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NARA DE MORAES CÁLIPO DILLY

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PARA QUEM VOCÊ DANÇA? A CRIAÇÃO E A RECEPÇÃO DA DANÇA NO MÉTODO
BAILARINO-PESQUISADOR-INTÉRPRETE (BPI): UMA EXPERIÊNCIA COM AS
MULHERES QUEBRADEIRAS DE COCO BABAÇU E COM O TERECÔ
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Tese apresentada ao Instituto de Artes da
Universidade Estadual de Campinas como
parte dos requisitos exigidos para a
obtenção do título de Doutora em Artes da
Cena, na área de concentração Teatro,
Dança e Performance.
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Orientadora: Prof. a Dr. a Graziela Estela Fonseca Rodrigues
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ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO
FINAL DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA NARA
DE MORAES CÁLIPO DILLY, ORIENTADA PELA
PROFA. DRA. GRAZIELA ESTELA FONSECA
RODRIGUES.
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CAMPINAS
2016
Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): FAPESP, 2012/15352-7

Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Artes
Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180

Cálipo, Nara, 1987-


C129p C_aPara quem você dança? A criação e a recepção da dança no método
Bailarino-Pesquisador-Intérprete (BPI) : uma experiência com as mulheres
quebradeiras de coco babaçu e com o Terecô / Nara de Moraes Cálipo Dilly. –
Campinas, SP : [s.n.], 2016.

C_aOrientador: Graziela Estela Fonseca Rodrigues.


C_aTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

C_a1. Bailarino-Pesquisador-Intérprete. 2. Terecô - Culto. 3. Processo criativo.


4. Platéias de artes. I. Rodrigues, Graziela,1954-. II. Universidade Estadual de
Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Who do you dance for? Creation and reception in the Dancer-
Researcher-Performer (BPI) method : an experience with the female babassu coconut
breakers and with Tereco
Palavras-chave em inglês:
Dancer-Researcher-Performer
Terecô (Cult)
Creative process
Arts audiences
Área de concentração: Teatro, Dança e Performance
Titulação: Doutora em Artes da Cena
Banca examinadora:
Graziela Estela Fonseca Rodrigues [Orientador]
Paula Caruso Teixeira
Daniela Gatti
Isaira Maria Garcia de Oliveira
Carla Andrea Silva Lima
Data de defesa: 28-07-2016
Programa de Pós-Graduação: Artes da Cena

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)


BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE DOUTORADO

NARA DE MORAES CÁLIPO

ORIENTADOR(A): PROFA. DRA. GRAZIELA ESTELA FONSECA

RODRIGUES

MEMBROS:

1. PROFA. DRA. GRAZIELA ESTELA FONSECA RODRIGUES

2. PROF(A). DR(A). DANIELA GATTI

3. PROF(A). DR(A). PAULA CARUSO TEIXEIRA

4. PROF(A). DR(A). ISAIRA MARIA GARCIA DE OLIVEIRA

5. PROF(A). DR(A). CARLA ANDREA SILVA LIMA

Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena na área de concentração

Teatro, Dança e Performance do Instituto de Artes da Universidade Estadual

de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca

examinadora encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno.

DATA: 28.07.2016
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Àqueles(as) que optam por um “baiar” em plenitude e persistem nesta busca.
AGRADECIMENTOS

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À Prof.ª Dr.a Graziela Rodrigues, pelo rigor e precisão em sua orientação e direção. Por me
proporcionar a formação no método BPI ao longo desses onze anos. Por me fazer dançar.

Ao Núcleo BPI, pelo apoio em várias instâncias, permitindo a realização de muitas etapas desta
pesquisa.

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), por conceder a bolsa de
doutorado, proporcionando o desenvolvimento desta tese de doutorado.

À Prof.ª Dr.a Paula Caruso Teixeira e à Prof.ª Dr.a Larissa Sato Turtelli, pelas contribuições nesta
pesquisa.

À minha companheira de vida acadêmica, Elisa Massariolli da Costa, por cada conversa e ajuda
ao longo desses onze anos.

Às mulheres quebradeiras de coco babaçu e terecozeiras do Bico do Papagaio, que abriram suas
eiras permitindo minha imersão em seu universo.

À comunidade Olho D’Água, que me acolheu durante as pesquisas de campo.

Ao meu marido, Bruno Dilly, pelo incentivo, suporte e compreensão tão importantes neste
percurso.

À minha mãe, Fátima, e à minha irmã, Laura, pelo apoio incondicional e todo afeto.
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RESUMO
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Esta pesquisa aborda um exercício de recepção a partir do método Bailarino-Pesquisador-
Intérprete (BPI), sendo que a criação artística esteve centralizada na comunicação com os
espectadores os quais também foram a fonte coabitada. Essa experiência propiciou a ampliação
da área de investigação, uma vez que o referido exercício desencadeou um desenvolvimento
muito peculiar para o processo criativo que o sucedeu. Isso porque, após a realização da
experiência de criar e dançar para a fonte coabitada, o desenvolvimento da pesquisa continuou
ocorrendo no corpo da autora, tornando-se importante parte deste estudo. Foi constatado nesta
pesquisa que a questão da recepção não excluiu a discussão e o desenvolvimento sobre o
processo criativo, uma vez que se tornaram complementares. A tese traz descrições acerca do
terecô, manifestação proveniente do campo coabitado no processo de criação, realizado junto às
mulheres quebradeiras de coco babaçu; do processo de criação e recepção dessas mulheres frente
à obra apresentada; e do desenvolvimento do processo após a experiência, culminando na
incorporação da personagem Rosinha/Margarida.
Palavras-chaves: Bailarino-Pesquisador-Intérprete; Terecô - Culto; Processo criativo; Platéias de
artes.
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ABSTRACT
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This research approaches a reception exercise from the Dancer-Researcher-Performer Method
(BPI), whereas the artistic creation was centralized on the communication with the audience
which was also the cohabited source. This experience provided the enlargement of the
investigation´s area, since the referred exercise has begun a very peculiar development to the
ulterior creative process. Simply because, after the fulfillment of the creating and dancing to the
cohabited source experience, the research was still happening at the author´s body, becoming
important to this study. It was found that the reception´s issue did not exclude the creative
process discussion and development, for both of them have become complementary. The thesis
brings descriptions concerning the terecô, a manifestation from the research field cohabited
during the creative process, conducted among babaçu coconut-breaking women; the creative
process and the women´s reception of the presented artistic work; and the development of the
ulterior process that culminated with the incorporation of the character Rosinha/Margarida.
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Keywords: Dancer-Researcher-Performer; Terecô (cult); Creative process; Arts audiences.
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Lista de Figuras

Figura 1 – Altar da Tenda Santo Antônio.......................................................................................46


Figura 2 – Guna da Tenda Santo Antônio ….……………………………………………………47
Figura 3 – “Complexo” construído pela mestra Moura em meio à mata amazônica.....................48
Figura 4 – Salão de Moura enfeitado para o festejo de Santa Luzia…………………….……….49
Figura 5 – O mastro de Santa Luzia decorado com banana verde e folhas, sendo benzido antes de
seu hasteamento…………………………………………………………………………......……49
Figura 6 – Mestra Moura firmando uma vela em seu altar………………………………….……50
Figura 7 – Altar da tenda São Francisco…………………..………………………………….…..51
Figura 8 – Tenda São Francisco em dia de tambor. Ao centro, revestida em branco e verde, a
guna………………………………………………………………………………………………52
Figura 9 – Segundo altar na Tenda São Francisco, junto da mãe-boa (onde são proferidos castigos
físicos)............................................................................................................................................52
Figura 10 – Altar da Tenta Padre Cícero........................................................................................53
Figura 11 – Chica Preta e seu altar.................................................................................................55
Figura 12 – Médium faz uma pausa na dança e se relaciona com o altar no tambor da Tenda Santo
Antonio……………..…………………………………………………………………………….57
Figura 13 – Corpo do pé do tambor. Festejo na Tenda São Francisco, município de Carrasco
Bonito.............................................................................................................................................58
Figura 14 – Mestra Nezinha, cega, baia com um encantado em seu corpo (momento de fruição).
Festejo de Santa Luzia. Tenda Padre Cícero...................................................................................60
Figura 15 – Mestra ampara uma médium que necessita de ajuda. Tenda Padre Cícero.................61
Figura 16 – Médium no chão em ausência de tônus, levando à imobilidade. Tenda Padre
Cícero……………………………………………………………………………………………..61
Figura 17 – Corpo de passagem - o mestre toca o topo de sua cabeça (croa), com a da médium
que passa pelo momento de aflição, o objetivo é que ele receba em seu corpo aquele “mal” para
então dissipá-lo. Tenda Padre Cícero.............................................................................................62
Figura 18 – Mestra Nézinha com sua faixa retesada acima da cabeça Tambor de Sábado de
Aleluinha. Tenda Padre Cícero.......................................................................................................63
Figura 19 – Exemplo de momento de cura. Mestra Nézinha tira algo do corpo de sua médium
para dar passagem através do próprio corpo. Festejo de Santa Luzia. Tenda Padre Cícero……..67
Figura 20 – Mulher segurando uma bacia com utensílios domésticos para serem lavados no rio.
Comunidade Olho D’água……………………………………………………………………..…82
Figura 21 – Mulher quebradeira de coco babaçu lavando louça no rio. Comunidade Olho
D’água............................................................................................................................................83
Figura 22 – Meninas e mulheres se organizando para realizar uma brincadeira em grupo.
Comunidade Olho D’água……………………………………………………………………......84
Figura 23 – Mulher quebradeira de coco babaçu. Comunidade Olho D’água...............................84
Figura 24 – Mulher brincando com a filha em uma pausa na lavagem de roupas no rio.
Comunidade Olho D'água...............................................................................................................85
Figura 25 – Mestra Liciene. Tenda Santo Antonio. Sitio Novo do Tocantins................................85
Figura 26 – Mulher baiando terecô no festejo de Sábado de Aleluinha. Eira Padre Cícero, Grota
do Meio…………………………………………………………………………………………...86
Figura 27 – Mulher quebradeira de coco babaçu. Comunidade Olho D’Água..............................87
Figura 28 – Mulher baiando terecô no festejo sábado de Aleluinha. Tenda Padre Cícero. Grota do
Meio, São Miguel do Tocantins.....................................................................................................88
Figura 29 – Mulher colhendo coentro. Comunidade Olho D’Água………………………...........89
Figura 30 – Mulher baiando terecô no festejo de Sábado de Aleluinha. Tenda Padre Cícero. Grota
do Meio, São Miguel do Tocantins………………………………………………………………90
Figura 31 – Altar cenográfico no início do roteiro coreográfico, ainda sem as imagens das
mulheres. Apresentação na Tenda Padre Cícero. Grota do Meio - TO, janeiro de 2014...............93
Figura 32 – Altar cenográfico já composto pelas imagens das mulheres. Apresentação na Tenda
Padre Cícero. Grota do Meio - TO, janeiro de 2014......................................................................93
Figura 33 – Bailarina durante a cena “O chamado”. Apresentação na Comunidade Olho D’Água.
São Miguel do Tocantins, TO. Janeiro de 2014……………………………………………….....97
Figura 34 – Bailarina com o bulbo. Apresentação na comunidade Olho D’Água, São Miguel do
Tocantins - TO, janeiro de
2014………………………………………………………………………………………….….99
Figura 35 – Mulher com bacia de “sangue”. Apresentação na Tenta Padre Cícero, Grota do Meio -
TO, janeiro de 2014......................................................................................................................100
Figura 36 – Local onde ocorreu a apresentação durante a montagem do espaço cênico……….110
Figura 37 – Local onde foi realizada a apresentação no momento em que ocorria a montagem do
cenário…………………………………………………………………………………………..111
Figura 38 – Durante a apresentação. A demarcação do espaço cênico com coco babaçu...........112
Figura 39 – Espaço cênico na Tenda Santo Antonio....................................................................134
Figura 40 – A autora durante a instalação performativa realizada no Intituto de Artes
Unicamp…………………………………………………………………………………............157
Figura 41 – A autora em cena na instalação performativa realizada da praça Marco Zero da
Unicamp………………………………………………………………………………………....159
Figura 42 – Laboratório dirigido. Rosinha em momento de “peleja”, o esterno em direção ao chão
e uma das pernas para cima……………………………………………………………..........…166
Figura 43 – Laboratório. Postura altiva de Margarida ao falar de suas roupas bonitas………....166
Figura 44 - Rosinha em interação com Margarida através do vestido……………………169
Figura 45 – Altar cenográfico em formato de saia, contendo a imagem de Santa Luzia em seu
interior……………………………………………………………………………………….….170
Figura 46 – Rosinha realizando sua dança. Apresentação no IV Seminário do PPGAdC……...170
Figura 47 – Margarida realizando sua dança. Apresentação no IV Seminário do PPGAdC....…171
Figura 48 – Margarida realizando sua dança. Apresentação no IV Seminário do PPGAdC..…..171
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SUMÁRIO

1. Introdução………………………………………………………………….………….……….13

2. Metodologia………………………………………………………….…………………..……25

2.1. Materiais…………..…………………………………………….………………..…25

2.2. Sujeitos……....………………………………………………..…….……………….25

2.3. Procedimentos…………………….…………………………………………………26

3. O Terecô……………………………………………………………………….……………… 36

3.1 Terminologia do Terecô……………….………………….………….……………….42

3.2. O Co-habitar com a Fonte………………….……………..…………..……….…….45

3.2.1 Os espaços: descrição das eiras pesquisadas..…………….………….……46

3.2.2 O corpo do terecô: desequilíbrio e equilíbrio……..………………………..55

3.2.3 O processo de cura do terecô: alívio do corpo………………..……………65

3.3. Os encantados…..…………………….………………………………..…..……….. 69

4. Dançar para quem? Questões de criação e recepção……………………….……………….…73

4.1. Laboratórios Dirigidos e elaboração do roteiro………………………..…..…….….73

4.2. Dançando para Fonte Coabitada….…….………………………….……………….102

4.3. Reflexões sobre a recepção da obra pela fonte coabitada………………………….140

5. Desdobramentos de Criação e Interlocução…………….…………………….……..….……151

5.1. Instalações Performativas………………………………………………….........…152

5.2. Dançar o nome: incorporação da personagem Rosinha/Margarida…………….......159


6. Considerações Finais………………………………………………………………..……….180

7. Referências Bibliográficas……………………………………………………………………187
13

1. INTRODUÇÃO

A presente pesquisa nasceu de uma vontade de, com o tempo dilatado permitido pelo
doutorado, analisar mais demoradamente os corpos e os movimentos das mulheres quebradeiras
de coco babaçu e praticantes de terecô através do método de pesquisa e criação Bailarino-
Pesquisador-Intérprete (BPI), desenvolvido pela Prof. ª Dr. ª Graziela Rodrigues, orientadora
deste trabalho. Dessa maneira, a pesquisadora pôde observar a beleza do movimento que
transcende um difícil contexto caracterizado pela violência, pela falta de saneamento básico e
outros difíceis aspectos da vida na área rural do Bico do Papagaio, norte do estado do Tocantins.
O corpo, bruto ao quebrar o coco para garantir a subsistência, torna-se maleável durante a dança
na eira, vestido de princesa ou rainha.
Sendo assim, a pesquisadora realizou a pesquisa de campo, prevista no eixo Co-habitar
com a Fonte do método BPI, pelo período total de 21 dias, nos quais teve a oportunidade de ficar
hospedada na casa das pessoas com as quais coabitou, o que permitiu uma maior imersão no
universo do terecô.
Entretanto, o percurso que culminou nesta pesquisa de doutorado teve início há muito
tempo, no curso de Graduação em Dança do Instituto de Artes da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), onde a pesquisadora teve a oportunidade de um contato inicial com os
conteúdos e experimentações referentes ao método BPI. Nesse período, foram cursadas as
disciplinas Dança do Brasil I, II, III, IV, V e VI, todas ministradas por diretoras do método e sob
a abordagem do mesmo. Ainda durante a graduação, a pesquisadora tornou-se membro do Grupo
de Pesquisa Bailarino-Pesquisador-Intérprete e Dança do Brasil, inscrito no diretório do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) sob a coordenação da
profª. Dra. Graziela Rodrigues.
A partir da vivência proporcionada por dois projetos de Iniciação Científica1, também
orientados por Graziela, intitulados Experienciando o BPI (Bailarino-Pesquisador-Intérprete):
colhendo a dança com as mulheres do café e Estruturação da Personagem, método BPI
(Bailarino-Pesquisador-Intérprete): a dança colhida nas mulheres do café, a pesquisadora teve a

!1 Projetos financiados pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) do CNPq.
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oportunidade de vivenciar todas as fases do processo criativo no método BPI. Ao longo dessas
experiências, o eixo Co-habitar com a Fonte se deu no estado de Minas Gerais, com mulheres
colhedoras de café. Os conteúdos apreendidos corporalmente pela pesquisadora durante o
coabitar, ao serem trabalhados e desenvolvidos em laboratórios dirigidos pela orientadora,
nuclearam-se na personagem Jura, demarcando, assim, o eixo Estruturação da Personagem. Este
foi extensamente trabalhado no Trabalho de Graduação Integrado (TGI), orinetado pela mesma
professora, e que culminou na elaboração de uma obra cênica.
Dessa forma, as experiências vividas tanto nos projetos de iniciação científica quanto no
TGI resultaram no espetáculo cênico A Flor do Café. Este, por sua vez, foi de vital importância
para a formação da pesquisadora no método BPI, viabilizando a imersão no processo artístico
amparado pela experiente direção de Graziela Rodrigues e assistência de Larissa Turtelli. O
espetáculo foi apresentado 16 vezes em locais diversos.
Tendo isso em vista, instauraram-se questionamentos acerca de como os processos no
método BPI se encadeiam, isto é, em que momento o bailarino deixa de dançar uma personagem
para dar início à história de uma outra. Por conta disso, a pesquisadora deu início à pesquisa de
mestrado, tendo como principal objetivo investigar esses questionamentos a partir de um novo
processo criativo no método em questão.
Sob o título Confluindo Co-habitares no corpo do intérprete formado no método BPI
(Bailarino- Pesquisador-Intérprete): as mulheres quebradeiras de coco babaçu e seu terecô, a
pesquisa propôs a confluência entre conteúdos já vivenciados no corpo da pesquisadora e aqueles
experimentados a partir de uma nova ida à campo. Para tanto, foram realizadas quatro visitas em
dois locais diferentes, cada um com suas especificidades em termos de qualidade corporal. O
primeiro local visitado foi a região do Jalapão no Tocantins, onde as mulheres artesãs do Capim
Dourado foram observadas; já o segundo foi a região do Bico do Papagaio, também no
Tocantins, onde o olhar da pesquisadora esteve, pela primeira vez, em contato com as mulheres
terecozeiras e quebradeiras de coco-babaçu.
Totalizando quase dois meses de permanência em campo, a experiência de maior
aderência ao corpo da pesquisadora no processo criativo, trazendo importantes informações para
a pesquisa em dança, foi aquela realizada com as mulheres quebradeiras de coco babaçu. No
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contato com esse universo, o qual durou 35 dias, percebeu-se apurada técnica de movimento
utilizada no manejo do coco, material manipulado, muitas vezes, por diversas gerações de uma
mesma família. Aos poucos, a pesquisadora percebeu que a lida com o coco babaçu estava
entranhada em níveis profundos naquela comunidade: mulheres, mesmo gestantes, quebravam
coco em meio aos filhos, todos imersos e permeáveis à paisagem do lugar. O som e o ritmo do
coco sendo quebrado, a vibração do corpo no momento em que o porrete atinge a fruta, as
dinâmicas de movimento, o formato e peso do babaçu, do porrete e do machado são vivenciados
desde muito cedo. São corpos lapidados no coco. Dessa forma, os corpos dessas mulheres foram
sendo descritos e desvendados ao longo da pesquisa de mestrado.
As experiências em campo realizadas nesse período fizeram com que a pesquisadora
fosse, aos poucos, ganhando a confiança daquelas mulheres, um importante passo o qual
possibilitou a descoberta do terecô. Este é um culto às entidades espirituais denominadas
encantados, no qual a cura é sua principal função e se dá através das dinâmicas corporais
proporcionadas por rituais de incorporação.
Assim, o fato de a pesquisadora ter desenvolvido a pesquisa de doutorado dentro desse
mesmo campo, com as mesmas mulheres quebradeiras de coco babaçu, fez com que pudesse
aprofundar muito a qualidade de apreensão dos dados objetivos e, principalmente, subjetivos
com os quais entrou em contato, enriquecendo o material disponível. Dessa maneira, a Prof. a.
Dr. a. Graziela Rodrigues propôs a elaboração de uma obra coreográfica a qual seria apresentada
às quebradeira de coco, proporcionando aos pesquisados vivenciar e receber o resultado de todo
esse processo.
No espetáculo elaborado através do método BPI, a relação que o bailarino estabelece com
os espectadores é um aspecto sobre o qual se dirige uma atenção especial tanto antes da estreia
quanto depois de terminadas as apresentações. Por esse motivo, investigar a recepção de uma
criação do método em questão é pertinente.
Retornar ao campo de pesquisa a fim de apresentar uma obra coreográfica fruto do
coabitar com o mesmo é um procedimento já realizado no método BPI. Entretanto, a obra cênica,
nesta pesquisa, foi criada especial e exclusivamente para esse fim. A partir disso, as
16

reverberações e as particularidades da recepção da criação artística pela fonte coabitada foram


analisadas.
A pesquisadora percebeu, todavia, que os espectadores-fonte desta pesquisa estavam
inseridos em um contexto sociocultural no qual assistir a uma obra de dança como a que foi
apresentada era, até então, impossível. Ao levar em consideração esse fator, o processo de
criação resultou em uma obra de caráter extremamente versátil, que buscava lidar com situações
inusitadas. Além disso, adaptações específicas relativas ao espaço foram necessárias, uma vez
que a obra cênica foi apresentada dentro das eiras de terecô e em uma comunidade rural.
"
* * *
O Bico do Papagaio nasceu do encontro entre a mata e uma população que fugia de uma
das piores secas já registradas no Maranhão. Ao longo do tempo em que realizou pesquisas de
campo nessa região, a pesquisadora presenciou um período de transição significativo em relação
aos hábitos culturais e corporais da população. As casas, antes com paredes de barro e telhado
de palha de buriti, sem tratamento de esgoto e acesso à água encanada, passaram à alvenaria.
Além disso, o acesso a determinados bens, como telefone, transporte próprio e máquinas de
lavar roupas foi ampliado. Apesar disso, o cotidiano continua duro e difícil. As mulheres ainda
enfrentam desafios para comprar mesmo o básico para a sobrevivência. Muitas crianças são
alimentadas apenas com farinha de mandioca e suco de buriti.
Dentro desse contexto, habita o terecô.
Esta é uma manifestação mágico-religiosa originária do Tambor de Mina do Maranhão
(FERRETI, 2001), também muito encontrado nas cidades e comunidades do Bico do Papagaio.
Sua principal função é a cura, mas também atua como importante ferramenta para o equilíbrio
psicológico de seus praticantes. Os terreiros do terecô são denominados eiras ou tendas, nas
quais ocorrem os festejos e rituais onde há a incorporação de entidades denominadas
encantados. Cada eira de terecô é única, pois detém particularidades de acordo com a mestra,
sinônimo de mãe de santo, que o lidera. Os rituais e festejos ocorrem sob a liderança da mestra,
ao toque de tambores da mata, confeccionados a partir de troncos de árvores e pedaços de
couro, maracás, agogôs e mesmo latas de tinta tocadas com varetas.
17

O motivo do uso do feminino na denominação “mestra” acontece devido ao fato da


manifestação, na região observada, ser majoritariamente feminina2. A participação masculina se
limita, basicamente, ao toque dos instrumentos, sendo limitada no que diz respeito à
incorporação dos encantados.
Entretanto, o terecô, como evidenciado pela presente pesquisa, ainda carece de literatura
acadêmica específica. Nesse sentido, buscou-se preencher essa lacuna no que diz respeito aos
dados sobre a manifestação no estado do Tocantins. O material disponível sobre o assunto
aborda somente a origem do terecô, detendo-se à cidade de Codó, no Maranhão, e à sua
ocorrência no estado do Pará. Sendo assim, a bibliografia utilizada nesta tese concentra-se nos
escritos de Mundicarmo Ferreti a respeito do terecô e do tambor de Mina e da pajelança no
estado do Maranhão.
Assim, a tese proporciona um dimensionamento do terecô da região do Bico do Papagaio
sob a perspectiva da dança, utilizando, para isso, ferramentas do método BPI, Estrutura Física e
Anatomia Simbólica, para realizar as descrições e análises dos locais, dinâmicas e corpos os
quais perfazem o terecô. Além disso, a tese também busca aprofundar a experiência de recepção
vivenciada pelos pesquisados ao assistirem à obra cênica a eles apresentada pela pesquisadora
dentro das eiras de terecô. Embora o tema da recepção conte com um vasto referencial
bibliográfico, este não contempla esse tipo de experiência. Isso aponta a importância desta
pesquisa no que diz respeito ao enriquecimento das informações relativas à recepção do
espetáculo de dança por parte de espectadores alvo da pesquisa em si; a presente pesqusia
também reafirma os dados disponíveis a respeito da experiência de retorno ao campo no método
BPI.
Os materiais utilizados para a realização dessas análises e descrições foram os registros
em vídeo e fotografias das pesquisas de campo3 e da experiência de dançar para os pesquisados.

2 Sendo o terecô originário do Tambor de Mina do Maranhão, identifica-se essa característica como sendo comum a
ambos, uma vez que o “Tambor de Mina é participado predominantemente por mulheres. Nas casas mais antigas e
tradicionais, a liderança é sempre feminina e, em algumas, só mulheres podem receber e dançar com as entidades.
Atualmente há muitos terreiros dirigidos e com a participação de homens, embora com predomínio do número de
mulheres”. (FERRETTI, 2013, p. 3-4.)

3 Todas as imagens que ilustram esta tese foram captadas em campo pela autora desta pesquisa.
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Nesta última, foram captadas as reações físicas dos espectadores durante a apresentação da obra
através de vídeo, bem como seus relatos depois da execução da mesma. Também foram levadas
em consideração as impressões vivenciadas tanto pela pesquisadora, enquanto bailarina nas
apresentações de dança, quanto pela diretora da obra e orientadora desta pesquisa, que esteve
presente em todos os eventos. Os diários de campo e de laboratórios dirigidos, contendo as
impressões da pesquisadora, também serviram de objeto de análise. Assim, a reflexão acerca da
recepção da dança nesta tese é tecida no entranhamento das diferentes perspectivas obtidas
sobre a mesma.
Como um recurso para direcionar e conectar a pesquisadora às pessoas para as quais
criava, a diretora colocou o seguinte questionamento: para quem você quer dançar? Essa
conexão era essencial, uma vez que o objetivo principal da obra cênica era, justamente, o de
estabelecer, através da dança, uma comunicação com as mulheres coabitadas. Além disso, para
que isso ocorresse, a diretora enfatizou ser necessária a abertura por parte da pesquisadora.
O levantamento da bibliografia a respeito da recepção foi realizado antes das
apresentações com o intuito de auxiliar na metodologia de análise. Nesse sentido, a
pesquisadora observou que havia uma discrepância entre os espectadores observados por Pavis
e Desgranges e aqueles com os quais ela estava em contato. Nas obras dos autores citados, fala-
se de um espectador anestesiado, com suas percepções e sentidos defasados em virtude do meio
urbano e globalizado no qual está inserido.
Pavis (2008) salienta a pluralidade de métodos de análise disponíveis atualmente, cujas
particularidades não permitem que se afirme a existência de um método universal para isso,
demonstrando a necessidade de se fazer escolhas de acordo com o foco da pesquisa. Dessa
maneira, a presente análise se pautou sobre as experiências preexistentes de retorno ao campo
do método Bailarino-Pesquisador-Intérprete. A respeito da forma como se dá a relação entre a
criação artística no BPI e os espectadores, Turtelli (2010, p. 01) define:

O BPI procura possibilitar a criação de um produto artístico que esteja próximo


do público (estabelecendo uma relação direta entre intérpretes e público), que
tenha os intérpretes como sujeitos da criação (tocando em questões humanas
como autonomia e relações de poder) e que traga uma realidade social para a
arte (que do específico chegue a alcançar dimensões mais amplas).
(TURTELLI, 2010, p. 01)
19

"
Portanto, a metodologia adotada para analisar a recepção e para a realização da
apresentação no campo de pesquisa foi traçada, principalmente, a partir dos conhecimentos
adquiridos de experiências de retorno ao campo anteriormente realizadas por pesquisadores do
método BPI. Essas experiências ocorrem desde 1980 e têm demonstrado proporcionar aos seus
espectadores um processo de espelhamento, no qual a obra devolve a eles algo de sua própria
identidade que foi incorporado pelo intérprete. Ao se identificar na obra apresentada, as reações
desses espectadores transitam entre a empatia e a rejeição, sendo a empatia centralizadora das
experiências. Esse processo atua, para o intérprete, como uma validação de sua criação por
aqueles com quem coabitou. Em alguns casos, os espectadores-fonte acabam, inclusive, por
influenciar a obra cênica, dando sugestões e levantando novos questionamentos.
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* * *
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O método de pesquisa e criação em dança Bailarino-Pesquisador-Intérprete nasceu na
década de 1980 da inquietação da bailarina e coreógrafa Graziela Rodrigues a respeito do
trabalho com as emoções na dança. Com uma carreira nacional e internacional, o fato das
emoções sempre serem um tabu e, por isso, não serem conduzidas de forma adequada dentro da
sala de aula, levou Graziela a buscar um trabalho que integrasse a pessoa do artista à sua prática
(RODRIGUES, 2003).
Dessa maneira, o BPI se desenvolveu, primeiramente, no corpo de sua criadora e, a partir
de 1987, nos corpos dos alunos do curso de Graduação em Dança da Unicamp (ano em que
Graziela Rodrigues iniciou sua atuação docente nesta Universidade) e em companhias de dança.
Nesse percurso de criação e desenvolvimento do método, sua prática validou o trabalho das
emoções na dança. Além disso, desenvolveu questões relativas à identidade corporal do
bailarino, sua relação com o outro e expressão do movimento interior4.

4O movimento do corpo no método BPI ocorre também através de uma perspectiva interior do intérprete.
Ao mover-se, ele observa quais sensações, emoções e imagens se fazem presentes junto ao movimento
que ocorre externamente. Esse percurso interno resulta em um movimento que ocorre tanto externa
quanto internamente enquanto o bailarino dança.
20

Essa lida com o corpo físico e emocional do intérprete de forma integrativa foi o principal
ponto para que a pesquisadora seguisse sua busca no referido método. Antes de iniciar sua
trajetória no método BPI, a pesquisadora enfrentou dificuldades no seu desenvolvimento como
bailarina devido a questões emocionais. Viu, na proposta do método BPI, no entanto, uma
oportunidade, pois o desenvolvimento artístico está atrelado ao desenvolvimento pessoal.
As obras de referência a respeito do BPI são o livro Bailarino-Pesquisador-Intérprete:
Processo de Formação (RODRIGUES, 1997), no qual Graziela Rodrigues apresenta o método
juntamente com a síntese de suas pesquisas com manifestações populares brasileiras através da
Estrutura Física e Anatomia Simbólica (RODRIGUES, 1997), e a tese O método BPI
(Bailarino-Pesquisador-Intérprete) e o desenvolvimento da imagem corporal: reflexões que
consideram o discurso de bailarinas que vivenciaram um processo criativo baseado neste
método (RODRIGUES, 2003), onde a autora aprofunda o referencial teórico para lidar com as
questões relativas ao desenvolvimento da imagem corporal do bailarino. Nesse texto em
particular, os aspectos psicodinâmicos da imagem corporal são explicitados, aprimorados e
investigados de forma mais acurada.
Assim, de forma geral, o método BPI se estrutura em três eixos: Inventário no Corpo, Co-
habitar com a Fonte e Estruturação da Personagem. Estes se entrecruzam de forma dinâmica
ao longo do processo, não se constituindo como estrturuas estáticas e enrigecidas.
No primeiro eixo, Inventário no Corpo, o objetivo é que o intérprete entre em contato com
sua realidade gestual. Nos laboratórios dirigidos, fragmentos de história “pessoal, cultural e
social [do bailarino] são trazidos à tona” (RODRIGUES, 2003) através do movimento. Trata-se
de um mergulho em si mesmo, no qual o contato do bailarino com o próprio corpo é ampliado,
uma vez que passa a vivenciar metamorfoses.
Já no que diz respeito ao segundo eixo, Co-habitar com a Fonte, este se dá quando o
intérprete, tendo reconhecido e assumido questões relativas à sua história pessoal e, portanto,
tomando ciência de seus preconceitos e julgamentos, vai ao encontro do outro através da
pesquisa de campo. Assim, o bailarino vai ao encontro de uma realidade diferente daquela onde
está inserido e pela qual sente-se mobilizado à pesquisar (RODRIGUES, 2003). Essa realidade
pode configurar um segmento social ou uma manifestação popular específica. O verdadeiro
21

coabitar, entretanto, se dá somente quando o pesquisador se vê inserido naquele contexto. Ele


“vive aquela paisagem da pesquisa de campo como se pertencesse a ele” (RODRIGUES, 2003,
p. 107).
Esse eixo se desenvolve tanto no espaço da pesquisa de campo quanto na sala de aula,
sendo que, no segundo caso, se enquadram os laboratórios preliminares, os quais têm como
função preparar o bailarino para a ida ao campo, e os laboratórios dirigidos, iniciados após o
retorno do intérprete. Existe, portanto, toda uma conjuntura para que o eixo se deflagre, a qual
requer “grande preparação e envolve o antes, o durante e o depois do campo” (TEIXEIRA,
2006, p.07). Nesta pesquisa, o co-habitar com a fonte foi realizado através de duas ida ao
campo, junto às mulheres quebradeiras de coco babaçu e terecozeiras, e em laboratórios
dirigidos pela orientadora Graziela Rodrigues.
O terceiro eixo, Estruturação da Personagem, prevê a nucleação de um corpo, fruto do
embate entre as experiências vivenciadas pelo intérprete na pesquisa de campo e suas próprias
vivências anteriores. Para isso, também são realizados laboratórios dirigidos nessa fase, onde a
direção auxilia o intérprete a enxergar e delinear os conteúdos presentes em seu corpo. Em um
dado momento, depois de depurados e trabalhados os conteúdos trazidos pelo intérprete,
acontece a incorporação da personagem. Segundo Rodrigues (2003, p. 124), pode-se dizer que a
etapa de incorporação da personagem é o momento de integração de sensações, emoções e
imagens até então desconectadas. “[...] Trata- se de um fechamento de gestalten, onde emanam novas
imagens, sentidas com intensidade e vistas como tendo características bem delineadas, constituindo-se
no enunciado de uma personagem” (RODRIGUES, 2003, p. 124).
Após a incorporação da personagem, é necessário desenvolvê-la, dando espaço para que
seus conteúdos, histórias e linguagem de movimento emerjam. É gerada uma gama de materiais
para dar início à criação do espetáculo propriamente dito.
No processo criativo vivenciado pela pesquisadora no desenrolar desta tese, a
incorporação da personagem ocorreu quando faltavam apenas cinco meses para a conclusão da
pesquisa, de forma que a obra criada e apresentada para as quebradeira de coco foi elaborada
sem que houvesse uma personagem. Assim, o que foi levado para cena foram os conteúdos
22

apreendidos a partir da convivência com essas mulheres, incorporados e processados pela


pesquisadora.
O processo criativo, no entanto, não parou depois das apresentações em campo e, nos
laboratórios dirigidos que se seguiram, observou-se que o experimento de recepção atuou como
uma espécie de campo. Isso porque as interações ocorridas na ocasião reverberaram
criativamente no processo, auxiliando na posterior incorporação da personagem.
A personagem incorporada trouxe a dualidade vivenciada neste processo e no contato
com os conteúdos do campo, pois trata-se de uma mulher quebradeira de coco babaçu, de corpo
muito velho e desgastado, chamada Rosinha. Mas também se trata de uma encantada de nome
Margarida, que diz ser uma “linda rainha” da coroa portuguesa. Margarida incorpora em Rosinha
e uma supre as necessidades da outra: Rosinha precisa do não-corpo de encantado de Margarida
para sobreviver às suas mazelas, e Margarida necessita do corpo velho e gasto de Rosinha para
que possa existir.
A elaboração do roteiro no método BPI permanece em aberto até que os sentidos estejam
completamente elaborados e minuciosamente trabalhados, apresentado aderência ao corpo do
intérprete. A respeito dessa etapa, Melchert (2007, p. 24) afirma que “a criação está na
originalidade de cada corpo, fruto do coabitar. O roteiro é fruto do que o corpo escreve.
Trabalha-se com o que o corpo deixa escapar, com a realidade possível do intérprete e com sua
singularidade”. Em outras palavras, sua elaboração independe de uma estética delimitada pelo
gosto do diretor ou do intérprete. A criação do roteiro está a serviço daquilo que se mostra mais
coerente com a personagem e com o corpo do bailarino.
Já no caso específico da obra elaborada para as mulheres quebradeiras de coco, o foco
estava em estabelecer uma comunicação com as espectadoras. Isso determinou as escolhas que
foram tomadas ao longo do processo. Essas decisões são feitas pela diretora, que participa da
criação artística de forma atenta para que os conteúdos relativos às questões pessoas do
intérprete possam ser distinguidos daqueles que, de fato, fazem parte do processo criativo. Nas
descrições deste processo esse aspecto é evidenciado, uma vez que essa atuação da diretora
permitiu que tudo viesse a cabo.
23

Dessa maneira, a criação a partir do método BPI baseia-se em seus três eixos. Todos são
trabalhados com ferramentas próprias usadas em todas as fases: a Técnica de Dança, com a
Estrutura Física e Anatomia Simbólica; a Técnica dos Sentidos; os Laboratórios Dirigidos; as
Pesquisas de Campo; e os registros (RODRIGUES, 2010). A partir disso, a pesquisadora optou
por trabalhar três momentos: o primeiro baseou-se no eixo Co-habitar com a Fonte, estando
nele inserida a elaboração do roteiro da obra coreográfica e sua apresentação; o segundo
abrangeu a análise de materiais e dados obtidos na experiência de apresentação no Bico do
Papagaio; e o terceiro incluiu o desenvolvimento do corpo no processo de criação da
pesquisadora.

Sendo assim, no primeiro capítulo desta tese, os procedimentos metodológicos utilizados

para a construção do presente trabalho são explicitados. No segundo, intitulado O Terecô, inicia-
se a contextualização da manifestação pesquisada, sendo apresentada a terminologia utilizada
nos terecôs do recorte estudado. Em seguida, o trabalho descreve os espaços de cada local
visitado com o objetivo de tornar mais claro ao leitor as características peculiares do terecô que,
embora tenha elementos confluentes com rituais de origem africana, possui características
bastante particulares. O segundo capítulo é finalizado com a análise do corpo do terecô a partir
da Estrutura Física e da Anatomia Simbólica por meio da descrição das especificidades
responsáveis pelo equilíbrio e desequilíbrio físico e emocional, explicitando as dinâmicas do
movimento em diversas partes do corpo, como pés, cintura pélvica, cintura escapular e cabeça.
Já no terceiro capítulo, Dançar para quem? Questões de criação e recepção, a
pesquisadora, inicialmente, aborda experimentações laboratoriais do processo criativo e a criação
artística do roteiro, explicitando o mote “Para quem você quer dançar?” trazido à tona pela
diretora Graziela Rodrigues. Em seguida, se debruça sobre a interação entre seu próprio universo
e o das mulheres quebradeiras de coco e praticantes do terecô através dos laboratórios dirigidos.
Nesse capítulo, a dinâmica da recepção dos espectadores nas apresentações realizadas em campo
é analisada a partir de aspectos como a relação de pesquisa construída no Co-habitar com a
Fonte, o ponto de vista da pesquisadora em cena, além de aspectos técnicos, como a montagem
do espaço e o posicionamento dos sujeitos. O capítulo se encerra com o diálogo entre o que foi
experienciado em campo, no que diz respeito à recepção, e os escritos de Pavis e Desgranges.
24

No capítulo seguinte, Desdobramentos de Criação e Interlocução, é descrito o caminho


percorrido pela pesquisadora no processo criativo do método BPI até a incorporação da
personagem Rosinha/Margarida. O percurso de criação, que inclui as instalações performativas
no Instituto de Artes da Unicamp e na praça Marco Zero da mesma Universidade, é descrito.
Também são enfatizadas as peculiaridades do desenvolvimento do corpo neste processo criativo.
Nesse ponto, a pesquisadora percebeu a necessidade de problematizar questões relativas à
realização da dança com e sem a personagem, compreendendo as implicações processuais do
papel do intérprete que passa pelo processo no método Bailarino-Pesquisador-Intérprete.

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2. METODOLOGIA
No tocante aos procedimentos metodológicos, o presente trabalho utilizou o método
qualitativo baseado, principalmente, na pesquisa de campo do eixo Co-habitar com a Fonte e nos
laboratórios dirigidos. Dessa forma, o método de pesquisa e criação em dança Bailarino-
Pesquisador-Intérprete (BPI), desenvolvido por Graziela Rodrigues, é a ferramenta principal
deste trabalho.
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2.1. Materiais
Para a realização deste trabalho, a pesquisadora contou com duas idas ao campo,
comparecendo a sete diferentes eiras de terecô. Também valeu-se de registros em fotografia e
vídeo captados em campo e das próprias apresentações de dança realizadas para as mulheres
coabitadas.
Os registros audiovisuais tiveram como principal objetivo captar as reações visíveis dos
espectadores, sendo que, para isso, foram necessárias duas câmeras: uma móvel, operada pela
prof. ª Dr. a Larissa Turtelli, que captou o momento da montagem do espaço, a interação inicial
da intérprete com as mulheres espectadoras, a apresentação do trabalho e os feedbacks dados
pelos espectadores; e uma câmera fixa, atrás do “palco”, voltada para aqueles que estavam
assistindo. Além disso, também foram utilizados, como fonte subsidiária de pesquisa, os diários
de campo e de laboratório, nos quais foram registradas suas observações e impressões.
A bibliografia utilizada se detém, principalmente, no método BPI. No entanto, escritos a
respeito da recepção da arte, bem como a respeito do terecô e manifestações religiosas adjacentes
foram incluídos como fontes teóricas desta pesquisa.
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2.2. Sujeitos
Os sujeitos desta pesquisa são as mulheres quebradeiras de coco babaçu e praticantes do
terecô na região do Bico do Papagaio. Além disso, pode-se afirmar que a própria pesquisadora
também é um sujeito da pesquisa, uma vez que seu processo criativo é um dos temas abordados
no presente trabalho. A interação entre as mulheres do campo e a pesquisadora foi fundamental
para a construção desta tese: o eixo Co-habitar com a Fonte promoveu acessos (não somente
26

geográficos, mas também emocionais) ao espaço do terecô e à própria realidade de vida das
mulheres quebradeiras de coco. Essa imersão provocou alterações no percurso deste trabalho e
na avaliação da criação em dança, não somente no tocante à recepção.
"
2.3. Procedimentos
Em relação aos procedimentos de pesquisa, foi utilizado o método BPI com seus eixos e
ferramentas. O eixo de entrada, o Inventário no Corpo, no qual o bailarino é levado a pesquisar
sua própria história, foi realizado pela pesquisadora em 2005, inicialmente, quando iniciou seus
estudos no método BPI. Na presente pesquisa, ao iniciar os laboratórios dirigidos, o eixo em
questão foi reavivado, de forma que, em movimento, a bailarina entrou em contato com suas
sensações corporais, emoções e imagens os quais proporcionaram um aprofundamento em seu
inventário. Salienta-se que, embora o trabalho no método se inicie pelo inventário, o mesmo
permeia todo o processo, sendo retomado quando o diretor identifica a necessidade de
aprofundamentos e elaborações de conteúdos nesse sentido (RODRIGUES, 2003).
Os laboratórios dirigidos do eixo Inventário no Corpo proporcionam ao bailarino-
pesquisador situar-se em sua realidade gestual (Ibid.). O contato com suas origens é
reestabelecido em alguns momentos do processo, na busca pela história corporal. Rodrigues
(2003, p. 80) esclarece que

No processo do BPI objetiva-se realizar pequenas escavações em nossa história pessoal,


cultural, social…recuperando fragmentos, pedaços de história que ficam incrustados
inconscientemente nos músculos, nos ossos, na pele, no entorno do corpo e no “miolo
do corpo”. (RODRIGUES, 2003, p. 80)

Neste eixo, questões pessoais que dizem respeito à identidade do indivíduo são
desdobradas, principalmente no corpo em movimento. Essa espécie de “limpeza” permite que o
bailarino-pesquisador, com o auxílio do diretor, tome consciência de seus mecanismos de defesa,
preconceitos e outros conteúdos de cunho pessoal. Isso enriquece a vivência dos outros dois
eixos, pois, ao coabitar com a fonte, por exemplo, o intérprete está apto a perceber suas possíveis
projeções no pesquisado.
Sendo assim, para o processo criativo aqui discutido, o trabalho no eixo Inventário no
Corpo foi de primordial importância, tendo sido necessário retornar a ele repetidas vezes. Pode-
27

se afirmar que os avanços conquistados se deram em virtude das elaborações proporcionadas


pelos “mergulhos” no inventário da intérprete. A necessidade desses “mergulhos” foi sinalizada
pela diretora nos momentos em que ocorria alguma estagnação da movimentação, cuja a origem
se concentrava nos conteúdos do eixo em questão.
Já no que diz respeito ao eixo Co-habitar com a Fonte, este propõe que o bailarino saia
dos espaços da dança institucionalizada para coabitar com corpos das manifestações populares e/
ou de determinados nichos sociais do Brasil (RODRIGUES, 2003). Trata-se de uma escolha do
bailarino-pesquisador, que se dá pela empatia do intérprete em relação ao campo pretendido.
Sendo assim, a pesquisadora optou por dar continuidade à pesquisa de campo iniciada anos antes
em seu mestrado: a região do Bico do Papagaio, norte do Tocantins, junto às mulheres
quebradeiras de coco babaçu e terecozeiras.
A preparação para a pesquisa de campo, no método BPI, diz respeito à conquista de uma
disponibilidade interna do pesquisador para receber o outro em si, bem como estar com o seu
corpo perceptível para a apreensão dos conteúdos os quais serão vivenciados. Tendo realizado
diversos coabitares a partir do método BPI5, a pesquisadora adquiriu certa fluência nesse eixo
específico, tornando-se capaz de identificar quando o coabitar está ocorrendo de verdade, bem
como de lidar com os possíveis problemas que advêm dessas interações. Como a pesquisadora já
havia iniciado uma relação com as mulheres pesquisadas, esse eixo em particular pôde ser mais
aprofundado. Apesar disso, a fim de manter a qualidade de corpo adequada à pesquisa,
ampliando a percepção do mesmo, a pesquisadora manteve-se em trabalho de dança, utilizando,
para isso, a Técnica de Dança do BPI, codificada na Estrutura Física e Anatomia Simbólica
(RODRIGUES, 1997).
No método em questão, a relação com o pesquisado é o termômetro que mede a qualidade
da coabitação proposta. Na relação entre pesquisador e pesquisado, o afeto é cuidado desde o
primeiro contato: ter sensibilidade para a percepção dos limites do outro e de si mesmo ajuda na
apreensão dos corpos e conteúdos, pois coabitar envolve o ato de doar-se para receber o outro
(RODRIGUES, 2003). Para ter essa percepção, é essencial que o pesquisador esteja em contato

5Mulheres colhedoras de café (2007-2008, Minas Gerais); artesãs do capim dourado (2009-2010, Jalapão,
Tocantins); quebradeiras de coco (a partir de 2010, Bico do Papagaio, Tocantins).
28

consigo mesmo, isso quer dizer saber reconhecer através das suas sensações corporais e emoções
a possível atuação de mecanismos de defesa, de rejeições e mesmo de preconceitos.
Dessa forma, em campo, é importante que as dinâmicas do ambiente, as relações de poder
e os papéis desempenhados por cada pessoa sejam observados, como meio de inserção sutil, o
que pode evitar situações de risco. A partir disso, os corpos dos indivíduos com os quais o
pesquisador sentiu maior empatia, atraído pela qualidade expressiva e de movimento, são
escolhidos e, então, passa-se a acompanhá-los mais de perto (RODRIGUES, 2003). Como a
pesquisadora teve a oportunidade de se relacionar com pessoas de diferentes eiras e comunidades
ao longo da sua pesquisa, diversos corpos foram escolhidos. Em alguns desses casos, a bailarina-
pesquisadora teve a oportunidade de observá-los tanto em seus cotidianos (na quebra do coco
babaçu e nos trabalhos domésticos) quanto nos momentos dos rituais de terecô. Por conta da
pluralidade de indivíduos com a qual se teve contato, muitos dados e análises puderam ser
reafirmados por pessoas de locais diferentes.
Dessa forma, a leitura desses corpos foi efetuada através da Estrutura Física e Anatomia
Simbólica do método BPI, onde é observado o eixo-mastro, a relação dos pés com a terra, a
bacia, a tração do sacro, a movimentação das escápulas e como esse corpo se movimenta no
espaço (RODRIGUES, 1997). Embora a leitura corporal seja essencial, o principal aspecto da
pesquisa de campo é a apreensão do corpo do outro, o que não equivale a uma tentativa de copiar
gestos, falas ou posturas. Consiste, antes de tudo, em uma troca dinâmica das imagens corporais.
Ao retornar de cada imersão no campo, a pesquisadora realizou laboratórios dirigidos sob
a direção de Graziela Rodrigues, tendo como objetivo trabalhar no corpo através dos
movimentos os conteúdos apreendidos. Assim como é determinado pelo método BPI, os
laboratórios não seguiam um padrão preestabelecido; sua estrutura era modificada
constantemente conforme as necessidades apresentadas pela pesquisadora. Dessa forma, a partir
do momento em que os conteúdos trabalhados nesses laboratórios dirigidos se nucleiam, ocorre a
Incorporação da Personagem. Passa a existir, no corpo do intérprete, uma dança com maior
potência, uma vez que se aproxima da essência do bailarino. Passa-se a atuar dentro do eixo
Estruturação da Personagem, o qual represente, segundo Rodrigues (2003, p. 124), “[...] o
29

momento – dentro do Processo – em que a pessoa alcança uma integração das suas sensações, das suas
emoções e das suas imagens, vindas até então soltas e desconectadas”.
A personagem no BPI não é uma elaboração cognitiva e cristalizada, ela não pode ser
forjada. Sua incorporação é uma conquista do intérprete, junto do diretor. Nesse sentido, a
personagem emanada do processo aqui discutido, Rosinha/Margarida, não foi nucleada no
período em que se elaborou o roteiro apresentado às mulheres coabitadas. No entanto, para a
defesa desta tese, foi possível chegar à uma estrutura fruto dos seus conteúdos.
Dado o fato de a personagem, no método BPI, não ser uma entidade fixa e imutável,
quando a mesma é incorporada, os laboratórios dirigidos são elaborados no sentido de lhe dar
“voz”. Isso possibilita o desenvolvimento dos seus conteúdos, sua própria evolução e a geração
de material que será utilizado na criação cênica (Ibid.). A estruturação dessa criação se dá na
feitura de um roteiro de movimentos, imagens e sensações, o qual será vivenciado pelo
intérprete.
O roteiro do BPI se sustenta sobre o circuito interno (RODRIGUES, 2010), ou seja, trata-
se de um roteiro de imagens internas, sensações, emoções e movimentos suscitados pela
personagem incorporada. Em alguns casos, como o deste processo, a incorporação não acontece
antes do momento em que seria necessário fechar um roteiro. Dessa maneira, os procedimentos
do método viabilizam uma criação pautada em seus princípios mesmo sob esse tipo de
circunstância. Na obra apresentada às mulheres quebradeiras de coco babaçu, por exemplo, o
roteiro foi desenvolvido a partir da interação da bailarina com fotografias das fontes coabitadas.
Nessa etapa de elaboração do roteiro, o intérprete busca materializar suas imagens e
sensações, levando para o espaço de trabalho objetos da paisagem, acessórios e roupas da
modelagem ou personagem incorporada. Para a criação do roteiro apresentado no experimento
de recepção aqui abordado, muitos elementos do campo foram explorados, como o próprio coco
babaçu e o som dele sendo quebrado, cestos, gravações de músicas dos rituais de terecô e,
principalmente, fotografias das mulheres coabitadas captadas pela própria pesquisadora. Estas
foram utilizadas para mobilizar o corpo que, ao abrir-se para receber impressões suscitadas pelas
mesmas, incorporou os sentidos das mulheres nelas retratadas. Essa foi a principal dinâmica
30

trabalhada na etapa de criação do roteiro e que, posteriormente, se mostrou importante para o


desenrolar do processo.
Esse trabalho realizado com os objetos e a materialização das imagens internas do
intérprete possuem um papel importante na dinâmica da imagem corporal, uma vez que “os
objetos que estiveram, em algum momento, ligados ao corpo, sempre retêm algo da qualidade da
imagem corporal” (SCHILDER, 1999, p. 235).
Os elementos da cena começam a ser elaborados antes mesmo de o roteiro estar
concluído, pois fazem parte da construção do corpo da personagem. Segundo Rodrigues (2003,
p. 125), “a relação da pessoa com o espaço criado por ela possibilita um fluir de movimento, de
onde irá surgir a sua dança. As sensações, os significados da pessoa invadem o espaço e o espaço
vem na pessoa”. Assim, a projeção das paisagens da personagem no espaço é um exercício
amplamente utilizado pelos diretores do método. Ele ultrapassa o palco, toma a plateia, atravessa
o teto e as paredes (TURTELLI, 2009), fazendo com que tudo fique impregnado pelas paisagens
da personagem; tudo passa a ser parte do seu espaço simbólico. Tendo isso em vista, nas
experiências de retorno ao campo, o espaço alimenta o corpo do intérprete; dançar nas eiras de
terecô e mesmo no local onde se quebra o coco, o corpo da intérprete se preencheu com essas
imagens, sons e cheiros os quais, durante os ensaios e laboratórios, existiam apenas
internamente.
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O processo do BPI conta com ferramentas e procedimentos desenvolvidos por sua
criadora e que propiciam uma base para que o intérprete obtenha fruição nos eixos propostos e
nas etapas que se apresentam. Essas ferramentas foram amplamente utilizadas nesta pesquisa e
são apresentadas a seguir.
Os Laboratórios Dirigidos são utilizados durante todo o processo e são o instrumento para
reconhecimento e desenvolvimento dos conteúdos pertinentes a cada um dos três eixos
(RODRIGUES, 2010). Neles, a “plasticidade, a mutabilidade e a flexibilidade da imagem
31

corporal são fortemente vividas pelo Intérprete” (RODRIGUES, 2010, p. 03). O espaço físico do
laboratório, normalmente caracterizado por um círculo delimitado no chão com giz, é
denominado dojo e é onde o intérprete projeta seus conteúdos internos, isto é, as imagens e
sensações internas que emergem do corpo são exteriorizadas pelo bailarino e, portanto, ganham
representação (Ibid.). A palavra é um recurso muito utilizado pelo diretor que, ao estabelecer um
diálogo com o intérprete, auxilia “as novas organizações corporais que se
apresentam” (RODRIGUES, 2010, p. 3-4).
Dessa forma, os laboratórios vão sendo elaborados pelo diretor, que proporciona ao
intérprete dinâmicas as quais visam dar fluxo ao processo e clareza aos conteúdos que emergem
do corpo, o que desencadeia um melhor delineamento daquilo que o bailarino produz. Nesse
espaço, surgem modelagens que apresentam uma determinada postura, sentimentos, sensações e
dinâmica de movimento próprios. Cada vez mais aprofundadas, as características dessas
modelagens nucleiam-se, culminando na incorporação da personagem, como já mencionado.
Outra ferramenta essencial do método BPI é a Técnica de Dança, a qual fundamenta-se na
Estrutura Física e sua Anatomia Simbólica. Estas são a decodificação de uma “organização
física e sensível do corpo” (Ibid., p. 01) identificada em estudos pautados em extensas pesquisas
de campo realizadas em festividades e rituais de origem afro-brasileira, indígena, bem como
segmentos sociais que expressam um forte sentido de resistência cultural (Ibid.). Essa técnica é
utilizada como preparação tanto física quanto emocional em todas as etapas do método, pois
propicia maior fluência no corpo do intérprete (Ibid.). A partir dela, o corpo atinge um estado de
alta disponibilidade e percepção, tornando-se apto a estar em campo, por exemplo, percebendo a
si mesmo e ao outro, ler os corpos com os quais entra em contato ou mesmo estar preparado para
uma apresentação artística.
A Pesquisa de Campo também faz parte do rol de ferramentas disponibilizadas pelo
método em questão e pode, assim como as demais, ser utilizada em qualquer um de seus três
eixos constituintes, entretanto, é o ponto central do eixo Co-habitar com a Fonte. Elas
possibilitam “muito dinamismo, alocando a dramaturgia na vida” (Ibid., p. 03). As idas ao campo
são realizadas sob uma perspectiva ética e só se efetuam quando existe uma abertura recíproca
por parte do pesquisador e do pesquisado.
32

A última ferramenta do método BPI é, na verdade, um instrumento que auxilia o intérprete


e o diretor ao longo de todo o percurso: os registros (RODRIGUES, 2010). Podem ser registros
escritos, como os diários de campo e os de dojo, e de áudio/vídeo, como as captações realizadas
em campo ou durante os laboratórios. Na pesquisa de campo, os registros guardam as impressões
pessoais do intérprete, bem como suas análises dos movimentos e dinâmicas presenciados. Já nos
laboratórios dirigidos, o bailarino irá anotar o fluxo dos sentidos, ou seja, suas sensações,
emoções, movimentos, imagens internas e eventuais modelagens. Neste último caso, os desenhos
e a escultura em argila também podem ser utilizados com a mesma finalidade.
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Como já foi mencionado, retornar ao campo para apresentar uma obra cênica fruto do
coabitar com aquela determinada população é um procedimento amplamente vivenciado dentro
do método BPI. Nesta pesquisa, no entanto, a criação foi elaborada especialmente para as
pessoas coabitadas, sendo que o intuito foi conseguir estabelecer uma comunicação com os
espectadores-fonte e pormenorizar a recepção da obra nessas circunstâncias. Costa (2012, p. 11),
baseada nos conteúdos transmitidos oralmente por Graziela Rodrigues, ilumina a questão:

A prática de levar ao campo coabitado o espetáculo de dança, dentro do BPI, é comum,


e deve ser realizada sempre que possível. O Retorno ao Campo constitui uma
importante fase do Método, pois propõe um espelhamento no qual o interlocutor tem a
possibilidade de encontrar, no bailarino, aspectos de sua identidade.

Como completa Rodrigues (2010, p. 03), o “retorno ao campo é uma etapa que está
presente no método BPI desde o seu início”. Alguns exemplos dessa prática, pontuados por Costa
(2012), são Graça bailarina de Jesus ou 7 Linhas de Umbanda Salvem o Brasil (1980), de
Graziela Rodrigues, apresentado no terreiro de Candomblé Tenda de Xangô Airá do Caboclo
Itajací; o trabalho cênico resultante do processo criativo desenvolvido no mestrado de Teixeira
(2007), orientado por Graziela e apresentado para os colhedores de uva coabitados; A Flor do
Café, de autoria da pesquisadora e dirigido também por Graziela, tendo sido apresentado no
campo durante o evento V Encontro da Mulher, realizado em Cabo Verde, MG, e destinado às
mulheres que trabalhavam na lida com a terra; Nascedouro, de Elisa Costa, dirigido por Graziela
33

Rodrigues e apresentado em aldeias da etnia Xavante; Fina Flor, Divino Amor – Yaba, Legba,
Hey!, de Larissa Turtelli, também dirigido por Graziela e apresentado em um terreiro de
Umbanda na cidade de São Paulo; e, por fim, Coraci Mirongá, de Mariana Jorge, dirigido por
Graziela Rodrigues e apresentado às mulheres da ala das baianas na escola de samba Nenê de
Vila Matilde.
No caso desta tese, o retorno ao campo foi realizado nas etapas iniciais. Dessa forma, a
criação de uma dança direcionada às mulheres coabitadas, bem como o exercício das
apresentações em si, desencadearam questões peculiares. Ficou evidente que a recepção foi tão
importante quanto a criação da obra e que possibilitou o desvelamento de questões importantes
para o processo criativo que aconteceu em seguida.
Para que isso fosse possível, entretanto, a presença constante do diretor foi
imprescindível. Por ter uma longa e específica formação no método BPI e, por isso, ter
experienciado o processo integralmente e realizado estudos práticos e teóricos dos seus eixos e
ferramentas (RODRIGUES, 2014, p.02), o diretor possibilita que o bailarino viva o método de
forma integral. Trata-se de uma pessoa com aprofundado trabalho de autoconhecimento e que se
encontra em um “estado de disponibilidade e abertura para estar com o outro” (Ibid. p. 02).
Nesse sentido, “está-se falando de capacidades para amparar o outro e de receber o corpo do
outro dentro de uma criação artística” (Ibid. p. 02).
Por tudo isso, o diretor é o segundo autor da obra cênica criada a partir do método. Dentre
suas ações e obrigações para com o processo que dirige, constam: “gerar condições favoráveis
para que o corpo se expresse” (RODRIGUES, 2003, p. 133), decodificar o que é expressado pelo
corpo do bailarino, ter ciência de suas limitações e estar preparado para o inesperado,
favorecendo o fluxo dos movimentos (Ibid., p.132). Além disso, o diretor não deve desistir da
pessoa em processo.
Dessa maneira, a relação entre bailarino e diretor deve ser de muito respeito e
cumplicidade, pois acontece em meio a um turbilhão de complexos conteúdos emocionais. Por
esse motivo, antes de tudo, é necessário firmar um contrato entre ambas as partes, no qual fica
estabelecido a rotina do trabalho. Trata-se de um contrato verbal, no qual o diretor acolhe o
bailarino-pesquisador por inteiro, ou seja, com suas limitações e qualidades. O bailarino deve,
34

por sua vez, cumprir as tarefas passadas pelo diretor, as quais podem ser questionadas, mas
nunca ignoradas. Além disso, o sigilo sobre o que ocorre ao longo do processo parte de ambos os
lados, uma vez que informações fora de contexto podem gerar equívocos.
"
* * *
"
Nesta pesquisa, como já mencionado, foram realizadas duas idas ao campo escolhido. A
primeira, em dezembro de 2012, teve duração de nove dias e a segunda, entre os meses de março
e abril de 2013, durou 12. Foi possível vivenciar um ritual de obrigação dentro da mata e os
tambores (rituais em que há dança e incorporação de entidades espirituais), observados em sete
terreiros de diferentes cidades da região do Bico do Papagaio (São Miguel do Tocantins, Sítio
Novo do Tocantins e Carrasco Bonito). As idas ao campo, além de servirem para o coabitar,
também foram úteis para o levantamento dos locais onde a pesquisadora poderia apresentar sua
criação artística.
Os laboratórios dirigidos ocorreram depois de cada ida ao campo de pesquisa e se
intensificaram quando a necessidade de fechamento de um roteiro cresceu. Criar um trabalho
artístico para os espectadores-fonte centralizou o processo, pois foram traçadas, pela diretora,
diversas estratégias para que a pesquisadora alcançasse um nível de abertura e entrega em que
fosse possível estabelecer uma comunicação. O mote do processo criativo foi a pergunta
frequentemente feita por Graziela: “afinal, para quem você quer dançar?”.
Assim, a obra coreográfica foi a público entre os dias 12 e 18 de janeiro de 2014, nos
quais foram realizadas três apresentações: uma na comunidade rural Olho d’Água, em São
Miguel do Tocantins, TO, e duas nas eiras de terecô Tenda Espírita Padre Cícero, no distrito
Grota do Meio, São Miguel do Tocantins, TO, e Tenda Santo Antônio, em Sítio Novo do
Tocantins, TO. Como as apresentações foram abertas, além das mulheres coabitadas, também
compareceram homens e crianças das comunidades.
Nessas ocasiões, tanto a diretora do processo quanto a professora Larissa Turtelli
estiveram presentes, sendo que esta última realizou a captação de imagens e outras tarefas
técnicas. O procedimento de análise do material coletado se deu em quatro etapas, a saber: 1)
35

em campo, o material foi assistido e analisado junto da diretora; 2) já de volta à Universidade,


no primeiro semestre de 2014, os vídeos tiveram as falas transcritas e uma descrição mais
acurada foi realizada, dando ênfase às reações corporais dos espectadores, sendo que as
informações e hipóteses observadas na primeira análise foram confrontadas com o que foi
apreendido na segunda; 3) novamente, no segundo semestre de 2014, os vídeos foram
analisados juntamente com a orientadora da pesquisa e novas hipóteses foram e outras minúcias
levantadas; e 4) uma nova análise, dessa vez no primeiro semestre de 2015, foi efetivada, dessa
vez com o intuito de aprofundar a descrição existente. Portanto, o material que aborda a
recepção da obra coreográfica utiliza como dados a experiência da bailarina-pesquisadora-
intérprete, a experiência e visão da diretora e orientadora, os registros audiovisuais captados e
os relatos dos espectadores.
Foram descritas as experiências em cada um dos três locais onde ocorreram as
apresentações, procurando tornar claras as dinâmicas encontradas, a forma como se elaborou o
trabalho em cada uma delas, as relações estabelecidas com os espectadores e as percepções da
bailarina-pesquisadora-intérprete. Embora houvessem homens e crianças na plateia, o diálogo
entre bailarina e espectador foi estabelecido somente com as mulheres coabitadas; isso porque o
coabitar havia sido realizado estritamente com elas. Por causa disso, optou-se por utilizar a
palavra “espectadora(s)”, no feminino, quando a questão tratada for o processo criativo, e a
palavra “espectador(es)”, no masculino, quando o assunto for a plateia como um todo.
Depois da realização do exercício de retorno ao campo, o processo criativo da pesquisadora
teve um prosseguimento peculiar que culminou na incorporação da personagem Rosinha/
Margarida. Dessa maneira, o percurso trilhado entre os anos de 2014 e 2016 possibilitou à
pesquisadora transpor dificuldades encontradas em seu processo pessoal, de forma que os
conteúdos advindos de seu corpo se tornaram pertinentes a esta tese.
"
36

3. O TERECÔ
O terecô é uma manifestação religiosa cujos rituais de possessão espiritual permeiam as
vidas das mulheres pesquisadas. Segundo a bibliografia disponível, essa manifestação é
originária do Tambor de Mina do Maranhão (FERRETI, 2001) e também pode ser encontrada no
Pará. O terecô descrito e analisado nesta tese insere-se no recorte específico do Bico do
Papagaio, portanto, muito do que foi observado pela pesquisadora pode não ser encontrado em
outros terecôs de outras regiões.
Assim, a pesquisa de campo do Co-habitar com a Fonte iniciou-se em 2010, durante o
mestrado da pesquisadora, quando foi feito o primeiro contato com as mulheres quebradeiras de
coco babaçu. O início dessa experiência se deu em duas comunidades distintas, Olho D’Água, na
cidade São Miguel do Tocantins, e Centro do Moacir, na cidade Praia Norte, nas quais a
pesquisadora pôde realizar uma imersão no cotidiano dos trabalhos com a terra, sobretudo na
quebra do coco babaçu. Essa experiência abriu as portas para o universo festivo religioso do
terecô, o qual passou a integrar a presente pesquisa.
O terecô ocorre a partir da incorporação de entidades espirituais denominadas encantados
que, segundo a mitologia, tiveram uma vida terrestre e depois de morrerem se encantaram e
passaram a “baixar” nas pessoas6. A função dos encantados incorporados em seus médiuns é
proporcionar equilíbrio físico e emocional, seja para o próprio médium ou para outra pessoa. O
corpo do terecô é um corpo de dança, de cura e de cuidado.
Dessa forma, ao todo, foram pesquisadas sete eiras de terecô, os quais revelaram o caráter
dinâmico da manifestação no que diz respeito às doutrinas, aos encantados cultuados, às regras, à
organização e à frequência com que os rituais ocorrem. No terecô, a palavra eira é sinônimo de
terreiro e, geograficamente, está comumente localizada junto à moradia das mestras que as
regem. Por conta disso, as mestras acolhem as pessoas tanto dentro das eiras quanto dentro de
suas próprias casas, tendo sido encontradas pessoas vivendo junto às mestras para que pudessem,
assim, receber cuidados intensivos.

6Um exemplo dessa forma de “encantar-se” é o cangaceiro Lampião. Ao morrer, ele “se encantou, e agora tá ai,
baixano nas pessoa” (SIC), fala de mestra de terecô do Bico do Papagaio.
37

Entretanto, para entender o terecô é necessário conhecer e compreender aqueles que o


fazem, pois as características de uma manifestação estão diretamente ligadas ao contexto no qual
as pessoas que a realizam estão inseridas. Assim, o corpo do terecô observado é o corpo da
mulher quebradeira de coco babaçu, trabalhadora rural e, em muitos casos, chefe de família. Na
pesquisa de campo realizada, todas as sete eiras eram comandadas por mulheres e compostas por
médiuns do sexo feminino. Aos homens cabia a cambonagem, o toque dos tambores, entre outras
funções de suporte. Dessa forma, percebe-se um papel importante de liderança desempenhado
pela mulher nas comunidades pesquisadas; por conta disso, o foco desta pesquisa voltou-se para
essas figuras femininas.
Segundo relatos coletados junto aos indivíduos pesquisados, o povoamento da região do
Bico do Papagaio se deu por volta da década de 1950, quando o Maranhão passava por um
severo período de seca, levando parte da população do sul do estado a migrar para o Tocantins
(região ainda pertencente ao estado de Goiás, na época) em busca de terras devolutas. A esses
migrantes coube o desenvolvimento da região, que até então era “apenas mato”, de acordo com
os próprios sujeitos.
Atualmente, a região ainda apresenta casas sem acesso à água encanada, tratamento de
esgoto e energia elétrica. Além disso, não são raros os casos onde a escassez de recursos
alimentares é imperativa. Na comunidade Olho D’Água, por exemplo, havia apenas dois anos
que a população começou a ter acesso a casas de alvenaria; antes disso, as moradias eram
construídas com barro e palha de buriti. A questão da água também sempre foi um problema,
sendo que pouco tempo antes da ida da pesquisadora ao campo era necessário empenhar uma
longa caminhada para coletar água para as necessidades diárias. Banho e limpeza de roupas e
louças eram atividades realizadas dentro do rio.
Apesar disso, a pesquisadora pôde vivenciar, na região do Bico do Papagaio, o início de
um lento processo de transição: do rudimentar para o tecnológico, do inacessível para o
acessível. Assim, teve a oportunidade de aprender a lavar a roupa no brejo com as mulheres
quebradeiras de coco, acompanhando-as no percurso de quase um quilômetro com bacias lotadas
de roupas sujas na cabeça. Em 2013, no entanto, essa era uma atividade praticamente extinta,
uma vez que os “tanquinhos" e máquinas de lavar estavam se popularizando. Outro fato que
38

ilustra a transição é a chegada da televisão: novelas mexicanas exibidas na década de 1990 são
grandes novidades junto às novelas atuais, passando a influenciar o cotidiano das pessoas
observadas. Não é incomum ver o trabalho deixado de lado para que se possa assistir à novela,
compromissos são combinados de acordo com os horários das mesmas etc. Ou seja, a televisão
passou a ditar um tempo diferente na comunidade.

* * *
"
O corpo foi a via pela qual a pesquisadora apreendeu toda a experiência vivida em
campo, aprendendo e vivenciando os ofícios e atividades cotidianas segundo os princípios e
procedimentos do método BPI. Assim, ao aprender a quebrar coco, por exemplo, a pesquisadora
pôde fazer uma análise dos movimentos utilizados na tarefa e, com isso, compreender o corpo
dessas mulheres também no terecô.
Foi percebido que, na quebra do coco, o corpo estabelece uma relação de proximidade e
pertencimento com a terra e com as paisagens onde está inserido. A mulher, mesmo gestante,
continua a exercer essa tarefa, o que fez com que fosse levantada a hipótese de que o corpo se
relaciona com o ambiente da quebra do coco desde o útero através dos movimentos da mãe. Há
um ritmo, sons, vibrações. Logo que nascem, as crianças acompanham suas mães na atividade e
crescem em meio aos montes de coco e, por conta disso, sua textura, peso e formato são
incorporados em profundidade. O contato com a terra, com os animais que circulam o ambiente e
com os insetos também fazem parte da construção desse corpo.
Quebrar coco babaçu é uma tarefa de elevado grau técnico e envolve certo risco, uma vez
que suas castanhas são lapidadas pelo corte do machado através de batidas de porrete. Ainda
assim, é comum ver meninas jovens, de cerca de sete a oito anos, muito magras e pequenas,
quebrando coco com facilidade.
Entretanto, a primeira tentativa de quebrar a fruta feita pela pesquisadora foi
completamente frustrada: não importava a quantidade de força empregada, o babaçu não se
partia. As meninas próximas, com o olhar atento, fizeram as devidas correções na postura e na
forma de segurar o coco e, assim, tornaram-se o principal elo para a compreensão do corpo alvo
39

desta pesquisa. Elas aprendem o ofício sozinhas: pegam machado escondido e experimentam e
aprendem juntas, repetindo os movimentos observados todos os dias desde a mais tenra infância.
Além disso, a realidade social faz com que aprendam a desempenhar papéis domésticos desde
muito cedo: aos 10 anos já cuidam da casa, cozinhando, limpando, lavando roupas, e dos irmãos
mais novos.

O corpo que quebra coco não é construído somente na necessidade de sobrevivência, é


uma exploração minuciosa e delicada, assim como os aspectos que o compõe, fazendo
desta atividade não apenas um conjunto de movimentos complexos, mas um conjunto
de experiências de vida, de histórias incorporadas ao longo de gerações (CÁLIPO,
2012, p. 53).

Em meio à quebra do coco, o terecô vem complementar essa dinâmica de sobrevivência


vivida por essas mulheres. Ele tem o caráter de necessidade; se faz terecô porque se precisa dele
para curar e para equilibrar. E é esse o corpo que, mais tarde, lidera o terecô.
Não há como falar de um único terecô, mas sim de terecôs, tendo em vista a pluralidade
encontrada em campo. Embora exista uma doutrina em comum, cada terecô é único. A mestra
incorpora à manifestação referências próprias que mais lhe fazem sentido, o que torna comum o
estranhamento em relação à forma como cada uma lida com o culto. No entanto, foi observada a
presença de características da umbanda, do candomblé, do tambor de mina, do kardecismo, do
catolicismo popular, da pajelança, entre outros7.
O funcionamento de cada eira é determinado pelo tipo de organização, pela quantidade de
médiuns pertencentes e pela relação que a mestra possui com o “encante”. O maior festejo do
ano ocorre no dia do santo padroeiro da eira, quando este adquire posição de destaque dentro do
ritual em detrimento dos encantados. Comumente, hasteia-se o mastro com a bandeira do santo e
canta-se para ele. Na presente pesquisa, foi observado o festejo de Santa Luzia no dia 13 de
dezembro de 2012 e em 2013, onde todo o foco se deteve sobre a santa, apesar de os encantados
estarem incorporados nas médiuns. As influências do catolicismo são contundentes, sendo que

7 Levando-se em consideração as origens da manifestação, bem como a origem das mestras pesquisadas
(Maranhão), essa profusão de influências absorvidas pelas mestras é característica do imaginário religioso afro-
maranhense (FERRETI, 2013): “A presença de Dom Sebastião na encantaria maranhense mostra a força de mitos de
origens, como do sincretismo entre entidades africanas, caboclas, européias e do catolicismo popular e entre este e
as religiões afro-brasileiras, bem como a influência do meio ambiente na elaboração de crenças que estão muito
enraizadas na mentalidade popular” (FERRETI, 2013, p. 18).
40

todas as eiras visitadas possuíam nomes de santos (Tenda Espírita Santo Antônio, Tenda Espírita
Padre Cícero e Tenda Espírita São Francisco). Apesar disso, as mestras dizem que a criação de
uma eira é fruto de uma obrigação dada por um encantado. Nos altares dos locais pesquisados, a
presença de santos católicos é predominante, o que será ilustrado mais adiante.
Ainda sobre isso, o cronograma do terecô é determinado pelo calendário católico, como
os dias de santos e datas como a sexta-feira da paixão, o sábado de aleluia, entre outros. Na
região pesquisada, os santos que possuem maior influência e para os quais são realizados
importantes festejos são Santa Bárbara, Santa Luzia, São João e São Lázaro.
Em algumas eiras é efetuado apenas um festejo de grandes proporções por ano, na data de
seu padroeiro; em outras, também são realizados festejos nas datas de outros santos, como São
João, por exemplo. Nos dias de festa, que podem durar de algumas horas e alguns dias, visitantes
de outras tendas atendem ao trabalho, indo à eira para “baiar”, termo muito utilizado pelos
praticantes.
Além disso, algumas eiras batem seus tambores em datas comuns, sendo que o que
determina essa atividade é a demanda identificada pela mestra da eira ou a orientação dada pelo
chefe de sua “croa”8. Dessa forma, os trabalhos podem ser semanais, quinzenais, mensais ou
ainda sem frequência definida; também podem ser abertos à comunidade ou restritos aos
membros da eira.
Sobre os encantados, especificamente, os mesmo podem ser subdivididos em linhas –
branca, azul, verde, vermelha, amarela, rosa e roxa – e em correntes – das águas, dos exus, das
muié (pombas giras), e dos caboclos. Conta ainda com uma grande família, a qual estima-se ter
mais de 100 membros, chamada Légua. Existe, ainda, um tabu com relação aos trabalhos da
linha de esquerda9 (negra, vermelha e roxa), embora todas as mestras tenham assumido que, para
determinados assuntos, é necessário invocar os encantados dessa categoria.
"
* * *

! 8 Trata-se do principal encantado incorporado pelo médium, aquele que o rege.


!9
A linha de esquerda é considerada pelos terecôzeiros aquela que lida com dinâmicas “pesadas”, seja para
fazer o mau ou desfaze-lo.
41

"
Ferretti (2004) descreve o processo de perseguição e intolerância às religiões de origem
africana no Maranhão entre os séculos XIX e XX, relacionando-os a períodos históricos como o
fim da Inquisição em Portugal (1821), a Independência do Brasil (1822), a abolição da
escravidão (1888) e o Estado Novo (1937-1945). A prisão dos curadores, pajés, macumbeiros e o
interesse dos jornais em expor os “criminosos” suscitaram uma discriminação crescente que
fortaleceu a repressão não só por parte das autoridades, mas da própria sociedade.
A partir de relatos das terecozeiras e membros das comunidades pesquisadas, é possível
identificar reflexos dessa história ainda hoje, isso porque são vários os casos de terecozeiros
presos durante a ditadura militar, levando os demais praticantes a realizarem seus rituais
escondidos dentro das matas da região. Segundo as fontes pesquisadas, houve casos em que os
praticantes desapareceram após serem levados pela polícia, o que fez com que todos se sentissem
receosos em falar a respeito do terecô até hoje.
Atualmente, todas as eiras e mestras pesquisadas necessitam de alvará para bater seus
tambores e já foram, em diferentes medidas, abordados pela polícia. A manifestação é numerosa
no Bico do Papagaio, mas há um sentido de marginalização que é alimentado principalmente
pelos fiéis das igrejas evangélicas, as quais apresentam um crescimento progressivo. Além disso,
questões pessoais dificultam a assunção do terecô por parte das mestras, pois, na maioria das
vezes, o ritual acontece para que se possa livrar-se de uma dor física ou emocional.
Por conta disso tudo, foram necessários dois anos de intenso contato com as quebradeiras
de coco e a construção de uma relação de confiança para que a pesquisadora obtivesse acesso a
um festejo de terecô. Assim, foi preciso insistir, continuar as idas a campo, ainda que o terecô se
mostrasse tão difícil. Quando as quebradeiras de coco eram questionadas a respeito do culto,
desconversavam e diziam que não sabiam do que se tratava; ficavam desconfiadas pelo interesse
da pesquisadora e passavam a acusar as terecozeiras de serem pessoas propensas a “baixarias”,
de “fazer o mau para os outros” e de “ser coisa do capeta”. Entretanto, com a abertura para o
universo do terecô através dos rituais e festejos, foi possível constatar que ele é presente na vida
de todos da região. Seja para assistir a dança ou para fazer um pedido de cura, todos têm algum
contato com a manifestação, embora não assumam.
42

Dessa forma, ser médium no terecô não é uma opção na vida dessas mulheres, mas
sobrevivência. Isso porque a realidade enfrentada por elas é pautada na violência, na falta de
apoio e no abandono. As dinâmicas do terecô propiciam a elaboração dos processos de ordem
psíquica e o reestabelecimento do equilíbrio.
Sobre esses processos psíquicos, identificou-se, na qualidade de movimento do terecô, a
liberação, a contenção e a condução de forças internas, onde a dinâmica é sempre no sentido de
levar o médium para seu eixo. Junto a isso, houveram relatos de terecozeiras que afirmavam:
para se sentir melhor física e emocionalmente, era preciso terecô.

3.1. Terminologia do Terecô


A pesquisa de campo nas sete eiras de terecô localizadas em comunidades do Bico do
Papagaio identificou a utilização de termos específicos e outros apropriados de outras religiões,
como a umbanda, o candomblé e o tambor de mina. Considera-se pertinente apresentar a
terminologia dos terecôs pesquisados tanto por sua riqueza e especificidade quanto para melhor
compreensão das descrições que serão feitas adiante. Segue-se, portanto, um pequeno glossário:

Abi-iaiá: pequena estrutura retangular de cimento localizada no interior da eira, sem posição
específica, podendo ser encontrada ao pé da guna (mastro localizado ao centro do salão) ou à
esquerda da porta de entrada. É onde os encantados, quando incorporados nos médiuns,
desferem castigos físicos (Sinônimo de mãe-boa, ver p. 44).
"
Baiar: dançar terecô.
"
Banhos: são misturas caseiras feitas com ervas, cascas de árvores, óleos, flores e outros
elementos da flora e fauna do Bico do Papagaio que, misturados, possuem uma função
específica, como limpeza, purificação, atração, repulsão, cura.
"
Boca do tambor/pé do tambor: assumir a condução dos pontos e toques a serem entoados ou o
espaço físico próximo aos tambores e tocadores.
43

"
Corrente: uma das formas de categorizar os encantados, juntamente com as linhas. Existem as
correntes da mata, composta quase que exclusivamente por caboclos(as); das águas, composta
principalmente por reis, príncipes e princesas que “vieram do outro lado do mundo10”; e das
“muié”, denominadas Pombas Giras.
"
Croa: diz respeito à cabeça de um corpo simbólico, representando-a como um receptáculo do
encante.
"
Eira: sinônimo de terreiro, local onde ocorrem festejos e rituais de terecô; centraliza o terecô.
As eiras possuem um santo padroeiro (Santa Bárbara, Santa Luzia, São Francisco, Padre
Cícero, entre outros) e pertencem a algum encantado específico que ordena a construção do
local e, portanto, controla suas dinâmicas. Comumente as eiras são localizadas junto às casas
das mestras.
"
Encantado: define “entidade espiritual” no terecô.
"
Faixa: trata-se de um tecido dado ao médium na ocasião do batismo do encantado de sua “croa",
quando o mesmo desenha seu ponto (ver adiante). A faixa é utilizada como instrumento de
benzimento e com ela são realizados movimentos de retirada. Auxilia na sustentação de
determinados movimentos quando retesada acima da cabeça. Quando o médium vai trabalhar,
seja no âmbito do festejo ou da mesa (ver adiante), ele está sempre com sua faixa amarrada na
cintura ou pendurada ao pescoço.
"
Farda: roupa de baiar terecô. Cada encantado possui sua farda específica, a qual tem suas cores
determinadas pela linha/corrente a qual faz parte.
"
10 Frase dita por uma das mestras pesquisadas referindo-se à origem dos encantados que são denominados reis/
rainhas, príncipes/princesas.
44

Firmar vela: ato de acender uma vela de cor específica em um ponto pertencente a algum
encantado e a pedido deste ou acender uma vela no contexto do ritual, para iluminar os caminhos
da entidade.
"
Guna: mastro (de tronco de árvore ou cimento) localizado ao centro da eira e comum a todos os
locais pesquisados. Simboliza a firmeza do terreiro. A dança do terecô é realizada em volta a
guna, circulando-a em sentido anti-horário. O médium pode buscar contato físico com a guna no
intuito de reestabelecer seu equilíbrio e bem-estar.
"
Linha: categoriza os encantados juntamente com a corrente. Sua divisão se dá por cores: branca,
preta, roxa, vermelha, azul, verde, rosa e amarela, sendo que as linhas preta, roxa e vermelha são
as de esquerda.
"
Mãe-boa: sinônimo de Abi-iaiá (ver p. 42).
"
Mesa: trata-se de uma dinâmica do terecô. Quando a mestra trabalha na mesa, quer dizer que está
chamando os encantados, incorporando-os e realizando curas fora do contexto do festejo ou do
tambor. Recebe esse nome, pois o altar do terecô é montado sobre uma mesa, na qual apoia-se as
mãos para iniciar a chamada do encante.
"
Mestra: figura análoga à da mãe-de-santo. A médium que há muito tempo trabalha no terecô e
possui independência e autoridade para realizar grandes trabalhos, sendo reconhecida por isso,
pode se tornar uma mestra.
"
Obrigação: são ações e condutas estabelecidas pelos encantados e que devem ser cumpridas
pelos médiuns, como períodos em que determinados alimentos ou a prática sexual devem ser
restringidos, resguardos no período menstrual, recolhimento em horários específicos do dia,
como antes do sol se pôr, acender uma vela todos os dias sobre o ponto do encantado da croa,
realizar oferendas, tomar os banhos etc.
45

"
Ponto: desenho feito pelo encantado. Símbolo que o representa. É também o canto entoado pelo
encantado quando incorpora, sendo dado por ele na ocasião do batismo.
"
Salão: espaço físico da eira.
"
Tabazeiro: tocador de tambor dos festejos de terecô.
"
Tambor: designa ritual de terecô em que há toque de tambor e incorporação de encantados.
"
Tenda: sinônimo de salão.
"
Trabalho: ritual de terecô. Trabalhar no terecô consiste em realizar ações dentro das dinâmicas da
manifestação com um fim específico, como cura, atrair um amor, conseguir um negócio, afastar
um mal etc. Abrange o cotidiano do médium. Quem trabalha no terecô é essencialmente médium.
As ações são ditadas pelos encantados e envolvem acender velas, cumprir obrigações, riscar
pontos, benzer, entre outras.

3.2. Co-habitar com a Fonte


A pesquisa de campo do eixo Co-habitar com a Fonte ocorreu em dois momentos: entre
os dias 6 e 14 de dezembro de 2012 e entre os dias 28 de março e 8 de abril de 2013. Nesse
espaço de tempo, foi possível vivenciar um ritual de obrigação dentro da mata, tambores em
quatro eiras de diferentes cidades da região do Bico do Papagaio (São Miguel do Tocantins, Sítio
Novo do Tocantins, Carrasco Bonito e Grota do Meio, distrito de São Miguel do Tocantins), bem
como ter contato com outras duas mestras de terecô. As idas ao campo também propiciaram o
levantamento dos locais os quais poderiam receber o produto cênico elaborado especialmente
para as terecozeiras. Dessa maneira, são descritas a seguir todas as eiras pesquisadas.
Destaca-se que as imagens utilizadas a seguir são de autoria da pesquisadora e registradas
nas pesquisas de campo do eixo Co-habitar com a Fonte.
48

do mastro de Santa Luzia. Ao longo dos anos de pesquisa, a intérprete acompanhou o


desenvolvimento desta eira em diferentes etapas, que culminaram no seu fim em 2014.
A fundação do Terreiro de Moura se deu na mata, quando a mestra, junto de seu marido e
de alguns médiuns, os quais passavam por desenvolvimento e cura no terecô, lá se instalaram.
No entanto, não contavam com estradas, energia elétrica ou fonte de água. Segundo a mestra, o
objetivo era esconder-se e permanecer alheia ao restante do mundo para, assim, poder realizar
seu terecô.
A estrutura da eira12 (figura 03) era composta pelo salão principal, feito de barro, pela
casa de palha, onde residia a mestra, e por outras duas casas também de barro, as quais serviam
para atender os visitantes.

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"
" Figura 3 – “Complexo” construído pela mestra Moura em meio à mata amazônica.

" Fonte: Arquivo da pesquisadora, 2012.

Ao pé da guna, encontrava-se a mãe-boa (local onde se aplica castigos físicos) e, em seu


topo, imagens de Jesus e Maria. O altar ficava no centro da parede do fundo do salão e seguia as
características dos altares de terecô observados nesta pesquisa: uma mesa forrada com uma
toalha branca, repleta de santos, flores, terços e outros objetos utilizados pelos encantados. À

12
! São três estruturas: duas de barro, sendo uma delas o próprio salão de terecô, e outras duas de palha de buriti, para
receber seus convidados.
50

Todas as paredes do salão continham imagens de santos: duas imagens de São Francisco,
três de São Jorge, uma de Cosme e Damião, uma de Santa Luzia, quatro de Jesus Cristo, uma
imagem que ilustra a travessia do mar vermelho e uma de Santo Expedito. À direita da entrada
principal, encontrava-se um assentamento de Iemanjá com conchas e água e, à esquerda, um
pequeno pote de barro, o ponto assentado de Exu.
A mestra em questão é de origem paraense, tendo sido iniciada no Maranhão por um
mestre local. Por conta disso, sua eira trazia aspectos diferentes dos demais locais pesquisados,
como um mastro hasteado por mestra Moura contendo cachos de banana (figura 5).

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"
"
Figura 6 – Mestra Moura firmando uma vela em seu altar.

" Fonte: Arquivo da pesquisadora, 2012.

C) Tenda São Francisco, Carrasco Bonito, Mestra Ziza


Para se chegar à eira de mestra Ziza era necessário andar um curto percurso em estrada de
terra e, depois, seguir por uma trilha às margens da cidade. Construída com barro e teto de palha,
esta eira era composta pelo salão principal e outros dois cômodos: um com redes para os que
51

precisam descansar, bem como para as crianças, que dormem durante a madrugada, e uma
espécie de antessala, direcionada aos que querem conversar, beber água etc.
O altar e a guna eram cobertos por uma toalha verde. Inúmeras imagens se espalhavam
tanto pelo altar quanto pelas paredes. O teto era decorado com centenas de tiras de TNT
coloridas. Aqui também foi encontrado o assentamento de Iemanjá rodeado de água, conchas e
flores de plástico. Do lado oposto, um outro assentamento continha bonecas de plástico, algumas
vestidas com farda vermelha e preta. A mãe-boa encontrava-se do lado esquerdo da porta de
entrada e, junto dela, havia outro altar fixado e delimitado na parede.

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Figura 7 – Altar da tenda São Francisco.

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Fonte: Arquivo da pesquisadora, 2013.
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Figura 8 – Tenda São Francisco em dia de tambor. Ao centro, revestida em branco e verde, a guna.
Fonte: Arquivo da pesquisadora, 2013.

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Figura 9 – Segundo altar na Tenda São Francisco, junto da mãe-boa.

" Fonte: Arquivo da pesquisadora, 2013.

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D) Tenda Espírita Padre Cícero, Grota do Meio (distrito do município de São Miguel do
Tocantins), Mestra Nezinha
Grota do Meio possuía uma geografia simbólica, pois a rua que dava acesso ao local estava
sendo tragada por uma grande erosão. Era possível observar um terreno arenoso, sem firmeza.
Nezinha, mestra condutora da eira, era cega; no entanto, o respeito alimentado pela comunidade
de sua eira evidencia a maestria com a qual liderava seu terecô. A ausência do sentido da visão
não limitava sua atuação na manifestação, sobretudo física, uma vez que foi o corpo imbuído de
maior potência e qualidade de movimento dentre aqueles pesquisados.
A mestra Nezinha classificava sua eira como sendo de direita13 e, por isso, adotava
condutas condizentes com essa categoria de trabalho: realizava tambores somente durante o dia,
proibia o consumo de bebidas e fumo no interior do salão, não utilizava cores das linhas de
esquerda e não batia seu tambor para esses encantados, ainda que admitisse incorporá-los para
determinados tipos de demandas.
Também feito de barro, o salão tinha as paredes pintadas de verde e o teto forrado com
TNT azul e branco. A guna, confeccionada a partir do tronco de uma árvore, estava fincada sobre
uma estrutura de cimento que a circulava e possuía um orifício retangular que levava ao seu
interior. Nos quatro cantos do terreiro, encontravam-se pequenos pontos firmados por velas,
desenhos no chão e flores. O ponto de Iemanjá era o maior, cercado por água, flores e conchas.

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Figura 10 – Altar da Tenta Padre Cícero.

" Fonte: Arquivo da pesquisadora, 2012.

13 Linha que lida somente com trabalhos que visam a cura.


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E) Tenda Santa Bárbara, Grota do Meio, Mestra Ilda


Localizada a alguns quarteirões da Tenda Padre Cícero, esta eira pertencia à mestra Ilda,
uma senhora idosa, franzina e que trabalhava no terecô desde menina. O contato com esta eira foi
breve, apenas a partir de conversas com a mestra e uma única visita ao seu salão, que ficava no
quintal de sua casa. Construído de alvenaria e sem reboco, o salão seguia o padrão dos demais,
com altar localizado ao fundo e composto por dezenas de imagens de santos. Segundo dona Ilda,
o encantado de sua croa era a Mãe D’Água, Iemanjá.
A mestra relatou sua trajetória de vida no terecô e sintetizou a dinâmica das mulheres
quebradeiras de coco nessa manifestação ao dizer que, no terecô “entrei com a dor e saí com o
amor”. Assim como tantas outras meninas e mulheres do Bico do Papagaio, ela foi de um estado
de desequilíbrio, no qual sofria de dores no corpo, surtos que a faziam correr pelas matas,
comportando-se como “gente doida”, para um estado de equilíbrio.
"
F) Mesa da Mestra Chica Preta, Francisca, cidade de São Miguel do Tocantins.
O contato com a mestra Francisca ocorreu desde o mestrado. Ela vivia parte do tempo em
Colina, MA, e outra em São Miguel do Tocantins, onde a pesquisadora a conheceu. Sua casa era
a última de uma rua sem saída e contrastava com as vizinhas, pois era feita de barro, com paredes
tortas, sem banheiro, com uma cozinha construída com tábuas no quintal, caía aos pedaços,
prestes a se tornar apenas uma ruína. Era ali que trabalhava pesado, no sentido de ser adepta aos
encantados das linhas de esquerda e, por isso, era conhecida por atender pedidos e curas mais
complexos.
Ela dizia trabalhar com encantados, entidades da umbanda e até mesmo orixás do
candomblé; afirmava, por exemplo, que o melhor dia para se realizar trabalhos que envolviam
justiça era quarta-feira, por ser dia de Xangô e São Jerônimo, os quais equivalem à Família de
Légua. Isso reafirma a livre absorção e reelaboração de elementos de outras manifestações no
terecô (CÁLIPO, 2012).
Segundo Francisca, é pela força e poder dos encantados de esquerda com que ela mais
trabalha. Ela dizia não gostar do fato de ser conhecida por trabalhar com encantado “bravo”, pois
estes só agiam dessa forma com as pessoas que não lhes queriam bem. Sua relação com o
56

seus corpos. Essas forças, que podem ser prejudiciais, devem ser conduzidas e refinadas através
do terecô.
Esse transbordar do corpo é, na realidade, um pedido de socorro, pois, uma vez
manifestadas essas forças e impulsos, as mulheres passam a receber cuidados e afetos para os
quais não havia espaço em seu contidiano. Não se trata, portanto, de fazer cessar as
manifestações, mas sim de transformá-las em giros, dança e vida através das dinâmicas do
terecô.
Estas propiciam aos corpos que as vivenciam diferentes estados tônicos, qualidades de
movimento e posturas. Os dados levantados na pesquisa mostram que o objetivo é buscar o
equilíbrio físico e emocional do médium ou da pessoa que busca auxílio. As falas das
terecozeiras coabitadas evidenciam esse ponto: “Eu estava ruim, muito triste em casa, com dor
de cabeça e chorando. Mas eu sabia que se viesse baiá ia melhorar, aí peguei meu menino e
vim”, “Quando nóis tá ruim no salão, sentindo uns negócio ruim no corpo, é bom de ficar
agarradinho da guna, tranquila…”, “No terecô entrei com a dor e saí com amor”.
Como já mencionado, a análise dos movimentos e dinâmicas dos corpos do terecô foi
realizada sob a perspectiva da Estrutura Física e Anatomia Simbólica do BPI (RODRIGUES,
1997), a partir da observação e vivência em pesquisa de campo do eixo Co-habitar com a Fonte.
Também foram consideradas imagens de vídeos, fotografias e relatos de mestras, médiuns e
simpatizantes do terecô captadas ao longo das idas ao campo.
A análise do movimento é uma ferramenta pertinente para o entendimento dos corpos aqui
pesquisados, pois, ao baiarem terecô, estão em sua máxima potência e transitam através das
várias dinâmicas da manifestação. Dessa forma, os tópicos a seguir trazem a descrição e a análise
dos estados corporais, movimentos e dinâmicas investigados.
"
Corpo em relação ao altar: “o congá compõe o corpo simbólico” (RODRIGUES, 1997, p. 97),
por isso ocorre uma relação interna imaginária do médium com o altar que está diante de si. Nele
são projetados afetos que o fazem existir além do que está ali materializado. Na relação com o
altar, o olhar do médium o atravessa, buscando um contato direto com o divino e os aspectos
simbólicos lá evocados.
59

não deveriam sentir-se envergonhadas. A pesquisadora, então, pôde observar a mestra ajudando e
ensinando suas médiuns ao pé do tambor.
Quando se trata de um tambor aberto, onde se encontram médiuns de diferentes eiras, a
boca do tambor passa a ser disputada, gerando incômodos. Dominar o pé do tambor sem dar
espaço para que outros assumam a função é considerado má conduta dentro do terecô. Quando
isso ocorre, os médiuns passam a exercer pressão sobre aquele que está monopolizando a
posição. Através de movimentos expansivos bastante próximos a ele, acabam tirando seu espaço.
Percebe-se, a partir disso, que o pé do tambor é uma posição de poder, cabendo aos mestres mais
antigos sua administração. Também acontece da própria mestra assumir a posição ao pé do
tambor. Quando isso acontece, a mesma escolhe uma médium de confiança para ajudá-la na
sustentação do canto e da dança. O corpo do pé do tambor deve, portanto, ser imponente, pois é o
responsável pelo ritmo da gira.
"
Trânsito corporal: foram assim denominadas as transformações ocorridas no corpo ao longo de
rituais de terecô. Do início ao fim, as mudanças tônicas, as máscaras, as intensidades e as
qualidades de movimento eram múltiplas e características de cada momento, revelando um corpo
com alta qualidade expressiva.
Para tornar claro os movimentos interno e externo do corpo, foram identificados seis
momentos diferentes no âmbito da incorporação e desincorporação no terecô:

1) A preparação para receber o encantado: o corpo realiza movimentos contidos e com grande
aderência ao solo. O olhar do médium está voltado para dentro de si e o foco é interno. Quando
em tambor, o movimento de afastar e unir os pés e as mãos alternadamente é responsável pela
concentração de forças. O aumento da intensidade do movimento é nítido quando se aproxima o
momento da incorporação. O tônus se eleva, o movimento se torna mais firme e preciso. Podem
ocorrer pequenos giros.
"
2) A incorporação: caracterizada por um impulso advindo do sacro que reverbera por toda a
coluna; o tônus se transforma de forma refinada. Nesse sentido, a pesquisadora observou forte
61

"
4) Momento de aflição: se caracteriza, primeiramente, pela perda de referência do eixo, ou seja, a
médium entra em desequilíbrio constante e necessita de amparo. A mestra vai ao seu encontro e a
toca para conter os movimentos desordenados. Depois, encosta em algum ponto específico do
corpo, como o osso esterno ou o topo da cabeça, e passa a sussurrar rezas.

Figura 15 – Mestra ampara uma médium que necessita de ajuda. Tenda Padre Cícero.
Fonte: Arquivo da pesquisadora, 2013.

Figura 16 – Médium no chão em momento de ausência de tônus, imóvel. Tenda Padre Cícero.
Fonte: Arquivo da pesquisadora, 2013.
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Figura 18 – Mestra Nezinha com sua faixa retesada acima da cabeça. Tambor de Sábado de Aleluinha. Tenda Padre
Cícero.
Fonte: Arquivo da pesquisadora, 2013.
"
Características dos movimentos: o movimento característico do terecô é o giro, sendo ele parte
do momento de fruição. Os giros ocorrem em diferentes intensidades, onde alternam-se o contato
dos pés com o chão, a atuação das cinturas pélvica e escapular, a postura, a pontuação do eixo e a
utilização da cabeça. Também existe a caminhada em volta da guna, que tem a função de
preparar e manter o corpo que baia. A seguir, são descritas as características dos movimentos
específicos de cada parte do corpo, dentro do ritual de terecô.
"
1) Pés: os pés que baiam terecô utilizam-se, na maior parte do tempo, dos pequenos apoios por
saírem pouco do solo, empregando um esforço máximo (Rodrigues, 1997). O contato constante
com o chão se constrói na sutil articulação dos apoios: “dedos, metatarso, calcâneo, lateral e
medial (as bordas dos pés)” (Ibid., p. 46).
Gira-se alternadamente sobre os metatarsos e os calcanhares, onde, geralmente, o primeiro
dá o impulso para o giro e detém o corpo na pausa, auxiliando a retomada da estabilidade do
64

eixo. Nos giros, a borda interna do pé esquerdo busca manter uma posição paralela à borda
interna do pé direito e vice-versa. Foi possível observar que, embora os pés dos homens pareçam
mais pesados que os das mulheres, apresentam raízes mais soltas.
"
2) Cintura Pélvica: no giro, a bacia acompanha o movimento do eixo em uma leve báscula para
trás. Em uma outra dinâmica, ao realizar a caminhada ao redor da guna, é possível observar um
ágil movimento pendular lateral dessa região, conferindo soltura ao corpo. Foi observado, assim
como descrito na Estrutura Física e Anatomia Simbólica de Rodrigues (1997), que o sacro é
responsável pela atuação mais contundente da cintura pélvica, uma vez que é nele que se iniciam
os movimentos de incorporação e desincorporação.
"
3) Eixo: todas as dinâmicas do terecô descritas anteriormente apresentam alterações do eixo
postural. Contudo, pode-se afirmar que essas alterações ocorrem de forma mais acentuada na
incorporação e desincorporação, nos giros e no corpo de passagem. Na incorporação e
desincorporação, há uma ondulação da coluna que se estende até a cabeça como uma
reverberação do movimento de impulso do osso sacro. Já nos momentos de cura, ocorrem
bruscas inversões e alterações do eixo e transita-se agilmente pelas diferentes posturas: paralela,
vertical, perpendicular e abaulada. Torções com o tronco são importantes movimentos de
preparação para o giro, pois geram o impulso. Além disso, movimentos mais sutis, como
pulsações verticais, movimentos pendulares e vibrações, podem acontecer no corpo ao longo de
todo o ritual, independente da incorporação.
"
4) Cintura escapular: seu principal movimento é o fremir, que ocorre tanto durante a caminhada
ao redor da guna quanto nos instantes que precedem a incorporação. É característico dos
momentos em que o encante se aproxima do médium, seja quando este está prestes a incorporar
ou quando, já incorporado, está em um momento de maior contenção de movimentos. No
movimento de giro, o lado esquerdo da cintura escapular exerce força para baixo, em oposição
ao lado direito, auxiliando, assim, o impulso para o giro. Essa região também atua na utilização
65

da faixa14, que é usada durante os benzimentos e os próprios tambores, oferecendo uma


sustentação ao médium em momentos de contenção de energia. Ao segurá-la sobre a cabeça, com
os braços estendidos e abertos, retesando-a, o médium entra em um movimento pendular do eixo
no qual as escápulas e ombros estão ativados.
"
5) A cabeça: os movimentos da cabeça ocorrem como uma reverberação de movimentos da
coluna vertebral, principalmente nos momentos de incorporação e desincorporação dos
encantados, quando o impulso do sacro repercute até a cabeça. Na realização dos giros, a cabeça
realiza um movimento similar ao encontrado nas piruetas da técnica do balé, chamado
popularmente de “bater cabeça”.

3.2.3. O processo de cura do terecô: alívio do corpo


A cura á a principal função do terecô. Todas as suas ações e dinâmicas operam no sentido
de prover às suas praticantes um cuidado para consigo mesmas e/ou para com suas parceiras.
Isso porque o cotidiano no qual estão inseridas as envolve em carência material e afetiva. O afeto
permeia as relações de cuidado no terecô, onde a mestra acolhe o corpo físico e emocional de
suas médiuns, muitas vezes, na própria casa. Nas situações de extrema necessidade da médium,
esta passa a ser tratada todo o tempo na casa de sua mestra. Dessa forma, as eiras de terecô são o
único local que provê apoio material e emocional às mulheres que necessitam de ajuda.
Nas eiras pesquisadas, observou-se a manutenção de uma “rede de mulheres”, onde uma
está atenta à outra. Assim, ao identificarem um comportamento incomum por parte de uma
parceira, a mestra é imediatamente comunicada a fim de auxiliar a médium a equilibrar a
situação.
O terecô atua como processo psicofísico, no qual o primeiro sinal é a liberação de impulsos
do corpo. Segundo relatos das mulheres pesquisadas, isso se dá através de movimentos
descontrolados: atiram-se no chão e nas paredes, correm pelas matas sem destino, sentem
vontade de se ferir, entre outros impulsos autodestrutivos. Além disso, dizem ficar “meio ruim da

14 A faixa é um objeto de tecido que contém o ponto do encantado da croa e a qual acompanha o médium durante
todos os trabalhos no terecô.
66

cabeça” até “quase endoidar”, falando e fazendo coisas sem nexo. Nas pesquisas de campo, foi
possível presenciar várias dessas dinâmicas de cura do terecô, algumas das quais serão descritas
a seguir com o intuito de ilustrar o que ocorre.
Durante o tambor na Tenta Padre Cícero, na ocasião do festejo de Santa Luzia, uma
senhora começou a perder o equilíbrio, com um andar cambaleante e estremecido pelo salão. Por
conta disso, precisou ser amparada pelas médiuns mais experientes da casa, que a colocaram para
girar, guiando-a. Apesar de diversas manobras no sentido de fazê-la baiar, entrar nos giros da
dança do terecô e, assim, dar condução ao que ocorria em seu corpo, a senhora seguia da mesma
maneira.
No momento em que houve uma pausa na gira para que os convidados pudessem almoçar,
a mestra do salão passou a “trabalhar” naquela senhora. Ela colocou uma de suas mãos em sua
cabeça e entoou um canto para chamar Joãozinho do Pé do Morro (encantado caboclo), mas nada
aconteceu. Chegou mesmo a despejar um banho na cabeça da senhora, mas, ainda assim, nada
mudou. A mestra segurou a mulher pelos ombros e apoiou o topo de sua cabeça nas costas da
mesma. Sua faixa, passada ao redor de seu peito, foi utilizada para lhe dar suporte, sendo puxada
para trás por um de seus auxiliares. Esta ação desencadeou uma súbita modificação no corpo da
mestra: houve uma elevação do tônus muscular e rotação interna dos braços e mãos, sendo que
os dedos tomaram o formato de garras. Logo em seguida, a mestra atirou-se ao chão e foi
sustentada através da faixa que, ao redor de seu corpo, era segurada por um de seus auxiliares.
Observando esse acontecimento, a pesquisadora teve a impressão de que algo havia sido
transferido do corpo da senhora em cura para o corpo da mestra. Uma das médiuns foi ao
encontro da mestra e tocou-lhe a testa, sussurrando rezas enquanto esta se retorcia. Houve um
impulso da coluna acompanhado de urros e gemidos que, mais uma vez, transformaram o corpo
da mestra, com alteração no tônus muscular e uma nova inversão de eixo, que se tornou vertical.
O “trabalho” estava encerrado: no corpo dela se manifestava novamente o encantado dono de sua
eira, que logo perguntou pela próxima pessoa que necessitava de ajuda.
Na mesma ocasião, o encantado incorporado curou uma mulher que estava com
dificuldades para andar em virtude de um problema no joelho. Ela afirmava já ter feito todas as
tentativas através da medicina convencional, mas nada curara sua dor. Com as mãos tocando o
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joelho da mulher, o encantado entoou um canto15 e manipulou sutilmente a região, fazendo com
que a mulher sentisse dor. A mestra acendeu uma vela, rezou em voz baixa e passou algumas
obrigações para serem cumpridas ao longo da semana.
No tambor vivenciado na Tenda São Francisco, foi notória a cura através dos movimentos
do terecô em dois momentos específicos. O primeiro deles foi em uma ocasião em que uma
jovem relatou ter ido ao tambor naquele dia porque sentia tristeza e dor de cabeça e sabia que ao
baiar as dores iriam embora. Na outra ocasião, outra jovem entrou em um longo período de
aflição. Muitos foram em seu auxílio ao longo da noite, tentando reestabelecer seu equilíbrio,
mas não conseguiram. Sua mestra fazia apenas uma coisa: colocava a jovem médium para baiar,
para girar. Foram horas nessa dinâmica. Como observadora, a pesquisadora percebeu que o corpo
daquela mulher tinha, de fato, muitos impulsos de movimento para serem liberados.

Figura 19 – Exemplo de momento de cura. Mestra Nezinha tira algo do corpo de sua médium para dar passagem
através do próprio corpo. Festejo de Santa Luzia. Tenda Padre Cícero.
Fonte: Arquivo da pesquisadora, 2013.

!15 Apesar
de algumas palavras serem ininteligíveis foi possível identificar no canto as seguintes frases: “meu pai
Xango é dono das pedreiras”, “Oxossi é dono das mata, o meu São Jorge guerreiro da lança”.
68

"
Também foi presenciado um ritual na mata, do qual participaram somente a mestra Moura
e uma médium. O objetivo era liberar o corpo desta última dos encantados não pertencentes às
correntes com a qual ela trabalhava e, assim, sanar o mal-estar e as dores físicas que a afligiam.
Para chegar ao local escolhido, foi necessário andar por uma trilha fechada na mata, sendo
necessário o uso de facão para abrir caminho em alguns momentos. Ao pé de algumas
bananeiras, próximo a um buraco, dona Moura anunciou ter encontrado o local certo e organizou
algumas folhas de bananeira de forma que desenhassem um triângulo. Colocou nove rosas
vermelhas ao redor e, por fim, despejou mel nesse espaço.
A médium foi orientada a permanecer somente com suas roupas íntimas, colocando-se no
centro do espaço preparado. Também precisou acender velas passadas pela mestra: primeiro,
duas velas brancas, para Jesus e Maria; depois uma amarela; uma verde para Oxossi; e outra cor-
de-rosa para Jandira, a cabocla que vinha lhe incomodando e precisava de condução. A mestra,
por sua vez, acendeu do seu lado esquerdo uma vela rosa e outra roxa e pediu para que a médium
rezasse o que soubesse. A médium uniu as palmas das mãos diante do peito e rezou em um tom
de voz inaudível. Feito isso, a mestra despejou aos poucos uma bacia de pipoca na cabeça da
mulher e sussurrou algumas palavras enquanto chacoalhava um maracá feito de cabaça com fitas
amarelas e vermelhas.
A mestra pediu, então, para que a médium acendesse dois incensos de alfazema, enquanto
ela acendia outros dois deixados ao redor do espaço. Despejou uma essência que havia levado
em uma lata de água sobre sua médium e, novamente com o maracá nas mãos, rezou sobre ela e
pediu que repetisse o que dissesse. A reza pedia força e proteção: pedia primeiro a Deus e a Jesus
que guardassem a médium e seu guia, a Oxossi, ao caboclo da mata, ao caboclo do ar e ao
caboclo do tempo. A Oxalá, pedia paz, à cabocla Jandira pedia que abrisse os caminhos. Após
rezar, despejou água do mar sobre a médium.
Moura pediu que a mulher saísse do espaço das folhas de bananeira e pegou sua faixa do
encantado Leontino Légua. Atrás da médium, fez gestos de benzimento, como se estivesse
tirando algo de seu corpo. Segurando a faixa pelas pontas, retesava o tecido com força até que se
69

ouvisse um ruído. Repetiu esse gesto em várias direções sobre o corpo da médium, girando e
retirando algo da faixa sempre que terminava.
Depois disso, Moura incorporou o encantado Leontino Légua com uma forte pulsação da
bacia para trás, que repercutiu em todo o seu corpo. Logo que incorporou, sua mão buscou os
cabelos para soltá-los, algo que todo encantado caboclo faz. Ele disse para a médium se vestir e
nos guiou novamente pela mata. A obrigação estava encerrada naquele dia.
As ações descritas evidenciam como se dão os cuidados despendidos pelas terecozeiras
tanto com relação a si mesmas quanto com relação às suas parceiras. Esses cuidados também se
revelam no cuidado e zelo com que preparam os objetos dedicados ao terecô, como roupas e
outras regalias consideradas luxuosas na comunidade. Há uma dignidade adquirida ao se
entender merecedora de uma roupa de princesa confeccionada com a melhor renda, por exemplo,
de um banho com ervas, de um resguardo em determinados períodos etc. O terecô também pode
ser compreendido como sendo o pretexto de ser o outro através da incorporação da entidade e,
assim, permitir-se cuidar de si mesma.
"
3.3. Os encantados
Nas eiras pesquisadas, os encantados são entidades espirituais de origem terrestre. Segundo
as mestras, são almas de pessoas que, ao morrerem, se encantaram e passaram a “descer” nas
pessoas com a intenção de encontrar um caminho de luz.
A forma como o encantado é concebido no imaginário dessa população faz com que a
entidade exerça, dentro do terecô, uma função próxima àquela que desempenhava quando em
vida. É o caso do encantado João de Maiera que, de acordo com as fontes pesquisadas, era
médico e, por isso, é incorporado quando há necessidade de curar alguma doença. Na
comunidade Olho D’Água, João de Maiera possuía um papel importante, pois nos tempos onde o
acesso à saúde era precário era ele quem realizava partos, por exemplo. Existe uma história na
qual uma mulher, que paria na comunidade, estava sendo assistida por um parteiro que encontrou
dificuldades no procedimento. Por causa disso, a parturiente ficou entre a vida e a morte. As
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mulheres da comunidade correram para pedir socorro à mestra Verônica, que incorporou João de
Maiera e realizou o parto com sucesso.
Em campo, a pesquisadora pôde vê-lo atuar incorporado na ocasião de um festejo de
Santa Bárbara. A entidade tratou duas pessoas diferentes. A primeira tratava-se de uma criança
que apresentava dores no ouvido; o encantado solicitou que fosse colhida uma determinada flor
nos fundos da casa de uma das moradoras da comunidade e, espremendo a planta, derramou seu
sumo dentro da orelha da criança. O segundo atendimento foi o de um bebê que apresentava
cólicas; dessa vez o tratamento não envolveu remédios, João de Maiera apenas passou seu
rosário ao redor do pescoço do bebê e, segurando-o de ponta cabeça pelos tornozelos em frente
ao altar, desceu a criança em direção ao chão e, em seguida, elevou-a em direção ao teto.
Os encantados são dotados de características humanas, podendo, dessa maneira, ser
vaidosos e traiçoeiros. Nas histórias contadas pelas médiuns, sempre é recomendado ter cautela
ao lidar com essas entidades, já que existem relatos de atos violentos onde a integridade física
dos envolvidos é colocada em risco quando uma obrigação ou um pagamento de oferenda não
são cumpridos. Conta-se, por exemplo, que o encantado Chica Baiana, não tendo sua oferenda
paga ao realizar o pedido de uma mulher, incorporou na mesma e a fez atear fogo em sua própria
casa; em outro caso, um encantado fez com que um médium se atirasse em um rio sem saber
nadar, como forma de castigo. As pisas, ou seja, os castigos físicos aplicados pelos encantados
nos corpos dos médiuns, fazem com que estes batam seus corpos no chão e nas paredes até se
ferirem, fato presenciado em campo. Dessa forma, várias das histórias sobre os encantados às
quais a pesquisadora teve acesso em campo são carregadas de violência e crueldade.
"
* * *
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Os primeiros sinais de que existe um encantado se manifestando no corpo de um não
iniciado são tensionamento da musculatura, necessidade de sair correndo para dentro das matas e
de se machucar propositadamente. Trata-se de um processo doloroso, sendo que a única forma de
contê-lo é o desenvolvimento de suas correntes. Esse desenvolvimento se inicia com a
preparação de banhos específicos e benzimentos, os quais acalmam encantados descontrolados.
71

Por vários dias “permanecem “mexendo nas correntes” (incorporação de diversos encantados de
uma mesma corrente com o intuito de fazer o médium ter a experiência de todos eles em seu
corpo), quando descem encantados de uma única corrente, por exemplo, a dos Caboclos, que dão
sua doutrina e seu nome e, então, suspendem para que venha outro”.
Além disso, existe no terecô um ritual chamado batismo. Para isso, a médium deve
permanecer confinada por uma semana em um pequeno quarto firmando velas, tomando os
banhos e recebendo benzimentos. O confinamento se encerra no dia do batismo, quando a
médium é vestida de branco e decorada com fitas branca, verde e azul.
Vasta é a sabedoria dos encantados no que diz respeito ao uso de ervas, flores e cascas de
árvores da região. Esses elementos são comumente receitados aqueles que lhes pedem auxílio,
sendo utilizados para curar problemas físicos, realizar limpezas espirituais, atrair ou repelir
forças da natureza etc. Outra ferramenta muito utilizada pelas entidades nos trabalhos de terecô
são as rezas, empregadas em inúmeras diferentes situações.
Com relação à quantidade de encantados, realizou-se um levantamento onde foi
evidenciado um grande número deles. A categorização dos mesmos, como mencionado
anteriormente, se dá através de linhas identificadas por cores (branca, azul, verde, amarela, cor-
de-rosa, roxa, vermelha e preta). Também acontece através das correntes, as quais dizem
respeito, principalmente, à origem da entidade, como no caso dos caboclos, pertencentes à
corrente da mata, da corrente das águas, que abriga reis e rainhas, príncipes e princesas vindos
pelo mar ou caboclos vindos do rio, da corrente “das muié”, que abarca as pombas-giras; da
corrente dos exus; e a das crianças. Além disso, existe também uma grande família chamada
Légua, que é composta por mais de cem membros, segundo as fontes coabitadas.
A forma como os encantados são categorizados dentro dessas linhas, correntes e família é
um tanto anárquica, pois, embora um encantado possa pertencer, por exemplo, à família de
Légua, ser das linhas verde e negra e da corrente dos exus, também pode pertencer,
concomitantemente, a outras linhas e correntes.
A partir dos dados apreendidos ao longo das pesquisas de campo no Bico do Papagaio foi
possível elaborar uma tabela contendo os nomes de encantados e suas respectivas correntes.
Alguns deles foram vistos em campo, outros foram relatados pelas terecozeiras. Optou-se por
73

4. DANÇAR PARA QUEM? QUESTÕES DE CRIAÇÃO E RECEPÇÃO


As reflexões acerca da recepção da obra cênica pelas mulheres quebradeiras de coco
babaçu se iniciaram no começo do processo criativo, isso porque as espectadoras não possuíam
experiência anterior com a arte cênica institucionalizada. Dessa forma, a todo momento foi
preciso colocar o questionamento: para quem se quer dançar? De forma que o objetivo da criação
que estava em curso pudesse ser recobrado constantemente. Assim, o fato dos espectadores para
os quais a obra seria endereçada já serem conhecidos, determinou um caminho para a criação.
As descrições dos laboratórios dirigidos dizem respeito ao período em que pesquisadora e
diretora detiveram-se especificamente na criação da dança em questão, tendo os procedimentos
atísticos como principal ponto abordado.
As três apresentações da obra cênica às fontes coabitadas serão descritas com o intuito de
buscar prover a dimensão da riqueza da experiência de retorno ao campo tanto para a intérprete
quanto para os pesquisados. Os dados provenientes do experimento foram analisados pela
pesquisadora e sua orientadora a partir de registros de vídeo, os quais forneceram material
suficiente para a realização de uma descrição das reações físicas dos espectadores. Na análise, as
impressões que a pesquisadora teve durante as apresentações, atuando como intérprete, também
foram levadas em consideração, contribuindo com dados para a questão da recepção e validando
o lugar do sensível nesta pesquisa.
Ao discutir a experiência de retorno ao campo, as características dos espectadores-fonte
foram comparadas às dos espectadores abordados por Pavis e Desgranges, evidenciando, assim,
a necessidade de levar em consideração as particularidades do espectador no processo de análise.
Por conta disso, o contexto no qual se deram as apresentações da obra, onde estão inseridos esses
espectadores-fonte, também foi discutido.

4.1. Laboratórios dirigidos e elaboração do roteiro


Para a criação artística e elaboração do roteiro de movimentos, imagens, sensações e
sentimentos, o trânsito entre os laboratórios dirigidos e a pesquisa de campo do eixo Co-habitar
com a Fonte ocorreu de forma contínua. Dessa forma, os laboratórios dirigidos se desenvolveram
74

entre os meses de fevereiro de 2013 e janeiro de 2014, quando a obra resultante foi apresentada
às quebradeiras de coco babaçu.
Dessa maneira, encontram-se a seguir as descrições das três apresentações realizadas na
região do Bico do Papagaio. Como a experiência possui um caráter pessoal, será utilizada, a
partir de agora, a primeira pessoa do singular, a fim de respeitar essa característica do processo
criativo no método BPI.
"
* * *
"
Dirigida pela Prof. ª Dr. ª Graziela Rodrigues, dei início aos laboratórios dirigidos com o
intuito de desdobrar e elaborar os conteúdos apreendidos em campo. Nesse começo, ao longo de
cinco dias, vivenciei uma imersão nesses laboratórios, tendo acesso ao espaço de trabalho
durante todo o dia e contando com a presença intensa da diretora.
Assim, Graziela propôs, como sua primeira indicação, que eu levasse para os laboratórios
elementos com os quais desejava trabalhar criativamente, como objetos, figurinos, sons, entre
outros. A proposta era vivenciá-los dentro do contexto do processo criativo no método BPI16.
Entretanto, nenhum desses elementos seriam inseridos de forma definitiva; a ideia seguia no
sentido de aproveitar fluxos que os mesmos pudessem suscitar no corpo. Além disso, como a
diretora identificou a presença de elementos do campo logo nos primeiros laboratórios dirigidos,
solicitou que eu entrasse em contato com os registros produzidos por mim em campo.
O primeiro objeto levado para os laboratórios foi um baú. Inicialmente, a ideia era que
pudesse servir tanto como cenário ou objeto cênico quanto como uma forma de guardar e
transportar aquilo que fosse utilizado nas apresentações mais tarde. Como o exercício tratava-se
apenas de uma apresentação, o baú foi representado por uma caixa de papelão.
A guna, mastro localizado no centro da eira de terecô, também foi materializada através
de um tecido acrobático amarrado ao teto do local de trabalho. O obejtivo inicial era apenas

16
! No método BPI, a direção cria o espaço do laboratório dirigido a partir dos espaços vivenciados na pesquisa de
campo “com o intuito de dar contenção ao material a ser exposto pela pessoa em processo” (RODRIGUES, 2003, p.
124).
75

mimetizar a configuração espacial das eiras onde as apresentações aconteceriam. Entretanto, ao


sentir e tocar o tecido durante os momentos de trabalho, o mesmo passou a simbolizar, de fato,
uma guna. Dessa forma, os movimentos suscitados por esse contato com o “tecido-guna”, bem
como aqueles realizados ao sustentar meu peso nele, foram o início de toda uma linguagem de
movimentos explorada ao longo desta pesquisa, mesmo após as apresentações. Trabalhar o eixo
fisicamente viabilizou um desenvolvimento interior e emocional do mesmo, algo muito
importante nos momentos de dificuldade vividos ao longo do processo.
Nesse contexto, vivi o que nomeamos como “corpos de resto”: imagens e sensações de
um corpo sem vida, que se desfazia em carne putrefada, sem vida. O baú mencionado
anteriormente foi o que disparou esse momento, pois adquiriu o sentido de urna funerária. Cada
vez que o abria e procurava identificar o que havia em seu interior enquanto imagens e sentidos
internos, realizando movimentos com as mãos e os braços, contactava uma terra contendo roupas
velhas e rasgadas, cacos de coisas quebradas e, ao passo em que revolvia mais essa terra, subia à
superfície restos mortais, pedaços de cadáveres, cabelo, ossos. Ao entrar no fluxo desses
sentidos, me deixava ser puxada pelos cadáveres para dentro da terra e lá permanecia, imóvel. A
presença de Graziela Rodrigues foi fundamental, pois possibilitou que eu entrasse em contato
com esses conteúdos de forma segura, conduzindo-me no sentido de compreender o que essas
imagens e sensações representavam para só então começar o movimento de sair de dentro da
cova.
Essas dinâmicas foram desencadeadas devido ao encontro entre os conteúdos apreendidos
por mim em campo e aspectos do meu inventário pessoal. Por conta disso, a diretora identificou
a necessidade de adentrarmos o eixo Inventário do Corpo para dar vazão a esses conteúdos.
Entretanto, esse material não é explorado criativamente, pois não proporciona fluidez à dança; no
meu caso específico, não havia fluxo interno e as modelagens17 que se apresentavam tinham um
tônus tão elevado que me levavam à total rigidez, impedindo o movimento. Também foram
identificados pelo olhar acurado da diretora tremores, os quais apresentavam características que

17
! Sobre a modelagem no BPI, Graziela define que “modelar é despertar uma vivência que está alojada em nossa
pele, em nossos músculos, em nossas articulações, em nossas vísceras” (RODRIGUES, 2003, p. 28) .
76

enunciavam a presença de conteúdos pessoais que precisavam se tornar consciente para serem
elaborados18.
O que se modelava em meu corpo nesse período se assemelhava a um beco sem saída.
Graziela buscava elucidar e dar desenvolvimento a tudo isso, mas os desdobramentos não
aconteciam. Por causa disso, a diretora passou a atuar no sentido de dar espaço para a expressão
desses conteúdos, sendo trabalhadas diversas modelagens as quais não se desenvolveram. A
construção de um roteiro ou desenvolvimento de uma única modelagem foi oficialmente deixada
de lado para que houvesse ainda mais liberdade e espaço para os conteúdos que necessitavam ser
expressados por mim. Assim, o que vinha à tona não era retido, mas aprofundado de acordo com
sua própria demanda e descartado para dar espaço a alguma outra coisa.
As modelagens diziam respeito a mulheres perdidas em beiras de estrada ou em meio à
mata e outros cenários do campo de pesquisa. Não existiam ações; elas simplesmente estavam
ali, sem saber de onde vieram, para onde iriam ou o que fariam. Eram frágeis fisicamente, sendo
que a sensação de ter um buraco na barriga persistiu por muito tempo. Por vezes, tinha a
sensação de ter o tronco sustentado somente por um fio de tripa. Corpos de pele e osso, sem viço,
cabelos sujos, roupas em trapos. Eram corpos sem vida e foram identificados como “modelagens
intrusas”19, pois havia plasticidade, qualidade e potência nos movimentos e mesmo fluxo do
circuito interno, contudo, a ausência de desenvolvimento de seus conteúdos deixou claro que não
se tratava de material criativo e sim de um mecanismo de defesa, que atuava no sentido de
dissimular o conteúdo que estava de fato em meu corpo. Não eram corpos de vitalidade20.
Ao analisar os diários de dojo produzidos nesse período, observei certa defasagem no que
diz respeito à descrição de emoções, quando comparada a de outras impressões. Notei muitas

18 No contexto do processo do BPI, “elaborar envolve um saber: saber sair dos pontos que
aprisionam” (RODRIGUES, 2003, p. 154).

19 Neste processo, foram consideradas “modelagens intrusas” aquelas que não tinham um desdobramento criativo,
tratando-se de mecanismos de defesa, mas que, ainda assim, apareciam no dojo insistentemente, com o propósito de
desvirtuar o andamento do processo.

!20“No Processo BPI alcançar a vitalidade indica, também, elaborar conteúdos que estagnam a fruição do intérprete.
Nesse procedimento, busca-se tomar consciência e ir além dos mecanismos de defesa. É essencial que o intérprete
não se deixe prender nos seus mecanismos, pois isso o afastaria cada vez mais dos seus gestos vitais e da sua
originalidade” (CAMPOS, 2012, p. 101).
77

lacunas e palavras como vazio, dor, vácuo, perdida, fim e outros sentimentos relacionados à
morte. Eu, identificada com a dor, sentia dificuldade em ir além e, por diversas vezes, deixava-
me levar. A indicação de Graziela foi para que identificasse o sentimento presente e, através do
movimento, desse passagem para que outros conteúdos emergissem. Todavia, senti dificuldade
em seguir as orientações, pois, embora estivesse consciente dos meus mecanismos de defesa, não
tinha clareza quanto a maneira como atuavam e, assim, dissimulava as indicações da diretora o
que levava a uma não compreensão das mesmas.
Apesar de todo o trabalho realizado, o sentimento de vazio21 aparecia cada vez mais forte
nos laboratórios. Dessa forma, a diretora apontou a necessidade de dar vazão expressiva a essa
questão específica como uma possibilidade de dar fluxo ao processo. As imagens e sensações
que tinha em meu corpo ainda eram dos “corpos de restos”, sem vida, sem rumo, com músculos
rompidos, ossos deslocados, pele queimada, derretida, caindo e um buraco na barriga. Estar em
dojo exigia um esforço muito grande da minha parte, pois contatar esses conteúdos com a
consciência de que eram questões que precisavam de elaboração, sentindo meu corpo travado,
sem poder dançar, era quase insuportável.
Nessa etapa, segundo a autora do método, o corpo inventariado do pesquisador está
sintonizado com os vários corpos coabitados. Essa profunda relação entre eles está situada “em
um mesmo indivíduo que em última instância estará lidando com os seus scripts, suas defesas e
suas limitações” (Ibid, p. 144).
O corpo “vazio” era, na verdade, um corpo cheio de conteúdos a serem expressados e
elaborados mas que, em razão da minha dificuldade em lidar com os mesmos, se imobilizava.
Lançando mão de mais um estratégia para alcançar uma dinâmica fluida dentro dos laboratório, a
diretora propôs a dinâmica de “tirar as palavras da boca”, onde, realizando gestos de retirar algo de
dentro da boca com as mãos, deveria deixar as palavras saírem sem censurá-las ou preocupar-me
em atribuir sentidos de forma imediata e linear. Dessa vez, entretanto, a dinâmica trouxe ao
corpo sentidos cujos conteúdos não estavam ligados à morte. Algumas modelagens que se
fizeram presentes nesse momento chegaram mesma a ser nomeadas, pois tinham características

21
! A presença do “vazio”, seja ele uma sensação corporal ou uma percepção das emoções, é amplamente vivenciada
nos processos do BPI e comumente precede uma virada para os movimentos de vitalidade, fato observado em
Rodrigues (2003), Teixeira (2007), Melchert (2007), Nagai (2008) e Turtelli (2009).
78

específicas e propiciavam o fluxo do circuito interno. Apesar disso, ainda não eram a
personagem22, pois não havia integração e nucleação de conteúdos, características essenciais da
mesma (RODRIGUES, 2003). Apesar de ter isso em mente na época, por conta das questões
pessoais trazidas à tona, não conseguia ter clareza do que estava acontecendo nos laboratórios
dirigidos.
O processo não estava evoluindo no sentido criativo, e os conteúdos que estavam
emergindo não “mostravam a que vieram”23. Apesar de diversas manobras e tentativas da
diretora de tornar claros tais materiais, eu não conseguia chegar a um refinamento que
proporcionasse a fluidez criativa do processo.
Foi realizada, então, a segunda ida ao campo, que durou dez dias, entre os meses de
março e abril de 2013. Findada a estadia em campo, demos continuidade imediata aos
laboratórios dirigidos.
Assim, a diretora passou a trabalhar com “registros do campo”, ou seja, a forma como
questões do campo foram apreendidas por mim. Era o espaço de explorar corporalmente os
registros dos estados emocionais das mulheres coabitadas e que haviam sido incorporados por
mim. Mais uma vez, Graziela deu a indicação para que eu trabalhassem exercícios técnicos
específicos, a fim de dar suporte ao que emergia do meu corpo naquele período: movimentos
com uma potência intensa e alta carga emocional.
Também foi identificada a necessidade de um ajuste tônico para que eu pudesse ter um
contato mais profundo comigo mesma. Assim, fui orientada a observar meu tônus muscular nas
atividades cotidianas e ajustá-lo, tendo como referência a propriocepção do meu corpo. Além
disso, a diretora também me ensinou alguns exercícios específicos de respiração e alongamentos
com o intuito de dar maleabilidade e flexibilizar minha musculatura. A exploração de
movimentos junto ao objeto cênico tecido-guna também foi instruída pela diretora, de forma que
tanto a questão criativa quanto o trabalho de eixo pudessem ser desenvolvidos.

22
! Um dos aspectos que enunciam a incorporação da personagem é a fusão de diversos corpos em um único
indivíduo, por assim dizer, que dá o seu nome. “Neste momento a pessoa tem a personagem estruturada [...] o que
está no corpo ganha um nome. Ela dança um nome” (RODRIGUES, 2003, p.128).

23
! Diz respeito à coerência e insistência dos conteúdos enunciados no corpo. “Dizer a que veio” envolve
proporcionar uma clareza enquanto a isso.
79

A linguagem de movimento proveniente do campo foi identificada pela diretora nessa


fase, estando representada pelos movimento de levar o cofo24 cheio de coco babaçu em cima da
cabeça, espalhar e recolher os cocos pelo espaço com agilidade, enrolar-se e desenrolar-se no
tecido-guna. A indicação dada foi para que trouxesse ainda mais o universo do coco babaçu
através desses elementos, sons e movimentos.
Os conteúdos que eram de fato pertinentes ao processo criativo estavam misturados
àqueles mais obscuros, os quais deveriam ser elaborados. Nesse sentido, a direção é
fundamental, pois ajuda a separá-los e a torná-los mais claros. Além disso, Graziela sempre
sinalizou a importância de eu controlar as expectativas em relação ao produto final para que o
conteúdo criativo pudesse emergir com um bom fluxo; também repudiava qualquer tipo de
comparação entre o meu processo e os de outros balarinos que atuavam no método, pois, no BPI,
cada um tem um tempo diferente.

* * *
O foco do processo criativo, naquele momento, era chegar a uma obra cênica
especialmente endereçada às mulheres quebradeiras de coco babaçu e terecozeiras,
estabelecendo comunicação e troca entre mim e elas. Criar para a fonte coabitada, entretanto, é
diferente de criar para espectadores da dança formal. Como eu me mostrava sempre muito
preocupada com o êxito do processo e com o resultado final, Graziela sempre me perguntava: “O
que você quer falar para elas?” e “Para quem você quer dançar?”.
O questionamento constante fez com que eu percebesse essas expectativas, idealizações e
negações em relação ao que estava emergindo do meu corpo. Estar ciente do objetivo da minha
criação e, acima de tudo, de fato querer realizar uma dança para aquelas mulheres, fez com que
eu me abrisse para o processo. Nesse sentido, a diretora propôs exercícios nos quais eu deveria
me dirigir às mulheres coabitadas nos laboratórios, de forma imaginária, deixando que a fala
chegasse até elas. O objetivo era quebrar as idealizações na relação com o campo de pesquisa e
comigo mesma.

24
! O cofo é um cesto confeccionado por palha de buriti e serve para armazenar coco babaçu. Nesse caso, o objeto foi
confeccionado por um indivíduo do campo de pesquisa.
80

Depois de mais de cem laboratórios dirigidos, onde foram experimentadas as dinâmicas


descritas acima, e de analisar e elaborar questões do eixo Inventário no Corpo, minhas defesas
ainda atuavam de uma maneira que me endurecia, impossibilitando o fluxo criativo. Agia em
mim a idealização do que deveria ser meu processo, insatisfação por não ter incorporado a
personagem e, com isso, o sentimento de incapacidade. Nos meses em que esses laboratórios
marcados por bloqueios de toda ordem aconteceram, muito do meu processo pessoal foi
depurado, sendo que, nessa etapa, diversas elaborações, as quais se concluíram somente no final
da pesquisa, foram iniciadas. A importância desse momento do processo criativo tornou-se clara
somente no fim da pesquisa, pois, enquanto o vivenciava, não conseguia compreendê-lo por me
deter às idealizações não alcançadas. Os avanços, entretanto, eram sempre sinalizados pela
diretora, que enfatizava a importância desse “amassar o barro”.
Para que o processo continuasse, Graziela propôs um novo contrato entre diretora e
bailarina, pontuando os problemas que ela havia identificado em minha atuação e tornando claras
e bem definidas minhas obrigações como bailarina-pesquisadora-intérprete. Minha conduta
estava dificultando o trabalho da diretora, pois projetava nela o fracasso que sentia ao não
alcançar meus objetivos idealizados, fazendo com que desconfiasse de suas direções e não as
seguisse integralmente. Portanto, nesse novo contrato, me comprometi a confiar, aceitado-as
integralmente.
A partir disso, o trabalho nos laboratórios sofreu um redirecionamento: o contato com
objetos e elementos externos é que deveria suscitar o “movimento interno”. No dojo do BPI,
trabalha-se de forma mais interiorizada, dando vazão ao que ocorre internamente através do
movimento. No entanto, no processo em questão, essa via (dentro-fora) estava levando a um
ensimesmamento que não permitia minha expressão e fruição em decorrência dos conteúdos
específicos do campo em relação com meus conteúdos pessoais. A direção atuou com os
seguintes procedimentos:
- Observar o espaço do dojo já instalado (com os objetos e os conteúdos
projetados) e escolher o que permaneceria ou não. Nesse momento, havia no
dojo a materialização da guna através do tecido acrobático, uma faixa de pano
com um ponto desenhado, um altar composto com santos e velas, uma bacia
81

com água, giz para riscar pontos, alguns pontos desenhados no chão, um
caldeirão com ervas, o próprio coco babaçu, um charuto, um cofo e um oratório
de Santa Luzia. Destes elementos foram mantidos somente a guna, o altar, o
oratório de Santa Luzia, a bacia com água, o giz para marcar pontos no chão, o
charuto, o coco babaçu e o cofo;
- Manipular os objetos conservados, sem atribuir significados de forma racional,
isto é, sem me preocupar em buscar o fluxo do circuito interno, mas deixando
que os objetos suscitassem movimentos e possíveis sensações, emoções e
imagens;
- Recordar, a todo instante, que aquele era um trabalho feito especialmente para
elas, as mulheres quebradeiras de coco babaçu e terecozeiras. Por isso, o dojo
era um exercício de comunicação específico, não cabendo expectativas outras;
- Como eu havia criado expectativas que geraram ansiedade em relação à
incorporação de uma personagem, nesse novo momento eu deveria me colocar
como intérprete para aquelas mulheres. Assim, qualquer modelagem ou mesmo
personagem que surgisse desse contato teria espaço, mas não seria o objetivo
principal;
- Falar com as quebradeiras de coco: a diretora solicitou que fossem impressas
diversas fotografias das mulheres registradas nas pesquisas de campo, com as
quais eu deveria me comunicar, tanto através da fala quanto dos movimentos,
tentando estabelecer diferentes tipos de relações.

Sobre isso, é importante ressaltar a importância particular do oratório de Santa Luzia,


que foi um objeto de extrema relevância nessa e em todas as outras etapas do processo. Acabou
permanecendo, inclusive, na criação do “fragmento de um esboço” apresentado na defesa desta
tese.
Além disso, destaco as 11 fotografias escolhidas dentre as inúmeras coletadas em campo
para atender à indicação da direção. Essas imagens foram trabalhadas nos laboratórios, onde
incorporei as mulheres retratadas nas fotografias no sentido de traçar um diálogo com elas. Isso
82

foi dando abertura ao processo criativo, que culminou na utilização desses registros fotográficos
na apresentação feita em campo. Todas essas imagens estão colocadas a seguir.

Figura 20 – Mulher segurando uma bacia com utensílios domésticos para serem lavados no rio. Comunidade Olho
D’água.
Fonte: Arquivo da autora.
84

Figura 22 – Meninas e mulheres se organizando para realizar uma brincadeira em grupo. Comunidade Olho D’água.
Fonte: Arquivo da autora.
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
Figura 23 – Mulher quebradeira de coco babaçu. Comunidade Olho D’água.
Fonte: Arquivo da autora.
85

!
Figura 24 – Mulher brincando com a filha em uma pausa na lavagem de roupas no rio. Comunidade Olho D'água.

" Fonte: Arquivo da autora.

!
Figura 25: Mestra Liciene. Tenda Santo Antonio. Sitio Novo do Tocantins.

" Fonte: Arquivo da autora.


86

!
Figura 26 – Mulher baiando terecô no festejo de Sábado de Aleluinha. Eira Padre Cícero, Grota do Meio.

" Fonte: Arquivo da autora.

"
87

!
Figura 27 – Mulher quebradeira de coco babaçu. Comunidade Olho D'Água.

" Fonte: Arquivo da autora.

"
88

!
Figura 28 – Mulher baiando terecô no festejo de Sábado de Aleluinha. Tenda Padre Cícero. Grota do Meio, São
Miguel do Tocantins.

" Fonte: Arquivo da autora.


89

Figura 29 - Mulher colhendo coentro. Comunidade Olho D'Água.


Fonte: Arquivo da autora.
90

Figura 30 – Mulher baiando terecô no festejo de Sábado de Aleluinha. Tenda Padre Cícero. Grota do Meio, São
Miguel do Tocantins.

" Fonte: Arquivo da autora.

"
A partir desse momento, o processo foi se estruturando de forma mais acentuada e cada
um dos elementos explorados foi se somando às modelagens das mulheres em meu corpo. Nos
primeiros laboratórios dessa etapa, Graziela sempre me questionava a respeito do sentido
embuído em minhas ações, uma vez que nenhum movimento deveria ser vazio. Trabalhando de
91

olhos abertos, deveria responder às perguntas com objetividade. As ações não precisavam ter
coerência entre si ou serem acompanhadas de qualquer outro elemento do circuito interno, mas
deveriam ser claras e precisas. Essa dinâmica foi um passo para que, naquele momento, eu
pudesse entrar em contato comigo mesma em um tônus mais favorável, sem ensimesmamento.
Ao mesmo tempo, eu elaborava, fora do espaço dos laboratórios, questões pessoais que vieram à
tona.
A princípio trabalhamos com os objetos que permaneceram no dojo: o oratório de Santa
Luzia, algumas imagens de santos, a guna, a bacia com água, o giz para marcar pontos no chão, o
charuto, o caldeirão, o coco babaçu e o cofo. Aos pouco, alguns deles foram sendo excluídos do
espaço e outros se reafirmaram, como é o caso do oratório de Santa Luzia e do tecido-guna
Falar com as quebradeiras de coco através das fotografias por mim selecionadas
desencadeou um maior fluxo de movimentos e passei a sentir meu corpo novamente, assim como
o fluxo dos sentidos. Assim, seguindo a proposta de trabalho da direção, eu começava me
relacionando com uma fotografia de cada vez, sem pressa, deixando que a imagem despertasse
modificações em meu corpo que, por sua vez, se ligava ao delas. Quando aquilo que a fotografia
havia despertado em mim havia se instaurado por completo em meu corpo, eu deveria falar
alguma coisa para a(s) pessoa(s) ali representada(s). De forma livre, as falas iam saindo e se
alterando de acordo com cada imagem. Eu me abria para a comunicação com elas e havia uma
escuta, um desenvolvimento do conteúdo que se fazia presente e um fechamento. Em seguida,
dava prosseguimento ao trabalho com outra imagem.
As ações se impregnaram de sensações, emoções e imagens as quais foram se delineando
em modelagens que não eram destrutivas como as do início do processo. A cada laboratório
dirigido, a diretora insistia para que tornasse cada vez mais evidentes os dados daquilo que se
modelava em meu corpo, como ações e paisagens, para que esses conteúdos mostrassem o
porquê de ali estarem. A diretora constatou, então, que a manipulação de certos objetos
proporcionava esse delineamento e me orientou a trabalhá-los paralelamente com o intuito de
dominá-los tecnicamente e, assim, ampliar a clareza dessas modelagens no corpo.
O principal objeto trabalhado e que perdurou até as apresentações, foi o eixo-guna. A
figura da guna no terecô agrega o sentido de firmeza para os baiadores; é ela quem estabelece a
92

conexão do plano terrestre com o plano do ar no terreiro, ou seja, dos encantados. Ao trazer a
guna para o espaço do dojo, buscava-se, a princípio, lidar com a configuração espacial particular
dos locais em que aconteceriam as apresentações; porém, conforme entrava em contato com o
objeto, o mesmo passou a simbolizar a integração do que está em cima com o que está embaixo,
ou seja, a centração.
Na Estrutura Física e Anatomia Simbólica do BPI tem-se a representação do mastro
votivo (RODRIGUES, 1997) como um elemento que auxilia na manutenção do eixo, no
dinamismo postural, bem como nessa integração cima-baixo. As dinâmicas desenvolvidas a
partir do eixo-guna foram muito positivas na busca pela integridade do corpo, pelo equilíbrio
emocional e corporal, pela centração e pela integração dos conteúdos. O eixo-guna, dentro deste
processo psicofísico, me proporcionou sustentação. Ao enrolar e desenrolar meu corpo nele, ao
estudar torções sustentadas por ele e permitir-me transitar nos diferentes níveis do espaço, meu
corpo adquiriu sustentação e expansão que foram se tornar nítidas dois anos depois, na resultante
prática da pesquisa.
Como o foco era a elaboração dos conteúdos visando um roteiro para as apresentações
que já estavam para acontecer, imbuí-me, nesse momento, da tarefa de trazer para o corpo as
mulheres das imagens, deixando que os movimentos e sentidos fossem suscitados por esse
contato. O circuito interno proporcionado por essa dinâmica adquiriu um fluxo melhor, bem
como a emanação de novos conteúdos.
Já estava fazendo, na verdade, um exercício de interlocução, pois ao trazer para meu
corpo as mulheres contidas nas fotografias, modelando-as, eu deveria falar algo para elas,
colocando-me como intérprete. Essa via propiciou um outro nível de detalhamento no trabalho
das modelagens, já que era possível para mim sentí-las de forma mais real e próxima, com
características mais bem definidas e maior qualidade nos conteúdos.
Dessa maneira, o roteiro apresentado foi constituído a partir desse exercício, que foi
estruturado da seguinte maneira: as imagens selecionadas eram posicionadas uma ao lado da
outra na extremidade onde estaria a plateia. Olhava para uma delas e iniciava uma relação,
segurando-a em minhas mãos. Cessado o processo com a primeira fotografia, levava-a até um
93

altar composto por um pano branco com molduras retangulares vazias. Utilizando velcro, fixava
aquela imagem em um dos espaços e escolhia uma outra foto para interagir.

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"
Figura 31: Altar cenográfico sem as fotografias das mulheres coabitadas. Tenda Santo Antônio. Sitio Novo do
Tocantins.
Fonte: Arquivo da autora.

Figura 32: Altar cenográfico composto pelas imagens das mulher coabitadas. Tenda Padre Cícero. Grota do Meio,
TO. Janeiro de 2014
Fonte: Arquivo da autora.
"
94

Desenvolvendo a obra cênica a partir dessa dinâmica, além de trazer para o meu corpo as
mulheres contidas nas imagens, um outro corpo passou a modelar-se em mim; um corpo que não
pertencia ao campo de pesquisa. Era uma mulher que saía de dentro da terra, retornando à vida.
Vestida em trapos e com um corpo disforme, passava por uma transformação à medida em que
eu entrava em contato com cada uma das fotografias, incorporando os sentidos despertados por
elas. Ao final do processo, a mulher tinha os cabelos escuros, uma bacia grande e a sensação de
que conhecia a vida e a dor das quebradeiras de coco babaçu. Por conta disso, tinha como missão
curar as dores físicas e emocionais das mulheres coabitadas. Para isso, chamava-as para baiar e
firmar um mastro no meio do mato.
Embora houvesse essa espécie de modelagem base a qual desenvolvia o roteiro, a mesma
era apenas um meio para que eu, como intérprete, me comunicasse com as espectadoras. Assim,
falar com elas foi um exercício centralizador da experiência vivida mais adiante nas
apresentações.
Minha maior dificuldade nessa época foi colocar-me pessoalmente como intérprete, pois
a cobrança e a frustração para comigo mesma no que dizia respeito à incorporação de uma
personagem era muito grande. Dessa maneira, expressar-me em cena sem que houvesse essa
personagem disparou um desenvolvimento bastante peculiar para o processo criativo,
principalmente após as apresentações.
Esse processo de incorporação da personagem não depende da vontade racional do
intérprete, não sendo possível, portanto, forçá-lo. Justamente por conta disso, o método BPI
fornece ferramentas suficientes para que um roteiro cênico seja criado ainda que esse estágio não
tenha sido alcançado. E foi assim que a direção chegou à obra cênica propriamente dita, a qual
permanecia sempre aberta a fim de evitar a cristalização do trabalho. A intenção aqui também era
de manter o roteiro permeável àquilo que encontraríamos no momento das apresentações em
campo, demonstrando um cuidado especial para com os espectadores.
No método BPI, trabalha-se com o que pode ser chamado de “coreografia dos sentidos”,
porém as marcações e os desenhos da cena também são levados em consideração, sendo,
portanto, desenhados e ensaiados. Todavia, essa estrutura não se encaixava na obra cênica que
estávamos desenvolvendo, fato reconhecido e apontado pela diretora. Aqui, quaisquer elementos
95

os quais limitassem a flexibilização da atuação poderiam colocar em risco a relação com os


espectadores. Assim, não tínhamos como objetivo final chegar a uma apresentação pronta e
acabada, mas proporcionar a melhor relação possível entre intérprete e espectadores.
Dessa forma, a estrutura básica do roteiro será descrita a seguir, mas é imprescindível que
o leitor tenha em mente que o mesmo foi se transformando a partir do contato com as
comunidades para as quais foi apresentado. Assim, não houve nenhuma apresentação igual a
outra. Serão abarcados adiante tanto os movimentos externos do corpo quanto a coreografia
interna dos sentidos, isto é, as imagens, sensações e emoções pertinentes a cada cena.

Cena 1: “Fazendo o corpo, saindo da terra”


No canto esquerdo do espaço cênico, de costas para a plateia, inicia-se a modelagem do
corpo de uma mulher. Os braços fazem movimentos ao redor do corpo, cavando, retirando,
revolvendo a terra. Ocorre, assim, o ajuste tônico e o delineamento do corpo que desenvolve o
roteiro.
Internamente, a sensação é de que uma mulher ancestral se modela em meu corpo, uma
mulher que habitou o mundo em um outro tempo. No roteiro, ela sai de dentro da terra,
retornando à superfície. Seu corpo é trapo, pois passou muito tempo debaixo da terra. Cabelos
ralos, roupas sujas de barro, pele, osso e unhas compridas. A paisagem interna é a de uma mata.
A mulher revolve e tira o barro ao redor de si. Se faz gente novamente. Volta à superfície para
convocar e unir as mulheres e, então, curá-las e curar a si própria. Quer ensiná-las a curar suas
prórprias feridas e a criar forças para sobreviver. Ela é uma mulher que viveu, morreu e se
encantou e, de tempos em tempos, volta para se refazer.
Não lembra muito de sua história que se confunde com as histórias das mulheres
quebradeiras de coco. Sente suas dores e aflições. Ela é mulher do mato, feiticeira da mata.
Sua motivação para sair de debaixo do chão são os ruídos. Sons de mulheres lavando
roupa e quebrando coco babaçu, crianças chorando. São ruídos familiares.

"
"
96

Cena 2: “O chamado”
Desloco-me pelo espaço em direção às fotografias. O corpo da modelagem ganha volume
e se renova conforme se aproxima das mesmas. É como se as observa-se em seus afazeres
domésticos, nos quintais de suas casas.
Seguro as fotos, uma a uma, e modelo seus sentidos em meu corpo. Trago a mulher do
papel para mim e desperto as sensações, as emoções e os movimentos. A cada foto trabalhada,
algo é dito para a mulher ali representada. Entretanto, as falas são proferidas na direção da
plateia e, no caso da pessoa representada na fotografia estar presente, direciono meu olhar a ela.
Para cada mulher, é dito um texto específico, mas não fixo.
Terminada a fala, a imagem é levada e fixada ao altar. Este é feito em tecido branco e
contém diversas molduras vazias destinadas às fotografias.
Nesta cena, são trabalhados dois tipos de dinâmicas: uma com um tempo dilatado, onde é
desenvolvida uma maior quantidade de detalhes; e a outra mais urgente e acelerada, onde os
conteúdos se desenvolvem de maneira mais rápida.
Como o roteiro não foi fechado, a cada apresentação as falas sofriam alterações, apesar de
manter sempre o mesmo sentido. A primeira delas é direcionada a todas as mulheres, e diz:
“Bora, bora pro mato pra nóis baiá. Bora, pra nóis botá as coisa pra fora. Pra tirar qualquer
coisa que tá presa aqui dentro. Bora, suas muié! Bora cum eu, que ocêis vai gostá! Bora todo
mundo!”
As falas seguintes dirigem-se especificamente às pessoas representadas nas fotos e estão
colocadas na ordem em que aparecem no espetáculo.
Mulher 1 (Maria Silvana): “Eta muié! Bora com nóis que nóis precisa docê! Nóis precisa desse
sorriso bonito, muié! Nóis precisa dessa alegria. Bora, bora com nóis.”
Mulher 2 (Ana Alice): “Essa muié aqui, ó, é muié dura que só. É muié dura que nem pedra.
Bora com nóis, Ana Alice! Bora, pra nóis tirá esses óio de tristeza, muié! Bora também, bora
com nóis.”
Mulher 3 (Neguinha): “Ahhh, Neguinha! Ahhh… Eta muié boa, boa de fazer nóis ri também, boa
de trabáio. Ocê vem junto, muié, que nóis não vai sem ocê. Bora!”
97

Mulher 4 (Eliene): “Essa muié aqui, ó, essa muié aqui, ó, precisa limpá essa tristeza daqui, tirá
essas coisa entalada, pra sobrevive, muié.”

Figura 33 – Bailarina durante a cena “O chamado”. Apresentação na Comunidade Olho D’Água. São Miguel do
Tocantins, TO. Janeiro de 2014.

" Fonte: Arquivo da autora.

"
Muda-se a dinâmica, que passa a se desenvolver de forma mais rápida e urgente.
Mulheres 5 (imagem de duas quebradeiras de coco): “Essas muiezinha vem junto também!”
Mulher 6 (Tó): “A Tó vai também, muié, não quero saber!”
Mulheres 7 (imagem com várias jovens): “E essas menina aqui tudo precisa vir também,
aprender as coisas com as muié véia. Vem suas menina!”
Mulher 8 (Luiza): “Ah, Luiza! Ah, Luiza…Muié…Precisa tirar essas coisas da cabeça, muié.
Vem junto. Vem junto com nóis.”
Mulher 9 e 10: “Essas duas aqui vai também.”
Mulheres 11 e 12: “E essa e essa não pode faltar.”
Mulher 13: “E por último, só mais essa.”
98

Ao completar o altar com todas as fotografias, paro diante dele e o aprecio. Abro os
braços e mãos, percorrendo toda a sua extensão.

Cena 3: “Firmando a guna”


Essa cena acontece junto do tecido acrobático instalado no espaço cênico. Inicia-se com o
movimento de cavar com os braços e mãos, de abrir espaço ao redor do tecido. Em seguida, entro
em contato com o mesmo, segurando-o. Estabeleço uma relação entre o tecido e o meu próprio
eixo, entrando em um movimento circular que abarca ambos, enrolando-me e desenrolando-me
em minha guna, do chão ao ponto mais alto que consigo alcançar. Mantendo a guna cenográfica
como referencial do corpo, finalizo a cena arqueando a coluna em diferentes direções até cair no
chão junto à base da guna, segurando-a próximo ao meu corpo.
Internamente, acontece, nesse momento, uma reunião de mulheres no interior da mata.
Vejo-me cercada por um círculo delas. O objetivo da reunião é firmar um ponto de força: a guna.
Uma preparação para que possam se comunicar com os encantados, com as forças divinas as
quais dão coragem.
Ao cavar, abro espaço para o hasteamento do mastro. Cavo a terra, mas também um
espaço dentro de mim mesma para a conexão com os encantados, com a força do eixo. Este era
material e simbólico ao mesmo tempo: sinto como se me transformasse no eixo-guna, sentindo a
transição e a transposição de forças dentro de mim. Há um pedido interno para que as mulheres
presentes, no âmbito das paisagens do circuito interno, deem as mãos e ajudem a formar a guna,
unindo o céu e a terra. É preciso preparo, fogo, cinzas, sangue da caça... cada mulher tem uma
função. Juntas elas dançam e eu, com a modelagem, conduzo o ritual. No movimento em relação
a esse eixo flexível, ocorrem as trocas de força, a comunicação entre céu e terra; quando o ápice
acontece, o ritual está finalizado.

Cena 4: “Mulher novamente”


Ainda no chão, segurando a base da guna junto ao tronco, inicio um movimento de
contrair e expandir o corpo em relação ao meu próprio centro (figura 30). A contração e a
expansão se ampliam até que a base da guna, uma espécie de bulbo, se distancie do corpo. Busco
101

Misericórdia Santa Luzia, ô misericórdia.


E fica tudo entalado aqui [colocando a mão no pescoço].
Ô misericórdia. Ô misericórdia.
Tem tudo nó nas tripa.
Misericórdia minha santa Luzia.
Foi quebrando tudo, e não conseguiu juntar.”

Levo o oratório para perto do tecido-guna, descrevo um círculo e depois alço o objeto até
o ponto mais alto alcançado por mim. Feito isso, faço o trajeto até o chão, onde deposito o
oratório ao pé da guna. Nesse momento, o canto “Misericórdia”, entoado por mim anteriormente,
começa a tocar. É um registro realizado durante uma das idas a campo no Bico do Papagaio. Meu
corpo, então, entra no ritmo do canto, que é acompanhado da batida do terecô tocada em tambor
e lata de tinta, e realizo, assim, uma dança acelerada. Esta é carregada com o sentido de
superação. Aqui, digo:

“Acabou, acabou o olhar de tristeza.


Tem firmeza e sustentação.
Ninguém! Ninguém vai me derrubar mais.
Juntou tudo, juntou tudo os pedaço dela.”

E assim, o roteiro termina.


A dança final fornece o desfecho do percurso corporal desenvolvido até então, onde,
trazendo as mulheres coabitadas para o meu corpo, entrava em contato com suas dores passando
por suas porções mais humanas. Também tinha acesso ao encante, ao fazer terecô, que se
desdobrou no processo de cura e superação.
Alguns conteúdos do roteiro acima descrito também fizeram parte do fragmento cênico
apresentado como resultante desta tese na ocasião da defesa. Com relação aos objetos utilizados,
por exemplo, o oratório de Santa Luzia foi o único que permaneceu até o final. A qualidade de
movimento proporcionada pelo trabalho com o tecido-guna tornou possível o surgimento de uma
rica linguagem de movimento quando da incorporação da personagem, a qual será discutida mais
102

adiante. Imagens do corpo que sai de dentro da terra e que precisa ser refeito, transitando entre
ter ou não ter corpo, também foi central para a construção da personagem. Assim, os elementos
do roteiro apresentado nas comunidades do Bico do Papagaio foram o início de uma trama tecida
ao longo de anos e que se revelou nas últimas semanas de pesquisa.

4.2. Dançando para Fonte Coabitada


As apresentações da obra coreográfica nas eiras e comunidades da região do Bico do
Papagaio ocorreram no 17˚ mês de pesquisa, em janeiro de 2014. Isso se deu depois de duas idas
ao campo, onde se cumpriu o eixo Co-habitar com a Fonte do método BPI, bem como extensos
períodos de laboratórios dirigidos e a elaboração de um roteiro cênico.
O acesso aos espaços onde as apresentações aconteceram foi galgado junto às mulheres
coabitadas durante as idas ao campo. Por orientação da Prof. ª Dr. ª Graziela Rodrigues,
primeiramente, perguntava a elas se gostariam de ver uma dança feita por mim, gerada a partir
das experiências ali vivenciadas, das caminhadas pelas comunidades, dos terecôs e das quebras
de coco. Recebendo uma resposta afirmativa, perguntava à(s) responsável(eis) pelo local se
poderia fazer uma apresentação em sua eira/comunidade e contar com sua(s) ajuda(s) para
convidar os espectadores, como médiuns e familiares. A princípio, obtive aprovação para
realização da experiência em todos os quatro locais selecionados, todavia, na circunstância das
apresentações, conseguimos acesso a apenas três locais: duas eiras de terecô, Tenda Santo
Antônio e Tenda Padre Cícero, e uma comunidade localizada na zona rural chamada Olho
D’Água.
Apesar dos responsáveis pelos três locais escolhidos terem autorizado a realização das
apresentações, só foi possível realizar o agendamento prévio da data e do horário desejados na
Tenda Padre Cícero. Nos outros locais, esse processo foi realizado enquanto já nos
encontrávamos em campo. Por conta disso, tanto eu quanto a diretora nos mantivemos abertas a
possíveis mudanças, incluindo o cancelamento de alguma apresentação.
Assim, tendo em vista o tempo necessário para a realização dessa pequena turnê, a
experiência se deu ao longo de uma semana, conforme estipulado pela direção. Estavam
presentes, além de mim, a Prof. a Dr. a Graziela Rodrigues e a Prof. a Dr. a Larissa Turtelli,
103

também membro do grupo de pesquisa Bailarino-Pesquisador-Intérprete e Dança do Brasil,


vinculado ao CNPq. Dessa forma, contei com a ação ininterrupta da direção, a qual propunha
questionamentos, conduzia dinâmicas e exercícios os quais buscavam tornar claras as situações
que estava vivenciando e ampliar a qualidade da atuação do corpo e das percepções. A diretora
também intermediou minha relação com os espectadores na cena, além de ter dirigido todas as
montagens. Tudo isso proporcionou um aproveitamento ímpar.
Dado o objetivo principal da experiência, isto é, analisar a recepção de uma obra
coreográfica pelas próprias pessoas coabitadas, foram adotados procedimentos para que os
registros tivessem a melhor qualidade possível. Para isso, foram utilizadas duas câmeras, uma
delas voltada para a cena e operada pela Larissa Turtelli e outra na direção dos espectadores, fixa
em um tripé. A diretora solicitou que os arredores das apresentações também fossem filmados
para que o contexto das apresentações também pudesse ser registrado. Além disso, também
foram gravados trechos da minha interação com os espectadores e responsáveis por cada local
antes e depois das apresentações, do processo de montagem do espaço cênico, da interação entre
este e os espectadores convidados e falas da plateia depois de assistirem à obra.
Ainda em campo e junto da diretora, assistíamos e analisávamos cada uma das gravações,
observando a reação dos espectadores tanto de forma individualizada quanto em um âmbito mais
coletivo, relacionando-as aos conteúdos que estavam sendo expostos em cena. A partir disso,
hipóteses foram sendo traçadas, tendo como base as colocações feitas pelos espectadores após as
apresentações, bem como as reações captadas através dos registros, minha perspectiva como
intérprete em cena e as observações feitas pela diretora. Também foi traçado um paralelo com as
informações a respeito dos respectivos locais e suas relações com o terecô.
Além disso, a diretora fornecia um meticuloso feedback sobre minha performance em
cena, assinalando os pontos fortes e aqueles a serem melhorados, bem como questionando-me
sobre a experiência, de forma que as relações com os espectadores fossem se tornando mais
claras. Nesse período, foram listados alguns pontos os quais deveriam ser descritos e
aprofundados após o retorno a Campinas.
O material registrado, depois do nosso retorno, foi analisado outras quatro vezes, sendo
uma delas junto da diretora. Nas demais, o conteúdo levantado foi discutido com Graziela
104

Rodrigues. Assim, todas as reflexões traçadas são fruto de intensas discussões com a orientadora
desta pesquisa e diretora da obra coreográfica que, com sua extensa experiência na dança e no
método BPI, trouxe inquestionável contribuição.
Dessa maneira, as descrições de cada uma das três apresentações buscam abordar: a
relação entre pesquisadora e pesquisados; a relação de cada comunidade com o terecô, uma vez
que a rejeição ou aceitação desse universo auxiliou no traçado das hipóteses acerca da recepção
dos conteúdos da obra coreográfica; a montagem do espaço cênico e a relação dos espectadores
com o mesmo; a dinâmica das apresentações, bem como a receptividade das mesmas; o
posicionamento dos espectadores no espaço durante os espetáculos; meu ponto de vista enquanto
bailarina-pesquisadora, incluindo minha percepção da plateia, as dificuldades encontradas, as
trocas estabelecidas, as mudanças ocorridas de uma apresentação para outra e a sensação de
abertura ou não vinda dos espectadores e sua influência no andamento da performance.

Procedimento de direção em campo


Aqui serão realizadas algumas comparações entre as apresentações, embora estejamos
cientes da particularidade de cada uma delas. Destacam-se, assim, as diferenças encontradas a
fim de tornar clara a diversidade de situações com as quais tivemos de lidar e, com isso, justificar
a flexibilidade de atuação exigida.
No primeiro dia no Maranhão, após visitarmos alguns dos lugares onde iriam acontecer as
apresentações, iniciamos os trabalhos de preparação. A diretora indicou que eu passasse
internamente o roteiro que seria apresentado. Ainda que o movimento ativo da dança não
estivesse ocorrendo, foi possível aprofundar o circuito interno das modelagens.
Se, ao longo do processo, minha luta era no sentido de conseguir sair de um estado de
ensimesmamento para abrir-me à comunicação com as mulheres quebradeiras de coco babaçu,
nesse exercícios senti como se os conteúdos do roteiro “ganhassem corpo”, ou seja, o esforço
necessário para sentir e viver o roteiro reduziu bastante. Ao transitar pelas paisagens e ter novo
contato com as mulheres coabitadas, senti como se os conteúdos se aproximassem de mim,
tornando-se mais fortes e reais. Suas cores, formas, cheiros e dinâmicas tornaram-se mais claros.
Até mesmo as modelagens estavam mais delineadas. Sentia tudo presente em meu corpo, ainda
105

que parada e sem movimentos ativos. Percebi micromovimentos e sutis mudanças de tônus. Em
alguns momentos, cochilava, mas, ainda assim, o trabalho parecia continuar. Meus sonhos eram
habitados pelas mulheres com as quais já me comunicava, passando por cenas do roteiro e suas
paisagens. Quando retornava à consciência, uma nova imagem, agora mais clara e delineada,
recheada de percepções mais vivas, se fazia presente.
Assim, houve uma ampliação positiva no que concerne à minha percepção corporal relativa
aos conteúdos do roteiro. A diretora, que me dirigia nesse exercício, relatou ter observado
modificações tônicas enquanto o mesmo era realizado25.
Essa “porta”, aberta por essa experiência, teve uma função importante, pois proporcionou-
me uma sensação de segurança no que diz respeito à “verdade” com a qual conseguiria dançar os
conteúdos do roteiro, agora, tão a flor da pele.

"

!25 Trata-se
de um exercício proposto pela criadora do método BPI em situações principalmente do eixo Estruturação
da Personagem, e na etapa das apresentações. Turtelli, 2009, p. 140, descreve a passagem interna do roteiro segundo
suas reações: “Mesmo o corpo estando aparentemente parado, as sensações o percorrem, o tônus se modifica,
pequenos impulsos acontecem, as imagens não ficam apenas em um plano mental, Dalva move meu corpo por
dentro.”
106

Primeira Apresentação: Olho D’Água


O Olho D’Água foi a comunidade onde iniciei a pesquisa de campo do eixo Co-habitar
com a Fonte com as mulheres quebradeiras de coco babaçu e seu terecô, no ano de 2010.
Também foi o local onde a pesquisa se concentrou por mais tempo, pois lá me instalei ao longo
de todas as idas ao campo até o ano de 2013. Assim, as relações interpessoais estabelecidas nesse
lugar, no que diz respeito ao Co-habitar com a Fonte, foram aprofundadas ao longo de quatro
anos, período em que foi possível viver uma imersão no cotidiano das mulheres pesquisadas.
As fotografias utilizadas na obra eram, em sua maioria, de mulheres as quais conheci no
Olho D’Água. O tempo de contato prolongado, vivenciando seus cotidianos na quebra do coco,
na lavagem de roupas no rio, nas rezas, nos terecôs, nas conversas noturnas possibilitou a
construção de uma relação de respeito onde, sem abandonar o lugar de pesquisadora, passei a
conhecer essas pessoas, presenciando momentos de perda e conquista. Dessa forma, ao dialogar
com suas imagens retratadas nas fotografias, podia acessar conteúdos experienciados ao longo do
tempo que passei com elas, a partir da perspectiva cinestésica26 abordada no método BPI. Nesse
sentido, a apresentação realizada no Olho D’Água é considerada aquela onde a comunicação
entre intérprete e plateia se deu de forma mais plena.
Foi também nessa comunidade que tive os primeiros dados vivenciais do terecô através
da extinta eira da mestra dona Verônica. O Olho D´Água detém grande força de resistência
cultural e social, tendo sido constituída por uma família a qual migrou do estado do Maranhão na
década de 1950, fugindo de uma das piores secas já vistas na região. Buscavam, no atual estado
do Tocantins, terras devolutas.
Dessa forma, acabaram sendo uma das famílias responsáveis pelo povoamento da região
do Bico do Papagaio, desbravando a única coisa que havia na região, a mata. Essa família de
migrantes, em especial, vivenciou a luta armada com grileiros e viu, durante o período da
Ditadura Militar, manifestações culturais, como o batuque, as folias, as danças e os tambores, se
tornarem formas de transgressão. Nesse período, o terecô foi para dentro das matas e a família

!26
Segundo Rodrigues (2003, p. 108): “na sensação cinestésica há uma reação muscular, uma modificação
do tônus, que dá contexto e significado ao objeto pelo qual o organismo está reagindo”.
107

migrante, da qual fazia parte dona Verônica, só foi incluí-lo em seu cotidiano quando a mesma se
viu diante da necessidade de se desenvolver em suas linhas e correntes, pois vivenciava a
manifestação dos encantados em seu corpo. De acordo com relatos colhidos em campo, a família
de dona Verônica, extremamente católica, apresentou certa resistência à época, porém, com o
correr do tempo, incorporou o terecô (CÁLIPO, 2012).
No Olho D´Água, de forma geral, a relação com o terecô é dicotômica. É possível
observar certa proximidade e adesão, mas também existe a rejeição. Quando interpelados a
respeito da época em que a eira de dona Verônica era ainda ativa, muitos falam com saudade e
afeto, lembrando dos grandes festejos, da importância de cada um, da suntuosidade das fardas
dos encantados, da beleza das danças, da animação dos tambores e da quantidade de gente que
aparecia na comunidade. Entretanto, muitos concluíam que, embora houvesse todos esses pontos
positivos, receber o encante no corpo não era coisa boa e desejada, sendo que muitos disseram
acreditar que isso era “obra do Satanás”. Seguindo a lógica cristã, a solução para essas pessoas
seria afastar os encantados, que poderiam, inclusive, desferir castigos físicos e desordens
emocionais, e não mais ter contato com a manifestação.
Nessas conversas, observou-se que, quando abordavam os aspectos positivos do terecô, o
faziam através de uma descrição detalhada das danças, das dinâmicas e dos sentimentos que
nutriam em relação ao terecô. Esses eram relatos particularizados, onde se impunha a relação de
cada indivíduo com pontos do encante e com as dinâmicas da eira. Em contrapartida, ao
abordarem os aspectos negativos, havia um discurso generalizado que se repetia. Isso não
significa afirmar que o incômodo causado pelo terecô nas pessoas do Olho D’Água seja
ilegítimo; no entanto, a forma como é expressado, ou seja, de forma não particularizada e
elaborada, fez com que fosse levantada a hipótese de esse discurso ter nascido dentro das igrejas
atuantes na cidade e influentes na comunidade.
O processo histórico determinou, em partes, a forma como ele é discriminado pela
sociedade local, tornando-o uma atividade marginal. Uma vez marginalizado pela sociedade, a
108

preocupação com a maneira como o assumir-se parte do terecô pode influenciar politicamente a
comunidade27 passa a existir.
Já no âmbito pessoal e emocional, acredita-se que, dado o fato de o terecô ter sido
fundado e desenvolvido por uma pessoa já falecida, no caso, dona Verônica, há uma associação
inevitável entre ambos. Evitar o contato com o terecô e quaisquer elementos a ele relacionados
pode ser uma maneira de lidar com a perda. Dona Verônica teve significativa importância na
comunidade, exercendo um papel de liderança. Por ser mestra de terecô, era ela quem lidava com
diversas dinâmicas delicadas; a sabedoria adquirida nas eiras deu-lhe a capacidade de equilibrar
situações conflituosas e, por isso, era frequentemente consultada pelos moradores. Naturalmente,
seus encantados também faziam parte disso, uma vez que cada um desempenhava determinadas
funções na comunidade. Sua perda provocou, a princípio, uma desestabilização e ainda é
possível perceber certa dificuldade em lidar com isso.
Essa hipótese também se sustenta a partir de acontecimentos ocorridos poucas semanas
antes da apresentação do trabalho artístico já mencionado, bem como do contexto encontrado na
comunidade no período em que ela se deu. A relação com o terecô, já fragilizada, agravou-se
após episódios onde duas jovens não iniciadas na manifestação tiveram “momentos de aflição”,
incorporando encantados de forma violenta. Os relatos contam que as duas se contorciam, se
atiravam e rastejavam com as costas sobre o chão; saíam correndo em direção à mata, precisando
de contenção. Eram, então, amarradas ao pé do cruzeiro pertencente à extinta eira da
comunidade.
Quando o encantado incorpora, ele quer alguma coisa, seja dar algum recado, perguntar
algo, dar uma “pisa” etc. A entidade pede por seus objetos ou por aquilo que gosta, como cigarro,
cachaça, cerveja, espumante ou cachimbo, por exemplo. Por esse motivo, quando o encantado
incorpora e está fora de controle, como nas situações descritas anteriormente, procura-se saber o
que ele quer ou do que ele precisa. Nesses casos em particular, ao serem questionados, os

27
! Houve uma situação em campo onde mulheres de uma ONG, que ministrariam um curso na ASMUBIP
(Associação Regional das Mulheres Trabalhadoras Rurais do Bico do Papagaio), foram visitar a comunidade e me
questionaram sobre meu objeto de pesquisa. Nesse momento, os olhares de algumas moradores voltaram-se para
mim com tensão, estava nítido que não deveria falar do terecô. Depois disso, as moradoras comentaram que haviam
ficado com receio de que eu falasse a respeito do terecô, mas não explicaram o porquê.
109

encantados recusavam-se a falar, levando as pessoas a acreditarem que estavam ali somente para
fazer o mal. Esse comportamento atípico dos encantados fez com que as mulheres concluíssem
que a incorporação era uma espécie de “vingança” motivada pelo fim indevido dado aos seus
objetos do terecô.
Dessa maneira, duas médiuns iniciadas foram chamadas para realizar as dinâmicas
necessárias para recobrar o equilíbrio, mas sem o objetivo de desenvolver as jovens que
passavam pelos problemas com o encante. Outras ações foram realizadas com a finalidade de
extinguir as manifestações dos encantados nos corpos dessas duas mulheres, ainda que se
soubesse que a forma mais garantida de não ter problemas dessa natureza era, justamente,
trabalhando as entidades no próprio corpo. A intervenção das igrejas foi uma das ações mais
fortes no sentido de “curá-las”, tanto da Evangélica quanto da Católica, tendo sido, inclusive,
organizada uma novena para afastar o terecô.
Por tudo isso, ao irmos apara o campo a fim de realizarmos a apresentação artística,
estávamos cientes de que o movimento de tensão em relação ao terecô havia ganhado forças em
virtude dos acontecimentos anteriores à nossa chegada; contudo, a dimensão dessa tensão só se
tornou clara quando já estávamos instaladas. Havia uma “demonização” do terecô, que se tornou
algo satânico para uma parte dos indivíduos da comunidade.
A pessoa que ajudou a organizar o evento sugeriu que fosse realizado logo depois do
encerramento da novena. Após a montagem do espaço cênico, fomos convidadas a participar da
reza, onde pudemos constatar a tensão que envolvia a comunidade. Conduzida por um membro
da Igreja Católica, entoavam-se pedidos para que “o Satanás, as coisas ruins e o mal” fossem
afastados de lá. Referiam-se, dessa maneira, ao encante. Por conta disso, decidimos realizar
algumas modificações na obra coreográfica, as quais serão descritas a seguir.
O local designado para o espaço cênico era composto por uma estrutura de madeira, por
chão de cimento e um teto de palha, e era chamado pelos moradores de “casona”. Tratava-se de
um espaço coletivo utilizado para festas, rezas, reuniões e quebra de coco babaçu. O espaço foi,
então, observado por nós a fim de que pudéssemos providenciar qualquer adaptação necessária
na obra cênica, visando um melhor aproveitamento e boa visualização para os espectadores.
113

quando chamo por Luiza, todos caem na gargalhada. A modelagem diz a fala demonstrando
conhecer aquela mulher há muito tempo, prolongando alguns pontos específicos da mesma:
“Luiiiiza, ah, Luiza, bora com nóis!”. E Luiza, estando na plateia, esconde o rosto com as mãos,
encolhendo o corpo e rindo; com as mãos, diz que não e, de certa forma, responde ao chamado.
O roteiro segue para a cena “Firmando a Guna" e, nesse momento, um objeto de vidro se
quebra na plateia, o que leva a uma dispersão geral. O momento, no trabalho, é de silêncio, de
grande densidade. A dispersão, entretanto, fez com que não houvesse uma imerssão, por parte
dos espectadores, na cena que se desenrolava.
Quando inicio o movimento de cavar o chão, revolvendo a terra para instaurar a guna, é
possível ver que uma das médiuns presentes não quer olhar e vira-se para trás com a cabeça
apoiada nas mãos. A dispersão continua, e é possível ver e ouvir conversas paralelas, algumas
risadas contidas e alguém que se posiciona dizendo: “zoada, não!”.
Ao fim da cena três, na transição para a cena quatro, estando eu deitada e abraçada à guna,
um dos espectadores começa a aplaudir, fazendo com que os demais o sigam. Apesar de se tratar
de uma cena silenciosa, a diretora julgou necessário colocar a música da cena anterior
novamente, visando atrair novamente a atenção dos espectadores e fazer com que
compreendessem que o trabalho ainda não havia terminado. Somente quando começo a
manipular a bacia com sangue é que todos retomam o foco na apresentação. Percebe-se, nos
registros em vídeo, que existe concentração por parte da plateia.
Na cena cinco, onde faço um pedido de misericórdia junto do oratório de Santa Luzia,
foram utilizados registros sonoros feitos com as mulheres da comunidade, incluindo sons de
tambores do terecô. Esse momento gerou tensão nos espectadores, havendo, inclusive, evasão de
algumas mulheres. A primeira a deixar a plateia foi a responsável pela novena; depois dela, foi a
vez de uma médium, que saiu logo após a fala “É mulher perdida de lugar nenhum”. Na cena
onde acontece a transformação do corpo, na passagem da dor para o “amor”, a mais antiga
ajudante da mestra de terecô também se retira. Nesse momento, a trilha sonora utilizada trata-se
de um canto de misericórdia entoado pela própria mestra falecida.
Durante toda a apresentação, as crianças foram as mais compenetradas no trabalho, mesmo
nos momentos em que houve dispersão, como no caso do objeto de vidro que se quebrou.
114

Mesmo quando um cachorro passeou pelo palco, bem como nos momentos de dor elas
permaneceram atentas, mantendo essa postura até o fim.
A partir dessa análise, fruto das imagens captadas, da minha percepção como bailarina e do
olhar da diretora, acreditamos que os espectadores tenham transitado entre a curiosidade, um
certo constrangimento e a dificuldade de lidar com os conteúdos expressados em virtude do
movimento de rejeição do terecô que estava sendo vivenciado na ocasião. Quando estive em
campo para a apresentação, essa marginalização foi visível, uma vez que a mestra havia falecido
há pouco tempo e as pessoas ainda não sabiam como lidar com as questões espirituais em sua
ausência.
Ao término da apresentação, a Prof. ª Dr. ª Graziela Rodrigues abriu espaço para que os
espectadores colocassem sua opinião a respeito daquilo que sentissem necessidade, sem que o
trabalho precisasse ser obrigatoriamente mencionado. Três pessoas se colocaram publicamente: o
líder da comunidade, seu Cosme, e duas de suas irmãs, Raimunda Nonata e Ana Maria. A seguir,
transcrições desses relatos:

Seu Cosme:
“A gente agradece, a gente sabe o difícil que é, porque, não é fácil você se deslocar da distância
que é. São Paulo é muito longe, né. E a pessoa se dedica num trabalho, para ver as situação das
comunidades mais carentes. E faz parte da vida, do mundo, né? Mas nem todo mundo conhece,
gostaria que muitas pessoas se deslocassem, né? Se deslocassem para conhecer, para divulgar
como é que passa as pessoas dentro dos interior, dentro das periferias, para se condoer, porque
tem uns pouco de gente passando bem, tem muita gente passando mal. Às vezes acostuma porque
o dia a dia é quem traz, trabalhando, mas falta apoio. Às vezes a gente tenta chegar mais na
frente, mas falta os apoios da sociedade que tem o poder na mão, né?
Muitas vezes, nós é criticado, quando chega uma pessoa que faz alguma coisa, essa pessoa
ainda é criticada porque ela tá fazendo um pouquinho pro lado do pobre, então ele é criticado
pelo grande. Como a gente viu agora nesses 10 anos desses administrador federal. Às vezes o
comércio do poderoso não cresceu tanto, mas o comércio local, dentro das comunidades,
115

cresceu. Só quem sabe é quem está vivendo lá dentro das periferias, lá dentro dos centros28, o
tanto que valeu a pena.
Então, a gente agradece à Nara, por esse sacrifício, de se deslocar daquela distância pra ver a
situação de muitas comunidades que não é só essa, né? Ela passou por muitas comunidades, e
viu a situação também de todas as comunidades que ela participou, teve o sacrifício pra fazer
isso, teve um grande… passou até por problema de saúde, mas faz parte da nossa vida.
Cada um que quer chegar em algum lugar tem que passar pelo sacrifício. Quem quer chegar em
algum lugar, do lado do pobre, sem sacrifício não vai chegar, não. Não vai chegar. Porque é
muito sacrifício para gente divulgar e conhecer.
O mais importante é divulgar esse conhecimento.
A gente agradece os professor. Porque com o trabalho que ela fez, se deslocou também para vim
prestigiar e vim ver a situação também dessas pessoas, que ela levou em foto, em vídeo, então
isso é bom o mundo inteiro saber, porque toda coisa hoje é na internet, a internet hoje está
divulgando tudo dependendo da vontade de cada um, hoje não é difícil você divulgar, porque tá
aí os meios de comunicação. Essas são as minhas palavras.”
"
Raimunda Nonata, ex-diretora da ASMUBIP (Associação Regional das Mulheres
Trabalhadoras Rurais do Bico do Papagaio) e meu primeiro contato no local, viabilizando minha
entrada nas comunidades:
“Eu vendo assim, a apresentação da Nara, a gente vê que todo o Brasil está conectado na
mesma cultura. Quando ela chegou aqui, ela viu Verônica, Verônica ainda era viva. Depois, no
segundo ano, já tinha Dona Moura ali, que apresentava essa cultura29. E aí a gente vê que o
Brasil interior tem a mesma cultura e às vezes é muito discriminado, muito discriminado essas
cultura, mas o Brasil inteiro tem a mesma cultura. E a gente às vezes, tá aqui longe e pensa que
lá no outro lugar pode não ter a mesma coisa, mas tem, a mesma coisa, né?

28
! Centro é sinônimo de comunidade rural.

! 29 Refere-se ao terecô.
116

E a gente, assim, agradece dela ter vindo, passou esses tempo todo, não mostrou nada, só
gravou, aí você vem agora e traz o retorno.
Primeiro contato que a Nara fez quando ela vinha pra cá, foi comigo lá na Associação, através
de mim ela chegou até aqui e passou esses tempo todo andando pra cá.
Primeiro ela ficou na comunidade do Centro do Moacir, indicado por mim, depois ela veio para
essa comunidade, no mesmo ano, aí acho que não foi mais no Centro do Moacir, ficou aqui
mesmo.
Aí a gente agradece muito, de coração, gostamos muito da vinda dela pra cá, porque foi uma
coisa que não ficou só de uma vez, uma vez ela vim e não voltar mais, ela sempre continuou
vindo, terminar o trabalho dela, que eu acho que terminou, né, Nara? Terminar o trabalho dela
que tava… o objetivo dela, ela terminou, vindo pra cá. Então a gente agradece muito.”

Ana Maria, mulher ligada aos movimentos sindicais da região:


“E eu também agradeço a Nara, por ela ter vindo, por ela vindo pra nossa comunidade, ter
escolhido a nossa comunidade de várias comunidades que ela andou ela escolheu pra fazer o
trabalho dela, aqui na nossa comunidade. E peço desculpas pra ela porque eu não pude tá
acompanhando ela em todos os locais que ela andava porque a gente é muito atarefado de
serviço. Mas sempre a gente deu uma mão pra ela aqui dentro.
Então eu agradeço a ela ter vindo e a gente tem muito prazer com isso, a nossa comunidade,
dela ter vindo e agora tá trazendo com o retorno dela, tá trazendo as professoras pra tá
conhecendo também.”

Questionada se havia assistido à apresentação, disse: “Assisti um pouco, eu gostei da


apresentação e parabéns”.
Os três moradores que se manifestaram publicamente após a apresentação possuem um
forte engajamento político na região, sendo membros de associações e sindicatos do Bico do
Papagaio. Tratam-se de pessoas com uma história ligada aos movimentos sociais e que possuem
um contato abrangente com as demais cidades e estados, tendo viajado pelo Brasil.
Como ninguém mais se pronunciou, procurei conversar individualmente, após a
apresentação, com as outras mulheres com as quais tive contato, principalmente as retratadas nas
117

imagem do produto cênico. Luiza disse: “Viu, eu gostei de você (me toca no ombro com a
mão), eu gostei da sua brincadeira, da sua dança. Pra mim foi muito importante, pela
primeira vez eu vi”. Perguntei se tinha achado algo ruim e a resposta foi: “Não, não achei ruim
não, nadinha”.
Foram identificados, tanto nas falas aqui transcritas quanto naquelas não registradas,
pontos que precisavam ser melhor apurados e aprofundados junto aos espectadores, pois, embora
tenham trazido dados no que diz respeito à recepção e ao retorno ao campo, não foram feitas
menções diretas à criação coreográfica apresentada. As circunstâncias da apresentação somadas à
presença das professoras Graziela e Larissa influenciaram na forma como os espectadores se
expressaram após a realização da dança. Assim, ficou evidente que as impressões causadas na
plateia, além daquelas observadas através do vídeo e das minhas observações e apreensões
cinestésicas, precisavam ser aprofundadas.
Para isso, retornei à comunidade dois dias depois, desta vez sozinha, com o objetivo de
conversar com as mulheres que assistiram à criação e levantar dados acerca da recepção. Esse
contato se mostrou imprescindível para o aprofundamento da questão das reverberações da obra.
Ao longo de um dia, ouvi, questionei e fui questionada por minhas espectadoras; elas
expressaram tanto suas impressões pessoais quanto a de outros espectadores, também oferecendo
uma perspectiva no âmbito mais coletivo. Os diálogos aconteceram tanto individualmente quanto
coletivamente e foram relatadas conversas que se sucederam após a apresentação, onde foram
levantadas hipóteses a respeito do que eu havia realizado enquanto qualidade de corpo e
conteúdo.
Dessa forma, ficou evidente não somente a demanda da pesquisa no que diz respeito à
qualidade dos dados da recepção como também a demanda dos espectadores, que expressaram
suas dúvidas e sentimentos em relação ao trabalho. A abordagem das conversas foi flexível, não
existindo um roteiro de perguntas; a única direção foi no sentido de manter o foco na criação
artística apresentada, respeitando os assuntos delicados para aquelas mulheres. Outros temas
relacionados à recepção da obra pela plateia também foram acolhidos, como, por exemplo, o
terecô, o cotidiano e a luta das mulheres no trabalho e na criação dos filhos. O ponto comum a
118

todas as falas foi, justamente, o terecô, pois, na perspectiva das entrevistadas, a criação artística
apresentada estava associada a essa manifestação religiosa.
A primeira mulher com a qual conversei abordou diretamente as transformações que
observou em meu corpo, principalmente aquelas que aconteceram durante a preparação, ou seja,
durante a modelagem do corpo, apresentando suas hipóteses sobre esse processo. Disse que essa
mudança corporal foi o que mais a impressionou, sendo que a origem dessas transformações foi
o principal ponto das conversas dos espectadores depois do espetáculo. Além disso, descreveu a
forma como meu corpo “cresceu” e “torceu” em cena, a mudança da expressão facial e a forma
como foi trazendo isso para o seu próprio corpo, me “imitando”.
Também contou que algumas pessoas próximas a ela na plateia perguntavam se “aquilo”
em meu corpo era um encantado ou não. Entretanto, disse ser possível perceber não se tratar de
uma entidade, mas de uma “simulação muito boa”; completou dizendo: “Você imita bem”. Para
ela, aquele era apenas um processo muscular, pois quando eu “apertava” os braços minha cintura
escapular parecia maior. Porém, não mencionou qualquer relação com os conteúdos de terecô
vivenciados em cena ou com as emoções e sensações presentes no movimento. Ao condicionar o
processo corporal a algo estritamente muscular, identificado como uma imitação sem, no entanto,
explicitar o que exatamente se imitava – apesar de ser possível deduzir, pela narrativa, que a
mulher fazia menção ao corpo do terecô – identificamos certa dissimulação. Essa mulher foi a
única que, ao ser questionada sobre o que teria visto e sentido no trabalho, pontuou diretamente a
questão do cotidiano de trabalho das quebradeiras de coco babaçu, dizendo: “Eu entendi que
você tava mostrando os nosso trabalho também, pra dentro dos mato, chamando as muié pra
quebrar coco”.
Além disso, ao longo da apresentação cênica, uma preocupação minha, como intérprete, e
de Graziela, como diretora, foi a questão das mulheres médiuns, as quais atravessavam um
período de conflito em relação ao encante, e a forma como a obra chegou até elas. Como uma
delas manteve o corpo encolhido e o olhar distante durante toda a obra, deixando o local pouco
depois, surgiu o interesse em apurar o que e como o roteiro atingira essas mulheres.
Todavia, pude conversar apenas com uma médium, que conhecia há quatro anos. Ela estava
entre as mulheres das fotografias com as quais dialogo ao longo do roteiro cênico. Como se
119

tratava de uma pessoa muito tímida, não falou muito. Apesar disso, procurou-me
voluntariamente quando soube que eu estava hospedada em uma das casas da comunidade, o que
evidencia abertura e curiosidade de sua parte. Ela afirmou ter “gostado muito” e achado “muito
legal”, rindo singelamente ao dizer isso. Perguntei se alguma coisa a havia incomodado ou se
tinha achado algo ruim e, no mesmo tom descontraído, respondeu-me que não.
Também abordei algumas das pessoas próximas às médiuns no intuito de descobrir como a
obra cênica as havia atingido, suas reverberações e possíveis consequências. Essas pessoas me
explicaram que a criação artística mostrou justamente aquilo pelo que as médiuns passavam
naquele momento, ou seja, as aflições e agonias do encante no corpo permeando suas vidas
cotidianas. Houve identificação com o conteúdo e com a forma como foi comunicado e, por isso,
ainda segundo os relatos, não foi uma informação de fácil digestão.
Já com relação à associação entre a criação artística e o terecô, além de estar presente nas
falas dos espectadores de forma direta, também apareceu nas lembranças despertadas em todas as
pessoas que a assistiram. Isso foi constatado no discurso daqueles com quem tive contato no dia
em que retornei à comunidade. Essas e outras lembranças suscitadas pela obra puderam ser
classificadas em duas categorias: “positivas” e “negativas”, aparecendo em todas as falas e
evidenciando certa dicotomia.
Ao recordarem o tempo em que estavam imersos no universo do terecô, quando ainda
existia o salão da comunidade, também lembravam da grave situação socioeconômica pela qual
passavam. Nos relatos, transita-se entre a saudade dos grandes festejos do terecô, quando
enfatizam a beleza das danças, das roupas e o tamanho das festas, e a dificuldade pela qual
passavam com a falta de trabalho. Muitas mulheres, ao falarem dos “bons tempos” de terecô,
descreveram a fome, a dificuldade em ter o que vestir e a falta de atendimento médico.
Foi possível identificar, também, um padrão na fala das pessoas: afirmaram ter gostado de
ver a dança embora a tenham achado, em algum nível, “esquisita”, manifestando dúvida em
relação ao que havia ocorrido em meu corpo. A maioria dos sujeitos, percebendo que a
performance apresentada não era terecô, perguntou-se o que, então, seria aquilo.
Na tentativa de esclarecer esses questionamentos, algumas mulheres relacionaram a dança
realizada a um aspecto cultural do meu lugar de origem, como o terecô é da região do Bico do
120

Papagaio. Afirmaram que, até então, não acreditavam ser possível existir esse tipo de dança em
outros lugares; o referencial utilizado eram a experiência vivida na região e a televisão, esta
como fonte de acesso a outras culturas.
O levantamento considerou os depoimentos das espectadoras, que compartilharam suas
impressões e as de outras mulheres ausentes no momento da entrevista, mas que haviam assistido
à apresentação. De todo o conteúdo apreendido, apenas uma pessoa relatou ter tido uma
experiência totalmente negativa ao assistir à obra, afirmando tê-la achado “feia e horrível”. No
entanto, é importante ressaltar que esta já havia manifestado rejeição à realização do evento na
comunidade. Ao ver o pano branco que compunha o altar ser instalado durante a montagem do
espaço, a mulher pensou que seriam projetadas imagens dos rituais de terecô captadas por mim
nas pesquisas de campo. A partir disso, instruiu os moradores a vetarem a exibição de quaisquer
vídeos que contivessem essas imagens.
Como bailarina-pesquisadora-intérprete, sentia que apresentar minha dança, feita
especialmente para aquelas pessoas, seria a melhor maneira de mostrar-lhes o que representavam
para mim as relações afetivas e os aprendizados obtidos ao longo de quatro anos. Percebi que
não seria possível transcrever tudo o que havia apreendido até então.
Durante todo esse tempo, todas as vezes em que estive na comunidade, a abertura que
tiveram à minha presença como pesquisadora foi muito importante para o desenvolvimento deste
estudo. Embora me detivesse principalmente no terecô, um assunto delicado naquele momento,
as pessoas coabitadas mostraram-se disponíveis e compreensivas, fato fundamental para que o
desenvolvimento deste trabalho se tornasse possível.
Entretanto, mesmo com essa motivação para a realização da dança, me senti nervosa e
insegura antes da apresentação. O fato de, pela primeira vez, dançar uma obra desenvolvida
dentro do método BPI sem a estruturação de uma personagem me causava dúvidas. Além disso,
não fazia ideia de como os conteúdos abordados no roteiro seriam recebidos pelo público. Assim,
a estrutura técnica, emocional e artística assegurada pelo BPI, bem como minha determinação
em alcançar o objetivo traçado para esta experiência – a troca com as quebradeiras de coco
babaçu – sustentaram a integridade dessa experiência.
121

O fato de ter sido recebida de forma positiva pela comunidade, fazendo com que me
sentisse acolhida, tranquilizou-me quanto à realização da apresentação. A impressão que tinha, a
partir de uma percepção cinestésica, era de que estava diante de espectadores com os quais a
relação em cena se daria mais naturalmente. Apesar disso, ao me deparar com o contexto
conflituoso em relação ao terecô, que pôde ser percebido somente quando da nossa chegada,
manteve-se uma preocupação no sentido de não ultrapassar qualquer limite, desrespeitando
aqueles que tão bem me acolheram. Nesse sentido, a atuação da direção garantiu os
encaminhamentos apropriados.
Devido às características do processo, havia uma atenção especial ao nível de abertura que
eu conseguiria atingir diante dos espectadores, visto que seria justamente na comunicação e na
troca dos conteúdos da criação artística com eles que se daria o principal objeto de estudo da
pesquisa. Tratava-se de uma tensão positiva em manter firmeza e confiança no processo sem
deixar que meus mecanismos de defesa atuassem; para isso, houve a necessidade de um alto
nível de concentração. Dessa forma, no dia do evento, tentei perceber-me o mais acuradamente
possível, atentando para os níveis de ansiedade, nervosismo e autocobrança, bem como para a
firmeza do eixo do meu corpo. Manter os conteúdos da criação (modelagem e seu roteiro
interno) “próximos”, ou seja, procurando senti-los e vivenciá-los em meu corpo, mesmo que em
“segundo-plano”, também influenciou na qualidade da apresentação30.
Além dessas questões, tinha consciência de que aquela era uma oportunidade única, onde
poderia dançar minha criação para as mulheres coabitadas tendo a direção de Graziela Rodrigues
in loco e o apoio técnico de Larissa Turtelli. Tudo convergia para que a experiência fosse
profunda, entretanto, ainda assim, havia ricos.
A modelagem desenvolvida no processo criativo, trabalhada até então nos ensaios, foi
preenchida pelos elementos do ambiente em que estava inserida: os sons, os cheiros, as imagens,
os acontecimentos do entorno do espaço cênico. A maneira como ela se delineou em meu corpo
em virtude da especificidade do ambiente proporcionou de imediato uma nova clareza acerca dos
elementos que a compunham. Ocorria, também, um aprofundamento do meu coabitar, da minha

!30 Procedimentos do método BPI dirigidos pela Prof. ª Dr. ª Graziela Rodrigues.
122

interação com as paisagens do campo e a referência para que obtivesse essa percepção foi meu
próprio corpo. Ocorreu um reencontro com elementos já presentes na criação, o que
proporcionou um maior clareamento desses conteúdos, e o surgimento de um novo material.
Enquanto realizava o processo de modelagem, via à minha frente a mata de babaçu, que
era uma das minhas paisagens internas; ouvia as vozes das mulheres ao longe se aproximando
cada vez mais; ouvia o burburinho que se instaurava no ambiente conforme ia identificado as
pessoas chegavam para a apresentação. Esses estímulos atuaram como partes existenciais da
modelagem, fazendo com que se tornasse ainda mais nítida, delineada e densa quando preencheu
meu corpo. Essa materialização das imagens e sensações internas ajudou meu corpo a se imbuir
dos sentidos com intensidade.
O ajuste tônico foi trabalhado minuciosamente, visto que está intimamente relacionado à
qualidade da percepção de si e do entorno e, por isso, à capacidade de se comunicar. O estado de
constante preparação no qual me encontrava permitiu que captasse cada estímulo vindo do
espaço, deixando que impregnassem meu corpo. Esse ajuste também me ajudou a manter os
sentidos no corpo, percebendo a modelagem mais “encarnada” que nos laboratórios: ela ganhou
mais autonomia e eu ouvia suas falas com firmeza.
Pelas características e dificuldades deste processo, havia um esforço em estar em cena,
mas, nos minutos em que se deu o roteiro, os conteúdos se sustentaram firmemente. A
comunicação com as mulheres interlocutoras retroalimentava o corpo. Em uma via de mão
dupla, os conteúdos das quebradeiras de coco processados em mim na criação eram lançados
novamente para elas que, por sua vez, os lançavam a mim novamente. É importante ressaltar que
toda essa troca aconteceu de forma não verbal.
Em cena, me sentia conectada com os espectadores, sobretudo com as mulheres e crianças,
porque podia senti-los, ouvi-los e vê-los reagindo às cenas. Essas reações corporais faziam com
que parecessem estar inseridos no roteiro que se desenvolvia. Não pareciam compor uma plateia
passiva. Das impressões que tive em cena sobre essas reações dos espectadores, se destacam o
desconcerto, a vergonha e, ao mesmo tempo, a curiosidade sobre o que se sucedia. Um olhar sem
querer olhar, se interessar sem querer se interessar, estar ali e desfrutar, mas temer a entrega.
Descrever, portanto, esse trabalho corporal que ocorre em um nível tão sutil e sensível é um tanto
123

quanto delicado, dada a impossibilidade de transpor de fato o que se dá na experiencia, que é


corporal e emocional.

Segunda apresentação: Tenda Padre Cícero


O coabitar nessa eira de terecô se deu nos festejos de Santa Luzia, em 2012, e no Sábado
de Aleluinha, no ano seguinte. Foi lá que vi um tambor de terecô pela primeira vez, o que
marcou um momento significativo da pesquisa de campo. O coabitar com as quebradeiras de
coco babaçu estava acontecendo desde 2010, mas, até então, a possibilidade de presenciar essa
manifestação, com danças, toques e dinâmicas, ainda não me tinha sido dada.
A relação com as mulheres desse local se deu durante os rituais e, por isso, não houve
muito espaço para diálogos. Consegui conversar com a mestra da eira pela primeira vez quando
esta estava incorporada com o encantado de sua croa, Francisco Légua; ademais, trocávamos
algumas palavras antes dos festejos ou durante as pausas entre os mesmos. Por conta disso, tive a
oportunidade de exercitar extensamente a observação dos corpos lá encontrados.
Foi nesse local que encontrei os corpos de maior qualidade tanto expressiva quanto de
movimento, sendo que a sua observação e decodificação ajudaram-me a elucidar e afirmar
questões vistas em corpos de outras comunidades. Dessa maneira, pode-se dizer que a conexão
corporal com a Tenda Padre Cícero foi expressiva, embora o contato tenha sido
cronologicamente breve. Ao longo do processo criativo, os conteúdos apreendidos nesse período
foram os mais presentes nos laboratórios dirigidos, compondo a linguagem de movimento da
personagem incorporada mais adiante. Esse fato mostra a força dessa experiência.
Em uma longa conversa com a mestra da eira, na qual relatou-me sua história de vida e a
relação com o encante, tive a oportunidade de perguntar se receberia em seu terreiro uma dança
feita por mim. Procurei explicar que se tratava de uma dança criada a partir das minhas
experiências no Bico do Papagaio, nas quebras de coco e nos terecôs. A pergunta foi elaborada
de forma a enfatizar, primeiramente, se existia interesse de sua parte em presenciar31 essa dança
e, depois, se ela poderia ser executada em seu salão. A mestra disse ter interesse em abrir seu

!31 A mestra é deficiente visual e, mesmo enxergando vultos, a sensibilidade desenvolvida por ela permite que lidere
sua eira e baie terecô com excelência. Assim, consideramos viável a apresentação da criação em sua eira.
124

espaço para mim e aceitou organizar o evento, tendo seus médiuns como convidados. Dessa
maneira, esse foi o único local onde pude agendar uma data para a apresentação. No dia
marcado, o empenho e seriedade da mestra e de seus médiuns em receber e assistir a uma obra
coreográfica era visível.
A eira era localizada às margens de um povoado chamado Grota do Meio, distrito do
município São Miguel de Tocantins. De ruas estreitas e pequenas casas, a geografia do local, que
estava sendo tragado por uma grande erosão, era simbólica. Para chegar lá, é necessário cruzar
todo o povoado e andar até o fim de uma breve estrada de terra. O salão é um anexo da casa da
mestra Nezinha, sendo que ambos foram construídos com adobo, tijolo feito artesanalmente com
barro, e troncos de árvores; o espaço é todo delimitado por uma cerca de bambu. Não há
tratamento de esgoto, água encanada nem banheiro, mas, ainda assim, a todo momento a mestra
acolhe em sua casa médiuns em desenvolvimento, que recebem tratamentos e auxiliam nas
tarefas domésticas e no terecô.
Nos festejos e dinâmicas vivenciados nesse espaço, a questão da cura se sobressaiu como a
característica mais marcante. O corpo da mestra atuava como um “corpo de passagem”, ou seja,
ao entrar em contato com médiuns em “momentos de aflição”, transfere para o seu corpo aquilo
que o atormenta para, então, expulsá-lo. Esse tipo de situação ocorre ao longo de todo o festejo.
Mestra Nezinha e seus médiuns mais desenvolvidos fazem consultas durante as pausas do
tambor (na hora do almoço, por exemplo). O consulente relata ao encantado incorporado o que o
levou até lá e a entidade prescreve banhos, chás, ervas, obrigações etc. Quando necessário,
utilizam seu corpo para mobilizar partes do corpo do consulente que precisam de cura. Essas
dinâmicas de cura foram bastante particulares, pois, em outras eiras visitadas, as mesmas são
realizadas durante visitas pontuais à casa da mestra ou do médium escolhido pela pessoa.
Nezinha disse que trabalhava somente com dinâmicas de “direita”, ou seja, aquela que
não evoca encantados da “esquerda”. Estes atuam mais enfaticamente na vida das pessoas,
dando, tirando ou prejudicando. Entretanto, a mestra afirmou que, para determinadas demandas,
é preciso lidar com as entidades da “esquerda”.
Ao contrário dos outros salões, a Tenda Padre Cícero possui algumas regras restritas
àquela região, como, por exemplo, a proibição do uso de fumo ou álcool pelos encantados e
125

médiuns, sendo que os convidados podem fazer uso dessas substâncias somente do lado de fora
do salão e de forma comedida, sob a ameaça de serem expulsos do ritual em caso de abuso. A
justificativa dada pela mestra para essas restrições vem da sua iniciação, a qual disse ter sido
“muito elegante”; havia cuidado e seriedade na forma de lidar com o encante, características que,
do seu ponto de vista, devem ser preservadas diante da sociedade que, por si só, já possui grande
preconceito com o terecô. Ela vê a necessidade de excluir elementos os quais possam ser
utilizados como pretexto para construir um discurso preconceituoso acerca da manifestação,
pois, muitas vezes, o abuso de álcool tira a credibilidade e seriedade do ritual. Além disso, os
festejos e tambores são realizados apenas durante o dia, a fim de evitar a presença de
baderneiros, brigas e tumultos.
A relação que a mestra e seus médiuns possuem com o terecô é notadamente de
comprometimento e esse é um ponto que merece ser destacado, pois difere do que foi vivenciado
na comunidade Olho D’Água. Se lá o movimento era de tirar o terecô do corpo, negar sua
existência, aqui era de aceitação da manifestação em si mesmo: a mestra trabalha constantemente
em curas e desenvolvimento de médiuns os quais necessitam de condução do encante que se
manifesta em seus corpos. O terecô é o caminho encontrado por ela.
Quando lá chegamos, fomos recebidas por médiuns da eira que já nos aguardavam; a
mestra chegou pouco depois, indo prontamente ao nosso encontro. Nos trataram com cuidado,
atenção e total receptividade. Nezinha permaneceu conosco por um tempo enquanto fazíamos a
montagem e, nesse período, foram levantados mais dados acerca do terecô, ao mesmo tempo em
que a mestra também nos investigava, sobretudo à Graziela.
Soubemos que, para aquele dia, Nezinha havia convocado seus médiuns e tabazeiros
para, além de assistirem à apresentação, realizarem um tambor. Era uma quarta-feira à noite e o
fato de ter acionado essas pessoas com o propósito de nos assistir e fazer suas danças foi bastante
significativo. Como mencionado, nessa eira não se batia tambor à noite e, a partir do que foi
observado nesta pesquisa, fazê-lo durante a semana também é atípico. Essa atitude marca a
abertura daquelas pessoas para com a apresentação da obra. Houve uma preparação para nos
receber e pudemos presenciar parte dela, como a escolha da farda (azul e branca), o empenho em
estar com as cores escolhidas, a fogueira para aquecer os tambores etc.
126

A criação artística foi apresentada dentro do salão e a mestra não apresentou restrições
para escolha do local específico. Além disso, solicitou que um de seus médiuns permanecesse no
salão durante o tempo, nos ajudando se necessário. O local, um salão quadrado com a guna ao
centro, nos deu a possibilidade de dividi-lo ao meio e ocupar uma das metades com o espaço
cênico, conforme orientação da diretora. Assim, a diretora sugeriu que tudo fosse montado em
frente ao altar, pois, nas várias experiências da diretora em apresentações dentro do espaço
sagrado dos terreiros, não se pode voltar as costas para ele. No entanto, optei por utilizar um dos
quadrantes do terreiro, fazendo com que o espaço cênico ficasse voltado para o altar, o que
permitiu que a guna fosse a ele incorporada. Por conta da configuração escolhida, os
espectadores assistiram ao espetáculo lateralmente.
Para o registro audiovisual, foi utilizada a mesma estratégia da comunidade Olho
D’Água: duas câmeras de vídeo, uma fixa de frente para o público, e outra móvel, operada pela
Larissa Turtelli, captando a apresentação em si. Porém, aconteceram imprevistos com a lente da
câmera fixa durante as filmagens, inutilizando o material por ela captado. Dessa maneira, para a
análise das impressões do público, utilizou-se o diário de campo feito na ocasião das
apresentações, contendo pontos levantados ainda in loco, minha observações e impressões, bem
como as da diretora e as imagens captadas com a câmera móvel.
Um ponto a ser destacado, diz respeito às fotografias utilizadas na obra cênica. Embora a
experiência na Tenda Padre Cícero tenha sido muito marcante, quando o roteiro estava sendo
criado o foco estava na relação com as quebradeiras de coco e seu cotidiano. Como esse aspecto
foi mais aprofundado no contato com as mulheres da comunidade Olho D’Água, as fotografias
continham, em sua maioria, as terecozeiras daquele local, sendo totalmente desconhecidas para
os espectadores presentes na eira de mestra Nezinha. Por causa disso, a principal dinâmica do
trabalho, isto é, o diálogo com as mulheres através das fotografias, grande propulsora das
identificações por parte da plateia, deve ser vista aqui sob outra perspectiva. Isso gerou um outro
processo de recepção, pois, embora os conteúdos trazidos na obra se relacionassem diretamente
com o cotidiano de Nezinha e seus médiuns, não havia proximidade com as mulheres retratadas.
Inclusive, foi possível identificar momentos onde os espectadores se perguntavam sobre quem
seriam as pessoas das fotos.
127

A preparação dos integrantes da eira para o tambor que se sucederia ocorria


concomitantemente à minha preparação para a apresentação: eu vestia o figurino no quarto da
mestra enquanto as mulheres iam chegando e procurando suas fardas, pedindo coisas
emprestadas umas às outras, se enfeitando. Os homens cuidavam dos tambores e da fogueira na
qual se aqueciam.
Assim, devido à forma como fomos recebidas e à maneira como todos pareciam esperar
pela apresentação, tivemos a impressão de que aqueles seriam espectadores com os quais a
comunicação proposta pela criação se daria de forma positiva e não conflituosa. Dessa maneira,
sob orientação de Graziela, dei início à preparação do meu corpo no espaço cênico, enquanto via
e sentia a dinâmica da eira: um tabazeiro passando para verificar o couro do tambor, o cheiro da
fumaça da fogueira, os risos e discussões das mulheres, as pessoas me observando. Conforme
iam terminando os preparativos, os médiuns iam sentando nas cadeiras dispostas em frente ao
altar e, em silêncio, me observavam. Essa foi uma situação intimidadora para mim, mas foi
importante para que eu me concentrasse nos meus conteúdos internos.
A mestra deu um sinal para Graziela, dizendo que a apresentação poderia começar; a
diretora, então, avisou-me verbalmente e iniciei o trabalho. Diferente do que aconteceu na
comunidade Olho D’Água, não houve a trilha sonora inicial com os sons da mata devido à
dinâmica do lugar.
Durante a apresentação, os espectadores permaneceram imóveis, sem esboçar reações
visíveis, o que desencadeou um andamento particular no roteiro, que será abordado no próximo
item, “A bailarina-pesquisadora-intérprete”. Dessa forma, os elementos que mais trouxeram
dados a respeito da recepção na eira da mestra Nezinha se revelaram já na última cena do roteiro,
bem como no tambor que o sucedeu.
Nessa cena em particular, a modelagem faz seu último chamado em um momento de
superação e afirmação, dizendo: “Bora, bora baiá!”. Imediatamente, uma das mulheres se
levantou; outras duas, que estavam próximas a ela, se entreolharam e a seguiram. As três, então,
caminharam em direção ao espaço cênico, já iniciando uma dança. Foram baiar com a
modelagem e, ao invés de dançarem em volta da guna da eira, circundaram a guna cenográfica,
acompanhando-me. Tomando ciência do que acontecia, a mestra ordenou que os tabazeiros
128

buscassem os tambores para que se iniciasse o terecô.


A dança das mulheres com a modelagem não se estendeu por muito tempo, tendo sido
finalizada quando parei o movimento e agradeci a todos os presentes pela abertura e por
assistirem minha dança. Espontaneamente, a mestra agradeceu nossa presença e nos parabenizou
pelo trabalho, dizendo que o havia achado “Muito bom, muito bonito”. Em seguida, deu início ao
tambor.
Durante o trabalho, que foi bastante breve, outras questões relativas à recepção foram
apreendidas. Pudemos perceber que a obra como um todo (o altar, a guna, a bailarina, a diretora e
até mesmo a assistente) foi incorporada ao contexto. O altar cenográfico foi reverenciado por
algumas médiuns, fomos insistentemente convidadas para nos juntarmos ao tambor, e a diretora,
Graziela Rodrigues, foi cumprimentada da mesma forma como se cumprimentam as mestras do
terecô. Portanto, é possível afirmar, a partir disso, que os conteúdos desenvolvidos em cena
foram apreendidos por elas e que houve identificação com a criação e seus elementos. Foi como
se a apresentação houvesse criado uma ponte entre mim e aquelas mulheres, uma ponte antes
impossível de ser estabelecida.
Assim como aconteceu na comunidade Olho D’Água, o trabalho corporal desenvolvido
através da modelagem gerou dúvidas em relação à sua natureza, afinal era ou não a manifestação
de um encantado? As opiniões estavam divididas e a dúvida gerou uma discussão entre aqueles
que acreditavam ser um encantado incorporado em mim e os que consideravam nítido se tratar
de “outra coisa” que não o encante.
É importante ressaltar que eu, enquanto bailarina, acreditei que a apresentação teria uma
recepção positiva na eira da mestra Nezinha, primeiramente devido à forma como fomos
recebidas pela mestra e suas médiuns e, em segundo lugar, pelo fato de a relação entre as pessoas
daquela comunidade e o terecô ser também positiva. Durante minha preparação, busquei estar
aberta a uma comunicação genuína com a plateia, embora a relação aqui estabelecida tenha sido
muito breve, fazendo com que o nível de intimidade (na perspectiva de pesquisa) fosse outro.
Apesar de estar ciente e preparada para quaisquer imprevistos ou mudanças que poderia
acontecer nas apresentações, senti dificuldade em realizar o roteiro com o público posicionado de
forma enviesada, o que alterou toda a dinâmica já trabalhada. Entretanto, minha maior
129

dificuldade foi conseguir perceber os espectadores e estabelecer a comunicação proposta pela


criação artística. Lançava-lhes o olhar, falava-lhes os textos, mas não conseguia sentir suas
reações à obra: a imobilidade e quietude fizeram com que parecesse estar falando sozinha
Por estar aberta à relação com a plateia, senti-me exposta, sem conseguir alcançar meus
espectadores. Com isso, buscando sentidos e significados na reação do público, enxerguei o que
não estava de fato acontecendo: uma resposta negativa. Para mim, durante o espetáculo, as
pessoas estavam indiferentes ao que estava sendo exposto em cena. Todos esses sentimentos
fizeram com que algumas nuances do roteiro fossem alteradas. O esforço em ser compreendida
por eles resultou em uma exacerbação das tonalidades dramáticas da obra, ou seja, perderam-se
as sutilezas, modulações minuciosas das emoções contidas no circuito interno.
Com o andamento da apresentação, entretanto, identifiquei nas expressões dos
espectadores uma mistura de estranhamento e curiosidade em relação à obra. Pareciam se
perguntar: “O que é isso que está acontecendo?”. Quando as mulheres se levantaram para ir baiar
com a modelagem, fui surpreendida, pois foi uma reação que não consegui prever em nenhum
momento da apresentação. Ao perceber que haviam se levantado para baiar comigo, não soube
como reagir, nem qual seria a melhor conduta a se adotar. Continuei a dançar de forma mais
contida ao redor da guna do salão. Demorei alguns instantes para perceber que, na verdade, o
terecô acontecia no espaço cênico. Fundiram-se, naquele momento, o universo da criação e o
universo das espectadoras. Já não era mais a obra, mas também não era o tambor, foi a transição
de um para o outro.
Toda essa experiência fez com que eu percebesse como idealizava a maneira que os
espectadores deveriam reagir à obra, tendo uma ideia clara do que deveria ser uma “boa
recepção”. Ainda que esta tenha sido uma questão insistentemente trabalhada pela diretora, foi
preciso vivenciar a situação para compreendê-la completamente, levando em consideração
questões pessoais e especificidades das espectadoras.
Eu queria ser ouvida, queria me comunicar com elas e receber, com clareza, os sinais que
eu considerava favoráveis à experiência proposta, denunciando meu próprio etnocentrismo.
Queria vê-las tocadas, queria sentir suas emoções assim como eu estava ali, escancarando as
minhas. Por conta disso, interpretei suas reações como sendo indiferença, o que, posteriormente,
130

entendi não ser uma percepção real. A postura da plateia foi uma particularidade daquele grupo
de pessoas, daquele contexto, fruto da relação estabelecida entre mim e a comunidade, que pouco
sabia a meu respeito.

Terceira apresentação: Tenda Santo Antônio


O primeiro contato com a mestra Liciene ocorreu em 2012, durante uma visita à sua casa
e eira, que ficam no mesmo local. Nessa ocasião, seu salão estava sendo reconstruído, por isso
não estava em atividade. Sendo assim, pude ter longas conversas com a mestra, que relatou suas
histórias de desenvolvimento no terecô. No ano seguinte, retornei à sua eira quando o salão já
estava pronto e em funcionamento e pude, então, presenciar um tambor realizado apenas para as
integrantes da casa. Nesse mesmo período, viajei junto à mestra e suas médiuns para participar
de um festejo na Tenda São Francisco, localizada na cidade de Carrasco Bonito, também no Bico
do Papagaio. Essa experiência foi de grande imersão e propiciou um aprofundamento da minha
relação com Liciene e suas médiuns.
Quando ainda nos preparávamos para realizar essa viagem à Carrasco Bonito, a mestra
ofereceu-me uma farda de Dona Moça, encantada de sua croa, para vestir na ocasião do festejo.
Após consultar a orientadora desta pesquisa, aceitei sua oferta, deixando claro que o meu
objetivo era científico, não havendo de minha parte qualquer interesse religioso. Dessa maneira,
a mestra solicitou que o vestido fosse ajustado e preparado para mim. No dia do festejo, me
preparei junto com elas, que insistiam para que eu me arrumasse da forma como a ocasião exigia.
Tomei banho de lata no quintal, tive os cabelos arrumados e uma faixa de renda vermelha
amarrada à cabeça e me foi emprestado um par de chinelos, pois os tênis não combinavam com o
vestido.
Ao chegar à Tenda São Francisco, presenciei e vivenciei uma série de formalidades,
específicas para os casos em que uma mestra de fora chega para visitar outra eira. Nesse
momento, entendi o objetivo pelo qual Liciene insistira em vestir-me e apresentar-me como
membro de sua tenda, pois a quantidade de médiuns que uma mestra consegue mobilizar para ir
consigo a outro salão era muito valorizada, bem como a suntuosidade de suas fardas, a qualidade
da dança e dos cantos entoados por quem assumisse a boca do tambor. Por conta disso, misturei-
131

me ao campo por alguns instantes, experimentando a entrada no salão32, reverenciando os altares


junto à mestra e às médiuns da Teda Santo Antônio, cumprimentando as mestras da Tenda São
Francisco e dando a volta ao redor da guna33. Essa imersão só foi possível, entretanto, com a
licença das pesquisadas que, com esse gesto, me aceitavam. Pode-se dizer que esta é, de fato,
uma experiência de coabitar com a fonte. Assim, o fato de a mestra confiar a mim um vestido do
encantado de sua croa, bem como pedir para que o mesmo fosse ajustado ao meu corpo, foi
considerado por nós como uma demonstração de abertura e confiança, ainda que Liciene tivesse
seus próprios interesses envolvidos nisso.
A apresentação da criação artística foi um assunto abordado desde o primeiro contato
com Liciene. Ao ser questionada se gostaria de ver uma dança feita por mim a partir das
experiências com as mulheres quebradeiras de coco babaçu e o terecô, sua reação foi um tanto
reticente. Entendemos que, provavelmente, a mestra não tenha compreendido de imediato que
tipo de experiência estava sendo proposta. Isso porque, naquele contexto, as danças ocorrem
dentro dos rituais e em festas, como entretenimento. Graziela Rodrigues sugeriu que eu
perguntasse se ela já havia visto alguma apresentação de dança, teatro ou circo; a resposta obtida
foi: “Já ouvi falar, mas nunca vi”. Tendo isso em vista, procurei explicar que tipo de dança seria
realizada depois das minhas idas ao campo, que a mesma não seria uma dança de terecô, não
podendo nem mesmo ser comparada à ela. Demonstrei minha vontade em dançar para os
integrantes da Tenda Santo Antônio e Liciene, finalmente, mostrou-se disposta a receber-me.
Nessa ocasião, contando-me sua história de vida, a mestra trouxe à tona sua intimidade
com a dança. Destacou a importância de dar vazão à mesma quando esta é pungente no corpo,
exemplificando que, quando está com os “pés friviano de vontade de baiar”, corre atrás de uma
macumba. Também disse que, para ela, “dançar bonito” não é para qualquer um. Falando com

32
! Quando uma eira visita outra, médiuns e mestre só entram após um determinado momento, onde acontecem as
formalidades de entrada. Em fila, entram realizando a volta ao redor da guna pela direita e param em diversos pontos
para saudar e reverenciar os pontos riscados, os congás, a mãe-boa, os tambores e o mestre da eira.

33
! A Estrutura Física do BPI foi o principal instrumento para ter essa experiência, propiciando um contado de
qualidade com meu próprio corpo, onde a integração do eixo e a base fixa proporcionaram segurança e qualidade na
apreensão dos conteúdos.
132

grande propriedade e afirmando ser autoridade no assunto, declarou que me avaliaria e diria se
eu “dava” ou não para a dança.
A Tenda Santo Antônio, localizada na cidade de Sítio Novo do Tocantins e comandada
pela mestra Liciene, pertencia à encantada Dona Moça da corrente das Pombas Giras. Portanto,
nessa eira, trabalhava-se com as dinâmicas das correntes de “esquerda”. Liciene disse que
trabalhava no terecô desde criança, quando via a encantada Dona Moça, passando a incorporá-la
posteriormente. Esse processo foi similar ao descrito pelas outras terecozeiras pesquisadas: perda
de consciência repentina, visões dos encantados, incorporação sem consentimento do médium e,
por fim, episódios em que saía correndo descontrolada pela mata, caindo e se machucando em
galhos e espinhos. Chegou mesmo a precisar ser resgatada e amarrada para que fosse contida.
Ao contrário dos relatos das demais terecozeiras pesquisadas, onde há, inicialmente,
rejeição à manifestação de encantados no corpo, no caso de Liciene, houve adesão imediata ao
terecô. A mestra contou que fugia de casa ainda menina para baiar terecô e que este determinou
todas as escolhas de sua vida. Disse não aceitar qualquer coisa que a impedisse de desfrutar seu
terecô; a manifestação estava enraizada em sua vida. Além disso, sua forte relação com a dança
foi enfatizada ao relatar com orgulho a beleza da dança de Dona Moça, a qual era conhecida e
muito falada por todas as eiras em que passava.
A única ocupação e fonte de renda da mestra Liciene eram os trabalhos de terecô, os
quais, segundo ela, eram conhecidos por sua eficiência e poder. Por conta disso, a demanda pelos
serviços de seus encantados era grande. O principal objetivo dos trabalhos que realizava era a
obtenção de bens materiais e, em alguns casos, as questões amorosas – das quais afirmava não
ser favorável em virtude das possíveis consequências.
A grande dinamicidade com a qual lida com a incorporação e desincorporação de
inúmeros encantados em situações de rituais enuncia um corpo com alta qualidade expressiva e
de movimento; trata-se de um corpo de resistência. Na ocasião do festejo no município de
Carrasco Bonito, Liciene sustentou a boca do tambor a maior parte do tempo e, queixando-se a
respeito do término do festejo, o qual, para ela, havia sido precoce, incorporou diversos
encantados, realizando consultas até o nascer do dia na casa em que nos hospedamos.
133

Em sua tenda, nos dias de tambor, as dinâmicas são voltadas para as “muié” (as Pomba
Giras). Assim, à meia noite, apagam-se as luzes e a única fonte de iluminação passa a ser o pisca-
pisca. Vira-se, então, o ponto para chamá-las. Como já foi evidenciado, existe um certo tabu no
que diz respeito às correntes de “esquerda”, sendo mal vistas em muitos locais. Isso ocorre
porque existe, por parte de algunas igrejas, associação entre esas linhas e o demônio. Já os
próprios terecozeiros, dizem enfrentar dificuldades para lidar com as demandas desses
encantados. Em geral, são trabalhos considerados “pesados”.
O fato de trabalhar quase que estritamente com a “esquerda” diferencia a Tenda Santo
Antônio dos demais lugares onde ocorreram as apresentações. É impotante ressaltar, mais uma
vez, que não nos detivemos às questões religiosas e de crença, mas às dinâmicas de movimento
e, essencialmente, aos corpos simbólicos das mulheres pesquisadas.
Dessa maneira, no dia da apresentação da obra cênica, chegamos à Tenda Santo Antônio
com algumas horas de antecedência e fomos recebidas pela mestra que nos aguardava vestida
formalmente, com sandália de salto, calça social e até mesmo óculos, os quais nunca a havia
visto usar. Aqui, ao contrário dos outros locais, onde tivemos permissão para escolher o melhor
lugar para o espaço cênico, o mesmo foi escolhido pela mestra: na parede à esquerda da porta de
entrada, ao lado da casinha de Exu (amarela com luzes de Natal), junto do “abi-iaia”. Um dos
membros da eira nos ajudou na montagem do cenário.
A mestra mostrou-se bastante ativa em relação à montagem, permanecendo no espaço
todo o tempo e acompanhando de perto tudo o que acontecia. Interferiu quando considerou
pertinente, como no alinhamento do pano branco preso à parede, e ofereceu soluções para
questões que considerou problemáticas. Quando o espaço cênico ficou pronto, já com as
fotografias posicionadas, a mestra observou e analisou tudo com calma.
"
135

Até mesmo a mestra mostrou-se fechada para os conteúdos apresentados: seu corpo
estava endurecido, imóvel, realizando apenas pequenos movimentos, como mexer nos cabelos.
Além disso, permaneceu grande parte do tempo olhando para outra direção. Apesar de tudo,
havia concentração, mas também incômodo e desconfiança. Houve resistência em ver o que
acontecia.
Ao fim da apresentação, a mestra continuou imóvel, aplaudindo contidamente sem sair da
postura assumida desde o início da realização do roteiro. Não falou comigo; esperou que eu fosse
até ela e me colocasse de joelhos para ouvi-la. Com isso, colocou-se, de forma simbólica, em um
lugar distante, sendo que, para conseguir sua opinião, eu deveria conquistar sua atenção.
Contudo, foi a pessoa que mais falou diretamente sobre o trabalho. Ao longo da conversa,
apropriou-se da criação artística, identificando-a como pertencente a ela e ao seu universo e,
assim, sentiu-se à vontade para sugerir e opinar ativamente, expondo aquilo que, para ela, o
trabalho poderia/deveria vir a ser. Suas colocações tocaram várias esferas da obra: minha atuação
como bailarina, meu trabalho preparatório para apresentação, o figurino utilizado, o cenário e o
conteúdo.
Em um primeiro momento, ela investigou o trabalho no que diz respeito às “forças” com
as quais se atuou, dizendo: “Você quer pegar as forças, né? Praticamente as forças do…que vem
do além, né? Não é isso? Pra ficar com o corpo manero…”. Ela compreendeu que se tratava de
um outro processo corporal que não o do terecô, mas questionou a origem dessa “outra força”
com a qual trabalhara.
A respeito do figurino, a seguinte fala exemplifica sua sugestão: “Aí ó, do jeito que tu
dança ali aquelas dança, entendeu? Precisava assim, de uma saia rodada, uma saia bem… (faz
gesto com a mão), aí fica mais bonito ainda, mas eu gostei!”. No vídeo, completa sua opinião,
explicando exatamente qual seria a roupa adequada para a ocasião: “Assim, no caso, se você não
sabe qual é a roupa que dá pra aquilo ali, que cobre certo pra aquela dança, eu vou te indicar:
A roupa cigana! Não cai bem? Cai bem nesses tipos de dança aí”.
As pessoas presentes, sobretudo seu marido e suas filhas, ao ouvir as sugestões da mestra,
remeteram-se à dança do carimbó. Para exemplificar aquilo que interpretaram ser a sugestão de
Liciene e as suas próprias, foram prontamente buscar uma televisão, um aparelho de DVD e uma
136

mídia contendo um show de carimbó. Tratava-se de um produto da indústria musical regional,


com características que se assemelhavam às da banda Calypso, com dançarinas vestindo roupas
mínimas e provocantes.
Para nós, é essencial transcrever, na íntegra, o diálogo que se estabeleceu entre mim,
Graziela Rodrigues e a mestra, como um componente da análise da recepção da criação artística.
As palavras a seguir, enunciam a apropriação da obra, bem como a identificação que
desencadeou as proposições de Liciene acerca da mesma:

Liciene: “Será que eu posso falar uma coisa coisinhas só? Então presta atenção. Esse tipo de
trabalho seu, faz parte de um pouco do meu. Mas aí, tá muito bom do jeito que você tá fazendo,
tá muito bom. Mas aí eu ia sugerir, assim, uma coisa, assim mais….assim… pelo jeito, eu não
consigo dizer muito bem o que falar, mas vocês vão entender.
Pelo tipo de trabalho que tu quer fazer, pela dança que tu quer fazer, tu precisa mais, um pouco
mais de… (faz gesto com as duas mãos, como uma balança) no corpo, entendeu? E uma
vestuário que dá certo com aquilo ali que você quer.”
Nara: “Um pouco mais no corpo que você diz, é um corpo mais…?”
Liciene: “É, mais lento, entendeu assim, entendeu? (novamente faz gestos alternando as mãos
com as palmas viradas para cima) Porque ali, do jeito que, aonde você quer chegar, eu sei, eu já
entendi. Você quer pegar as forças, né? Praticamente as forças do…que vem do além né? Não é
isso? Pra ficar com o corpo manero…”
Nara: “Não muito.”
Graziela: “Não exatamente, porque a gente respeita a religião, o que a gente faz não é religião,
mas a gente se inspira nela.”
Liciene: “Aham, eu entendi.”
Graziela: “Mas não mexemos com encantado, não.”
Liciene: “Eu sei! Entendeu? Aí, quer ver, ai tu presta atenção cuma é. Aí, assim, do meu ponto
de vista, entendeu? Só se veste mais bem um pouquinho.”
Graziela: “Uma roupinha menos deteriorada.”
Nara: “Menos esfarrapada.”
137

Liciene: “Não, do tipo que dá pra aquilo ali, entendeu? Uma roupa mais assim… uma dança
mais bonita, mais…”
Graziela: “Ter um pouco de leveza, não é isso?”
Liciene: (acena com a cabeça, concordando) “É, isso aí que eu tô tentando dizer.
Aí ó, do jeito que tu dança ali aquelas dança, entendeu? Precisava assim, de uma saia rodada,
uma saia bem… (faz gesto com a mão) aí fica mais bonito ainda, mas eu gostei! Gostei mesmo.
Pelo tom da música, pelo dançar, pelo pensar, só mais um pouquinho e você chega lá, mais
bonito ainda!”.
Graziela: “É o outro lado da história. Continuando a história…depois que ela tira todas as
mazelas do corpo, aí pode entrar em um outro movimento, com a roupa bonita, com as coisa.”
Nara: “Refeita.”
Liciene: “É. Quanto mais a gente trabalha naquilo ali, mais a gente quer fazer bonito, o teu
objetivo é isso aí, né? Cada vez querer mostrar mais, mas aí a gente faz assim.”
Nara: “Você falou que mexeu com você…”
Liciene: “É, assim…o tipo da dança, você entendeu? O tipo da música…Entendeu? Porque mexe
comigo isso daí. Porque esse tipo de música aí pertence ao que? Pertence à umbanda!
Entendeu? Pertence ao meu lado, tá entendendo? É por isso que eu te falo, entendeu? Aí, pelo
jeito da tua dança, entendeu? Aí pertence o que, o que que significa aquela dança? Pertence o
que? (enfatizando que não se tratava de uma pergunta retórica) Ela não sabe mas eu sei. Pelo teu
jeito de dançar, parece que faz bem meu tipo, do tipo que eu trabalho, que eu trabalho com as
moças. A Dona Moça quando está em terra não é muito bonita? Não é? Pois é…é o tipo de
dança que tu faz ali, cai pro meu lado, entendeu? Pois é…
E aí, o tipo de dança seu, pertence ao lado dela, entendeu? Aí assim, ela fica mais bonita, com
as roupa bonita, colorida, pra fazer aquela dança ali naquele meio, naquele…naquela roda,
naquele circo ali, aí fica mais bonito ainda (referindo-se ao espaço cênico). Aí o povo vai mais
gostar ainda. Assim tipo, tão bonita ela é, né? Fica tipo uma princesa, uma rainha, né? Não é
bonita?”
Graziela: “É que a gente não chegou lá ainda, tá? Mas a gente vai chegar!”
138

Liciene: “Chega muié, chega, a gente chega lá, entendeu? Lá, por exemplo, lá em São Paulo,
né? Faz seu trabalho é lá, se eu chegasse a ficar lá uns dia, entendeu? Por exemplo, você vai
fazer uma representação hoje, se eu tivesse lá, ah! Mas eu ia saber te arrumar muito bem bonita.
Você ia ficar bem bonita, você ia fazer uma representação bem bonita. Mas eu gostei, eu queria
ver e eu gostei.”
Nara: “É? Que bom! Tá aprovado?”
Liciene: “Tá aprovado. Porque esse tipo aí precisa de força, trabalhar muito o corpo, trabalhar
muito com o teu corpo. Muito bonito. Por isso que eu falo, pertence aí isso aí, entendeu? Teu
jeito de fazer, tudo direitinho… pertence. Aí precisa só mais só um pouquinho mais de prática aí,
tu chega lá onde tu quer. Mas eu gostei do jeito que tu fez.”
Nara: “Obrigada, obrigada mesmo. Falou que ia falar e falou mesmo.”
Liciene: “Eu falo! O que tá feio, eu digo que tá feio, o que tá bonito, eu digo que tá bonito. A
dança eu achei muito linda, entendeu? E o tempo também que você pensa, é…passa pra se
concentrar, pra poder fazer aquilo ali, entendeu? Acho muito importante também (referindo-se à
minha preparação para a apresentação). Oh, se todo médium daqui do meu terreiro fizesse o teu
trabalho, o teu trabalho direto quando você vai começar uma coisa… se todos fizesse do teu
jeito, eu acho que eu não tinha problema aqui dentro. Eu acho que não, você sabe porque?
Porque aqui quando é dia de trabalhar, o terreiro tá cheio, mas você acredita que labutar com
gente é muita paciência, aí fica…um se entra lá pra dentro de um quarto, aí fica, fica, fica. Um
manda chamar e fica, fica, fica. Aí quando aquele que vai chamar, o outro chega e o outro fica
lá. Aí fica muito difícil de a gente funcionar desse jeito. Aí é por isso que eu gostei, se todos eles
tivessem a atenção que você tem no trabalho, aqui seria muito bem melhor. E se você for com
essa atenção toda vida, dedicando seu trabalho, aí você vai ganhar mais ainda, a gente vai mais
gostar do seu trabalho. Aí precisa só mais botar umas roupas bonita, que aí vai combinar com a
dança, você tá entendendo? Aí combina com a dança, com o molejo do corpo.”
Nara: “Mais molejo?”
Liciene: “Exatamente.”
Graziela: “Combina com o molejo do corpo, uma roupa que combine com o molejo do corpo.”
Liciene: “Exatamente.”
139

Nara: “Eu estava relacionando com aquilo que você disse que o corpo precisa ser mais.”
Liciene: “É sim, mas todo tipo de dança precisa disso aí também, né. Assim, no caso, se você
não sabe qual é a roupa que dá pra aquilo ali, que cobre certo pra aquela dança, eu vou te
indicar: A roupa cigana! Não cai bem? Cai bem nesses tipos de dança aí. Fica muito bonito! Teu
corpo é muito bonito. E aí chega, vai, vem, não tem problema de espalhar, só no corpo mesmo.
Pois é, gostei muito mesmo. Pois é, se todo mundo daqui fosse desse jeito, eu não teria
problema! Só falta descer o espírito, o resto ela faz tudo.”
"
Já estávamos prontas para partir quando a mestra incorporou Dona Moça, que queria dar
suas palavras sobre o trabalho. O que a encantada da linha das Pombas Giras disse reforçou o
que havia sido colocado pela mestra, adentrando, também, outras questões.
Assim, Dona Moça afirmou ser oriunda dos Estados Unidos da América e exaltou seus
poderes e feitos terrestres. Ela abordou o meu medo para fazer minha dança, dizendo que, para
conseguir me desenvolver, haveria de ter muita paciência e então perder esse medo. A perda do
medo e o exercício da paciência seriam o caminho para chegar à dança que eu pretendia, com
sucesso e plenitude.
Dessa forma, analisando os vídeos e as impressões, tanto minhas quanto da diretora,
creditamos que a reações apresentadas por esses espectadores denotaram o processo de
espelhamento proporcionado pela obra e a negação desencadeada por ele. Identificar o trabalho
como sendo mais próximo do carimbó do Pará, e não da realidade daquela comunidade, denota
um movimento de fuga, da mesma forma como a Pomba Gira afirmou ser procedente de uma
cultura hegemônica (Estados Unidos) e, portanto, também distante daquela realidade. A obra
apresentada fez uma força no sentido oposto: voltou os olhares dos espectadores para a realidade
que lhes é comum.
Dada a relação que se tinha com o terecô nessa eira, bastante assumida na realização dos
trabalhos de “esquerda”, inclusive, acreditava que não haveria problemas em relação aos
conteúdos da obra neste sentido. No entanto, não sabia o que esperar dos espectadores, pois
conhecia apenas uma parte da plateia. A presença de uma grande quantidade de espectadores do
140

sexo masculino influenciou minha performance devido, principalmente, à reação que tiveram à
obra.
Quando me posicionei no espaço cênico para iniciar minha preparação, percebi que as
pessoas que chegavam sentavam-se para me observar. Isso me causou grande incômodo, gerando
vergonha e insegurança. Para que isso não atrapalhasse o foco da apresentação, continuei a
preparação em uma pequena sala localizada atrás do altar do salão, a camarinha, e retornei ao
espaço cênico somente no início da realização do roteiro.
Essa foi a apresentação mais difícil no que diz respeito à relação e à comunicação com os
espectadores; vê-los se recusando a olhar para o trabalho, o constante “entra-e-sai” de tantas
pessoas. No entanto, em cena, sentir esse incômodo e rejeição por parte deles me fez querer
buscá-los ainda mais. Isso tornou-se um desafio, quase como uma provocação.

4.3. Reflexões sobre a recepção da obra pela fonte coabitada


A criação artística do BPI baseia-se em uma coreografia dos sentidos do intérprete, ou
seja, de suas imagens, sensações e emoções, propiciando a qualidade e expressividade dos
movimentos do corpo. Esse fluxo dos sentidos é a base sobre a qual ocorre o trabalho desde o
primeiro laboratório até a última apresentação e, por conta disso, a relação que se dá com os
espectadores também ocorre pela via do sensível. Ao apresentar-se, o intérprete busca a
comunicação com seus espectadores “sentindo” a plateia, pois, no BPI o “foco das coreografias
não está em reproduzir uma forma, mas em expressar determinados conteúdos buscando a
comunicação com as pessoas do público” (TURTELLI, 2010, p. 06). Portanto, pode-se dizer que
a obra só está completa quando essa comunicação ocorre. Assim, compreende-se a recepção
como uma “atividade produtiva do espectador” (Massa, 2008) que, diante da obra no exercício
de apreensão, não só recebe, mas também é “co-responsável pelos sentidos” (Ibid, p. 49)
Pautando-nos, então, nas sensações e emoções, ou seja, o “movimento interno” que
viabilizará o movimento “externo”, pensamos a recepção pelo viés da percepção sensível do
espectador como parte integrante da obra. Dessa forma, a definição de recepção feita por
Mostaço (2008) veio de encontro a este trabalho, pois o autor afirma que “a estética da recepção
141

parte do pressuposto de que a arte é um fazer, uma construção e, como tal, infunde uma dada
relação com o leitor/espectador” (Ibid., p.66).
Massa (2008, p. 50) distingue os estudos acerca da recepção em dois tipos:

[...] um diretamente vinculado à estética da recepção, com a intenção de examinar a


acolhida de certas obras por um grupo num determinado período; outro, mais
desenvolvido pela semiótica teatral, destinado a investigar os processos mentais,
intelectuais e emotivos do espectador.

A partir disso, analisamos a acolhida da obra pelas mulheres quebradeiras de coco babaçu
e terecozeiras, que era o principal objetivo desta pesquisa. Entretanto, os métodos utilizados
tanto para a captação quanto para a análise das imagens permitiram-nos adentrar os processos
emotivos do espectador, uma vez que a perspectiva sensível foi amplamente trabalhada no
experimento.
É importante ressaltar que a análise foi realizada a partir do meu próprio ponto de vista,
pois vivenciei corporalmente todo o processo. A perspectiva da orientadora desta pesquisa e
diretora da criação cênica, a Prof. ª Dr. a Graziela Rodrigues, também foi levada em consideração
por ter realizado um extenso trabalho in loco e por sua rica análise dos materiais registrados em
campo. Dessa maneira, transitando entre esses dois olhares, um dentro e outro fora da cena,
buscou-se trazer uma perspectiva objetiva, descrevendo e analisando as reações e
comportamentos físicos dos espectadores, bem como uma subjetiva, a qual compreende,
principalmente, os dados cinestésicos apreendidos em cena.
O contexto de cada uma das apresentações foi amplamente descrito no item 4.2.:
“Dançando para Fonte Coabitada”, informações estas de extrema relevância para o estudo da
recepção da obra cênica. Isso porque o contexto em que a mesma é apresentada é uma
importante variável no que diz respeito à recepção da arte de forma geral. Nesse sentido, Bakhtin
(2006, p. 22) afirma que “a contemplação estética e o ato ético não podem abstrair a
singularidade concreta do lugar que o sujeito desse ato e da contemplação artística ocupa na
existencia”.
Além disso, o próprio método BPI se mobiliza nesse sentido. Dessa maneira, em seus
procedimentos de apresentações cênicas públicas, busca-se a apreensão do “contexto
142

instaurado”, sendo o registro audiovisual utilizado como ferramenta quando se busca dados a
respeito da recepção (TURTELLI, 2014).
Seguindo nessa linha de pensamento, uma ampla discussão a respeito do papel do
espectador na completude da obra, bem como na construção de seus sentidos se instaurou.
Assim, mergulhar nessas pessoas as quais presenciaram o espetáculo tornou-se fundamental para
discutir a questão da recepção. Nos materiais estudados antes e depois de toda essa experiência,
as descrições e problematizações acerca do espectador chegam a um indivíduo cujas percepções,
primordiais na apreensão e elaboração sensível dos conteúdos da obra, encontram-se em
transformação devido ao meio urbano e altamente tecnológico no qual está inserido
(DESGRANGES, 2008). Por conta disso, o espectador descrito na bibliografia estudada
encontra-se em um estado de anestesiamento de suas percepções, onde o contato consigo mesmo,
suas sensações, emoções e memórias é prejudicado. Sob essa perspectiva, para que ocorra a
experiência estética, esse indivíduo precisaria ter reabilitada “sua visão ávida, seu toque, seu
olfato, sua cinestesia: sentidos esses muitas vezes esterilizados ou anestesiados” (PAVIS, 2008, p.
216). Além disso, essas pessoas sofreriam de uma inibição da “[...] produção de memória (traços
mnemônicos inconscientes) […]”, dificultando o “[...] acesso freqüente aos conteúdos
esquecidos, fundamentais para a elaboração da experiência” (DESGRANGES, 2008 p. 16).
Entretanto, vimo-nos em um lugar artístico privilegiado, proporcionado pelos
conhecimentos adquiridos a respeito das quebradeiras de coco babaçu ao longo de quatro anos de
convivência a partir do eixo Co-habitar com a Fonte. Assim, durante todo o processo criativo,
sabíamos quem eram nossos espectadores e o objetivo da comunicação que se estabeleceria. Por
conta disso, as plateias que encontramos no Bico do Papagaio foram praticamente antíteses
daquilo que encontramos descrito na literatura.
As mulheres pesquisadas, bem como o restante das comunidades, estavam imersas em
um ambiente rural, dado o aspecto rústico e pacato e a relação com a terra que lá possuem. Trata-
se, portanto, de uma realidade muito diversa daquela encontrada nos grandes centros urbanos,
principalmente no que diz respeito ao acesso à tecnologia. Destaca-se, por exemplo, que em
alguns dos locais visitados a energia elétrica havia chegado apenas seis anos antes da
apresentação do roteiro, o que altera, inclusive, a percepção da passagem do tempo. Televisões,
143

celulares inteligentes, computadores e outros dispositivos tecnológicos que levam a uma


hiperestimulação dos indivíduos, anestesiando-os, não integravam o cotidiano das comunidades
pesquisadas. Foi possível identificar, nesse sentido, a ocorrência de uma transição.
Assim, os corpos dos nossos espectadores possuíam sentidos aguçados pelo contato com
a terra, sobretudo na quebra do coco, sensibilizados pela necessidade de sintonia com o ambiente
em que estavam inseridos, a mata. Um ávido imaginário proporcionado pela cosmologia do
terecô. Este, por sua vez, propiciava uma sensibilidade para consigo mesmo e com o outro, no
saber enxergar as demandas físicas e emocionais de cada corpo. E essa característica não estava
restrita às mestras e médiuns, mas à toda a comunidade das eiras. Todos são capazes, por
exemplo, de identificar qual o encantado incorporado na pessoa apenas pela postura e pelo fato
de o processo corporal ser de fruição ou não. São corpos que carregam não só as próprias
histórias, mas ritmos, posturas e estórias dos encantados. Um cotidiano que entrelaça diferentes
tempos.
Não se trata de um corpo anestesiado, mas de um corpo em contato constante consigo
próprio, lidando com realidades complexas e difíceis que só são passíveis de serem liberadas e
elaboradas através dos rituais e festejos de terecô. Essa qualidade de corpo propiciada pela
manifestação permitiu que nossas espectadoras tivessem uma apreensão cinestésica profunda da
obra, sendo possível inferir, a partir dos vídeos captados durante as apresentações e dos relatos,
que a obra suscitou reações corporais táteis, como virar-se em outra direção, cobrir o rosto com
as mãos e expandir o corpo nas risadas. Também foram trazidas à tona memórias, como na
comunidade Olho D’Água, quando lembraram dos festejos de anos antes, bem como do contexto
social e econômico da época. A criação artística, carregada de impressões processadas em meu
corpo a respeito do que foi vivenciado no coabitar com as quebradeiras de coco e o universo
mítico do terecô, escacarou aquilo que seus corpos estavam tentando não sentir. Mexeu com
conteúdos os quais não queriam assumir como cotidianos, como o abandono, a dor, as perdas, a
miséria. As tensões provenientes da identificação e do espelhamento proporcionados pela obra
foram o principal conteúdo das análises do processo produtivo-receptivo.
144

Em campo, principalmente durante as apresentações, uma grande dificuldade enfrentada


por mim foi transpor meu próprio etnocentrismo34. Este se fez visível principalmente no que diz
respeito àquilo que eu considerava ser uma “reação adequada” por parte dos meus espectadores.
Há, no meio artístico, uma idealização do que seria “tocar o público”, uma ânsia por emocionar
(positiva ou negativamente) os espectadores. Quando se tem contato com uma plateia
familiarizada com os códigos do teatro, suas reações estão alinhadas com as experiências do
intérprete, fazendo com que se torne mais fácil “sentir o público”. A maioria das minhas
experiências em apresentações artísticas ocorreu com espectadores “especializados”, ou seja,
artistas acadêmicos e pessoas inseridas em meio urbano, com contato prévio com as artes da
cena.
Nesse sentido, a atuação da diretora em campo foi primordial não só no sentido de
propiciar uma qualidade de performance, mas de analisar a recepção em cada uma das
apresentações, balizando minhas expectativas e ampliando minhas perspectivas. Dessa maneira,
minhas percepções com relação às experiências vividas, expostas neste texto, foram
insistentemente apuradas.
Ao deter-me na construção desta tese, foi preciso refletir a respeito de questões, como:
quais eram minhas expectativas com relação às reações e demonstração de sentimentos por parte
dos meus espectadores frente à criação?
Para essa reflexão, foi preciso considerar que a troca entre bailarino e espectador se dá
principalmente no plano não verbal e que sentir essa troca depende de um ajuste fino da
percepção do intérprete com relação ao seu nível de abertura, contato consigo próprio e
sensibilidade para perceber seus espectadores. Pavis (2003, p.11), por exemplo, diz que o
observador deve vivenciar os afetos que a obra desperta nele, afirmando que é “[...] preciso que
seja produzido em nós o estado de paixão, de emoção psíquica que o impulso criador provocou
no artista”.

34 A respeitodo etnocentrismo: “é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e
todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a
existência. No plano intelectual, pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como
sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, etc” (ROCHA, 1988, p.5).
145

Dessa maneira, depois de vivenciar e depurar toda a experiência no Bico do Papagaio,


questionei-me sobre qual seria esse “estado de paixão”, ou mesmo “emoção psíquica”, em uma
quebradeira de coco babaçu? Percebi, então, o risco de utilizar como referência o que eu, no
contexto sociocultural em que estou inserida, compreendo por expressão das emoções, fechando-
me à forma como isso é expressado no contexto das mulheres quebradeiras de coco. Sendo
assim, é preciso que o conceito de demonstração de sentimentos permaneça aberto, evitando,
assim, expectativas etnocêntricas.
Dentre as experiências já realizadas com espetáculos do BPI que voltaram às suas
respectivas fontes, a dissertação de Costa (2012) traz um exemplo de quão delicado é lidar com
as reações de espectadores no retorno ao campo. No caso específico da autora, a criação foi
desenvolvida com o propósito de ser apresentada para outro público, sendo levada para os índios
Xavantes somente depois de diversas mostras. Assim, em uma de suas apresentações à fonte,
seus espectadores riram e fizeram comentários durante todo o tempo. Em seu texto, Elisa Costa
conta sua dificuldade em permanecer concentrada, mantendo a fruição da coreografia diante de
sua própria surpresa. Apesar de saber que se tratava de uma forma de participação do espetáculo
e que, para os Xavante, o riso tem uma conotação própria, relata que “em vários momentos
recebia as reações como um deboche, um fracasso” (COSTA, 2012, p. 70). A consciência de que
a obra cênica havia realmente atingido seus espectadores, comunicando-lhes algo, veio somente
depois, quando o cacique da aldeia verbalizou sua aceitação e as demais reações dos presentes.
Seu relato da experiência de retorno ao campo demonstra a complexidade com a qual se
lida no que diz respeito às trocas entre intérprete e fonte. A diretora da obra, Graziela Rodrigues
(2010b), ao discutir sobre essa experiência afirma que

Ficou evidente que não era a intérprete se tornado uma representante do povo Xavante,
mas como se o seu corpo em movimento contasse uma história que é deles, porém que a
intérprete em sua atuação, ao expor os seus sentimentos, validasse os sentimentos deles,
abrindo-se assim para uma troca humana, onde os sentimentos são legítimos.
(RODRIGUES, 2010b, p. 02)

Um dos aspectos observados e apreendidos durante a pesquisa de campo com as mulheres


quebradeiras de coco babaçu foi a aparente “dureza emocional” que possuem. Suas vidas,
marcadas pelo cotidiano de dificuldades limítrofes, fizeram com que desenvolvessem uma força
146

de resistência para seguir adiante, sendo o terecô o grande centralizador. Pude vivenciar
situações, como o aborto de um filho, seguido de seu velório e enterro, e o estupro de uma filha,
onde precisei de um alto grau de centração, enquanto as mulheres agiam com aparente
naturalidade.
Dessa maneira, tornou-se claro que, naquele contexto, não havia uma ampla
demonstração de sentimentos, tampouco emocionalismo para lidar com as situações difíceis. Não
havia choro nem liberações de alta carga emocional. No velório do bebê abortado, crianças
brincavam e tocavam seu corpo enquanto as mulheres apenas olhavam e conversavam, até
mesmo sobre outras coisas. Isso não significa que a indignação não esteja presente, mas que a
forma como é expressada é particular, podendo remeter a uma espécie de endurecimento.
O terecô torna-se, então, o espaço para que as dores, físicas e emocionais, sejam
manifestadas com aceitação e acolhimento. Nos festejos e rituais, esses sentimentos são
exacerbados e conduzidos, promovendo a retomada do equilíbrio e, portanto, a cura. Nesse
sentido, o processo criativo instaurado para esta pesquisa abordou em profundidade a questão das
dores e a tentativa de superação através das danças e do terecô. Ao longo do processo, a imagem
de mulheres perdidas, esburacadas, machucadas, tomadas pela dor, foi constante, transparecendo
nas modelagens e no roteiro da obra coreográfica.
Na apresentação para a comunidade do Olho D’Água, a relação da obra com o terecô foi
direta e inevitável. Para aquelas pessoas, essa manifestação trouxe memórias, positivas e
negativas, as quais estabeleceram uma relação dicotômica com o ritual. Este, por sua vez, não diz
respeito somente à manifestação, mas às suas histórias de vida. Trata-se de um despertar de
imagens mnêmicas (DESGRANGES, 2008, p. 17) constituídas de “[...] lembranças que surgem
espontaneamente, sem a vontade e o controle do sujeito” e, portanto, “[...] não se relacionam
com a memória voluntária” (Ibid., 2008, p. 17). Sendo assim, essas lembranças são passíveis de
gerar incômodos, constrangimentos, desconfianças.
Na comunidade Olho D’Água, ficou nítido que a obra, ao acionar imagens mnêmicas,
subverteu as tentativas de esquecimento de um passado difícil de ser elaborado e que se nega
estar vivo ainda no presente. Segundo esse mesmo autor, “o retorno do esquecido, ou do
147

recalcado […] possibilita que restos da história pessoal, associados a memória coletiva, venham
à tona, prontas para serem elaboradas pelo espectador (Ibid., p. 16).
Ainda com relação a essa apresentação, foi possível utilizarmos as transformações
corporais dos espectadores, provocadas pela execução da minha dança, como fonte para a
aferição da recepção, uma vez que foram despertadas reações psicomotoras validadas para tal
(OLIVEIRA, 2011). Nos registros de sons, movimentos e expressões faciais, bem como naquilo
que pôde ser observado por mim e pela diretora, as reações corporais foram identificadas como
sendo uma reprodução da dicotomia à qual nos referimos anteriormente. Há uma expressiva
resposta aos acontecimentos cênicos: o riso, a alegria, o fechar-se, o querer e não querer ver e
ouvir, o medo e o não conseguir ficar diante daquilo. O corpo dos espectadores, receptáculo dos
conteúdos da obra, atuou como “participante, reativo, e afetivo” (PAVIS, 201 p. 215).
Uma vez que o terecô dá vazão às forças instintivas da psique, proporcionando a
elaboração de questões físicas e emocionais e, assim, o bem-estar, presume-se que lida com
potências cuja contenção é quase impossível (vide exemplo das violentas manifestações dos
encantados no corpo). As mulheres têm consciência desse delicado processo corporal. Uma das
médiuns da comunidade que assistiu à obra afirmou ter sentido “uma coisinha lá dentro, que
mexe” e disse ter lembrando das “muié” com as quais ela trabalha no terecô. A dança, ao transpor
as camadas da visão e da audição, atinge um patamar em que reações psicomotoras são
despertadas em seus espectadores (OLIVEIRA, 2011). Segundo Oliveira (2011, p. 38), “[...] uma
situação apresentada no palco pode provocar as reações mais diferentes possíveis, interferindo
diretamente no próprio corpo do espectador, alternando sua respiração, seu batimento cardíaco,
fazendo-o fruir o espetáculo de modo intenso e muitas vezes, incontrolável”.
Já na Tenda Padre Cícero, devido à ausência de movimentos e à pouca expressividade da
plateia durante a apresentação da obra cênica, foi difícil identificar que aquilo também era um
tipo de reação, não necessariamente negativa. Nesse caso, a relação estabelecida com os
espectadores foi limitada no que diz respeito à extensão do contato e à obtenção de informações.
A experiência inusitada, somada às dúvidas, pode ter gerado um corpo estático e curioso em
relação ao que sucedia diante dele. Entretanto, ao prepararem um tambor especialmente devido à
nossa presença e irem dançar comigo no final da apresentação do roteiro, um ponto de
148

intersecção entre a minha dança e a dança daquelas mulheres foi gerado.


Quão estranho deve-lhes ter soado a apresentação de um roteiro quando, na verdade,
esperavam partilhar um ritual. Afinal, o que poderia ser feito dentro de um salão de terecô, se não
terecô? Nesse sentido, quais as referências dessas mulheres além do ritual?
De acordo com Bourdieu (2006, p. 11), “a arte faz apelo a um olhar histórico; ela exige ser

referida não a este referente exterior que é a “realidade” representada ou designada, mas ao
universo das obras de arte do passado e do presente”. Aqui, o fato da apresentação ser algo
inusitado para aquelas mulheres foi o que gerou tensão no processo de recepção, uma vez que
não sabiam em absoluto o que estava acontecendo.
Dessa maneira, o processo de recepção na Tenda Santo Antônio apresentou três pontos
principais: a rejeição causada pelo espelhamento proporcionado pelo trabalho, a apropriação da
obra e a perspectiva de gênero que se tornou pungente. A rejeição, por exemplo, ficou visível em
alguns dos espectadores, pois poucos olharam em direção ao espaço cênico, desviando olhares e/
ou deixando o salão. Mas, ainda assim, foi possível perceber, a partir dos relatos colhidos depois
do evento, que os mesmos fizeram suas leituras ao relacionarem o que haviam visto com
aspectos de seus cotidianos. A principal evidência desse fato se deu na ânsia que sentiram em
modificar a obra ao se perceberem nela, não gostando da maneira como estavam sendo
contemplados.
Embora os conteúdos desenvolvidos no trabalho artístico não abordassem qualquer questão
relacionada às Pombas Giras, a mestra da tenda relacionou os conteúdos com o encantado de sua
croa, a Pomba Gira Dona Moça. A dança, a qualidade do corpo, o figurino, o cenário e a trilha
sonora foram identificados como sendo similares àquilo que era trabalhado em seu terecô. Isso
pode ser constatado através das seguintes falas: “E aí, o tipo de dança seu pertence ao lado
dela”, referindo-se à encantada Dona Moça; “Eu ia saber te arrumar muito bem bonita”,
remetendo-se ao figurino; e, por fim, “Por isso que eu falo, pertence a mim isso aí, entendeu?”.
Além disso, a forma como os espectadores do sexo masculino reagiram à obra denotou um
incômodo acentuado frente aos conteúdos nela contidos. Em cena, foi possível observá-los
desviando o olhar com expressões de descontentamento. Nenhum deles permaneceu no espaço
até o final, apesar de também fazerem parte do terecô como tabazeiros. Uma das hipóteses
149

levantadas e que justificam essa postura seria o protagonismo feminino. Pavis (2008) aborda a
questão da identificação masculina ou feminina na recepção e, segundo ele, é preciso que haja a
distinção entre os dois olhares. Assim, “para a análise do espetáculo, seria preciso determinar se
o corpo da mulher é mais, e/ou, diferentemente receptivo que o do homem, no nosso ponto de
vista não há como decidir” (PAVIS, 2008, p. 225).
Apesar de ser impossível determinar quais são as diferenças específicas quanto ao nível
de receptividade do corpo da mulher e do homem, a partir desta experiência podemos afirmar
que as mulheres se mostraram muito mais receptivas que os homens. O ponto de vista
apresentado pela criação era feminino, uma vez que o coabitar havia sido realizado apenas com
mulheres.
Nas descrições das apresentações feitas nesta tese, assumiu-se que a obra cenográfica
contemplou conteúdos comuns ao contexto das mulheres coabitadas e das espectadoras. Isso
seria responsável pelo processo de identificação e espelhamento ocasionados pela obra. Por esse
ser um aspecto que alicerçou a descrição e a discussão realizadas, é importante esclarecer que
essa afirmação é fundamentada, quando se trata de uma obra criada a partir do método BPI.
Neste, a escolha do campo de pesquisa é um ponto crucial do processo, pois se dá através de uma
identificação cultural, se conectando a questões interiores e inconscientes do intérprete. Assim,
lida-se criativamente com um bojo de conteúdos que inevitavelmente se conectam em
profundidade com os indivíduos pesquisados. Dessa forma, o processo de recepção se deu em
uma instância bastante pessoal no que tange à relação dos espectadores com os conteúdos da
obra.
Ao criar a dança e apresentá-la aos espectadores-fonte, mergulhando em suas reações e
impressões a respeito da mesma, aprofundei o campo coabitado. Cada uma das três
apresentações foi fecunda ao trazerem, individualmente, significados os quais formam um
mosaico, como uma representação do terecô.
A apresentação na comunidade Olho D’Água sintetizou a forma como se dão as forças de
atração e rejeição do terecô no corpo. Ao assistirem à obra, os corpos dos espectadores
transitaram entre a curiosidade – o deixar-se tocar pelos conteúdos da cena – e o medo – recusar-
se a ver o que acontecia, fechando-se. Isso também acontecia, à época, em relação ao próprio
150

terecô: embora o rejeitassem, dizendo que queriam se livrar dele, continuavam a incorporar
encantados.
A cega mestra Nezinha, sobre um solo arenoso em erosão, recebeu minha dança com sua
dança, ou seja, o refinamento do movimento do terecô através de impulsos, quedas e
recuperações. Aqui, a fruição nos movimentos denota a força de canalização dos impulsos na
dança do ritual. Já na Tenda Santo Antônio, o que se destacou foi a reação da mestra Liciene, que
se apropriou da obra, identificando-a como pertencente ao seu universo. Porém, demonstrou
grande incomodo e preocupação em ver-se representada por uma pessoa vestindo roupas velhas,
rasgadas e manchadas. Aqui, a força da autoimagem sobressaiu-se. Dessa forma, o traçado do
terecô proporcionado pela experiência de recepção sintetizou a sua manifestação nesses locais e
elucidou a recepção da obra por essas espectadoras, baiadoras de terecô.
151

5. DESDOBRAMENTOS DE CRIAÇÃO E INTERLOCUÇÃO


Neste capítulo é abordada a continuidade do processo criativo no método BPI após o
experimento de recepção realizado no Bico do Papagaio junto às mulheres coabitadas. Assim,
dois anos são abarcados, nos quais ocorreram desdobramentos do processo em questão e quatro
experiências de apresentação pública de fragmentos do processo criativo em desenvolvimento.
As etapas aqui descritas foram reverberações disparadas pela experiência de dançar para a fonte
e, nessa circunstância, também das pesquisas de campo anteriores.
As duas primeiras apresentações de fragmentos do processo ocorreram sob o formato de
instalações performativas e são descritas no item 5.1. Esse período foi marcado pela imobilidade
do meu corpo e ausência de fluxo dos sentidos, onde as dificuldades descritas na etapa anterior
(criação de um roteiro para a fonte coabitada) como por exemplo o desajuste tônico e a presença
de conteúdos de morte, se fizeram presentes, revelando a necessidade de novos
aprofundamentos. Diante disso, a diretora sugeriu que realizasse as instalações. Estas, apesar de
terem sido muito difíceis no que diz respeito à fruição, atuaram com precisão na função de
dinamizar meu corpo. Os conteúdos que emergiram nessa etapa denotaram a necessidade de
limpeza e cura, de forma que a diretora passou a insistir no sentido de transmutar os conteúdos
trazidos e entender o que precisava ser curado.
Enquanto o processo ainda se mostrava fragmentado, as imagens das mulheres
pesquisadas utilizadas na criação do roteiro apresentado no Bico do Papagaio continuaram
exercendo a função de sustentar o fluxo dos sentidos. No entanto, quando o mesmo tornou-se
mais integrado, as mesmas deixaram de ser essenciais, mesmo porque os sentidos despertados
por elas já estavam incorporados e trabalhados em meu corpo.
O item 5.2 traz o desfecho do processo que se deu através da incorporação da
personagem Rosinha/Margarida. Ela sintetiza toda a experiência vivida neste processo criativo,
tornando nítido que cada elemento experienciado, mesmo aqueles com os quais tive maior
dificuldade em lidar, foi necessário e importante para se alcançar um alto nível de integração.
Também descrevo as apresentações de fragmentos de um esboço cênico proveniente do trabalho
com a personagem, bem como o desenvolvimento promovido pelas mesmas.
152

5.1. Instalações Performativas


As instalações perfomativas foram um formato de apresentação cênica proposto por
Graziela Rodrigues. Nelas, foram abertos ao público diversos laboratórios de processos
individuais em andamento. Participaram dessa proposta mestrandos e doutorandos orientados e
dirigidos por Graziela. A apresentação foi realizada de forma coletiva, porém cada bailarino
desenvolveu seus conteúdos dentro de um espaço individualizado. A apresentações aconteceram
em dois eventos: no III Seminário Interno do PPGAdC35, no Instituto de Artes da Unicamp, e
como parte da programação do Unidança, mostra organizada pelos alunos de graduação e que,
na ocasião, aconteceu na praça Marco Zero, também na Unicamp.
Os locais nos quais se deram essas instalações performativas foram espaços não
convencionais para apresentações cênicas, como praças e corredores da Universidade. No
formato determinado pela diretora, cada intérprete instalaria os ambientes de suas personagens
ou conteúdos que estavam se fazendo presentes naquele momento. Tudo isso envolveu não
somente aspectos físicos do espaço, como objetos cênicos e cenários, mas também uma
composição no que diz respeito aos sons, movimentos, conteúdos projetados e textos. Esse
movimento faz com que o bailarino procure dimensionar o universo trabalhado em seu processo.
Essa experiência se deu um ano e meio após as apresentações às mulheres quebradeiras
de coco babaçu e terecozeiras, sendo que, nesse período, o processo continuou em
desenvolvimento através de laboratórios individualizados e, principalmente, das disciplinas da
pós-graduação e graduação ministradas pela Prof. ª Dr. a Graziela Rodrigues e pela Prof. ª Dr. a

Larissa Turtelli.
Dessa forma, na apresentação realizada no Instituto de Artes, a diretora estruturou as
montagens de forma que os espectadores fossem conduzidos por um roteiro de instalações que
ocupou desde o espaço externo do Instituto até o palco do seu auditório. Graziela escolheu os
espaços que seriam destinados a cada um dos cinco bailarinos-pesquisadores. Assim, tudo
começava no jardim em frente ao Instituto de Artes, com a bailarina Mariana Jorge; em seguida,
ia para o corredor externo, com Flávio Campos; para o corredor externo do outro lado do prédio,

35 Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena.


153

onde me instalara; para outro corredor interno em frente à porta do auditório, com Larissa
Turtelli; e, por fim, para o palco do auditório, com Elisa Costa. Os espectadores foram os
participantes do Seminário, docentes e discentes do Programa de Pós-Graduação em Artes da
Cena, alunos de cursos de graduação do Instituto de Artes, funcionários do instituto e também
pesquisadores de dança da ABRACE36, oriundos de diversas universidades brasileiras .
As instalações se desenvolveram ao mesmo tempo, porém, a condução dos espectadores
foi pensada de forma a proporcionar um tempo de maior evidência para cada um dos intérpretes.
Esse tempo durava cerca de 10 minutos e, nesse ponto, buscava-se maior intensidade e amplitude
dos movimentos e aprofundamento do fluxo dos sentidos.
A segunda apresentação, realizada na praça Marco Zero da Unicamp na ocasião do
evento Unidança, contou com uma dinâmica diferente, pois os espectadores eram os transeuntes
e, assim, não houve condução entre as instalações. Dessa vez, a escolha dos espaços foi feita
pelos próprios intérpretes a partir da observação do ambiente em relação às suas demandas
criativas.
Assim, foi a partir de extensos e intensos laboratórios dirigidos que o trabalho criativo e
experimental aconteceu, culminando nessas apresentações de cunho laboratorial e processual. A
tônica aqui foi encontrar meios de dinamizar meus laboratórios para que eu pudesse clarear os
conteúdos a serem levados para as instalações performativas. A sensação, no entanto, era de que
não havia mais dança dentro de mim, não existia o ímpeto para o movimento, tampouco o fluxo
dos sentidos. O momento criativo era de dificuldade, meu corpo estava travado; entretanto, abrir-
me para o público foi uma oportunidade de dinamização.
O que paralisava meu corpo eram questões intrínsecas ao processo que ainda não haviam
sido diretamente contactadas por mim, principalmente no que diz respeito à atuação de
mecanismos de defesa. Estes não permitiam que eu tivesse clareza quanto ao que vivenciava
naquele momento do processo, fazendo com que, em muito momentos, me visse em um estado
de confusão mental. Apesar de tudo, tinha consciência do fato de não estar compreendendo os
fatos concretos, ou seja, as dificuldades reais. Também sabia que meus sentimentos diante das

36 Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas.


154

dificuldades eram fruto desses mesmos mecanismos, no entanto, tudo isso parecia estar em um
plano inacessível para mim. Me sentia incapaz e impotente, principalmente ao comparar o
desenvolvimento de meu processo com o de outros intérpretes que atuavam no método.
Diante disso, Graziela orientou-me a levar, novamente, as fotografias das quebradeiras
de coco babaçu utilizadas anteriormente (ver a partir da p. 82) com intuito de despertar o fluxo
dos sentidos. Dessa maneira, retomei a dinâmica anterior, estabelecendo uma relação com cada
uma das mulheres e deixando que as impressões delas advindas suscitassem movimentos
internos e externos. A partir disso, a mobilização e transformação do corpo passaram a acontecer
somente a partir da relação com as imagens; sem elas me era impossível acessar o fluxo dos
sentidos.
Assim, em um primeiro momento de trabalho anterior à primeira apresentação, a
principal dinâmica instaurada foi a construção de um grande altar. No fluxo dos sentidos, o corpo
tomava forma e movimento a partir de “pedaços de história” adquiridos no contato com cada
uma das quebradeiras de coco, de forma que as paisagens também se configuravam a partir do
que elas me permitiam projetar no espaço. O principal sentido era a necessidade de cura e
limpeza as quais eram proporcionadas pela modelagem que conduzia as fotografias ao altar. Este,
diferentemente do altar utilizado no Bico do Papagaio, era composto por muitos caixotes de
madeira de vários tamanhos, tecidos de diferentes texturas, algumas imagens de santas e velas. O
principal conteúdo era o cotidiano da mulher quebradeira de coco babaçu e seus clamores por
cura.
Entretanto, para que as imagens pudessem despertar os sentidos em meu corpo, era
necessário estabelecer um estado de abertura e porosidade antes de iniciar os laboratórios.
Quando este era alcançado, meu corpo entrava em movimento a partir das sensações e emoções.
Meu corpo preenchia-se dos conteúdos das mulheres coabitadas. Devido à dificuldade que vivia
nesse momento, não trabalhava fixamente com uma modelagem, mas com estados corporais.
Também não buscava recobrar sempre o mesmo sentido despertado por uma imagem; pelo
contrário, mantinha-me aberta à forma como meu corpo reagiria a cada uma delas naquele
instante específico.
155

Depois da primeira apresentação e durante a preparação para o evento Unidança, a


diretora passou a acompanhar os laboratórios de forma intensiva, o que conferiu maior
dinamicidade à segunda mostra.
Nesse interím, a diretora teve a percepção e sinalizou a mim que uma característica muito
forte, mas ainda não totalmente consciente e elaborada em meu processo, era a questão da
autoaceitação. A negação da própria identidade é danosa para qualquer processo criativo, pois, ao
negar a si mesmo, o bailarino invalida os conteúdos que emergem de seu próprio corpo.
Trabalhar com as imagens do campo foi uma forma de driblar esse mecanismo, permitindo me
expressar sem deixar os julgamentos ocuparem meu espaço interno. Vale ressaltar que, embora
tenha utilizado as mesmas imagens da apresentação feita às mulheres quebradeiras de coco
babaçu, recobrar seus movimentos e sentidos não era a intenção do processo. O objetivo agora
era elaborar um novo roteiro.
Por conta disso, o contato e a abertura com as imagens em situação de laboratório era
imprescindível, uma vez que a elaboração da instalação performativa se dava na interação com
as mesmas. Portanto, precisava estar atenta ao meu nível de porosidade aos conteúdos
diariamente, o que foi garantido somente através da atuação da diretora, nos laboratórios
dirigidos com o uso das ferramentas. Como a permeabilidade do meu corpo era a única maneira
de dinamizar e dar movimento aos laboratórios, sempre que percebia estar caindo na
representatividade voltava a atenção ao fluxo dos sentidos, procurando senti-lo através das
sensações e movimentos do corpo.
A fim de me auxiliar nesse etapa da pesquisa, Graziela propôs um novo foco de
investigação a partir do que havia se configurado na primeira apresentação: “O que acontece
quando as mulheres são levadas ao altar?”. Para isso, continuei desenvolvendo a mesma
dinâmica com as imagens dentro dos dojos, porém, concentrava-me especialmente no que
acontecia com o corpo depois que depositava as fotografias no altar. Nesse desenvolvimento, a
diretora identificou o sentido de transmutação e purificação e orientou-me a persegui-lo a partir
dos seguintes questionamentos: “No que as imagens das mulheres se transformam quando vão
para o altar? Transmuta para quê? Cura o quê? Como se curam?”.
156

Muitos elementos não centrais que eclodiram nessa etapa mostraram-se fundamentais no
momento da incorporação da personagem, desempenhando o papel de “gatilhos” no que diz
respeito ao delineamento de sua imagem e sensação em meu corpo. Quando me relacionava com
a foto de uma determinada mulher (figura 29, p. 89) , por exemplo, sobrevinha-me o brilho em
seu corpo, como um fio luminoso, dourado e vermelho, que a envolvia. Nesse momento, tinha
sensações como arrepios pelo corpo. Outro elemento importante foi a presença de saias de
terecô: via essas roupas penduradas em varais rodeados pelas paisagens das comunidades do
Bico do Papagaio. A sensação e a imagem de estar cercada por muitos tecidos de diferentes
texturas, estampas, brilhos e qualidades também foi um ponto central da linguagem corporal que
veio a se revelar com a personagem, bem como do trabalho artístico desenvolvido através dela.
Dessa maneira, devido à importância do trabalho realizado nessa etapa do processo no
sentido de dar vida à personagem Rosinha/Margarida, faz-se, a seguir, uma descrição detalhada
da vivência de cada uma das apresentações realizadas na Unicamp.

Primeira apresentação: Instituto de Artes da Unicamp


Um dia antes da apresentação no III Seminário do PPGAdC, a pedido da diretora, foi
realizado um ensaio geral, tendo como espectadoras as mulheres da equipe de limpeza do
Instituto de Artes. Estas, estando em horário de almoço, foram se juntando a nós
espontaneamente, sendo que cerca de 10 mulheres permaneceram durante todo o ensaio. Para
mim, foram as melhores espectadoras nas experiências desenvolvidas na universidade, pois senti
maior interesse e abertura para com os conteúdos apresentados. Em cena, consegui perceber a
permeabilidade de seus corpos àquilo que viam, mergulhando no universo trabalhado.
Alguns membros do Grupo de Pesquisa Bailarino-Pesquisador-Intéprete e Dança do
Brasil auxiliaram na condução dos espectadores. Segurando maracás, os quais eram tocados ao
sinal de Graziela, indicavam ao público o momento de seguir para a próxima instalação. O som
dos instrumento também servia para que os intérpretes identificassem o momento em que
receberiam os espectadores em seus espaços e, portanto, se preparassem para tal.
Todos os bailarinos envolvidos se posicionaram em suas instalações ao mesmo tempo,
permanecendo ali até o final da apresentação, a qual teve uma duração aproximada de uma hora.
158

propicia. A diretora pediu que nos mantivéssemos atentos à presença dos espectadores e
entrássemos em ação caso houvesse uma grande concentração de pessoas, mesmo fora do tempo
estipulado como o de maior destaque para cada um. Por conta disso, precisei manter maior
amplitude e intensidade dos movimentos durante quase todo o tempo da instalação.
Ao longo da instalação-performativa, obtive diferentes percepções na troca com o
público. Senti curiosidade nas inúmeras pessoas que se apertavam para assistir ao laboratório.
Seus olhares me inspiravam interesse. Consegui percebê-los com mais acurácia do que esperava,
o que denotou julgamento e rejeição da minha parte.

Segunda apresentação - Marco Zero/Unicamp


O Marco Zero é a praça central da Unicamp, entre seus dois principais prédios. Estes
acolhem alunos de inúmeras disciplinas de graduação e pós-graduação. O horário da
apresentação coincidia, propositadamente, com o período de troca de aulas, apresentando,
portanto, um grande fluxo de pessoas. Eu e mais quatro intérpretes ocupamos o entorno da praça.
Cada um de nós tinha sua própria trilha sonora, a qual poderia ser alterada de acordo com a
necessidade de cada momento dos processos.
Essa apresentação não foi divulgada e, por isso, as pessoas presentes - transeuntes -
passavam apressadas, com sua atenção voltada aos celulares, de forma que nem nos perceberam.
A falta de interesse foi minha principal impressão com relação a esses “espectadores” que
passavam. Ocupávamos um espaço significativo da praça; minha instalação, por exemplo,
configurou-se como uma grande tenda junto ao altar. Todos trabalhávamos com falas e trilha
sonora. Mesmo assim, em muitos momentos, tive a sensação de ser invisível, pois os transeuntes
passavam a poucos centímetros de distância e não pareciam afetados pela obra.
Muitos sequer olhavam para o lado. Não sentia rejeição da parte delas, sentia indiferença.
Alguns minutos depois de iniciar minha apresentação, aceitei o fato de que não conseguiria
cativar meus espectadores e que aquilo que desenvolvia não lhes despertaria qualquer interesse.
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159

Figura 41 – A autora em cena na instalação performativa realizada da praça Marco Zero da Unicamp.
Fonte: Arquivo da autora.
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Nesse momento, ficou clara, para mim, a diferença entre os interlocutores. As pessoas das
comunidades do Bico do Papagaio foram meus primeiros e principais espectadores, reagindo ao
trabalho de diversas formas, porém, sem ficarem indiferentes à dança. Por sua vez, os
espectadores da Unicamp trouxeram-me uma nova perspectiva. Dançar sem ter a atenção dos
meus interlocutores só reafirmou a ideia inicial de que a criação sofre diferentes elaborações de
acordo com o público para o qual é direcionada, da mesma maneira que para os espaços nos
quais é apresentada. Pessoas com vivência nas artes cênicas institucionalizadas, imersos no
ambiente urbano, possuem demandas e percepções diferentes dos espectadores cuja experiência
cênica ocorre no âmbito do sagrado, em ambiente rural. Dessa forma, as prioridades da criação
serão diferenciadas para cada tipo de espectador.

5.2. Dançar o nome: incorporação da personagem Rosinha/Margarida


Ao longo dos últimos cinco anos e meio em que estive trabalhando criativamente os
conteúdos provenientes do coabitar com as mulheres quebradeiras de coco babaçu,
contabilizando o início do mestrado, em 2010, as linguagens desse campo foram exaustivamente
exploradas sob orientação e direção de Graziela Rodrigues. Até mesmo o próprio coco babaçu,
trazido da pesquisa de campo, foi explorado enquanto “gatilho” para o movimento e o fluxo dos
sentidos, sendo que a dinâmica incluía espalhá-los e recolhe-los pelo espaço com diferentes
160

intensidade, além de carregá-los dentro de um cesto sobre a cabeça. A relação com a guna,
trabalhada criativamente através de um tecido amarrado ao teto, proporcionou um trabalho
técnico de arqueamentos no qual o próprio tecido, ao sustentar meu corpo, permitiu
flexibilização e expansão do eixo, bem como o trânsito entre diferentes níveis do espaço.
Além disso, a criação de diversos altares ao longo do processo, alguns com tecido, outros
com caixotes de madeira ou até mesmo o próprio chão, foi importante para projetar os conteúdos
que emergiam do corpo. Nesse exercício, o oratório de Santa Luzia permaneceu desde os
primeiros laboratórios até a última apresentação.
O estabelecimento de uma relação com as imagens das mulheres coabitadas também foi
um importante mobilizador do processo e me permitiu contatar os conteúdos do campo de
pesquisa frequentemente. Registros sonoros captados por mim em campo também foram
amplamente utilizados, como toques de terecô, rezas de benditos, sons de coco babaçu sendo
quebrado etc. De todos esses registros, apenas o canto entoado em pedido de misericórdia à
Santa Luzia permaneceu até o final desta pesquisa.
As fases em que deveria trabalhar enfaticamente com determinados materiais do campo,
e/ou com dinâmicas específicas, foram meticulosamente calculadas pela diretora, que equilibrava
esses momentos a partir daquilo que observava em meu corpo. Passei por períodos de muita
fragilidade em meu processo, nos quais não conseguia nem dançar nem sentir. Isso aconteceu em
virtude do estado emocional em que me encontrava que, por sua vez, fora disparado por questões
do Inventário no Corpo. Deparar-se com a ausência de fluxo e o vazio é algo previsto dentro do
método BPI, pois este é, segundo Costa, “honesto com o desenvolvimento pessoal do intérprete e
com os seus limites. Cabe à diretora ter a sensibilidade para não ultrapassá-los” (COSTA &
RODRIGUES, 2014, p. 13)
Ao propor diferentes contatos e dinâmicas com os materiais do campo, a diretora me
colocava em uma situação onde não havia espaço para a passividade ou inércia provocadas pelo
momento de dificuldade. Sentia um desejo forte de mergulhar na imobilidade total, interna e
externa, em uma não-existência que se estendia além do vazio. A partir das intervenções
propostas pela direção, coloquei-me em movimento novamente, caminhando por sentidos de
vida.
161

Apesar de tudo isso, a utilização de elementos do campo formou uma base sustentadora
para o desenvolvimento dos laboratórios, proporcionando-me caminhos pelos quais seguir
“andar com as próprias pernas” era-me impossível. Sempre que determinadas questões eram
superadas, a diretora propunha novas dinâmicas, como a escolha dos elementos que seriam
mantidos ou não dentro do dojo. Os conteúdos que emergiam eram constantemente colocados à
prova, tendo em vista que aquilo que realmente fizesse sentido para o corpo continuaria a
aparecer, independentemente de haver uma referência externa.
A respeito da utilização das referências no âmbito do processo criativo do BPI, sua
criadora explicita que “os cantos, os mitos e os ritmos formam referências importantes para este
trabalho corporal, porém é necessário aprofundar o processo corporal quanto suas tonalidades e
percursos internos” (RODRIGUES, 2012, p. 04).
Dessa maneira, em todas as etapas, elementos do campo e do processo criativo se
retroalimentaram. Por conta disso, ao longo dos anos, introjetei as mais diversas sutilezas e
sentidos provenientes do campo. O processo dentro do método BPI ocorre a partir dessa
comunicação entre os conteúdos das pessoas coabitadas e os do intérprete, em processamento
nos laboratórios.
O objetivo principal do método em questão é propiciar ao bailarino um corpo hábil a se
movimentar com vitalidade, entrega e conexão com as sensações mobilizadoras de cada ação
corporal. Nesse sentido, a Incorporação da Personagem é, em última instância, grande
viabilizadora dessa dança em virtude da nucleação que ocorre nesta etapa.
Sendo assim, todo o esforço empregado pela diretora no contexto deste processo era para
que eu pudesse alcançar esse patamar de integração. Entretanto, o grande espaço de tempo no
qual trabalhamos sem que se chegasse a uma personagem permitiu que muitos conteúdos tanto
do campo quanto do meu processo pessoal fossem depurados.
Houve um momento onde Graziela Rodrigues pediu-me que retirasse dos laboratórios
dirigidos todos os registros sonoros e objetos provenientes da pesquisa de campo. Mesmo depois
de seis meses de trabalho utilizando essa dinâmica, esses conteúdos continuaram a aparecer
dentro do fluxo dos sentidos. Assim, a diretora solicitou que eu elaborasse uma síntese a partir
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dos diários de laboratórios, a qual enunciou uma maior integração dos conteúdos do dojo. Isso
fez com que eu tivesse uma melhor percepção do processo criativo como um todo.
No semestre seguinte, cursei uma disciplina intensiva do Programa de Pós-Graduação em
Artes da Cena da Unicamp, ministrada em conjunto por Graziela Rodrigues e Larissa Turtelli.
Essa experiência possibilitou a instalação do laboratório em um espaço próprio e fixo ao longo
de duas semanas. As relações entre corpo e espaço foram estudadas e experimentadas através da
perspectiva do método, no qual a formação do segundo se dá através dos “ingredientes” retirados
do corpo (RODRIGUES, 2003), ou seja, “ao se abrir o corpo para absorção do espaço criado e
voltar-se a recolher no seu próprio eixo dão-se as referências espaciais no próprio corpo” (Ibid.,
p. 85). Sendo assim, a composição do espaço laboratorial se deu através da projeção e
materialização das imagens, sensações e emoções que vivia naquele momento.
Tudo isso proporcionou uma espécie de revelação com relação ao que ocorria em meu
processo. Foi como se “radiografasse” meu corpo existencial, minhas estruturas interiores. Essa
análise se deu a partir de interpretações diárias do espaço em constante transformação,
utilizando-me de desenhos e fotografias, modelagens em argila, diários de laboratório e de
campo. Assim, cheguei a uma síntese na qual uma metáfora dos anos anteriores, marcados por
dificuldades, apareceu.
Como um mapa do meu script de vida, o trabalho explicitou um percurso de onde saio de
um estado de centração para mergulhar nas porções obscuras do meu interior. Pude perceber,
mais uma vez, porém com maior profundidade, quais comportamentos alimentavam meus
mecanismos de defesa e como, a partir disso, negava minha própria identidade, não aceitando-
me. Familiarizada com esses lugares obscuros, deixava ocupassem meu espaço criativo com
frequência. Em virtude disso, pensei em desistir de tudo em muitos momentos, pois, embora
amparada pelo método BPI e, principalmente pela diretora e orientadora do projeto, a esperança
de que fosse um dia alcançar a nucleação e dançar com meu corpo inteiro esmaecia diante das
dificuldades vividas.
A disciplina mencionada anteriormente, contudo, foi o estopim para o desfecho.
Sentindo-me como que comprimida, tendo todos os conteúdos trazidos pela vivência do processo
à flor da pele sem conseguir alcançar uma elaboração, desisti. Observando a configuração do
163

meu dojo, juntamente do olhar acurado de Graziela, percebi que havia lacunas: no altar, havia
passagens para o seu interior e espaços vazios em sua composição; muitos galhos secos o
compunham e, como adicionava mais galhos todo dia, estes se fecharam sobe o altar. Eram
muitas camadas e muitas brechas.
Em um dia de trabalho, me coloquei dentro do altar e assim fiquei por algumas horas.
Sentia meu corpo comprimido, imóvel, sendo que a própria respiração requeria imenso esforço.
A diretora sugeriu que eu saísse dessa situação fazendo uma limpeza e buscando identificar o
significado de tudo isso com o objetivo de descomprimir o corpo. Por alguns minutos, tive a
convicção de que seguir adiante não adiantaria, pois não conseguiria ter clareza do meu processo
ou superar os problemas e dançar com plenitude.
O ponto determinante para que voltasse a ter motivação para me movimentar, interna e
externamente, foi a presença constante de Graziela, dando-me força, amparo e não desistindo do
processo em momento algum. Assim, decidi seguir sua orientação e realizar a limpeza do dojo
que havia solicitado.
Além dos elementos já descritos até o momento, compunham meu espaço seis pontos
marcados no chão com argila. Ao observá-los, Graziela orientou-me a desenvolver um gesto para
cada um deles e, a partir disso, ainda no contexto da disciplina, um fluxo de intensos
movimentos despontou em meus laboratórios dirigidos, constituído, principalmente, de giros.
Estes, atrelados aos movimentos das mãos, traziam a imagem de saias de terecô rodando ao meu
redor, o que, por sua vez, suscitava outros tantos movimentos. Embora não tivesse clareza das
imagens, sensações e sentimentos que percorriam meu corpo naquele momento, sentia que
adquiria uma fluidez há muito não experimentada. Os movimentos aconteciam sem que eu
precisasse me esforçar para isso.
No último dia da disciplina em questão, a diretora propôs que todos os alunos, estando
em trabalho corporal com suas modelagens ou personagens, transitassem por entre os dojos dos
demais, estabelecendo relações. Nessa dinâmica, enquanto interagia com uma outra intérprete,
vivenciei a personagem Rosinha/Margarida pela primeira vez. A diretora sinalizou que algo novo
havia brotado em meu corpo e orientou-me a continuar com o desenvolvimento desses conteúdos
após o término da disciplina. Sua direção para o prosseguimento dos laboratórios foi para que
164

atuasse através do fluxo de movimentos, uma vez que ele é que havia proporcionado a qualidade
emergida em meu corpo na ocasião. Dessa forma, deu-se a incorporação da personagem Rosinha/
Margarida.
Rosinha/Margarida vem a partir da sensação e da imagem de brilho pelo corpo, fazendo
com que eu sinta arrepios e um aumento da sensibilidade nas pernas, que se desenvolve em um
movimento de abrir com as mãos e os braços. Esses movimentos e sensações culminam em
imagens de saias de terecô ao meu redor, nítidas, próximas e cheias de movimento. Ora as sinto
em meu próprio corpo, ora dançando vivamente pelo espaço. Sinto o cheiro, o peso e o som do
tecido. Vejo canelas e pés fazendo as saias rodarem.
O corpo se expande gradativamente e se torna “corpo-saia” pelo movimento: com as
pontas dos dedos sinto pequenos babados na barra de uma saia. Esse movimento se estende para
as mãos e braços, ajudando a dar nitidez às imagens das saias, bem como a sensação delas
tocando meu corpo. São muitas: rosa claro de algodão, toda amassada; azul desbotada e simples;
suntuosa, vermelha, com muitos detalhes; roxa transparente e cintilante; branca, toda pregueada.
Apesar de o movimento conduzir o circuito interno, ambos ganham força simultaneamente.
O fluxo é contínuo: giros, torções, arqueamentos de coluna, saltos, inversões de eixo,
paradas de mãos, estrelas. Movimentos que ocorrem anarquicamente, fundindo-se entre si,
emendando-se e gerando novos movimentos em um processo contínuo. O corpo é saia,
arqueamentos e expansões. Nessa dinâmica, através da oposição das partes e da imagem e
sensação de brilho, surge, aos poucos, a sensação de uma roupa justa, quase apertada. A postura
vai se transformando, se tornando altiva, séria, elegante. O tecido no corpo se transmuta em um
vestido “chique” de corte, “coisa bem feita”, tecido roxo com muitos detalhes dourados.
Instaura-se uma mulher séria e segura, inserida em um tempo colonial. Esta é Margarida.
Margarida é encantado: não tem mais corpo, mas tem memórias do que já viveu há mais
ou menos quinhentos anos atrás, quando atravessou o oceano em um navio para se tornar rainha
em nossas terras. Chegou, porém, já sem vida e foi Santa Luzia quem lhe deu brilho, permitindo-
lhe ser encantado.
Rosinha é quem recebe Margarida em seu corpo, incorporando-a. Mulher quebradeira de
coco babaçu, tem os dedos dos pés arrebentados de andar descalça pelo mato e os das mãos
165

doídos de tanto quebrar coco. Ela tem cerca de quarenta anos, mas com a aparência judiada de
quem vive uma vida difícil. Sem dentes, com corpo franzino, “meio caído”, como ela mesma
descreve; cabelo grisalho e bem curto, todo despenteado.
Os impulsos de movimento de Rosinha vão em direção ao chão e provêm do baixo ventre
e do osso esterno. Levam a deslocamentos ágeis pelo espaço, quase acrobáticos, caracterizados
por quedas e recuperações. A qualidade de movimento de Rosinha permite que eu me atire ao
chão com um técnica nunca “aprendida”37: realizo saltos onde o corpo busca a horizontalidade
no ar, e a queda se dá com as mãos e peito no chão, amortecidos pelos braços. As costas também
são puxadas para o chão e, em resistência à essa força, entro em movimentos de “ponte” com
torções e estrelas. Meu corpo se inverte: mãos, cabeça e tronco ocupam o plano baixo, pés e
pernas buscam o céu.
Sinto as mãos enraizarem-se no chão, ocupando o lugar que lhes pertence. Uma das
pernas permanece no solo, com apoio no metatarso, enquanto a outra entra em abdução, extensão
e rotação externa no ar. A oposição exercida pela perna que está no alto é tanta que a outra deixa
o chão também e permaneço em parada de mãos. A dança e o deslocamento ocorrem de ponta
cabeça e o eixo invertido é tão forte que mantenho-me por longos períodos de tempo nessa
dinâmica, mesmo nunca tendo conseguido fazer isso antes. Tudo se intensidica a ponto de se
iniciarem saltos com impulsos tanto das pernas quanto dos braços, entrando e saindo das paradas
de mãos em um ritmo acelerado.
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37A respeito deste fenômeno, a autora do BPI explica: “A personagem auxilia a pessoa a liberar-se de suas travas
corporais e o corpo vai adquirindo um dinamismo. É comum a pessoa se surpreender consigo mesma quando está
com a sua personagem, pois realiza movimentos que antes se via incapaz de realizá-los” (RODRIGUES, 2003, p.
127).
167

Rosinha é uma mulher assumida em seu corpo fora dos padrões, se acha bonita do jeito
que é: velha, “caidinha”, “murchinha”, “banguela", dos dedos arrebentados, com o corpo
marcado. Por não ter mais nada, Rosinha sente que tem tudo. Não precisa de roupa bonita ou
cabelo arrumado, pois tem seu corpo para dançar. Meio peralta, mostra-se para quem está perto e
dança sentindo-se realizada em existir. Relata sentir um “foguinho na barriga” que a faz dançar,
trata-se de uma sensação na região do umbigo que provê a liberação dos movimentos. Segundo
Rosinha, quem deu esse “foguinho“ a ela foi Santa Luzia, com quem dialoga diante do altar.
Suas paisagens são eiras de terecô e as matas da região do Bico do Papagaio. Muitas de
suas falas são fruto de uma tensão vivida entre ela e Margarida. Constrói-se, assim, um diálogo.
Rosinha diz: “Margarida não tem corpo!”, “Margarida diz que não sei dançar, mas pouco me
importa, pois tenho corpo!”.
Margarida, por sua vez, responde com seu sotaque português. Ela vive o presente como
encantada através do meu corpo e, o passado, através de suas memórias. Traz um passado de
rainha, onde dançava em bailes e era muito desejada, modelando seu corpo altivo, imponente, de
postura “elegante” – como ela mesma enfatiza. É segura e firme, arrogante e “olha de cima”. No
fluxo dos sentidos trazidos por Margarida, a viajem que faz ao Brasil em um navio – viajem da
qual não sobrevive – é um aspecto importante de sua existência. Margarida vira restos ao ser
devorada viva e todo seu brilho desaparece. Seu vestido e restos mortais vão parar em baixo de
um monte de coco babaçu nas matas habitadas por Rosinha e é nesse ponto que ocorre a
intersecção entre as duas.
Rosinha encontra os pedaços de Margarida: ossos, pele seca, cabelos ralos e o seu vestido
já todo rasgado, tirando-os da terra. Seus corpos mesclam-se em um só: sinto a vivacidade de
Rosinha, no entanto, o vestido rasgado e sujo de Margarida se faz presente em meus braços.
Aspectos dos corpos de ambas vão se materializando em meu corpo, como a imagem e sensação
da saia rodada do vestido de Margarida junto com os pés inquietos de Rosinha, fazendo com que
novos movimentos emerjam. Quando isso acontece, os movimentos parecem não caber na sala
de trabalho, tamanha a expansão. Os pés me conduzem em giros por trás, bastante amplos, que
vão acelerando e tomando o ambiente.
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168

* * *
"
Toda essa descrição dos movimentos e sentidos da personagem procura, assim, evidenciar
uma escritura no corpo que é característica do método BPI, dado que a pesquisa está no corpo do
intérprete. Por esse motivo, para a defesa desta tese, escolhemos realizar também a apresentação
do fragmento de um esboço cênico proveniente dos aprofundamentos da personagem.
Para essa nova elaboração cênica, a diretora me questionou qual era o ponto principal
trazido pela personagem, o qual gostaria de desenvolver como resultante prática da pesquisa. A
minha escolha se deu sobre a tensão trazida por Rosinha e Margarida acerca de ter ou não ter um
corpo. Isso porque a o conteúdo permeia os movimentos e dinâmicas, permitindo o diálogo entre
as duas mulheres.
Rosinha possui um corpo, apesar de “velhinho” e “gasto”, como ela mesma coloca;
entretanto, não tem brilho nenhum. Margarida, por sua vez, viu-se desfazer até sobrar somente o
brilho do encantado. Dessa maneira, Rosinha precisa do brilho de Margarida para sentir-se
completa e esta precisa do corpo de Rosinha para existir.
No âmbito desta pesquisa, o brilho possui o significado de superação. Ele é adquirido
través das vestes e da dança do terecô e provê uma dignidade suprimida pelo cotidiano das
mulheres pesquisadas no Bico do Papagaio e incorporadas por mim. Esse brilho do terecô dá cor
e significados para um dia a dia que é, muitas vezes, opaco. Em meu processo criativo, é Santa
Luzia quem o oferece às mulheres, sintetizando o que foi visto em campo nesse sentido, pois a
santa, conhecida como a santa da luz e da iluminação espiritual, possui grande importância para
as pesquisadas. Observou-se, por exemplo, que os festejos mais proeminentes do terecô são
destinados a ela, protagonista mesmo diante dos encantados. Sendo assim, a questão do brilho
trazida pela personagem mereceu atenção especial, uma vez que permeou sua incorporação, além
de ser um gatilho para trazê-la em meu corpo.
O cenário elaborado para a apresentação prática também foi um altar. Ele tem o formato
de uma grande saia, pois era recorrente a imagem de Rosinha dançando por debaixo das saias das
terecozeiras. É roxo e dourado, cores presentes nas vestes de Margarida. Em seu interior, está
somente o altar de Santa Luzia, o qual desencadeia o brilho imagético ou o das sensações do
169

corpo. É um local que abriga e transforma Rosinha e Margarida e, por esse motivo, foi
desenvolvido de forma que possibilitasse o transitar em seu interior, alternando entre os corpos
de ambas.
A concepção e elaboração do figurino também se deu estritamente a partir dos sentidos da
personagem, sendo importante tanto para o seu desenvolvimento quanto para sua linguagem de
movimento. Rosinha usa uma saia cor-de-rosa, desbotada, gasta e rodada; uma blusa de algodão
igualmente velha e encardida. Rosinha descreve o estado em que se encontram suas roupas. Ela
diz: “Elas não gosta que eu venho aqui, baia terecô com essas roupa tudo veinha, caidinha,
igual meu corpinho.”

Figura 44 - Rosinha em interação com Margarida através do vestido. Apresentação no IV


Seminário do PPGAdC.
Fonte: Arquivo da autora.
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170

Figura 45 - Altar cenográfico em formato de saia, contendo a imagem de Santa Luzia em seu interior.
Fonte: Arquivo da autora.

Figura 46 - Rosinha realizando sua dança. Apresentação no IV Seminário do PPGAdC.


Fonte: Arquivo da autora.
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Figura 47 - Margarida realizando sua dança. Apresentação no IV Seminário do PPGAdC.


Fonte: Arquivo da autora.

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Figura 48 - Margarida realizando sua dança. Apresentação no IV Seminário do PPGAdC.
Fonte: Arquivo da autora
172

"
Já o vestido de Margarida foi confeccionado todo em setim e renda roxos, não sendo
poupados babados e detalhes, seguindo a imagem e a sensação que tinha das vestes em meu
corpo. A sensação das mangas do vestido nos braços e de sua barra tocando as canelas eram
muito importantes para a modelagem, de forma que a sua confecção se deu em meu corpo,
seguindo os sentidos de Margarida.
Nos laboratórios em que trabalhamos o desenvolvimento do roteiro, investigamos o
diálogo estabelecido entre Rosinha e Margarida a partir dos seguintes questionamentos: como
ocorre a transição entre elas? Quando Margarida precisa de Rosinha e vice-versa? Qual a relação
estabelecida entre elas? A partir disso, percebemos que os próprios figurinos auxiliavam no
desenvolvimento dessa linguagem de movimentos, além de definirem claramente quando se
tratava de uma e de outra, potencializando a mudança de postura, qualidade de movimento,
entonação das falas, entre outras características.
Nesses estudos, Rosinha se direcionava à Margarida segurando seu vestido o que, por sua
vez, permitia que um pouco de Margarida também se manifestasse em meu corpo. Margarida
ganhava vida a partir do vestido que era manipulado por Rosinha, até que ambas se fundissem
em um único corpo.
Para a apresentação realizada na ocasião da defesa desta tese, contamos com dois
músicos38 que compuseram a trilha sonora, além de tocarem-na ao vivo. Esse processo se deu a
partir de registros sonoros que já habitavam os laboratórios: o fado português, de autoria de José
Regio e interpretação de Amália Rodrigues, e o canto registrado em campo em pedido de
misericórdia à Santa Luzia (utilizado no roteiro apresentado às terecozeiras no Bico do
Papagaio). Utilizando-se de violão, piano elétrico, flauta transversal, djembe e contrabaixo
acústico, a trilha transitou entre o momento de Margarida, com improvisações musicais a partir
do fado português, o momento de Rosinha, com toques de terecô, e o momento do diálogo entre
ambas, no qual trabalhou-se com o canto Misericórdia e algumas referências do fado.

38 Janice Pezoa e Bruno Buzzo.


173

Já na apresentação realizada no IV Seminário do PPGAdC, houve a participação de um


outro músico, que executou o improviso musical utilizando um tambor e outros instrumentos de
percussão. Para tanto, baseou-se nos conteúdos que emergiam no corpo e na apresentação feita
na ocasião da defesa da tese.
Dessa maneira, o roteiro desenvolvido traz três momentos distintos. Inicia-se com a saída
de Margarida de dentro do altar; esta vive as memórias de seus tempos de rainha até sua ruína ao
ser devorada viva quando aportou no Brasil. Ela se apresenta e conta brevemente sua história:
“Me chamo Margarida. Me vim de muito longe, lá de Portugal, onde era rainha, da pele macia,
dourada, cheirosa. Me vim num navio, onde todos queriam até o ultimo fio de cabelo de
Margarida”. Internamente, sua paisagem transforma-se em um navio a balançar. A sensação é a
de ser puxada de um lado para o outro; vê seu corpo ser destruído: “Rasgaram meu vestido.
puxaram meus cabelos. Arrancaram minha pele. Mastigaram minha carne. Roeram atém os meu
ossos. O brilho de Margarida desfez-se mar adentro, não sobrou nada. Cheguei-me aqui
mortinha”.
Margarida retorna para dentro do altar, realizando a troca de figurinos atrás do oratório
de Santa Luzia. Surge, assim, Rosinha. Ela corre pelas matas do Bico do Papagaio, havendo um
intenso fluxo de movimento em deslocamentos que se dão através de quedas e recuperações por
todo o espaço. Ela dança sobre todos os pontos desenhados no chão e a sensação é que eles
suscitam seus movimentos. Assim como Margarida, Rosinha também se apresenta aos
espectadores: “Eu sou a Rosinha. Elas não gosta que eu venho aqui baia terecô com essas roupa
veinha, com esse corpo caidinho, com os cabelo tudo descabeladinho, com os dedo do pé
arrebentado de topá nos mato e os da mão de quebrar coco, faltando até os dente da boca. Mas
eu não me importo! Porque eu tenho esse foguinho aqui na minha barriga”.
Ela vai até o altar onde conversa com Santa Luzia: “Ah, dona Santa! Eu conheço a
senhora… eu sei que é a senhora que fica tudo dano brilho pras muié baiá bonito. Eu não tenho
brilho, mas tenho meu corpinho, tenho esse foguinho aqui na minha barriga que a senhora deu
pra eu baiá. Tem muié que só tem brilho, mais nadinha… não é, Margarida?” Nesse instante,
Rosinha pega o vestido de Margarida e, dessa maneira, presentifica a encantada. As duas
começam a dialogar.
174

Dá-se, então, a terceira parte do roteiro, onde o vestido de Margarida, manuseado por
Rosinha, é que conduz o movimento, como se a encantada ganhasse vida através de sua roupa.
Enquanto o vestido se movimenta levando o corpo de Rosinha, esta diz: “Margarida morreu! Se
encantou. E agora fica por ai, furiosa, procurando um corpinho pra baiar”. Ao aproximar e
afastar o vestido do corpo, as características de Margarida vão se impregnando em mim de forma
que ela se manifesta em determinados momentos: “Rosinha, não me pertence esse lugar, não
quero este seu corpinho”. No entanto, quem está no controle é Rosinha, que avisa Margarida
sobre sua condição: “Ah, Margarida, pois se quiser, é só esse corpinho aqui que você tem”.
Assim, seguindo a dinâmica com o vestido, ambas vão assumindo porções proporcionais
de meu corpo, até estarem ambas igualmente presentes: “Rosinha e Margarida, juntinhas no
mesmo corpo, para sempre, até acabar-se tudo”. Finalmente coesas em um mesmo corpo,
retornam para dento do altar onde, diante de Santa Luzia, fazem sua última prece: “Cura, dona
Santa. Cura nóis. Tira as dor, apaga a memória, refaz a carne”.
"
* * *

Com Rosinha e Margarida, sinto que reaprendi a dançar. Mais do que isso, reaprendi que
deixar o movimento fluir depende da assunção do próprio processo, uma responsabilidade
exclusivamente minha como bailarina-pesquisadora-intérprete. Digo reaprender, pois o prazer da
dança proporcionado pela personagem já havia sido vivenciado por mim em 2010, com Jura em
A Flor do Café. A sensação de ter uma dança que se realiza no corpo de forma inevitável e real
era perseguida por mim desde então.
Revisando a jornada percorrida de 2010 até o presente momento, deparo-me com muitos
emaranhados e dificuldades. Ao me questionar, porém, porque demorei tanto tempo para
encontrar a fluidez e dominar meu scprit e mecanismos de defesa, vejo que foram várias as
questões.
Tendo em vista que o processo criativo no método BPI possibilita o desenvolvimento da
identidade do intérprete, sendo essa experiência bastante particular para cada pessoa que o
vivencia, a abordagem aqui utilizada também é particularizada e ocorre a partir da minha
175

experiência no método, não atestando qualquer generalização sobre o mesmo. Dessa forma,
pode-se dizer que a principal conquista desta pesquisa foi transpor essas dificuldades de ordem
interna e alcançar novamente o prazer da dança se fazendo em meu corpo.
A decisão de escrever sobre o dançar com e sem a personagem foi tomada a partir dos
aprendizados adquiridos e dos conflitos vivenciados no processo, no qual a qualidade da dança
está centralizada na personagem, ou seja, na integração e nucleação dos sentidos do intérprete.
Entretanto, o desenvolvimento da personagem incorporada se dá quando “o intérprete está pronto
para concretizar um espetáculo, dançando a vida que se delineou em seu próprio
corpo” (RODRIGUES, 2003, p.129). Como descrito por Rodrigues, trata-se de um momento
imbuído de grande força emocional, o qual “é vivido com prazer” (Ibid. p. 124). A personagem
libera o corpo do bailarino dos julgamentos e é uma fonte fértil de conteúdos criativos,
proporcionando o fluxo dos sentidos de forma mais orgânica e real.
Minha experiência anterior com a personagem Jura, incorporada e dançada entre os anos de
2008 e 201039, deixou-me a marca do dançar plenamente, com um sentimento de liberdade e
segurança impossíveis de serem descritos, possibilitados pela nucleação. Experimentar essa
sensação fez com que se tornasse nítido para mim a diferença entre dançar e dançar com essa
qualidade específica.
É importante ressaltar que o sentido da palavra incorporação, no método BPI, refere-se ao
momento em que “a pessoa alcança uma integração das suas sensações, das suas emoções e das
suas imagens, vindas até então desconectadas” (Ibid. p. 124). Trata-se, portanto, do fechamento
de uma gestalten. Quando atinge esse estágio, o intérprete já passou por significativos
desdobramentos do seu processo pessoal. Sem a integração, o intérprete está sujeito, de forma
menos consciente, à atuação dos mecanismos de defesa provenientes de seus scripts ainda não
desvendados.
Embora dançar com a personagem proporcione um despertar e ainda “[...] um corpo que
dança no seu mais profundo sentido de existência” (RODRIGUES, 2003, p. 123), o trabalho

39 O processo em questão se desenvolveu no contexto de duas Iniciações Científicas orientadas e dirigidas pela
Prof.ª Dr.a Graziela Rodrigues, no curso de graduação em Dança da Unicamp. A pesquisa de campo do eixo Co-
habitar com a Fonte foi realizada com mulheres colhedoras de café no sul de Minas Gerais.
176

rigoroso com as ferramentas do método BPI e, principalmente, a atuação precisa da diretora,


permitem a criação e a realização de uma dança pautada nos princípios do método40. Não há, por
parte da direção, qualquer movimento no sentido de dissimular o que está de fato ocorrendo no
processo pessoal do intérprete, ou seja, não se forja a nucleação da personagem. Quando ela grita
seu nome e realiza sua dança, “o corpo é percebido como estando carregado de energia, de
movimentos e a pessoa assume trazer para fora o conteúdo que até então estava sendo
processado (Ibid., p. 130)”.
Por tudo o que experienciei, a principal característica do instante da incorporação da
personagem, é a fluência que se adquire na dança. A forma como ela ocorre no corpo faz com
que seja possível senti-la de forma indubitável. Para mim, é como se os sedimentos tivessem sido
filtrados e, por alguns minutos, aquela pode ser tida como uma dança límpida e verdadeira.
Dançar com a personagem é ter em si uma dança inevitável, uma dança que fala, faz ritmos, traz
histórias e conteúdos inquestionáveis, pois ela é originária daquilo que se nucleou.
Em meu processo, especificamente, embora tenha enfrentado muitas dificuldades,
lembrava a todo momento do sentimento de liberdade proporcionado pela personagem. O fato
desta auxiliar o bailarino a libertar-se daquilo que o prende e proporcionar, assim, dinamismo ao
corpo (Ibid.) fez com que tivesse isso como o meu objetivo. Apesar disso, o método BPI deixa
claro que “as condições essenciais para o começo desta fase são que a pessoa esteja o mais
possível desprovida de qualquer tipo de expectativa quanto ao que o seu corpo irá expressar”.
(RODRIGUES, 2003, p. 123).
Em virtude do meu script pessoal, idealizei e coloquei expectativas altas com relação à
incorporação da personagem, fazendo com que enxergasse o momento da nucleação como uma
meta característica de um certo período do processo. Ao projetar essa meta, a qual não seria
atingida através da ansiedade, das idealizações e das expectativas, criava recursos internos para
que não obtivesse contato comigo mesma, ou seja, um mecanismo de defesa.
Um ponto bastante enfatizado pela diretora é que, no contexto do laboratório dirigido, só
se torna consciente aquilo com o que o intérprete está pronto para lidar. Isso torna claro o fato de

40 Um exemplo a ser dado é a obra criada e apresentada às mulheres quebradeiras de coco nesta pesquisa.
177

ser imprescindível respeitar o tempo de cada um, bem como confiar na assistência e experiência
da diretora.
Em muitos momentos, não acreditei que fosse me desenvolver em virtude das
expectativas e idealizações, sendo que cada conquista adquirida necessitava ser sinalizada pela
diretora. A paciência e a honestidade com a qual Graziela lidou com os altos e baixos do meu
processo possibilitou minha persistência, ainda que estivesse com o sentimento de descrença em
mim mesma. Não havia dificuldades físicas ou intelectuais que me impedissem de avançar; as
questões emocionais foram, em verdade, as responsáveis pelo tortuoso caminho que segui. Eram
meus scripts atuando, impedindo-me de enxergar meus mecanismos de defesa.
Havia uma dificuldade em ter clareza da dimensão do meu próprio processo quando me
encontrava nessas situações. Entrava em julgamentos ao dançar sem ter uma personagem,
acreditando existir uma defasagem em meu corpo e o risco iminente de cair na
representatividade. O fluxo dos sentidos me era dificultoso, demandando um grande esforço para
sentir e modular o tônus muscular e os sentidos internos. Dançar sem uma personagem não era
prazeroso como dançar com Jura, por exemplo, fosse nos laboratórios dirigidos fosse nas
próprias apresentações. Faltava-me reconhecer o quanto ainda podia aprofundar meu próprio
processo. Entretanto, apesar da diretora apontar-me todos esses aspectos inúmeras vezes, levou
muito tempo para que eu os compreendesse totalmente.
Dançar para as quebradeiras de coco e terecozeiras foi uma prova para o meu
desenvolvimento como bailarina-pesquisadora-intérprete. Foi lutar contra a inércia física e
emocional que vivia, fruto do imbróglio script-mecanismos de defesa. No entanto, o ponto
principal foi perceber que a troca com as mulheres aconteceu. Ainda que internamente vivesse
todos os conflitos descritos, a atuação no método BPI e a direção de Graziela Rodrigues fizeram
com que conseguisse dançar com meu corpo aberto para comunicar-me com as espectadoras.
Talvez o estado em que me encontrava não tenha permitido uma honestidade para comigo
mesma de que aquele ponto era o meu limite, onde eu poderia de fato estar e, assim, ter aceitado
as condições físicas e criativas nas quais me encontrava. Não tinha clareza quanto ao que ainda
tinha de ser descoberto e elaborado em meu processo, mas passei a ter a percepção de que ainda
existia um longo caminho a percorrer.
178

O trabalho de dojo é imprescindível para se obter o contato sensível com as questões


interiores e poder elaborá-las no sentido do desenvolvimento artístico e pessoal. Não há outra
forma de alcançar a qualidade de dança proposta se não houver imersão e verdadeiro
comprometimento com o próprio processo de possuir-se a si mesmo. Isso não é, de forma
alguma, uma tarefa simples: em momentos de dificuldade, o intérprete pode repelir o trabalho no
dojo, projetar seus “fracassos” no diretor41 e no método, podendo até mesmo ocorrer um
retrocesso em seu desenvolvimento.
Dessa forma, o ingrediente básico para se desenvolver no método BPI é a assunção do
próprio processo. É necessário que o intérprete assuma a responsabilidade sobre o seu corpo e
sobre suas decisões, as quais vão desde a disciplina na realização dos dojos, cumprindo as tarefas
passadas pela diretora, até a qualidade de cuidados com o corpo (horas de sono, alimentação
etc.). É preciso, portanto, que o intérprete assuma uma postura ativa. A passividade faz com que
toda a responsabilidade seja projetada no diretor que, embora possibilite que o processo
aconteça, não tem meios para fazer com que o intérprete dance. Por conta disso, a persistência e
a disciplina são componentes propulsores.
Mesmo em períodos delicados, nos quais o intérprete pode estar se sentindo fragilizado,
ele deve confiar nos direcionamentos dados pela diretora e segui-los à risca ainda que, à primeira
vista, não consiga visualizar o objetivo final. Da minha parte, houve muita relutância em
determinados períodos, pois não conseguia me colocar dentro do dojo e entrar em contato
comigo mesma, seguindo as direções de forma precisa. Porém, a persistência fez com que
vencesse essas forças contrárias, mesmo tendo considerado a hipótese de abrir mão do processo
criativo por um momento.
Quando consegui compreender essas questões de forma verdadeira, assumindo uma
postura ativa e responsável para comigo mesma e para com a diretora, a meta de incorporar uma
personagem deixou de existir. Abriu-se espaço para trabalhar as minúcias, as quais exigem
delicadeza. Isso não me impediu de vivenciar os conflitos com profundidade, de chegar a difíceis
lugares existenciais; colocou-me, antes de tudo, em uma atitude mais honesta com relação ao

41 A respeito da projeção no diretor no método BPI, Melchert (2014, p. 205) enfatiza: “O diretor do BPI é
preparado para lidar com essas projeções e tem condições plenas de trabalhar essa questão com os intérpretes.”
179

processo, ao método BPI e ao papel da diretora. Considero isso uma das maiores conquistas do
meu percurso, sendo que a esperança da diretora foi a substância “mágica” mantenedora da
coesão do mesmo. Foi a partir desse substrato de aprendizados que o processo se desenvolveu até
chegar à incorporação da personagem Rosinha/Margarida, momento no qual pude sentir
novamente o prazer em dançar. É um bem que se adquire: estar possuído de si com consciência e
equilíbrio.
"
"
180

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através desta pesquisa, alcancei o estado de uma “dança inevitável”, meu principal
objetivo no percurso aqui descrito. Considero essa dança como sendo aquela proporcionada pela
personagem no método BPI, quando os aspectos dos processos pessoal e criativo do intérprete
sofrem nucleação (RODRIGUES, 2003). Nesse estado, não há impedimentos para o corpo e o
que sai dele está carregado de verdade. A maneira como os conteúdos se entrelaçam, construindo
um sentido todo próprio, faz com que o intérprete tenha certeza de estar possuído de si. Dessa
forma, sua dança acontece com uma organicidade muito particular. Ao incorporar a personagem
Rosinha/Margarida, surpreendi-me com a potência inesperada que meu corpo adquiriu ao dançar.
A batalha travada comigo mesma ao longo desta jornada serviu unicamente ao propósito
de “dançar em plenitude” e, assim, espero que as descrições aqui contidas tenham dimensionado
a delicadeza e o primor com os quais a diretora guiou-me pelo método BPI, a fim de alcançar
esse estado.
Propusemo-nos e executamos o exercício de recepção no qual a criação artística esteve
centralizada na fonte coabitada, que veio a se tornar, mais adiante, também espectadora. Pela
própria natureza do método BPI, que prioriza um processo em constante desenvolvimento, nunca
estanque, o exercício realizado desencadeou uma ampliação da área de investigação desta
pesquisa. Por conta disso, o processo criativo após a experiência de dançar para a fonte coabitada
tornou-se parte da pesquisa, pois permitiu, através das elaborações que o sucederam, um
aprofundamento na questão da recepção da obra e no próprio terecô.
Neste estudo, recepção e processo criativo mostraram-se complementares e
indissociáveis, corroborando dados preexistente a respeito da experiência de retorno ao campo
no método BPI. O conhecimento da diretora no que diz respeito a essas experiências prévias
proporcionou uma base sólida para que eu transitasse entre os territórios da criação e da
recepção. Dessa forma, pude analisar o experimento com um olhar externo e, ao mesmo tempo,
possuir dados vivenciais apreendidos através do meu próprio corpo.
Criar uma dança para a fonte coabitada era uma experiência inédita para mim e,
conforme foi acontecendo, vi-me diante de novos desafios, principalmente acerca dos meus
181

objetivos como artista. Nos laboratórios onde o objetivo era traçar um roteiro, ao identificar
minhas dificuldades e perguntar “Para quem você quer dançar?”, a diretora fez com que eu
enxergasse minha imaturidade enquanto criadora. Havia em mim uma parte onde a dança ainda
era vista como um exercício voltado para o ego e não para a comunicação em si; por esse
motivo, a diretora insistiu firmemente no sentido de alcançar uma abertura da minha parte para
que, assim, conseguisse me comunicar com as espectadoras-fonte. Dessa forma, para que a obra
pudesse alcança-las, foi necessário ir além do meu ego, além da vontade de querer realizar uma
“dança bonita”. Precisei compreender que estava buscando uma dança a qual estaria a serviço de
uma comunicação mais profunda do que qualquer uma já trabalhada por mim até aquele
momento.
No método BPI, as apresentações da criação artística são uma etapa importante do
processo, pois a personagem e seus conteúdos passam por uma maturação. Dessa forma, algumas
“fichas” só caem durante e/ou após essa etapa. Nesse sentido, a trama envolvida em meu
processo só foi tecida ao dançar Rosinha e Margarida, momento em que adquiri uma perspectiva
coesa da rota percorrida até então. Compreendi o porquê de, em determinados momentos, certos
aspectos do meu Inventário no Corpo precisaram ser trabalhados e reconheci que somente após
esse movimento fui capaz de acessar criativamente o material do campo que havia ficado em
meu corpo. Assim, entender como e porque determinados conteúdos emergiram e como estão
sedimentados na personagem, que é um substrato de toda a experiência vivenciada, foi de
extrema importância para o fechamento deste ciclo.
Em laboratórios realizados nos primeiros anos do processo, principalmente entre 2012 e
2014, o corpo relacionava-se com imagens e sensações cadavéricas, onde se desfazia, era ferido,
e os sentimentos predominantes eram a dor e o vazio. A região da barriga e do baixo ventre se
apresentavam muito sensíveis, sendo que a sensação de um buraco era constante. Essa
configuração de corpo foi suscitada pelo contato com o campo, no entanto também estavam
conectadas às minhas próprias imagens internas, fazendo-as emergir no contexto do eixo
Inventário no Corpo. Tratava-se de um ponto forte de intersecção entre Inventário e Co-habitar,
algo que é previsto pelo método BPI. Essas imagens permearam todo o processo, mas só
passaram a ser desenvolvidas criativamente quando já haviam sido elaboradas as porções
182

relativas ao meu processo pessoal. Vivenciar de diferentes formas esse corpo dilacerado,
procurando elaborar os motivos do seu aparecimento, bem como realizar uma “limpeza” no
âmbito do eixo Inventário no Corpo, foi necessário para poder dançar Margarida. Nas
elaborações que sucederam sua incorporação, muitos elementos que vieram a fazer parte da
essência da personagem já estavam presentes. Embora esse seja um dado do método, perceber
que isso acontecia em meu próprio processo foi importante e só ocorreu após as apresentações
públicas.
Margarida vive tanto o seu tempo de brilho, quando era rainha, quanto o seu declínio, ao
ser devorada até virar restos e precisar do corpo de Rosinha para viver novamente. Anos antes de
sua incorporação, um corpo em pedaços já se enunciava. Além disso, a imagem de sair debaixo
da terra, de vir de um outro tempo, também já era presente e esteve, inclusive, no roteiro
apresentado às mulheres coabitadas no Bico do Papagaio. Isso tudo faz parte da nucleação de
Rosinha e Margarida.
No caso da porção Rosinha, a região do ventre continuou bastante sensível no corpo,
contudo, o buraco vazio foi preenchido pelo “foguinho” que a personagem diz sentir ser
responsável por sua dança de terecô. Acreditamos que isso esteja relacionado ao momento de
clímax que as mulheres coabitadas vivenciam dentro da manifestação. Não há, entretanto, como
definir exatamente o que seria esse “foguinho” da personagem, pois trata-se de uma sensação;
porém, o fato de gerar um fluxo de movimentos peculiar possibilita a associação com um
momento do terecô pesquisado. O fluxo de movimento em questão é composto por ágeis
deslocamentos através de quedas e recuperações. Essa técnica trazida pelo corpo é proveniente,
principalmente, do campo. No capítulo “O Terecô” as descrições dos corpos que baiam abarcam
essas dinâmicas de movimento, nas quais o corpo transita pelos planos do espaço em diferentes
velocidades e posturas. A dança realizada pela mestra Nezinha é um exemplo desse trabalho
técnico; impossibilitada de enxergar, a mestra impressiona com a qualidade de seus movimentos
ao girar saltando, atirar-se ao chão e levantar-se subitamente através de um impulso da coluna.
Ainda com relação a isso, identificamos a potência intensa do movimento como sendo
também proveniente do campo. Esta se enunciava em meu corpo desde o início do processo, mas
havia um desequilíbrio o qual fazia com que o corpo estivesse ora com tanta potência que os
183

movimentos não obtinham fluxo, ora em total imobilidade. Apenas depois da incorporação da
personagem é que obtive o equilíbrio e essa potência passou a atuar a meu favor, trazendo uma
qualidade de movimento nunca experimentada antes por mim. Assim, é possível traçar uma
analogia com o processo do terecô, uma vez que ele se dá de forma similar: o equilíbrio físico e
emocional só vem com o trabalho, caso contrário o corpo se vê fora de controle.
O processo no terecô se inicia com um corpo que está a transbordar. O cotidiano no qual
as mulheres terecozeiras estão inseridas exerce uma supressão na expressão das emoções, assim,
as dores e as dificuldades permanecem latentes até que o corpo “exploda” em impulsos de
movimento, muitas vezes destrutivos. Essas forças emocionais adquirem um tratamento e
refinamento pautados no cuidado e no amor através das mestras de terecô. Uma vez cercadas por
essas condições, transformam-se em vida, beleza, em potência do corpo e possibilidade de
existência. Essas mulheres encontram na manifestação uma forma de existir quando o limite já
foi atingido, quando a “condição interior” se torna insuportável e o corpo, então, carregado dessa
força emocional, manifesta-se fisicamente na liberação descontrolada: ao se machucar, se
embrenhar pelas matas e se atirar ao chão. Essas primeiras manifestações físicas atuam como um
pedido de socorro, onde, para que a pessoa não sucumba às emoções, as mesmas são liberadas.
São uma maneira de existir, de colocar os diabos para dançar.
Além dos dados apreendidos nas pesquisas de campo, a incorporação de Rosinha e
Margarida também possibilitou essa percepção acerca do terecô, pois ambas trazem a essência da
manifestação. Nesse sentido, tudo o que foi vivenciado neste processo pode ser relacionado, de
alguma forma, ao terecô. Precisei “morrer”, “sair os pedaços”, “juntar as partes” para então dar
espaço para a personagem existir. Isso é um processo prático de elaboração e a forma como
ocorreu fez com que me sentisse refeita. Dessa maneira, o desenvolvimento do processo criativo,
que culminou na incorporação da personagem, foi disparado pela experiência de retorno ao
campo.
O experimento de recepção realizado evidenciou a importância do procedimento para o
intérprete, pois viabilizou um diálogo entre o campo e a resultante criativa apresentada na
ocasião. O que veio a se desenvolver no processo criativo através de Rosinha e Margarida é
fruto, justamente, da recepção que as mulheres coabitadas tiveram com relação à obra e que
184

ficou em meu corpo. Quando Rosinha diz: “Elas não gosta que eu venho baiar terecô com essas
roupinha veia”, está respondendo à fala da mestra Liciene que, ao ver a apresentação em sua
eira, disse se identificar em minha dança, mas que, para combinar, deveria usar roupas “mais
bonitas” e “coloridas” e ficar parecendo uma “princesa” ou uma “rainha”. Margarida usa roupa
de rainha em seu corpo, como sugerido pela mestra. Em um primeiro momento, não atribuí tanta
importância às colocações feitas por Liciene, pois não causaram reverberação em meu corpo no
momento em que foram ditas. No entanto, os pontos levantados por ela vieram inesperadamente
e com força na personagem, de forma que a mesma traduz minha vivência e principalmente a
recepção da obra.
Rosinha e Margarida possivelmente não existiriam caso não houvesse o retorno ao campo
pautado na recepção. Sendo assim, essa experiência significou um aprofundamento no processo
criativo que, por sua vez, proporcionou os demais aprofundamentos acerca do terecô e da
recepção em si.
A pesquisa de campo realizada com a mulheres quebradeiras de coco babaçu e o terecô
deflagrou o universo da cura, que se dá através de um cuidado de si e do outro, cuidado este que
a realidade social na qual estão inseridas não permite. Nesse universo, por se viver no limite, os
cuidados são negligenciados. Mas por que o terecô cura? Porque ele é a oportunidade desse
cuidado, de dedicar a si banhos, limpezas, roupas “suntuosas” e brilhantes (como as de princesa e
de rainha), tempo e exclusividade, coisas que uma quebradeira de coco “não pode ter”. Ele
legitima a existência daquelas mulheres através de uma série de rituais e procedimentos os quais
demandam atenção para consigo próprias.
Refere-se, além disso, a um recorte cultural no qual o tempo do Brasil Colonial é
próximo, havendo, inclusive, resquícios do sebastianismo42 ao se incorporar Rei Sebastião, por
exemplo. A tensão e os valores do colonizador sobre o colonizado são presentes e diretamente
ligados ao imaginário e à mitologia do terecô ao se incorporar reis, rainhas, príncipes e princesas.

42
! Trata-se do mito que em acredita-se que rei Sebastião irá retornar após sua morte. Sendo este o único herdeiro do
trono de Portugal de sua época, seu retorno era esperado para que salvasse a coroa de um rei estrangeiro. Segundo
Ferretti (2013, p. 01): “No Brasil, o sebastianismo foi trazido pelos portugueses, sendo registrado em várias épocas e
locais, relacionando-se principalmente ao culto a El Rei Dom Sebastião, que não teria morrido na guerra contra os
mouros no Marrocos, mas teria se ‘encantado’”.
185

Margarida e Rosinha são, nítidamente, a síntese dos sentidos incorporados no campo fundidos ao
meu processo pessoal, levando à integração e à nucleação. Vivo ambas em meu corpo com
intensidade. Elas são a dualidade: de um lado, Margarida traz aquilo que se faz presente nos
imaginários a respeito do que é ser a corte, a suntuosidade, a elegância. Do outro, o “cru” de uma
realidade relativa ao que é ser uma mulher quebradeira de coco babaçu, colocado sem filtros e de
forma quase escrachada no corpo de Rosinha.
As pesquisas de campo do eixo Co-habitar com a Fonte também possibilitaram a captura
de um amplo registro sobre o terecô do Bico do Papagaio tanto em vídeo quanto através de
fotografias. Destaca-se que ainda não estava disponível no meio acadêmico um material desse
tipo, o que torna os registros coletados no Bico do Papagaio inéditos. Embora o número de
pesquisas acerca do terecô nos estados do Maranhão e do Pará esteja crescendo, verificamos que
estes podem servir para fundamentar determinados dados da manifestação no Bico do Papagaio,
mas não a contempla completamente. Além disso, ainda não havia sido realizada uma pesquisa
sobre o corpo do terecô na perspectiva do método BPI, fazendo com que esta pesquisa contribua
com essa área específica. A viabilidade da análise dos corpos das mulheres quebradeiras de coco
babaçu e terecozeiras a partir da Estrutura Física e Anatomia Simbólica do BPI reafirma a
validade e coerência dessas ferramentas que, mesmo não tendo sido pautadas nos corpos do
terecô, foram capazes de descrevê-los com acurácia e precisão.
Ao longo desta pesquisa, dancei três resultantes criativas diferentes: o roteiro criado para
as mulheres quebradeiras de coco babaçu, em três comunidade do Bico do Papagaio; duas
instalações performativas em locais alternativos da Unicamp; e o fragmento criativo a partir da
personagem Rosinha/Margarida, no Departamento de Artes Corporais da Unicamp por duas
vezes. Em cada um desses momentos, tanto a motivação para a realização da dança quanto a
função da mesma no processo foram distintas. Dançar para a fonte coabitada foi um desafio em
razão das dificuldades vivenciadas naquele momento relativas aos meus conteúdos pessoais,
contudo, havia motivação para realização da experiência de troca com um público tão peculiar.
Esse experimento foi o detonador de um novo rumo para o processo criativo, como descrito
anteriormente.
186

Já nas instalações performativas, um período ainda mais conflituoso para mim, foi
necessário encontrar o sentido. Assim, a diretora encorajou questionamentos sobre o fazer
artístico, compartilhando questões que colocava a si mesma quando ainda dançava: “Para quê?”
e “Para quem?”43. Essas perguntas me fizeram perceber que o meu desejo era perseguir
experiências como a que tinha vivido ao dançar para as mulheres coabitadas e, ainda, dançar uma
dança que não está a serviço de formalismos e tendências ou, como colocado por Rodrigues
(2003, p. 123), “alcançar um corpo que dança no seu mais profundo sentido de existência”.
Sendo assim, dançar esses conteúdos para espectadores do “eixo cultural” adquiriu um tom de
denúncia e a sensação de libertação de um padrão homogeinizante; foi um exercício de
afirmação do meu desenvolvimento como intérprete.
A incorporação da personagem Rosinha/Margarida foi uma conquista que me permitiu
realizar a dança que persegui ao longo de todo o percurso da pesquisa. Logo, ao me apresentar
publicamente com a personagem, dançando seus conteúdos, o sentimento foi uma mescla de
prazer e alívio. Fui tomada pela sensação de ter, finalmente, encontrado minha paixão; algo que
me sinto apta a realizar.
A conclusão desta pesquisa também encerra um ciclo de dez anos de formação e pesquisa
no método BPI sob orientação da Prof. ª Dr. a Graziela Rodrigues. O desenvolvimento pelo qual
passei, proporcionado tanto pelo método em questão quanto por sua criadora, fez com que eu
almejasse continuar atuando como bailarina-pesquisadora-intérprete. Agora, meu desejo é baiar e
ralar os dedos na quebra do coco babaçu dando corpo à Rosinha; vestir-me de brilho e dançar
Margarida. Minha vontade é dar vida e dançar seus nomes.
"
"

!43 A diretora
relata que tais perguntas são originais do diretor de teatro Ademar Guerra, com o qual trabalhou no
Ballet Stagium.
187

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