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EDUARD HENRY LUI

A IMPRENSA E A FÉ PROTESTANTE

Trabalho apresentado à disciplina de


História do Impresso. Do programa
PROFEPT, da Universidade Federal do
Paraná. Sob a orientação da professora
Dra. Júlia G.S. Oliveira.

CURITIBA

2022
1 Introdução

O presente ensaio pretende discutir brevemente a questão da importância da


imprensa no contexto da Reforma Protestante e, posteriormente, na expansão da fé
reformada que chega ao Brasil em meados dos anos 1850 efetivamente, com a
convicção do dever missionário dos protestantes americanos e ingleses,
principalmente.

O texto tem por base minha proposta de tese para doutoramento que trata do
estabelecimento da fé protestante da denominação dos batistas nas terras
brasileiras. Um dos intermediários é o missionário judeu-polonês Solomon Luíz
Ginsburg, que se converteu ao protestantismo na Europa e, em terras brasileiras
tornou-se um fiel missionário da denominação batista, patrocinado pela Junta
Missionária de Richmond na Virgínia. O período em que esteve no Brasil foi
responsável, entre outros, por criar a Convenção Batista Brasileira, foi o criador e
editor de O Jornal Batista, periódico que consiste em uma de minhas principais
fontes pois acompanha o nascimento da organização denominacional no Brasil e
circula até o presente como fonte de informação e propagação da fé dos membros
das igrejas batistas espalhadas pelo país. Além desses elementos também foi o
organizador do primeiro hinário batista no Brasil, o Cantor Cristão. Neste hinário foi
seu principal editor, autor e tradutor de hinos caros aos batistas até o presente.

Neste ensaio pretendo discutir a força do papel da imprensa no meio


protestante e dialogar com o autor Jean-François Gilmont sobre o papel da imprensa
no contexto da Reforma Protestante do século XVI.
2 A difusão do impresso e o impacto nas Reformas

É uma analogia comum associar o sucesso das reformas protestantes com o


advento da imprensa impulsionado por Gutenberg, no entanto, este ponto tem sido
discutido e questionado. Atribuir o sucesso das Reformas à imprensa é muito
comum e natural. Não é por demais impróprio observar que essa afirmação tem
mais a ver com o lugar-comum do que com a análise erudita. (GILMONT, 1999,
p.47)

É certo que a evolução na tecnologia relacionada ao impresso foi um grande


fato e impactou de forma significativa na circulação e distribuição de textos,
especialmente porque barateava essa produção, no entanto, essa percepção foi
lenta, gradativa e facilmente observável após seu estabelecimento. Importante
considerar, conforme aponta Gilmont (1999), que a sociedade europeia no início do
século XV ainda era majoritariamente analfabeta.

Aos poucos a comercialização de livros ganha ares de novidade, trazendo


novos formatos, novas preocupações em uma estética diferenciada dos antigos
manuscritos. É momento de ampliação da rede de oficinas tipográficas,
especialmente em regiões da atual Itália, Alemanha e França.

Um dos elementos fundamentais para difusão das ideias protestantes foi o


contexto da difusão do uso das línguas nacionais. Característica essa que é um
traço marcante do protestantismo. É possível perceber uma triangulação importante
na Europa ocidental entre o protestantismo, a difusão da imprensa e o uso das
línguas nacionais. Gilmont (1999) afirma que uma das preocupações dos
reformadores é dispor da Bíblia em língua vernácula; e isso não é uma preocupação
apenas de Lutero, mas um traço marcante entre alguns pastores e teólogos suíços,
holandeses, italianos, franceses e ingleses, que propunham a tradução da Bíblia
para a linguagem nacional na mesma época em que Lutero está realizando sua
tradução para o alemão.

É fato que, o fenômeno editorial da Bíblia impressiona. Inúmeras reedições


são feitas. A Bíblia de Lutero, por exemplo, teve mais de 400 reedições totais ou
parciais antes de sua morte, de acordo com Gilmont. Para além da Bíblia, tornou-se
também necessários várias outras publicações como catecismos, salmos,
comentários bíblicos e outros livros litúrgicos e de natureza teológica voltados para
uma elite de sacerdotes que se formavam na nova doutrina cristã.

O grande impacto das obras editoriais protestantes afetou diretamente o ramo


católico que tratou de proibir a difusão desses livros. É neste contexto que as
autoridades católicas começam a redigir o Indices librorum prohibitorum (GILMONT,
1999, p. 51). Havia muitos eclesiásticos que temiam que a imprensa estimulasse
leigos comuns a estudar textos religiosos por conta própria em vez de acatar o que
lhe dissessem as autoridades (BURKE, 2002, p. 174).

Neste sentido de análise é possível apreender o quanto o livro tornou-se um


agente eficaz em prol da Reforma. No entanto, a proliferação dos impressos não
teve um impacto tão extravagante na difusão das ideias protestantes quanto se
supõe. Gilmont aponta para alguns impasses que chegam com a difusão do
impresso que desmitificam, em partes, essa tese que há muito se entronizou como
uma certeza histórica.
3 Os livros vistos com desconfiança

Lutero é um dos primeiros a olhar para a superabundância dos livros com


desconfiança. Ele acredita que existem muitos livros, alguns ele considera inúteis,
outros ele acha que são mesmo perigosos. Gawthrop e Strauss, segundo Gilmont,
analisam que o discurso de Lutero mudou ao longo de sua vida. Houve certamente
um momento que Lutero defendeu que cada cristão devesse ler e estudar a Bíblia
por si próprio, no entanto, após os eventos das Guerras Camponesas, ele já muda
seu discurso e defende a ideia de um controle da Igreja no acesso à Bíblia
(GILMONT, 1999, p. 54).

No mesmo sentido, Peter Burke apresenta um João Calvino preocupado com


a difusão e na grande quantidade de livros dispostos às pessoas. Ele utiliza termos
como uma “floresta” na qual os leitores poderiam se perder; ou; eram um “oceano”
pelo qual os leitores tinham de navegar, ou uma “inundação” de material impresso
em meio a qual era difícil não se afogar (BURKE, 2002, p. 175).

O fato de que as Reformas se posicionam na passagem do medievo para a


Modernidade, apresenta o fato de que a maioria das pessoas ainda não foram
alfabetizadas1. Portanto, embora exista uma grande difusão literária, a oralidade
ainda é fundamental. Gilmont (1999) cita que Lutero lamenta a excessiva difusão de
seus livros e afirma que preferiria que aumentasse o número de pregadores.

É sob essa constatação que se atribui uma grande importância ao uso do


canto como forma de difusão das doutrinas e como forma de memorizar aspectos da
religiosidade reformada.

Para Lutero a música é vista como um importante instrumento de divulgação


da fé reformada. Assim, Lutero criou o estilo musical denominado Coral,
caracterizado pelo uso da língua local (no caso, a língua alemã) em oposição ao
latim comumente usado nas liturgias católicas, o uso de uma métrica versificada e
silábica, cantada em uníssono e à capella. Lutero se apropriou de hinos latinos e
medievais, de canções populares cujas letras eram substituídas por letras de cunho
religioso. Para ele, as letras determinavam a sacralidade da música. DOLGHIE

1
R. Engelsing estima que de 3% a 4% da população alemão sabia ler por volta de 1500.
(GILMONT, 1999, p. 58).
(2006) constata, portanto, que, desde o início da música protestante existe a
aproximação da música popular com a música erudita.

O estilo difundido por Calvino, os Salmos, eram assim chamados porque ele
entendia que os Salmos da Bíblia eram a única forma de se cantar a Deus. Eles
eram cantados metricamente em uníssono e à capella. Calvino, assim como Lutero,
prezava pela simplicidade musical. O chefe da igreja de Genebra publicou o Saltério
com regras rígidas de composição; eles se tornaram populares e influenciaram a
música sacra na Inglaterra, Escócia e Estados Unidos.
Para além da difusão dos textos, as músicas também passam a ser
impressas, muito embora elas sirvam, principalmente, como um suporte de memória
(GILMONT, 1999, p. 61), considerando que a maioria dos fiéis eram, além de
incapazes de ler as letras, também pouco, ou nada, conhecedores de notação
musical.
Constata-se que, nesta difusão de saberes impressos, reformadores como
Lutero e Calvino, tiveram um primeiro momento de euforia com a difusão dos
escritos e, após um amadurecimento das ideias, passaram a olhar a grande
distribuição de livros como algo que precisava ser avaliado, cuidado e muitas vezes,
censurado. Gilmont afirma que o panorama que precede parece levar a duas
exegeses contraditórias da história da leitura: a Reforma mudou tudo, a Reforma
nada mudou (1999, p.71).
A oralidade manteve-se fundamental na difusão e consolidação da fé
europeia do período. O uso da Bíblia passou a ser estimulado de preferência nos
cultos; quando em família, orientado por comentários autorizados. Conclui-se que a
livre interpretação da Bíblia não foi difundida assim tão livremente quanto se
supunha. No entanto, Gilmont conclui que os protestantes, embora sofram algumas
restrições, ainda assim são convidados à leitura, todavia, não se pode afirmar que a
alfabetização em larga escala da sociedade europeia se deu exclusivamente pelo
elemento religioso.
4 Considerações finais

A partir da leitura de Gilmont e apoiado em Burke, constato sobre a


importância da imprensa nos meios religiosos, em especial aos movimentos ligados
ao protestantismo histórico. Abordagem sensível à minha pesquisa que considera
tratar do uso de um periódico pelos protestantes batistas no Brasil da virada do
século XIX ao século XX.
Os protestantes sempre se orgulharam de serem os responsáveis pela
difusão da alfabetização. É neste ponto que Gilmont traz algumas considerações
que relativizam essa constatação. De forma alguma o autor nega a importância da
imprensa no contexto da Reforma, mas questiona sobre a difusão dos impressos
entre os protestantes ser algo intrínseco à sua formação, dados os pontos de vista
de Lutero e Calvino sobre a difusão do livro e da leitura entre os fiéis.
É fundamental analisar as mudanças de percepção que esses importantes
reformadores tiveram a respeito da difusão dos impressos. Se por um lado havia um
incentivo à prática da leitura, evidenciado pelas inúmeras traduções da Bíblia para
as línguas nacionais; por outro lado percebe-se a preocupação com a difusão de
textos que muitas vezes saíam do controle das lideranças eclesiásticas protestantes.
A quantidade de livros e a qualidade dos mesmos muitas vezes foi questionada
pelas autoridades teológicas do período. Considera-se que a Reforma (ou as
reformas) não rompe com o monopólio da erudição, mas entra em disputa por esta
erudição.
Passados séculos desde o início das Reformas, a ampla utilização do
impresso tornou-se marca indistinta das comunidades protestantes. Não apenas nas
Bíblias ou nos catecismos, mas uma infinidade de recursos teológicos e litúrgicos
tomaram conta desses meios.
O uso do jornal, por exemplo, foi um recurso muito eficaz e amplamente
difundido entre as denominações evangélicas na Europa e no Novo Mundo. Na
virada do século XIX para o XX, a comunicação entre essas comunidades
denominacionais encontraram nos periódicos uma forma eficiente de conhecimento
mútuo e maneira de consolidar o trabalho dos missionários que, a grandes
distâncias, levavam a Palavra evangelizadora para diferentes países e continentes.
É nesse contexto que se insere a minha pesquisa e que pretendo desenvolver
ainda mais elementos para justificar a tese da importância da imprensa para a
divulgação da fé protestante no Brasil.
Referências

BURKE, Peter. Problemas causados por Gutenberg: a explosão da informação nos


primórdios da Europa Moderna. Estudos Avançados, 16, (44), 2002, p. 173-185.

DOLGHIE, Jaqueline Ziroldo. Um estudo sobre a formação da hinódia protestante


brasileira. In Âncora (Instituto Âncora de Ensino. Online), v. 1, 2006, p. 83-106.
GILMONT, Jean-François. Reformas Protestantes e leitura. In. CAVALLO, G.;
CHARTIER, R. História da Leitura no Mundo Ocidental 2. São Paulo: Ática, 1999,
p. 47-77.

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