o mesmo grau de vin-
culação. Um sadio pluralismo teológico precisa fundar-se nas
bases universais da fé, de tal modo que estas sirvam de padrão
de mediação da unidade confessional, que se constrói sempre
em torno da verdade, não que possuímos ou possuiremos, mas
que nos possui.

Considerações finais
Tendo presente o que acabamos de expor, tudo parece indicar
que, do lado da religião, é problemática uma teologia transcon-
fessional, mas possível e necessária uma teologia pluriconfessio-
nal. Por isso, ainda que o termo “teologia” seja de origem cristã,
do ponto de vista religioso, quando hebreus, muçulmanos ou
hindus constroem a própria interpretação da fé, seja em relação
à própria confissão, seja em relação ao pluralismo das tradições
religiosas, também fazem teologia. E dado que, do ponto de
vista cultural, essas interpretações intraconfessionais, incluída a
cristã, são feitas desde matrizes culturais diversas, mergulhamos
na inevitabilidade de uma teologia, além de pluriconfessional,
também pluricultural.

17 Cf. RAHNER, K. O pluralismo teológico e a unidade da Igreja. Concilium 6


(1969). LIBANIO, J. B.; MURAD, A. Introdução à teologia. Perfil, enfoques,
tarefas. São Paulo: Loyola, 1996 - de modo especial, p. 245-284. DELHAYE,
Philippe. Unité de foi et pluralisme des théologies dans les récents documents
pontificaux. Esprit et Vie 82 (1972) 561-569.
Agenor Briqhenti

O que há de diferente em uma teologia de caráter plurirre-


ligioso e pluricultural com relação a uma teologia transcon-
fessional e transcultural é que se busca priorizar a realidade à
abstração, a existência à essência, enfim, a experiência viva das
pessoas em suas comunidades, nas circunstâncias concretas,
aos conceitos e generalidades, reflexos de uma miopia religiosa
e cultural.
A teologia interconfessional
é possível?

E d m u n d K ee - F o o k C h ia

A teologia inteconfessional (interfaith) é possível? Minha


resposta instintiva é um não! enfático. Essa resposta, no entanto,
terá de ser amenizada com um cuidadoso, mas persistente, sim!
Tal é a tarefa deste texto. Discutirei por que acho que a noção
de teologia interconfessional parece, em primeiro lugar, um
oximoro e, depois, continuarei para sugerir por que também a
vejo muito como o caminho para o futuro.

A te o lo g ia in te r c o n f e s s io n a l: um oximoro!
Comecemos, então, com a razão pela qual a teologia inter­
confessional parece uma contradição em termos. A teologia,
se aceitarmos a definição tradicional anselmiana, é “a fé em
busca de compreensão”. Ela pressupõe fé. Essa fé é, de um
modo geral, paroquial, um produto de percepções confessionais
da vida e da Realidade Ultima. Cada comunidade religiosa tem
sHa fé específica. Essa fé é algo compartilhado apenas pelos
membros do grupo, a saber, pelos cosseguidores. Fora disso a
fé nãodaz sentido ou pode até parecer um absurdo. Acrescente
o prefixo “inter” à palavra religião e temos o equivalente a algo
entre religiões ou em meio a religiões. Assim, “inter-religioso”
implica o cruzamento de tradições religiosas para desenvolver
A TEOLOGIA INTERCONFESSIONAL É POSSÍVEL?

algo que abarque todas ou pelo menos várias religiões. A teolo­


gia interconfessional, portanto, é aquela teologia que pertence a
todas, mas ao mesmo tempo não pertence a nenhuma. Virando
o axioma sobre religião de Max Mueller de cabeça para baixo,
a teologia interconfessional parece uma teologia que conhece
todas, mas não conhece nenhuma. Ela é específica na medida
em que afirma sua universalidade. Mas será que essa afirmação
de universalidade elimina suas particularidades? Será que uma
teologia interconfessional pode ser, ao mesmo tempo, uma teo­
logia cristã, islâmica ou hindu, ou ela passa a ser outro sistema
teológico, uma entidade totalmente nova, um tertium quidl
Voltando-nos especificamente para a questão da teologia, a
pergunta mais crucial é: pode haver uma teologia que atravesse
as tradições religiosas? Uma teologia que se desenvolve a partir
de contextos específicos e com suas histórias, valores, visões
do mundo e visões da vida próprias pode ser universalizada?
Concretamente, se olharmos para a teologia como sendo - de
acordo com a tradição helenística - o “estudo de Deus”, esse
estudo é interpretado da mesma maneira por pessoas de religiões
diferentes e por todas as tradições religiosas? Para começar,
até mesmo o próprio conceito de Theos já não é reconhecido
universalmente. Se nem sequer faz algum sentido, a teologia
não faz nenhum sentido para tradições religiosas que são orga­
nizadas de forma diferente, especialmente aquelas que não têm
conceitos teístas e que, ainda que os tenham, podem negar que
o Theos pode algum dia ser estudado por meio de um discurso
argumentado.
Além disso, mesmo que a teologia seja compreendida mais
genericamente como a reflexão disciplinada e sistemática da
vida e do mundo em geral, ainda assim não teríamos um con­
senso a respeito da possibilidade de uma teologia interconfes­
sional. Por certo, cada religião tem suas próprias epistemologias,
EdmundKee-FookChia

metafísica, cosmologias, antropologia, soteriologias, escato-


logias etc. Muitas dessas não têm uma correspondência exata
entre si. Por exemplo: se a teologia cristã nos ajuda a entender o
começo da vida com base no Gênesis, algumas religiões não têm
concepções lineares do tempo e, assim, não têm qualquer alfa
ou ômega. E mesmo que as tenham, seus mitos sobre a criação
podem não envolver Adão e Eva ou até mesmo um Deus Criador.
E mais: se a teologia cristã oferece uma explicação para o pecado
e a necessidade de redenção em Jesus Cristo, algumas religiões
têm suas próprias teorias sobre a negatividade e disfunção do
mundo e, na maioria dos casos, a necessidade de um messias
não faz parte de sua soteriologia, mesmo que, para começar, ela
tenha uma. Por certo, a salvação como um fim religioso não é
necessariamente uma doutrina universal.1Poderíamos continuar
por horas nesse tipo de análise compare-e- contraste, mas basta
dizer que teríamos dificuldade até de descobrir temas teológicos
básicos que estivessem presentes em todas ou na maioria das
tradições religiosas. E mesmo que os pudéssemos encontrar,
um consenso sobre a atribuição teológica desses temas seria
praticamente impossível.
Sem nos aventurarmos a passar por várias tradições reli­
giosas, já vimos que, mesmo em uma única tradição religiosa,
não existe algo como uma única interpretação teológica de
uma variedade de questões. Pensem sobre os muitos debates
inter-religiosos dentro da própria comunidade cristã, tais como
a divindade de Jesus ou a necessidade de Cristo ou da Igreja
para a salvação, ou o debate Criacionismo versus Evolução,
ou as controvérsias morais sobre cremação versus enterro,
ou a moralidade do homossexualismo ou da pesquisa com

1 Veja: HEIM, Mark. Salvations; Truth and Difference in Religion. Maryknoll:


Orbis, 1995. HICK, John. An Interpretation o f Religion; Human Responses to
the Transcendent. New Haven: Yale, 1989. p. 233-296.
A TEOLOGIA INTERCONFESSIONAL É POSSÍVEL?

células-tronco, ou o conflito entre pró-escolha e pró-vida. Uma


vez mais, poderíamos continuar ad infinitum nessa lista e des­
cobrir que talvez exista mais diversidade interna nas tradições
do que homogeneidade. E é por isso que é uma falácia falar do
Cristianismo (ou do Islamismo, ou do Judaísmo, ou do Siquismo)
no singular, como se fosse um monólito ou como se houvesse
apenas uma única versão de cada um deles.

T eo lo g ia in te r c o n f e s s io n a l: boa ideia!
Não me interpretem mal. Apesar das dificuldades, não estou
de forma alguma sugerindo que a ideia de uma teologia intercon­
fessional é ruim. Pelo contrário, acho que é uma ideia fabulosa
e laudável. É especialmente bem-vinda em uma época em que
as religiões continuam a ser lançadas umas contra as outras.
Além disso, com relação ao Cristianismo, isso parece muito uma
progressão lógica em sua teologia de outras religiões. Se em
um determinado momento o Cristianismo viu as outras religiões
como repositórios do mal esperando para serem conquistadas
e depois, mais tarde, como versões incompletas da verdade à
espera de complementação, agora estamos no estágio em que
parece que os cristãos aceitam outras religiões como sendo
basicamente verdadeiras mesmo que a questão de isso ser uma
questão de fato (de facto) ou de princípio (de iuré) ainda seja
tema para muitos debates.2 Visto nesse contexto, o próprio ato
de desenvolver uma teologia interconfessional sugere que não
só a verdade dessas outras religiões já não está em questão, mas
também que nós as vemos como locus theologicus para nossa
própria teologia cristã. De certa forma, é um passo adiante, na

2 Veja a Declaração do Vaticano Dominus Iesus; On the unicity and salvific univer-
sality of Jesus Christ and the Church. Veja também: DUPUIS, Jacques. Towards
a Christian Theology ofReligious Pluralism. Maryknoll: Orbis, 1997. p. 9-13.
KNITTER, Paul. Introducing Theologies ofReligions. Maryknoll: Orbis, 2002.
Edmund Kee-Fook Chia

direção de distinguir como o Cristianismo precisa se compre­


ender à luz da realidade do pluralismo religioso.
Observem que o exemplo que dei acima vem da tradição
cristã. Foi de propósito. Não só porque estou mais familiarizado
com a história da atitude do Cristianismo com relação a outras
religiões, mas também porque considero a iniciativa da teolo­
gia interconfessional como uma tarefa especificamente cristã.
Por quê? Porque outras religiões, especialmente as orientais,
não têm essas preocupações. Não é que lhes falte consciência
interconfessional, mas sim porque essa consciência já está pro­
fundamente enraizada em sua psique religiosa e construída em
suas estruturas teológicas. O Hinduísmo, por exemplo, sempre
aceitou bem o pluralismo religioso. É por isso que ele é chamado
de religião de muitos deuses, 330 milhões deles para ser exato. O
axioma de Rig Veda “a verdade é única, mas os sábios a chamam
por muitos nomes” é muito citado para explicar a abertura do
Hinduísmo para o pluralismo não só nas outras religiões, mas
também intemamente. Não há um único caminho para a verdade
no Hinduísmo, assim como não há uma única religião verdadei­
ra, portanto nenhuma teologia para todas. Sugerir uma teologia
interconfessional para os hindus, desse modo, é irrelevante, já
que sua teologia, ao contrário da teologia do Cristianismo, tem
como premissa a diversidade.
Ora, se a proposta para uma teologia interconfessional é
precisamente erradicar essa diversidade, então isso já é outra
questão. Aqui, a pluralidade é considerada como ruim ou pelo
menos difícil, e o ideal seria um sistema teológico abrangente
que explique tudo, seja universal e aplicável a todos. Uma vez
mais, essa é uma preocupação peculiarmente ocidental, seme­
lhante às obsessões com a criação de um governo mundial, uma
única moeda, um mercado mundial, uma rede internacional
de comunicação global, uma declaração universal de direitos
A TEOLOGIA INTERCOHFtSSIONAL É POSSÍVEL?

humanos, ou até mesmo um catecismo universal. Isso nos lem­


bra também dos muitos esforços para desenvolver uma teologia
mundial, um esperanto ecumênico, uma teologia universal, uma
ética mundial, e a multiplicação de centros para o Cristianismo
global, todas elas iniciativas do Ocidente.3 O fio em comum
que passa por todas essas ambições é a criação de um sistema
singular que possa explicar os muitos e vários caminhos. Essa
ânsia por universalidade é tanto uma ânsia por entendimento
quanto uma ânsia por poder - poder para definir e controlar e
poder para subordinar a variedade sob o guarda-chuva supe-
restrutural da teologia interconfessionall

T e o lo g ia in te r c o n f e s s io n a ll teoria e método
Uma vez mais, não me interpretem mal! Não estou de forma
alguma sugerindo que a teologia interconfessional esteja erra­
da. Na verdade, acho até que ela é absolutamente necessária,
especialmente considerando a situação patética das relações
interconfessionais na sociedade atual.4 Mas, em vez de imagi­
nar a teologia interconfessional como um produto da reflexão
teológica, eu gostaria de considerá-la também como um pro­
cesso. Ela é tanto um método quanto uma teoria. A teologia
interconfessional, portanto, é ao mesmo tempo uma metodolo­
gia para fazer teologia e uma teoria para captar a diversidade
nas várias religiões. Como teoria e método ao mesmo tempo, a

3 Veja: CANTWELL SMITH, Wilfred. Towards a World Theology. Philadelphia:


Westminster Press, 1981. SWIDLER, Leonard (org.). Towarda Universal Theo­
logy ofReligion. Maryknoll: Orbis, 1987. KRIEGER, David. New Universalism;
Foundations for a Global Theology. Maryknoll: Orbis, 1991. KÜNG, Hans.
Global Responsibility; In Search of a New World Ethic. New York: Crossroad,
1991.
4 Veja: CHIA, Edmund; HEISIG, James (orgs.). A Longingfor Peace; The Chal-
lenge of a Multicultural, Multireligious World. Bilbao: Association Haretxa,
2006.

E9
EdmundKee-FookChia

teologia interconfessional facilita as relações interconfessionais


e especialmente o diálogo inter-religioso. Deixem-me enumerar
quatro condições.
Primeiro, a teologia interconfessional precisa ser feita de
uma maneira interconfessional. Ela não pode ser fruto de um
pesquisador solitário que passa os olhos pelas teologias das
várias religiões e tenta ir fazendo uma síntese delas. Em vez
disso, a teologia interconfessional deve ser feita em conjunto
com membros de outras religiões. Ela é interconfessional no
sentido de que seus intérpretes vêm de religiões diferentes, e
estão todos em um diálogo mútuo na tentativa de identificar
áreas de convergências e divergências.
Segundo, a teologia interconfessional tem de acarretar neces­
sariamente um diálogo autêntico e holístico, não meramente no
nível da mente, mas também no nível do coração. Cada parceiro
no diálogo traz para a mesa não apenas doutrinas e teologias,
mas também sua carne e seu sangue, experiências de vida, sen­
timentos e paixões. Todas essas coisas constituem a “matéria”
do diálogo. Não é preciso dizer, a confiança e o respeito devem
dominar esses encontros dialógicos.
Terceiro, a teologia interconfessional tem suas limitações.
Como mencionei antes, certos temas teológicos são provavel­
mente impossíveis de ser resolvidos em virtude de visões do
mundo mutuamente irreconciliáveis. Questões tais como se
há ou não um Deus, ou se Deus é pessoal ou não pessoal, ou
se há vida após a morte, são tão radicalmente divergentes nas
várias religiões que tentar sintetizá-las sob uma única narrativa
grandiosa é, no melhor dos casos, reducionista. Portanto, a teo­
logia interconfessional deve cultivar um espírito de humildade
epistêmica reconhecendo que fé e religião transcendem logos e
compreensão, e que nossas mentes finitas não podem saber tudo.
A TEOLOGIA INTERCONFESSIONAL É POSSÍVEL?

Quarto, a teologia interconfessional deve estar a serviço de


preocupações comuns, especialmente aquelas que afetam as
pessoas antes da morte. Questões como pobreza e opressão,
injustiça e marginalização, são flagelos contra os quais todas
as comunidades religiosas lutam. A libertação, afinal de contas,
é um objetivo que provavelmente passa por todas as religiões.
Mesmo se não existe consenso com relação à libertação depois
da morte, certamente há uma clareza muito maior com relação
ao que significa a libertação antes dela. Seguindo as chaves
hermenêuticas desenvolvidas pelos teólogos da libertação, a
teologia interconfessional fará muito bem se adotar uma opção
preferencial pelos pobres e sofredores.
Em conclusão, como teoria e método a teologia interconfes­
sional tem o potencial de aproximar as comunidades religiosas
em situações de paz e harmonia e não em discórdia e conflito.
O produto eventual desses diálogos deve enfatizar e cultivar
atitudes de honestidade e confiança, respeito e tolerância e hu­
mildade e incondicionalidade. Essas são a “matéria” da teoria
da teologia interconfessional. E essa teoria que deve moldar
nossas reflexões sobre todos os outros aspectos da teologia.
Contribuição Bahá’í para
uma teologia “transreligiosa”

A m ín E g ea

A Fé Bahá’í é conhecida como a mais recente das religi­


ões independentes. Fundada nos meados do século XIX por
Bahá’u’lláh, conta hoje com seguidores na totalidade do planeta.1
Seu princípio da unidade fundamental das religiões, sua teolo­
gia da revelação progressiva, sua visão do fenômeno religioso
como motor impulsionador do progresso espiritual e social da
civilização e como agente primordial na consecução da unidade
do gênero humano oferecem uma perspectiva única e audaciosa,
cujos elementos teológicos bem podem servir nos esforços por
estabelecer pontes de entendimento, respeito e tolerância entre
as tradições religiosas. Pontes especialmente necessárias em um
contexto mundial como o atual, no qual as tensões e os conflitos
religiosos estão na ordem do dia e ameaçam submergir ainda
mais em seu abismo uma humanidade que soçobra.
O presente texto tratará, precisamente, de introduzir suma­
riamente alguns elementos dessá teologia.1

1 A Fé BaháM conta com mais de cinco milhões de seguidores distribuídos em


236 Estados e territórios, 2.112 tribos, raças e grupos étnicos, e sua literatura foi
traduzida para 802 idiomas.
Cohibibüicao Bahá' í mra uma teologia" transrelhíiosa”

O ponto de partida: Deus e o ser humano


A partir da perspectiva bahá’í, a relação existente entre Deus
e sua criação é uma relação de emanação. Não se trata de um
emanacionismo de tipo panteísta. A criação procede da divin­
dade, mas Ele não faz parte desta.2
O ser humano é mais um elemento dessa criação e, no en­
tanto, se distingue dela por ser depositário de um propósito
independente: chegar a conhecer seu criador. Deus, afirma
Bahá’u’lláh,

tendo criado o mundo e tudo o que nele vive e se move


[...] optou por conferir ao homem a singular distinção e
capacidade de conhecê-lo e amá-lo; uma capacidade que
deve necessariamente ser considerada o impulso gerador
e o objetivo primordial que sustenta a criação inteira.3

“Chegar à presença de Deus e reconhecê-lo” é a “mais


excelsa graça conferida aos seres humanos”,4 é o “excelente
objetivo” e a “meta suprema” que “todos os Livros celestiais
e as importantes Escrituras divinamente reveladas testemu­
nham inequivocamente”.5 Junto ao dever de conhecer e amar
ao seu criador, Bahá’u’lláh também indica que o propósito do
ser humano é o de “levar adiante uma civilização em contí­
nuo progresso”.6 Ao mesmo tempo, as Escrituras bahá’ís são
categóricas ao sublinhar que Deus é incognoscível e propõem

2 “A aparição através da emanação é como o surgimento dos raios provenientes


da luz dos horizontes do mundo. Ou seja, a santa essência do Sol da Verdade
não se divide nem desce à condição das criaturas. De igual modo, o globo solar
não se divide nem desce à terra, mas seus raios, que são seu dom, emanam dele
e iluminam os corpos escuros”. Contestación a unas Preguntas, p. 249-250.
3 Pasajes de los Escritos de Bahá ’a 'lláh, 27:2.
4 Kitáb-i-Iqán, p. 92.
5 Pasajes de los Escritos de Bahá ’u "lláh, 29:1.
6 Ibid., 109:2.
AmínEqea

claramente uma teologia apofática: “A porta do conhecimento


do Antigo Ser sempre esteve fechada, e continuará para sempre
fechada, à face dos homens. Nenhum entendimento humano
alcançará jamais acesso à Sua sagrada corte”.7
‘A ave do coração humano, por mais alto que remonte,
nunca poderá esperar alcançar as alturas de Sua incognoscível
Essência.”8
Como pode, então, o ser humano obter o propósito de sua
existência se Deus é essencialmente incognoscível? Que é o
que se pode conhecer de Deus e como? Pode um Deus “imen­
samente excelso acima de todo atributo humano” intervir na
história? Bahá’u’lláh estabelece uma diferença entre a Essência
e os “atributos” divinos. Estes últimos não são mais que uma
emanação dessa Essência incognoscível:

[...] se se tratasse de descrever-te por Teus nomes, em


seguida reconheceria que o próprio reino desses nomes
é criado pelo movimento de Teus dedos, e se estremece
por temor a Ti. E se ousasse exaltar Teus atributos, estaria
obrigado a admitir que esses atributos são uma criação
Tua e se acham em Teu punho.9

Deus, portanto, permanece “santificado acima de todo


atributo e consagrado acima de todo nome”.10 O que aqui nos
interessa é que, a partir da perspectiva bahá’í, são essas quali­
dades divinas e não Sua Essência os susceptíveis de ser objeto
de conhecimento para o ser humano. Alcançar a “presença” de
Deus “significa conhecer e compreender os atributos divinos,
não a Realidade de Deus”, e esse conhecimento - que, como

7 Ibid., 21:1.
8 Ibid., 94:3.
9 Oraciones e Meditaciones, p. 236.
10 Ibid., p. 276.

R!Ef
Contribuição Bakâ' í mm uma teologia "transreugiosa'

vimos antes, é o propósito primordial da existência do ser hu­


mano - “não é algo absoluto, mas é proporcional à capacidade e
poder do homem [o itálico é nosso] [...] Tudo quanto uma pessoa
é capaz de entender são os atributos da Divindade, o esplendor
dos quais aparece e se faz visível no mundo e dentro das almas
dos seres humanos”.11

As “Manifestações de Deus”
Chegados a este ponto, será oportuno introduzir no esque­
ma um elemento que é pedra angular na teologia bahá’í. Deus
intervém na história, mas não de forma direta:

Estando assim fechada a porta do conhecimento do An­


tigo dos Dias à face de todos os seres, a Fonte de graça
infinita fez que [...] apareçam do reino do espírito aquelas
luminosas Joias de Santidade, na nobre forma do templo
humano, e sejam reveladas a todos os homens, a fim de
que comuniquem ao mundo os mistérios do Ser imutável
e falem das sutilezas de Sua Essência imperecível.112

Esses Enviados de Deus são “todos e cada um, os Expoentes


na terra dAquele que é o Astro central do universo, sua Essência
e Propósito último”, “os tesouros do conhecimento divino e os
Depósitos da sabedoria celestial” [o itálico é nosso].13 São os
“espelhos primordiais que refletem a luz de glória imarcescí-
vel”, “expressões dAquele que é o Invisível dos Invisíveis”,14
“canais da graça de Deus, que tudo penetra”,15“repositórios das

11 Contestación a unas Preguntas, p. 269-270.


12 Kitáb-i-Iqán, p. 68-69.
13 Ibid., p. 69.
14 Ibid., p. 71.
15 Pasajes de los Escritos de Bahá ’u ’lláh, 27:4.

RRR
Amln Eaea

pérolas de Seu conhecimento”,16“os vértices onde aparecem em


todo seu esplendor os signos, os sinais e as perfeições daquela
sagrada, dessa preexistente Realidade”, e dos quais “depende a
vida perdurável da humanidade”.17
Esses mediadores entre a humanidade e Deus - os Funda­
dores, definitivamente, dos grandes sistemas religiosos - “são
os recipientes e reveladores de todos os atributos inalteráveis e
nomes de Deus”,18portanto é mediante eles que o ser humano
pode alcançar certa compreensão da divindade:

O conhecimento da Realidade da Divindade é impossível


e inalcançável; não assim o conhecimento das Manifes­
tações de Deus, que é equivalente ao conhecimento de
Deus, já que as generosidades, esplendores e atributos
divinos estão manifestos nelas. A pessoa que consegue
conhecer as Manifestações de Deus alcança o conheci­
mento de Deus.19

Estão dotados, além disso, de uma dupla condição. Por um


lado, são enviados à humanidade “na imagem de um homem
mortal, com limitações tais como o comer e o beber, pobreza
e riqueza, glória e humilhação, sono e vigília [.. .]”.20 Mas ao
mesmo tempo manifestam perfeitamente as qualidades de Deus,
tanto é assim que “tudo quanto é aplicável a eles é na realidade
aplicável ao próprio Deus, que é o Visível e o Invisível”,21 de
modo que, “se alguma das Manifestações de Deus, que tudo
abarca, declarasse: ‘Eu sou Deus!’ diria certamente a verdade, e
não caberia dúvida a esse respeito”, afirma Bahá’u’lláh, “já que

16 Epístola al Hijo do Lobo, p. 113.


17 Selección de los Escritos de ‘Abdu ’1-Bahá, 21:12.
18 Kitáb-i-Iqán, p. 95.
19 Contestación a unas Preguntas, p. 270-271.
20 Kitáb-i-Iqán, p. 51.
21 Contestación a unas Preguntas, p. 271.
Contribuição Bahá' í para uma teologia"transreugiosa"

repetidamente se demonstrou que mediante sua Revelação, seus


atributos e nomes a Revelação de Deus, Seus nomes e atributos
se manifestam no mundo”.22
Entre eles não existem graus ou distinção. É mais, existe uma
unidade essencial tal que todos eles

não são mais que uma pessoa, uma alma, um espírito, um


ser, uma revelação. São todos a manifestação do ‘Prin­
cípio’ e o ‘Fim’, o ‘Primeiro’ e o ‘Último’, o ‘Visível’ e
o ‘Oculto’, atributos todos que pertencem Àquele Que é
o mais íntimo Espírito dos Espíritos e a etema Essência
das Essências.23

As religiões
Por meio dessas teofanias, Deus se revela à humanidade para
oferecer o guia que aproxime o ser humano do cumprimento
de sua dupla finalidade ontológica: conhecer a Deus e fazer
avançar uma civilização em contínuo progresso.24 Com pala­
vras de Bahá’u’lláh, os Enviados de Deus foram encomendados
com a missão de alimentar “as árvores da existência humana
com as águas vivas da retidão e compreensão, para que possa
surgir deles aquilo que Deus depositou em seu foro íntimo”,2S
para comunicar ao mundo “os mistérios do Ser imutável” e “as

22 Ibid.,p. 117.
23 Kitáb-i-Iqán, p. 118.
24 “Deus tem dois propósitos ao enviar Suas [Manifestações] aos homens. O
primeiro é livrar os Alhos dos homens da escuridão da ignorância e guiá-los à
luz do verdadeiro entendimento. O segundo é garantir a paz e a tranqüilidade
do gênero humano e providenciar todos os meios pelos quais estas possam ser
estabelecidas.” Pasajes de los Escritos de Bahá ’u ’lláh, 34:5.
25 Kitáb-i-Aqdas, p. 16.
Amln Eqea

sutilezas de Sua Essência imperecível”,26para limpar as almas


“da escória e do pó das preocupações e limitações terrenas”,27
para educar os homens de tal maneira que “na hora de sua mor­
te ascendam, com a maior pureza e santidade e com absoluto
desprendimento, rumo ao trono do Altíssimo”.28
Como promotores divinamente ordenados de uma civili­
zação humana em constante evolução, as Manifestações de
Deus têm também a missão de “dotar os homens de retidão e
entendimento, para que a paz e a tranqüilidade sejam firme­
mente estabelecidas entre eles”,29“proteger os interesses da raça
humana, promover sua unidade, e estimular o espírito de amor
e fraternidade entre os homens”,30 fazer que

o mundo do homem chegue a ser o mundo de Deus; que


este domínio inferior chegue a ser o Reino; esta escuridão,
a luz; esta perversidade satânica, todas as virtudes do céu,
e que a unidade, a irmandade e o amor sejam conquistados
por toda a raça humana, que reapareça a unidade orgânica
e as bases da discórdia sejam destruídas, e que a vida
eterna e a graça sempitema se transformem na colheita
da humanidade.31

Bahá’u’lláh, portanto, nem concebe as mensagens de cada um


dos enviados de Deus como elementos desvinculados ou isolados
entre si, nem estabelece diferenças em grau entre os fundadores
das religiões. Todas as mensagens religiosas procedem de uma
mesma fonte e têm uma finalidade comum e preestabelecida
que encaixa dentro de um plano divino, universal e atemporal.

26 Pasajes de los Escritos de Bahá ’u ’lláh, 19:2.


27 Ibid., 27:4.
28 Ibid., 81:1.
29 Ibid., 101:1.
30 Ibid., 110:1.
31 Selección de los Escritos de ‘Abdu 'l-Bahá, 15:4.
Contribuição BahA'í para uma teologia " transreligiosa"

A religião é “eterna no passado, eterna no futuro”.32Como se ex­


plicam então as diferenças entre as religiões? A Revelação Divina
não se esgota em cada uma de suas Manifestações. Antes, está
adaptada e limitada ao momento e ao lugar ao qual se destina:
“O Médico Onisciente pôs Seu dedo no pulso da humanidade.
Percebe a doença e em Sua infalível sabedoria prescreve o remé­
dio. Cada época tem seu próprio problema, e cada alma sua aspi­
ração particular”.33 Em conseqüência, cada revelação apresenta
duas vertentes: uma essencial e comum a todas as religiões, que
concerne aos aspectos espirituais da revelação (por exemplo: a
regra de ouro, o ensinamento de um aspecto espiritual aos seres
humanos etc.); e outra acidental e cambiante, que concerne aos
aspectos sociais e materiais da revelação (por exemplo: normas
relativas à alimentação, ao casamento etc.) e que estão vinculadas
ao próprio contexto em que esta se faz ato. Mas também surgem
diferenças entre as religiões por causa da “cega imitação e a in­
terpretação dogmática”34 dos próprios seguidores das religiões.
Bahá’u’lláh descreve isso da seguinte maneira:

Sem dúvida os povos do mundo, de qualquer raça ou reli­


gião, derivam sua inspiração de uma única Fonte celestial
e são os súditos de um único Deus. A diferença entre as
ordenanças sob as quais vivem deve ser atribuída aos
requisitos e exigências variáveis da época em que foram
reveladas. Todas elas, exceto algumas que são produto da
perversidade humana, foram ordenadas por Deus e são o
reflexo de Sua Vontade e Propósito. Levantai-vos e armai-
-vos com o poder da fé, despedaçai os deuses de vossas
vãs imaginações, os semeadores de dissensão entre vós.
Apegai-vos ao que vos aproxime e vos una.35

32 Pasajes de los Escritos de Bahá 'u 'lláh, 70:2.


33 Ibid., 106:1.
34 La Promulgación de la Paz Universal.
35 Citado na mensagem dirigida pela Casa Universal de Justiça às autoridades
religiosas do mundo, abril de 2002.
Amln Eqea

Nesta época no devir humano, afirma Bahá’u’lláh, Deus


volta a intervir na história através dele mesmo. Seu advento “foi
anunciado em todas as Sagradas Escrituras”36 e o propósito de
Sua revelação não é outro que o de

[...] proclamar que já passaram as idades da infância e da


criancice da raça humana, que as convulsões relacionadas
com a atual época de adolescência a estão preparando
lenta e penosamente para alcançar a idade adulta, e
apregoam a proximidade dessa Idade de Idades em que
as espadas se terão transformado em arados, e se tenha
estabelecido o Reino prometido por Jesus Cristo e a paz
do planeta estará garantida definitiva e permanentemente.
BaháVlláh também não pretende que Sua própria Re­
velação tenha um caráter definitivo, mas antes estipula
que em épocas futuras deverá se desenvolver uma maior
medida da verdade que o Todo-Poderoso lhe encomendou
conceder à humanidade, em tão crítica conjuntura de seus
destinos, como parte da evolução contínua e ilimitada da
humanidade.37

* * *

Em uma mensagem dirigida em abril de 2002 às autoridades


religiosas do mundo, a Casa Universal de Justiça - órgão de
governo em nível mundial da Comunidade Internacional Bahá’í
- declarava a respeito do discurso inter-religioso:

[...] se quisermos que contribua significativamente para


curar as feridas que afligem uma humanidade desespera­
da, deve com sinceridade e sem mais evasivas tratar das
implicações da verdade fündamentalíssima que suscitou

36 Pasajes de los Escritos de Bahá 'u 'lláh, 3:1.


37 EFFENDI, Shoghi. A Fé de Bahá ’u 'lláh (Declaração perante a Comissão Especial
das Nações Unidas sobre a Palestina, julho de 1947).
Contribuição BahV í para uma koiogia " tbahsreugiosa"

todo este movimento inter-religioso: que Deus é um só


e que, além da diversidade da expressão cultural e da
interpretação humana, a religião é igualmente uma só.38

São esses, pois, alguns dos elementos com que uma teologia
bahá’í pode contribuir com os esforços por entender a pluralida­
de religiosa e para dar vigor ao diálogo inter-religioso. Assumi­
dos não implica necessariamente “o abandono da fé no tocante
às verdades fundamentais de nenhum dos grandes sistemas de
crenças mundiais”,39mas sim entender que a verdade religiosa é
relativa, que a Verdade é uma, mas que suas manifestações são
múltiplas, e que, portanto, qualquer pretensão de exclusividade
ou finalidade atenta, na realidade, contra a própria definição de
religião e contra os princípios espirituais de camaradagem e pro­
gresso que promulga: “Cuidado, não aconteça que a convertais
[a religião] em causa de dissensão entre vós. Estai firmemente
assentados, como uma montanha inabalável, na Causa de vosso
Senhor, o Forte, o Amoroso”.40

3S Ibid.
39 ibid.
40 Pasajes de los Escritos de Bahá 'u ’lláh, 70:3.
Bases para uma teologia
pluralista multiconfessional

P aul F. K n it t e r

A principal pergunta feita aos autores deste número da co­


leção “Pelos muitos caminhos de Deus” foi: “É possível pensar
em uma teologia pluralista que se baseie em, e trabalhe com, ca­
tegorias, fontes, princípios, imagens e metáforas não só de uma
religião, mas de várias? É possível uma teologia não monocon-
fessional, mas aberta e pluriconfessional, além de pluralista?”.1
Ou, nos termos usados por Wilfred Cantwell Smith, ao propor
um projeto semelhante há mais de vinte e cinco anos: é possível
ter uma “teologia mundial” que seja uma teologia pluralista?12
Embora o projeto de Smith tenha sido amplamente criticado
com o passar dos anos e mais recentemente tenha sido jogado
na cesta de lixo pelo Pós-Modemismo, eu realmente acredito
que o projeto - que está sendo ressuscitado no projeto deste
livro - não só é válido, mas é também urgente. Sem de forma
alguma reduzir o perfil específico de cada religião, acredito
que podemos encontrar “características familiares” em todas as
religiões que fornecem a base para uma teologia mundial inter-
-religiosa, que deixa de lado as reivindicações de superioridade
de uma religião sobre as demais e invoca todas as religiões a

1 Cf. a proposta de projeto enviada por José Maria Vigil.


2 Wilfred CANTWELL SMITH, Wilfred. Towards a World Theology; Faith and
the Comparative History of Religion. London: Macmillan, 1981.
B ases para uma teologia p lu ra lista m ulticonfessional

se envolverem umas com as outras pelo bem-estar de todos os


seres sencientes e do próprio planeta.
Para defender meu argumento, seguirei a orientação da
observação de Paul Tillich de que, das três “polaridades” em
todas as religiões, é papel do “místico” e do “ético-profético”
garantir que a polaridade “sacramental” não se absolutize e com
isso passe a ser vítima do demoníaco.3

O místico em todas as religiões


Todas as religiões reconhecem que, seja qual for a palavra
ou imagem que elas possam usar para falar sobre aquilo que
estão buscando, ou que vivenciaram, precisa ser precedida por
um adjetivo: misteriosa. O Wakan Tanka —The Great Myste-
rious dos Lakotas. As religiões, por sua própria natureza, e eu
acrescentaria por sua própria autodescrição, lidam com o Mis­
tério. São especialmente os místicos que fazem com que isso.
seja óbvio. Eles lembram a si mesmos e a suas comunidades
- especialmente aos líderes e hierarcas de suas comunidades -
que, para verdadeiramente vivenciar aquilo que a comunidade
busca vivenciar, é (como expressa Tillich) preciso agarrar ou ser
agarrado por uma Realidade que é “infinitamente apreensível,
e no entanto nunca inteiramente compreensível”,4 tão miste­
riosa quanto real, tão verdadeiramente transcendente quanto é
verdadeiramente imanente.
Se os místicos escolhem falar sobre o conteúdo de sua
experiência e, portanto, usar palavras como Deus, ou Tao ou

3 TILLICH, Paul. The Significance of the History of Religions for the Systematic
Theologian. In: BRAUER, Jerald C. (org.) The Future o f Religions. New York:
Harper & Row, 1966. p. 86-87. Também: TILLICH, Paul. What is Religion?
Trad. de James Luther Adams. New York: Harper & Row, 1969. p. 88-92.
4 TILLICH, What is Religion?, p. 15.
Paul F.Knitter

Brahman, ou se querem falar apenas da própria experiência


e, portanto, usam palavras como Iluminação, ou Vazio, ou o
Nada —todos eles reconhecem que o que estão vivenciando é
tanto real quanto inefável. É por esse motivo que os místicos
cristãos falaram de Deus como o notum Ignotum - o conhecido
Desconhecido. No próprio momento em que descobrem alguma
coisa sobre o Mistério, ficam certos de que nunca poderão saber
tudo sobre o Mistério.
Algumas tradições religiosas são melhores que outras em
reconhecer a natureza incompreensível e inefável daquilo com
que estão lidando. Parece que religiões asiáticas têm uma me­
lhor trajetória de respeito ao Mistério. O Taoísmo lembra que
aqueles que podem falar do Tao não sabem realmente sobre o
que estão falando.5 O Hinduísmo adverte que devemos colo­
car a expressão “neti,neti” antes de tudo aquilo que dissermos
sobre o Último - “nem isso, nem aquilo”. E os budistas Zen
estiveram dispostos a queimar todas as escrituras e até a matar
o Buda para que não ficassem presos a uma única maneira de
falar ou de ensinar.
Mas até mesmo as loquazes tradições abraâmicas, que as­
sociaram Verbo, Dabar, Logos, ou até mesmo um texto escrito
a Deus, também admitiram, em seus melhores momentos, que
Deus nunca pode ser captado por palavras. Para mim, alguns
dos melhores desses momentos foram em 1215, no IV Concilio
de Latrão, e, depois, em 1875, no Concilio Vaticano I, quando
o Magistério católico oficialmente definiu a “incompreensibili-
dade de Deus”.6 Para nós, católicos, é um dogma definido que
Deus nunca pode ser definido! (Tivemos uns poucos papas e
teólogos que, parece, se esqueceram disso!)

5 Tao Te Ching, 1,1.


6 DENZINGER-SCHÕNMETZER. Enchiridion Symbolorum Definitionum et
Declarationum. Barcelona: Herder, 1963. n. 428 e 1782.
Bases mra umateologia plurausta muuiconfessiowal

Há uma tensão evidente, se não até uma contradição total,


entre esse reconhecimento místico do Mistério em todas as
religiões e a afirmação teológica de superioridade na maioria
das religiões. Não podemos ficar com as duas alternativas.
Não podemos ser místicos em nossa vida particular de orações
e “superioristas” no discurso de nossa vida pública. Falando
francamente: se o Mistério, por sua própria natureza, não pode
ser plenamente, ou adequadamente, ou definitivamente, ou
insuperavelmente, conhecido, então precisamos questionar,
renovar ou tirar de uso séria e criativamente nossas teologias
que afirmam que nossa revelação, ou nosso salvador, ou nosso
mestre, é o meio único e final de conhecer o Grande Misterioso.
Em outras palavras, a linguagem mística sobre o Mistério
supera a linguagem teológica sobre superioridade e finalidade.
Nenhuma palavra, nenhuma revelação pode ser a palavra única
e final sobre o Mistério. Há sempre algo mais por vir. (Acho que
isso é o que a crença cristã em escatologia e á crença budista
em impermanência e mudança constante implicam: não fique
preso ao pensamento de que você chegou lá.)
Mas se a experiência do Grande Misterioso, daquilo que
é sempre mais do que podemos conhecer, está no coração da
experiência religiosa, de onde vêm todas essas exclamações
de “único” ou “pleno e final” que povoam os textos sagrados
ou litúrgicos? Isso, como professores constrangidos costumam
dizer, é tema para uma outra aula. Eu começaria essa aula com
uma observação que Emst Troeltsch fez em seu famoso livro
The Absolutenèss o f Christianity? Troeltsch indicou que o fato
de pessoas religiosas fazerem “afirmações absolutas” sobre sua
experiência é tão natural quanto possivelmente ingênuo. Isso
ocorre porque aquilo que a experiência religiosa ou mística não7

7 The Absoluteness o f Christianity. Richmond: John Knox, 1971. p.131-163.


Paul F.Knitter

pode fazer intelectualmente ela faz existencialmente: embora


não possa dar às nossas mentes um conhecimento absoluto
sobre o Divino, ela reivindica absolutamente nossos corações.
A mensagem de Jesus, os ensinamentos do Buda, as revelações
de Maomé - por mais que tenham sido construídas de forma
limitada, relativa ou até social - são capazes de dar uma revira­
volta na vida das pessoas. A conversão ou a iluminação é uma
experiência na qual as pessoas recorrem naturalmente a uma
linguagem absoluta ou superlativa: “Puxa! Que coisa incrível!
Deus falou. A verdade chegou. Não pode haver um outro Deus
ou um Deus superior”. A conversão nunca vem pela metade.
Ela chega como uma explosão e domina tudo.
Portanto, a linguagem religiosa, como sai do seio da ex­
periência, é, como Krister Stendahl observa, uma linguagem
confessional ou amorosa.8 Ela brota, espontaneamente, com
linguagem tanto superlativa quanto exclusivista. Em situações
de intimidade, não basta dizer a seu(sua) amante que ele(ela) é
“ótimo(a)”. O que você sente é “o(a) melhor” e “só meu(minha)”.
E isso é o que você diz. Mas você usa essa linguagem não para
diminuir os demais, ao contrário, para expressar o que você sente
e pensa sobre a pessoa que, apesar de todas as suas limitações,
reivindicou seu coração e o seu ser. Nós desonramos e insulta­
mos esse tipo de linguagem religiosa quando a transformamos
em uma linguagem filosófica ou teológica e depois a usamos
para excluir ou subordinar todas as outras figuras religiosas.
O Mistério Sagrado toma forma e aparece ou encarna em
lugares específicos, em pessoas específicas com poderes es­
pecíficos e, é verdade, com uma perspicácia única. Por isso
podemos usar superlativos e talvez até anunciar que “só aqui”

8 Notes forThree Biblical Studies. In: ANDERSON, Gerald; STRANSKY, Thomas


(orgs.).C/2 r á í s Lordship andReligious Pluralism. Maryknoll, NY: Orbis Books,
1981. p. 14-15.

m
Bases para uma teologia pluralista multicokifessional

é que o Mistério Sagrado toma essa forma ou transmite essa


mensagem. Mas esses têm de ser superlativos e “só aquis” que
permitam outros superlativos e outros “só aquis”, e que estejam
dispostos a aprender com eles.

O profético de todas as religiões


Se os místicos nos lembram de que nunca podemos conhecer
o Divino ou o Grande Misterioso plena e finalmente, os profetas
garantem que não precisamos fazê-lo.
O que estou sugerindo aqui pressupõe que os termos “místi­
cos” e “profetas” apontam para realidades que vamos encontrar
em todas as religiões ou na maioria delas. Embora, como tentei
explorar em outro texto,9precisemos ter cuidado para não fazer
uma distinção muito nítida entre místicos e profetas (creio que
eles são, na verdade, duas extremidades do mesmo contínuo,
de forma que, se você arranhar um profeta, com certeza encon­
trará um místico) - mas ainda assim as distinções são válidas.
Profetas são aquelas pessoas irritantes enviadas por Deus que,
normalmente, passam a maior parte de suas vidas nas ruas ou
nas aldeias e ficam nos lembrando de que, a menos que nossas
“experiências místicas” de Deus ou iluminação estejam sendo
vivenciadas em nossa vida cotidiana e, de alguma maneira,
contribuindo para o bem-estar de outros, essas experiências
são incompletas, ou nem sequer estão ocorrendo. A experiência
mística que leva à transformação pessoal também deve abarcar
a transformação comunitária, ou social, ou levar a ela.

9 Religiones, mysticismo y liberación. Diálogo entre la teologia de liberación y la


teologia de las religiones. In: VIGIL, José Maria; TOMITA, Luiza E.; BARROS,
Marcelo (orgs.) Por los muchos caminos de Dios II. Quito: Ediciones Abya-Yala,
2004. p. 91-108.
Paul F.Knitter

Traduzindo a mensagem dos profetas na linguagem da filo­


sofia da religião, segundo John Hick, se a experiência religiosa
não inclui uma mudança do egocentrismo para o “outrocentris-
mo”, provavelmente ela não será autêntica.101Ou, teologicamente
falando, ela provavelmente não será fiel à mensagem original
do fundador ou da tradição. (As feministas me lembrariam de
que um mudança assim pressupõe, para começar, um “ego”.)
É por isso que, para Jesus, os dois mandamentos principais
são apenas duas maneiras de obedecer a um mandamento: você
não pode amar a Deus a não ser que você esteja amando seu
próximo. É por isso que, para o Buda, se suaprajna (sabedoria)
não está produzindo karuna (benevolência), você não tem pra­
jna}11 E é por isso que, para Maomé, e também para Ezequiel,
conhecer Alá é fazer justiça.
Deixem que eu, uma vez mais, corra até aquele lugar onde
os anjos Pós-Modernos temem pisar e dê um passo a frente.
Arrisco-me a fazer essa meta-afirmação modesta: Segundo os
profetas - ou você poderá dizer: os “ativistas” -, nas diferentes
tradições religiosas, sejam abraâmicas, sejam asiáticas, sejam
primitivas, é muito mais importante fazer a verdade fielmente
do que “conhecê-la"plenamente. Embora a ortopraxis (ou agir
corretamente) e a ortodoxia (acreditar corretamente) estejam
intimamente relacionadas, os profetas afirmam que a ortopraxis
tem uma certa prioridade.
E se vocês me permitirem um aparte filosófico: acredito
que essa prioridade é tanto epistemológica quanto ontológica.
É fazendo a verdade da melhor maneira que sabemos e da me­
lhor maneira que podemos que chegaremos a conhecê-la cada

10 An Interpretadon o f Religion; Human Responses to the Transcendent. New


Haven: Yale University Press, 1989. p. 299-315.
11 Esta era a advertência na reforma do Budismo Mahayana.
Bases para uma teologia pluralista mülticonfessional

vez mais adequadamente. E é também fazendo a verdade da


melhor maneira que sabemos, em comunidade com outros e
com o Mistério Sagrado que criamos ou produzimos a verdade.
É na vivência da verdade que a verdade se torna real, ou como
diziam os escolásticos, ambos quoad nos et quoad se - tanto
em nossa compreensão dela quanto na realidade.
Seja qual for o valor dessas reflexões filosóficas, é claro que
aqueles que desempenham esse papel ético de profetas nas várias
religiões não só permitem que seus companheiros de religião
deixem de lado as reivindicações de superioridade mas até re­
comendam que o façam. Pois é muito mais importante e urgente
pôr em prática a mensagem de Jesus (ou de Maomé, ou do Buda,
ou de Krishna) do que saber que essa mensagem é o único ou
último caminho para a salvação. Com efeito, não é necessário
saber com certeza que Jesus é o “único caminho” para que nos
entreguemos totalmente a caminhar por ele. Realmente, gastar
energia e tempo tentando nos convencer e convencer os demais
de que Jesus é o único ou o melhor pode se tomar uma distração
ou uma desculpa para não seguir Jesus na difícil tarefa de amar
o próximo e reformular o mundo. Realmente, creio que insistir
que “o nosso é o melhor” é um obstáculo para que “façamos
o melhor”. Tentar ter certeza de que nosso “modelo” religioso
é o melhor de todos pode facilmente nos distrair daquilo que
realmente importa - entrar nele e sair dirigindo.
Aqui o Corão Sagrado nos oferece um conselho sólido e
realista:

Se Alá assim quisesse, teria criado você como uma co­


munidade, mas [ele não fez isso] para que possa testar
você naquilo que lhe deu; portanto compitam uns com os
outros em obras caridosas. Para Deus todos vocês voltarão
Paul F.Knitter

e ele lhes dirá a verdade sobre aquilo que vocês tinham


estado brigando. (5:48)

Portanto, podemos colocar nossas preocupações sobre qual


religião é a melhor na prateleira com a etiqueta “escatologia”. Se
essas perguntas irão ser respondidas algum dia, terá de ser mais
tarde. Não pode ser agora. Agora temos de conversar juntos,
caminhar juntos, atuar juntos e “competir nas obras caridosas”.
Reflexões budistas sobre
a teologia interconfessional

D avid R . L oy

Nos dias de hoje uma teologia inter-religiosa não só é possível,


mas também absolutamente necessária. De uma perspectiva bu­
dista, no entanto, a frase “teologia inter-religiosa” não expressa
bem o que é necessário. Como o Budismo não é teístico, ele não
tem uma teologia; dizer que o Budismo é uma crença também
não é uma boa descrição, já que a ênfase não é na crença, mas
sim em seguir um caminho espiritual.
Mais importante que a frase, é claro, é o fato de todas as reli­
giões agora estarem enfrentando o mesmo desafio básico. Parte
desse desafio são as outras religiões. Quer queira, quer não, toda
religião se encontra cada vez mais em contato com as demais, o
que significa que a “ponta que cresce” no desenvolvimento de
cada uma é como ela responde às alternativas que solapam sua
própria “naturalidade”. O que é que as coisas que dizemos ser
verdade têm a ver com as coisas que elas dizem ser verdade?
O outro já não pode ser ignorado: ou as religiões vão aprender
umas com as outras ou vão terminar brigando entre si.
Ao mesmo tempo, a humanidade globalizante enfrenta uma
crise (ou um conjunto de crises) maior que qualquer coisa que
vivenciamos antes. Não é exagero dizer que a própria sobrevi­
vência da civilização pode estar em jogo. Os sistemas ecológicos
estão entrando em colapso e interagindo com problemas sociais,
Reflexões budistas sobre a teologia interconfessional

até mesmo a superpopulação e a brecha crescente entre ricos


e pobres. O futuro parece assustador se essa questão não pas­
sar a ser muito brevemente nossa preocupação e foco coletivo
principal.
É um erro ver esses desafios como coisas separadas. As
transformações tecnológicas e econômicas da Modernidade
levaram a uma compreensão secular do mundo que ainda pode
ser caracterizada como religiosa, na medida em que seu sistema
de valores oferece a promessa de uma nova salvação na produção
e no consumismo cada vez maior. Dessa perspectiva, a “religião
do mercado” está rapidamente se tornando a primeira religião
verdadeiramente mundial e o maior desafio para todas as outras
religiões. Como devemos reagir a isso?
Essa crise é também uma oportunidade. Para continuar
sendo relevantes, as religiões tradicionais precisam se envolver
em um autoexame abrangente, a fim de distinguir o que em
seus ensinamentos e costumes é historicamente contingente
(e, portanto, pode ser substituído) daquilo que continua a ser
essencial (e, portanto, precisa ser re-enfatizado, talvez de novas
maneiras). Como as instituições religiosas tendem a ser muito
conservadoras, uma reavaliação desse tipo é muitas vezes um
processo doloroso. No entanto, a alternativa é um declínio lento
ou rápido na direção da insignificância.
Para o Budismo, o Buda não é um deus e sim um modelo para
aquilo que cada um de nós precisa alcançar. Ele enfatizou que
seus ensinamentos não são “revelados” e que são valiosos apenas
como um mapa rodoviário para ajudar-nos a chegar a algum lu­
gar. Ele também estimulou a dúvida investigativa em vez de uma
fé inquestionável. O ponto importante é que as doutrinas e prá­
ticas budistas não são sagradas em si mesmas, mas funcionam
como um instrumento para ajudar a autotransformação. Hoje,
David R.Lov

está cada vez mais evidente que essa transformação individual


também precisa ter uma dimensão coletiva.
Uma abordagem assim corresponde bem àquilo que muitos
estudiosos enfatizam hoje em dia: que a linguagem religiosa é
metafórica. O que isso significa para a maneira como enten­
demos o Buda, Cristo, Satã..., até mesmo Deus? Segundo um
provérbio Zen, “se você encontrar o Buda, mate-o!”. Em um
de seus últimos sermões, Eckhart declarou: “Eu peço a Deus
que me livre de Deus”. Se todos os conceitos são heurísticos,
eles passam a ser idolatria quando os identificamos como sendo
sacrossantos e não abertos a questionamentos.
O que significa essa percepção para nossas concepções de
salvação: nirvana, iluminação, céu e inferno? Em última ins­
tância, o critério é o tipo de pessoa em que nos transformamos
quando seguimos um caminho espiritual. O Budismo enfatiza
a sabedoria e a compaixão. A sabedoria envolve o “despertar”
da ilusão de um ego-eu separado para compreender nossa inter­
dependência com outras pessoas e com a Terra. A compaixão é
viver de maneira a manifestar essa compreensão. Se o Reino de
Deus é bem aqui, e bem agora, o que precisamos hoje não é de
uma versão da aposta de Pascal e sim de um recusa em apos­
tar numa vida após a morte que possa ou não ser literalmente
verdadeira. Nos dois casos, a maneira como devo viver, aqui e
agora, continua a mesma. A concepção de carma do Buda foi
revolucionária à época porque dava ênfase à motivação. Embora
muitas vezes compreendido de uma forma diferente hoje em dia
(por exemplo: acumular mérito para um renascimento melhor),
o carma é a chave para a autotransformação. A qualidade de
minha vida pode ser melhorada agora transformando aquilo
que me motiva agora: substituindo a avareza, a má vontade e a
ilusão por generosidade, benevolência e a sabedoria que enfatiza

BH9I
Reflexões budistas sobre a teologia interconfessional

nossa não dualidade. Fazer isso é vivenciar o mundo de uma


maneira diferente.
Isso certamente inclui viver pela Regra de Ouro, no entanto
a perspectiva budista tem implicações especiais para como
respondemos à difícil situação dos pobres e dos explorados que
sofrem uma qualidade de vida degradante sem ter culpa disso.
Hoje, a resposta tradicional budista - que eles estão colhendo
os frutos de seus próprios erros em vidas passadas - já não é
aceitável. Apesar disso, isso não significa que devemos nos
identificar com os oprimidos e rejeitar o opressor. Queiramos
ou não, somos não dualistas com os dois. Para o Budismo, a
questão fundamental não é o bem lutando contra o mal, mas
despertar da ignorância para compreender nossa interconexão
essencial com todos os demais. Nossos esforços para sobrepujar
o sofrimento dos explorados devem estar baseados em uma pre­
ocupação não apenas com os pobres, mas também com os ricos
isolados e iludidos que não se importam com aqueles que vão
dormir com fome. Somos encorajados a ter compaixão não só
pelas vítimas da violência, mas até mesmo pelos autodestrutivos
perpetradores da violência que se brutalizam ao brutalizarem
os outros. Isso não implica que devamos nos relacionar com os
dois lados da mesma maneira, no entanto identificar-se apenas
com o oprimido tende a reproduzir o mesmo problema básico:
a ignorância que os discrimina (os maus) de nós (os bons).
Há algo irônico sobre nossa ansiedade por dialogar com
outras religiões. É normalmente fácil relacionar com represen­
tantes de outras religiões que tenham a mente aberta. É mais
difícil conversar com os membros mais conservadores de nos­
sas próprias tradições, que podem se sentir menos ameaçados
por outras religiões do que pelas tendências liberais dentro da
nossa própria. Será que o maior desafio, atualmente, não é o
diálogo entre religiões, mas sim o diálogo dentro de uma mesma
Pavid R.Lov

religião? O fato de essa brecha entre tradicionalistas e liberais,


entre literal e metafórico, ficar se reproduzindo em quase todas
as denominações sugere que a religiosidade humana envolve
uma tensão entre duas funções diferentes.
Ser autoconsciente é ser autoconsciente de sua mortalidade
e - com poucas exceções - descobrir maneiras de resistir àquele
destino inevitável. Uma visão religiosa é nossa maneira coletiva
principal de resistir a ele. As religiões nos colocam dentro de
uma realidade metafísica maior que nega a morte transcenden-
do-a. Nós não morremos realmente (ou não precisamos morrer
realmente) quando morremos. E é por isso que outras religiões
são uma ameaça assim tão grande: suas visões de mundo dife­
rentes desafiam nosso próprio projeto de imortalidade.
Como isso implica, a negação da morte tem conseqüências
importantes para a maneira como vivemos. Psicológica e tam­
bém logicamente, a vida e a morte são dois lados da mesma
moeda: negar uma delas é negar ambas. “A ironia da condição
do homem é que a maior necessidade é estar livre da ansiedade
da morte e da extinção; mas é a própria vida que desperta essa
ansiedade, portanto devemos nos esquivar de estar plenamente
vivos” (Ernest Becker, The Denial ofDeaíh).
Isso acaba sendo uma crítica poderosa da religião..., mas será
que a evasão coletiva da morte é seu único papel? As religiões
não são apenas guarda-chuvas para fugir da verdade terrível,
em seus melhores momentos elas nos ajudam a vencer a nega­
ção da morte vencendo o ego-eu que está tão apavorado com a
morte. Concluo esboçando uma explicação budista sobre como
isso ocorre, mas não existe nada especificamente budista sobre
esse processo. Como outras religiões têm suas próprias formas
de descrever algo que parece muito semelhante, acredito que
elas compartilham um foco comum que poderia e deveria se
tomar muito importante em qualquer teologia inter-religiosa.
Reflexões budistas sobre a teologia interconfessional

O Budismo enfatiza o relacionamento entre nossos dukkha


(sofrimentos no sentido mais amplo) e a ilusão do eu. O fato de
o sentido de eu (self) ser uma construção psicológica/social/
lingüística (como expressaríamos isso hoje) significa que ele,
por definição, não tem uma base sólida e, portanto, é intrinse-
camente inseguro. Normalmente, ficamos conscientes dessa
insegurança básica como uma sensação persistente de dificul­
dade ou defalta que nos persegue. Como resposta, sentimo-nos
obrigados a (tentar) nos tornar mais reais de uma maneira ou
de outra. Para as pessoas religiosas, isso muitas vezes significa
se qualificar para a eternidade sendo bom para que Deus tome
conta de nós e preencha nossa sensação defalta daqui em diante.
Alternativas mais seculares envolvem perseguir uma realidade
melhor, supostamente trazida pela possessão de muito dinheiro,
poder, fama ou atratividade sexual. É importante compreender
que essas preocupações religiosas ou seculares (ou obsessões)
são maneiras diferentes de reagir ao mesmo problema básico:
uma sensação de que algo está errado ou de que falta algo em
nosso núcleo interior.
O fato de a sensação de self ser uma construção implica que
nosso problema fundamental não é realmente a morte - algo
que nos ameaça no futuro - e sim nosso “vazio” bem agora
no presente. Essa ênfase no aqui e agora indica uma solução
possível: se a sensação de selfé uma construção, ela pode ser
desconstruída? Reconstruída?
A solução budista para essa dificuldade é bastante simples,
embora normalmente não muito fácil de alcançar: em vez de
fugir daquele vazio em nosso centro, nós nos entregamos a ele.
A sensação inerentemente insegura do eu pode abandonar-se
a si mesma, levando aquela “morte do ego” que a meditação
(entre outras práticas religiosas) provoca. Isso permite uma
“reviravolta” (paravrtti em sânscrito) que ocorre no centro de
DavidR.Lov

nossa consciência, onde se descobre que aquela falta de base


que era tão desconfortável é o lugar onde uma sensação recons­
tituída do eu “pode começar a se relacionar com poderes além
de si própria”, como diz Kierkegaard. No centro daquilo “que
eu sou” está algo que está mais além de nome e de forma e que
nunca pode ser captado ou entendido porque é a própria fonte
de minha própria consciência. Palavra alguma pode expressar
esse algo de maneira adequada, é claro, mas muitas delas já
foram usadas: natureza de Buda, o Atman, Deus...
O Budismo enfatiza esse despertar: “o Buda” literalmente
significa “aquele que despertou”. Apesar disso, essa experiência
não é em si mesma o fim do caminho espiritual. A sensação
do eu não deve ser apenas desconstruída; é preciso que ela seja
reconstruída, o que nos traz de volta à tarefa de transformar
nossas motivações para que elas estejam coerentes com a perda
da preocupação ego-eu. Aqui é que a busca religiosa pessoal
se cruza com a preocupação por justiça social. “Despertar”
é compreender que não somos seres separados e sim partes
interdependentes entre si. Então, como é que “eu” posso estar
plenamente iluminado a não ser que todas as pessoas também
estejam? Como é que posso distinguir meu próprio sofrimento
daquele dos demais? Viver de uma maneira iluminada é viver
piedosamente.
Essa perspectiva desmistificada do caminho espiritual sig­
nifica um desafio para o desenvolvimento do Budismo - mas
não só para o Budismo. Outras religiões se deparam com a
mesma escolha: ou continuam a ser instituições de negação da
morte/negação da vida, com todo o dukkha-soíximttíio que isso
implica, ou enfatizam seu papel transformador como caminhos
espirituais que nos ajudam a despertar.
Dada a crise extraordinária de nossa época, que exige o
melhor de nós em termos de resposta, está ficando cada vez

RB
Reflexões budistas sobre a teologia interconfessional

mais evidente que as religiões precisam amadurecer encon­


trando novas abordagens que deem menos ênfase aos dogmas
tradicionais e ao mundo futuro e mais ênfase à desconstrução e
reconstrução do ego-eu aqui e agora. A menos que façamos isso
agora, não vejo como podemos ter esperança de ter um futuro
positivo para a humanidade. Será essa a tarefa primordial para
uma teologia inter-religiosa?
Teologia interconfessional:
a contribuição nativa africana
para o debate

L a u ren ti M a g esa

Teologia, religião e crença


Por definição a teologia não pode ser feita sem ter em mente
algum tipo de “Ideia” divina ou, de forma ainda mais concreta,
uma “Figura” divina. Da mesma maneira, a religião não pode
existir como um fenômeno humano sem referência a essa Ideia
ou Figura, expressa concretamente na oração ou no culto. De
um modo geral, quando o(a) teólogo(a) trabalha, ele(ela) começa
a partir de alguma(s) característica(s) do Divino, que são mais
ou menos definidas e que ele(ela) conhece. O que o(a) teólogo(a)
elabora, portanto, são essas características ou atributos divinos,
e aquilo que a Divindade (ou divindades) exige(m) ou não da
humanidade e da criação na ordem prática da existência. As
diferenças de teologia, e mais além, de religião (que é tanto uma
manifestação quanto uma fonte da teologia) surgem precisamen­
te nesses dois pontos: primeiro, no momento da compreensão
de Quem ou o Que a Divindade (ou Deus) é, e, segundo, no
momento de reconhecer aquilo que a exigência de Deus envolve
em termos de comportamento humano.
ÍEOIOCIA IWHRCONFESSKWm: * CONTRIBUKÁO NATIVA AFRICANA PARA O DEBATE

Uma religião é um fenômeno que expressa um grau de con­


cordância teológica e moral entre seus seguidores nessas duas
áreas. Essa concordância é a crença, assim chamada porque
muitas vezes não desfruta - e na verdade não pode desfrutar
- de uma demonstração concreta na realidade física ou lógica,
como no sentido restrito das ciências físicas. No entanto isso não
significa que a crença e a religião são, ipso facto, irracionais.
Ambas podem servir - e muitas vezes servem - a propósitos
muito úteis e racionais na existência humana. Mas como não
há uma única abordagem uniforme a Deus, há uma variedade
de religiões, crenças e teologias no mundo. Infelizmente, essa
variedade foi muitas vezes a origem de conflitos e de violência
na história humana. E continua a ser. O problema para as crenças
religiosas nesse mundo contemporâneo em que a violência entre
as religiões se avultam cada vez mais é saber se esse é e deve
continuar a ser um aspecto necessário da diferença religiosa.
Será que a teologia interconfessional, cuja meta é a paz e a
harmonia inter-religiosas, é possível? Ou, ao contrário, ela nada
mais é que uma traição daquilo que a crença religiosa significa,
uma traição em que nenhum(a) teólogo(a) que se respeite deve
se envolver?
O objeto desta breve discussão é mostrar, a partir da expe­
riência nativa africana, que a teologia interconfessional é tanto
desejável quanto realmente possível. Hoje, já parece evidente
que ela é necessária para a própria existência humana: a paz
no mundo parece exigir a paz entre crenças e religiões. O que
nós queremos descobrir aqui é a abordagem nativa africana
à diferença religiosa como catalisadora da compreensão e da
tolerância inter-religiosa.
UuiaitiMaaesa

A situação atual: a religião com o ideologia


Para fazer com que a teologia interconfessional seja possível,
precisamos evitar transformar a religião em uma ideologia. O
espaço entre a religião e a crença e a “ideologia” é muito curto
e fácil de transpor. Com referência à crença, a ideologia implica
transformar uma percepção específica da realidade divina em
um programa de ação prática que não permite qualquer diversi­
dade e ao qual todos são obrigados a aderir. A ideologia requer
que todos a vista (e potencialmente mais além) participem de
sua percepção da realidade. Por certo, “ideologias” é aquilo
em que muitas crenças religiosas se transformaram na prática,
intencional e deliberadamente ou não. E isso é o que grande
parte da atual teologia de muitas religiões acaba sendo: ela faz
o Deus que contempla e tenta fazer dele um instrumento ide­
ológico, desejando apenas a conformidade ou a destruição do
outro diferente. A compreensão, a tolerância e a coexistência são
qualidades que quase nunca fazem parte desse cenário religioso.
A maneira pela qual a violência passa a ser parte desse
cenário deve ficar imediatamente evidente. Ela vem na forma
de coerção, onde a liberdade religiosa é na verdade negada. A
coerção pode ser psicológica e sutil, como no caso de um certo
tipo de método proselitista, em que ameaças de castigo divino
têm um papel proeminente como motivo para conversão. Talvez
sem estar plenamente consciente da violência infringida nas
pessoas, essa é e tem sido uma prática comum em várias cren­
ças importantes. Ela consiste também em chamar o diferente
outro de vários nomes não muito elogiosos. Pior ainda, esses
nomes implicam que as pessoas assim chamadas são perversas
e moralmente depravadas. Sempre que a crença religiosa atin­
ge esse ponto no processo ideológico, a violência física aberta
usada contra o “incrédulo” passa a ser não só uma possibilida­
de, mas uma probabilidade. Tragicamente, essa violência é, ao
T eologia inthrconfessional: a contribuição nativa africana para o debate

mesmo tempo, considerada uma virtude por parte da pessoa


que a impõe.
Além da coerção psicológica (e, portanto, da violência), esta­
mos cientes da existência da coerção física na história das reli­
giões, usada, internamente, contra os próprios membros daquela
religião para que se amoldem, ou, extemamente, contra outros
para forçá-los a participar ou para eliminá-los. As duas formas
de violência estão ressurgindo no mundo inteiro na fenomeno-
logia religiosa. Uma vez mais isso nada é senão conseqüência
da “ideologização” da crença e da religião, a convicção total e
absoluta da exatidão de certas posições mentais e morais que
são intolerantes de qualquer outra. Na maioria das vezes, as
posições ideológicas religiosas desse tipo são usadas também
para fins políticos ou até econômicos. Isso ocorre porque a di­
ferença entre crença religiosa e oportunismo político tornou-se
extremamente indistinta nos dias de hoje. Para uma verdadeira
teologia interconfessional que possa levar a um diálogo entre
as várias crenças e entre as várias religiões, e à compreensão
e à paz entre as religiões, é absolutamente necessária uma de-
-ideologização da religião e da fé. A visão de mundo espiritual
africana, a compreensão de Deus e a atitude para com Ele na
África nativa pode contribuir para nos orientar para uma nova
abordagem.

A percepção que os africanos têm


de Deus, da religião e da teologia
Geralmente, as ideologias são construções mentais, muitas
vezes com muito pouca - ou nenhuma - base na realidade. A
ideologia religiosa funciona da mesma maneira. Começa com
especulação, com noções mentais ou filosóficas de Deus e a
seguir aplica essas noções de uma maneira geral para a realidade
Laurenti Maqesa

humana universalmente. Idéias de Deus e de salvação em muitas


crenças missionárias na África agiram dessa maneira, e algumas
religiões atuaram da mesma forma em sua obra evangelizadora.
A reflexão africana sobre Deus, isso é, a teologia nativa
africana, começa de uma maneira diferente. Ela não começa
exatamente com a ideia de Deus e sim com a experiência da
vida, ou, melhor ainda, com Deus percebido na vida e em re­
lação a ela em geral ou na vida humana e em relação a ela em
particular. Aqui na vida a automanifestação de Deus se faz
evidente, já que a espiritualidade africana sempre acreditou que
o que Deus mais deseja para a humanidade é a “intensificação
da vida na comunidade”. Assim, os africanos consideravam
sagradas “aquelas coisas mais intimamente conectadas com a
procriação”. A lista era ampla: “terra ou solo [...,] a plantação,
a colheita [,] sangue, sexo, casamento, nascimento, segundo
nascimento, relações entre as pessoas, cerimônias de iniciação
que marcavam a entrada nos vários estágios da vida, os vários
conselhos que mantinham a justiça e a paz, adivinhos, ferreiros
e suas oficinas, contratos e juramentos, e coisas semelhantes”
(veja: KIBICHO, S. G. God and Revelation in an Áfrican Con-
text. Nairobi: Acton Books, 2006. p. 20). A religião celebrava
essas experiências em rituais e instituía algumas delas como
tabus para proteger sua natureza sagrada.
Essa abordagem reduz de maneira significativa, mesmo
que não elimine completamente, o elemento ideológico na ex­
periência da fé da religião, isso é, aquele elemento de rejeição
total da validade de outras experiências religiosas. Observe
que as experiências apreciadas aqui são, de várias maneiras,
universais para todos os humanos. E se é através delas que
a presença divina pode ser extrapolada com relativa certeza,
como os africanos afirmavam, então a abordagem a Deus não
pode ser privilégio exclusivo de uma pessoa ou de um grupo
T eologia ihterconfessiohal: a contribuição nativa africana para o debate

de pessoas. A crença africana de que há apenas um Deus, mas


manifestações diferentes dele e abordagens também diferentes
a ele, tem aqui sua base.
É importante mencionar, em conexão com a presença de
Deus entre os seres humanos, que, embora exista uma crença
inquebrantável na benevolência divina, no sentido de que Deus
intervém nas coisas humanas para benefício humano, ninguém
- nem mesmo os adivinhos, que são os sacerdotes e teólogos
das religiões tradicionais africanas - ousa predizer a maneira
ou o momento em que isso vai ocorrer. A benevolência ou a ira
dos antepassados pode ser mais ou menos predita, mas não a
divina. Embora a ação dos antepassados entre os humanos esteja
associada com a ação divina, as duas não são comparáveis. Em
última análise, e especialmente com relação a Deus, a única
atitude humana que é considerada “virtuosa” é a convicção total
na presença benevolente de Deus: “Depende de Deus”. Deus é
Deus, e os seres humanos são seres humanos. Deus age como
Deus deseja e ninguém tem o direito de questionar esse desejo.
Essa é uma visão que honra a majestade de Deus e reconhece que
a mente humana e toda a realidade existente não pode abranger
Deus completamente.

A inclusividade da abordagem
africana nativa
Essa percepção prevê uma abordagem mais inclusiva a Deus,
que respeita ao mesmo tempo a majestade de Deus e a limita­
ção humana, especialmente com referência ao “conhecimento”
humano de Deus. Ela aceita maneiras diferentes, mas válidas,
da presença e da ação divinas no mundo como um dado e pode
permitir mais facilmente, como na verdade permite, sem uma
Laurenti Maqesa

sensação de traição, mas com um sentido de cumprimento da


fé, a possibilidade e a realidade de várias figuras do Salvador.
Essa percepção admite a possibilidade e a existência real de
pessoas entre as várias sociedades do mundo cuja característica
central é indicar e contribuir para que se realize, da maneira
mais profunda, a plenitude da vida que Deus deseja e inspira
no mundo e que todas as pessoas esperam alcançar. Será que,
como pode parecer à primeira vista, essa abordagem inclusiva
é, por esse motivo, relativista?
A resposta é não. Há uma diferença sutil aqui que o estudioso
de religiões africanas intui, mas não articula com frequência. O
relativismo diz que qualquer posição vale tanto quanto qualquer
outra, que todas as religiões são igualmente boas ou salvíficas.
A abordagem religiosa e teológica inclusiva não diz isso, pelo
menos não em termos tão categóricos. Pelo contrário, ela afirma
que a sua abordagem a Deus é boa se ela organiza a vida para
você porque a meta é a vida humana e a boa ordem do universo.
E ela exige que você respeite minha abordagem pela mesma
razão. A mudança de posição na fé (ou aquilo que chamamos
de “conversão”) de cada um de nós, nessa perspectiva, só pode
vir de dentro, de nossa convicção interna, uma convicção que
muitas vezes nasce da evidência concreta e observável de que a
outra abordagem produz melhores “frutos” para a vida do que
a minha. O elemento de liberdade no processo de conversão é
aqui bastante evidente.
Mas mesmo assim a conversão ou a mudança nessa percep­
ção muitas vezes não significa uma “descontinuidade radical e
substituição”, como é exigido por muitas crenças e religiões ide­
ologicamente orientadas. Pelo contrário, como já mencionamos,
ela é, fundamentalmente, uma mudança para a realização. Isso
foi descrito adequadamente como a abordagem “ambos/e” à re­
alidade e a Deus, que completa e totaliza, em vez da abordagem

tm
T em poa mebconf essional: a contribuição nativa africana para o debate

“ou um ou outro”, que exclui totalmente (e consequentemente


empobrece) a realidade. Em vez da competição, dominação e
hegemonia subjacentes entre crenças e religiões, ela enfatiza
a mutualidade e aquilo a que podemos nos referir como uma
“fertilização cruzada” entre elas. Isso é o que conduz ao diálogo
e à teologia inter-religiosos.

Ser responsáveis pela crença


que possuímos
Nessa abordagem africana à crença e à religião, há uma sen­
sação de “discriminação” inteligente, mas não da exclusividade
hostil do diferente outro que, como em uma Cruzada, é carac­
terística da abordagem religiosa ideológica. Isso significa que,
embora o crente comece a partir de um sentido de identidade,
de um conhecimento e apreciação de sua própria crença e de
um desejo de mantê-la porque lhe serviu bem na vida, ele ou ela
não para aqui. Levando seriamente em consideração a grandeza
de Deus, a pessoa reconhece que sua identidade religiosa, uma
vez mais, não esgota e não pode esgotar a realidade de Deus.
A pergunta que o crente deve se fazer constantemente quando
encontra outra crença, outra religião, portanto, passa a ser de
que maneira esses novos fenômenos vivenciam e expressam a
presença de Deus. Será que, na prática, eles manifestam ele­
mentos para a realização da vida humana que a minha própria
experiência religiosa e minha crença não possui ou não mostra
tão claramente?
O grau de profundidade dos elementos a favor da vida e da
harmonia irá, portanto, determinar a direção da crença e da
“conversão religiosa” de dentro dos participantes no diálogo.
Mas o conceito de conversão é perigoso aqui em virtude de suas
associações históricas religiosas ideológicas. Em um sentido que
Laurenti Maqesa

é instintivamente compreendido pelo estudioso das religiões


africanas, a conversão não envolve primariamente um abandono
de uma posição religiosa e sim um processo de “realização”
própria naquelas coisas que importam mais na vida. Em suma,
na religiosidade africana isso significa estar do lado direito
de Deus e dos antepassados, de quem toda a vida depende. A
conversão pode, portanto, ser parcial no sentido de amalgamar
minha própria identidade religiosa atual. Mas ela pode também
ser total no sentido de aceitar completamente outra identidade
pela qual, por sua vez, devemos prestar contas por meio da
experiência de vida.

Conclusão
Embora haja muita verdade na afirmação de que a teologia é
sempre “confessional” em virtude da identidade do(a) teólogo(a)
e da necessidade de ser responsável pela fé que ele(ela) mantém,
isso não significa necessariamente que a teologia precisa ser um
processo ou sistema ideológico fechado. Se a percepção africa­
na nativa da crença e do processo religioso tem qualquer valor
nessa questão, é demonstrar que o objetivo total da teologia,
especialmente em nosso mundo multirreligioso, não é apenas
falar sobre Deus e explicá-lo, mas também ouvir e aprender
com aquilo que outros dizem sobre essa Realidade última.
Um serviço importante que a teologia pode oferecer ao mundo
moderno é levar a sério sua natureza de “palavra” ou história
sobre Deus, uma história que deve ser compartilhada para
que enriqueça e seja enriquecida. Essa é a essência do diálogo
teológico inter-religioso, e a abordagem africana a Deus capta
essa essência muito bem.
“Religiões em geral?”
r

E plausível uma teologia


interconfessional na
universidade?

Ja c o b N e u sn e r

Argumentos a favor de decorar uma praça pública com sím­


bolos religiosos de caráter não sectário - renas, mas não uma
creche; “confiamos em Deus”, mas nunca em nome de Jesus
Cristo; e, por parte do Judaísmo, uma rosca especial do Chanuca,
mas não um ritual religioso - sugerem a ideia de que possamos
ser religiosos de um modo geral. Com essa ideia parece que as
pessoas quererem dizer que existe algo como “religiosidade sem
religião”, uma afirmação generalizada de que há um Deus no
mundo sem qualquer afirmação de qualquer coisa sobre Deus.
E é importante para as pessoas insistirem que é possível sermos
religiosos sem ter aquela devoção específica relacionada a uma
igreja, sinagoga, mesquita ou templo particulares, porque a
religião é vista como algo individual em vez de social, pessoal
em vez de cultural. Consequentemente, muitos indivíduos po­
dem compartilhar uma atitude um tanto generalizada e todos
eles podem reagir com uma emoção comum em face de uma
circunstância determinada. A religião, então, vista como indi­
vidual, não é divisiva, nem partidária, nem sectária - tampouco
é muito importante. A religião genérica é sempre particular e
"Religiões em geral?" É puutsfva uma teologia imacoNfEssiONAi na universidade?

individual, o que eu creio, o que você crê, e raramente invoca


aquilo que nós temos em comum ou exige alguma coisa de nós
em virtude daquilo que fazemos juntos.
A religião genérica evita a responsabilidade. Dizemos que
toda política é local. Com isso queremos dizer que o exercício
do poder importa quando ele tem importância no aqui e no ago­
ra. O mesmo se aplica à religião: se toda política é local, toda
religião é social. A religião que é puramente pessoal e privada
não faz diferença no mundo, e é por isso que as pessoas em
uma sociedade pluralista recorrem à privatização da religião,
insistindo que ela é seja lá o que for que você, pessoalmente,
faz com que ela seja.
A religião genérica também contradiz o caráter religioso. E
isso não é apenas porque aquilo que é importante para nós é
sempre particular: é a cidade em que moramos, o trabalho que
fazemos diariamente, e, no caso da religião, a família e a igreja
ou sinagoga e o grupo social que personificam a religião parti­
cular que apoiamos. A razão é que nós podemos apontar, no aqui
e no agora, para a religião apenas em suas particularidades, em
sua expressão na localidade da vida cotidiana. É bem verdade
que o Cristianismo protestante e o Judaísmo reformista dão
muita ênfase ao indivíduo e ao encontro direto de Deus com
ele ou ela. O Cristianismo católico e o Judaísmo ortodoxo dão
muito mais ênfase à comunidade, que, em um acordo solene,
põe-se diante de Deus em conjunto e é por Ele santificada. Mas
tanto os protestantes quanto os ortodoxos e os cristãos católicos
romanos, e tanto o Judaísmo ortodoxo quanto o conservador,
formam igrejas e comunidades, insistem em uma doutrina com­
partilhada e tratam a religião como algo que importa porque é
algo que fazem em conjunto.
Mas a religião não é tratada como genérica ou privada porque
as pessoas acreditam erroneamente que a natureza da religião
Jacob Neusner

é corporativa e pública, sempre definindo o grupo social. Ao


contrário, é precisamente porque realmente compreendem que
a religião é social que desejam que fosse diferente, porque as
religiões - e já não a religião - têm muita dificuldade de pensar
sobre o outro, o intruso, e tendem a separar seus seguidores
da sociedade comum. Quando, por exemplo, universidades de
fundação católica, protestante ou judaica querem deixar de ser
tão sectárias, o fazem com o objetivo de serem mais aceitas
por um grupo mais amplo de estudantes e professores. No
ano passado, por exemplo, a Universidade Brandeis começou
a fornecer comida não kosher para estudantes não judeus; e a
laicização de muitos colégios e universidades católicos é um
exemplo desse mesmo movimento. Mas temos de nos perguntar
se esses esforços para acomodar o pluralismo - e para explorá-
-lo - removendo os símbolos daquilo que nos torna especiais e
diferentes, realmente cumpre o objetivo desejado pela direção
dos colégios e universidades judaicos, católicos e protestantes.
Pois quando fingimos ser “religiosos em geral”, mas não em
particular, negamos aquilo que é importante sobre nós mesmos:
as famílias que fizeram com que existíssemos, as comunidades
que nos aproximam uns dos outros, as coisas que evocam nossas
lembranças e dão sentido às nossas vidas, que sem isso vêm de
lugar nenhum e não fazem qualquer sentido. “Religião em geral”
representa todas as religiões como sendo igualmente corretas,
mas nenhuma religião em particular pode fazer uma concessão
assim tão enganosa. Se Jesus Cristo ressurgiu dos mortos e é
o Messias do mundo, então meu Judaísmo, que ainda espera
pelo Messias, está errado. E se o sacrifício da missa serve de
mediador entre o sangue e a carne de Deus e os fiéis, então os
luteranos (e isso sem mencionar os batistas) estão terrivelmente
errados. Refiro-me a questões de doutrina. Mas nas coisas que
contam, como a política, qualquer afirmação de que as religiões
"R eiigiOes em geral?" É plausível uma teologia interconfessional na universidade?

estão todas certas e, portanto, não importam e não deveriam nos


dividir contradiz os fatos terríveis dos dez condados de Ulster,
na Irlanda, onde protestantes e católicos se matam; do Oriente
Médio, onde tipos diferentes de muçulmanos se matam; da Terra
de Israel e Caxemira, onde judeus e muçulmanos, hindus e mu­
çulmanos, competem pelo mesmo território etc. Abra o jornal
qualquer dia de manhã - e depois tente se persuadir de que “a
religião em geral” é uma opção para interpretar o mundo que
realmente enfrentamos!
Mas se, como eu afirmo, a religião é sempre e somente par­
ticular, como vamos viver, então, no campus universitário em
particular, com a diversidade, a pluralidade e a diferença religio­
sa? A solução que nos pede que neguemos a diferença também
desafia a realidade da fé religiosa, mas o reconhecimento de
que as religiões são sempre locais, sempre particulares, sempre
divisivas em virtude de sua particularidade, não contribui exa­
tamente para responder à pergunta do aqui e agora. Na univer­
sidade, em particular, é melhor que enfrentemos essa questão,
porque aqui temos a oportunidade, em plena racionalidade, de
enfrentar os problemas da sociedade. Do lado do fora as con­
dições mal nos permitem fazer isso. Aqui podemos conversar
de uma maneira razoável, negociar as diferenças, explorar as
possibilidades e tentar alternativas. Nós, acadêmicos, estamos
acostumados com argumentos e diferenças, e é parte de nosso
repertório profissional experimentar as coisas: verificar esta
possibilidade, explorar aquela alternativa. E os alunos no cam­
pus também têm uma vida inteira à sua frente. Aqui existem
poucos riscos e, se você cometer um erro, pode aprender com
ele. Fora do campus os riscos são maiores e as pessoas não estão
de forma alguma acostumadas com experimentos que não dão
certo e teorias que acabam sendo falsas - mas que, por isso
mesmo, são frutíferos.
Jacob Neusner

Portanto, aqui, no campus, temos a oportunidade e também


a tarefa de explorar como ser religioso em pleno confronto com
a diferença religiosa. E isso, a meu ver, é o principal problema
com que se deparam todas as religiões no século XXI: não o
secularismo, mas sim o sucesso. Pois está claro que a onda
do futuro não está com o materialismo ou o ateísmo, mas sim
com as igrejas e sinagogas e mesquitas e templos. A religião
sobreviveu a duzentos anos de secularismo militante, tanto na
política quanto na vida intelectual. Mas será que o mundo pode
sobreviver ao - agora manifesto - triunfo da religião e, portanto,
das religiões? Aqui no campus é melhor lidarmos com essas
questões e não existe lugar melhor que uma universidade como
a de Redlands, que, afinal de contas, foi fundada por batistas
americanos com a intenção de prover um ambiente cristão para
a educação superior, mas, como Brandeis e Notre Dame e outras
escolas, tem estado mais inclinada no passado recente a dar ên­
fase apenas à religião genérica (se isso). A oportunidade diante
dos colégios e universidades protestantes, judaicas e católicas
é demonstrar como podemos ser autênticos com nossa herança
sem excluir o outro em virtude dessa diferença.
Tendo definido o que considero como a questão mais urgente
confrontando a religião - saber administrar a diferença - e o
ambiente ideal para a experimentação com esse problema, que
é o campus, voltemo-nos agora para as questões práticas que
têm de ser enfrentadas. A meu ver, para começar, são três as
questões que exigem nossa atenção.
Primeiro, o que é que está além do relativismo, da noção
de que todo mundo é certo para alguém, mas ninguém a não
ser eu mesmo é certo para mim? Segundo, se não relativismo,
como devo, então, interpretar a diferença? Terceiro, é possível
que as pessoas aprendam juntas, divirtam-se juntas e trabalhem
juntas se não podem orar juntas? Além do relativismo está a
"R eligiOes em geral?" É plausível uma teologia interconfessional na universidade?

tarefa desconfortável de afirmar que estamos certos quando


outras pessoas discordam: o relativismo nos poupou muito tra­
balho, mas esse artifício que poupa trabalho agora demonstrou
ser caro demais para ser mantido. Mas nós, nas universidades,
estamos acostumados com a diferença: discutimos uns com os
outros o tempo todo se defendemos uma determinada posição
e se estamos fazendo alguma coisa como acadêmicos. Se não
relativismo, então como devo interpretar a diferença? Como
um acadêmico eu comemoro a diferença, é ela que torna o
trabalho interessante. Se, ao escrever meus livros, tudo que eu
fizesse fosse ensaiar aquilo que li nos livros de outras pessoas,
eu acharia que a vida é um tédio. E o mesmo se aplica a opini­
ões, e especialmente opinião e crença a respeito das coisas que
importam. As pessoas religiosas evitaram completamente tudo
aquilo que divide por tanto tempo que os católicos hoje falam
menos sobre Maria do que gostariam; e os judeus tendem a não
declarar sua crença profunda em Israel, no povo judeu como
sendo sagrado e na aliança com Deus; e os cristãos protestantes
começaram a achar constrangedor a insistência dos cristãos
evangélicos, seguidores da Bíblia, sobre a verdade infalível das
Escrituras. Mas o debate público sobre o que nos importa abre
as portas para a honestidade e a evasão corrói no final. Nossas
vidas em conjunto não são mais saudáveis quando negamos a
diferença. Nós só começamos a viver juntos quando falamos a
verdade sobre nós mesmos.
Então, para o cerne da questão: o que pode ser feito, ou,
como coloquei a pergunta, será que as pessoas podem apren­
der juntas, divertir-se juntas, trabalhar juntas, se não podem
rezar juntas? Sim, há coisas que podemos fazer juntos, mesmo
quando reconhecemos que existem outras coisas que não po­
demos compartilhar. Não irei comer algumas das comidas que
você come, mas posso compartilhar com você o que significa
Jacob Neusner

viver uma vida em que cada refeição é ocasião para confirmar


minha vida de acordo com a Torá. Meu romancista favorito e
coautor, Padre Andrew Greeley, não se casará, mas ele pode lhe
dizer muita coisa sobre o significado do amor e do sacrifício e
do serviço por meio do celibato, tanto, na verdade, que em um
diálogo com ele você irá se dar conta do significado de amar
uma mulher de maneiras que seriam inimagináveis antes disso.
Meu colega protestante, lutando com o dilema de obras em uma
religião calvinista, pode contar-me coisas sobre a centralidade
da graça que para mim abrem possibilidades cuja existência eu
desconhecia totalmente.
O que podemos fazerjuntos quando não podemos orar juntos
- reconhecendo a particularidade da vida religiosa - é aprender
juntos e ensinar uns aos outros sobre as potencialidades e as
escolhas que pessoas que não são iguais a nós fazem. Mas isso
me parece precisamente aquilo que os colégios e as universida­
des fazem melhor: contar-nos coisas que não sabíamos, coisas
que não poderíamos sequer imaginar, para assim abrir nossas
mentes (e também nossos corações e almas) para mundos que
de outra forma nunca teríamos conhecido, mundos que nos
transformam quando ficamos cientes deles. Na sala de aula
estudamos histórias que não são as nossas e ultrapassamos os
limites do repertório estreito e provinciano das escolhas que
acreditamos ter, na política e nas políticas públicas, por exem­
plo, e na organização da sociedade e da cultura. Na literatura
vemos como a linguagem serve para personificar a imaginação
além de nossa capacidade e a nos capacitar a sonhar e a dizer
o que vimos. A diferença na religião, também, abre caminhos
para fazer de nós, em toda nossa particularidade, mais do que
sabíamos que éramos, e para nos tornamos mais do que aquilo
que pensávamos que poderíamos ser. Na linguagem do Cristia­
nismo e do Judaísmo, que vê a humanidade “à nossa imagem e
* R a iG IÕ B EM GERAL? " É PLAUSÍVEL UMA TEOLOGIA IHTERCONFESSIONAL NA UNIVERSIDADE?

semelhança,” e procura Deus no rosto do ser humano, a diferença


na religião nos mostra as várias maneiras pelas quais, bastante
plausivelmente, as pessoas se propõem a ser “à nossa imagem
e semelhança”.
Afirmamos o relativismo e negamos a diferença na busca de
uma base para a aceitação mútua. A universidade afirma buscar
a verdade, portanto já não podemos dizer que todas as pessoas
estão certas sobre uma quantidade de proposições mutuamente
contraditórias e incoerentes relacionadas com questões últimas.
A universidade afirma lidar com fatos, e já não podemos negar
os fatos da diferença. Mas se todos os outros estão errados e eu
estou certo - e essa proposição contém a crença que, até agora,
ninguém ousou confessar pelo menos não em público - então
como é que vou interpretar o outro? Minha resposta é, não posso
transformar o outro à minha própria imagem e semelhança, mas
tenho de aprender a ver nele uma outra forma de ser à imagem
e semelhança de Deus. É bem verdade, essa é uma proposição
desconfortável. Mas é honesta e necessária. E essa proposição
demonstra ser extraordinariamente congruente com aquilo
que estamos aqui para fazer juntos, neste local específico, a
universidade, que é aprender. Afirmar a diferença porque com
ela aprendemos formas das respostas religiosas mais belas às
perguntas propostas quando reconhecemos que a religião, como
a política, é sempre local. Não podemos ser religiosos em geral
porque existem, lá fora, no mundo inteiro, apenas religiões e
não religião. E o fato de religiões serem plural e nós sermos
diferentes apresenta para as universidades o desafio de se tor­
narem aquilo que elas afirmam ser: lugares em que nutrimos
uma variedade de propostas sobre vários assuntos, lugares em
que somos um no diálogo, mas múltiplos na perspectiva, uni­
dos em respeito à razão, totalmente divididos em tudo mais.
Argumentos existem para ser aproveitados com prazer e não
Jacob Neusner

evitados. E as diferenças de opinião para serem exploradas, não


evitadas - e tudo isso por razões sólidas e teológicas: cada um
de nós está, afinal de contas, “à nossa imagem e semelhança”,
e da perspectiva de Deus na Escritura, mostrando exatamente
como as coisas devem ser. E isso é, infelizmente, precisamente,
da maneira que elas são.
A teologia interconfessional
é possível?
Se não, por quê?

T e r e sa O k u r e

O conjunto de ensaios deste livro investiga a possibilidade


de existir uma teologia interconfessional que fosse além do
pluralismo e da inclusão, uma integração total ao tratar das
necessidades do mundo contemporâneo. Tal teologia integrativa
convocaria os povos de todas as crenças para colaborarem e
fazerem seu discurso teológico tratar das necessidades comuns
da raça humana que transcendem a crença, a filiação religiosa
e todas as outras categorias humanas que contribuem para
enfraquecer a unidade da raça humana. Apresento este breve
ensaio à apreciação dos leitores, escrito sem ter oportunidade
de recorrer a literatura complementar, esperando contribuir
para uma teologia interconfessional do ponto de vista bíblico.
Ele pergunta: o que é teologia? É possível haver uma teologia
interconfessional da perspectiva bíblica? Se não, por quê? Em
caso afirmativo, quais seriam as características dessa teologia;
seria uma que atenderia as necessidades de toda a raça humana
e convidaria seus participantes a focalizar essas necessidades
como chaves hermenêuticas para o engajamento na teologia
colaborativa?

m
A TEOLOGIA INTERCONFESSIOMAL í POSSÍVEL? S e NÃO. ROR QÜÊ?

Etimologicamente, a teologia é a discussão humana ou a


palavra sobre Deus (theos logos). Anselmo descreveu-a como
“a fé procurando entendimento através da discussão filosófica”.
Ele pertenceu a uma época em que a filosofia era considerada a
serva da teologia. Contudo, no interior de toda filosofia existe
uma dimensão cultural, o DNA de um determinado povo que
informa sua perspectiva e compreensão da vida, da criação e de
um Criador. A cultura molda como um determinado povo vivên­
cia sua interconectividade com Deus, os outros seres humanos
e a criação. Ela forma seus sistemas de valores, costumes, ritos
e rituais e a soma total do que significa ser humano. O mesmo
se aplica à teologia. Talvez hoje em dia preferíssemos definir,
ou melhor, descrever a teologia como “a fé buscando entender
Deus do ponto de vista dos sistemas de crença, com informações
dos valores culturais de seus adeptos”. Enquanto a religião fala
em geral sobre como alguém se relaciona com Deus, a teologia
procura descobrir, aprofundar e desenvolver o conceito de Deus
de alguém com base nos sistemas de crença do indivíduo.

Análise racional de uma


teologia interconfessional
Aqui examinamos duas razões fundamentais, mas que não
são exclusivas para defender uma teologia interconfessional, isto
é, o Deus que cria e a unidade do que Deus criou.
Um Deus, Criador de tudo. No âmago da teologia está Deus,
a respeito do qual trata o discurso humano. Por conseguinte,
não importa quão limitada ou condicionada seja a teologia a
partir da peculiaridade da cultura e sistemas de crença de al­
guém, ela possui em seu interior o caráter e escopo universal
na medida em que seja uma discussão sobre Deus. Enquanto
diferentes povos possam expressar sua compreensão de Deus de
Teresa Okure

maneiras diversas, esse Deus permanece uma constante em cada


teologização. Se no passado as pessoas acreditavam em deuses
diferentes, o mundo se aproxima cada vez mais da crença de que
existe apenas um Deus, embora seja conhecido por diferentes
nomes em diferentes culturas e contextos por diferentes povos.
Paulo lembrou os atenienses politeístas desse fato, citando seus
próprios poetas em sua defesa (At 17,22-30).
Portanto, a ideia e a possibilidade de uma teologia intercon-
fessional repousam em e pressupõem que haja somente um Deus,
o qual é abordado por diferentes crenças de diferentes maneiras.
Sem esse entendimento básico e comum seria impossível ima­
ginar uma teologia interconfessional, já que essa teologia care­
ceria de um denominador básico comum. As Escrituras, como
eu disse em minha apresentação no I Fórum sobre Teologia e
Libertação (WFTL), é o “Manual de Instruções de Deus” para
a humanidade. Ele nos permite saber de onde viemos como es­
pécie humana, nossa identidade na criação e em relação a Deus,
os desígnios de Deus ao nos criar e como acabamos sendo do
jeito que somos agora: não somente diferentes, mas também
desunidos. A história de Gn 1-11, chamada de pré-história, trata
do mito de nossas origens como gênero humano. A seção his­
tórica da Bíblia, do Gn 12 em diante, nos aponta e conduz para
frente no caminho até que os planos e propósitos de Deus para
nós sejam realizados no novo céu e na nova terra (Ap 21-22).'
A raça humana. Outra base lógica para a teologia intercon­
fessional é a realidade da raça humana. A ideia de um gênero
humano não é uma criação da imaginação nem uma invenção
do século XXI. É um dado nas Escrituras. Elas nos asseguram1

1 OKURE, T. “Theology for another possible world”, um trabalho apresentado, in


absencia, no primeiro WFTL. From Genesis to revelation: apocalyptic in bibli-
cal faith. In: FREYNE, Sean; SOWLE CAHILL, Lisa. Is The World Ending?
Concilium (1998/4) 23-30.
ATEOLOGIA INTERCONFKSIONAL É POSSÍVEL? SeNÃO. POR QUÊ?

que a raça humana é uma espécie criada por um Deus a partir de


uma só e mesma matéria-prima, criada masculina e feminina na
“imagem e semelhança de Deus” (Gn 1,26; 26-27), e concedidos
o mesmo dom e responsabilidade pela Terra. Embora as Escri­
turas sejam um livro das religiões judaica e cristã, seu escopo
ultrapassa essas duas religiões e abrange a criação inteira. A
origem do livro é a origem e história de um povo específico,
os israelitas como povo escolhido e especial de Deus. Para os
cristãos, Jesus é o ápice de todas as promessas que Deus fez na
Bíblia, tanto aos israelitas quanto à humanidade como um todo.
Não obstante suas origens, a Bíblia não é um livro exclusiva­
mente judeu ou cristão. Quase em todas as fases que abarcam
mais de dois mil anos de história, o livro manteve uma teologia
subjacente aberta e totalmente abrangente do envolvimento de
Deus com todas as nações. Não somente interesse. É mostrado
como Deus incluiu os povos de outras nações no plano divino
para salvar a humanidade de seus pecados, isto é, seus desvios do
propósito original que Deus pretendeu para a criação. Também
mostrou como Deus exige obras de justiça de todos na qualidade
de povos feitos à imagem e semelhança de Deus, convocando
todos a serem responsáveis por suas obras.2
Sobre o envolvimento dos não judeus na história bíblica, po­
demos pensar em personagens importantes como Agar e Ismael,
seu filho com Abrão; as parteiras egípcias que desafiaram a
ordem do próprio faraó para salvar os israelitas recém-nascidos,
um dos quais era Moisés, chamado pela filha do faraó de o
“promotor” da religião bíblica (Ex 2,1-10). Outras mulheres

2 Um exemplo notável aqui é que os livros proféticos, principalmente o Livro


de Amós, que começa com profecias dirigidas contra os vizinhos de Israel por
seus pecados de injustiça social: Damasco (1,3-5); Gaza e Filisteia (1,6-8); Tiro
e Fenícia (1,9-10); Edom [Esaú] (1,11-12); Amon (1,12-15); Moabe (2,1-3);
depois Judá (2,4-5) e, finalmente, Israel, o principal alvo da profecia de Amós
(2,6-16).
Teresa Qkure

na vida de Moisés o salvaram em momentos difíceis: as filhas


do sacerdote de Madiã e sua esposa cuchita. Pensamos no adi­
vinho mesopotâmico, que se tomou profeta, de quem proveio
o primeiro oráculo messiânico (Nm 22-24). Na Assíria, que
Deus chamou de “vara da minha ira” contra seu próprio povo
(Is 10,5). Ou em Ciro, rei da Pérsia, que Deus chamou de seu
servo, talvez o profeta pós-exílio, a primeira figura messiânica
que mereça tal nome (Is 45,1-8). Há inumeráveis exemplos. Os
salmos da criação (por exemplo, SI 24[23],1) sustentam que “do
SENHOR é a terra com o que ela contém, o universo e os que
nele habitam”.
Provavelmente não é por acaso que no Novo Testamento a
genealogia de Jesus, o Messias, tem quatro mulheres não ju­
dias, as quais, consideradas todas juntas, rompem seriamente o
mito da pureza da raça judia mesmo antes da deportação para
a Babilônia (onde essa pureza teria sido ainda mais diluída).
Antes disso, os autores do Êxodo nos informam que, durante
o próprio êxodo, um grupo inteiro de pessoas de outras nações
se juntou à fuga ou expulsão dos israelitas (dependendo de
qual versão tradicional do Êxodo seja adotada) quando eles
deixaram o Egito (Ex 12,38). Logo, as próprias Escrituras não
garantem a exclusiva pureza de raça do povo escolhido. O que
elas garantem é a integração do ponto de vista divino, embora
se possam interpretar as tradições e elas próprias possam que­
rer nos fazer acreditar que o povo escolhido era de uma única
raça tribal. O Novo Testamento deixa ainda mais claro que o
escopo da redenção de Deus é universal: “De fato, Deus amou
tanto o mundo, que deu o seu Filho único, para que todo o que
nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). Paulo
nos assegura mesmo que todos os seres humanos judeus e não
judeus pecaram, se perderam, e que todos são salvos pelo ato
de amor de Deus como uma graça (Rm 3,21-24).
A lEOLOCiAINTERCOHfESSIONALÉPOSSÍVEL? $E NÃO. PORQüE?

Nos relatos sobre a infância, os magos do Oriente vieram


procurar e adorar alguém que nasceu como “rei dos judeus” (Mt
2,2), não o próprio deus deles!, porque eles possuíam uma mente
sufícientemente aberta para reconhecer sua grandeza quando
viram surgir sua estrela. Em contraposição, o povo do próprio
Messias, que sabia onde ele nasceria e que tinha esperado por
séculos sua vinda, foi aquele que o procurou para matar. Quando
não conseguiram identificá-lo, eles mataram todos os meninos
que tinham aproximadamente sua idade, nascidos em Belém,
onde ele tinha nascido, e nos campos ao redor (Mt 2,1-18).
Tudo que foi dito até agora serve simplesmente para cons­
cientizar a natureza integrativa da Bíblia em si e o chamado
atual para redescobrirmos essa integridade, principalmente
da perspectiva do Novo Testamento. O mesmo Deus que criou
o mundo e a espécie humana é aquele que veio na pessoa de
seu Deus-Verbo como um de nós (Jo 1,1-4) para nos redimir
a todos. “[...] e não só pela nação [Israel], mas também para
reunir os filhos de Deus dispersos” (Jo 11,52). Jesus elevou,
glorificou, “atraiu todos os povos” para seu ser humano divino
(cf. Jo 12,32). Ainda mais minuciosamente: “Deus estava em
Cristo reconciliando o mundo com o ser divino e nos confiou
as boas-novas de que eles se reconciliaram” (cf. 2Cor 5,18-20).
É tudo obra de Deus.

Características da teologia
interconfessional: Jesus com o
mestre e modelo
O propósito do precedente é que as próprias Escrituras, o
“Manual de Instruções de Deus”, incitam-nos a fazer uma teo­
logia integrativa, uma que conduziria a raça humana a conhecer
Teresa Okure

e celebrar o fato de que Deus fez por nós na luta contra o pecado
e o mal aquilo que nós possivelmente não poderíamos fazer
sozinhos. Jesus veio para proclamar a bondade de Deus ou esta
libertação, para ser ele próprio as boas-novas (Rm 1,1-4). Tendo
terminado sua missão na terra, ele pediu a seus seguidores que
não começassem a agir sozinhos, mas que esperassem até que
fossem transformados e fortalecidos pelo Espírito Santo a fim
de irem proclamar suas boas-novas aos confins do planeta (At
1,4); e fazê-lo da mesma forma que ele o proclamou - totalmente
grátis (Jo 20,21-23). A teologia que se desenvolveu desse manda­
to ao longo dos anos talvez não tenha permanecido sempre fiel
ao seu foco universalista e mandato. Talvez seja esse “desvio
do Evangelho”, para citar a frase de João Paulo II, que tornou
urgente para nós, no alvorecer do século XXI, buscar “fazer-
-se ao largo para a pesca” (“duc in altum”) para uma teologia
interconfessional integrativa. Começar a pegar o peixe em
plena luz do dia porque é Jesus, não os seres humanos, quem
está mandando os peixes, uma operação de proclamação dos
Evangelhos (ver Lc 5,1-113).
Se é verdade que Jesus é o Verbo-Deus encarnado em nos­
so mundo, que veio por causa da humanidade como um todo,
não somente para os crentes, então precisamos vê-lo e a seu
exemplo pelo que significam no desenvolvimento da teologia
interconfessional. Uma teologia que ajudaria toda a humanida­
de a se unir para trabalhar e fazer do mundo um lugar melhor
para se viver, onde nenhum de seus membros (da raça humana)

3 Esse é o impulso ou leitmotiv da carta apostólica de João Paulo II Novo Millennio


Ineunte (disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/apost_
letters/documents/hfjp-ii_apl_20010106_novo-millennio-ineunte_po.html>). O
incidente acontecido na pesca dos discípulos de uma noite inteira, em Lc 5,1 -11,
não trouxe resultados até que Jesus chegasse ao alvorecer para dirigir a operação.
Da mesma forma, a Igreja, no alvorecer deste século, deve ouvir Jesus e fazer as
coisas certas.
A TEOLOGIA 1NTERCONFESSIONAL É POSSÍVEL? S e NÂO. POR QUÊ?

seria um necessitado, onde a tendência gananciosa de espoliar


e explorar a natureza e os pobres seria rejeitada e abandonada.
Essa busca pode assumir diferentes dimensões. Uma importante
seria estudar sua interação com aqueles que no juízo de Tiago
e João deveriam ser consumidos pelo fogo por não aceitarem
Jesus (Lc 9,54); ou quem, de acordo com seus discípulos, “não
fosse um de nós”. Eles queriam fazê-los parar de expulsar demô­
nios em nome de Jesus, mas Jesus os proibiu dizendo-lhes que
ninguém que expulse um demônio, um espírito impuro, em seu
nome poderia logo falar mal dele. E acrescentou: “Quem não é
contra nós, está a nosso favor” (Mc 9,38-40). Isto é diferente dos
discípulos de estilo próprio que não seguem seus ensinamentos,
mas que expulsam demônios em seu nome. Jesus diria deles:
“[...] Jamais vos conheci. Afastai-vos de mim, vós que praticais
a iniqüidade” (Mt 7,21-23). Expulsar os espíritos impuros em
nome de Jesus é mais do que um ritual. É um chamado para
fazer como Jesus fazia; para agir in persona de Jesus.
Nos Evangelhos Jesus acolhe os não judeus, os forasteiros,
e os elogia como modelos de uma fé que ele não encontra nem
em Israel (Lc 7,9; 1-10: o centurião romano). Ele diz que o povo
de Sodoma receberia um julgamento menos severo no dia do
juízo final do que o povo escolhido porque eles não tiveram a
oportunidade que o povo escolhido teve e jogou por terra (Mt
10,15; Lc 10,13-15); a rainha do Sul iria a julgamento por causa
do povo escolhido porque sua fé a levou a procurar a sabedoria
de Salomão, enquanto o povo tinha a própria Sabedoria em seu
meio falando com eles, mas não prestou atenção (Mt 12,42).
Jesus deixou-se comover pela teologização, a sabedoria nativa
da mulher siro-fenícia (Mc 7,24-30; Mt 15,21-28). Ele pediu ao
endemoniado de Gerasa, o qual ele havia curado de uma legião
de espíritos impuros, que não se tornasse fisicamente seu discí­
pulo, mas permanecesse com seu povo e proclamasse a bondade
Teresa Okure

de Deus para com ele e para com eles também (Mc 5,1-20). Pois,
enquanto o homem foi possuído, a cidade toda esteve sitiada
por ele. Quando ele foi liberado, a cidade toda foi liberada, e
todos se tornaram recipientes e ouvintes das boas-novas. Esses
exemplos também poderiam ser multiplicados.
De modo geral, é intrigante que o critério para o julgamento
final que vai determinar se alguém é contado entre as ovelhas
que passarão para a vida eterna ou que irão para o fogo eterno
seja como ele satisfaz as necessidades, as necessidades básicas
de cada ser humano. É como ser humano (filho do homem, que
em meu idioma ibibio se diz “Eyen Owo”, literalmente: “o filho
de um ser humano”) que Jesus vai julgar: eu, um ser humano,
estava com fome e você me deu de comer; eu tinha sede e você
me deu de beber, eu estava nu e você me vestiu, doente e na
prisão e você me visitou”. Então, ele acrescentou: “Na medi­
da em que você o fez [ou se recusou a fazer] a algum desses
pequeninos, você o fez [ou se recusou a fazer] a mim” (cf. Mt
25,31-46).4 Aqui temos uma teologia que torna a reunir e está
situada na própria atividade sem fim de Deus de sustentação
da vida, que Deus concedeu em primeiro lugar. É totalmente
oposta à teologia do fundamentalismo, que mata, destrói a vida
- que Deus deu livremente com tanto amor-, ironicamente em
nome de Deus e da religião. No entanto, a religião, pelo seu
próprio nome, é aquilo que reata as pessoas juntas ou que faz
as pessoas escolherem de novo pertencer e reivindicar umas às
outras como partes delas mesmas.5

4 Ver mais sobre isso em: OKURE, T. Bibel text 4: verpflichtet zur Gastfreundschaft
zu Gast in Nigéria. Bibel Heute 4 (2004) 20-21. Original em inglês: Hospitality:
a task exegesis o f Matthew 25,31-46).
5 Há pouco tempo eu examinei isso em “Challenges o f reconciliation for the reli-
gious in África”, USG/UISG Comissão de Justiça, Paz e Integridade da Criação
[JPIC] como parte do processo de participação no Segundo Sínodo Africano,
“The Church in service to reconciliation, justice and peace: ‘Vós sois o sal da
ATKHOGIA INTHKOHfESSIOHAL ( POSSÍVEL? Se NÃO. POR QUÊ?

Tal critério para o julgamento final está vinculado com o


conteúdo das Boas-Novas que Jesus encarregou seus discípulos
de pregar, da forma que ele próprio o pregava: “O Espírito do
Senhor está sobre mim, pois ele me ungiu, para anunciar a Boa-
-Nova aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos
presos e, aos cegos, a recuperação da vista; para dar liberdade
aos oprimidos e proclamar um ano aceito da parte do Senhor”
(Lc 4,18-19). Nessa ótica de ano de jubileu todas as dívidas
serão canceladas (ver Lv 25). Inclui não somente a libertação
dos escravos, mas também da própria terra, de forma que não
seja explorada até a morte e espoliada, suas florestas devastadas
pela industrialização irresponsável em nome do lucro, tudo isso
para satisfazer a ganância humana e a compulsão de servir em
vez de ser servido pelo dinheiro.

Caminho a seguir
Estas breves reflexões estabelecem uma razão fundamental
dada por Deus para uma teologia interconfessional. Mas como
tudo isso se conecta com a necessidade de tornar a Terra um
lugar mais habitável para os humanos e tratar do problema da
injustiça para com a própria Terra, os pobres e outros setores
da humanidade (aqueles do chamado dois terços do mundo,
as mulheres e inválidos da sociedade)? Se todos aqueles que
acreditam em Deus procurassem em suas diferentes tradições
de crença descobrir um Deus que se importe com os pobres e
os humildes, o qual fez e sustenta a Terra porque Deus a ama
e a mantém (Sb 11,24-12,2; também Juliana de Norwich, Re­
velai ions o f Divine Love), então os povos de todas as crenças
fariam uma teologia que seria verdadeiramente integrada, não

terra,.. Vós sois a luz do mundo5, Mateus 5,13-14)’%Vaticano, outubro 4-25,


2009.

K5
Teresa Okure

somente tolerante. Essa teologia iria retomar os desígnios ori­


ginais de Deus na criação, proporcionaria alimento para todas
as criaturas e praticaria na criação, em nome de Deus, o mesmo
amor e cuidado, até deleite, que Deus mostrou e sentiu quando
ele primeiro criou tudo em harmonia, cada um consigo mesmo
e em seu inter-relacionamento.6Uma teologia interconfessional
desse tipo pode não ser particularmente cristã na sua profissão
de fé, mas iria promulgar a seu próprio modo a singularidade de
Jesus, que veio não para ser servido, mas para servir e dar sua
vida como resgate para muitos (muitos significando abertura
irrestrita, não exclusividade). Essa teologia não seria estranha
à crença africana na interconectividade dos seres humanos e da
criação ( ubntr:)eu sou porque nós somos; e porque nós somos
eu sou; e porque eu sou, nós somos); onde a Terra é considerada
sagrada e onde o povo tem obrigação de cuidar não só dos vivos
mas também daqueles ainda por nascer.
Posso citar aqui uma história que já contei antes em outro de
meus trabalhos escritos. Estávamos no início da década de 1980,
quando, na Nigéria, abundava o fundamentalismo religioso do
grupo islâmico de Maitatsane (eles não eram tanto contra os
cristãos como em relação a outros islâmicos que eles achavam
não serem suficientemente ortodoxos ao viver sua fé islâmica).
Eu estava num voo egípcio do Cairo para Lagos, Nigéria, e vinha
de uma conferência da Associação Ecumênica de Teólogos do
Terceiro Mundo (EATWOT). No avião, sentei-me ao lado de um
egípcio, que, durante a nossa conversa sobre a crise religiosa,
disse: “A Terra existe para você e eu cultivarmos. A religião é
para Deus”. Quando tentei entender o que ele queria dizer, ele

6 Sobre o tema, consultar a obra de Cletus WESSELS, The Holy Web; Church and
the New Universe Story (Maryknoll: Orbis, 2000), onde o autor ressalta a interco­
nectividade de todas as coisas criadas como reveladas pela ciência contemporânea
e enfatiza a missão da Igreja para alimentar essa “rede de relacionamentos” em
que a humanidade pode se encontrar como parte de um todo surpreendente.
A TEOLOGIA INTERCONFESSIONAL ÉPOSSÍVEL? S e NÃO. POB QUÊ?

explicou aquilo que eu acreditava estava entre mim e Deus e


o que ele acreditava estava entre ele e Deus. Mas Deus tinha
dado a Terra a ambos para cultivar e ganhar a vida para todos.
Talvez uma teologia que faça isso no espírito da hospitalidade,
“dando espaço e liberdade de ser ao outro”, fosse verdadeira­
mente interconfessional. Ela incorporaria a fé em um Deus que
criou todos os seres humanos à sua imagem e semelhança, que
generosamente aprovisionou para cada criatura e que olhou e
achou muito bom tudo o que ele tinha criado, e as medidas toma­
das. Assim, ele confiou na humanidade (homem e mulher) para
cuidar e encontrar não só os recursos para suas necessidades
materiais, mas também sua oportunidade de se tomar como o
Deus Criador (Gn 1,26-4,2) ao cuidar da Terra.7
Essa teologia de criação e hospitalidade não é estranha à fé
cristã. A respeito do Verbo Encarnado, as Escrituras dizem que
todas as coisas foram criadas através dele, para ele, e nele todas
as coisas subsistem juntas (cf. Cl 1,16-17). Ele é a imagem do
Deus de sabedoria infinita e incomensurável, de quem, através
de quem e para quem existem todas as coisas; a ele pertencem
a glória e o louvor para todo o sempre (cf. Rm 11,33-36). Essa
teologia interconfessional, embora não particularmente sacra­
mental, tornaria a reunir a Eucaristia, a ação de graças, que é
o coração, o apogeu e o auge da fé católica cristã: a ação de
graças a Deus pela dádiva que são a criação e todos os povos
criados. Ela asseguraria que todos os seres humanos se com­
prometessem a ser administradores - nem proprietários, nem
exploradores - uns dos outros e da criação como um todo. Que*l

7 É interessante que a “Mensagem para o Dia Mundial da Paz” de Bento XVI, em


lade janeiro de 2010, seja sobre esse tema: “Se quiseres cultivar a paz, preserva
a criação”. O Segundo Sínodo Africano (4-25 de outubro de 2009 - ver nota 5)
tinha uma clara proposta sobre “Proteção ambiental e reconciliação com a cria­
ção” (proposta 22), além daquelas sobre o uso de “Recursos naturais” e ‘Terra
e água” (propostas 29 e 30, respectivamente).
Teresa Okure

eles se comprometam a repartir o pão de suas vidas de forma


que os outros tenham o que comer e vivam vidas humanas
melhores, que verdadeiramente espelhem Deus.
Uma teologia interconfessional que incorporasse as carac­
terísticas aqui esboçadas brevemente seria solidamente base­
ada nas Escrituras, no Antigo e no Novo Testamento. Poderia
persuadir, e mesmo libertar, as pessoas para explorarem os
aspectos mais sacramentais da fé cristã e católica. Ao mesmo
tempo, poderia até levar aqueles que não compartilham dessa
crença a explorarem por sua conta, sem qualquer sentimento
de inferioridade, a infinita benevolência e bondade de Deus,
nosso Salvador, que surgiu na pessoa de Jesus de Nazaré, Deus
em carne e osso (cf. Tt 3,4-8). Talvez viessem a perceber que,
em última análise, o que Jesus nos deixou não foi um credo a
ser professado na liturgia, mas um estilo de vida que conclama
todos para a santidade do próprio Deus que sustenta igualmente
todos sem discriminação (cf. Mt 5,43-45). Nele todos são cha­
mados a se tornar “uma nova criação” (cf. 2Cor 5,17), filhos e
filhas de Deus, os próprios “herdeiros de Deus e co-herdeiros
de Cristo” (Rm 8,14-17; G14,4-7). É tudo obra de Deus, dádiva
de Deus a toda a humanidade gratuitamente. Já que é obra de
Deus, os seres humanos não precisariam absolutamente induzir
uns aos outros a crer. Ao contrário, eles deveriam intensificar
seus esforços para se tornarem verdadeiramente como Deus
que os criou. Dessa forma, eles serão luz em Deus sem nenhum
vestígio de escuridão. Assim, tudo seria transparente em seus
tratos uns com os outros e glorifícariam a Deus durante todas
as suas vidas, talvez apenas ultrapassando um ao outro ao de­
mostrar hospitalidade e cuidados. Ou não devendo nada um ao
outro, exceto o débito do amor (Rm 13,8-16).
Por último, mas não menos importante, uma teologia inter­
confessional seria inspirada pelo Espírito e repleta do Espírito.
A TEOLOGIA INTERCONFESSIOWAL ÉPOSSfVEL? St NÀO. POR QUÊ?

G15,13-26, entre outras passagens do Novo Testamento, explica


claramente o que significa viver pelo Espírito (o contrário da
carne, o ser humano sem religião) e as características de uma
vida conduzida pelo Espírito. Um exame atento da lista de
virtudes recomendadas aqui (amor, paz, bondade, amabilidade
etc.) revela que não há nada de particularmente cristão nelas.
Como aquelas instadas pela literatura da sabedoria, elas dizem
respeito ao modo como os seres humanos deveriam conduzir
uma vida merecedora de Deus, à imagem e semelhança de quem
fomos criados. Essa observação é ainda mais contundente se,
como sustentam os estudiosos, essas e semelhantes do Novo
Testamento foram tiradas de códigos domésticos prevalentes
naquele tempo, embora tenham recebido uma dimensão cristã
(por exemplo: por se dirigirem diretamente a mulheres, crianças
e escravos).

Conclusão: se não, por que não?


Em vista de todo o exposto, uma teologia interconfessio-
nal não só é possível como desejável. O ônus da prova seria
da pessoa que contestasse essa possibilidade. Uma teologia
interconfessional não anularia a existência de outra teologia
particularmente baseada na fé, mas enriqueceria e poderia ser
enriquecida por essas teologias particulares baseadas na fé.
Teologia interconfessional
mundial do pluralismo
religioso: uma perspectiva
muçulmana

Irfa n A. O m a r

Certo dia o mulá Nasruddin foi visto procurando alguma


coisa no chão fora de sua casa sob a luz de um poste na
rua. Um vizinho se aproximou dele e perguntou: “O que
você está procurando?”. Nasruddin respondeu que estava
procurando sua chave. O homemjuntou-se à busca. Como
a chave não foi encontrada em lugar algum, o vizinho
perguntou: “Onde exatamente você a perdeu?”. Nasruddin
respondeu: “Dentro de minha casa”. O vizinho replicou:
“Então, por que está procurando aqui?”. “Bem, há mais
luz aqui, não é?” - respondeu Nasruddin.

O curioso relato acima ressalta o problema principal ao se


considerar a questão colocada neste ensaio, ou seja, é possível
existir uma “teologia interconfessional mundial de pluralismo
religioso?”. Sem dúvida, a questão é relevante, todavia é impor­
tante perguntar também se estamos procurando por respostas
a essa questão essencial no lugar em que seja mais provável
encontrá-las, ou onde é mais fácil buscá-las. Em outras pala­
vras, estamos interessados numa questão de metodologia ou de
T eologia iwterconfessional mundial do pluralismo religioso: üma perspectiva muçulmana

essência? À primeira vista, parece que qualquer tentativa para


construir uma teologia interconfessional mundial que resolva
os problemas de atrito inter-religioso e efetivamente trate das
diferenças seria abordar o problema do ângulo errado.
A pergunta permanece: é possível conceber uma teologia plu­
ralista que transcenda qualquer tradição religiosa em particular
e que, no entanto, esteja conectada com cada uma das principais
tradições religiosas eque também possa ser validada
perspectiva da teologia islâmica? Ou seja: é exeqüível desen­
volver uma teologia “transconfessional” ou “transreligiosa” que
inclua todas as religiões? (os termos alternativos mencionados
são: “transreligioso”, “plurirreligioso”, “macroecumênico” ou
“interconfessional”).
Certamente, a questão parece bastante problemática porque
as teologias seriam especificamente (e, alguns diriam, somente)
cabíveis no campo de ação próprio de suas tradições religiosas,
crenças e história? Se assim for, como se poderia conceber uma
teologia que fosse não confessional? Essa suposta teologia trans­
confessional significaria dizer que haverá uma nova tradição
religiosa - uma fusão de todas as outras - e que dessa forma
seremos capazes de falar de uma teologia mundial dessa “nova”
religião? Ou isso significa que essa “teologia mundial” será de
certa forma “transreligiosa” e, portanto, teríamos removido um
degrau de todas as tradições religiosas existentes, permitindo
aos membros de cada religião criar um aditamento para conectar
sua teologia específica de religião à “teologia mundial”?
Alguns alegam que, se tal projeto der certo, poderá ajudar a
trazer a paz para o mundo ao criar um sentido de maior terreno
comum entre as várias tradições religiosas. Outros afirmam que,
embora seja possível manter teologias tradicionais baseadas
na confissão de fé de cada religião específica, e ainda assim
conectá-las todas numa “teologia mundial”, isso ocorrerá se, e
IrfanA.Omar

somente se, nós compreendermos o conteúdo confessional em


termos simbólicos e metafóricos. Entretanto, outros conside­
rariam essa tentativa de diminuir o conteúdo religioso dessas
teologias como uma mudança muito perigosa e autodestruidora.
O problema de se conceber uma teologia que seja inter-
-religiosa é que a teologia como parte da religião é uma cultura
específica. Em cada religião a(s) teologia(s) surgiram como
resultado de atitudes teológicas particulares e circunstâncias
políticas e sociais. Não é possível aplicar atitudes teológicas de
uma tradição a outra, muito menos aplicá-las a todas as religi­
ões, independentemente de suas histórias e localizações. Assim,
mesmo a palavra “teologia” é problemática vista da perspectiva
de muitas religiões. Daí encontrarmos um obstáculo até mesmo
antes de começar a construir uma teologia de “plurirreligiões”.
Talvez o que se possa esperar é uma teologia inter-religiosa
que busque semelhanças em áreas nas quais isso seja possível.
Por exemplo: o Cristianismo e o Islamismo possuem uma his­
tória similar em termos de desenvolvimento de suas tradições
interpretativas, isto é, a visão de que o significado do texto deve
ser entendido principalmente como literal, em vez de místico
ou alegórico. Ao mesmo tempo, tal comparação pode não ser
possível no caso de outras religiões. Logo, pode ser vão tentar
obter uma wetanarrativa filosófica ou teoria que pudesse ser
aplicada numa tentativa para entender todas as religiões. Seria
preferível trabalhar com uma abordagem de caso a caso, para
sermos capazes de desenvolver uma teologia interconfessio-
nal que permita comparações e paralelismos entre tradições
enfatizando o terreno comum e compartilhando os valores
universais.1

1 FREI, Hans. Types o f Christian Theology. New Haven: Yale University Press,
1992.
Teologia ihierconeessional mundial do plurausmo religioso: uma perspectiva muçulmana

Na luta corpo a corpo com um critério para uma possível


“teologia mundial”, tem-se de competir com a realidade cada
vez mais pluralista de nosso mundo. O pluralismo religioso de
nossos tempos quase nos força a tentar chegar a um acordo
com as alegações de verdade de outras tradições religiosas ou
enfrentar conflitos contínuos em nome da religião.
Qual seria a resposta do Islã a esse pluralismo? Para começar,
a tradição islâmica reconhece que existem outras tradições de
fé (comunidades, para ser mais preciso) com suas “escrituras”
específicas, e elas deveriam ser reconhecidas pelos muçulmanos.
O Alcorão informa seus leitores que as comunidades judias e
cristãs bem, como os sabianos, conhecidos como ahl-i-kitab ou
“povo do livro”, receberam mensagens reveladas pela mesma
fonte divina do Alcorão, o qual se acredita ter sido revelado por
Deus a Maomé. Além disso, o Alcorão fala da diversidade de
crenças como “ordenadas divinamente” e verdadeiramente be­
néficas para a humanidade. No mesmo estilo, o Alcorão afirma
que têm existido numerosas outras comunidades e tradições de
fé desde a criação da humanidade. De fato, cada uma dessas
comunidades foi uma recipiente de mensagem/revelação divina
em seus próprios idiomas e através de mensageiros e profetas
(rasul e nabí) que surgiram entre elas.
Qual seria a situação atual de uma possível teologia islâmi­
ca do pluralismo? Como defendido por Mahmoud Ayoub, um
famoso estudioso do Islã, o Alcorão é muito mais pluralístico
em sua perspectiva do que a comunidade muçulmana tem es­
tado disposta a reconhecer na história. Ou seja, as fontes para a
teologia pluralista vistas pela lente de uma perspectiva islâmica
estão presentes; a vontade de identificar e interpretar essas fontes
através da lente dos princípios pluralistas é que frequentemente
está ausente, principalmente no período moderno, quando mui­
tas sociedades muçulmanas têm enfrentado desafios que são
IrfanA.Omat

aparentemente mais prementes do que as questões relativas ao


pluralismo teológico e religioso. Como acontece com todos os
povos, em tempos de provação e perdas, a estreiteza mental e
o isolamento, embora insensatos, são naturalmente a escolha
preferida.
No século XX, como resposta a uma variedade de tendências
e movimentos, uma genuína teologia islâmica do pluralismo
começou a surgir, apesar de não ter atingido o mundo muçul­
mano mais amplo devido a uma politização geral da religião,
bem como à geopolítica no Oriente Médio e na Ásia em conexão
com o alegado “choque de civilizações”, o que na realidade seria
chamado corretamente de “choque de fundamentalismos”.2
A reação mais importante e decisiva dos muçulmanos ao
pluralismo veio como resultado do surgimento de reuniões
interconfessionais de diálogo já feitas desde a década de 1970
e também devido às crescentes interações entre muçulmanos e
povos de outras comunidades de fé em muitos países ocidentais.
Enquanto na África e na Ásia muitos muçulmanos e povos de
outras crenças têm coexistido por séculos, engajados no que
tem sido chamado de “um diálogo de vida”, os muçulmanos no
Ocidente só começaram a considerar tais dinâmicas alternativas
como parte do fato de estarem nas sociedades ocidentais.
Embora haja várias respostas muçulmanas para a realida­
de do pluralismo religioso da perspectiva islâmica (como as
múltiplas respostas cristãs oferecidas por Gavin D’Costa, Paul
Knitter e outros), não existe uma tentativa concreta para lidar
com a questão da possibilidade de haver uma “teologia mundial
do pluralismo”. Algumas das principais tentativas pioneiras
muçulmanas de se incorporar o pluralismo na teologia islâmica

2 TARIQ ALI. The Clash o f Fundamentalists; Crusades, Jihads and Modemity.


Londres: Verso, 2003.
T eologia interconfessional mundial do pluralismo religioso: uma perspectiva muçulmana

nas últimas décadas são exteriorizadas nas obras de Mahmoud


Ayoub, Riffat Hassan e Mohammad Talbi. Além disso, existe
uma longa lista de estudiosos recentes mais jovens que estão
engajados no diálogo intercultural, inter-religioso e interespiri-
tual no mundo inteiro.
Então, como seria uma “teologia mundial”? Se por teologia
mundial queremos significar o que Wilfred Cantwell Smith
mencionou em seu discurso no plenário da Sociedade Ameri­
cana de Teologia Católica em 1984, quando afirmou que, para
ser um teólogo cristão, era preciso ser uma espécie de “teólogo
mundial”, então, talvez, não seja somente provável, mas também
necessário, que nós trabalhemos na direção de uma “teologia
mundial”. Porque esse teólogo mundial não estaria necessaria­
mente se ocupando de todas as teologias do mundo; ao contrário,
como disse Knitter, estaria se dedicando e familiarizando com
ao menos uma outra tradição além de sua própria.3 Porque
na era dos encontros casuais globais do século XXI, em que a
probabilidade de encontrar-se por acaso com o nosso chamado
“outro” é grandemente ampliada, é imperativo que não somen­
te estejamos cientes de nossa própria tradição e cultura, mas
também é preciso ter algum nível de familiaridade, se não de
competência, com a tradição religiosa e a cultura desse outro.
Mas, talvez, ao mesmo tempo em que lutamos para nos
tornar “teólogos do mundo”, tenhamos também de trabalhar
na direção de preservar a diversidade das teologias. Numa era
de “globalização” cultural e econômica, em que os elementos
homogeneizadores são muito mais potentes, causando um

3 Citado por Paul KNITTER, “The vocation of an interreligious theologian: my


restrospective on 40 years in dialogue”, Horizons 31/1 (2004) 135-49. A citação
completa de Knitter é a seguinte: “Para ser um teólogo em qualquer tradição - ou,
permitam-me ser mais cauteloso, para ser ‘um teólogo relativamente adequado’
em qualquer tradição - é preciso ser ao menos, até certo ponto, um teólogo de
outra tradição”.

m
Irfan A.Omar

impacto bastante rápido em nossas vidas, a necessidade urgente


é enxergar que o “local” não venha a sucumbir ao “global” de
maneira que não haja volta possível. No entanto, pode haver
uma “unidade na diversidade”, e nesse contexto fica bastante
claro que a diversidade sempre rege a unidade e não vice-versa.
A diversidade é o caminho da natureza - ou, em linguagem
religiosa, o caminho da criação. Deus pretendeu que fosse o
princípio essencial da criação.
“E entre os sinais de Deus estão a criação do paraíso e da
Terra e as variações de idiomas e cores. Na verdade, neles há
sinais para aqueles que sabem” (Alcorão 30:21).
E mais uma vez: “Oh! Povo, nós o criamos de um macho
e de uma fêmea e o fizemos em raças e tribos de forma que
vocês possam se conhecer. Certamente o mais nobre dentre
vós aos olhos de Deus é aquele que é o mais probo dentre vós”
(Alcorão 49:13).
Numa era de domínio global das forças do capitalismo vemos
ser feita uma tentativa para reverter esse princípio: a unidade na
diversidade tem-se tomado forçosamente a “diversidade na uni­
dade”. Em outras palavras, a unidade (do suposto consumismo
essencial ou materialismo) é considerada o aspecto subjacente
dominante e a diversidade é vista como o derivado. Isso pode
ser observado no impulso para ideologias tais como o “mercado
global”, “ética global” e “diálogo global”. As conseqüências
de tais tentativas são devastadoras de várias maneiras. Tais
tentativas, no passado, resultaram no renascimento da religião
ou no ressurgimento do em nome da religião. A supressão da
diversidade na esperança de se criar uma possível, ainda que
cosmética, “unidade” (de todas as religiões? culturas?), ou
mesmo de todos os mercados, é perigosamente irrealista. Para
o Alcorão, a diversidade de religiões serve para dar à huma­
nidade um sistema de verificação e equilíbrio entre as várias
Teologia interconfessional mundial do pluralismo reugioso: uma perspectiva mucuimana

comunidades religiosas. Cada comunidade entre muitas deve


lutar pela paz, justiça e retidão. E nisso cada uma se toma um
modelo para as outras. As diferenças estão lá, de forma que nós
podemos “competir” uns com os outros para fazer o bem, que
em seu supremo resultado seria o bem comum.

Para cada um dentre vós Nós prescrevemos uma lei e um


caminho aberto. Se Deus tivesse querido, ele teria vos
feito um só povo, mas (Ele planeja) testar-vos naquilo
que Ele vos deu; logo, lutem como numa competição
em todas as virtudes. A meta de todos vós é Deus; é Ele
que vos mostrará a verdade das questões nas quais estais
disputando (Alcorão 5:48).

Da mesma forma que o curso do mercado nos diz que há di­


ferenças na forma em que as pessoas fazem compras, celebram,
comem e se vestem, nós precisamos perceber que as pessoas
também diferem quanto ao “como” e “em que” elas “creem”.
Mais do que a união de crenças ou teologia, nós precisamos de
uma ratificação e união da aceitação de diferenças.
Além disso, essas diferenças em si mesmas deveriam ser
celebradas de formas diversas. Isso constituiria a verdadeira
unidade na diversidade - uma unidade na celebração da diver­
sidade. Tal celebração é principalmente sobre a necessidade
de respeito, reconhecimento e aceitação de particularidades.
Porque, como já ficou claro de todos os dados (experimentais,
bem como práticos), a diversidade - como um princípio da
natureza - rege a unidade e não vice-versa.
No entanto, o pensamento de se ter uma teologia comum
“plurirreligiosa” é tentador. A hesitação que pode ser detec­
tada aqui não é devida a qualquer falta de compromisso para
com o que o Dr. Martin Luther King Jr. chamou de “lealdade
IrfanA.Omar

dominante para com a humanidade como um todo”, mas, ao


contrário, é devida à problemática de se ter uma uniteologia de
todas as religiões mundiais.4 No espírito das palavras do Dr.
King, pode ser acordado entre todos que certamente é possí­
vel, e mesmo necessário, ter um compromisso dominante para
ações concretas que conduzam à paz e à solidariedade contra a
injustiça e em favor dos valores humanos universais enquadra­
dos no contexto de cada teologia individual de religião. E isso
irá, de fato, constituir o que poderia ser livremente chamado
de “teologia mundial de ativismo religioso” - fundamentada na
ação e baseada na regra de ouro: “Não faça aos outros aquilo
que não deseja que seja feito a você” (Analetos [Diálogos de
Confúcio], 15.23).

4 A citação de Martin Luther King é a seguinte: “Cada nação precisa, agora, desen­
volver uma lealdade dominante para com a humanidade como um todo a fim de
preservar o melhor em suas sociedades individuais”. Ver: LUTHER KING JR.,
Martin. The Trumpet o f Conscience. New York: Harper & Row, 1967. p. 190.

EB
Teologia da libertação e
libertação da teologia

R a im o n P a n ik k a r

“Eras pobre e escutei o teu clamor. ”


Mt 25

Subscrevo com muita alegria o esforço louvável - e contra a


corrente (os peixes vivos no rio nadam contra a corrente) - da
ASETT com o projeto deste livro. A brevidade me obriga a dar
apenas algumas poucas pinceladas.1

1. A “teologia da libertação” talvez devesse começar com a


libertação da teologia, tanto do recinto (gueto?) ocidental como
da constrição da palavra. O theos até agora habitual da teolo­
gia não é universal, como nos ensinam o Jainismo, o Budismo
e outras religiões. Nem mesmo o theos cristão é monoteísta,
mas trinitário, porém também não docetista. A Trindade não
é triteísmo; o que significa que Deus não é Substância, e sim
Relação - na qual estamos nós e o m undo (intuição cosmoteân-
drica). Não esqueçamos que a história ocidental foi colonialista,
geralmente de boa-fé (que é o mais perigoso), e seus protagonis­
tas acreditaram que defendiam valores universais, chamados
amiúde “desenvolvimento”, “civilização” e até mesmo judeo-
-crístianismo. A característica fenomenológica do colonialismo
é a convicção do monoculturalismo, interpretado simplesmente
Teologiam libektacAo e ubertacAo dateologia

como expoente da cultura humana. A chamada “globalização”


é um exemplo disso - com raízes tão antigas como o mito da
torre de Babel, que já naquela época Yahweh se encarregou de
fazer fracassar. Em Pentecostes não se falava uma língua única,
mas cada um falava e entendia seu próprio dialeto. Nesse sen­
tido, o theos da teologia, se não quiser se transformar em seita,
não pode se limitar a ser apenas o símbolo dos que se dizem
crentes porque creem que conhecem aquilo que por definição
é Infinito. Bem-aventurados os que chegaram ao agnosticismo
infinito (iagnôsia), afirma um Padre da Igreja cristã.
Essa libertação da teologia implica também a libertação do
teólogo de qualquer medo e temor, tanto dos críticos como dos
apologistas.
Libertação também do pessimismo e de uma das tentações
mais sutis nas qüais podem cair os mais bem-intencionados:
querer transformar esta Terra em um paraíso - como já previu
Yahweh colocando seus querubins na porta do Éden para evitar
que, tendo saudades do passado, o homem quisesse tornar a
fazer da Terra um paraíso. Devemos saber viver em um mundo
injusto. Isso não quer dizer, de nenhum modo, evidentemente,
que não nos esforcemos por criar um mundo mais justo na
medida de nossas forças, mas isso exige de nós que superemos
o mito da história, como nossa mortalidade nos lembra e nem
por isso desanimamos. “Toda teologia é uma hermenêutica
da esperança” (Gustavo Gutiérrez). Mas a esperança não é do
futuro, e sim do Invisível.

2. “Teologia inter-faith'‘, é uma expressão ambígua. A fé é


um invariante humano: todo homem tem fé, que é a abertura
consciente ao desconhecido, ao Mistério. Com palavras para­
doxais, a fé é a consciência de nossa ignorância. Ora, devemos
RaimonPaniklar

distinguir, ainda que não possamos separá-las, a fé da crença.


Como também somos (embora não exclusivamente) seres ra­
cionais, ao sermos conscientes desta nossa abertura ao Infinito
tentamos formular aquilo que cremos segundo nossas categorias
culturais e religiosas, uma vez que somos também filhos da
história. Assim surgem as crenças, que são distintas e podem
ser até mesmo contraditórias. A confusão entre fé e crença
teve conseqüências funestas na história humana. O mártir dá
testemunho de sua fé. Ninguém morre por uma simples crença,
a não ser que acredite que existe um vínculo irrompível entre
crença e fé. A fé se expressa geralmente em um ato (como
símbolo) antes que em uma confissão verbal. A fé sem obras é
morta (cf. Tg 2,17). Temos um exemplo na negação a sacrificar
aos deuses em tempos passados da história cristã. O fanatismo
se caracteriza por esta confusão entre fé e crença, que é pouco
menos que inevitável quando a fé perde sua raiz mística e se
transforma em ideologia.
Por acaso o mal-entendido tem algo a ver com a ambivalência
do verbo crer, que é ao mesmo tempo a forma verbal de dois
substantivos: fé e crença. A expressão “inter-faith” é, além disso,
desorientadora, pois parece sugerir que se pode nadar entre duas
águas e servir a dois senhores (cf. Mt 6,24), posto que não se leva
a sério aquilo que se crê - o que não significa que se absolutizem
as crenças, fruto do esquecimento de nossa contingência. A fé
nos faz tocar o infinito, mas só tangencialmente.

3. A expressão de qualquer tentativa humana de se aproximar


do Mistério deve ser confessional, sincera, pessoal e, portanto,
relativa aos parâmetros culturais e religiosos do “confessor”.
Uma fé não confessada e apenas teoricamente formulada não é
fé, pois também não o é quando se identifica com uma doutrina.
A canção é canção só quando se canta; a fé é fé quando se vive.
T eologia da libertação e libertação da teologia

tema recorrente da Escritura cristã, uma vez que o justo vive da


fé (cf. Rm 1,17; G1 3,11; Hb 10,38, que repete Hab 2,4).
Quando o símbolo dos apóstolos, devido aos avatares da cul­
tura ocidental, se transformou em doutrina apostólica, começou
a “microdoxia” cristã; isto é, seu reducionismo, o apequena-
mento da Mensagem de Cristo. Digo Cristo e não Jesus (que
para o Cristianismo é Cristo). Toda confissão (de fé) se insere
em seu contexto, e o contexto cobra sentido tão só dentro do
horizonte no qual a confissão é feita. A relatividade, inerente
à condição humana (somos contingentes) não é relativismo -
que se destrói a si mesmo no próprio ato de se expressar. A fé
é livre, diferentemente da evidência racional. Dois mais dois
são quatro, e não cabem soluções diferentes, uma vez aceitos
os postulados em que se baseia a afirmação que, na melhor das
hipóteses, se fundamenta na infalibilidade da evidência, o que
é um círculo vicioso.

4. A consciência da relatividade leva não só à superação do


fanatismo, mas também à abertura ao outro e a nos deixarmos
fecundar por ele. Essa fecundação dá fruto se existir am or- que
surge espontaneamente quando somos puros, ou seja, quando
estamos vazios de jore-conceitos.
Então, junto ao afeto (amor) se dá o conhecimento, o que
eqüivale a compreender o outro, ou seja, a entrar em seu mundo.
Isso poderá parecer não só difícil, mas impossível aos que não
superaram a razão dialética, que é ao que a ciência moderna
tem acostumado uma pequena parte da humanidade que se acha
representante de toda ela pelo poder que adquiriu. A dialética
é muito útil no campo lógico, mas a vida humana não se reduz
a ela como se o pensar dialético nos revelasse o que a realidade
Raitnon Panildcar

é - que seria o dogma de um dos Padres do Ocidente, Parmê-


nides de Eleia.
Aquilo que ainda chamamos teologia é uma disciplina es­
piritual que exige consagração plena à tarefa. Quem não tem
fome e sede de justiça está impossibilitado para ser teólogo, que
é uma livre atividade do Espírito. São Paulo afirma, embora em
outro contexto, que a theo-logia é livre, não está acorrentada
(cf. 2Tm 2,9).

5. A libertação da teologia não é possível sem a intercul-


turalidade, posto que o mistério divino não é o monopólio de
nenhuma cultura. E toda cultura é consciente da existência de
um Mistério sobre o qual não tem um direito exclusivo. As
culturas não são “folclore”, são distintas formas de pensar, de
ser, de viver no mundo e de se aproximar da Realidade - de
cujos símbolos supremos um é Deus. A interculturalidade não
é multiculturalismo (não podemos saltar por cima de nossa
própria sombra), mas exige a abertura a partir de nossa própria
cultura contingente ao outro, não como um aliud, mas como um
alter (a “altera pars” de mim mesmo). Do contrário, ninguém
poderia amar ao próximo como a si mesmo, mas tão só como
a outro mesmo, com os mesmos “direitos humanos” - como o
enraizado individualismo ocidental o interpretou. Não era tão
irracional a diabólica ideia que, muito consequentemente, nega­
va humanidade aos indígenas (selvagens), que, dessa maneira,
podiam ser caçados e explorados impunemente como animais.

6. A “teologia” não pode ser uma especialização, que é a


mania, de influência científica, de classificar tudo - e assim
poder dominar melhor. A teologia é a vocação de qualquer
homem consciente de seu lugar no cosmos e que deseja viver
T eologia da libertação e libertação da teologia

sua humanidade em plenitude, utilizando para isso todos os


meios que estão ao seu alcance. Daí que não possa prescindir
de nenhum anelo humano e, desde logo, também dos desejos
legítimos do corpo - que tantas vezes foi ignorado por certa
espiritualidade.

7. A libertação da teologia não é libertinagem e também não


é o capricho de alguns teólogos: é fruto inerente ao exercício
da liberdade daqueles que resistem a se deixar acorrentar pe­
las estruturas que os próprios homens construíram. Todavia, a
liberdade não tem leis. Ao contrário, exige a pureza de cora­
ção - que é o requisito no qual coincidem todas as religiões. A
Verdade nos fará livres, não o nosso conceito dela. A Verdade
se faz, e caminha-se nela, afirma a escritura cristã (cf. Jo 1,17;
3,2.4.21; 8,32 etc.).

8. Com isso já se sugeriu o método da “teologia comparada”.


Pode-se cultivar somente a partir de dentro e estando também
fora; isto é, “convertendo-se” à outra (religião) sem abandonar a
própria. Isso não o consegue o pensar dialético, nem se se reduzir
a religião a doutrina. A regra de ouro de toda hermenêutica é
que o interpretado se reconheça em nossa interpretação, e não
é possível formulá-la sinceramente se não estivermos conven­
cidos que o interpretado também diz a verdade - e nós com
ele. A autêntica “teologia” não se limita a dizer aquilo que os
outros dizem ou pensam se nós não subscrevemos as respectivas
asserções. A teologia não é uma ciência abstrata e puramente
descritiva. Isso se aplica diretamente a que não podemos de­
fender uma opção pelos pobres se nós não vivemos a pobreza
- que atualmente não é exclusivamente monetária. Repito que

IBI
Raimon Panikkar

a teologia é uma atividade comprometedora e difícil. Por isso


é também libertadora.

9. Dessa forma, respondo à pergunta sobre se uma teologia


transconfessional é possível. O possível e necessário é que nossa
confissão seja aberta e não fanática, humilde e não apodítica,
dialogai e não solipsista.
A teologia é comunitária, não traspassa confissões, mas
as interpreta talvez diferentemente, enriquecendo, assim, as
respectivas ortodoxias - coisa impossível se a religião fosse
apenas doutrina.

Contudo, não deveria me estender mais naquilo que foi uma


das principais ocupações de minha vida.
Cristologia interconfessional:
possibilidade ou aspiração?

Peter C. Phan

À primeira vista, “cristologia interconfessional” é um oxi-


moro, já que, por definição, cristologia é uma reflexão baseada
na fé de credo cristão em Jesus como Cristo. No entanto, numa
era globalizada como a nossa e no contexto contemporâneo do
pluralismo religioso, pareceria que tal reflexão teológica não
pode mais ser feita só confessionalmente. Daí a questão da
possibilidade e da conveniência de uma “cristologia interconfes-
sional”. Com essa expressão não quero significar simplesmente
uma cristologia adotada pelos cristãos com base na fé cristã
em diálogo com as crenças de outras religiões, a qual pode ser
chamada de “cristologia dialogai”. Ao contrário, gostaria de
considerar a possibilidade e conveniência de uma cristologia
construída por cristãos e não cristãos, idealmente juntos, nas
crenças e práticas comuns de diferentes tradições religiosas. Essa
cristologia não substitui a cristologia clássica, baseada apenas na
Bíblia e na tradição cristã, que ainda preserva sua necessidade
e validade, nem a cristologia dialogai, que considera as crenças
cristãs em Jesus como normativas e procura enriquecer-se com
as intuições presentes nas religiões não cristãs.
Dentro do pequeno espaço concedido e devido à sua natureza
altamente experimental, este breve ensaio é mais um manifesto
programático do que uma elaboração sistemática de cristologia

m
' CRISTOLOGIA INTERCONFESSIONAL: POSSIBILIDADE OU ASPIRAÇÃO?

interconfessional. Inicio com reflexões sobre as condições de


possibilidade de tal cristologia, suas limitações e sua desejabi-
lidade. Em seguida, delineio suas principais características e,
finalmente, faço referência a alguns trabalhos pioneiros proe­
minentes que apontam para uma cristologia interconfessional.

Cristologia interconfessional:
possibilidade, limites, conveniência
A possibilidade de uma cristologia interconfessional como
necessidade apoia-se iio tipo de diálogo inter-religioso no qual
os participantes respeitam genuinamente as diferenças e tentam
compreender as religiões diferentes da própria como elas se
apresentam, em seus próprios termos, e evitam interpretá-las
através de sua própria visão de sistema de categorias e crenças. É
claro que essas diferenças não impedem a existência de atributos
comuns, ou ao menos análogos entre religiões, mas não devem
ser ocultadas ou minimizadas e muito menos homogeneizadas
como simplesmente várias maneiras de falar sobre Deus, ou o
Supremo, ou o Real.
Com relação à possibilidade de uma cristologia intercon­
fessional, pode-se desde logo objetar que a “cristologia”, por
definição, é uma categoria cristã, portanto chamar a iniciativa
confessional proposta de “cristologia” já viola o princípio her­
menêutico citado. A objeção é válida, mas pode ser removida
pelas seguintes considerações. Em primeiro lugar, “Cristo”,
como termo e conceito, per se não se restringe ao Cristianismo.
É encontrado no Judaísmo (o “messias”), e a figura de Jesus
também está presente no Alcorão. Por conseguinte, ao menos
com relação ao Judaísmo e ao Islamismo, uma cristologia in­
terconfessional seria justificada e não constituiria, à primeira
vista, uma impossibilidade. Em segundo lugar, é possível falar
PeterC.Phan

de “cristologia” sem fazer alegações cristãs a respeito de Cristo,


tais como sua divindade, ressurreição, papel único e universal
como salvador etc., como ponto de partida e norma do discurso
inter-religioso, mesmo que essas alegações não devam ser dis­
simuladas pelos partícipes cristãos do diálogo. Ou seja, é pos­
sível discutir o significado de uma afirmação (que diz respeito
à compreensão) e a partir daí enriquecer nosso entendimento
sem afirmar ao mesmo tempo sua veracidade (o que constitui
um exercício de julgamento).
Nesse tipo de cristologia interconfessional, que é (para usar
a distinção de especialidades funcionais em teologia de Bernard
Lonergan) “sistemática” e não “doutrinai”, as alegações cristãs
sobre Cristo não são negadas apriori} Elas são teologicamente
presumidas, porém metodologicamente colocadas entre parên­
teses com a finalidade de se chegar a uma compreensão mais
rica e pluralística do que constitui o Cristo com base no que o
Cristianismo e outras religiões dizem a respeito de “Cristo”.
Em terceiro lugar, e no sentido exato da palavra, da mesma
forma que um cristão fala de uma cristologia interconfessional
um budista poderia, certamente, falar de uma “Budologia”
interconfessional; um hindu, de uma “Krishnologia” intercon­
fessional; um muçulmano, de uma “Corãologia” e, talvez, de
uma “Maomelogia”; um sique, de uma “gurologia” intercon­
fessional etc. O propósito da cristologia interconfessional não
é demonstrar que o Cristo dos cristãos é o único, universal e
superior a todas as outras figuras religiosas, ou vice-versa. Em
princípio, uma demonstração racional de tal alegação não seria
possível, já que se trata essencialmente de um juramento de fé. É
preferível obter um entendimento tão profundo e diverso quanto
possível do Cristo na base das mais variadas e até contraditórias1

1 Sobre a distinção feita por LONERGAN, ver sua obra Method in Theology (New
York: Herder and Herder, 1972. p. 132-133).

RS
CmSTOtOGIAihterconfessiohal: possibilidadeou aspiracao?

declarações das diferentes religiões quanto ao que toma um ser


especial (por exemplo: Sidarta Gautama, Jesus de Nazaré ou
Maomé) o “Cristo”.
Se concebida dessa forma, a cristologia interconfessional,
sem dúvida, tem limitações. A mais evidente é que não seria
uma cristologia dogmática e, portanto, seria julgada por aqueles
que procuram uma cristologia ortodoxa como sendo teologica­
mente inadequada, até mesmo heterodoxa à luz da cristologia
da Calcedônia. Também não se trata de uma “cristologia his­
tórica”, uma “cristologia vinda de baixo”, ou uma “cristologia
ascendente”, na medida em que não se baseia nos textos do
Evangelho da vida de Jesus e seu ministério e não é projetada
para mostrar que Jesus é a Palavra de Deus encarnada. Nesse
aspecto falta-lhe a característica de especificidade histórica
presente na cristologia da libertação de várias origens (por
exemplo: negra, latino-americana, asiática, feminista, ecológica
etc.). Enfim, ela não desempenha a função apologética de uma
“cristologia transcendental”, como aquela proposta por Karl
Rahner, que pretendia analisar as condições de possibilidade de
fé em Jesus como o Cristo com base na metafísica do conheci­
mento humano e do amor.
Não obstante, a cristologia interconfessional, embora distinta
das três outras já mencionadas, não as exclui, ao contrário, ajuda
a esclarecer alguns de seus conceitos-chave, um dos quais é
naturalmente o “Cristo”. Considerando-se a situação religiosa
pluralista de nosso tempo, e a necessidade premente de com­
preensão e colaboração mútua entre os adeptos das diferentes
religiões, pode-se afirmar que essa cristologia interconfessional
seja uma aspiração, se não uma necessidade urgente da teologia
contemporânea. Se ela é exeqüível ou não, não pode ser estabe­
lecido a priori nem deveria ser rejeitado simplesmente devido
PeterCPhan

a erros potenciais e deficiências. Ao menos um esboço de suas


características gerais pode ser tentado.

Um traçado da cristologia interconfessional


O conceito central a ser elaborado na cristologia intercon­
fessional é naturalmente “Cristo”. Surge aqui um desafio apa­
rentemente intransponível. O termo “Cristo” e, mais decisivo
ainda, o conceito de “Cristo” - ao menos como é compreendido
pelo Cristianismo - não são aceitos por todas as tradições re­
ligiosas e, quando usados, estão longe de ser unívocos. Logo a
principal tarefa da cristologia interconfessional seria determinar
o significado de “Cristo” e seu lugar, se houver, numa religião
em particular. Nessa elaboração conceptual de “Cristo”, o en­
tendimento dos cristãos de Jesus como o Cristo, conforme já
dissemos, pode ter um papel heurístico, mas não normativo.
Deve ser comparado com conceitos e imagens presentes em
outras religiões que mostram similaridades significativas ou
analogias funcionais com ele. Um novo e ampliado entendimento
de “Cristo” pode, assim, ser construído a partir desses conceitos
e imagens crucialmente comparados, e o resultado poderia ser
chamado de “cristologia “comparada” ou “interconfessional”.2
Quais seriam, para começar, as principais características do
conceito cristão de Cristo? Uma resposta franca a essa pergunta
é impossível, já que é reconhecido universalmente que o Jesus
dos Evangelhos não se encaixa numa única descrição. Ele é,
e não é, no significado normal das palavras, um sacerdote,
um profeta, um vidente apocalíptico, um rabino, um mestre
de sabedoria, um milagreiro, um líder político. Na visão dos

2 Com relação à teologia comparada, ver a obra de Francis X. CLONEY, Theol-


ogy afier Vedanta; An Experiment in Comparative Theology (Albany: State
University of New York Press, 1993.-especialmente p. 153-208).

USB
Cristolociaihterconfessiowal: possibilidade ou aspiração?

estudiosos do Novo Testamento, conforme observado por Colin


Greene, Jesus foi de modo variado um crítico escarninho, um
místico, um curandeiro, um hasside, um profeta ou o profeta
escatológico, um reformador, um sábio, a Sabedoria personifi­
cada e um/o messias.3 Greene continua nos mostrando que até
a era Moderna a cristologia enfatiza Jesus como o eterno logos
encarnado (cristologia cosmológica), como o “Senhor dos senho­
res e o Rei dos reis” (cristologia política) e como o Novo Adão
(cristologia antropológica).4 Meu objetivo aqui não é mostrar
como essas três cristologias tradicionais têm sido desafiadas e
modificadas nas eras Moderna e Pós-Modema,s mas usá-las
como plataforma de lançamento para delinear uma cristologia
interconfessional.
Penso que na base dessas cristologias divergentes está a
noção de que em Jesus não importa como seu papel histórico
seja interpretado, de alguma forma os seres humanos têm a
possibilidade de realizar sua natureza e alcançar a meta su­
prema, referida, na linguagem teísta, como a união com Deus,
e, naquela não teísta, como autotranscendência (por exemplo:
libertação, iluminação, salvação, redenção, transformação etc.).
Isso é fundamental para a noção do “Cristo”, em separado das

} GREENE, Colin J. D. Christology in Cultural Perspective; Marking Out the


Horizons. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 2003. p. 6-15.
4 Ibid.,p. 30-71.
5 Com relação ao tema, ver o estudo de GREENE citado acima. Naturalmente,
os estudos contemporâneos de cristologia constituem uma legião! Para nossos
propósitos, os seguintes são especialmente úteis: WESSELS, Anton. Images o f
Jesus; How Jesus is Perceived and Portrayed in Non-European Cultures. Grand
Rapids, Michigan: Eerdmans, 1990. KÜSTER, Volker. The Many Faces o f Jesus
Christ; Intercultural Christology. Translate by John Bowden. Maryknoll, N.Y.:
Orbis, 2001. BENNET, Clinton. In Search o f Jesus; Insider and Outsider Images.
London: Continuum, 2001. KÀRKKAINEN, Veli-Matti. Christology; A Global
Introduction. Grand Rapids, Michigan: Baker, 2003. BARKER, Gregory A. (Ed.).
Jesus in the World’s Faiths; Leading Thinkers from Five Religions Reflect on
his Meaning. Maryknoll, N.Y.: Orbis, 2005. AMALADOSS, Michael. TheÁsian
Jesus. Maryknoll, N.Y.: Orbis, 2006.

m
PeterC.Phan

formas concretas e históricas em que tal possibilidade de autor-


realização seja percebida. A questão básica seria, então, se tal
noção é encontrada em outras religiões que não o Cristianismo
(a resposta à pergunta, é claro, é afirmativa) e como poderia
ser usada para se construir uma cristologia interconfessional.
Acompanhando a noção do Cristo está aquela de um poder
supematural ou super-humano através do qual ele cumpre sua
missão de levar os seres humanos e o cosmos à realização. A fé
cristã crê que esse poder super-humano é uma dádiva do Cristo
que ascendeu e que, junto com o Pai e o Filho, este poder pessoal,
cujo nome é “Espírito Santo”, constitui a Trindade. Vários sím­
bolos e imagens, tais como sopro, vento, fogo, água e pombo, têm
sido usados para descrever o poder transformador do Espírito.
Já que o Espírito é o poder pelo qual o próprio Cristo e todos os
seres humanos atingem suas metas, é teologicamente adequado
prefaciar a cristologia interconfessional com a pneumatologia.6
De fato, metodologicamente, a cristologia, do ponto de vista
cristão, principalmente o interconfessional, faz mais sentido
se começarmos pelo Espírito, depois passarmos para o Filho
e, no fim, o Pai.7

6 Um dos melhores estudos de teologia contemporânea sobre o Espírito Santo é de


Kirsteen KIM, The Holy Spirit in the World; A Global Conversation (Maryknoll,
N.Y.: Orbis, 2007).
7 Escrevi em 1988: “Com relação à estrutura do tratado da Trindade, sugiro que
invertamos a ordem tradicional. Em vez de começarmos pelo Pai, depois passar­
mos para o Filho e terminarmos com o Espírito Santo, posto que o princípio que
deva fundamentar nossa teologia trinitária em nossas experiências de salvação,
deveríamos iniciar com nossas experiências atuais do Espírito Santo, depois
mostrar como esse Espírito é o Espírito de Jesus e terminar com a revelação de
Jesus do mistério do Deus Pai”. Ver: PHAN, Peter C. Being Religious Interreli-
giously: Asian Perspectives on Interfaith Dialogue (Maryknoll, N.Y.: Orbis, 2004.
p. 38). É gratificante observar que KIM escreve num estilo similar: “Podemos
ser capazes de transmitir a mensagem do Evangelho mais significativamente
se começarmos pelo Espirito do que a partir do Jesus histórico. E, no fim das
contas, é o papel do Espírito preveniente preparar o mundo para receber Cristo”
(The Holy Spirit in the World, p. vi).
Cristologia imterconfessional: possibilidade ou aspiração?

Já que o Espírito não está encarnado em nenhum indivíduo


histórico em particular, fica mais fácil encontrar analogias - não
entidades idênticas - para o conceito cristão de Espírito nas
religiões não cristãs, tais como: atman/brahman [atmanismo/
bramanismo] no Hinduísmo advaiía, shakti no Hinduísmo
clássico, antaryamin [essência] no Hinduísmo bhakti, ch ’i no
Taoísmo e Confucionismo, o yin da polaridade yin/yang e os
espíritos em geral. Uma pneumatologia interconfessional não
deveria se limitar a fontes religiosas e filosóficas. Dado que
o Espírito está associado com liberdade, ele tem funcionado
muitas vezes como fonte e inspiração para revoluções e lutas
de independência pessoal ou nacional.8
Essa cristologia interconfessional, como o próprio nome
implica, será forjada no cadinho do diálogo interconfessional.
Todavia, o diálogo aqui não se refere principalmente à troca
teológica entre as elites e especialistas religiosos, nos quais
certos problemas dogmáticos como a singularidade e univer­
salidade do Cristo se agigantam. Ao contrário, é um diálogo
de vida compartilhada, ação comum e experiências religiosas
compartilhadas entre povos de diferentes crenças. Trata-se do
diálogo tríplice que irá determinar quais temas em cristologia
serão importantes para uma cristologia interconfessional e que
delineamento ela irá adquirir.

Precursores da cristologia interconfessional


Uma cristologia interconfessional é, essencialmente, uma
cristologia do Espírito, ou uma cristologia pneumatológica,
que consiste na elaboração da obra de Jesus como o Cristo
em virtude do Espírito ao acarretar a união da humanidade de

s Isto é particularmente verdadeiro com relação à Coréia. Ver: KIM, The Holy
Spirit in the World, p. 112-121.
PetetC.Phan

Deus e/ou a autorrealização dos seres humanos. Tendo a pneu-


matologia como seu preâmbulo, a cristologia interconfessional
pode ir adiante para considerar os muitos títulos que têm sido
atribuídos ao Cristo na tradição cristã e investigar se títulos
semelhantes também são encontrados nas religiões não cristãs,
não para estabelecer sua equivalência conceptual, muito menos
sua veracidade, mas para obter um entendimento mais rico do
que o Cristo significa.
Já mencionamos a figura do Cristo no Judaísmo e no Islamis-
mo e há uma pletora de estudos sobre esse tema.9 Além disso,
estudos comparativos entre Jesus e Krishna, entre Jesus e Con-
fúcio, entre Jesus e outras figuras religiosas são abundantes.101
É irônico que no desenvolvimento da “cristologia” intercon­
fessional os pioneiros mais importantes não foram os cristãos,
mas os hindus. Os trabalhos escritos de Sri Ramakrishna, Swami
Vivekananda, Keshub Chunder Sen, Mohandas Gandhi, Swami
Akhiananda e Sarvepalli Radhakrishnan são bem conhecidos.
Entre os indianos cristãos, Manilal C. Parekh e Bhawami Charan
Banerj (também conhecido como Brahmabandhab Upadhyaya)
foram influentes.11Entre os líderes budistas contemporâneos, as

9 A literatura é imensa. Sobre Jesus no Judaísmo, ver os artigos abrangentes de


Susannah HESCHEL, “Jewish views of Jesus”, e de Jacob NEUSNER, “Why
Jesus has no meaning to Judaism”, em BARKER (Ed.), Jesus in the Worlds Faith,
p. 149-160 e 166-173, respectivamente. Quanto a Jesus no Islamismo, ver: ATA
ur-RAHIM, Muhammad. Jesus Profet oflslam. Elmhurst, N.Y.: Tahrike Tarsile
Qur’na, Inc., 1991. KHALIDI, Tarif. The Muslim Jesus; Sayings and Stories in
Islamic Literature. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2001.
10 Para uma visão geral, ver: BENNET, In search o f Jesus; Insider and Outsider
Images, p. 292-344.
11 Ver os estudos de: THOMAS, M. M. The Acknowledged Christ o f the Indian
Renaissance. Madras: Sociedade Literária Cristã, 1970. SAMARTHA, Stanley.
The Hindu Response to the Unbound Christ. Bangalore: IISRS, 1974.
Cristologia intercomfessional: possibilidade oü aspiração?

obras do dalai lama e do monge zen-budista vietnamita Thich


Nhat Hanh devem ser mencionadas.12
Entre os teólogos cristãos contemporâneos: M. M. Thomas,13
Stanley Smartha,14 George M. Soares-Prabhu,15 Raimon
Panikkar,16 Samuel Ryan,17 Michael Amaladoss,18 Aloysius
Pieris,19 Roger Haight,20 Thomas Thangaraj.21 Os teólogos
Minjung, e as teólogas asiáticas,22 só para citar alguns, têm
proporcionado percepções valiosas quanto a como a cristologia
interconfessional pode ser construída. Tal cristologia ainda está
na infância, mas seu futuro parece promissor.

12 Ver: DALAI LAMA. The GoodHeart; A Buddist Perspective on the Teachings


of Jesus. Somerville, MA: Wisdom Publications, 1996. HANH, Thich Nhat.
Living Buddhct, LivingChrist. New York: Riverhead Books, 1995. GoingHqme;
Jesus and Buddha as Brothers. New York: Riverhead Books, 1999. Ver também:
BORG, Marcus. Jesus and Buddha; The Parallel Stories. Berkeley, CA: Ulysses
Press, 1997.
15 Ver: The Acknowledged Christ o f lhe Indian Renaissance.
14 Ver: The Hindu Response to the Unbound Christ.
15 Ver: SOARES-PRABHU, George M. The Dharma o f Jesus. Maryknoll, N.Y.:
Orbis, 2003.
16 PANIKKAR, Raimon. A Dwelling Place for Wisdom. Loiusville: Westminster/
John Knox, 1993.
17 RYAN, Samuel. The Holy Spirit; Heart of the Gospel and Christian Hope.
Maryknoll, N.Y.: Orbis, 1978.
IS AMALADOSS, Michael. The Asian Jesus.
19 PIERIS, Aloysius. Love Meets Wisdom; A Christian Experience of Buddhism.
Maryknoll, N.Y.: Orbis, 1988.
20 HAIGHT, Roger. Jesus Symbol o f God. Maryknoll, N.Y.: Orbis, 1999.
21 THANGARAJ, Thomas. The Crucified Guru; An Experiment in Cross-Cultural
Christology. Nashville: Abingdon Press, 1994.
22 Ver: OREVILLO-MONTENEGRO, Muriel. The Jesus o f Asian Women. Maryk­
noll, N.Y.: Orbis, 2006.
Fidelidade e imparcialidade na
comunidade interconfessional:
rumo a uma teologia de
pluralismo religioso

A lo y siu s P ieris

Uma “teologia de pluralismo religioso” tem de ser uma


mescla de dois compromissos: fidelidade ao que é singular na
fé cristã e imparcialidade com relação à diversidade distintiva
de outros religiosos. No entanto os teólogos que promovem esse
ideal não são unânimes quanto ao que constitui a singularidade
cristã! Em vista disso, as duas partes de minha exposição giram
em torno de duas profissões de fé cristológicas que, na minha
opinião, definem a essência do Cristianismo.1Uns poucos pontos
de vista que não concordam com os meus formaram o pano de
fundo desta apresentação, na qual me esforcei para explicar e
confirmar a “teologia de libertação das religiões” que alguns
de nós defendem e praticam aqui na Ásia.1 2

1 Como mostrado em minha monografia “Christ beyond dogma: doing christology


in the context of the religions and the poor”, Louvain Studies 25 (2000) 187-231.
Versão em espanhol: RevistaLatinoamericana de Teologia 52 (XVIII) (jan. 2001)
3-32 (parte I); 53 (XVIII) (mayo-ago. 2001) 107-124 (parte II).
2 Ver: PIERIS, A. Gods Reign fo r God’s Poor; A Retum to the Jesus Formula.
Kelaniya: Tulana Research Centre, 1999. Versão em espanhol: El Reino de Dios
para los pobres de Dios. Bilbao: Ediciones Mensajero, 2005. “Lo Spirito Santo
F b BJDADE EIMPARCIAUDADE NA CQMUMIOADt INTERCONFtSSIONAL: RUMO A UMA TEOLOGIA Dt PLURAÜSMO RELIGIOSO

I.A religiosidade comum que


justifica o pluralismo religioso
Jude Lal Fernando ficou entusiasmado com a tese de Regina
Schwartz de que a dimensão constitutiva da revelação bíblica
(quase um cânone no interior de outro) é o pluralismo e a ple­
nitude proporcionada pelo todo da criação à humanidade e a
dádiva da terra que jamais deve ser repartida e possuída como
propriedade privada, mas que deve ser gozada por todos.3
Permitam-me completar o quadro de Fernando mencionando
o que ele omitiu: o “parque dos prazeres” que este cosmos foi
destinado a ser (cf. Gn 2,10), com sua vegetação fornecendo
alimento para o corpo assim como prazer estético (cf. Gn 2,9).
Daí que toda dor e sofrimento causados pela injustiça e desigual­
dades resultam da violação e adulteração desta ordem cósmica
de plenitude, pluralismo e prazer!
Mas essa visão, com o devido respeito a Fernando e Schwartz,
não é singular da revelação bíblica, é o ideal comum da maio­
ria das grandes religiões e de todas as religiões primitivas. É
a revelação universal e original preservada até os dias de hoje
nas culturas tribais e dos clãs que ainda sobrevivem em muitos
pontos da Ásia, África e Américas; constitui os primeiros frutos
de um processo evolucionário em que a besta hominizada foi
humanizada pelo Homo religiosus; e é uma visão pré-bíblica e
extrabíblica que as Escrituras hebraicas absorveram datando-a
de Jeová, o qual anteriormente foi reconhecido como o Deus
da justiça e da liberdade, um parceiro fiel numa campanha

in Ásia”. In: AMALADOSS, M.; GIBELLINI, R. (Eds.). Theology in Asia.


Brescia: Editrice Queriniana, 2006. p. 383-410.
3 FERNANDO, Jude Lal. God of plenitude and meditation on conscience: subvert-
ing religious narratives forpeaceful coexistence. In: 0 ’GRADY, J.; SCHERIE, R
Ecumenicsfrom the Rim; Explorations in Honour of John D’Arcy May. Muenster:
LIT Verlag, 2007. p. 369-377.
Alovsius Pieris

antiescravidão (cf. Ex 20,1-3). Contudo, na versão bíblica dessa


espiritualidade primitiva. Deus detém a “corresponsabilidade”
(cf. Gn 1,26) de promover essa ordem cósmica saudável de
uma abundância compartilhada e nos trata como “cocriadores”,
chamando-nos para “trabalhar” a Natureza para o benefício
humano (cf. Gn 2,5-15). Portanto, Deus é nosso parceiro na
luta contra a plutocracia que fabrica a escassez e o sofrimento
num mundo destinado a ser um paraíso de plenitude e prazer.
Aprendi com um estudioso asiático da Bíblia, o qual reco­
nheceu o forte simbolismo da cultura antiga da Ásia ocidental
(em oposição a Schwartz e Fernando), que a cadeia de violência
iniciada por Caim reflete uma “crise de fraternidade” resultante
da exploração da natureza numa “civilização” baseada em ten­
dências compulsivas inatas ("serpente”, “pó”), a qual poderia
acabar construindo uma megalópole (simbolizada por Henoc);
Abel, ao contrário, representa a liberdade das compulsões e a
espiritualidade cósmica que garantem a abundância e o prazer.4
Infelizmente, é somente na Bíblia que alguns teólogos cria-
cionistas do Ocidente encontram a espiritualidade pela primeira
vez, provavelmente porque o Cristianismo não bíblico, ao qual
o Ocidente se converteu há séculos, eliminara a própria versão
ocidental dessa religiosidade primitiva como um simples culto
da natureza ou superstição. O trigo foi removido com as ervas
daninhas. O Cristianismo que foi levado para a Ásia a partir de
lá adotou a mesma abordagem negativa com relação às religiões
primitivas da Ásia, como os bispos asiáticos bem ressaltaram e
criticaram.5A ciência e a tecnologia desenvolvidas no Ocidente,

4 WIJEYSINGHA, Shirley Lal. Cain and Abel: brotherhood in crisis. Vagdevi,


Journal ofReligious Reflection 1/2 (july 2007) 45-52. Aqui o autor usou o trabalho
de pesquisa inédito de J-L. SKA, Genesis /-//(Roma, 1986), com a permissão
do mesmo.
5 FABC Papers, n. 81 (Hong Kong), 25.
Fidelidade e imparcialidade na comunidade ihierconfessiohal: rumo * uma teomgia de pluralismo reugioso

depois da visão cartesiana do “homem explorando a natureza”,


também apagou da história a memória de uma “aliança cósmica-
-humana” dos tempos primitivos. O resultado é uma tecnocracia
aliada a um materialismo profano que agora está engolindo
este materialismo sagrado das religiões cósmicas da Ásia. Os
sinais dos tempos convocam os defensores das versões bíblicas
e não bíblicas da espiritualidade cósmica para unirem forças e
fazerem frente à tecnocracia (e a tal Cristianismo) para que não
continuem a produzir escassez quando há fartura.6
Portanto, essa religiosidade cósmica deveria ser a base
comum em que todas as religiões pudessem se encontrar e ce­
lebrar o pluralismo religioso como uma dádiva à humanidade,
valorizando e encorajando mutuamente suas identidades não
repetíveis. Aqueles que não praticam essa espiritualidade co­
mum são os fundamentalistas antirreligiosos e antipluralistas
responsáveis pelos conflitos inter-religiosos atuais! São eles
que invocam diversos “ismos” (seja o teísmo, seja o ateísmo,
ou qualquer outro) para justificar suas intenções monocráticas.
Em qualquer história, incluindo a história de Israel registrada
na Bíblia, a idolatria que invoca a vontade divina para justificar
a violência é internamente criticada por uma religiosidade cós­
mica. Não se trata das ideologias invocadas por tais fanáticos,
mas da “ganância, que é uma idolatria” (Cl 3,5), que é a raiz de
toda violência.
Na espiritualidade bem-aventurada de Jesus, um asiático
ouve os ecos da espiritualidade cósmica comum a todas as reli­
giões: “a vida feliz” (beatitude) ao compartilhar a abundância da
Natureza como os pássaros no ar e os lírios no campo, sem ente-
souramento, sem angústia (Mt 6,19-34). Aqui a espiritualidade

6 Ver: PIERIS, A. Asian reality and the Christian option: a plea for a paradigm
shift in Christian education in Asia. Dialogue, NS (Colombo), vol. xxxii-xxxiii,
2005-6, [158-196],171-177.
AloysiusPieris

comum a todas as religiões está expressa na estrutura do teísmo


bíblico: um exercício de “fé” Çemsignificando
livre de ansiedade) num Deus Pai/Mãe que é “fiel” Çemet, ou
absolutamente confiável). Daí a confiança em tal Deus excluir
toda a dependência de outros ‘“deuses” (cf. Ex 20,2-3), deuses
simbolizados por Mamon, que é a “riqueza não compartilha­
da”, bem como a “absolutização do que é relativo” (tal como
cor e casta, religião e raça, idioma e terra). Já que tal idolatria
constitui “ganância” (Cl 3,5), nós reconhecemos que aqueles
religiosos asiáticos que não creem em Deus no sentido bíblico
são, não obstante, repudiadores anti-idólatras de Mamon na
medida em que defendem o viver sem ganância que constitui
o sine qua non para a abundância compartilhada. Assim, o
conflito “Deus-Mamon” é a formulação típica cristã de uma
herança cultural religiosa comum. Dessa forma, nossa crença na
Palavra encarnada, crucificada e elevada deve atingir o ponto
culminante na profissão de fé cristológica: Jesus é a antinomia
irrevocável entre Deus e Mamon.

2. Singularidade do Cristianismo:“Jesus
com o o pacto de defesa com os pobres”
Sempre que os clientes do Demônio-Dinheiro ameaçam
substituir a plenitude, o pluralismo e o prazer respectivamente
com a penúria, a plutocracia e a dor, através da exploração e
do entesouramento, Jeová não pode permanecer neutro, já que
é obrigado por um pacto a identificar-se com as vítimas dessa
opção pecadora: o pacto com os escravosfugitivos do Egito rati­
ficado no Sinai e renovado por Cristo no Calvário. Não constitui
nenhuma surpresa que a justiça clamada pelos pobres em pelo
menos quarenta dos salmos, como explica Lyonnet, seja um
apelo ao amor efidelidade de Deus com os pobres (pactuai) em
F idelidade e imparcialidade na comunidade interconfessional: rumo a uma teologia de pluralismo religioso

absoluto contraste com a atitude de Deus para com os opressores,


que é de “ira” (orge touTheou),7a ira das vítimas predestinadas
por Jeová, seu aliado-protetor. Nossa contribuição singular para
o diálogo interconfessional é professar que Jesus é o pacto de
defesa de Deus com os pobres - não por meras palavras, mas
ativamente juntando-nos a defesa dos pobres do próprio Deus.8
Tal ação nunca foi uma ameaça a outras religiões porque sua
intenção não é a conversão de outros religiosos para o Cristia­
nismo, mas a conversão do comando de escassez induzida para
um de abundância compartilhada. Todos os religiosos podem
juntar-se a essa luta sem comprometer suas crenças.
Eu teria deixado de ser um cristão se o Jeová da Bíblia fosse
incapaz da ira que ameaça com o fogo do inferno os opressores
em nome de suas vítimas sem voz - não para destruí-los para
sempre (isso seria ódio), mas para provocar sua conversão e tra­
zer alívio aos párias. Porque a ira profética é uma expressão do
amor redentor. A parábola do juízo final (Mt 25) é boas-novas
para os pobres porque a ameaça do fogo eterno do inferno abala
os não pobres em sua complacência diante da má situação de
seus irmãos e irmãs. O Deus das Escrituras hebraicas e cristãs
não se dirige aos poderosos e aos impotentes com a mesma
linguagem. Nós também não deveríamos!
Os hitlers, pinochets e bushes conseguiram o que quiseram
porque muitos pastores seus contemporâneos falharam e até
mesmo temeram anunciar Jesus Cristo como a Aliança de Deus
com os oprimidos para a sua Defesa! Os fundamentalistas
cristãos diluem a noção da “ira de Deus” espiritualizando-a e
removendo-a da justiça Pactuai de Deus de forma que a violência

7 LYONNET, S. II Nuovo Testamento alia luce DelVantico (palestras proferidas


em 1968). Brescia: Paideia, 1971. reedição: 1977.
8 O tema foi desenvolvido extensamente em minha obra “Christ beyond dogma:
doing Christology in the context of the religions and the poor”.
AloysiusPieris

contra os pobres desaparece dos interesses do Deus deles e da


teologia deles de “expiação” (“apaziguamento da ira de Deus”).
Aquilo que esses fundamentalistas fizeram através de
um evangelismo mal orientado nós, os dialogistas, podemos
fazer através de um iranismo. Paul Knitter, no processo de
tentar sinceramente acomodar a crítica budista da teologia da
libertação feita por Thich Nhat Hanh e Rita Gross, expressou
constrangimento com relação a expressões agressivas, como,
por exemplo, aquela de Jon Sobrino: “anti-Reino”, ou a minha
própria referência ao Pacto como “pacto de defesa” entre Deus
e os pobres,9 a dedução sendo que uma teologia de libertação
asiática baseada no Pacto de Deus com os pobres se equivoca
ao integrar a noção da ira divina contra os vitimadores porque
seria ofensiva para os asiáticos não cristãos.
Essa espécie de constrangimento pode ser associada a três
fontes. A primeira é a confusão entre ira e ódio. O amor que
perdoa no Cristianismo engloba a ira profética, porém exclui
o rancor. O conselho do apóstolo para “ficar irado sem pecar”
(cf. Ef 4,26) dá a entender que existe um lugar justificado para
uma ira não odiosa na vida de um cristão. Thich Nhat Hanh e
outros críticos budistas deveriam ser lembrados de que mesmo
as Escrituras budistas aludem aos monges santos que “ardem”
de indignação santa contra seus colegas errantes (Vinaya III,
137, 138) insinuando que o Budismo também diferencia entre
a ira e o ódio.
A segunda fonte de objeção é o método inclusivo de leitu­
ra cruzada das Escrituras, à qual muitas vezes se recorre no
diálogo inter-religioso, uma tolice metodológica que já ilustrei

9 KNITTER, Paul. “Is God’s covenant with victims a covenant against oppressors?
Aloysius Pieris and the uniqueness of Christ”. In: CRUSZ, R.; FERNANDO,
M.; TILAKARATNE, A. Encounters with the Word; Essays to Honour Aloysius
Pieris. Colombo: EISD, 2004. p. 195-208.
F idelidade e imparcialidade na comunidade interconfessional: rumo a uma teologia de pluralismo religioso

com exemplos tirados dos trabalhos escritos do próprio Thich


Nhat Hahn.10 Comprometer o caráter distintivo do Cristianis­
mo em nome do diálogo inter-religioso é eliminar totalmente
um parceiro do diálogo! Pois, aqui, estamos tratando com um
elemento inegociável da Bíblia, como o não teísmo é um fator
inegociável no Budismo Teravada. Diferenças irreconciliáveis
são uma dimensão constitutiva do pluralismo. Uma teologia de
diálogo é uma teologia de pluralismo.
A terceira fonte de mal-entendido é a falta de compreensão
da natureza da estratégia de defesa de Deus ilustrada pela
Palavra encarnada, crucificada e elevada, em quem Deus e as
vítimas de injustiça constituem um único pacto e, portanto, uma
realidade salvífica. Assim, em Jesus nós encontramos ambos os
parceiros do pacto, Deus e o Pobre, demonstrando duas espécies
de resistência à violência: se de um lado se exerce a ira de Deus
contra aqueles que exploram os outros, de outro se perdoa seus
próprios perseguidores. Em sua vida e obra, vemos a ira de
Deus sendo desencadeada contra os violadores dos vulneráveis,
porém, em sua paixão e morte, vemos Deus identificando-se
com os oprimidos de forma tão indistinta que se torna um deles,
ousando desafiar seus opressores ao enfrentar corajosamente as
atrocidades da tortura até a morte e, assim, gravando nos anais
da história humana que roubar a vida aos pobres é um deicídio!
O tipo de Deus e dessa espécie de envolvimento divino
com os oprimidos conforme revelado em Jesus é peculiar do
Cristianismo e está ausente nas outras crenças. A alegação de
Michael Amaladoss de que o Hinduísmo argumenta a favor
de um Deus assim não encontra fundamento nas Escrituras

10 PIERIS, A. “Cross-Scripture reading in Buddhist Christían dialogue: a search for


the right method”. In: WICKERI, J. (Ed.). Scripture, Community and Mission;
Essays in Honour of D. Preman Niles. Hong Kong/London: CCA/CWM, 2002.
p. 240-241.

B8
Aloysius Pieris

hindus.11Nenhum teólogo que seja ao mesmo tempo um india-


nólogo qualificado e reconhecido produziu algum exemplo de
tal crença em nenhuma religião indiana até hoje.112
Em resumo: minha fidelidade para com minha própria identi­
dade cristã exige primeiro que eu proclame Cristo como alguém
que demanda mais uma transição do culto de Mamon (cf. Mt
6,19-24) do que de outras religiões (cf. Mt 23,15), assim confir­
mando a espiritualidade comum de todas as religiões em minha
crença. Segundó, para preservar minha singularidade cristã,
eu professo a partir daquela plataforma comum, por palavras e
obras, na liturgia e na vida, que Cristo é o pacto de defesa de
Deus com os oprimidos - assentando, assim, os alicerces de
uma “cristologia da libertação das religiões”.

11 PIERIS, G od’s Reigrtfor God’s Poor, p. 83-89. El Reino de Dios para los pobres
de Dios, p. 103-109.
12 Quando questionado por Ann Alden (Religion and Dialogue in Late Modemity;
A Constructive Contribution to a Christian Spirituality Informed by Buddhist-
christian Encounters. Lund: Sociologiska lnstitutionen, 2004. p. 123), Amaladoss,
em lugar de fornecer prova de contra-aigumentação, simplesmente rejeitou meu
desafio, dizendo que eu estava brincando com a palavra “pobre”, quando, na ver­
dade, o termo “pobre” não é minha invenção, mas um termo geral recorrentemente
usado nas Escrituras hebraicas e cristãs (como os trabalhos escritos de George
Soares Prabhu, um estudioso delas, já demonstraram amplamente), o qual me
esforcei em explicar claramente em termos de todas as categorias concretas de
pobres mencionados nas Escrituras, e com tanta insistência e clareza em tantos
de meus escritos, que “brincar com a palavra” (que Alden também repete sem
justificar sua afirmação) é, no mínimo, uma resposta capenga ao meu desafio.
Ainda estou esperando pacientemente por uma tentativa verdadeira de uma
contrademonstraçâo!
A experiência religiosa como
fundamento para uma possível
teologia interconfessional

R ic h a r d R en sh a w

Experiência religiosa é fundamental


Para se construir uma teologia em que todas as tradições
religiosas possam se ver incluídas e se reconhecer, uma teologia
que possa servir como ponto de referência para um diálogo sobre
nosso “viver juntos” num mundo que enfrenta hoje enormes
desafios, parece-me indispensável descobrir um ponto de par­
tida que inicie o processo e sirva como base para o projeto todo.
Proponho aqui examinar a experiência religiosa nesse sentido.
A teologia é sempre um segundo passo. Como uma reflexão
sobre a fé, a teologia encontra suas origens naquela experiência
humana fundamental que é a crença vivida nas experiências do
dia a dia da vida. Como reflexão, a teologia examina a expe­
riência, tenta compreendê-la e interpretá-la e vive em profunda
dependência dela.1Sem essa referência na experiência, a teolo­
gia, assim como a religião, se torna árida. Isso me leva a afirmar
que a religião também é um segundo passo. Ela seria a forma
na qual institucionalizamos nossa experiência religiosa coletiva*

LONERGAN, Bemard. Method in theology. New York: Herder and Herder, 1972.
A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA COMO FUNDAMENTO PARA UMA POSSÍVELTEOLOGIA INTERCONFESSIONAL

a fim de podermos voltar a ela e renová-la nas várias fases de


nossa jornada como seres humanos: nascimento, casamento, do­
ença, morte etc. A teologia, e a religião em termos mais amplos,
tenta oferecer uma interpretação da experiência religiosa que
a enquadre e integre na vida diária através de rituais, preces,
meditação, dias de celebração etc. Todavia, essa atividade toda
está a serviço da experiência religiosa. A experiência religiosa
é, então, fundamental para a revelação de Deus e a inspiração
divina que nos conduz à fé.
É claro que a seqüência não é cronológica. A religião, as
tradições religiosas e a teologia preexistem à minha experiência
pessoal e coletiva hoje. Elas são o resultado de uma experiência
histórica e coletiva. A tradição estava presente muito antes de
meu despertar para a fé. No entanto, a religião e a teologia são
validadas somente por meu ingresso na experiência religiosa
que elas expressam.
A experiência religiosa aponta para o nosso relacionamento
com nós mesmos e com Deus no contexto de um ambiente
natural que nos proporciona a vida e do qual dependemos para
viver. Nesse contexto o ambiente aparece como sagrado (repleto
de mistério transcendental), de forma que ele não pode ser con­
finado nem mesmo pela religião. Descobrimos nele outras vozes
que nos falam de muito além da visão estreita que construímos
como indivíduos e sociedades. Por esse motivo, abandonamos
nosso desejo de controlar e começamos a participar. Dessa
forma, rompemos com nossa alienação, despertamos de uma
cultura de passividade e nos tornamos participantes ativos. Nes­
se despertar nos defrontamos com um mundo de significados,
de serenidade e, paradoxicalmente, de luta e dor. Vamos para
um mundo cheio de riscos. Abandonamos boa parte de nossa
segurança. É um mundo que é mais adulto e, ao mesmo tempo,
um mundo mais compassivo.
Richard Renshaw

Entender essa experiência é algo totalmente diferente. O


problema é que a experiência religiosa é difusa, sem categorias.
Ela surge do interior de um grupo ou indivíduo. Isso a torna
sujeita a toda sorte de interpretação, e a história mostra a que
ponto essas interpretações podem ser estranhas. Além disso, a
experiência em si não oferece nenhuma garantia de sua auten­
ticidade. O profeta Jeremias debateu-se veementemente com a
questão da autenticidade da revelação divina que ele recebeu.
Para o profeta, somente a própria história pode fornecer um
selo de autenticidade. A única confirmação de autenticidade
de uma experiência está na justiça, solidariedade e compaixão
que evoca, ou seja, o poder de vida que flui do esforço de viver
coerentemente com nossa experiência religiosa. A passagem
da experiência religiosa para o conhecimento religioso é longa,
tortuosa e sempre circunscrita pelas limitações de um contexto
histórico específico. Para nos ajudar nesse processo, nós nos
voltamos para a sabedoria das tradições religiosas. A crença é,
assim, a expressão de uma experiência religiosa que se deixa
tratar pela tradição religiosa.

Experiência religiosa com o busca


William James,2 entre outros, ressaltou algumas das carac­
terísticas da experiência religiosa que parecem cruzar muitas
tradições religiosas. Elas incluem a comunhão com o “divino”
como o Outro absoluto e com o Outro como compassivo. A
experiência religiosa também implica uma transformação de
vida para o bem e para compartilhá-lo. Oferece um significado

2 Varieties of religious experience. Palestras Gifford. Edimburgo, 1902. Ver tam­


bém a análise de Charles TAYLOR em La diversitè de 1'expérience religieuse,
William James revisiée (Montreal: Bellarmin, 2003).
A B iW m tN O A MUGKia COMO FUMBAMEMTO MBA UMA PO SSfV a TEOLOGIA INTERCONFESSIOHAL

e uma orientação de vida. Ela descortina outro mundo que é


diferente e sem exclusões.
Uma análise da experiência religiosa mostra que ela está
arraigada no fato de sermos humanos, e é inseparável daquilo
que é humano, visto que está intimamente relacionada com nossa
capacidade de nos surpreendermos e indagarmos. O questiona­
mento nos abre para uma busca sem fim do transcendente.3
Nossa capacidade de questionamento, sobretudo todo aquele
que diz respeito à beleza, ao bem-estar holístico e à comunhão,
nos coloca diante do horizonte do mistério, o fundamento final
da vida. Enquanto a própria estrutura da consciência humana
procura respostas para questões fundamentais, a mente cons­
ciente nem sempre encontra respostas conceptuais. Nesse senti­
do e contexto, a palavra “religioso” refere-se ao que está aberto
ao “Outro”, que é o objetivo final de todo o nosso questiona­
mento. Algumas vezes essa abertura acontece num contexto que
a sociedade reconhece como religioso. Todavia também pode
ocorrer em contextos que sejam muito diferentes, como no caso
de cientistas que se maravilham diante da magnitude e beleza
do universo. É também o caso daqueles que, por razões deveras
políticas, buscam apaixonadamente a libertação dos oprimidos.
Hoje em dia os próprios crentes se defrontam com uma
dialética que reposiciona a experiência religiosa e a religião no
mundo contemporâneo. Como foi ressaltado por Beck e outros,
a transcendência que buscamos não é o “outro absoluto”, no
sentido de estar desligado e sem relação com o resto da vida.
É mais uma transcendência que se encontra eminente em cada
dimensão do universo e, no entanto, nunca se exaure nele.4 Por

3 LONERGAN, Bemard. Philosophy o f God and Theology. London: Darton,


Longman & Todd, 1973.
4 BECK, Clive. Faith in a broad sense as a good in promotíng human development.
Congresso Anual de Filosofia da Educação. 1990. p. 90-100. BAUM, Gregory.
Richard Renshaw

outro lado, também está “além” dessa realidade atual, que é tão
esmagadora para a maioria da humanidade. O crente sempre
corre o risco de abandonar a abertura para a transcendência ao
abraçar uma expressão reduzida da religião. Assim fazendo, a
essência da experiência religiosa fica perdida.
Ao entender a experiência religiosa dessa forma, ou seja,
como uma busca pela transcendência final que repousa no cerne
de nosso questionamento, já que é seu objetivo, possui enormes
conseqüências. Em primeiro lugar, a experiência religiosa se vê
novamente no centro de nossas tarefas diárias. Ela enquadra
nosso caminho pela vida. O objeto da experiência religiosa
sempre escapará de nosso conhecimento total, mas o objetivo
nunca varia. Assim, a dimensão religiosa da experiência religio­
sa é o caminho dinâmico na direção de um objetivo que nunca
seremos capazes de alcançar totalmente, mas que, não obstante,
permanece como condição de nosso “estar no mundo”.5

Experiência religiosa com o resposta


A experiência religiosa se torna o horizonte de nossa busca
para o significado, a libertação e a justiça. Ela constitui seu ob­
jetivo. Por outro lado, é também um irromper de uma resposta

Religion as source o f alienation, the young Hegel. In: Religion andAlienation.


Paulist Press, 1975. p. 1-19. BERRY, Thomas. The dream of the Earth: our way
into the future. The dream o f the Earth. San Francisco: Sierra Club Books, 1988.
p. 194-215.
s Nesse sentido, ler a extraordinária reflexão de João Paulo II em Redemptoris
Missio (n. 28): “O Espirito manifesta-se particulannente na Igreja e nos seus
membros, mas a sua presença e ação são universais, sem limites de espaço nem
de tempo. [...] O Espírito está, portanto, na própria origem da questão existencial
e religiosa do homem, que surge não só de situações contingentes, mas sobretudo
da estrutura própria do seu ser. A presença e ação do Espírito não atingem apenas
os indivíduos, mas também a sociedade e a história, os povos, as culturas e as
religiões”.
A EXPEWtHCIA MUGIOSA COMO FUNDAMENTO PARA UMA POSSÍVELTEOLOGIA INTERCONFESSIOWAL

ao nosso questionamento em nossa consciência. A experiência


religiosa em seu segundo significado é a irrupção da Essência
do Ser, do “Outro absoluto” na consciência humana como uma
resposta para nossa busca por significado, justiça e paz. Em
termos teológicos, é chamado de graça, ou também revelação.
Assim, a experiência religiosa se baseia não só na busca por
amor, beleza, verdade e comunhão. Também é encontrada na
irrupção da beleza, verdade e comunhão transcendentes em
nossas vidas como uma resposta ao nosso questionamento.
Muitas vezes isso se revela como uma intervenção repentina
de amor e compaixão num local ou hora inesperados. A beleza
que descobrimos no “outro” nos eleva a um nível de comunhão
que nos transforma e vivifica.
Essa irrupção - uma resposta para nossa busca - por sua vez
nos provoca a reagir, a ter um comportamento coerente com
aquilo que recebemos. (Como fomos amados, devemos amar uns
aos outros.) Assim é que essa experiência religiosa também in­
clui, em seu terceiro significado, nossa reação à dádiva recebida.
Aqui podemos relembrar todas as jornadas espirituais de muitos
homens e mulheres na história que dedicaram suas vidas a viver
com fidelidade a irrupção daquela realidade transcendente em
suas consciências que conseguiu transformar seus seres inteiros
e que os motivou a mudar seus mundos.
Na cultura ocidental normalmente achamos que o indivíduo
é o “sujeito” da experiência religiosa. Esse conceito resulta do
individualismo de nossa cultura e do legado da filosofia política
de Spinoza. Todavia, não é necessariamente a mesma em outras
tradições religiosas e, certamente, não o é neste nosso contexto.
O “sujeito“ principal da experiência religiosa é a comunidade dos
empobrecidos e excluídos. Temos sempre que colocar a questão
da experiência religiosa no contexto do Povo de Deus, cujo co­
ração é tocado pela compaixão e cujas vidas são orientadas para
Richard Renshaw

a libertação dos pobres e excluídos. Dar atenção à experiência


religiosa nos leva a reconhecer a comunhão com Deus e entre
nós que é vivida por todo o Povo de Deus no passado, presente
e futuro. É uma comunhão que promove a ação com uma só
mente e coração.6
Além disso, dar atenção à experiência religiosa nos coloca
diante da problemática da historicidade da experiência religiosa.
Joan Chittister (uma irmã beneditina autora de vários livros
sobre espiritualidade) sugere que permanecemos energizados
e vitais somente quando nos comprometemos totalmente com
um “buscar e destruir” constante.7
Atualmente, somos chamados a questionar profundamente
nossas premissas sobre o que significa ser seguidor de uma
tradição religiosa e mesmo o fato de sermos cidadãos ou seres
humanos. Nossos pressupostos nos situam cultural, social, po­
lítica e economicamente. Somente se questionarmos ativamente
nossas próprias estruturas, compromissos, premissas, ideais, op­
ções, exercício de poder, alianças e relacionamentos poderemos
contar com o fato de que nossas tradições religiosas falarão de
alguma forma do futuro da sociedade humana e do futuro da
vida em nosso planeta. Tal questionamento inevitavelmente nos
reposiciona. Chittister conta-nos uma história tirada da tradição
sufi na qual um jovem pergunta a seu mestre o que precisa ser
feito para alcançar a vida eterna. O mestre responde que é pre­
ciso abandonar o passado. O jovem fica chocado e replica que
o passado é seu patrimônio no qual ele encontra sabedoria. E o
mestre responde dizendo que ele precisa abandonar o passado
justamente porque épassado. Podemos ser fiéis ao passado (não

6 JOHNSON, Elisabeth. Friends o f God and prophets; A Feminist Theological


Reading of the Communion of Saints. New York, Continuum, 1999.
7 CHITTISTER, Joan. Destroying the past to create the future. Compass (may/
june 1994) 6-8.
A EXPERIÊNCIA RE11GI0SACOMO FUNDAMENTO PARA UMA POSSÍVELTEOLOGIA IWTERCONFESSIONAL

falar do presente e do futuro) somente abandonando o passado.


A fidelidade à experiência religiosa e às tradições por ela cria­
das exige que nos comprometamos com um exercício difícil e
doloroso de desconstrução a fim de trazer à luz o poder que o
nosso passado tem de nos controlar e controlar os outros. Um
amplo diálogo com outras tradições religiosas pode nos auxiliar
a alcançar a humildade sistemática necessária se vamos perma­
necer abertos ao autoquestionamento.

Diálogo
A abertura para questionar o passado, conforme já expliquei,
é uma estratégia para iniciar um diálogo sobre significado e res­
ponsabilidade nos dias de hoje. Somente assim nós despertamos
a esperança, já que não podemos mudar o passado. De qualquer
maneira, nós não construímos um futuro deixando de lado o
passado porque nossa compreensão do passado orienta nossa
atividade para criar o futuro. Temos de encontrar alternativas.
São as brechas entre as muralhas que nos permitem seguir em
frente, experiências que facilmente escapam à nossa consciência,
mas que nos convidam para uma nova vida em busca daquele
“outro mundo que é possível” chamado pelos cristãos de Reino.
Como cristãos, somos convocados a cruzar fronteiras e descobrir
o que existe do outro lado das barreiras culturais e religiosas.8
Hoje em dia esse reposicionamento inclui a solidariedade com
a Terra, com os oprimidos e marginalizados. Exatamente neste
instante saímos de nossos guetos, ou seja, abandonamos um
estilo de vida que nos encerra em nós mesmos. Dessa forma,
começamos a construir uma nova narrativa.

Ver: BAUM, Religion as source of alienation, the young Hegel. CANTWELL


SMITH, Wilfred. Toward a World Theology. Philadelphia: The Westminster
Press, 1981.
Richard Renshaw

Se quisermos buscar juntos o sagrado e criar, ou descobrir, as


histórias que revelam o sagrado, precisamos começar prestando
bastante atenção aos contadores de histórias. Como crentes, há
demasiado tempo temos repetido sempre as mesmas velhas his­
tórias que já perderam seu sentido. Há outras a serem contadas.
Isso não significa que as velhas não tenham valor. Algumas são
ricas de significado, porém precisam de uma releitura a partir
de novas perspectivas para que sua luz possa brilhar. Algumas
das novas histórias podem nos auxiliar a fazer exatamente isso.
Algumas provêm de trabalhos escritos feministas, de movimen­
tos ecológicos, religiões mundiais, tradições de povos indígenas
e minorias em todo o mundo. Estão intimamente relacionadas a
rituais praticados naqueles contextos. Existem também rituais
totalmente novos que nos convidam a nos conectarmos com a
Terra e suas criaturas, rituais que nos unem em solidariedade
através das fronteiras e em lutas comuns. Essas histórias e rituais
nos convocam a auscultar as profundezas de nosso ser a fim de
entrar em contato com as fontes de nossa energia.
De qualquer maneira, somos todos capazes de auxiliar
na cura dos relacionamentos rompidos em nossa sociedade e
chamar a atenção para as vozes ausentes. Entre essas últimas
podemos mencionar o ambiente (ar, água, terra, plantas, ani­
mais), minorias étnicas, mulheres, crianças, aqueles que vivem
com limitações físicas, emocionais ou intelectuais, os de idade
avançada, refugiados, imigrantes.
Temos vivenciado por tempo demasiado o fato de nossas
religiões nos apartarem. A experiência religiosa como busca,
irrupção e resposta nos proporciona uma base muito positiva
para um diálogo que cure as feridas, mobilize forças e sirva
como mediador entre o indivíduo e a sociedade, o mundo natural
e Deus. É um diálogo orientado para compartilhar, apreciar e
valorizar o outro.
A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA COMO FUNDAMENTO PARA UMA POSSÍVELTEOLOGIA IOTERCONFESSIONAL

Práxis
A religião deveria sustentar e estender a experiência reli­
giosa de forma que possam surgir uma prática coerente e um
compartilhamento da experiência. Infelizmente, a religião
às vezes parece mais uma coleção de doutrinas e rituais que
tencionam tratar do mistério de Deus, mas que acabaram por
ser separadas de seus fundamentos na experiência religiosa e
de um compromisso com o mundo para o qual a irrupção do
Outro, do Um Transcendental, está chamando. É daí que deriva
a importância da prática. A aplicação da teoria é absolutamente
necessária para que a experiência não seja estéril, mas conduza
ao bem comum. Nossas religiões (rituais e crenças) são deveras
diferentes. No entanto, elas nos convocam para uma união de
forças na prática da solidariedade com os pobres, oprimidos e
marginalizados. Prestar atenção à experiência religiosa, que se
encontra na origem de nossas diversas tradições religiosas, nos
faz admitir sua beleza e praticar a compaixão, que é um fator
crítico para a construção daquela energia capaz de erguer um
mundo que seja compassivo e justo.
Se desejarmos uma teologia transreligiosa ou suprarreligiosa,
ela deveria se basear e enquadrar dentro de uma reflexão sobre
a experiência religiosa. Mais especificamente: precisamos reco­
nhecer o “sujeito” da experiência religiosa que emerge de nosso
próprio ser como humanos que somos. A experiência religiosa,
como uma ação que se encontra enraizada na própria estrutura
do que é ser humano, ou seja, como um “sujeito que age”, trans­
cende todas as religiões e tradições religiosas. No fim das contas,
a base ou fundamento de toda teologia não é uma coleção de
doutrinas, mas o “sujeito”9humano (o ser que age consciente de

9 Ver: LONERGAN, Method in Theology, 1974. Thesubject. Milwaukee: Mar-


quette University Press, 1968. FERRY, Jean-Marc. Les puissance de l ’expérience.
Paris: Éditions du Cerf, 1991.
Richard Renshaw

si mesmo) numa comunhão universal na qual é dada prioridade


àqueles que são considerados não sujeitos (não pessoas) e que
são excluídos. Ser “sujeito” transcende as tradições religiosas
e suas estruturas. Cristãos, hinduístas, muçulmanos, budistas
ou seguidores de uma espiritualidade nativa, nós sempre somos
sujeitos humanos comprometidos com uma busca humana e um
questionamento da realidade que se abre para a irrupção do
“Outro” e do “outro” em nossa vida do dia a dia.
A experiência religiosa, nascida da imaginação e do ques­
tionamento que está no núcleo do ser humano, é construída
com fundamento nos elementos que são formados exatamente
pela estrutura da própria consciência humana e que servem
de substrato comum, dando sustentação a toda a variedade de
interpretações e entendimentos que surgiram das diferentes
tradições religiosas. Mesmo que todos os esforços para formular
esse substrato comum acabem por ser outra teologia ou cami­
nho religioso, fica claro que nós somos sujeitos de experiências
religiosas antes que reconheçamos essa realidade como tal.
O reconhecimento do outro como tal no diálogo com toda a
sua diversidade é uma referência indispensável para ser capaz
de levar avante um diálogo fértil, ou seja, um diálogo que se
baseia na intersubjetividade. Esse diálogo pode nos levar a re­
conhecer os elementos (valores e verdades) trazidos por cada
um que fortalecem nossa solidariedade prática.
O empenho para nomear certos elementos da experiência
religiosa pode proporcionar “ganchos” que nos habilitam a
construir um sistema para uma prática comum, isto é, para
vivermos juntos neste planeta. Provavelmente, as tradições que
sejam mais capazes de expressar esses elementos comuns sejam
aquelas encontradas nas religiões nativas. É claro que não estou
conclamando todo mundo a adotar uma religião indígena ou
abandonar nossas diferentes tradições religiosas. Ao contrário,
A EXPERIÊNCIA RELIGIOSACOMO FUNDAMENTO PARA UMA POSSÍVEL TEOLOGIA INTERCONfESSIONAL

a riqueza da diversidade e a extraordinária profundidade de­


senvolvida pelas tradições milenares das grandes religiões
do mundo merecem nosso total respeito. Não obstante, tomar
como exemplo essas mesmas tradições do ponto de vista das
tradições nativas e da experiência vivida pelos empobrecidos
e excluídos pode ajudar-nos a encontrar elementos que nos as­
sistirão na descoberta da originalidade das grandes tradições
mundiais sob uma nova luz. Os elementos assim identificados
podem servir para nos orientar na tentativa de descobrir o que
é autêntico numa experiência religiosa. Além disso, a conside­
ração dos valores que fluem de uma compreensão da estrutura
da experiência religiosa como arraigada no “sujeito”, ou seja, na
estrutura dinâmica da consciência humana como questionamen­
to e imaginação, pode auxiliar-nos a achar valores e princípios
éticos que são importantes se vamos reagir aos desafios que a
humanidade está confrontando hoje.
Num próximo passo, o diálogo sobre a experiência religiosa
num contexto de compromisso com as lutas dos pobres para seu
reconhecimento abre a possibilidade de realizar uma reflexão
a respeito da discussão do diálogo em si. Esse momento de
reflexão sobre o que fizemos nos permite articular a dinâmica
subjacente da experiência religiosa. Desse modo, nós já come­
çamos a construir a teologia interconfessional esperada.

Conclusão
Tentei indicar um caminho para a construção de uma base
para a teologia interconfessional. Para conseguirmos isso,
precisamos encontrar uma referência comum que nos permita
criar um relacionamento. Nesse sentido, proponho a experiência
religiosa com três significados: como uma busca de signifi­
cado e amor, como uma irrupção do Transcendente em nossa

BIS
Richard Renshaw

consciência (através dos pobres) e como uma resposta humana a


tal irrupção. Em segundo lugar, insisto na importância da prática
como diálogo estrutural e constituindo um processo que leve ao
reconhecimento do outro como sujeito. Em terceiro lugar, sugiro
que o diálogo seja uma atividade de reconhecimento mútuo
entre sujeitos que ofereça a possibilidade de avaliar diferenças
e elementos comuns. Finalmente, proponho que uma teologia
interconfessional surja da reflexão sobre a prática do diálogo.
Não existe teologia sem teólogo, e cada teólogo é um ser
humano com uma consciência humana, sujeito ao potencial e
limitações do que é ser humano. O teólogo é um sujeito. Uma
teologia interconfessional é possível na medida em que seja
coerente com o sujeito da experiência religiosa ao reconhecer o
sujeito com seu potencial e limitações. Se aceitarmos esse prin­
cípio, evidentemente muitas teologias vão precisar de profunda
revisão.10Assim, parece-me que o diálogo interconfessional em
função do “viverjuntos” não é só urgente, mas também possível.

10 As contribuições epistemológicas de Bemard Lonergan, Juergen Habermas e


Jean-Marc Ferry oferecem princípios profícuos (embora diferentes) para nossa
jornada no diálogo.
Rumo a uma teologia
pós-confessional e
pós-religiosa.
Experiência religiosa,
símbolo e teologia
pós-religiosa

J o sé A m ando R o bl e s

Se o símbolo é a expressão própria da experiência religiosa


(1), esta, expressada simbolicamente, é o objeto da teologia (2).
Por outro lado, entre símbolo e religião se dá uma certa relação
de continuidade, mas também de irredutibilidade (3). Essas são
três condições relacionais muito importantes, já que nelas pa­
receria se encontrar uma das chaves de por a teologia tem
de ser pós-religiosa e, portanto, também pós-cristã (4). Tal é a
tese que aqui sustentamos em resposta à pergunta motivadora,
“é possível uma teologia [...] transreligiosa?”. E são quatro os
pontos que - de uma maneira muito sintética, por razões edito­
riais - propomos a seguir, privilegiando, como se poderá ver,
um enfoque fundamentalmente epistemológico.' Este último1

1 Enfoque epistemológico do qual tratamos apenas de um ponto, o da experiên­


cia religiosa simbolicamente expressada como objeto da teologia. Abordagem
mais ampla fizemos em: ROBLES, J. A. Repensar la religión. De la creencia
R umo a üma teologia pós - confessional e pós - religiosa. Experiência religiosa, sím bou e teologia pós - religiosa

não porque seja o único enfoque possível, absolutamente, mas


porque a pergunta motivadora tem alcances e propósitos pro­
fundamente epistemológicos para a teologia.

I. Experiência religiosa e
expressão simbólica
Faz várias décadas, cada vez é mais freqüente ver a teologia
referir-se ao seu objeto de estudo em termos de experiência,
experiência religiosa, e à natureza da linguagem religiosa como
uma linguagem simbólica. Tão freqüente, como ainda geral
e vago. A prova está em que, contrariamente ao que seria de
esperar, tal reconhecimento para nada mudou o fundo da teo­
logia. Nós nos referimos à formalidade de seu objeto de estudo,
à sua maneira de entender-se como episteme, aos seus famosos
“lugares teológicos”, ao seu discurso. Em termos gerais, este
continua sendo o mesmo. Sinal tudo isso de que termos como
experiência religiosa e símbolo não estão sendo utilizados com
rigor, mas antes de uma maneira genérica. É, pois, necessário
corrigir tal uso.
Quando falamos com rigor de experiência religiosa, antes de
tudo e acima de tudo estamos nos referindo a uma experiência
real e específica do absoluto que somos e que é tudo, a expe­
riência da realidade em sua unidade, plenitude e totalidade.
Algumas características ou, melhor ainda, dimensões, que só
podem ser conhecidas experiencialmente, nunca racional e
conceitualmente. Para este tipo de conhecimento, raciocínio e
conceito são recursos profundamente inadequados por insufi­
cientes, só a experiência é adequada. Uma experiência, ademais.

al conocimiento. Heredia (Costa Rica): EUNA, 2002. p. 293-358. E i Verdad o


símbolo? Naturaleza dei lenguaje religioso. Heredia (Costa Rica): Universidad
Nacional, 2007.
José Amando Robles

bem específica, que não supõe subjetivação nem objetivação,


porque não necessita nem supõe um sujeito sentindo estar conhe­
cendo um objeto. Nesse sentido, devemos reconhecer, também
o termo experiência religiosa não é o mais adequado, porque
facilmente induz a engano. Nós o utilizamos porque, como os
termos espiritualidade, caminho interior e outros, é, apesar de
tudo, dos menos maus que temos.
Se nos entendêssemos bem, bastaria dizer experiência da
realidade, sem acrescentar experiência “religiosa”, como ob­
serva com frequência Raimon Panikkar,2 indicando, assim,
que não se trata de nenhuma experiência especial nem espe­
cializada, mas da experiência da realidade sem mais, contudo
da realidade toda. O qualificativo “religiosa” que costumamos
lhe acrescentar ou serve para conotar as dimensões de unidade,
totalidade, gratuidade, ou está demais. De fato, não acrescen­
ta absolutamente nada.3 A experiência da realidade em sua
plenitude e totalidade é a experiência humana por excelência,
plenamente humana e, por isso, religiosa.
Reivindicada a natureza verdadeiramente experiencial da
experiência religiosa, os dois termos, “experiência” e “religiosa”,
devem recordar à teologia a natureza experiencial da própria
religião.
Com efeito, não só é a experiência religiosa corretamente
entendida que fundamenta a religião, é também a que a constitui.
A religião é a experiência mais profunda, plena e total que pode
fazer o ser humano, ou não é religião. E se não é religião, então
é cosmovisão, filosofia do mundo, do ser humano e da história,

2 ícones do mistério; a experiência de Deus. São Paulo: Paulinas, 2007. p. 52. De


la mística. Experiência plena de la Vida. Barcelona: Herder, 2005. p. 34.
3 Cf. PANIKKAR, Raimon. Entre Dieu et le cosmos. Entretiens avec Gwendoline
Jarczyk. Paris: Albin Michel, 1998. p. 11.
Rumo a uma teologia piís- cmifessionai e pós- reugiosa. ExperiCncia religios». símboio e teoiogia pós- reugiosa

ética, teodiceia..., mas não a experiência de unidade, plenitude


e totalidade que a fundamenta e a constitui.
Por ser a experiência religiosa essencialmente experiencial,
sua expressão é essencialmente simbólica, e não pode ser de
outra maneira.
Por isso, com razão foi dito que o símbolo que expressa a
experiência religiosa é a primeira linguagem religiosa de todos,
ou que está na origem de todos os demais e alimenta a todos, se
é que não é o único. Porque os demais mitos, ritos, doutrinas...,
experiencialmente falando, já são derivados, já são preferen-
temente temáticos, não estão na mesma altura nem cumprem
a mesma função. A relação entre estes e a experiência não é a
mesma que no símbolo, onde esta relação é mais direta, mesmo
havendo uma diferença de natureza, sentida não sem dor pelos
que fazem a experiência e a expressam. Só o símbolo tem por
alvo a experiência mesma. Para ela aponta e para ela orienta, até
desaparecer, como bom precursor. Muito ao contrário do que
acontece na arte, onde o símbolo, como um em si, permanece,
e o simbolizado, nele. Com outras palavras, na experiência re­
ligiosa a realidade está na experiência mesma, não no símbolo,
e para ela deve tender.

2. A experiência religiosa simbolicamente


expressada, objeto da teologia
A importância de entender bem a natureza experiencial da ex­
periência religiosa, assim como a de entender que sua expressão
é simbólica, e é simbólica de uma maneira bem específica, se
apoia em que a experiência religiosa simbolicamente expressada
é o objeto formal da teologia: o que estuda e a luz sob a qual o
estuda. Esse é o objeto que busca entender a teologia, não outro.
José Amando Robles

O ponto que acabamos de expressar é sumamente importante.


O objeto da teologia não é a visão da realidade ou o conjunto
de valores que nos pode dar e nos dá um mito ou um rito, ou,
melhor ainda, séries inteiras destes, como conjuntos articulados
que já são de símbolos, em um caso representacionais, no outro
dinâmicos. Menos ainda é o objeto da teologia ou conjunto de
verdades em que se pode fazer derivar conjuntos articulados de
símbolos em função de sua conservação, transmissão, legitima­
ção, identidade e outras. Por este caminho - bem conhecido por
ter sido o mais percorrido durante séculos - a teologia perde
sua função e seu próprio objeto de estudo, na medida precisa­
mente em que se afasta mais do símbolo e da função deste. O
objeto da teologia é a experiência religiosa, genuinamente tal,
simbolicamente expressada. Não é outro. Os outros objetos -
mitos, ritos, verdades, doutrinas... - só podem ser percorridos
e merecem sê-lo em uma busca da riqueza simbólica que ainda
contêm, e rastreando sua função primeira, recuperando-os e
recuperando-a, porém nada mais.
Tal objeto de estudo, sabemos, não é nada conceitualizável.
É, unicamente, o que diz ser: a experiência última, mais plena
e total da realidade, enquanto essa experiência é expressada
simbolicamente.
Expressada simbolicamente significa não conceitualizável.
Como captar, pois, esse objeto de estudo, perguntarão os adic-
tos da razão e do conceito para tudo? Marià Corbí dirá que os
textos genuinamente religiosos só podem ser lidos como se lê
um poema,4 só podem ser captados e lidos simbolicamente.
Como se capta e se lê a arte em todas as suas manifestações.
Nesse sentido, a religião não constitui uma experiência que não
estejamos fazendo todos os dias quando vemos uma paisagem,

4 Religiónsin religión. Madrid: PPC, 1996. p. 131.


Rumo a uma teologia pós- confessional e pós- reugiosa. Experiência religiosa, símbolo e teologia põs- rligiosa

uma árvore, uma flor, e quando olhamos qualquer objeto, já não


uma obra de arte, com certo nível de desenho e de qualidade
artística. Em todas essas experiências percebemos muito mais
do que física, objetivamente, vemos; percebemos uma realidade
sutil, de unidade e totalidade, que transcende a materialidade
das coisas que vemos, embora esteja nela.
A teologia, como a arte, deverá ensinar-nos a perceber tal
dimensão, captar seu significado e valor, descobrir sua rique­
za, sua presença em tudo, sua capacidade para transformar a
realidade. Deverá mostrar-nos sua relação com tudo aquilo
que chamamos realidade, e ensinar-nos a viver a partir dessa
experiência e com ela... Mas para tanto tem de se manter fir­
me em seu próprio objeto de estudo, saber ser corajosa, não
ceder à tentação - quanto ao mais bem compreensível - de
sair à caça de verdades e conceitos como objeto de estudo,
para ser mais eficiente. A teologia tem de saber que, quanto
mais se afasta dessa forma não conceitualizável de expressar a
experiência religiosa que é o simbólico, tanto mais se afasta da
experiência para a qual este aponta, e mais se incapacita para
dar conta dela, sendo, contudo, esta sua fonte. Os símbolos em
uma conceptualização religiosa e a serviço dela - como já são
as religiões - vêm “enclausurar” o que precisamente os define:
sua universalidade e sua densidade de significado. Para ficar
com um significado, quem sabe, doutrinalmente potente - como
aconteceu, no Cristianismo, com os símbolos da criação, da
encarnação e da ressurreição, para dar três exemplos porém
simbólica e progressivamente empobrecidos.

I3SS1
José Amando Robles

3. Entre símbolo e religião, uma


relação de irredutibilidade
Contrariamente ao que estamos habituados a pensar, entre
símbolo e religião como sistema de crenças, significações e
práticas
r
rituais não há uma continuidade evolutiva e harmônica.
E certo que símbolos e gestos simbólicos puderam dar lugar a
conjuntos elaborados, como são os mitos e os ritos, mitologias
e ideologias ou religiões. Embora fosse melhor dizer que mitos,
ritos e religiões souberam assumir os símbolos na nova realidade
temática, articulada e até sistêmica que elas instauram. Mas
isso não ocorreu sem certa violência e, desde logo, sem perda
de significação e função para o símbolo.
J. Severino Croatto5 sublinhou muito bem como em tal
operação os símbolos perdem tanto em universalidade de
significação como em densidade, ou seja, no que têm de mais
próprio e genuíno. Em contrapartida, adquirem poder e valor,
de concreção e configuração, de interpretação e até mesmo de
explicação da realidade, de orientação e determinação, mas tudo
isso já dentro de uma cosmovisão determinada de mundo e em
função dela, e, portanto, com seu potencial simbolizador propor­
cionalmente reduzido. Quanto mais dentro de uma cosmovisão
e corpo religiosos se encontra o símbolo, e mais significação
concreta adquire, tanto mais perde de sua infinitude e de sua
profundidade inesgotável de significação.
De fato, por sua natureza e funções, entre símbolo e religião
como corpo e sistema de verdades e valores, existe certa incom­
patibilidade e irredutibilidade, que se deve reconhecer e salvar.
Não apresentam a mesma ontologia nem fazem parte do mesmo

5 Los lenguajes de la experiencia religiosa. Estúdio defenomenologla de la reli-


gión. Buenos Aires: Fundación Universidad a Distancia “Hemandarias”, 1994.
p. 163-165.

BB
Rumo a um* temogia pús-confessional e pús- religiosa. Experiência mugiosa. sImboio e teologia pós- reikiosa

registro. O próprio símbolo não é o mesmo antes de entrar e


quando já entrou para fazer parte do conjunto articulado que é
uma religião. Assumido e subsumido em uma religião, o símbolo
já não é o mesmo, sofreu perdas, perdeu o mais genuíno de seu
ser e função: sua capacidade, aparentemente vaga e imprecisa,
mas no fundo a mais rica e apropriada, para apontar o inefável,
sem substituí-lo nem fixá-lo nunca. Porque para onde aponta é
a própria experiência.
Neste ponto jaz precisamente a grande diferença entre
religião e símbolo: que a religião, por ter feito dos símbolos,
conceitos, verdades —e verdades com frequência divinas - , se
detém neles sob a forma de fé e de crença, enquanto o símbolo
aponta para a realidade e a sua experiência como única forma
de conhecê-la.

4. A teologia, pós-religiosa e pós-cristã


À luz do aqui proposto, o símbolo que expressa a experiência
religiosa, objeto da teologia, se transforma no critério discrimi-
nante de sua pertinência e, poderíamos dizer, de sua qualidade
religiosa. E isso independentemente dos referentes religiosos
que o possam acompanhar ou que o espreitam. Na polaridade
símbolo - como expressão originária - e religião - como con­
junto articulado de verdades e doutrinas -, é o símbolo como
objeto de conhecimento e sua dinâmica aquilo que define a
teologia. Daí a necessidade de desenganchar teologia de religião
e de confissão religiosa, ou - exprimindo em outros termos e
na situação cultural em que agora nos encontramos - de que a
teologia seja pós-confessional e pós-religiosa.
É a única maneira de garantir que seja autêntica, que dê
conta da experiência religiosa e de suas contribuições. Do con­
trário, continuar fazendo teologia confessional e religiosa para
José Amando Robles

o uso é fazer uma teologia em função de crenças, de interesses


doutrinais, morais e institucionais, porém não da experiência
religiosa autenticamente tal.
Devemos tomar consciência clara deste desafio, que parece
ir contra toda lógica e até contra toda evidência. O lógico e o
evidente pareceria ser continuar fazendo a teologia como sempre
se fez, partindo de verdades - mais se são reveladas -, de con­
ceitos, de credos. No fundo, partindo de uma visão do mundo,
do ser humano e da história, de uma filosofia. De outra maneira,
o sentimento pareceria ser de impotência, não sabendo como é
que se poderia fazer teologia; sentimento bem compreensível
se o ideal que se tem de teologia é o de uma metavisão objetiva
do mundo, do ser humano e da história, interlocutora de outras
visões. Mas o objeto da teologia é outro, a experiência religiosa
simbolicamente expressada, e seu saber, um saber sobre esta
experiência e a partir dela.
Quanto ao mais, só a partir de uma teologia pós-confessional
e pós-religiosa se recuperará o melhor da teologia confessional e
religiosa, e a interlocução profunda entre todas as teologias não
só será possível como será o substrato e a experiência comum.
Porque experiência religiosa e expressão simbólica nunca se
fecham nem se esgotam. Em uma teologia assim, há lugar para
todas as expressões genuinamente religiosas e para todas as
teologias que genuinamente se construam em função destas.
Nenhuma sobra.
Teologia interconfessional
uma perspectiva hindu

K. L. S e sh a g ir i R a o

Introdução
O Hinduísmo é uma tradição religiosa antiga, multifacetada,
multidirecional, dinâmica e viva. Ela reconhece as inevitáveis
diferenças da vida e experiências humanas, assim como as va­
riadas necessidades dos indivíduos em diferentes fases da evo­
lução espiritual. Quase qualquer forma de culto está preservada
na tradição e é valorizada pelos hindus se for útil para alguém
em algum estágio da evolução espiritual. Eles reconhecem e
respeitam a individualidade de cada tradição e seita; cada uma
representa uma perspectiva importante da Verdade. A aborda­
gem hindu da Verdade é experimental: é vivendo e se movendo
na Bramã (Verdade universal). A busca da Verdade é ampla e se
baseia em descobertas progressivas da visão sempre ampliada
e experiência do Divino. A procura da Verdade e do valor é um
interminável. Subjacente a todos os diferentes movimentos e
seitas, os hindus veem certos temas comuns que contam para a
unidade maior. Eles enfatizam que a Realidade última é o Espí­
rito Supremo, que é um, sem um segundo (advitiyá); que é valor
supremo; que existe um sentido de unidade percorrendo todas
as coisas e que há justiça no coração do universo. O espírito do
Hinduísmo é “unidade na diversidade”.
Teologia interconfessionai: uma perspectiva hindu

Perspectiva hindu
Na perspectiva hindu, as grandes tradições religiosas são
diferentes entre si, mas são necessárias e válidas conforme
enfatizam as várias dimensões da Verdade. Elas ajudam o de­
senvolvimento espiritual da humanidade em diferentes tempos e
climas. Toda religião, cultura e idioma tem seu lugar no mundo.
Qualquer coisa que esteja em harmonia com a verdade e a lei
moral eterna é aceitável para o Hinduísmo. Ela possibilita a
seus seguidores respeitar outras religiões e admirar e assimilar
qualquer coisa que seja boa em outras crenças.
Toda religião é forte em alguns valores e deficiente em ou­
tros. Há defeitos e pontos brilhantes em toda tradição. Nenhuma
religião é perfeita. Cada religião precisa purificar-se corrigindo
distorções e deficiências em sua herança cultural. Cada tradição
faz parte do patrimônio religioso da humanidade. Cada uma
delas fez e continua a fazer contribuições importantes para a
realização humana. Elas são complementares. A diversidade de
culturas traz riqueza e beleza para a vida humana. O Hinduísmo
mantém que o pluralismo religioso proporciona um contexto
adequado no interior do qual cada tradição é capaz de preservar
suas características singulares e pode agir, reagir, crescer e se
desenvolver. O Hinduísmo não insiste na semelhança religiosa,
mas na aplicação dos princípios da moralidade e retidão (darma)
na vida.
O Hinduísmo valoriza outras tradições e não alega que seja
o único repositório da Verdade no mundo. Em nenhum lugar
nas Escrituras hindus está escrito que somente os hindus são
qualificados para serem salvos. O Hinduísmo invoca as bênçãos
da vida para todos, não somente para os hindus. “Que sejam
todos felizes, saudáveis e abençoados” faz parte de suas preces
diárias. Sendo uma religião aberta, ela assimilou percepções
K,L,Seshaqiri Rao

de outras crenças. A visão hindu contém um mundo, uma hu­


manidade, mas muitas casas de fé. Nesse aspecto, o instituto
do matrimônio pode ser usado para ilustrar magnificamente a
visão hindu. O propósito da cerimônia do casamento, seja hindu,
budista, cristão, muçulmano ou sique, é unir o noivo e a noiva
sob a sanção da união sagrada. As cerimônias de casamento
são certamente diferentes nas diversas tradições, porém todas
se propõem a atingir o mesmo objetivo.
Da mesma forma, a finalidade das tradições espirituais da
humanidade é pôr a alma individual em contato com o Ser
Supremo, ou, como disse Mahatma Gandhi, levar o buscador a
ficar “face a face com Deus ou Verdade”. As tradições religiosas
existem para auxiliar os respectivos seguidores a atingir essa
meta. Sri Ramakrishna no século XIX e Mahatma Gandhi no
século XX também defenderam essa visão através de outras
imagens.

Uma só essência e muitos nomes


Sri Ramakrishna (1836-1886) praticou disciplinas espirituais
de diferentes seitas hindus uma após a outra. Tendo conseguido
fazer os exercícios das sadanas hindus, ele se voltou para as
práticas do Cristianismo e Islamismo. Seguiu as modalidades
das disciplinas como recomendadas pelas respectivas tradições.
Percebeu e desfrutou a glória de Deus em cada um desses mé­
todos. Viu que todas as crenças são caminhos diferentes para a
mesma destinação. Os caminhos são muitos. Deus é um. Rama,
Krishna, Siva, Alá, Jesus Cristo e outros mil nomes significam
somente Ele. Independentemente do nome ou forma em que o
Divino seja cultuado, o Supremo Senhor aceita o culto do devoto.
A diferença está nas perspectivas e linguagens, não na essência.
A água é chamada dejal pelos hindus, pelos muçulmanos,
Teologia interconfessional: uma perspectiva hindu

água pelos cristãos e assim por diante. A substância é a mesma,


mas os nomes são diferentes em idiomas diferentes. E Deus está
além de palavras, mas pode ser vivenciado.

Imagens de maternidade
Mahatma Gandhi usou imagens diferentes. Uma mãe nutre
e trata com carinho a vida de seu filho e a mãe é amada e res­
peitada pela criança. Cada mãe é única para com seu filho. Da
mesma forma que eu respeito minha mãe, também se espera
que eu respeite as mães de meus vizinhos. Todas as mães devem
ser respeitadas. Uma religião, como uma mãe, nutre e trata com
carinho a vida espiritual de seus seguidores: ela merece o res­
peito deles. Isso não significa que as outras religiões devam ser
deploradas. A fim de estabelecer a relevância de uma fé, não é
necessário menosprezar as outras. Na verdade, a reverência pela
fé dos outros exalta a própria fé; é um reconhecimento do fato
de que a verdade e os valores espirituais estão incrustados nas
diferentes tradições de acordo com as necessidades e índoles
dos respectivos povos.
O modo de vida hindu é direcionado essencialmente para a
busca da Verdade. A Verdade inclui o que é verdadeiro no co­
nhecimento, o que é certo na conduta e o que é justo e equitativo
nas relações humanas. A tradição hindu (Vedas) nos guia na
arte de viver com base no conhecimento das verdades eternas
subjacentes do Universo. Ela trata da vida e da morte, do bem e
do mal, do amor e do ódio, do agora e da vida após a morte, bem
como do significado e do propósito da vida. Saber como viver
é o verdadeiro conhecimento. A tradição focaliza as condições
de vida e as metas humanas comuns da honradez (dharma), da
segurança econômica (artha), do prazer estético (kama) e da

m
K.L.SeshaqiriRao

liberdade espiritual (moksa). Há muitos caminhos e disciplinas


espirituais, qualquer um(a) pode levar ao objetivo supremo.
Toda religião histórica contém elementos locais, regionais
e universais. Fatores locais, culturais e geográficos são úteis a
seu tempo e lugar. Na verdade, tradições religiosas específicas
e seitas possuem seus próprios problemas e interesses. Existem
diferenças entre e no interior das religiões quanto à doutrina e
matéria dogmática. As divergências em rituais e concepções
de Deus resultam em diferentes formas de religião. O açúcar é
descrito de forma diferente por um menino, um químico e um
diabético. Essas concepções não afetam o açúcar, a essência
(Realidade). É errôneo enfatizar demais as diferenças e ignorar
os elementos universais. A falta de sensibilidade para com a
estrutura de valores de outras crenças conduz à cegueira cul­
tural. As religiões, que se supõe unir a humanidade, se tornam
forças divisionistas. Algumas das sérias rupturas na comunidade
humana têm base religiosa.
Os valores universais entranhados nessas tradições trans­
cendem as limitações da história, geografia, cultura etc. Os
elementos espirituais de todas as tradições não somente instruem
contra essas atitudes divisionistas, mas fornecem vastos recursos
que podem proporcionar orientação para o progresso humano e
a harmonia. Todas as religiões estimulam os seres humanos a
perceber a Verdade, o valor espiritual supremo. Todas têm como
alvo ajudar os humanos em seus esforços para o conhecimento
de Deus. Os santos de todas as religiões pregaram a Verdade
eterna; todos exprimem o amor de Deus por seus filhos. Inde-
pendentemente da religião adotada, podemos enriquecer nossa
vida espiritual mantendo-nos abertos à sabedoria profunda
que flui de uma fonte Divina através de muitas revelações. A
diversidade enriquece a cultura. A espiritualidade, que é o cerne
das religiões, unifica a humanidade. Se os elementos universais
Teologiaihtebcowfessiowai: uma perspectiva hindu

fossem liberados de suas posições restritas, as religiões pode­


riam se tornar forças unificadoras no mundo.

Nascimento humano
Nascer como ser humano é um privilégio precioso e uma
grande dádiva. Independentemente da raça, religião, cultura,
nacionalidade, gênero ou geração à qual a pessoa pertença; um
ser humano é, primeiramente e antes de tudo, um ser humano. A
potencialidade de desenvolvimento moral e espiritual distingue
os humanos de outros animais. Alimento e bebida, sexo e sono
são comuns a humanos e animais. No entanto os humanos são
agraciados com a razão e o livre-arbítrio. Somente eles têm a
oportunidade única de buscar a salvação, que é direito nato
espiritual de toda pessoa. As religiões existem para ajudar os
humanos nessa direção. Sua responsabilidade principal é tra­
balhar pela saúde, felicidade, harmonia e realização dos seres
humanos: isto tem precedência sobre metas restritas e sectárias.

Meta final
Salvação, a meta fundamental da vida humana, recebe
diferentes nomes em religiões diferentes (Moksha, Nirvana,
Reino de Deus, Redenção, Libertação, Céu, Paraíso etc.). Uma
variedade de abordagens da salvação é apresentada nas dife­
rentes tradições religiosas. Em cada caso ela é direcionada para
alcançar a libertação do sofrimento e do mal, o desprendimento
do confinamento e obtenção da felicidade eterna. Existe uma
eterna ânsia da alma pelo Infinito. Ele diz respeito à totalidade
e salubridade. A meta espiritual é a vida eterna. Independente
dos antecedentes religiosos, todo indivíduo tem o privilégio
de batalhar pela salvação, que é a suprema meta espiritual.
K.LSeshaqiri Rao

Todavia, nenhuma religião, nem líder religioso, pode conceder


a salvação a qualquer pessoa: ela dependente inteiramente da
graça de Deus.

Globalização
Em nosso mundo contemporâneo de viagens e comunicações
rápidas, diversas religiões e culturas entram em íntimo contato e,
muitas vezes, em confrontação umas com as outras. O encontro
de religiões não está confinado a este ou àquele país, agora é
um fenômeno mundial. Todo lugar no mundo está se tomando
multicultural e multirreligioso. O mundo se tornou uma aldeia
global. As fronteiras tradicionais têm sido questionadas pelas
novas gerações.
As verdades espirituais são eternas por natureza, porém os
costumes culturais e sociais e os métodos mudam conforme
as exigências dos tempos e circunstâncias. Muitas religiões na
história modificaram suas posturas em muitas questões. Por
exemplo, as religiões alteraram suas posições com respeito
à escravidão, discriminação racial, status das mulheres, ca­
ráter central dos rituais e atitudes para com o conhecimento
científico. Agora chegou a hora de superar o exclusivismo e a
discriminação religiosos. Os rios devem fluir e o povo religioso
precisa crescer, caso contrário estagnarão. Nós devemos ser os
criadores da história, não suas vítimas. Não nascemos para vi­
ver dentro de limites restritos. Temos de examinar detidamente
nossos problemas no contexto das pessoas de outras crenças.
Cada religião tem de se interessar ativamente com relação ao
bem-estar ao redor do mundo. Não deveria ficar emperrada nos
interesses imediatos, restritos e sectários. E os contatos culturais
e religiosos deveriam ser mutuamente benéficos e servir ao
mundo em geral. Na cultura global emergente, o mundo precisa
Teologiainterconfessionai: uma perspectiva hindu

levar em consideração as diversas correntes religiosas e suas


contribuições para o bem-estar da humanidade como um todo.

Ponto decisivo
Encontramo-nos num ponto crucial da história. Chegou a
hora de as religiões mundiais alcançarem um novo horizonte.
Modelos passados de pensamento que consideraram os povos
como grupos fechados não são mais válidos. A classificação das
pessoas de outras crenças como pagãs, incultas, cafres e bár­
baras deve ser totalmente rejeitada. Antes de nós, uma história
de séculos de confrontos religiosos. Diante de nós, a chance
de paz, cooperação e diálogo. As tradições religiosas são úteis
de várias maneiras, mas o exclusivismo religioso é retrógrado.
Temos de viver num mundo em que há hindus, budistas, cris­
tãos, muçulmanos, siques, jainistas, confucionistas, taoístas,
xintoístas etc., grandes comunidades possuidoras de grandes
crenças. A fidelidade às nossas respectivas tradições não deveria
minar nossa lealdade para com a humanidade. Atualmente, as
religiões mundiais têm a oportunidade e a responsabilidade de
cooperar umas com as outras na promoção da unidade humana
e da paz mundial.
Os adeptos das diferentes crenças, na qualidade de cidadãos
nesta Terra, compartilham o mesmo planeta. Garantir a conti­
nuação da raça humana, preservar os recursos da Terra para a
posteridade e enriquecer a qualidade de vida de todos os seres
humanos constituem responsabilidade comum de todas as re­
ligiões. As religiões mundiais já contribuíram com profundas
percepções sobre esses e outros temas. É maravilhoso poder
auferir o benefício de qualquer coisa que seja verdadeira, bela
e boa, seja onde for encontrada. Para construir um mundo
K.LSeshaolrlRao

melhor, é necessário conhecimento e cooperação entre os povos


de diferentes religiões.

Patrimônio religioso dos seres humanos


Santos, sábios e profetas de diferentes tradições religiosas
trabalharam para o bem e felicidade de todos. A compaixão é a
rainha das virtudes puras. Tem em vista todos os seres huma­
nos, mesmo todos os seres vivos. Os santos são mensageiros de
Deus. Eles vieram ao mundo em todas as épocas. São servos da
humanidade. Eles proclamam que a Realidade suprema é Una.
Eles falam de sua experiência direta da Verdade. Cada religião
tem uma longa sucessão de santos. São as fontes de sabedoria e
orientação para todos. Falam a linguagem do amor. São meigos
por natureza e seus corações são simples e honrados. Pregam
e praticam o amor e a harmonia entre os povos do mundo. Não
têm inimigos. Além disso, grandes personagens consagrados,
como Mahavira, o Buda, Sri Rama, Sri Krishna, Lao Tsé, Con-
fúcio, Moisés, Jesus Cristo, Maomé e o Guru Nanak, não são
propriedade exclusiva de qualquer país ou grupo: eles pertencem
à humanidade toda.

Herança cultural das Escrituras Sagradas


Igualmente, as Escrituras Sagradas de todas as religiões, os
Vedas, Tripitaka, Avesta, Tao Te Ching, Torá, Bíblia, Alcorão,
Guru Granth Sahib, constituem preciosos tesouros do patrimô­
nio cultural humano. Eles nos comunicam o conhecimento da
Verdade/Deus. As verdades espirituais que revelaram visam
toda a humanidade. Rigveda disse (1:89.1): “Deixemos que
pensamentos nobres venham a nós de todas as direções”. As
percepções magnânimas das diferentes Escrituras Sagradas
T eologia interconeessional: uma perspectiva hindu

deveriam tornar a vida e cultura humana mais rica e mais sa­


tisfatória. Deveríamos ser capazes de tirar proveito de qualquer
delas. Deveríamos agradecer a cada uma e a todas elas. As
Escrituras Mundiais - cada uma delas - é como uma árvore
florescente, cheia de folhas, flores e frutos. De acordo com a
habilidade e interesse dos buscadores, alguns pegam as folhas,
outros as flores e outros ainda os frutos. A fim de compreender
seus sentidos em níveis mais profundos, é preciso ter profundo
amor, sinceridade e abertura. Não deveriam ser exploradas para
fins egoístas e partidários. Nenhuma das Escrituras deveria ser
usada para solapar outras.

Visão de paz
Potencial para a paz existe em todas as religiões; essas po­
tencialidades são importantes fontes para uma sociedade justa.
A aspiração essencial das tradições de fé é a liberdade, recon­
ciliação e paz. Gita diz: “Não existe felicidade para aqueles que
não têm paz”. A exortação védica diz: “Não fira nenhum ser
humano”. A crueldade para com os seres humanos é a negação de
Deus. Buda nos ensinou: “Deixemos que o homem vença a raiva
com o amor, o mal com o bem, a ganância com a liberalidade e
a mentira com a verdade”. Jesus Cristo declarou: “Ame seus ini­
migos, abençoe aqueles que o amaldiçoam, faça o bem àqueles
que o odeiam e reze por aqueles que o usam maliciosamente”.
No Alcorão está afirmado que, se for bom e bondoso com seu
próximo na Terra, Alá será benevolente no Dia do Julgamento
Final, e o profeta do Islã declarou que, “aquele que escava um
fosso para seu irmão, acaba por cair dentro dele”. Certa vez,
Mahatma Gandhi observou: “É bastante fácil ser amigável com
seus amigos. Mas ajudar como amigo alguém que se considera
seu inimigo é a quintessência da religião. O outro não passa
K.l.SeshagiriRao

de mera transação”. As religiões do mundo podem e devem


conduzir a humanidade para uma sociedade criativa, dinâmica
e não violenta. São necessários esforços morais comuns numa
escala global para resolver os problemas da fome e da doença,
da violência e da guerra.

Verdade espiritual
A verdade espiritual e os valores não estão restritos ao Orien­
te ou ao Ocidente, a esta ou àquela tradição. Todas as literaturas
espirituais glorifícam a Verdade e iluminam a mente. A realiza­
ção da Verdade é o bem supremo da vida. Todos devem prestar
homenagem à Verdade. As ciências estudam o mundo natural.
Nenhum ramo particular da ciência reivindica o monopólio da
sabedoria para si mesmo nem disputa sua superioridade sobre os
demais. As reügiões exploram o mundo espiritual. Elas também
devem ser vistas como complementares e suplementares entre si.
A verdade pode ser observada de muitas perspectivas. De
fato, a plenitude da Verdade é mais ampla e profunda do que sua
compreensão pelas religiões históricas. Os valores espirituais
são temas genuinamente humanos. Temos de elevar nossas
mentes e consciência acima do nível conceituai para o nível
espiritual a fim de encontrar nossa unidade humana comum.
Cada religião e cada cultura possui seus próprios méritos. Por
exemplo: a não violência no Janaísmo, a compaixão no Budismo,
a espiritualidade no Hinduísmo, o ecumenismo do Siquismo, a
fraternidade do Islamismo, a caridade e amor do Cristianismo
e a humanidade do Confucionismo são valores grandiosos. Eles
não contradizem uns aos outros. Eles expressam as belas di­
mensões da Verdade. Ensinam a adesão a certos valores morais,
espirituais e humanos. A espiritualidade não separa as pessoas,
ela nos conduz para os domínios mais profundos e amplos da
Teouxha iwtercowfessional: uma peuspcctiva hindu

Verdade. O caminho para a Verdade é o amor. Todas as tradi­


ções valorizam as virtudes simples, como pureza, honestidade,
caridade, coragem, contentamento e ajuda.
As tradições religiosas têm sido forças importantes para mol­
dar a sociedade humana. Elas formaram nossos ideais morais
e valores, influenciaram nossas instituições sociais e costumes
e também afetaram nossa arte, arquitetura, música, dança etc.
Em diferentes épocas da história, proporcionaram continuidade
e estabilidade para a ordem social existente e, em outras, como
forças revolucionárias efetuaram mudanças radicais em nossas
sociedades. Embora tenham se desenvolvido distintamente em
diferentes culturas, alguns de seus pensamentos e práticas ad­
quiriram valorização e aceitação global. Por exemplo: a prática
da meditação e da ioga não se limita mais aos hindus e budistas,
nem a ajuda aos pobres e doentes está restrita aos cristãos. Da
mesma forma, a prática do jejum e da prece não se restringe aos
muçulmanos. Todos os seres estão interconectados, qualquer
coisa que seja exaltação para um é benéfico para todos.
A vida espiritual da humanidade é alimentada pelas reve­
lações divinas. O Guru Nanak diz que há numerosas estações
do ano emanando do Sol. As grandes religiões do mundo, cada
uma em sua própria esfera, sustentaram os corações e mentes
dos povos por períodos extensos. Elas manifestam a riqueza
do patrimônio cultural religioso do homem. Há um sabor de
Divino em toda tradição. Cada uma tem uma mensagem e
individualidade; cada uma apresenta a seu modo soluções para
os problemas da vida. Elas estão relacionadas com os diversos
modos da humanidade e caminhos alternativos de vida, e ne­
nhuma é superior ou subordinada à outra. Deus pertence a todos
e todos pertencem a Deus. Todos devem ser respeitados. Cada
religião é uma força civilizadora na história da humanidade.
Todas afirmam que a vida prática não é completa em si mesma.
H L Seshadiritoo

Elas olham além da vida de fenômenos. O pensamento védico


tem apreciado e compreendido a fé em suas várias formas e
permitido que cresçam e floresçam lado a lado para o bem da
humanidade.
O sincretismo à luz de
uma teologia interconfessional
algumas notas preliminares

A fo n so M a r ia L igorio S o a r es

Já podemos vislumbrar um paradigma pluralista global atu­


ando numa teologia da libertação multirreligiosa. Talvez esse
novo horizonte comece a desembocar numa teologia interfaith
(interconfessional) ou até mais: numa teologia transfaith ou
transrreligiosa. Poderá ajudar no processo se esse novo discurso
declarar uma espécie de moratória ou permanente suspensão
de juízo acerca dos novissimus e apostar no urgente pagamento
de nossos débitos antiquíssimos para com os pobres do plane­
ta. Nesse patamar, seria viável, então, depositar nossa melhor
energia em considerar a realidade dos hibridismos culturais e
religiosos na perspectiva de uma teologia interfaith ou de bor-
derland theologies.
Em sintonia com a teologia afro e as várias teologias que
partem da experiência autóctone, o problema de uma teologia do
sincretismo parece pertencer ao cerne mesmo dessa nova confi­
guração teológica. Tentarei dizê-lo da forma mais esquemática
possível, pois já tratei do tema anteriormente.1 Meu ponto de

1 SOARES, Afonso M. L. Valor teológico do sincretismo numa perspectiva de


teologia pluralista. In: VIGIL, J. M.; TOMITA, L. E.; BARROS, M. Teologia
liberadora intercontinental dei pluralismo religioso. Quito: Abya Yala, 2006. p.
77-91.

BB
0 SINCBETISMO A LUZ DE UMA TEOLOGIA INTERCONFESSIONAi:ALGUMAS NOTAS PRELIMINARES

partida é que o sincretismo é parte irrecusável da história dos


encontros e desencontros entre o divino e o humano. Se algum
lugar couber à categoria “revelação” na vindoura teologia inter-
faith, será preciso reconhecer que o sincretismo é a revelação
de Deus captada em seu “durante”, no momento mesmo em que
está acontecendo, e que, justamente por isso, não suporta defi­
nições dogmáticas e/ou inferências cabais. Seja Deus evidente,
misterioso ou simplesmente problemático, não há outra maneira
de a ele acedermos senão aos poucos, fragmentariamente, entre
avanços e retrocessos, entre luzes e penumbra. Quem sabe haja
outra maneira de (re-)conhecê-lo que dispense analogias, teste­
munhos e intercâmbio inter-religioso, mas certamente não será
esta uma maneira humana e histórica de encontrá-lo.

I. Insuficiência e ambivalência dos term os


- sincretismo e teologia in te r f a ith
Já discuti em outros trabalhos a existência de muitos termos,
nem sempre unívocos, para dar conta da experiência cotidiana
do sincretismo.2Fala-se de ecumenismo ou macroecumenismo,
diálogo inter- e/ou intrarreligioso, inculturação ou contextua-
lização, interculturização, hibridismo e até inreligionação.
Embora eu continue preferindo a palavra sincretismo - numa
tentativa talvez inglória de resgatá-la do uso pejorativo a que foi
reduzida para denominar as interações entre a espiritualidade
romano-católica e a espiritualidade tradicional africana - , no
fundo será válido qualquer termo que consiga ser entendido pelo
leitor como condutor da seguinte mensagem:

2 SOARES, Afonso M. L. No espirito do Abbá; fé, revelação e vivências plurais.


São Paulo: Paulinas, 2008.
Afonso Maria Liqorio Soares

Toda religião transforma-se a partir de dentro, no contato


com as demais; é preciso deixar a religião transformar-
-se no ritmo das crises, descobertas e intercâmbios que
realiza com as demais. Nesse processo as pessoas não
precisam apostatar ou sair de suas religiões de origem.
Uma comunidade religiosa deixa-se tocar por outra fé ou
sistema de crenças, assimilando o que lhe parece fazer
mais sentido e descartando o que não lhe convém; ela
inreligiona o que pode ou quer acolher da nova tradição
que lhe chega de fora.

Por isso, não é absurdo que muitos praticantes da tradição


dos orixás, da Umbanda, do Xintoísmo, do Hinduísmo ou de
outras variáveis religiosas da Europa ou da África, sintam-se
sinceramente cristãos sem precisar abrir mão de seu patrimônio
espiritual anterior. Acolheram (talvez à força, a princípio) em
suas tradições de origem o enxerto de outra tradição espiritual,
foram expurgando o que lhes parecia desumano ou sem sentido,
misturaram o que não mostrava ter muita importância e finda­
ram por manter intacto o que julgaram que pudesse beneficiar
e enriquecer a sua própria cosmovisão originária. Para mim,
doa a quem doer, isso é nada mais nada menos que sincretismo.
Mas a ambivalência vai além do termo em questão. Também a
expressão “interfaith theology” não está livre de mal-entendidos.
Uma rápida busca pela web é suficiente para listar uma série
de usos que, acredito, estão distantes dos propósitos da visão
pluralista deste livro.
Alguns cursos de Interfaith Theology oferecidos visam
avaliar o nível de introspecção e sabedoria de outras tradições
religiosas, olhando com cuidado o que pode ou não “ser aco­
modado em nosso próprio projeto teológico”.3 Quatro áreas

3 Cf. <http://www.hartsem.edu/>.
0 SINCRETISMO ALUZ DE UMA TEOLOGIA INTERCONFESSIONAI.: ALGUMAS NOTAS PRELIMINARES

principais são exploradas: revelação, natureza humana, criação,


e sociedade. Mas os objetivos não ultrapassam o arco da teologia
comparativa. No outro extremo, abundam os sítios de sabor new
age, que parecem deter-se no simples relativismo de que “tudo
dá na mesma”.
Também há quem aposte em um novo tipo de teologia da
libertação, que liberte as religiões de suas instituições4 em
nome de uma teologia interfaith da transformação. Nessa pers­
pectiva, exalta-se, por exemplo, o potencial curativo da religião
tradicional africana, dada sua espiritualidade secular, baseada
nos valores dos povos. Ela é holística, não separa o espiritual
do que é vital, não tem nenhuma estrutura religiosa, nenhum
sacerdote, nenhuma propriedade, nenhuma Igreja, nenhuma
denominação diferente para competir no mercado religioso,
mas aponta para os valores éticos e para um poder maior que
ela mesma. Um enxerto recíproco entre tal cosmovisão e a in-
trospecção profética geraria suculentos frutos.5
Mas algo definitivamente não vai bem com nossa opção por
este termo - o interfaith - quando um autor renomado como
Gerald 0 ’Collins o escolhe para explicar “a estrutura trinitária

4 MAYSON, Cedric. A New Kind ofLiberation Theology: LiberatingReligions From


TheirInsfitutions. Disponível em: <http://ilrs.Org/faith/f2k5.4.html#article%20
3>. Acesso em: 28 set. 2007. Para este autor, não há nessa opção interfaith nada
muito diferente do que os antigos profetas hebreus já pregavam, “antes mesmo que
as religiões tivessem sido inventadas”, ou seja, que as comunidades carecem de
comportamento ético: amor, cuidado, honestidade, verdade, justiça e humildade.
“Os valores”, conclui, “vieram antes das religiões.”
5 “We can expect a positive comprehensive inter-faith theology to provide tools for
transforming people. Assisting one another as comrades in a struggle with major
issues will fortify our communities with a spiritual strength many have never
known” (MAYSON, Cedric. A South African Experience o f Politics, Religion
and Civil Society. Disponível em: <http://ilrs.Org/budapest/budapest.html#za>.
Acesso em: 28 set. 2007.
Afonso Maria üqorio Soares

da teologia ecumênica e interfaith de João Paulo II”.6 Não é


desprezível, portanto, o potencial de mal-entendidos que estão
prestes a vir à tona e merecem extremo cuidado de nossa parte.

2. A teologia in te r f a ith terá de


assumir com o um de seus temas
principais a natureza híbrida
das experiências religiosas
A realidade do sincretismo e das múltiplas pertenças ou
trânsitos religiosos é hoje inevitável neste planeta cada vez mais
globalizado, e eletronicamente “enredado” (web). Não são mais
estranhas a ninguém façanhas como a de Dona Maria, uma ex-
-católica que, ao enviuvar, torna-se pentecostal e, depois, acaba
por voltar-se para o Espiritismo a fim de tratar de sua enxaqueca.
Eis um trecho de seu depoimento:

Todas as religiões são boas, porém , um a para cada oca­


sião. Para alguém sem problema na vida, a religião m elhor
é a católica; basta venerar os santos, ir à m issa quando
se quer, e ninguém vai perturbar v o cê. Q uem em v e z
tiver problem a de dinheiro, o m elhor a fazer é procurar
os crentes, porque eles nos ajudam com o irmãos; só que,
infelizm ente, eles não deixam a gente beber, fumar, dan­
çar, não se pode fazer nada. A gora, para quem sofre de
dor de cabeça, a religião m elhor é a dos espíritas; ela é
exigen te com as p essoas, não se pode faltar nas reuniões,
m as cura prá valer. Se D eu s quiser, quando estiver curada,
eu volto para o ca tolicism o.7

6 0 ’COLLINS, Gerald, SJ. Living Vatican II, the 21st Councilfor the 21st Century.
Mahwah, NJ: Paulist Press, 2006.
7 RIBEIRO DE OLIVEIRA, P. A. Coexistência das religiões no Brasil. Vozes 11/7
(1977)38.
0 SINCRETISMO A LUZ DE UMA TEOLOGIA INTERCONFESSIONAL: ALGUMAS NOTAS PRELIMINARES

O exemplo de Dona Maria faz pensar: como foi que o Cato­


licismo se deixou interpretar como religião dos “sadios, ricos e
bons”, isto é, dos “sem-problemas na vida”? Com certeza, a falta
de uma adequada hermenêutica do sincretismo tem impedido
que o Catolicismo enfrente com coragem a provocação desses
milhares de Marias-com-problema-na-vida, e assim não consi­
ga, por falta de uma teologia mais conseqüente, uma resposta
mais eficaz à questão. Contudo, é bem mais freqüente hoje em
dia o contato mais ou menos assíduo com diferentes “agências
religiosas”, embora oficialmente todos sejam iniciados ou ba­
tizados numa determinada confissão religiosa. Cada agência é
escolhida, ou não, segundo sua idoneidade para dar proteção
sobrenatural a seus clientes.
Exemplo muito afim ao sugerido pelo testemunho de Dona
Maria é o trânsito religioso protagonizado por “Alex”, confor­
me reportagem especial de há poucos anos no jornal brasileiro
Folha de S. Paulo.

[O rapaz] diz gostar muito de religião. Já foi católico de


fita de congregação, freqüentou tudo quanto é centro es­
pírita, de umbanda e candomblé (os quais adora, mas dão
muito trabalho) e foi obreiro de igreja pentecostal. Acha
que no budismo encontrou a verdadeira fé, fé mesmo,
como ele diz, pois nunca procurou religião por causa de
probleminhas. Gosta de meditar e pensa um dia tomar-se
monge, mas mora muito longe do templo e, como não tem
carro, acha inviável ir lá semanalmente. Vai só de vez
em quando. Seria o mais feliz dos homens se abrissem
um templo budista por perto, já que não pode se mudar,
por causa da família e do emprego. Enquanto isso, está
freqüentando um grupo católico carismático, no qual está
convivendo com gente muito legal e verdadeira.8

Caderno especial, 26 dez. 1999, p. 4.


Afonso Maria Liqorio Soares

Se há hoje uma modalidade de pesquisa e reflexão em con­


dições de colocar, para dentro da circunscrição teológica, a
pergunta suscitada pelas experiências sincréticas, esta será uma
teologia interfaith. E isso porque a teologia do sincretismo trata
exatamente disto: é possível a uma pessoa ou grupo social a
experiência concreta de viver simultaneamente mais de uma fé?
A dúplice resposta tradicional não é desconhecida. Em pri­
meiro lugar, em nome do princípio de não contradição, sempre
soubemos responder que há deficiência intelectual quando
se escolhem concomitantemente dois sistemas (noéticos) de
crença que sejam claramente distintos. Mas também é possível
admitir, sem grande abalo para as grandes tradições religiosas
ocidentais, que a pessoa em questão, tendo atingido certo nível
de profundidade espiritual, relativiza pendências conceituais
em benefício de clarividências éticas ou puramente místicas.
Nada disso é o que estamos perguntando aqui. Falamos de
uma opção espiritual consciente de quem pretende se servir
de noções conceituais irredutíveis entre si ou seguir rituais li-
túrgicos que conduzem a opções éticas não equivalentes. Para
descrever qualquer fenômeno menos radical, temos palavras
mais bem comportadas, como “ecumenismo”, “diálogo inter-
-religioso” e a já ortodoxa “inculturação”.

3. A teologia do sincretismo religioso


é uma teologia in te r f a ith ?
Quando se fala de teologia do sincretismo religioso, é possível
entender esse genitivo como complemento nominal ou como
adjunto adnominal. No primeiro caso, trata-se de um discurso
formalmente teológico, cujo escopo é construir juízos de valor
sobre os fenômenos sincréticos à luz de determinada mediação
0 SINCMTISMO k LUZ DE UMA TEOLOGIA INTERCONFESSIONAL:ALGUMAS NOTAS PRELIMINARES

hermenêutica (a cristã, por exemplo). Religiões monoteístas que


se pretendem universais e que fundamentam sua doutrina na
crença de que o mistério absoluto comunica-se com a relativi­
dade humana localizável no tempo e no espaço cedo ou tarde
terão de considerar teologicamente os eventuais benefícios e
limites de uma espiritualidade híbrida.
Mas o genitivo suporta uma segunda acepção - que, aliás,
deveria vir cronologicamente antes da que explicamos no pa­
rágrafo acima -, que consiste em reconhecer o sincretismo de
fato, procurando estudar sua lógica interna. O primeiro benefício
dessa abordagem desapaixonada é driblar inevitáveis confusões,
graças à identificação de níveis distintos na própria acepção do
conceito, que revelam diferentes graus de aproximação e de troca
entre sistemas culturais. Pode haver convergência, por exemplo,
entre idéias africanas e de outras religiões, sobre a concepção
de Deus ou sobre o conceito de reencarnação; paralelismo nas
relações entre orixás e santos católicos; mistura na observação
de certos rituais xintoístas por uma família de nisseis e san-
seis católicos ou nas cerimônias do santo-daime amazônico,
e separação em rituais específicos não assimilados por outras
religiões, como a consagração na missa católica e o tambor de
choro ou axexê nos terreiros afro.9
Identificar a(s) teologia(s) subjacentes aos fenômenos de
hibridismo cultural e religioso é o que se espera das subdiscipli-
nas que compõem a ciência da religião (psicologia da religião,
história das religiões, antropologia da religião etc.). Esse cuida­
do prévio livrará o teólogo de apologias ingênuas das práticas
sincréticas vividas historicamente por povos latino-americanos,
africanos ou asiáticos, que tantas vezes foram fruto da maneira

9 Baseio-me na classificação proposta por S. F. FERRETTI (Repensando o sin­


cretismo. São Paulo: Edusp, 1995. p. 91).
Afonso Maria Llqorio Soares

violenta com que o Cristianismo e/ou o Islamismo se impuseram


aos povos autóctones. Sob tais condições, só restava às pessoas
hábitos enviesados, camuflados e fragmentares de suas tradições
de origem.
Até aqui, porém, não estaríamos propriamente no âmbito de
uma reflexão interfaith. Uma teologia do sincretismo religioso
poderá julgar de forma mais ou menos inclusiva os resultados
aferidos pela ciência da religião, sem com isso se deixar provo­
car e modificar pelos dados descritos. Poderá mesmo rejeitá-los
como incompatíveis com a fé cristã. O que fará toda a diferença,
mais uma vez, é a prática. E esta já vem encetando, a duras
penas, um novo caminho.
É o caso, por exemplo, de líderes cristãos oriundos do movi­
mento negro que, ao optarem por resgatar suas tradições religio­
sas e reafirmar sua identidade cultural, veem-se no epicentro de
experiências sincréticas. Até que ponto esse militante cristão se
permite avançar na busca de suas autênticas raízes africanas? É
possível ser, ao mesmo tempo, um negro consciente e católico?
A mesma questão emerge atualmente em qualquer parte do
mundo, na encruzilhada das mais diferentes religiões: posso
ser aimara e cristão, hindu e seguidor do Evangelho, chinês e
iniciado no Candomblé, banto e crente na ressurreição, judeu
e recitador do Corão?
Para construirmos uma conseqüente teologia do sincretismo,
é preciso levar a sério os dados fornecidos pela ciência da reli­
gião, a saber, que tais conexões interculturais e inter-religiosas
são vivências cotidianas e não produtos artificiais do capricho de
algum@s teólog@s. O fato novo aqui será a eventual constata­
ção de que as categorias tradicionais cristãs não dão mais conta
do que se descobrirá no redemoinho formado pela confluência
de diferentes mares de espiritualidade.
0 SINCRETISMO A LUZ DE UMA TEOLOGIA INTERCONFESSIONAL: ALGUMAS NOTAS PRELIMINARES

4. A teologia in te r f a ith aprende do


sincretismo que não há etapas
rumo a esta ou àquela religião
total, pois nenhuma fé ou religião
esgota o Sentido da Vida
Uma experiência híbrida pode ser sinal do desígnio divino
de se autocomunicar. Entre “falar-nos” e ser mal compreendido
ou calar, deixando-nos totalmente às cegas, várias religiões são
unânimes em afirmar que a divindade optou por dizer-nos algo,
apesar do risco. Desse modo, o sincretismo poderia consistir
numa bem-vinda terapêutica para certas escleroses dogmatistas
das religiões monoteístas. Ele toma evidente, imediatamente,
onde está o problema teológico básico dessas tradições: a re­
velação de Deus comporta claríssimas ambigüidades, erros e
contradições que são inevitáveis graças à nossa maneira humana
de aceder à Verdade.101Do contrário, já não haveria comunicação
por falta de um dos interlocutores no diálogo. E como já disse
5. Vasconcelos, em feliz formulação: “A teologia que leva em
conta o sujeito gagueja por honestidade intelectual”.11
Pois bem, como ler teologicamente as experiências sincréti-
cas? Proponho uma nova categoria que talvez possa ser útil para
entender o que está acontecendo conosco e à nossa volta. Uma
teologia pode fazer o esforço de pensar uma situação entre as
fés ou uma fronteira comum ainda livre das demarcações reli­
giosas institucionais. Que tipo de fé, entretanto, está disponível
nessas borderlands? Eu a chamo de fé sincrética. Como vimos

10 Cf. SEGUNDO, J. L. O dogma que liberta. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 2000. p.
141-144.
11 Cf. Relatório do Fórum Ecumênico Internacional - França, Alemanha, Brasil.
“Arriscar a fé em nossas sociedades” (Belo Horizonte, de 7 a 12 de abril de 2003).
Afonso Maria Lioorio Soares

anteriormente, uma teologia mais arejada não se furtará a re­


conhecer, com o auxílio da ciência da religião, a condição e os
condicionamentos radicalmente humanos do acesso a qualquer
fé, religiosa ou não.
A fé sincrética é absoluta quanto aos valores fundamentais
que estão em jogo na escolha aparentemente contraditória dos
significantes religiosos (dimensão fé), mas é relativa quanto aos
resultados efetivamente atingidos (dimensão ideológico-sincré-
tica). Pode-se falar, portanto, de fé sincrética para identificar o
modo mesmo de uma fé “concretizar-se”. De fato, não existe fé
em estado puro: ela se mostra na práxis.
É possível, a título de comparação, ensaiar uma aproxima­
ção entre fé sincrética e fé inculturada. O que as distancia é
uma diferença de trajeto, ou seja, o ponto de vista de onde se
observa a invenção religiosa popular. Uma comunidade cristã
propõe-se a inculturar ou inreligionar a mensagem evangélica,
o povo responde, acolhendo a “novidade” de acordo com suas
reais estruturas significativas, e o saldo será imprevisível em
termos de confissão religiosa.
Dizer fé inculturada é pressupor um dado transcendente, um
valor absoluto finalmente garantido pelo Ser Absoluto acolhido
na fé. Presumindo que tal verdade esteja sob sua custódia, a
comunidade de origem dá o passo de comunicá-la para além
das fronteiras originais. Mas quando afirmo a fé sincrética,
saliento que a autocomunicação divina já está agindo nas várias
tradições culturais antes do, contra ou mesmo apesar do contato
com as comunidades de origem - no caso ocidental, as cristãs.
A própria tradição cristã o intui em diversos momentos, como
quando recorda as palavras do Mestre: “Na casa de meu Pai há
muitas moradas”.
0 SINCRtTISMO A IU Z DE UMA TEOMGIA IHTEUCOWFESSIOWAL: ALGUMAS MOTAS PRELIMINARES

5. A teo lo g ia interfaith e seu D N A


Ressalte-se que, se estamos na iminência de atingir um novo
patamar do discurso teológico, é preciso reconhecer nossa dí­
vida para com a teologia cristã contemporânea: a redescoberta
de que a revelação divina é um processo histórico, com etapas
que têm seu sentido próprio (Dei Verbum, n. 15: a pedagogia
divina), mas não são definitivas. Nesse processo, o povo bíblico
(autor@s e comunidades leitoras) sempre procurou modular em
linguagem humana o sopro e as ressonâncias do divino misté­
rio. Daí decorrem a força e a fraqueza do umbral cristão: este
depende intrinsecamente de uma experiência ineludível que só
tem sentido se o indivíduo a fizer por si mesmo. Nem é garan­
tido que o resultado deva necessariamente configurar-se como
uma comunidade nitidamente cristã (ao menos nos moldes em
que a podemos descrever hoje). Mesmo que o fosse, isso não
eliminaria a inevitável ambigüidade da tradução concreta desse
encontro, ou seja, da nossa espiritualidade cotidiana.
Esse processo ambivalente não é defeito; nossa perfeição
consiste em sermos imperfeitos, inacabados, improvisáveis, não
fechados de forma determinista. Do contrário, nem humanos
seriamos. Por isso, as experiências sincréticas, apesar das ine­
vitáveis ambigüidades que acompanham qualquer biografia ou
processo histórico, são também variações de uma experiência
de amor. E se faz parte da revelação também a maneira como os
povos foram chegando aos dogmas, isto é, em meio a avanços e
retrocessos, gestos amorosos e pecaminosos, o sincretismo só
pode ser a história da revelação em ato, pois consiste no cami­
nho real da pedagogia divina em meio às invenções religiosas
populares.
A teimosia/ousadia sincrética não quer largar nenhum de seus
amores - é católica e candomblezeira; acredita em reencarnação
Afonso Maria Liqorio Soares

e não perde missa dominical; cultua os antepassados e luta


evangelicamente contra as injustiças; faz viagem astral e segue
a via crucis. Que teologia daria conta de traduzir conceituai e
adequadamente uma experiência como essa? Tal pergunta já
pode ir sendo feita, mas não precisamos ter pressa em batizar
as múltiplas experiências religiosas que vamos fazendo, pois
elas já são válidas e têm seu lugar na surpreendente mandala de
respostas à autocomunicação de quem nos amou por primeiro.
Sem confundir o rolo compressor eclético do “tudo cabe” com
a intuição universal e pluralista de que “todos cabem”.
Portanto, não devemos nos iludir achando que teria sido pos­
sível vir à tona a proposta de uma teologia inter ou transconfes-
sional se não fossem os passos prévios dados pelo pensamento
ocidental. A pergunta e as dificuldades de uma “teologia nas
entrefés” só fazem sentido no caudal monoteísta trinitário que
nos gerou. Por isso, como filhos da horda primitiva que preci­
sam matar o pai primordial e só conseguem fazê-lo quando o
devoram e assimilam, assim estamos nós no século XXI, pre­
ocupados em superar o asfíxiante sistema de crenças ocidental
por meio de antídotos que esse mesmo sistema desenvolveu.
Creio que essa última consideração sela o limite além do qual
não poderemos avançar sem banalizar a própria busca. O pro­
jeto teológico interfaith assinala uma encruzilhada. Não parece
epistemologicamente difícil avançar na proposta de uma ética
(H. Küng) ou ethos (L. Boff) mundial. E será sempre simpático
enveredar por um caminho místico que supere as demarcações
teo-lógicas (R. Panikkar). Também é fácil descartar pastiches
de pluralismo religioso como os propagados pelo rentável filão
de blockbusters, como a série Matrix.
Mas talvez ainda nos retenha do lado de cá a velha e surrada
noção de verdade. Um autor assumidamente interfaith como J.
M. Sahajanada propõe-nos que “truth cannot be defined because
0 SIMCBETISMO A IU Z DE UMA TEOLOGIA INTERCONFESSIONAL ALGUMAS NOTAS PRELIMINARES

every definition of the truth is like a tomb and only the dead are
put into tombs”.12 Entender isso é avançar pelos caminhos da
sabedoria, pois “wisdom is bom of a virginal mind, in which
the power of knowledge is silenced”.13 De outra parte, uma
linguagem apta a furar bloqueios meramente ideológicos ou
axiológicos é a eficiente linguagem científica. Inábil para nos
dizer a verdade cabal, ela pode, sim, desmascarar pretensas ver­
dades e superar impasses que as viseiras religiosas e dogmáticas
não conseguem destrinçar sem anátemas ou derramamento de
sangue.
O que virá a seguir pode significar uma nova aliança entre
religião e ciência, entre a teologia e a ciência da religião. Realida­
des como as vivências espirituais sincréticas estão literalmente
rompendo diques e tornando porosas fronteiras onde pode estar
nascendo uma nova possibilidade de nos reeducarmos como
seres humanos.

12 “A verdade não pode ser definida porque cada definição da verdade é como um
túmulo e somente os mortos são postos em túmulos”: SAHAJANADA, John
Martin. You Are the Light; Rediscovering the Eastem Jesus. Winchester, UK: O.
Books, 2006. p. 813.
13 “A sabedoria nasce de uma mente virginal, em que o poder do conhecimento é
silenciado” (Ibid., p. 149).
Marcos de uma mística
inter-religiosa

F a u st in o T e ix e ir a

In tro d u ção
Em sua etimologia, a palavra mística deriva de myein: fechar
os olhos ou cerrar os lábios. O místico é alguém que vive a ex­
periência do mistério, é o sujeito de uma experiência que tem
o mistério como objeto. Inicialmente, o termo mystikòs vem
utilizado como adjetivo, e só em torno do século XVII ganha a
sua acepção de substantivo.1É a partir de então que se começa
a falar em linguagem mística, como linguagem nova e singular.
No vocabulário cristão, a mística vai designar um modo peculiar
de conhecimento de Deus, distinto do conhecimento comum,
marcado pela força de uma Presença que excede a capacidade
de expressão. Definições distintas de tal experiência foram
sendo fornecidas ao longo da história: “Cognitio Dei experi-
mentalis” (Tomás de Aquino); a “união interior de Deus com a
alma” (Angelus Silesius); “notícia amorosa de Deus” (João da
Cruz); “experiência fruitiva do Absoluto (Jacques Maritain).
Vale assinalar a força de dois termos essenciais que envolvem
esse modo singular de acesso direto ou imediato ao Mistério e

1 CERTEAU, Michel de. “Mystique” au XVII siècle. Le problème du langage


“mystique”. In: W . AA. L 'homme devant Dieu. Mélanges offerts au Père Henri
de Lubac. Paris: Aubier, 1964. v. II, p. 267-291.
M arcos de uma mística inter- religiosa

ao Real: a experiência e a presença. Em seus sermões sobre o


Cântico dos Cânticos, Bernardo de Claraval assinala que é no
“livro da experiência” que se dá o acesso ao mistério de Deus.
A seu ver, é através da “experiência” que a inteligência humana
pode aceder a campos mais profundos da compreensão.2 Tes­
temunhos importantes sobre a força dessa experiência foram
dados por místicos de diversas tradições religiosas. A pensa-
dora francesa Simone Weil descreve em carta autobiográfica a
pungente experiência de Deus que teve em Solesmes, no ano
de 1938: “Cristo mesmo desceu e me tomou”.3 E igualmente
0 místico-poeta nicaraguense Ernesto Cardenal: “Tu também
entraste velozmente dentro de mim, e minha alma indefesa
querendo tapar suas vergonhas”.4Fala-se também em “presença
de Deus”, como no belo relato de Teresa de Ávila:

Vinha-me de súbito, na representação interior de estar


ao lado de Cristo, de que falei, tamanho sentimento da
presença de Deus que eu de maneira alguma podia duvi­
dar de que o Senhor estivesse dentro de mim ou que eu
estivesse toda mergulhada nele. Não se tratava de uma
visão; acredito ser o que chamam de teologia mística: a
alma fica suspensa de tal modo que parece estar fora de
si; a vontade ama, a memória parece estar quase perdi­
da, o intelecto não discorre, mas, a meu parecer, não se
perde; entretanto, repito, também não age, ficando como
que espantado còm o muito que alcança, porque Deus lhe
dá a entender que ele nada compreende daquilo que sua
Majestade lhe representa.5

1 CLARAVAL, Bernardo de. Sermoni sul Cântico dei Cantici. Roma: Edizioni
Vivere in, 1996. v. 1, p. 53 e 230 (sermões 111,1,1 e XX,I,2).
3 WEIL, Simone. Attente de Dieu. Paris: Fayard, 1966. p. 45.
4 CARDENAL, Ernesto. Telescópio en la noche oscura. Madrid: Trotta, 1993. p.
67.
5 TERESA DE JESUS. Livro da vida 10,1. In: Obras completas. São Paulo: Loyola,
1995. p. 70.

QQ
FaustinoTeixeira

Os místicos de todas as tradições têm uma consciência muito


clara de que o mistério abissal e inalcançável em sua totalidade
supera e transborda sempre a experiência. Por mais que se esfor­
cem para expressar a experiência, a fala é pobre e insuficiente
para traduzir a riqueza experimentada. O que ocorre muitas
vezes é que eles precisam “atormentar as palavras”, “desnaturar
a língua”, para poder descrever, ainda que limitadamente, a força
de uma presença iluminadora.
Sem negar a singularidade e especificidade que marcam
as diversas tradições religiosas, há que reconhecer a presença
de “grandes semelhanças e analogias ao nível da experiência
religiosa”.6 São semelhanças que não apagam as diferenças,
e que resguardam o espaço de uma experiência que é sempre
única. Mesmo no âmbito da profundidade espiritual há sempre
o que partilhar com o outro. Daí a grande dificuldade de julgar
a experiência espiritual dos outros, de relativizá-las, ou situá-las
em degraus de inferioridade. É extremamente complexo querer
interpretar uma determinada experiência religiosa ou mística
fora de uma sintonia fina com a mesma. Há que ter grande de­
licadeza espiritual para poder se aproximar de uma experiência
religiosa distinta. Isso vale também para o ajuizamento dos
rituais religiosos diferenciados. Eles sempre dizem respeito a
uma “experiência primordial” e sua reatualização. São rituais
que não transmitem um mero conhecimento, mas sobretudo uma
experiência. Como mostrou com acerto Amaladoss, “alguém
que não tenha tido a experiência e que a está procurando fora da
tradição talvez não a consiga interpretar de modo autêntico”.7
Simone Weil foi muito criticada por determinados teólogos
católicos por ter afirmado que “os místicos de quase todas

6 MERTON, Thomas. O diário da Ásia. Belo Horizonte: Vega, 1978. p. 245.


7 AMALADOSS, Michael. Pela estrada da vida; prática do diálogo inter-religioso.
São Paulo: Paulinas, 1996. p. 30 (também, p. 87-88).
Marcos de uma mística ihter- religiosa

as tradições religiosas coincidem quase até a identidade”.8


Contrapondo-se à autora, e também aos defensores de uma fi­
losofia perene, que buscam firmar a “unidade transcendente das
religiões”, o teólogo Henri de Lubac buscou sublinhar o dado da
“diferença qualitativa” que separa as outras tradições religiosas
com respeito à tradição cristã.9 Em obra clássica sobre o Cato­
licismo, De Lubac reconhece que mesmo fora do Cristianismo
a humanidade conseguiu alçar, “por exceção”, a vértices espi­
rituais. Mas por força de sua “teologia do acabamento” levanta
questionamentos à caridade budista e à mística hindu. Em sua
visão, os mais belos e poderosos esforços humanos precisam
ser “fecundados pelo Cristianismo para produzirem frutos de
eternidade”.10
Não há como negar a diferença entre as tradições religiosas,
bem como as peculiaridades que distinguem a experiência e a
interpretação do Mistério realizadas pelos místicos das distintas
religiões. Há, porém, que recuperar as “equivalências ocultas” e
destacar as “profundas semelhanças” que irmanam os místicos
em sua trajetória na busca do Real. Reconhecer as diferenças
não significa apagar a “intensa confraternidade” que subjaz nas
experiências vivenciadas. Este é o grande desafio que anima
aqueles que acreditam numa mística comparada e na possibi­
lidade de uma mística inter-religiosa, ou mesmo numa mística
para além das religiões.

s WEIL, Simone. Lettre à un religieux. Paris: Gallimard, 1951. p. 53.


9 LUBAC, Henri de. Prefazione. In: RAVIER, André (ed.). La mística e le mistiche.
Milano: San Paolo, 1996. p. 22.
10 LUBAC, Henri de. Catholicisme; les aspects sociaux du dogme. Paris: Cerf,
1947. p. 186. Em semelhante linha de reflexão, o teólogo beneditino Anselm Stolz
(1900-1942) afirmava que só na Igreja Católica romana poderia frutificar uma
verdadeira mística, não havendo medida de comparação entre a mística cristã e
as demais: STOLZ, A. Teologia delia mistica. Brescia: Morcelliana, 1940.
Faustino Teixeira

A mística com o experiência do Real


Na busca de uma pista positiva para o acesso à compreensão
de uma mística inter-religiosa, o conceito de Real surge como
altamente proveitoso. E o autor que aparece aqui como luz para
a reflexão é Raimon Panikkar, o teólogo e místico catalão que
muito contribuiu11 para o desenvolvimento de um enriquece-
dor debate no campo do diálogo-inter-religioso. Em trabalho
publicado em 2005, Panikkar assinala que a mística não é uma
especialização, mas uma “dimensão antropológica” que acompa­
nha a pessoa em todo o seu trajeto existencial.12O ser humano
está animado potencialmente pela capacidade de desocultar o
Mistério que habita na realidade, e de fazer irradiar esta expe­
riência para os outros, como as ondas que atingem as margens
de um lago. A mística vem por ele descrita como “a experiência
da realidade última”, “experiência integral da realidade”.13 A
categoria “realidade” (ou “Real”) vem escolhida em razão de
sua maior neutralidade e por seu potencial macroecumênico. A
realidade é o símbolo escolhido para traduzir o Tudo {to holon).
A experiência mística é, assim, uma experiência de integrali-
dade, que possibilita o acesso à realidade integral, que pode ser
nomeada de diversas formas: Deus, Tudo, Nada, Ser etc. Não
se trata de algo superficial ou de mera imediatez, mas de uma
inserção profunda no interior mesmo da coisa experienciada.
E isso não significa assunção do panteísmo, pois a experiência
mística toca apenas tangencial e contingencialmente a realidade.
O Mistério permanece aceso. O divino envolve toda a realidade,
mas a ultrapassa infinitamente.

11 Raimon Panikkar faleceu em 26 de agosto de 2010.


12 PANIKKAR, Raimon. L 'esperienza delia vita; la mistica. Milano: Jaca Book,
2 0 0 5 . p . 16.
13 Ibid.,p. 58 e 175.

m
M arcos de uma mística inter- religiosa

Por influxo da tradição cristã ortodoxa, mas também da


espiritualidade advaita indiana, Panikkar recorre à “intuição
cosmoteândrica” para expressar as três dimensões da realidade:
as dimensões divina, humana e cósmica. São três dimensões que
se interpenetram e revelam o enigma fundamental da relação.14
Essa visão advaita (a-dualidade) favorece uma percepção da
realidade que supera tanto o monismo como o dualismo e faz
surgir uma harmonia de relação e integração do transcendente
com o imanente. Para Panikkar, “a intuição advaita não consiste
em afirmar a unidade nem negar a dualidade, mas precisamente,
com uma visão que transcende o intelecto, reconhece a ausência
de dualidade na base de uma realidade que em si mesma carece
de dualidade”.15 A estrutura própria da realidade é dialógica
e harmônica. O ser humano participa de uma “aventura da
realidade” que envolve o transcendente e o imanente, que é
simultaneamente divina, humana e material.
O grande desafio consiste em despertar para essa realidade,
captar a diafania do outro mundo que permeia este mundo,
captar os pequenos sinais e a luz que resplende do interior mes­
mo das coisas. Faz-se necessário afinar o ouvido para o tempo
presente, realizar uma “escuta poética” de todo o cosmo. O dom
essencial da contemplação, como assinala Thomas Merton, é
acordar para a “infinita Realidade que existe dentro de tudo que
é real”.16É uma experiência que envolve tranqüilidade e atenção
permanentes. Não é algo que se restringe a poucos virtuosos,
mas está disponível a todo aquele que se disponha a atender ao
tempo, com sensibilidade e transparência. Em sua rica experiên­
cia na direção espiritual dos noviços trapistas em Gethsemani

14 IcL Entre Dieu et le cosmos. Paris: Albin Michel, 1998. p. 131-136.


15 Id. II dharma delVinduismo; una spiritualità che parla ao cuore delFOccidente.
Milano: BUR, 2006. p. 171.
16 MERTON, Thomas. Novas sementes de contemplação. 2. ed. Rio de Janeiro:
Fissus, 2001. p. 10.
faustinoTeixeira

(EUA), Thomas Merton sinalizava a íntima relação entre vida


contemplativa e vida ativa. O exercício da vida contemplativa
não era, para ele, nada de muito complicado, mas um dom de
viver simplesmente, de sentir a vida que flui, de avançar em
profundidade no grande mistério que habita o tempo. Em suas
reflexões para os noviços, dizia que a vida do contemplativo
“era simplesmente viver, como o peixe na água”.17
Na observação atenta da aragem da aurora, Merton con­
seguiu distinguir um “ponto virgem”, entre trevas e luz, que
traduz o segredo inefável da presença envolvente do mistério.
Na contemplação da noite, antes mesmo de a luz real povoar a
aurora, quando ainda os pássaros ensaiam os primeiros pios e
“a criação em sua inocência pede licença para ‘ser’ de novo”, o
místico trapista desocultou a presença do “ponto cego e suave”,
que habita o centro do ser e que identificou com a presença da
pura glória de Deus.18Trata-se do irredutível centro secreto do
coração. Para Merton, esse ponto de simplicidade, de inexprimí­
vel inocência, revela o segredo da autoconsciência, liberdade e
paz. Um ponto que desvela o “vasto e aberto segredo que lá está
para todos, que é gratuito e ao qual ninguém presta atenção”.19
A inspiração da imagem do “ponto virgem” ( )veio
do influxo do orientalista francês Louis Massignon, estudioso
da mística sufi. Na psicologia mística do Islã, em particular no
pensamento de al-Hallaj, o “ponto luminoso” e primordial traduz
a profundidade mística do conhecimento do Real (al-Haqq).
Esse ponto representa o “centro nevrálgico da esfera do tawhid

17 CARDENAL, Ernesto. Vida perdida; memórias 1. Madrid: Trotta, 2005. p. 144


e 204.
18 MERTON, Thomas. Reflexões de um espectador culpado. Petrópolis: Vozes,
1970. p. 151-152 e 183.
19 HART, Patrick; MONTALDO, Jonathan (ed.). Merton na intimidade. Rio de
Janeiro: Fissus, 2001. p. 179.
M arcos de uma mística inter- religiosa

(unidade)”.20 Na visão de Hallaj, o princípio orgânico de tudo,


que expressa o núcleo da luz original, é esse ponto luminoso
(nuqta). É interessante perceber como alguns mestres muçul­
manos, estudiosos do Corão, concentram-se na importância do
ponto diacrítico que marca a letra ba em árabe. O livro do Corão
se inicia com a letra “b”: Basmala (“Em nome de Deus”). Os
mestres sufis sustentam, com base na simbologia esotérica, que
o conteúdo de todo o Corão concentra-se no ponto diacrítico do
“b”, que dá início à Basmala.

O Real de todos os nomes


Numa de suas belas homílias sobre o Cântico dos Cânticos,
Gregório de Nissa, um dos três grandes capadócios do século IV,
fala da água que se esconde sob a fonte. Se alguém se avizinha
de uma fonte, maravilha-se com a riqueza da água que jorra sem
cessar. Mas não se dá o acesso a “toda água”, que permanece
misteriosamente escondida no seio da terra. E essa água que
não cessa jamais de se manifestar acende permanentemente o
desejo do sedento.21 O Real é como o “olho da fonte”, em seu
incessante movimento de generosidade e gratuidade.
Assim como “toda água” da fonte não pode ser acessada,
igualmente o Real permanece sempre velado. E a razão para
escolher o termo Real para expressar o Mistério último decorre
de sua utilização na linguagem de certas tradições religiosas. No
judeo-Cristianismo, define-se Deus como “aquele que é” (cf. Ex
3,14); na linguagem sânscrita do Hinduísmo, utiliza-se a expres­
são sat; e no árabe, al Haqq. São expressões correspondentes,

20 RUSPOLI, Sthéphane. Le message de Hallâj Vexpatrié. Paris: Cerf, 2005. p.


264.
21 GREGÓRIO DE NISSA. Omelie sul Cântico dei Cantici. Roma: Città Nuova,
1996. p. 225-226 (Omelia XI).
Faustino Teixeira

que buscam traduzir na imprecisa e frágil linguagem humana


o mistério maior sem nome. Na tradição budista, opta-se pelo
“silêncio de Deus”, o que não significa absolutamente ateísmo.
A negação funciona como “cifra da transcendência”. Como
sublinhou Velasco, o silêncio de Deus praticado por Buda “é a
forma mais radical de preservar a condição misteriosa do último,
o supremo, apontado por toda religião”.22
Os diversos nomes que são atribuídos a Deus ou ao Mistério
maior não se aplicam à sua essência, que permanece sempre
inatingível. Os nomes implicam sempre um estado de determi­
nação e limite. A “Presença Espiritual”, que irrompe em toda a
história, torna-se fragmentária ao manifestar-se no tempo e no
espaço. Os nomes ou atributos de Deus são “míseros resíduos”
que exalam do “perfume da natureza divina”,23 são um barzakh
(istmo) que fazem a ponte entre a essência do mistério e o cosmo.
Os místicos de tradições diversas sublinham que o Real está
para além dos nomes: Mestre Eckhart distingue o Deus em si
mesmo do Deus das criaturas; Gregorio de Nissa distingue Deus
em sua essência de Deus em seus atributos, que traduzem suas
operações na história; Ibn ‘Arabi, na tradição sufi, distingue a
Divindade absoluta da Divindade das convicções dogmáticas,
que é “prisioneira das limitações”; na espiritualidade advaita
da tradição hindu, distingue-se o Deus em si e o Deus dos
nãmarüpa (nomes e formas). No clássico sermão alemão de

22 VELASCO, Juan Martin. El fenômeno místico. Madrid: Trotta, 1999. p. 161.


E o autor continua: “O fato de calar sobre Deus, de não afirmar nem negar sua
existência, e, mais radicalmente, de eludir a resposta à pergunta sobre ele - não
por não dispor dessa resposta, mas por saber que a pergunta é incorreta, indevi­
da, lesiva da transcendência da realidade à qual se refere - esse fato é a forma
paradoxal, talvez única possível, de fazer eco a uma presença que só pode se
manifestar de forma alusiva...”: Ibid., p. 161-162.
23 GREGÓRIO DE NISSA, Omelie sul Cântico dei Cantici, p. 52 (Omelia XI).
Como sugere Gregorio de Nissa, com base no Cântico dos Cânticos, Deus é um
“Perfume difuso”.
M arcos de uma mística inter- religiqsa

número 2, Mestre Eckhart relata a força incandescente e ardente


de Deus que flui sem cessar no “burgozinho” da alma. Mas é
um Deus “livre de todos os nomes e despido de todas as formas,
totalmente solto e livre”.24
O fluxo da autorrevelação do mistério é sempre contínuo e
jamais se repete. Daí místicos como Ibn ‘Arabi assinalarem a
importância de os buscadores ampliarem suas crenças de forma
a poder participar e desfrutar dos inúmeros bens que animam o
Real. Não há como impor limites ao Real. As crenças, por sua
vez, são sempre fragmentárias; são como vínculos ou ataduras
que delimitam o Real. Correspondem às “inumeráveis cores
que as pessoas impõem à luz incolor por meio de suas próprias
existências delimitadas”.25As religiões e crenças são, na verda­
de, sistemas de símbolos que aludem ao Real, simultaneamente
transcendente e imanente. Mas o Real está para além do que
dele se consegue captar através dos símbolos. As religiões têm
o importante papel de anamnese, ou seja, de recordação viva
e atual da dinâmica transformadora do Real, suscitando nas
pessoas a provocação em favor do exercício de descentramento
egóico e recentramento no mistério do outro. Como bem subli­
nhou o teólogo John Hick, o Real constitui o ponto de arranque
essencial para a transformação humana: “É aquela realidade
em virtude da qual, através da nossa resposta a uma ou outra
de suas manifestações como figuras de Deus ou dos Absolutos
não pessoais, podemos alcançar o estado bem-aventurado de
descentramento egóico, que é nosso bem supremo”.26

24 MESTRE ECKHART. Sermões alemães. Petrópolis: Vozes, 2006. p. 49-50


(Sermão 2).
25 CHITTICK, William C. Mundos imaginales; Ibn al-Arabi y la diversidad de las
creencias. Sevilla: Alquitara, 2003. p. 283.
26 HICK, John. Teologia cristã epluralismo religioso; o arco-íris das religiões. São
Paulo: PPCIR/Attar, 2005. p. 91 (também: p. 90 e 41).
Faustino Teixeira

O Real e sua fragrância


Mesmo sendo infinito e intangível, o Real se manifesta
na profundidade do ser humano, na centralidade do coração.
Num de seus sermões, Mestre Eckhart sublinhou que o acesso
ao “fundo de Deus” se dá através da profundidade da pessoa,
quando esta purifica o seu coração de todos os apegos e vive
em humildade a receptividade pura ao dom do mistério. Assi­
nala que

o s m estres dizem que as estrelas derramam toda a sua


força no fundo da terra, na natureza e no elem ento terra,
produzindo ali o ouro m ais lím pido. Quanto m ais a alma
ch ega ao fundo e no m ais íntim o de seu ser, tanto m ais a
força divina nela se derrama plenam ente e opera velada-
m ente de maneira a revelar grandes obras...27

É no fundo do coração que se revela o “portal da misericór­


dia de Deus”. Mas faz-se necessário um trabalho diuturno de
purificação do coração, de rompimento dos nós que impedem
o exercício da acolhida do outro e da delicadeza espiritual. Esta
ideia do coração como espelho que reflete Deus foi também
muito acentuada por Gregório de Nissa. São belas as suas re­
flexões sobre os “puros no coração” com base na reflexão de
Mt 5,8. De fato, os puros no coração verão a Deus. Mas para
que isso ocorra é necessário que o espelho esteja polido, de
forma a poder refletir com ternura e vigor os raios incessantes
do Mistério da Luz.
Quando se vai ao fundo, o “perfume difuso” do Mistério
se derrama, e o faz queimando todos os “nomes e formas”. Na
profundidade se consegue captar a dinâmica própria do coração,
que é movimento, oscilação e pulsação permanente. A cada

27 MESTRE ECKHART, Sermões alemães, p. 296 (Sermão 54a).


M arcos de uma mística inter- reugiosa

segundo o coração capta as formas diversificadas e imprevisíveis


do mistério do Real. Assim também ocorre quando os fiéis das
distintas tradições religiosas buscam adentrar na experiência
religiosa, mediante o aprofundamento de sua própria religião.
Na medida em que aprofundam o seu empenho, se dão conta
de que o mistério que habita a experiência não pode limitar-se
à sua própria religião. O teólogo Paul Tillich percebeu isso com
muita clareza:

Na profundidade de toda religião viva há um ponto onde


a religião como tal perde sua importância e o horizonte
para o qual ela se dirige provoca a quebra de sua parti­
cularidade, elevando-a a uma liberdade espiritual que
possibilita um novo olhar sobre a presença do divino em
todas as expressões do sentido último da vida humana.28

O valor e a riqueza de uma religião revelam-se no seu po­


tencial de fragrância humanizadora, ou seja, nos seus frutos
visíveis. Para Gandhi, o que comprova a verdade de uma reli­
gião é a sua “fragrância” de amor, espiritualidade e paz.29 Em
sua Carta aos Gálatas (5,22-23), Paulo fala da importância dos
frutos visíveis arrolados pelo Espírito: “[...] amor, alegria, paz,
paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão, domí­
nio próprio. [...]”. A pista essencial é a de seguir esses frutos do
Espírito. Rümi, o grande místico sufi, expressou com riqueza
a centralidade desses frutos visíveis na dinâmica mesma da
salvação: “No dia da ressurreição, homens e mulheres compa­
recerão pálidos e trêmulos de medo para o julgamento final. Eu
apresentarei o teu amor em minhas mãos e Te direi: interrogue-o,

2S TILLICH, Paul. Le christianisme et les religions. Paris: Aubier, 1968. p. 173.


29 GANDHI, Mohandas Karamchand. Gandhi e o cristianismo. São Paulo: Paulus,
1996. p. 131-132.
Faustino Teixeira

ele te responderá”.30A fragrância de espiritualidade não ocorre,


porém, somente nas religiões. Os seres humanos são capazes de
desenvolver em alto grau qualidades especiais do espírito, como
amor, compaixão, delicadeza, cortesia, paciência, hospitalidade,
cuidado etc. Essas virtudes não são propriedades exclusivas
das religiões.31

Conclusão
Uma autêntica mística inter-religiosa necessita reconhecer a
irradiação universal da Presença Espiritual, da força do Real que
envolve todo o universo e empapa toda a história. Trata-se de
uma presença que se manifesta nas crenças, mas que as trans­
cende radicalmente. Nada mais essencial do que a capacidade de
poder ampliar a visão para poder reconhecer a presença do Real
em todas as suas manifestações transcendentes e imanentes.
Não há como participar de uma visão profunda do Real senão
mediante a ampliação das crenças e o reforço no potencial de
sensibilidade para saber perceber o divino em toda parte. Como
dizia o místico Teilhard de Chardin, “nada é profano” para quem
sabe ver. Daí a importância fundamental de uma “educação
da vista”. Como dizia outro grande buscador, Henri Le Saux,
“basta abrir os olhos” para se poder perceber a presença do
Graal. Um dos mais ousados místicos de todos os tempos, Ibn
‘Arabi reconheceu, como poucos, o coração como o lugar por
excelência da percepção mística do Real: um coração capaz de
acolher todas as formas. Dizia num de seus poemas: “As mais
diversas crenças em Deus têm as pessoas. Mas eu as professo

30 DJALÂL-OD-DÍN RÚMÍ. Rubâi 'yât. Paris: Albin Michel, 1993. p. 2 1.


31 DALAI-LAMA. Uma ética para o novo milênio. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.
p. 32-33. COMTE-SPONVILLE, André. L 'esprit de Vatheisme. Paris: Albin
Michel, 2006. BOFF, Leonardo. Espiritualidade; um caminho de transformação.
2. ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2001. p. 20-26.
M arcos de uma mística intcr- reugiosa

todas: creio em todas as crenças”.32 No mistério da profundi­


dade encontra-se a chave da verdadeira delicadeza espiritual,
de uma cortesia singular que faculta perceber a dinâmica da
manifestação do divino em todas as formas particulares. Fixar-
-se exclusivamente na dimensão transcendente (tanzíh) para
captar o divino é um limite; assim como fixar-se na dimensão
imanente (tasbih). Há que combinar as duas dimensões: trans­
cendência e proximidade para se aproximar do Mistério que se
doa e acolhe, um Mistério que não é só transcendência, mas
também autorrevelação para o mundo.

32 IBN ‘ARABI. La taberna de las luces. Murcia: Editora Regional de Murcia,


2004. p. 24 (seleção, apresentação e tradução de Pablo Beneito).
O sedutor futuro da teologia

Jo sé M a r ia V ig il

Qual é o futuro da teologia?


Para onde vai?
Para alguns a pergunta seria inútil, porque a teologia é - e
supostamente teria sido sempre a mesma, uma teologia
perennis. E o deveria ser também no futuro. Pelos séculos dos
séculos. Ela deveria procurar, simplesmente, ser fiel à sua missão
de sempre, e “guardar fielmente o depósito da fé”...
Contudo, essa visão estática não resiste à verificação his­
tórica. Porque, na realidade, a teologia não fez senão mudar,
evoluir, constantemente, desde seu próprio início. Vejamos isso
reportando-me à minha tradição religiosa, a cristã.
Segundo a definição anselmiana, a teologia éfides quaerens
intellectum, fé que quer entender. Fides, aí, não é a fé como uma
entidade abstrata, sem sujeito... Quem quer compreender são
os sujeitos crentes, que querem entender o que creem. Ora, ao
trocar os sujeitos crentes, geração após geração, em uns con­
textos históricos que em cada época são diferentes, sua busca
de compreensão - quaerens intellectum - foi inevitavelmente
evolutiva.
A teologia patrística, a dos Padres da Igreja - lembro que
estou falando dentro do Cristianismo - surgiu no mosteiro, e
0 SEDUTOR FUTURO DATEOLOGIA

as perguntas com as quais essa teologia queria compreender


respondiam ao contexto monacal, eram as perguntas que se
faziam os monges daquele tempo. As respostas também foram
dadas pelos monges. Por isso foi uma teologia monacal.
Surgiu depois, na Idade Média, o mundo novo da universi­
dade, e a teologia emigrou para lá. Suas perguntas, agora trans­
formadas em “quaestiones disputatae”, questões disputadas,
refletem o contexto cultural peculiar da universidade medieval.
Foi a teologia escolástica.
Mais tarde surgiram os seminários, casas de formação para
preparar o clero. A teologia acabou se refugiando lá. Suas per­
guntas centraram-se, então, nas preocupações do clero: resultou
ser uma teologia clerical, institucional, hierárquica.
Depois veio a Modernidade. A teologia clerical hierárquica
se viu cercada pelo acosso apologético e o obrigatório cerrar
fileiras dentro da instituição. Enroscou-se sobre si mesma,
como uma teologia antimoderna, neoescolástica: uma teologia
sem criatividade, confinada à servidão de repetir e comentar os
pronunciamentos do magistério hierárquico. E a essa função se
reduziu durante alguns séculos.
Em meados do século passado, não só no Catolicismo, mas
em todo o Cristianismo, chegamos à reconciliação com a Moder­
nidade e seus valores: a pessoa, os direitos humanos, a liberdade,
a ciência, a autonomia das realidades terrestres, o valor positivo
do mundo, o reconhecimento das outras religiões, o diálogo
inter-religioso... Os crentes se viram trasladados em pouco tempo
a todo um mundo novo, com perguntas absolutamente inéditas.
José Maria Vigil

A velha teologia Pré-Moderna, há vários séculos imutável,


simplesmente entrou em colapso, por implosão.1
Há testemunhos esplêndidos de teólogos a esse respeito: não
falo de uma interpretação, mas de algo que faz parte de nossas
vidas.*2 A teologia deixou de ser comentário subserviente às
declarações do magistério eclesiástico e passou a refletir com
criatividade a partir da perspectiva da primeira Modernidade:
uma teologia moderna, reconciliada com o mundo moderno.
A partir de então - não faz ainda cinqüenta anos -, os novos
degraus da evolução da teologia foram acelerando o ritmo de
sua sucessão.
Com efeito, ao ritmo daqueles tempos de renovação, a cris-
tandade do Terceiro Mundo, até então eurocêntrica, passou a
assumir de modo criativo sua fé, a partir de sua situação de
militância contra a dominação e a opressão. As perguntas dos
cristãos pobres latino-americanos passaram a girar em torno da
relação de sua fé com a luta pela libertação: surgiu uma teologia
realmente nova, que chegou a ser conceituada como “reflexão
crítica sobre a práxis da fé”..., algo totalmente distinto daquilo
que havia sido e estava sendo a teologia em outras latitudes.
Foi a teologia da libertação, verdadeira libertação da teologia,
salto qualitativo na história mundial da teologia, que da América
Latina passou a se estender por todo o planeta.
Muito antes, desde que se expandiu de uma maneira signi­
ficativa o movimento ecumênico no interior do Cristianismo a

' LIBANIO, J. B. Concilio Vaticano n. Os anos que seguiram. In: LORSCHEIDER,


A.; LIBANIO, J. B.; COMBLIN, J.; VIGIL, J. M.; BEOZZO, J. O. Vaticano II,
40 anos depois. São Paulo: Paulus, 2005. p. 73.
2 Joseph MOINGT conta de forma dramática como com a celebração do Concilio
Vaticano II teve de abandonar todo seu trabalho de síntese sobre cristologia pré-
-conciliar e voltar a começar uma cristologia verdadeiramente nova: MOINGT,
J. El hombre que venía de Dios. Bilbao: Desclée, 1995. p. 7ss.
0 SEDUTOR FUTURO DA TEOLOGIA

princípios do século XX, a consciência ecumênica de muitos


crentes deixou de inserir suas perguntas dentro do âmbito es­
treito de sua própria Igreja: começaram a enxergar além dos
conflitos e das divisões, voltando ao Cristianismo original,
aquele anterior às divisões. Muitos teólogos, com essa nova
consciência, começaram a elaborar suas respostas a partir de
uma perspectiva também ecumênica. Essa teologia já não era
católica nem de nenhuma denominação protestante, mas ecu­
mênica, simplesmente cristã.
Isso significava uma grande novidade na história da teologia
cristã: nunca se havia dado uma teologia ecumênica, não mol-
durada explicitamente dentro de uma Igreja.
Na última parte do século passado, as comunicações, as
migrações, o turismo..., a própria globalização diversificaram
enormemente as sociedades. A maior parte do globo se fez pluri-
cultural e plurirreligiosa. Desapareceram quase completamente
aquelas sociedades homogêneas, monoculturais e monorreligio-
sas, nas quais se podia fazer teologia dentro de uma única reli­
gião, sem perceber as perguntas que surgem das reivindicações
de verdade de outras religiões... A pergunta pela pluralidade de
religiões, e pela revisão das pretensões de unicidade da própria
religião, se fizeram comuns. Acabou-se a possibilidade de uma
teologia confessional que queira monopolizar o falar de maneira
autossuficiente à sociedade plural. Cedo ou tarde, com mais ou
menos consciência, os crentes querem finalmente compreender
a relação de sua própria fé com os demais credos, e reinterpretar
as antigas respostas herdadas à luz desse pluralismo. É a teologia
das religiões (nunca antes na história a teologia se fizera a per­
gunta “pelas (demais) religiões”), que depois se chamou teologia
José Maria Viqil

do pluralismo (que se pergunta: esse pluralismo é de fato ou de


direito?), e que desemboca finalmente na teologia pluralista,3
que pensando-se como teologia do pluralismo religioso, em um
novo paradigma, considera uma perspectiva nova, nunca antes
imaginável na maior parte das religiões.
Se na sociedade convivem agora, inevitavelmente, muitas
religiões, já ninguém quer se limitar a saber o que afirma uma
religião... O crente não só pergunta à sua religião, mas quer saber
também o que dizem as outras. A teologia responde não com a
resposta única de uma religião só, mas com o leque de respostas
dadas pelas diferentes religiões, para que a pessoa possa se en­
riquecer com tudo isso. Nunca havia ocorrido algo semelhante
na história da teologia: trata-se da teologia comparativa.
Nesse contexto inter-religioso, são muitos os crentes - em­
bora ainda sejam exceção - que têm uma experiência religiosa
plural, que fazem sua experiência religiosa em mais de uma
religião. Têm uma dupla pertença, ou, às vezes, uma múltipla
pertença. Obviamente, são muitos mais os que creem que isso
não é possível, ou que isso não é correto..., e fazem bem em não
tratar de experimentar. Todavia, o fato contundente dos que, sim,
experimentam uma múltipla pertença questiona a teologia, com
outra pergunta inédita: por que não será possível uma teologia
inter-religiosa, multifé...? A possível teologia inter-religiosa,
avalizada por alguns, insultada por outros, está já aí, mesmo
que seja em fase de experimentação.
Diz-se que o fator que mais está mudando a consciência hu­
mana na atualidade é a nova imagem do mundo e do cosmos que
provém das novas ciências da natureza. A imagem do mundo,
herdada, tradicional, que havia sido ideada precisamente pelas

3 Vej a-se o número monográfico de Concilium (1/2007), dirigido por A. TORRES


QUEIRUGA, L. C. SUSIN e J. M. VIGIL.
0 SEDUTOR FUTURO DA TEOLOGIA

religiões, desmoronou, diante do surgimento, hoje, por primeira


vez na história também, de uma nova imagem, científica, e a
mesma para toda a humanidade. Muito rapidamente, nos vimos
trasladados a um mundo novo, um cosmos que tem pouco a ver
com a imagem'estática e dualista do mundo, que tínhamos até
agora. Uma imagem nova do mundo suscita, por sua vez, todo
um mundo de perguntas novas. As velhas perguntas perdem
totalmente seu sentido. As antigas respostas ficam obsoletas.
O ambiente mesmo, as categorias de pensamento utilizadas,
precisam ser repropostas a partir de bases novas. O crente ne­
cessita autocompreender-se de novo, nesse novo mundo que as
ciências descobrem para ele. A teologia não só se reconcilia,
então, com a natureza e com o mundo cósmico do qual sempre
esteve afastada, para o qual se sentiu cega, mas que se reformula
ecologicamente em profundidade (com a ecologia profunda, não
só cuidado do meo ambiente). É a eco-teologia.4
Nessa mesma linha, já faz tempo, vem sendo afirmado na
cultura um fenômeno novo: a emergência da consciência de
“gênero”, categoria nova, que visibiliza como muitas pautas
sociais e culturais são influenciadas por interesses de dominação
veiculados através de papéis vinculados à sexualidade. É uma
autêntica revolução cultural, que remove costumes, hipóteses
e hábitos tão antigos que se perdem na noite dos tempos. Uma
nova visão, um novo paradigma..., que suscitam nos crentes
novas perguntas, a partir dessa nova perspectiva que põe a des­
coberto o patriarcalismo latente em uma infinidade de detalhes
e de graves questões de fundo. Os crentes - não só as mulheres,
também os homens com sensibilidade a esse respeito - querem
compreender tudo isso a partir da fé, e perguntam à teologia que

4 Félix WILFRED acaba de propor que esta teologia ecológica é, ao mesmo tempo,
teologia inter-religiosa: cf. Concilium 3/51 (2009) 379-392.
José Maria Viqil

resposta tem para re-compreender todo o patrimônio simbólico


religioso a partir de uma perspectiva não patriarcalista. É a hora
de uma conversão radical da teologia, para uma teologia com
perspectiva de gênero. E é uma nova etapa da teologia que veio
para ficar.
A crise da religião tradicional, que se vive paradoxalmente
junto com uma revivescência de novas formas religiosas, já im­
pôs na prática a distinção clara entre religião e espiritualidade.
Tal é a dimensão profunda. A religião parece pertencer mais ao
âmbito das formas, as interfaces que o ser humano criou para
expressar aquela. Tal convicção, que já está consolidada em boa
parte da sociedade atual, propõe novas perguntas aos crentes.
Querem, então, entender o que significa a religião: se a religião
é, como sempre haviam pensado, a mediação primária para a
espiritualidade, a única e principal via de comunicação com
o divino, ou se a religião é antes uma interface, boa enquanto
serve, mas susceptível ou prescindível quando se encontra me­
diações melhores. Nessa situação, como dizemos, as perguntas
de muitos crentes são agora, nesse sentido, pós-religiosas: vão
além das religiões, e além da religião, embora estejam mais
interessadas do que nunca pela espiritualidade. A resposta às
perguntas instaladas nessa perspectiva contribui para a elabo­
ração de uma teologia pós-religiosa, leiga, humana, preocupada
com o papel humanizador da espiritualidade, além das religiões.
Olhando para trás, podemos afirmar que nos últimos cem
anos descobrimos mais mudanças evolutivas na teologia que
aquelas que ela experimentou em toda a sua história. Como
dizíamos, sua evolução se acelerou. Surpreende-nos com sua
efervescente vitalidade. É chegada sua fase final?
Obviamente, não. Não sabemos por onde continuará seu
surpreendente itinerário, mas damos um voto de confiança a
seu brilhante futuro.
0 SEDUTOR FUTURO DA TEOLOGIA

Não custa insistir, porque é óbvio, que nem toda teologia tem
de passar por cada uma dessas etapas... Nem o aparecimento
de uma etapa nova significa a desqualificação dos anteriores
modelos de teologia...
O conhecimento humano, as culturas, e também o mundo
religioso, vão evoluindo por ondas sucessivas, mediante novos
paradigmas que se apresentam inesperadamente, de um modo
surpreendente, caótico, não linearmente previsto. Encontram-se,
cruzam-se, chocam-se, dão origem ou possibilidade a outros pa­
radigmas, e tudo contribui para fecundar mutuamente a marcha
do conjunto rumo a etapas superiores. Os novos paradigmas
nem sempre substituem os anteriores: com maior frequência
simplesmente se somam e se fecundam mutuamente.
Nesse sentido, podem conviver juntas muitas teologias. Sem­
pre haverá teologias confessionais, enquanto houver confissões
no mundo religioso. Essa forma de teologia não tem o que temer,
sempre será necessária em seu âmbito, não querem substituí-la
as formas de teologia supraconfessional.
Essas não vêm expulsá-la e substituí-la, e sim cobrir outros
espaços onde aquela não é aceita porque nem sequer é com­
preendida, a saber, na sociedade multirreligiosa, nos meios de
comunicação seculares, na universidade laica...
Ou seja, a maior parte das formas de teologia dos últimos
tempos pode continuar, cada uma no nicho em que se encontra
acomodado.
Todavia, em minha opinião, isso não impede que se possa
afirmar que na evolução da teologia podemos descobrir uma
flecha, um sentido, que indica um certo perfil previsível da
teologia do futuro.
José Maria Viail

A partir de nossa modesta opinião, essa teologia irá contar


com estas características:
• já não será uma teologia que acentue tanto seu “teo”, porque
parece que cada vez mais se vai fazendo consciente, em todas
as latitudes, de que o teísmo é um modelo de compreensão/
expressão de nossa concepção da divindade, não uma descri­
ção certa - nem muito menos imprescindível - da “Realidade
última”;
• também não será, com demasiado entusiasmo, “logia”, porque
a estas alturas já descobrimos mundialmente as deficiências
da unilateralidade do discurso racional que enaltece o “lo-
gos” com enfraquecimento de outras dimensões mais sutis
do conhecimento humano;
• será confessional quando fizer falta - para o serviço teoló­
gico dentro de ministérios ou âmbitos de uma determinada
religião, obviamente, mas saberá ser também não confes­
sional, ecumênica, e supraconfessional, quando for preciso,
em função do público a que se dirija, do âmbito em que se
insere;
• será, em todo caso, pluralista, isto é, terá superado o com­
plexo de superioridade religioso que sofreram quase todas as
religiões do mundo, um complexo que as fez pensar que eram
diretamente divinas, e que eram a única religião válida do
mundo. Hoje, descoberto por evidência que todas as religiões
são lampejos da riqueza inabarcável da Realidade última,
perceberão que é antes o pluralismo religioso o “querido por
Deus”, em vez de ser um mal a combater;
• mesmo quando seja confessional, certamente deverá ser
teologia comparativa, cada vez mais; na sociedade plural,
deverá se responsabilizar pela palavra das outras religiões,
responsabilizando-se pela riqueza plural das religiões, mais
0 SEDUTORFUTURO PA TEOtOGIA

que ficar nos estreitos limites autorreferenciais, com as res­


postas de só minha religião;
• entretanto, mais que simplesmente comparativa, será muitas
vezes inter-religiosa, interfaith, intercrente, multirreligiosa,
multifé... (ainda seria prematuro um vocabulário definitivo).
Embora essa teologia inter-religiosa ainda seja, atualmente,
uma possibilidade que a muitos parece impossível, para
outros é uma possibilidade já nata. Não é absolutamente
excepcional a experiência de dupla ou múltipla pertença
religiosa, embora seja inimaginável para muitos dos que não
a sentem. Mas os que a experimentam estão em condições
de elaborar esse tipo de teologia, e já estão em curso expe­
riências, provisórias, mas promissoras;
• se poderá ser não confessional..., é óbvio que poderá ser
“leiga”, não oficial, nem clerical, nem pertencente a qualquer
instituição religiosa, mas uma teologia fora de instituição,
leiga, civil, espiritual, humana, não referenciável a nenhu­
ma instituição religiosa. Quem abrir os olhos e souber ver,
provavelmente descobrirá que essa teologia já está na rua,
e que abre passagem, muitas vezes sem esse nome. Não é
uma teologia convencional, que trabalha confessionalmente,
mas uma teologia que pretende simplesmente “humanizar a
humanidade”;
• desde os tempos da teologia da libertação, acredito que essa
qualificação de “libertadora” não é facultativa, e sim essen­
cial: não há teologia se não for uma teologia libertadora. Mas
a velha forma de teologia de libertação deve fecundar - e já
está fazendo - com os novos paradigmas que a sucederam no
tempo. Não pode continuar sendo inclusivista, como foi origi­
nalmente, não por vontade explícita, mas inconscientemente.
Também não poderá ser tão antropocêntrica como foi, tam­
bém involuntariamente. Agora terá de ser cosmo-biocêntrica,
José Maria Viqil

para humanizar a humanidade e o planeta, a partir de uma


perspectiva de eco-justiça.
Qual é o futuro da teologia?
Para onde vai?
Fecundada com tantos paradigmas novos e com tantas ex­
periências em curso, o futuro da teologia é promissor, sedutor
para todo aquele que se deixe fascinar por essa inquietude radi­
cal do ser humano, do ser humano religioso que busca sempre
entender sua religião.
Sem dúvida, estamos em tempos de mudança radical, de for­
mas novas de teologia que nunca puderam sequer ser sonhadas.
O futuro será daqueles que se arriscarem a investir nesta tarefa
de refundação teológica.
Conclusão aberta

J o sé M a r ía V ig il ,
L u iza T om ita e

M a r c elo B a r r o s 1

Poderíamos encerrar já aqui o livro. Os coautores deram sua


palavra: plural, diferente, contrastante, até mesmo contrária em
alguns casos. Pinceladas tão diversas dão origem a um quadro
amplo, rico, e com muitos matizes. Cabe aos leitores digerir
toda esta reflexão e formar sua opinião. Queremos compartilhar
com eles alguns comentários finais que nos sugere a esplêndida
panorâmica desenvolvida pelas páginas precedentes.
A primeira conclusão é que não vislumbramos como previsí­
vel um caminho único para a evolução da teologia. As teologias
e os(as) teólogos(as) estão, atualmente, ainda, em posições muito
variadas, e, em alguns pontos, até contrastantes. O que não só
era previsível, mas, além disso, é bom, e é um indicativo de que
o diálogo - prático mais que teórico - sobre o futuro da teologia
está em curso, e está provavelmente longe de chegar a seu final.
Vai para longe. E para “largo”: nele caberão posições muito
diferentes e variadas. No futuro - como já vinha acontecendo
- cada vez menos se vai poder falar “da teologia”, e mais “das
teologias”, e muito variadas por certo.

1 Comisión Teológica Latinoamericana de ASETT (2001-2006), idealizadores


primeiros da série.
Conclusão aberta

• Faz apenas um século, a maior parte da teologia era feita


no interior de cada confissão religiosa, sob a vigilância e
reconhecimento oficial, de forma que a teologia era parte do
aparelho das instituições religiões. Isso, em certos tempos de
exclusivismo generalizado, fazia aquelas teologias pensarem
que só elas e suas irmãs de religião eram verdadeira teologia.
As demais não. Dessa posição exclusivista não encontramos
sequer referências em nossos coautores.
• Se encontramos ainda os que defendem a posição clássica de
que toda teologia tem de estar domiciliada em uma confis­
são concreta e que sem confessionalidade explícita, não há
teologia verdadeira. A teologia foi sempre confessional, e é
óbvio que sempre será necessária tal teologia confessional
no interior das religiões. A teologia confessional tem seu
futuro garantido, sem dúvida. Acreditamos, no entanto, que
se deve reconhecer que a presença de uma teologia supra-
confessional vai abrindo lugar, passo a passo, a partir das
veteranas teologias ecumênica e macroecumênica, a outras
formas muito diversas, atualmente em experimentação.
• Dá-se um contraste de opiniões entre os que ainda se de­
claram receosos diante da posição pluralista e aqueles que
a consideram como um mínimo imprescindível para poder
fazer teologia aceitável no mundo atual. Vários de nossos
coautores dão testemunho muito lúcido da possibilidade
de viver e reinterpretar sua própria religião de uma forma
pluralista, quando oficialmente essa possibilidade não é
ainda reconhecida nem é oficial em tais religiões. Esses
autores se declaram convencidos de que os temores dos co­
legas acabarão sendo superados, e a posição pluralista, que
cresce de forma incontida na sociedade atual, acabará sendo
majoritária, irreversivelmente. Ainda existe muita teologia
“inclusivista”, embora não se reconheça como tal, e costuma
José Maria Viqil, Luiza Tomita e Marcelo Barros

rejeitar as classificações usuais, sem propor nenhuma alter­


nativa. O debate teórico e prático está aí, e é um dos eixos
principais que estão gestando o modelo futuro de teologia.
• Há os que temem a teologia interfaith ou intercrente, ou
inter-religiosa, rejeitando-a por temor à ambigüidade, à
indefinição, à mistura de religiões, ou ao sincretismo... É
lógica a reação negativa em quem abriga esses temores,
mas é cada vez mais claro que muitos deles são fantasmas
inexistentes, projetos de teologia que ninguém defende nem
pratica. Quem superar os temores e os preconceitos poderá
ver que vão surgindo propostas cada vez mais sérias sobre a
possibilidade de uma teologia inter-religiosa, intercrente, ou
interfaith, deixando de fora toda ambigüidade, indefinição
ou sincretismo. Mais, cresce o consenso de que, no exterior
de cada religião (âmbito no qual sempre continuará sendo
possível e desejável a teologia confessional, obviamente), no
âmbito da sociedade cada dia mais plurirreligiosa, a teologia
vai ter de ser cada vez menos monoconfessional, dando lugar
- se quiser ter como interlocutor essa sociedade irreversivel-
mente plural - a formas de teologia que atualmente intuímos
ainda vagamente e denominamos com nomes balbuciantes:
interfaith?, intercrente?, inter-religiosa?, multifé?
Sobre tais nomes não deveríamos discutir demasiado..., basta
que sirvam para que nos entendamos com uma nomenclatura
mais ou menos comum, embora sempre livre. Ao que sim de­
vemos prestar mais atenção é nas propostas concretas que vêm
aparecendo e reaparecendo, de modo recorrente, sobre essas
novas formas de teologia. Vários de nossos autores se reportam
à proposta emblemática que, nesse sentido, fizera Wilfred Can-
twell Smith há várias décadas. Como afirma Paul Knitter,2 sua

2 Bases para uma teologia pluralista multiconfessional.


COWQUSAOABERTA

proposta que está sendo ressuscitad[a] no projeto deste livro,


não só é válidfa], mas é também urgente”. Eis uma tarefa a se
realizar, tanto na frente teórica (aprofundar nos fundamentos de
uma possível teologia multifé), como no campo prático: fazê-la,
elaborá-la, compartilhá-la. Uma tarefa que alguns de nossos
autores consideram “quase impossível” e, ao mesmo tempo,
“conveniente, necessária e urgente”
Não faltam os que vão muito adiante em propostas atraentes,
como a de uma “cristologia intercrente” (Phan) ou uma “cris-
tologia da libertação, das religiões” (Pieris). Sua radicalidade
mostra, a partir dos fatos, que a teologia está em movimento
e que se abre a formas nunca antes imaginadas. Nesse cami­
nho estamos. Estão também as opiniões dos que nos lembram
como fundamento de qualquer teologia a experiência religiosa
profunda, para a qual a teologia deve voltar sempre, como à
sua fonte, sabedora agora de que as formas concretas de que se
reveste tal experiência são, isso, simplesmente formas, e que a
própria teologia deve lançar também seu olhar além das formas,
além das concreções de cada religião, de um modo também
pós-religioso nesse sentido.
Acreditamos que todo este conjunto de autorizadas opiniões
de nossos coautores é de um valor apreciável, e é claramente re­
presentativo tanto da legitimidade das questões que este volume
quis voltar a colocar sobre a mesa como da grande vitalidade
com que está se movendo a reflexão nesse campo, bem como
da grande variedade de opiniões e de modelos teológicos que
estão aí, na “teologia nossa de cada dia”. A conclusão deste
volume fica, pois, assim, aberta ao futuro. Entre todos vamo-la
fazendo, com uma teologia cada vez mais diversificada, mais
aberta e mais livre.
Alegra-nos concluir a série “Pelos muitos caminhos de Deus”
oferecendo este volume para que seja ocasião de encontro para
José Maria Viqil. Luiza Tomita e Marcelo Barres

o debate público, inter-religioso, de vozes muito autorizadas,


sobre o futuro da teologia pluralista supraconfessional, teologia
do futuro, em que a teologia pluralista da libertação do Terceiro
Mundo vai desembocar, mais cedo do que tarde.
Os coautores

M ichael AMALADOSS
Professor de teologia no Vidyajyoti College of Theology,
Delhi, índia, e diretor do Instituto para o Diálogo com as Cul­
turas e Religiões, de Chennai, índia. Reconhecido conferencista
internacional, publicou muitos escritos sobre temas de missão,
espiritualidade e teologia da libertação. É também um professor
regular do East Asian Pastoral Institute, de Manila.

Marcelo BARROS
Nascido em 1944, é natural de Camaragibe, Recife, Brasil,
de uma família católica de operários pobres. Biblista, membro
da ASETT, escreveu 35 livros sobre leitura popular da Bíblia,
Espiritualidade Ecumênica, Teologia da Terra, Teologia do Ma-
croecumenismo e do Pluralismo Cultural e Religioso. Seu último
livro é O sabor da festa que renasce. Para uma teologia afro-
-latíndia da libertação (São Paulo: Paulinas, 2009). Na Itália,
publicou Cammini deli’amor divino: sul dialogo interreligioso
e interculturale (Rimini: Pazzini, 2009). É conselheiro da Pas­
toral da Terra e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST) e vive uma grande proximidade com as religiões
de matriz afro-brasileira.

A gen or BRIGHENTI
Doutor em Ciências Teológicas e Religiosas na Universidade
Católica de Louvain (Bélgica), especializado em Pastoral Social
e Planejamento Pastoral pelo Instituto Teológico-Pastoral do
CELAM (Medellín) e licenciado em Filosofia pela Universidade
do Sul de Santa Catarina (Tubarão, SC). Atualmente é professor
de Teologia na PUC-PR e na Universidade Pontifícia do México
(UPM), Presidente do Comitê Executivo Latino-americano da
Ameríndia e do Comitê Organizador do Fórum Mundial de
Teologia e Libertação. Foi perito do Ceiam na Conferência de
Santo Domingo e da CNBB em Aparecida. Entre suas publica­
ções se destacam: Por uma Evangelização Inculturada. Princí­
pios pedagógicos e Passos Metodológicos, Paulinas, São Paulo
1998; A Igreja Perplexa. A novas perguntas, novas respostas,
Ed. Paulinas, São Paulo 2004; A missão evangelizadora no
contexto atual. Realidade e desafios a partir da América Latina,
Ed. Paulinas, São Paulo 2006; A pastoral dá o que pensar. A
inteligência da prática transformadora da fé, Siquém-Paulinas,
Valência-São Paulo 2006.

Edmund K ee-F ook CHIA


Possui mestrado em Religião pela Universidade Católica dos
Estados Unidos e um doutorado em Teologia Intercultural da
Universidade de Nimega, Holanda. Sua tese doutorai foi sobre
a teologia asiática do diálogo. Nascido na Malásia, é descen­
dente de chineses. Secretário executivo do escritório de diálogo
ecumênico e inter-religioso da Federação das Conferências
Episcopais da Ásia (1996-2004). É o organizador de Dialogue?
Resource Manualfo r Catholics in Asia (2001) e de (com James
W. Heisig) A Longingfor Peace: The Challenge o f a Multicul­
tural, Multireligious World (2006).

Amín EGEA
Nasceu em Barcelona em 1977. Bacharel em Humanidades,
publicou vários trabalhos de pesquisa sobre a história da religião
bahá’í e foi cocoordenador da compilação La Religión Bahá’í.
Una introducción desde sus textos (Madrid: Trotta, 2008). É
membro da Sociedade Espanhola de Orientalistas e da associa­
ção Unesco para o Diálogo Inter-religioso, de cuja assembléia
foi membro. Atualmente, serve como membro da Assembléia
Nacional dos Bahá’ís da Espanha, órgão de governo da Comu­
nidade Bahá’í da Espanha.

Paul F. KNITTER
É professor da cátedra “Paul Tillich” de Teologia, Religiões
do Mundo e Cultura, no Union Theological Seminary de Nova
York. Professor emérito de Teologia na Xavier University, de
Cincinnati, Ohio, Estados Unidos. Licenciado em Teologia (Gre­
goriana, Roma, 1966) e doutorado em Teologia (Universidade
de Marburg, 1972). Autor de No Other Name? (1985), estuda
como as comunidades religiosas do mundo podem cooperar
na promoção humana e para o bem-estar ecológico. Esse é o
tema de One Earth Many Religions: Multifaith Dialogue and
Global Responsibility (1995) e de Jesus and the Other Names:
Christian Mission and Global Responsibility (1996). Publicou
recentemente uma síntese panorâmica das posições cristãs rumo
às outras religiões: Introdução às teologias das religiões (São
Paulo: Paulinas, 2008).

David R. LOY
É Professor de Ética/Religião e Sociedade na Xavier Univer­
sity, em Cincinnati, Ohio, Estados Unidos. Trabalha principal­
mente em filosofia comparada da religião, de modo especial,
relacionando o Budismo com o pensamento moderno ocidental.
Entre seus livros estão Nonduality, Lack and Transcendence, e A
Buddhist History o f the West. É também coeditor de A Buddhist
Response to the Climate Emergency, 2009. Praticante do zen
durante muitos anos, é professor qualificado na tradição Sanbo
Kyodan do Budismo japonês.

Laurenti MAG ESA


Presbítero católico da Diocese de Musoma, Tanzânia. Doutor
em Teologia Moral (St. Paul University de Ottawa, Canadá).
Ensinou de 1986 al992 na Universidade Católica do Leste da
África, em Nairobi, Quênia, onde também foi professor no Ins­
tituto Maryknoll de Estudos Africanos. Foi professor visitante
na Maryknoll School of Theology, de Nova York, em 1994, e
na Xavier University, em Cincinnati, Ohio, em 1995. É autor de
vários livros, dentre os quais The Moral Traditions ofAbundant
Life (Orbis, 1997), e muitos artigos sobre teologia africana,
teologia moral e ética social.

Jacob NEUSNER
É autor de “Israel:”Judaism and its Social Metaphors, bem
como de The Incarnation o f God: The Character ofDivinity in
Formative Judaism. Neusner tratou em suas obras das relações
do Judaísmo com outras religiões. Seu^f Rabbi Talks with Jesus
(Philadelphia, 1993 - traduzido para o alemão, o italiano e o
sueco), tenta estabelecer uma ponte religiosamente confiável
para o intercâmbio judeo-cristão. Mereceu louvor do Papa
Bento XVI e o apodo de “o rabino predileto do papa”. Em seu
livro Jesus de Nazaré, Bento XVI se refere a ele como “o mais
importante livro para o diálogo cristão-judeu na última década”.

T eresa OKURE
Nigeriana, religiosa da Sociedade do Santo Menino Jesus
(SHCJ), ensina, além da Hermenêutica de Gênero, Antigo e
Novo Testamentos no Catholic Institute of West África, de Port
Harcourt. Ali foi Decana acadêmica, Decana de assuntos estu­
dantis, e Chefe do Departamento de Estudos Bíblicos. Também
foi Auditora na Assembléia Especial para a África do Sínodo
dos Bispos da Igreja Católica (2009). Foi Secretária Executiva
da ASETT, membro de suas Comissões Teológica e da Mulher.
Sua reflexão quer promover a causa da unidade cristã, bem
como a cooperação inter-religiosa através de uma teologia que
transforme a vida à luz de Cristo. Atualmente é a Presidenta
Fundadora da Associação Católica Bíblica da Nigéria (Caban).

Irfan A. OMAR
Professor assistente no Departamento de Teologia na Mar-
quette University, de Milwaukee, Estados Unidos. Ensina sobre
Islamismo, Religiões do Mundo, e Diálogo Inter-Religioso. Entre
seus interesses de pesquisa está o pensamento islâmico, a partir
da perspectiva das conexões inter-religiosas entre o Islamismo
e outras religiões. É editor/coeditor de vários livros, dentre os
quais A Christian View oflslam: Essays on Dialogue byFather
Thomas Mchel, S J (Orbis, 2010) e Islam and Other Religions:
Pathways to Dialogue (Routledge, 2006). É redator associado
do Journal o f Ecumênica! Studies.

R aim on PANIKKAR
Nasceu em Barcelona, 1918. Viveu e estudou na Espanha,
Alemanha, Itália e índia. Doutor em Filosofia pela Universidade
de Madri (1946), Doutor em Ciências Químicas pela mesma
universidade (1958) e Doutor em Teologia pela Universidade
Lateranense de Roma (1961). Presbítero desde 1946, além da
atividade pastoral, foi pesquisador nas Universidades de Madri,
Mysore e Varanasi, e professor em Roma, Harvard, Montréal e
Buenos Aires, entre outras. Foi membro do Conselho Superior de
Pesquisas Científicas e cofundador de várias revistas de filosofia
e cultura (Arbor, Weltforum, Kairos, etc.). Deixou o Ocidente em
1954 para ir à índia. Retornou para a Europa onde foi nomeado
Livre Docente da Universidade de Roma e se dedicou ao ensino
da Filosofia da Religião. Desde 1966 dividiu seu tempo entre
as universidades de Varanasi, Roma e Harvard. Desde 1971 foi
Catedrático de Filosofia Comparada da Religião e História das
Religiões na Universidade da Califórnia de Santa Bárbara. É
autor de cerca de 50 livros. Publicou pela Ed. Paulinas: ícones
do mistério. Faleceu em 2010.

P eter C. PH AN
Vietnamita, emigrou para os Estados Unidos como refugiado
em 1975. Doutor em teologia pela Universidade Pontifícia Sale-
siana de Roma, e em filosofia e em teologia pela Universidade de
Londres. Doutor honoris causa pela Chicago Theological Union.
Ensinou na Universidade de Dallas, Texas; na Catholic Universi-
ty of America, Washington, DC, onde ocupa a Warren-Blanding
Chair of Religion and Culture; no Union Theological Seminary,
N.E.; no Elms College, Chicopee, MA; St. Norbert College, De
Pere, WI, e na Georgetown University, Washington, DC, onde
ocupa atualmente a Ignacio Ellacuría Chair of Catholic Social
Thought. Também participa no East Asian Pastoral Institute,
de Manila, e no Liverpool Hope University, da Inglaterra. E o
primeiro presidente não anglo da Catholic Theological Society
of USA. É o coordenador da série Theology in Global Pers­
pective, de Orbis Books, e da série Ethnic American Pastoral
Spirituality, de Paulist Press.

A loysius PIERIS
Jesuíta e diretor do Centro de Estudos Tulana, em Kelaniya,
Sri Lanka. Fez seu doutorado em Estudos Budistas, o primeiro
concedido a um não budista pela Universidade de Sri Lanka.

RRI
Catedrático de Teologia em várias universidades, ensinou tanto
em faculdades católicas como protestantes. Escritor prolífico,
escreveu, entre outros livros, El rostro asiático de Cristo. No­
tas para una teologia asiática de la liberación (Salamanca:
Sígueme, 1991 - original em alemão: Freiburg: Herder, 1986).

Richard RENSHAW
Religioso da Santa Cruz, canadense. Nascido em 1940,
ensinou filosofia na Universidade de Santo Tomás (Canadá,
1969-1971) depois do que decidiu dedicar-se à animação de um
bairro pobre em Toronto e à formação de comunidades de base.
Nesse período viveu como padre operário. Depois, passou 11
anos no Peru (anos 1980) como pároco, diretor de formação e
editor da DOC (Lima), além de lecionar no Instituto Superior
de Teologia. Foi Secretário Geral Adjunto da Conferência dos
Religiosos do Canadá, Diretor Adjunto em “Desenvolvimento
y Paz”, organismo de ajuda internacional da Igreja católica ca­
nadense, copresidente do Comitê de Direitos dos Aborígenes
(Comitê Ecumênico Nacional no Canadá), presidente da Coo­
perativa de Vivienda Abiwin (Ottawa), membro das diretorias
de Yancana Huasi (Lima) e de Kairos: Iniciativas Ecumênicas
para a Justiça (Toronto). Participou da Iniciativa Ecumênica do
Jubileu no Canadá e foi representante da Conferência Episcopal
no Comitê de Justiça e Paz do Conselho Canadense de Igrejas.
Agora milita em projetos comunitários de Montréal. Publicou La
Tortura en Chimbote (IPEP, Perú, 1985) e participou de vários
livros coletivos, como: Stone Soup: Reflections on Economic
Injustice, Paulinas, 1997, e Making a New Beginning: Biblical
Reflections on Jubilee, CEJI, 1998.
José A m an d o ROBLES
Sociólogo da religião, atualmente coordenador do “Programa
de Espiritualidade Mestre Eckhart” do Centro Dominicano de
Pesquisa (CEDI), em Heredia, Costa Rica. Desde sua fundação
em 2004 participa nos Encontros Internacionais Anuais organi­
zados pelo Centro de Estudos das Tradições Religiosas (CETR)
de Barcelona. Entre suas obras são de destacar: Repensar la
religión: de la creencia al conocimiento, EUNA, Heredia (Costa
Rica) 2002; Hombre y mujer de conocimiento. La propuesta de
Juan Matus y Carlos Castaneda, EUNA, Heredia (Costa Rica),
2006; ^Verdad o símbolo? Naturaleza dei lenguaje religioso,
Editorial Sebila, San José (Costa Rica), 2007.

K. L. SESHAGIRI RAO
Professor emérito do Departamento de Estudos Religiosos,
da Universidade de Virgínia e redator-chefe da Enciclopédia
do Hinduísmo, é um dos editores fundadores do Interreligious
Insight, publicado pelo World Congress of Faiths, de Londres,
e Reitor da Thanksgiving Foundation, Dallas, TX. Membro do
conselho editorial das revistas Dialogue and Alliance e Gandhi
Marg. Escreveu vários livros, numerosos artigos, e organizou
alguns livros, dentre os quais, quatro volumes sobre Tradições
Religiosas do Mundo. Como professor de Religião comparativa
e Chefe do Guru Gobind Dingh Department of Religious Stu-
dies (Punjabi University, Patiala), ajudou a formar o primeiro
departamento desse tipo nas Universidades da índia. Suas áreas
de especialização são religiões indicas, estudos gandhianos, e
diálogo inter-religioso. Participou em Consultas da UNESCO,
bem como no Foro Econômico de Davos.
A fon so Maria Ligorio SOARES
Livre-Docente em Teologia pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, PUC-SP (2009), Doutor em Ciências da
Religião pela Universidade Metodista de São Paulo-UMESP
(2001), com pós-doutorado em Teologia pela Pontifícia Univer­
sidade Católica do Rio de Janeiro-PUC-RJ (2005). É mestre em
Teologia Fundamental pela Pontifícia Universidade Gregoriana
(Roma, 1990). É Professor Associado da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP) onde leciona e pesquisa no
Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências da Religião.
Exerceu mandato trienal (2007-2010) como Presidente da So­
ciedade de Teologia e Ciências da Religião do Brasil (SOTER)
e foi Vice-presidente da INSeCT-International Network of So-
cieties for Catholic Theologies (2008-2011). É editor científico
da revista eletrônica Ciberteologia (www.ciberteologia.org.br) e
coeditor da Revista REVER - Revista de Estudos da Religião,
da PUC/SP (http://www.pucsp.br/rever/). Publicou: Interfaces
da revelação: pressupostos para uma teologia do sincretismo
religioso. Religião & Educação e No espírito do Abbá: fé, re­
velação e vivências plurais, todos por Paulinas Editora.

F austino TEIXEIRA
Mestre em teologia pela Pontifícia Universidade Católica
de Rio de Janeiro, e doutor com pós-doutorado na Pontifícia
Universidade Gregoriana, Roma. Dedicado ao estudo do diá­
logo inter-religioso. Professor no Departamento de Ciência da
Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, e coordenador
do programa de pós-graduação em ciências da religião. Publicou
muitos artigos em revistas como Vozes, REB, Convergência
e Concilium, e vários livros, dentre os quais o primeiro livro
latino-americano sobre teologia do pluralismo religioso: Teolo­
gia de las religiones. Una visión panorâmica, Abya Yala, Quito
2004, coleção Tempo Axial. É membro de ISER-Assessoria, e
dá cursos e conferências em incontáveis encontros de pastoral.

José Maria VIGIL


Teólogo, psicólogo clínico, e Doutor em Educação (Uni­
versidade La Salle da Costa Rica). Atualmente, coordenador
da Comissão Teológica Internacional (internationaltheologi-
calcommission.org) da ASETT (www.eatwot.org). Diretor da
publicação anual Agenda Latino-americana, publicada desde
1992, em 18 países, em 6 idiomas (latinoamericana.org). Coor­
denador dos Serviços Koinonía (servicioskoinonia.org), serviço
telemático de documentação e reflexão sobre a teologia da
libertação e a teologia pluralista. Com A. Torres Queiruga e
L.C. Susin dirigiu o número da revista Concilium sobre teolo­
gia do pluralismo religioso (2007). Autor de numerosos artigos
e livros, dentre os quais, Espiritualidad de la liberación, com
Pedro Casaldáliga (edições em 14 países, em quatro idiomas),
e Teologia dei pluralismo religioso, Abya Yala, Quito 2005.
Nesta editora dirige a Coleção “Tempo Axial” em espanhol,
e em português na editora Paulus, de São Paulo. Naturalizado
nicaraguense, mora no Panamá.
E1. J s t c l i v r o foi e s c r i t o p a r a t o d o s a q u e l e s q u e e s t ã o i n q u i e t o s s o b r e
o f u t u r o d a t e o l o g i a : p a r a o n d e v a i ? P a r a o n d e p o d o ir? P a r a o n d e
p a r e c e q u e ir á ?
A p re s e n ta u m b a la n ç o le ito p o r p e s s o a s d e d ic a d a s à te o lo g ia e m
to d o o m u n d o e nas d ife re n te s relig iõ es m u n d ia is, e traz u m resu ltad o
e n tu s ia s m a n te : a te o lo g ia se m o v e . está e v o lu in d o , se a rris c a , se
au to q u e stio n a , se p erg u n ta so b re as tra n sfo rm a ç õ e s q u e te m d e realizar
p ara s e r te o lo g ia d e b o je . e te o lo g ia d o fu tu ro .
H o fu tu ro p a re c e e n c a m in h a r - s e ru m o a u m m o d e lo p lu ralista ,
p lu rie o n fe ssio n a l. in te r-re lig io so ou m u ltir re lig io s o . ou até
t r a n s r e l i g i o s o . I lá o s q u e f a l a m t a m b é m d e u m a t e o l o g i a p ó s - r e l i g i o n a l
(re lig io sa, p o ré m , a lé m d a s relig iõ es, e m u m p la n o m a is p ro fu n d o ).
O s c o a u lo r e s d e s te liv ro n o s o f e r e c e m a lg u m a s p á g in a s d ig n a s d e
se re m e s tu d a d a s e m e d ita d a s, para u m b o m d is c e rn im e n to , b s p e ra m o s
q u e a c o n c lu s ã o d e le ito re s e le ito ra s se ja , c o m o a n o s s a , a d e q u e
a m e m b o n s te m p o s p ara a teo lo g ia, te m p o s d e e f e rv e s c ê n c ia , d e n o v a s
p ro p o s ta s , d e e x p e r iê n c ia s a rrisc a d a s , d e lu lu ro ab e rto .

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