Você está na página 1de 5

1

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA


INSTITUTO DE BIOLOGIA
SÉRIE TEXTOS DIDÁTICOS – ANO 2023: OPINIÃO

O CONCEITO EVOLUTIVO DE “PLANTA”1

Cid José Passos Bastos


Professor Titular
Instituto de Biologia
Universidade Federal da Bahia
CV: http://lattes.cnpq.br/5779259437028028
orcid.org/0000-0002-0624-5696

O entendimento do conceito dos seres vivos que denominamos “planta” requer a compreensão da história
evolutiva dos eucariontes (seres que apresentam sistemas de membranas na sua organização intracelular), o que
foge do escopo desse breve ensaio. Um ponto importante é que os eucariontes compartilham mesmo ancestral
comum com um grupo de Arqueias, denominado “Asgard”. Dessa forma podemos considerar que existem apenas
dois grandes Domínios: Bacteria e Archea, sendo que os Eukarya estão inclusos no Domínio Archea (ver Williams
et al. 2019 e Doolittle 2020 para compreensão desse conceito). A célula eucariótica é resultado de eventos de
endossimbiose entre uma Archea e um grupo de Bacteria. Para esclarecimento dessa interessante história evolutiva
podem ser consultadas as seguintes publicações: Strassert et al. (2021), Strother et al. (2021), Raval et al. (2022),
Yazaki et al. (2022), Jawari & Baldauf (2023), entre outras.
Mas afinal, o que é “planta”? O que significa “ser uma planta, ou um vegetal”? Essas são questões que
sempre causam controvérsias e, na maioria dos casos, interpretações equivocadas; muitas vezes, socialmente, o
termo “vegetal” é utilizado para retratar um estado de imobilidade. Esse é o primeiro equívoco. Nenhum organismo
ao qual se denomina como “planta”, no contexto geral desse termo, é imóvel; pode não apresentar deslocamento,
no nível individual, mas apresenta diversos movimentos, muitos deles fora do alcance da nossa pequena percepção
visual.
Bem, interpretações à parte, vamos pensar sobre o que é, biologicamente (e, consequentemente,
evolutivamente) uma “planta”. De modo muito simples, sempre consideramos como “planta” os organismos de cor
verde (geralmente), que se dispersam por esporos ou sementes (conforme o grupo considerado) e que realizam
fotossíntese. Para entendimento desse conceito, é necessária uma pequena viagem de retorno a uma época de,
aproximadamente, 2,5-3,0 Ga (Giga anos), ou seja, à origem da fotossíntese. Não será necessário, nesse pequeno
ensaio, fazer uma análise desse processo, uma vez que a literatura já oferece isso. Apenas irei comentar alguma
coisa.
O surgimento da fotossíntese foi um dos grandes e cruciais eventos evolutivos do planeta Terra. Estima-se
que esse processo tenha ocorrido há aproximadamente 3,0 Ga, a partir de evidências obtidas dos estromatólitos (ver
Willis & McElwain 2014). A fotossíntese oxigênica, ou seja, aquela que utiliza água como doador de hidrogênio

1
Esse texto foi atualizado e apresenta trechos extraídos de outro texto didático elaborado pelo mesmo autor [Bastos, C.J.P. Um conceito
Filosófico de Espécie. Série Textos Didáticos, ano 2023 (não publicado)].
2

(ou prótons/elétrons), liberando oxigênio como subproduto, passou a existir com as cianobactérias há
aproximadamente 2,3 Ga, alterando profundamente as características da atmosfera da Terra, impulsionando vários
outros eventos evolutivos (ver Soo et al. 2017). Outras bactérias, entretanto, realizam fotossíntese não oxigênica,
utilizando outros hidretos, como o ácido sulfídrico, por exemplo, como doador de hidrogênio, liberando enxofre
como subproduto. Para a nossa discussão, nos interessa apenas a fotossíntese oxigênica.
Em primeiro lugar, os organismos que realizam a fotossíntese são quimeras, produtos da endossimbiose entre
uma cianobactéria e um organismo eucarionte heterotrófico, em geral aeróbico (os organismos aeróbicos utilizam o
oxigênio como aceptor final de elétrons no processo de oxidação da matéria orgânica). Esse heterotrófico por sua
vez, igualmente é uma quimera, resultante de um processo endossimbiótico envolvendo um hospedeiro arqueal e
uma proteobactéria como endossimbionte. Tal evento teria ocorrido, conforme evidências, entre 1,5 e 1,8 bilhão de
anos. Geralmente sugere-se que a célula eucariótica teria se originado por endossimbiose envolvendo uma arquea e
uma proteobactéria, ou seja, uma arquea teria engolfado uma proteobactéria, com subsequente evolução originando
uma célula mononucleada e com mitocôndrias. No entanto, de acordo com Skejo et al. (2021), o ancestral
eucariótico (LECA = último ancestral comum eucariótico) provavelmente tinha um estágio multinucleado e era
mitocondrial, sexual e meiótico. A aquisição de mitocôndrias é explicada, também, pela teoria sintrófica que,
resumidamente, postula uma origem tripartite envolvendo uma arquea, uma α-proteobactéria (esta teria originado a
mitocôndria) e uma delta-proteobactéria. Após modificações necessárias ao hábito intracelular, o endossimbionte é
conhecido como “mitocôndria”. Para detalhes das teorias ou modelos que explicam a origem das células
eucarióticas consultar, especialmente, as publicações de Skejo et al. (2021), López-Garcia & Moreira (2020) e
Baluska & Lyons (2021), além das já citadas anteriormente. Outros eventos endossimbióticos ocorreram,
culminando com a origem dos plastídios e, consequentemente, de eucariotos fotossintetizantes. De acordo com as
teorias vigentes, um heterotrófico (ou seja, incapaz de sintetizar moléculas orgânicas complexas a partir de
substâncias inorgânicas) unicelular teria engolfado uma cianobactéria. Entenda-se que esse processo não deve ter
sido um simples “engolfamento” ou captura; muito provavelmente trocas de mensagens químicas entre o futuro
hospedeiro e o endossimbionte devem ter ocorrido, provocando o estímulo para penetração da cianobactéria no
eucarionte heterotrófico unicelular, já que se trata de uma associação não parasitária. Assim, as algas vermelhas
(Rhodophyta), as glaucófitas (Glaucophyta), as algas verdes (Chlorophyta) e as estreptófitas (Streptophyta: algas
carofíceas + plantas terrestres) obtiveram seus plastídios através desse processo de endossimbiose, denominado
endossimbiose primária. Portanto, esses grupos tiveram a sua origem a partir desse processo de endossimbiose.
Os demais grupos de algas (entenda-se: organismos primariamente fotossintetizantes) foram originados a partir de
processos de endossimbiose serial (foge ao escopo desse breve ensaio o aprofundamento desse assunto; recomendo
as publicações de Strassert et al. 2021, Yazaki et al. 2022, Jewari & Baldauf 2023 para melhor entendimento da
filogenia dos eucariotos e o reconhecimento dos atuais supergrupos). Após algumas modificações necessárias a
uma vida intracelular, esse endossimbionte é conhecido como “plastídio”. Strassert et al (2021) fizeram uma boa
análise das relações entre as diversas linhagens com plastídios derivados de rodofícea, reconhecendo uma nova
hipótese para explicar a aquisição de plastídios derivados das rodofíceas, a hipótese rodoplex, que preconiza o
processo de endossimbiose serial: uma única endossimbiose secundária entre uma rodofícea e um hospedeiro
eucarioto, seguida de outras em ordem crescente, ou seja, endossimbiose terciária e quaternária, distribuindo os
plastídios para grupos não filogeneticamente relacionados. A outra hipótese, a de cromoalveolata, considerando que
3

as linhagens contendo plastídios derivados de rodófitas são mais estreitamente relacionadas com linhagens sem
plastídios, iria requer extensiva perda de plastídios, o que para muitas linhagens isso não tem sido evidenciado (ver
Strassert et al. 2021 para maiores detalhes).
Considerando os eventos de endossimbiose — que deram origem às mitocôndrias e aos plastídios —
filosoficamente, então, quem continua realizando a respiração celular é a bactéria aeróbica e quem continua
realizando a fotossíntese é a cianobactéria, independentemente da estrutura do organismo hospedeiro (se unicelular
ou multicelular). Para uma visão geral da filogenia dos eucariontos e os supergrupos atualmente reconhecidos,
recomenda-se as publicações de Burki (2014), Burki et al. (2020), Skejo et al. (2021), Strassert et al. (2021),
Céron-Romero et al. (2022), Yazaki et al. (2022), Jewari & Baldauf (2023).
Retornando novamente ao foco desse ensaio, resta a pergunta: por que considerar apenas como “planta” os
organismos com plastídio primário (Archaeplastida)? Qual o argumento forte que sustenta esse conceito? Seria a
maior complexidade morfológica? A capacidade de realizar fotossíntese? O que seria então, afinal? Não encontro
argumentos que sustentem essa ideia. Entre os Archaeplastida há um grupo no qual se situam as plantas terrestres
ou Embriófitas: Viridiplantae ou Chloroplastida, cujos membros são caracterizados pelo predomínio das clorofilas
(clorofilas a, b) e a presença de amido como produto de reserva (simplificadamente). Nesse grupo estão as algas
Chlorophyta, todas as linhagens de carófitas (as carófitas não constituem um grupo monofilético) e as Embriófitas
ou plantas terrestres (as Embriófitas, junto com as carófitas, constituem o clado Streptophyta). Os demais membros
de Archaeplastida são Rhodophyta e Glaucophyta.
Se pensarmos em nível de organização morfológica, os membros de Archaeplastida, respeitadas as
especificidades, apresentam todos os níveis de organização: unicelular (isolado, colonial e cenobial), filamentoso,
pletenquimático (prosopletenquimático e pseudoparenquimatoso) e hístico. Então, esse critério de complexidade
morfológica não se aplica e, assim, perde valor. Fisiologicamente, em todos os outros clados existem organismos
que realizam fotossíntese oxigênica (ou seja, aquela em que é utilizada água como doador de prótons, ou melhor,
de hidrogênio, resultando na liberação de oxigênio como subproduto), herança da cianobactéria endossimbionte.
Portanto, não só os Archaeplastida realizam esse processo. Dessa forma, esse critério também não se sustenta.
Concluindo a minha opinião, a aplicação do termo “planta”, considerando as recentes filogenias dos
Eukarya, é inadequado e sem respaldo evolutivo. O reconhecimento dos supergrupos e de suas interrelações é o
recurso mais adequado para expressar a complexidade dos eventos que moldaram a história evolutiva dos
eucariotos. Na verdade, considerando a hipótese filogenética, “planta” não existe como entidade natural e, sendo
assim, não constitui uma categoria taxonômica. É apenas um nome comum para organismos eucariontes que
realizam fotossíntese oxigênica, mas considerando a árvore filogenética atual dos eucariotos, o termo “planta”
perde qualquer sentido. A raiz de tudo isso remonta à história da Ciência; durante muito tempo, pensou-se que
existiam apenas dois grandes “Reinos”, Animalia e Plantae, o primeiro sendo estudado pela Zoologia e o segundo
pela Botânica. Após várias modificações desse conceito, surgiu o sistema dos Cinco Reinos (modificado por
Margulis & Schwartz 2001): Prokaryotae, Protoctista, Fungi, Plantae e Animalia. Desses grupos, quatro
continuaram sendo estudados pela Botânica (Prokaryotae, Protoctista, Fungi e Plantae). Com a adoção do conceito
filogenético, esses grandes “Reinos” não mais existem; o que existe atualmente são dois grandes Domínios,
Archaea e Bacteria, e os Supergrupos dos Eukarya. Os Eukarya foram resolvidos como grupo irmão de uma
linhagem de Archaea (ver as publicações de Williams et al. 2019, Doolittle 2020, Jewari & Baldauf 2023). Os
4

Supergrupos de Eukarya atualmente aceito, conforme Jewari & Baldauf (2023), são: Parabasalia, Fornicata,
Preaxostyla, Discoba, Amorphea, Archaeplastida, SAR (Stramenopila, Alveolata, Rhizaria).
Finalizando, não tem sentido a discussão do que seja “planta” ou “vegetal”, ou “animal”, ou mesmo já não
deveria existir essa dicotomia em “Zoologia” e “Botânica”. Consoante o conhecimento atual, já não há necessidade
e utilidade para se continuar com esses conceitos e essa separação. Na verdade, o termo “planta” ou “vegetal” já
não deveria ser utilizado nos meios acadêmicos, pois não retrata a história evolutiva do grupo e nem mesmo
qualquer aspecto morfológico ou fisiológico; igualmente, os termos zoologia e botânica já não fazem sentido. O
que se estuda é a Biodiversidade, sejam organismos autotróficos (fotossintetizantes ou não) ou heterotróficos e
mixotróficos, com os seus diversos níveis de organização.

Literatura citada e recomendada

ARCHIBALD, J.M. 2009. The puzzle of plastid evolution. Current Biology 19: R81-R88.
ARCHIBALD, J.M. 2015. Endosymbiosis and eukaryotic cell evolution. Current Biology 25: R911-R921.
BALUŠKA, F. & LYONS, S. 2021. Archaeal origins of Eukaryotic cell and nucleus. BioSystems 203: 104375.
https://doi.org/10.1016/j.biosystems.2021.104375
BURKI, F. 2014. The eukaryotic tree of life from a global phylogenomic perspective. Cold Spring Harb Perspect.
Biol. 6: a016147.
BURKI, F., RIGER, A.J., BROWN, M.W. & SIMPSON, A.G.B. 2020. The new Tree of Eukaryotes. Trends in
Ecology & Evolution 35(1), https://doi.org/10.1016/j.tree.2019.08.008
CÉRON-ROMERO, M.A., FONSECA, M.M., MARTINS, L.O., POSADA, D. & KATZ, L.A. 2022.
Phylogenomic analysies of 2,786 genes in 158 lineages support a root of the eukaryotic Tree of Life between
Opisthokonts and all Other lineages. Genome Biol. Evol. 14(8), https://doi.org/10.1093/gbe/evac119
DE VRIES, J. & ARCHIBALD, J.M. 2017. Endosymbiosis: Did plastids evolve from a freshwater
Cyanobacterium? Current Biology 27: R103-R122.
DE VRIES, J. & GOULD S.B. 2017. The monoplastidic bottleneck in algae and plant evolution. Journal of Cell
Science, DOI 10.1242/jcs.203414
DOOLITTLE, W.F. 2020. Evolution: Two Domains of Life or Three? Current Biology 30: R159-R179
KEELING, P.J. 2013. The number, speed, and impact of plastid endosymbioses in eukaryotic evolution. Ann. Rev.
Plant Biol. 64: 583-607.
JEWARI, C.A. & BALDAUF, S.L. 2023. An excavate root for the eukaryote tree of life. Sci. Adv. 9, eade4973.
LÓPEZ-GARCÍA, P. & MOREIRA, D. 2020. The syntrophy hypothesis for the origin of eukaryotes revisited.
Nature Microbiology 5(5): 655-667.
McFADDEN, J. 2014. Origin and evolution of plastids and photosynthesis in eukaryotes. Cold Spring Harb
Perspect. Biol. 6: a016105, http://cshperspectives.cshlp.org/ Acesso em 15 de dezembro de 2018.
MARGULIS, L. 2001. O planeta simbiótico: uma nova perspectiva da evolução. Tradução: Laura Neves. Rio de
Janeiro: Rocco, 137 p.il.
MARGULIS, L. & SCHWARTZ, K.V. 2001. Cinco Reinos: um guia ilustrado dos filos da vida na Terra.
Tradução, Cecília Bueno. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan.
RAVAL, P.K., GARG, S.G. & GOULD, S.B. 2022. eLife 11: e81033. https://doi.org/10.7554/eLife.81033
5

SKEJO, J. et al. 2021. Evidence for a syncytial origin of eukaryotes from ancestral state reconstruction, Genome
Biol. Evol. 13(7): doi: 10.1093/gbe/evab096
STRASSERT, J.F.H., IRISARRI, I., WILLIAMS, T.A. & BURKI, F. 2021. A molecular timescale for eukaryote
Evolution with implications for the origin of red algal-derived plastids. Nature Communications 12: 1879.
https://doi.org/10.1038/s41467-021-22044-z
SOO, R.M., HEMP, J., PARKS, D.H., FISCHER, W.W. & HUGENHOLTZ, P. 2017. The origins of oxygenic
photosynthesis and aerobic respiration in Cyanobacteria. Science 355: 1436-1440.
STROTHER, P.K., BRASIER, M.D., WACEY, D., TIMPE, L., SAUNDERS, M. & WELLMAN, C.H. 2021. A
possible billion-old holozoan with differentiated multicellularity. Current Biology 31: 1-8.
WILLIAMS, T.A., COX, C.J., FOSTER, P.G., SZÖLLŐSI, G.J. & EMBLEY, T.M. 2019. Phylogenomics provides
robust support for a two-domains tree of life. Nature Ecology & Evolution 4: 138-147.
WILLIS, K.J. & McELWAIN, J.C. 2014. The evolution of Plants. Second Edition. Oxford: Oxford University
Press.
YAZAKI, E., YABUKI, A., IMAIZUMI, A., KUME, K., HASHIMOTO, T. & INAGAKI, Y. 2022. The closest
lineage of Archaeplastida is revealed by phylogenomics analyses that include Microheliella maris. Open Biol. 12:
210376. https://doi.org/10.1098/rsob.210376

Você também pode gostar