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Título original WikiLeaks:

Inside Julian Assange’s War on Secrecy Editora


Raïssa Castro
Coordenadora Editorial Ana Paula Gomes

Copidesque Anna Carolina G. de Souza Maria Lúcia A. Maier Revisão


Ana Paula Gomes

Projeto Gráfico André S. Tavares da Silva Diagramação DPG Editora


Daiane Avelino

Foto da capa AFP/Getty Images

© The Guardian, 2011


Originalmente publicado por Guardian Books Tradução © Verus Editora, 2011

Todos os direitos reservados, no Brasil, por Verus Editora.


Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico,
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AGRADECIMENTOS
Os autores gostariam de agradecer a:

James Ball Richard Norton-Taylor

Ian Black Daithí Ó Crualaoich

Julian Borger Aron Pilhofer


Heather Brooke Gill Phillips

Jon Casson Geraldine Proudler


Lisa Darnell Mark Rice-Oxley

Alastair Dant Simon Rogers


Rob Evans Marcel Rosenbach

Harold Frayman Alison Rourke


Paul Galbally Paul Scruton

Janine Gibson Eric Schmitt


John Goetz Vaughan Smith

Ian Katz Holger Stark


Bill Keller Jonathan Steele

Francois Kunc Oliver Taplin


Gavin MacFadyen Simon Tisdall

Ewen MacAskill Jan Thompson


Toby Manhire Declan Walsh
Georg Mascolo Helen Walmsley-Johnson

James Meek
SUMÁRIO

Lista de personagens
Introdução

1. A caça
2. Bradley Manning
3. Julian Assange
4. A ascensão do WikiLeaks
5. O vídeo do apache
6. As conversas com Lamo
7. O acordo
8. No Bunker
9. Os diários de guerra do Afeganistão
10. Os diários de guerra do Iraque
11. Os telegramas
12. O homem mais famoso do mundo
13. Parceiros incômodos
14. Antes do dilúvio
15. O dia da publicação
16. O maior vazamento da história
17. A balada da prisão de Wandsworth
18. O futuro do WikiLeaks

Apêndice: Telegramas diplomáticos americanos


LISTA DE PERSONAGENS
WikiLeaks
Melbourne, Nairóbi, Reykjavik, Berlim, Londres, Norfolk, Estocolmo

Julian Assange – fundador/editor do WikiLeaks Sarah Harrison – auxiliar de


Julian Assange Kristinn Hrafnsson – jornalista islandês e colaborador do
WikiLeaks James Ball – especialista em dados do WikiLeaks Vaughan Smith
– ex-capitão dos Granadeiros, fundador do Frontline Club e anfitrião de
Assange em Ellingham Hall Jacob Appelbaum – colaborador do WikiLeaks
nos EUA Daniel Ellsberg – informante na Guerra do Vietnã, defensor do
WikiLeaks Daniel Domscheit-Berg – programador alemão e arquiteto do
WikiLeaks (também conhecido como Daniel Schmitt) Mikael Viborg – dono
do PRQ, provedor de internet do WikiLeaks na Suécia Ben Laurie –
especialista em criptografia britânico, conselheiro de Assange para assuntos de
criptografia Mwalimu Mati – líder do grupo anticorrupção Mars Group
Kenya, fonte do primeiro vazamento importante do WikiLeaks Rudolf Elmer
– ex-presidente do braço nas ilhas Caimãs do Julius Baer Bank, fonte do
segundo vazamento importante do WikiLeaks Smári McCarthy – entusiasta
do WikiLeaks baseado na Islândia, programador, militante do Modern Media
Initiative (MMI) Birgitta Jónsdóttir – parlamentar islandesa e defensora do
WikiLeaks Rop Gonggrijp – hacker e homem de negócios holandês, amigo de
Assange e militante do MMI Herbert Snorrason – militante islandês do MMI
Israel Shamir – colaborador do WikiLeaks Donald Böstrom – jornalista
sueco e contato do WikiLeaks em Estocolmo The Guardian
Londres

Alan Rusbridger – editor-chefe


Nick Davies – repórter investigativo David Leigh – editor investigativo
Ian Katz – subeditor (notícias)
Ian Traynor – correspondente europeu Harold Frayman – editor de sistemas
Declan Walsh – correspondente no Paquistão/Afeganistão Alastair Dant –
visualizador de dados Simon Rogers – editor de dados
Jonathan Steele – ex-correspondente no Iraque James Meek – ex-
correspondente no Iraque Rob Evans – jornalista investigativo Luke Harding
– correspondente em Moscou Robert Booth – repórter
Stuart Millar – editor de notícias, guardian.co.uk Janine Gibson – editora,
guardian.co.uk Jonathan Casson – chefe de produção Gill Phillips – chefe do
departamento jurídico Jan Thompson – editora executiva

The New York Times


Nova York, Londres

Max Frankel – ex-editor executivo


Bill Keller – editor
Eric Schmitt – correspondente de guerra John F Burns – correspondente em
Londres Ian Fisher – subeditor estrangeiro

Der Spiegel
Hamburgo, Londres

Georg Mascolo – editor-chefe


Holger Stark – chefe de redação
Marcel Rosenbach – jornalista
John Goetz – jornalista

El País
Madri, Londres

Javier Moreno – editor-chefe


Vicente Jiménez – subeditor

Outras Mídias
Raffi Khatchadourian – escritor da New Yorker e autor de um extenso perfil de
Assange Saeed Chmagh e Namir Noor-Eldeen – funcionários da agência de
notícias Reuters acidentalmente mortos por pilotos americanos em 2007
David Schlesinger – editor-chefe da Reuters Kevin Poulsen – ex-hacker, editor
da revista Wired Gavin MacFadyen – professor da Universidade da Cidade e
jornalista, anfitrião de Assange em Londres Stephen Grey – repórter freelance
Iain Overton – ex-jornalista de TV, chefe da Agência de Jornalismo
Investigativo Heather Brooke – jornalista americana baseada em Londres e
ativista da liberdade de informação Bradley Manning
Bradley Manning – soldado raso de 23 anos e suposta fonte do WikiLeaks Rick
McCombs – ex-diretor da escola de Crescent, Oklahoma Brian, Susan, Casey
Manning – pais e irmã Tom Dyer – colega de escola
Kord Campbell – ex-gerente no empresa de software Zoto Jeff Paterson –
membro do comitê de apoio a Bradley Manning Adrian Lamo – hacker e
confidente online Timothy Webster – ex-agente especial de contrainteligência
do Exército americano Tyler Watkins – ex-namorado
David House – ex-hacker e defensor David Coombs – advogado

Julian Assange
Christine Hawkins – mãe
John Shipton – pai
Brett Assange – padrasto
Keith Hamilton – ex-parceiro de Christine Daniel Assange – filho
Paul Galbally – advogado de Assange no julgamento de 1996 por hacking
Alegações em Estocolmo / extradição
“Sonja Braun” – reclamante; membro do movimento Irmandade “Katrin
Weiss” – reclamante; trabalhadora em museu Claes Borgström – advogado de
ambas as mulheres, ex-ombudsman da Suécia pela igualdade de oportunidades
e proeminente político social-democrata Marianne Ny – promotora sueca e
especialista em crimes sexuais Mark Stephens – advogado de Assange
Geoffrey Robertson – advogado de Assange Jennifer Robinson – advogada
no escritório de Mark Stephens Gemma Lindfield – advogada agindo em
nome das autoridades suecas Howard Riddle – juiz, magistrado da Corte de
Westminster Ouseley – juiz do Supremo Tribunal, Londres Governo
Hillary Clinton – secretária de Estado americana Louis B. Susman –
embaixador dos Estados Unidos em Londres P.J. Crowley – porta-voz do
Departamento de Estado americano Harold Koh – conselheiro legal do
Departamento de Estado americano Robert Gates – secretário de Defesa
americano Sir Sherard Cowper-Coles – ex-representante especial do Reino
Unido no Afeganistão e ex-embaixador em Cabul
INTRODUÇÃO

A ÉPOCA EM QUE quase ninguém ouvira falar do WikiLeaks, começaram a


N chegar regularmente à minha caixa postal e-mails de alguém chamado
Julian Assange – um nome memorável. Editores costumam receber um misto de
dicas, cartas, reclamações e teorias excêntricas não solicitadas, mas havia algo
sobre os e-mails do periódico WikiLeaks que chamou minha atenção.
Às vezes, vinha anexada aos e-mails uma boa história. Ou um documento que,
quando examinado com mais cuidado, se revelava pouco impressionante. Num
dia chegava uma diatribe contra um jornalista em particular – ou contra a
covardia mercenária dos grandes veículos de comunicação de modo geral. No
outro, o tal Assange se mostrava satisfeito com algo que fizéramos ou divagava a
respeito de sua vida em Nairóbi.
Na Grã-Bretanha, o The Guardian foi, por muitos meses, o único jornal a
escrever sobre o WikiLeaks ou a usar algum dos documentos que eles estavam
revelando. Em agosto de 2007, por exemplo, publicamos um incrível relatório
confidencial da Kroll, que supostamente provava que o ex-presidente Daniel
arap Moi desviara centenas de milhões de libras e as escondera em contas
bancárias estrangeiras em mais de trinta países. Era uma história incrível de
todos os pontos de vista. E o tal Assange, fosse quem fosse, era alguém que não
se devia perder de vista.
Embora desconhecido de grande parte do mundo, Julian Assange estava se
tornando um pioneiro muito interessante e singular no uso de tecnologias digitais
para desafiar Estados autoritários e corruptos. Não é provável que o nome dele
significasse algo para Hillary Clinton na época – ou mesmo em janeiro de 2010,
quando, como secretária de Estado, ela fez um discurso sobre o potencial do que
chamara de “um novo sistema nervoso para o planeta”.
Ela descreveu uma visão das publicações digitais semiclandestinas – “o
samizdat dos nossos dias” –, que estavam começando a defender a transparência
e a desafiar a antiga ordem autocrática e corrupta mundial. Mas também advertiu
que governos repressivos passariam a “mirar os pensadores independentes que
usam tais ferramentas”. Ela se referia a regimes como o Irã.
Suas palavras sobre o futuro dessas corajosas publicações clandestinas bem
poderiam ser aplicadas ao estranho e ingênuo hacker australiano, que
desenvolvia em silêncio métodos para publicar segredos mundiais sem correr o
risco de ataques legais ou tecnológicos.
Ao fazer o discurso tão elogiado, a sra. Clinton não podia imaginar que, no
período de um ano, faria outra declaração sobre quem divulgava documentos
confidenciais – dessa vez, atacando diretamente pessoas que usavam as mídias
eletrônicas para defender a transparência. E chegou a afirmar, numa conferência
do Departamento de Estado organizada às pressas em novembro de 2010, que
aquilo era “não apenas um ataque aos interesses da política estrangeira dos
Estados Unidos, mas um ataque à comunidade internacional”. No intervalo de
onze meses, Assange tornara-se viral. Ele acabara de ajudar a orquestrar o maior
vazamento de informações na história do mundo – só que agora deixara em
maus lençóis não uma nação pobre do leste africano, mas o país mais poderoso
do planeta.
É esta história que este livro se propõe a contar: a transformação do hacker
anônimo numa das pessoas mais polêmicas do mundo – um homem, por um
lado, insultado, procurado, preso e marginalizado e, por outro, louvado e tratado
como celebridade.
Em apenas alguns anos, Assange foi catapultado da obscura vida em Nairóbi –
onde divulgava informações com as quais ninguém se importava muito – à
publicação de uma imensa quantidade de documentos confidenciais que
atingiram o coração das operações militares e da política estrangeira norte-
americanas, passando subitamente de figura marginal, convidada a participar de
debates em modestas conferências sobre tecnologia, a inimigo público número 1
dos Estados Unidos. Considerado por alguns um messias das novas mídias, para
outros ele é um ciberterrorista. Como se já não fosse suficientemente dramático,
no meio disso tudo duas mulheres na Suécia o acusaram de estupro. Em outras
palavras, parece mentira, mas é tudo verdade.
Depois de deixar Nairóbi, as ambições de Assange cresceram na escala e no
potencial do WikiLeaks. Na companhia de outros hackers, ele desenvolveu uma
filosofia de transparência. Ele e alguns colegas especialistas em tecnologia já
haviam obtido êxito em um dos objetivos: tornar o WikiLeaks virtualmente
indestrutível e, portanto, a salvo de ataques legais ou cibernéticos de qualquer
jurisdição ou fonte. Advogados, que recebiam somas exorbitantes para proteger
a reputação de clientes e corporações ricos, admitiam – em tons mesclados de
frustração e admiração – que o WikiLeaks era o único meio de comunicação do
mundo que eles não podiam silenciar. Era muito ruim para os negócios.
No The Guardian, tínhamos razões para observar a ascensão do WikiLeaks
com grande interesse e algum respeito. Em dois casos – envolvendo o Banco
Barclays e a Trafigura –, o site acabou hospedando documentos que os tribunais
britânicos haviam decidido manter em segredo de justiça. Houve um período
difícil em 2008-2009, quando a Suprema Corte, em Londres, começou não
apenas a banir a publicação de documentos de elevado interesse público, mas
simultaneamente a impedir que se mencionasse a existência das ações judiciais e
das partes nelas envolvidas. Uma firma de advocacia foi longe demais ao tentar
estender a proibição à menção de discussões parlamentares que citavam o
material encontrado no site do WikiLeaks.
Graças a esse novo fenômeno de publicação, os juízes estavam tão confusos
quanto as corporações globais. Numa audiência em março de 2009, a Suprema
Corte, em Londres, decidiu que ninguém estava autorizado a imprimir
documentos que revelassem as estratégias de evasão fiscal do Barclays – embora
eles estivessem disponíveis para leitura no website do WikiLeaks. A decisão do
juiz pareceu um pouco ridícula.
Mas essa nova forma de publicação indestrutível trazia à tona algumas
questões difíceis. Para cada Trafigura, poderia haver outros casos em que o
WikiLeaks pudesse ser usado para lesar ou destruir alguém. Isso fez de Assange
uma figura muito poderosa. O fato de que houvesse reclamações entre os colegas
sobre seu estilo autocrático e reticente não diminuía os temores sobre esse barão
da nova mídia. Perguntas continuavam sendo feitas: Quem era aquela figura
sombria “brincando de Deus”? Como ele e sua equipe podiam ter certeza da
autenticidade de um documento específico? Quem determinava o contexto ético
que estabelecia que informações deveriam ser publicadas ou não? Tudo isso
significava que Assange desempenhava, em muitos aspectos – talvez até mais do
que ele gostaria –, uma função não muito distinta daquela de um editor
convencional.
Como este livro narra, a espetacular aparição do WikiLeaks diante dos olhos e
na imaginação de um público mundial mais amplo começou com um encontro
em junho de 2010 entre Nick Davies, do The Guardian, e Assange. Davies o
procurou depois de ler os primeiros relatos que davam conta do vazamento de
uma imensa coleção de documentos diplomáticos e militares. O jornalista queria
convencer Assange de que aquela história teria mais impacto e significado se ele
estivesse disposto a se aliar a um ou dois jornais – por mais tradicionais,
covardes ou parciais que parecêssemos aos olhos de alguns hackers.
Um acordo foi fechado, e assim nasceu uma colaboração única entre
(inicialmente) três jornais, o misterioso nômade australiano e o que quer que sua
indefinida organização, o WikiLeaks, realmente fosse. Isso nunca ficou muito
claro. Assange, no melhor dos casos, era difícil de ser contatado, pois mudava o
número do celular, os endereços de e-mail e de salas de bate-papo criptografadas
como mudava de lugar. Ocasionalmente, apareceria com outro colega – um
jornalista, um hacker, um advogado ou um ajudante sem função definida –, mas
frequentemente viajava sozinho. Nunca estava muito claro em que fuso horário
ele se encontrava. A diferença entre dia e noite – uma importante consideração
para a maior parte dos seres vivos – parecia de pouco interesse para ele.
O que começava agora era uma operação jornalística bastante tradicional,
apesar de usar habilidades de análise e visualização de dados desconhecidas das
redações até recentemente. David Leigh, o editor investigativo do The Guardian,
passou o verão lendo vorazmente todo o material. O editor assistente do jornal,
Ian Katz, começou a unir forças mais amplas. Equipes foram reunidas em
diversos cantos dos escritórios do The Guardian, em Londres, para dar sentido
ao vasto estoque de informações. Equipes semelhantes foram reunidas em Nova
York e Hamburgo – e, mais tarde, em Madri e Paris.
A primeira coisa a fazer era construir um mecanismo de busca que pudesse
tornar os dados coerentes – e a próxima era trazer correspondentes estrangeiros e
analistas de relações exteriores com conhecimento detalhado dos conflitos no
Afeganistão e no Iraque. A peça final da empreitada jornalística foi introduzir
um procedimento de redação, de modo que nada que publicássemos pudesse
expor fontes vulneráveis ou comprometer operações especiais ativas. Tudo isso
demandou muito tempo, esforço, recursos e energia. Dar coerência aos arquivos
não foi tarefa fácil. Há pouquíssimos paralelos nos anais do jornalismo – se é
que há algum –, nos quais uma organização noticiosa tenha precisado lidar com
uma base de dados tão vasta. Estimamos que fossem aproximadamente trezentos
milhões de palavras (comparativamente, os Papéis do Pentágono, publicados
pelo The New York Times em 1971, chegaram a 2,5 milhões de palavras). Uma
vez editados, os documentos foram divididos entre os (no fim das contas) cinco
jornais e enviados ao WikiLeaks, que aceitou todos os textos.
A amplitude do processo de edição e a extensão relativamente limitada da
publicação dos telegramas foram aparentemente negligenciadas por muitos
comentaristas – incluindo importantes jornalistas norte-americanos –, que
falavam de modo depreciativo de uma “divulgação em massa” leviana de
telegramas e do consequente risco à vida. Mas até o presente não houve
nenhuma “divulgação em massa”. Pouco mais de dois mil dos 250 mil
telegramas diplomáticos foram publicados, e, seis meses após a primeira
publicação dos diários de guerra, ninguém foi capaz de comprovar algum dano à
vida ou à integridade física.
É impossível escrever esta história sem contar a história do próprio Assange,
embora a questão mais ampla do WikiLeaks e da filosofia que o site representa
seja de maior importância. Mais de um jornalista já o comparou a John Wilkes, o
dissoluto parlamentar e editor do século XVIII que arriscou a vida e a liberdade
em diversas lutas pela liberdade de expressão. Outros o compararam a Daniel
Ellsberg, a fonte do vazamento dos Papéis do Pentágono, descrito pelo ex-editor
executivo do The New York Times, Max Frankel, como “um homem de intelecto
incisivo e dissimulado e de temperamento volátil”.
Os veículos de comunicação e o público se dividiram entre os que viam
Assange como um novo tipo de cibermessias e os que o consideravam um vilão
de James Bond. Cada extremo projetava sobre ele poderes sobre-humanos, para
o bem ou para o mal. O roteiro se tornou ainda mais confuso em dezembro,
quando, como parte das condições para sua fiança, Assange precisou ir viver em
Ellingham Hall, uma mansão em estilo georgiano construída em centenas de
acres, na paisagem rural de Suffolk. Era como se uma história de Stieg Larsson
tivesse sido transformada em um drama de época.
Poucas pessoas parecem considerar Assange um homem de fácil colaboração.
O colunista de mídia da revista Slate, Jack Shafer, captou muito bem seu caráter
neste breve perfil:
Assange atormenta os jornalistas que trabalham com ele porque se recusa a se conformar a qualquer
papel que esperam que ele desempenhe. Age como uma fonte de vazamento quando é conveniente. E se
disfarça de editor ou representante de agência de notícias quando lhe é vantajoso. Como um relações-
públicas, manipula organizações noticiosas para maximizar a publicidade para seus “clientes”, ou,
quando é desafiado, ameaça jogar bombas de informação, como um agente infiltrado. É alguém astuto
que está sempre se metamorfoseando e não consegue ficar parado; um negociador imprevisível, sempre
mudando os termos do acordo.

Certamente tivemos momentos de dificuldade e tensão no decurso de nosso


empreendimento conjunto, os quais foram causados tanto pelas dificuldades de
comunicação aberta e regular quanto pelo status de Assange como uma mistura
confusa de fonte, intermediário e editor. Mensagens instantâneas criptografadas
não substituem o diálogo. E enquanto Assange era certamente a fonte principal
dos documentos, de maneira alguma era uma fonte convencional – ele não era a
fonte original e muito menos confidencial. Nos últimos tempos, deixara de ser
até mesmo a única fonte. Ele era, no mínimo, uma nova espécie de editor-
intermediário – um papel algumas vezes desconfortável, no qual ele buscava
manter certo grau de controle sobre o material da fonte (e até uma forma de
“propriedade”, complementada por ameaças de processos por perdas
financeiras). Quando, para a fúria de Assange, o WikiLeaks deu origem a um
vazamento, a ironia da situação foi quase cômica. As questões éticas envolvidas
no novo status de editor/fonte tornaram-se ainda mais complicadas quando nos
foi sugerido que devíamos alguma forma de proteção a Assange – na qualidade
de “fonte” – e por isso não investigássemos tão a fundo as acusações de assédio
sexual levantadas contra ele na Suécia. Mas esse não nos pareceu um argumento
convincente, embora houvesse aqueles – não é exagero chamá-los de
“discípulos” – que não estavam dispostos a imaginar nenhuma história além da
difamação.
Essas rusgas foram em grande parte superadas – às vezes com uma taça de
vinho ou indo ao encontro do extraordinário apetite de Assange por conversas
exaustivas e exigentes do ponto de vista intelectual. Como o texto de Sarah
Ellison na revista Vanity Fair concluiu sobre o tema: “Quaisquer que fossem as
diferenças, os resultados foram extraordinários. Dados o alcance, a profundidade
e a precisão dos vazamentos, essa colaboração produziu, sob todos os aspectos,
um dos maiores furos jornalísticos dos últimos trinta anos”.
O desafio que o WikiLeaks representou para os veículos de comunicação de
modo geral (sem falar nos Estados, empresas ou corporações globais sujeitos ao
escrutínio indesejado) não era confortável. O instinto inicial do site era publicar
quase tudo e, no início, eles estavam profundamente desconfiados de qualquer
contato entre seus colegas nos jornais e qualquer tipo de autoridade. Falar com o
Departamento de Estado, o Pentágono ou a Casa Branca, como o The New York
Times fez antes de cada etapa da publicação, era um campo minado em termos
da manutenção de uma relação tranquila com o WikiLeaks. Na época da
publicação do Cablegate, o próprio Assange, consciente dos riscos de causar
danos não intencionais aos dissidentes ou a outras fontes, ofereceu-se para falar
com o Departamento de Estado – oferta que foi recusada.
De modo geral, parece-me que o WikiLeaks e organizações semelhantes são
admiráveis em sua visão obstinada da transparência e da abertura. Notável é
como o céu não caiu, apesar da enorme quantidade de informação liberada
durante meses. Os inimigos do WikiLeaks fizeram repetidas declarações sobre
os danos causados pela divulgação do material. A julgar pela resposta que
tivemos de países sem as vantagens de uma imprensa livre, houve uma
considerável sede pelas informações dos telegramas – uma fome de
conhecimento, que contrastava com os ocasionais bocejos bem informados de
pessoas sofisticadas das metrópoles que insistiam em dizer que os telegramas
não traziam nenhuma novidade. Em vez de uma reação instintiva por mais sigilo,
essa poderia ser a oportunidade para refletir sobre as vantagens e desvantagens
da transparência forçada.
Essa abordagem – uma avaliação racional de novas formas de transparência –
deveria acompanhar o questionamento inevitável de como o governo norte-
americano pode ter permitido que considerações privadas de reis, presidentes e
dissidentes fossem lidas tão facilmente por quem quer que tenha decidido passá-
las ao WikiLeaks.
Cada organização jornalística tratou das questões éticas envolvidas nessa
história – e na decisão geral de publicá-la – de modo diferente. Fiquei
interessado, poucos dias depois do início da divulgação do Cablegate, ao receber
um e-mail de Max Frankel, que supervisionou a defesa do New York Times no
caso dos Papéis do Pentágono, quarenta anos atrás. Hoje com 80 anos, ele me
enviou um memorando que escrevera ao ombudsman do The New York Times. É
interessante citá-lo como um conselho conciso e sábio para as futuras gerações,
que podem muito bem ter de lidar com tais questões no futuro:
1. Minha opinião quase sempre foi de que a informação que quer sair vai sair; nossa função é recebê-la
com responsabilidade e publicá-la ou não de acordo com nossos padrões noticiosos invariáveis.
2. Se a fonte ou o informante violar seu juramento ou a legislação, deveríamos deixar às autoridades a
tentativa de fazer cumprir a legislação ou o juramento, sem nossa colaboração. Rejeitamos colaboração
ou a revelação de nossas fontes pela principal razão de que todas as fontes merecem ser protegidas por
nós. No entanto, é parte de nossa obrigação revelar qualquer tendenciosidade ou objetivo aparente das
pessoas que vazam ou revelam informações.
3. Se certas informações parecem desafiar os padrões proclamados pela Suprema Corte no caso dos
Papéis do Pentágono – isto é, de que a publicação causará dano direto, imediato e irreparável –, temos a
obrigação de limitar a publicação adequadamente. Na dúvida, devemos dar à autoridade apropriada a
chance de nos persuadir de que tal perigo direto e imediato existe. (Veja nosso atraso de 24 horas na
revelação dos mísseis soviéticos em Cuba, tal como descrevi em minha autobiografia, ou o atraso em
informar aviões perdidos em combate até que os pilotos possam, talvez, ser resgatados.)
4. Sempre acreditei que ninguém pode prever seguramente as consequências da publicação de todos os
tipos de informações. Os Papéis do Pentágono, contrariamente ao desejo de Ellsberg, não abreviaram a
Guerra do Vietnã nem provocaram protesto adicional significativo. Uma determinada divulgação pode
constranger governos, mas melhorar políticas, ou pode ser um vazamento do próprio governo e acabar
prejudicando a política. “Publique e seja amaldiçoado”, como costumava dizer Scotty Reston; parece
terrível, mas, como lema jornalístico, isso tem servido muito bem à sociedade através da história.

Há muitos tratados mais longos sobre ética no jornalismo que dizem menos.
Uma das lições do projeto WikiLeaks é a de ter demonstrado as possibilidades
de colaboração. É difícil pensar em exemplos comparáveis de organizações
noticiosas trabalhando juntas do modo como o The Guardian, o The New York
Times, a Der Spiegel, o Le Monde e o El País trabalharam no projeto WikiLeaks.
Acredito que nós, os cinco editores, gostaríamos de imaginar modos pelos quais
pudéssemos aproveitar nossos recursos novamente.
Mas a história ainda não acabou. No Reino Unido, houve apenas críticas
furtivas ao The Guardian por publicar os vazamentos, embora essa reserva nem
sempre tenha se estendido ao próprio WikiLeaks. A maioria dos jornalistas pôde
ver o claro valor público na natureza do material publicado.
Parece ter sido outra a história nos Estados Unidos, onde houve uma discussão
mais amarga e sectária, obscurecida por ideias distintas de patriotismo. Foi
espantoso sentar em Londres e ler que figuras razoavelmente conhecidas nos
Estados Unidos pediam o assassinato de Assange pelo que ele desencadeara. Foi
surpreendente ver a relutância difundida entre os jornalistas americanos em
apoiar a ideia geral e o trabalho do WikiLeaks. Para alguns, a questão se resumia
simplesmente à relutância em admitir que Assange era um jornalista.
É interessante especular se essa atitude mudaria caso Assange fosse processado
pelos vazamentos. No início de 2011, houve sinais de crescente frustração por
parte das autoridades governamentais norte-americanas na tentativa de varrer o
mundo em busca de evidências a ser usadas contra ele, incluindo a liminar para
obtenção de detalhes das contas do Twitter. Mas também houve, entre as mentes
legais mais moderadas, a avaliação de que era virtualmente impossível processar
Assange pelo ato de publicar os diários de guerra ou os telegramas do
Departamento de Estado sem também pôr cinco editores no banco dos réus. Esse
seria o caso midiático do século.
E, claro, ainda não ouvimos um relato sem intermediários do homem que
supostamente é a verdadeira fonte do material, Bradley Manning, um soldado
raso norte-americano de 23 anos. Até que isso ocorra, nenhuma história
completa do vazamento que mudou o mundo pode ser realmente escrita. Mas
este é um primeiro capítulo fascinante numa história que, suspeita-se, continuará
a interessar as pessoas por muito tempo.

Londres, 1º de fevereiro de 2011


ALAN RUSBRIDGER, EDITOR DO THE GUARDIAN
1

A caça
Ellingham Hall, Norfolk, Inglaterra
NOVEMBRO DE 2010

“Você não imagina como ele estava ridículo.”

– JAMES BALL, WIKILEAKS

LHANDO À MEIA-LUZ da noite londrina, aquela silhueta poderia passar por


O uma mulher. Ela apareceu cautelosamente na entrada e curvou-se para
dentro de um carro vermelho batido. Havia alguns acompanhantes, entre eles um
homem de traços nórdicos com expressão séria e dois jovens com cara de nerd.
Um deles pareceu ter entregado um casaco à senhora. O carro passou pelo
tráfego tranquilo de Paddington e rumou para o norte, na direção de Cambridge.
Enquanto seguiam para a autoestrada M11, os ocupantes olhavam para trás. Não
havia sinais evidentes de estarem sendo seguidos, mesmo assim, de quando em
quando paravam no acostamento e esperavam, com as luzes apagadas, no escuro.
Aparentemente sem ser detectado, o grupo rumou na direção leste pela lenta
rodovia A143. Às dez horas da noite, já haviam chegado às planícies de East
Anglia, uma paisagem em tons de sépia em que uma fábrica de açúcar
abandonada se destacava na escuridão.
Cerca de 25 quilômetros para o interior, na desconhecida vila de Ellingham,
finalmente viraram à esquerda. O carro desviou para uma entrada de veículos e
passou por um antigo pombal, antes de parar em frente a uma mansão em estilo
georgiano. A mulher desceu do carro. Havia algo de estranho nela, tinha uma
espécie de corcunda. Se um agente da CIA ou outro observador estivesse
escondido no bosque com os faisões, também poderia ter experimentado um
momento de perplexidade.
Olhando de perto, no entanto, era óbvio que a estranha figura era Julian
Assange, com o cabelo platinado oculto por uma peruca. Com mais de 1,80
metro, dificilmente ele poderia se passar por uma mulher. “Você não imagina
como ele estava ridículo”, disse James Ball, membro da equipe. “Ele ficou
vestido como uma senhora por mais de duas horas!”
Assange decidira trocar de sexo numa tentativa teatral de fugir de possíveis
perseguidores. Com ele, também estavam sua jovem assistente, Sarah Harrison,
e o porta-voz do WikiLeaks, o jornalista islandês Kristinn Hrafnsson. Naquela
noite, essa pequena equipe era o núcleo do WikiLeaks, o website que Assange
criara havia quatro anos e que revelava informações confidenciais.
Em um curtíssimo período de tempo, o WikiLeaks saíra de sua posição anterior
– de website radical e obscuro – para se tornar uma plataforma de notícias online
conhecida mundialmente. Assange publicara material vazado mostrando pilotos
de helicóptero norte-americanos em pleno voo executando dois funcionários da
Reuters em Bagdá, aparentemente como se estivessem jogando videogame. E
outra proeza sucedera a esta, causando ainda mais sensação: um acordo sem
precedentes com os jornais – intermediado pelo The Guardian, em Londres –
para revelar centenas de milhares de relatórios de campo secretos, redigidos por
militares norte-americanos nas guerras do Afeganistão e do Iraque – muitos
deles incriminadores.
Assange, um australiano de 39 anos, era um hacker genial. Ele sabia ser
sedutor, fazer graça mantendo-se impassível e ainda ser espirituoso. Mas
também podia se enfurecer facilmente, explodindo em xingamentos e críticas. O
temperamento inconstante de Assange lhe rendia fãs e inimigos, defensores e
adversários, algumas vezes na mesma pessoa. Messias da informação ou
ciberterrorista? Defensor da liberdade ou sociopata? Protetor da moral ou
narcisista iludido? O debate em torno de Assange repercutiria nas semanas
seguintes em manchetes do mundo todo.
Assange e sua equipe tinham chegado a Ellingham vindos do Frontline Club,
um local frequentado por correspondentes estrangeiros e outros tipos dos
veículos de comunicação na parte oeste de Londres. Desde julho, com a
divulgação dos diários da Guerra do Afeganistão, Assange dormia, de vez em
quando, nas acomodações do clube, em Southwick Mews. O fundador do clube,
Vaughan Smith, tornara-se simpatizante e aliado, e convidara Assange e seu
grupo para se hospedarem em sua residência ancestral – Ellingham Hall –,
escondida num recanto afastado de East Anglia. E os improváveis refugiados
acabavam de chegar.
Smith fora capitão dos Granadeiros, um regimento de elite do exército
britânico, e decidira tornar-se repórter de televisão freelance na Frontline TV.
Suas aventuras em zonas de guerra – no Iraque, durante a primeira Guerra do
Golfo, onde se disfarçou de oficial do exército britânico; na Bósnia, com os
massacres e os horrores; no Afeganistão e novamente no Iraque – indicavam um
espírito de independência pouco ortodoxo. Smith não era um anarquista. Sua
família servira no exército britânico por várias gerações. E seu jornal preferido
era o mal-humorado e conservador periódico britânico Daily Telegraph. Smith
também era corajoso. Em Kosovo, uma bala mortal se alojou em seu telefone
celular, salvando-lhe a vida.
Mas, em comum com outros libertários de direita, ele tinha um obstinado senso
de justiça e acreditava em defender os mais fracos. Nesse caso, isso significava o
próprio Assange, que se tornara uma figura odiosa para a hostil direita norte-
americana. Eles o queriam preso. Alguns pediam sua cabeça. Smith apoiou
amplamente a cruzada de Assange por transparência num momento em que –
como ele mesmo percebera – o jornalismo se aproximava perigosamente do
governo e corria o risco de se tornar meras relações públicas.
Quando Assange se estabeleceu em Ellingham Hall para trabalhar, moravam
na mansão Pranvera Shema – a esposa de Smith, nascida em Kosovo – e seus
dois filhos pequenos, de 2 e 5 anos. Suas bicicletas estavam paradas do lado de
fora da imponente entrada da residência. Também se encontravam lá os
abastados pais de Vaughan. O pai também servira nos Granadeiros; um retrato
dele como jovem oficial numa túnica vermelha estava pendurado na sala de
jantar. Smith pai podia ser visto segurando uma bolsa branca, uma discreta
referência a sua carreira como mensageiro da rainha. A função incluía viajar pelo
mundo a serviço dos negócios de Sua Majestade, carregando segredos
diplomáticos. Parecia claro que Smith pai desaprovava Assange, que, acreditava-
se, estava na posse de um número assustadoramente grande de mensagens
diplomáticas secretas.
Smith pai responsabilizava-se pela patrulha da propriedade – com seus lagos
gêmeos e seus cedros – armado com um rifle, integrado a uma mira camuflada.
Normalmente, ele atirava em perdizes e tetrazes. No entanto, atirar nos
paparazzi que em breve acampariam do lado de fora da mansão – ou mesmo nos
radicais sujos dentro dela – deve ter sido uma enorme tentação. Ao lhe
perguntarem, dois dias antes do Natal, se ele estava gostando de ser o anfitrião
dos informantes internacionais que se encontravam na residência, respondeu,
cerrando os dentes: “Preferia que não estivessem aqui”. Essa foi uma das muitas
ironias que apimentariam semanas tensas.
Entre os WikiLeakers em Ellingham estava James Ball, de 24 anos, que fora
recrutado por Assange e era um dos poucos colaboradores que recebia salário. O
talento de Ball era lidar com grandes conjuntos de dados. Ele era um jovem
tranquilo, mas estava passando por uma experiência vertiginosa. Em poucos
meses, deixara o trabalho como repórter da revista especializada em varejo
Grocer para se tornar porta-voz do WikiLeaks e até discutir com o diplomata
norte-americano John Negroponte no programa televisivo Hardtalk, da BBC
World. A primeira tarefa de Ball era urgente: dirigir-se até Norwich, a
aproximadamente 25 quilômetros dali, e ir a uma filial da loja de departamentos
John Lewis em busca de equipamento técnico. Ele saiu, carregando milhares de
libras em dinheiro (a moeda de troca preferida de Assange), e voltou com vários
laptops, um roteador e alguns cabos – deixando um confuso vendedor atrás de si.
“Você já tentou gastar mil libras em dinheiro na John Lewis? Sinceramente, o
vendedor parecia apavorado diante das notas de cinquenta libras”, ponderou
Ball. “Foi uma experiência surreal!”
A equipe começou a montar uma identidade anônima na internet. A conexão
fora pensada para dar a impressão eletrônica de que a equipe do WikiLeaks,
instalada na Inglaterra rural, estava, na verdade, estabelecida na Suécia. A
preocupação com a segurança era crucial: acreditava-se que o WikiLeaks era um
alvo permanente da vigilância norte-americana e de ciberataques potencialmente
prejudiciais. Nos deslocamentos fora da mansão, a equipe se valia das mesmas
técnicas de contravigilância empregadas durante a viagem a Norfolk. Isso era
prudente. Mas também significava que, algumas vezes, Ball era deixado horas a
fio parado em estradas secundárias e outros pontos de encontro gelados,
aguardando uma carona.
Protegido em uma grande sala de estar decorada com uma lareira e mais
retratos dos ancestrais de Vaughan Smith, Assange tinha muito trabalho a fazer.
Normalmente, ele passava de dezesseis a dezoito horas por dia diante do laptop,
e algumas vezes ficava acordado por 48 horas antes de dormir no chão. Outros
membros da equipe do WikiLeaks o acordavam e o levavam até os quartos do
andar de cima. Ele dormia por algumas horas e depois continuava. O ciclo de
Assange era noturno, e ele costumava estar no auge entre três e quatro horas da
manhã.
“Era mais fácil fazer as coisas à noite, quando, algumas vezes, você podia ter a
atenção de Julian. Ele é capaz de ignorar alguém durante cinco minutos, mesmo
se o estiverem chamando: ‘Julian! Julian!’”, declarou Ball. Outros associados do
WikiLeaks – Sarah Harrison e Joseph Farrell, ambos estagiários de jornalismo –
cuidavam dos e-mails e da agenda dele.
Assange considerava sua função a de um coordenador. Sua tarefa era
monitorar a vasta pegada do WikiLeaks no ciberespaço e entrar em contato com
os colaboradores da organização em outras jurisdições e fusos horários. Como
observou Smith: “Ele é obcecado pelo trabalho. Julian precisa entender o que
está sendo escrito sobre o WikiLeaks e a história. E ele descreve isso como
monitoramento da temperatura”.
À direita da lareira, havia um impressionante retrato do trisavô de Vaughan
Smith – o “Tiger” Smith. Ele conquistara o apelido depois de matar 99 tigres,
trazendo muitos deles consigo para Ellingham Hall. Dois animais empalhados
estavam em caixas de vidro; outros haviam sido descartados depois de
apodrecer. O saguão de entrada era decorado com sabres cruzados, rifles antigos
com baionetas e outras recordações de conflitos coloniais esquecidos. Havia uma
cabeça de cervo empalhada, um par de galhadas e uma enorme pintura
representando dois cervos indo furiosamente ao encontro um do outro, sobre um
estranho pano de fundo pistache. Se um diretor de cinema americano quisesse
selecionar a construção rural inglesa perfeita para um filme de época,
dificilmente escolheria lugar melhor que Ellingham.
A equipe do WikiLeaks rapidamente se adaptou aos rituais da vida rural
inglesa. Ellingham Hall tinha uma governanta; havia uma cozinha com uma
mesa central quadrada, onde os empregados faziam as refeições; pedaços de
carne e salsichas ficavam empilhados numa caixa de papelão. A propriedade
tinha uma plantação orgânica (cuja produção também era servida no restaurante
do Frontline Club, em Londres). Vaughan Smith tinha uma adega razoável – o
conteúdo fora selecionado pelo antigo crítico de vinhos do The Guardian,
Malcolm Gluck. Na hora das refeições, Assange e seus colaboradores sentavam-
se na esplêndida sala de jantar, a uma respeitável mesa circular. E tomavam
vinho do Porto – passado para o lado esquerdo pelos ciber-radicais, de acordo
com a convenção inglesa. Assange insistia que ninguém bebesse mais de uma
taça por noite, forçando os companheiros a fazer acordos com o pessoal da
cozinha.
Os hábitos de Assange eram ascéticos – ele quase não se preocupava com o
que comia. Seu alheamento estendia-se ao guarda-roupa. Ele parecia não ter
roupas próprias. Em determinado momento, a equipe do WikiLeaks decidiu que
Assange precisava sair de sua proteção e fazer um pouco de exercício.
Compraram-lhe uma camiseta vermelha da Adidas. Uma vez ao dia, Assange
deveria correr no parque público – um lampejo de luminosidade numa paleta de
cores rurais, com marrons e verdes. Em pouco tempo, Smith converteria
Assange nas tonalidades mais suaves de um cavalheiro rural, emprestando-lhe a
parca verde e o casaco de tweed com bolsos assimétricos que usara como um
alinhado jovem de 19 anos. Assange também tentaria pescar.
No mundo exterior, poucas pessoas imaginariam o que realmente estava
acontecendo no interior das elevadas janelas salientes de Ellingham Hall.
Assange decidira se esconder como uma raposa porque estava preparando, com
o The Guardian e quatro outros grandes jornais internacionais, a publicação do
mais espetacular vazamento da história. Ele confidenciou que estava um pouco
assustado. Jamais houvera algo assim, nem mesmo os Papéis do Pentágono – a
publicação do relatório secreto sobre a guerra norte-americana no Vietnã –,
quase quarenta anos antes. Em determinado momento, a caçada local soou pelas
dependências de Ellingham Hall: cães e caçadores precipitavam-se pelos
bosques de Spion Kop. Era esse o tipo de caçada na qual Assange sentia que
estava metido. Seria ele também um animal perseguido, com promotores
públicos e agentes da inteligência norte-americana cavalgando ao som de uma
corneta e aproximando-se cada vez mais, como os caçadores de casaco
vermelho?
Notas

* Cuidado, em alemão no original. (N. da T.)


* “Wank”, em inglês, também significa masturbar-se. (N. da T.)
4

A ascensão do WikiLeaks
Congresso anual do Chaos Computer Club,
Alexanderplatz, Berlim
DEZEMBRO DE 2007

“Como você revela coisas sobre pessoas poderosas


sem levar um pé na bunda?”

– BEN LAURIE, ESPECIALISTA EM CRIPTOGRAFIA

ULIAN ASSANGE pode ser visto no vídeo da conferência cumprimentando a


J todos entusiasticamente com os punhos cerrados. Perto dele, está um
homem magro e com ar sério. É o programador alemão Daniel Domscheit-Berg,
que acabara de conhecer Assange no 24º Congresso Chaos de Comunicação – o
encontro dos hackers europeus – e estava prestes a se tornar um colaborador-
chave. Em pouco tempo, Domscheit-Berg largaria o emprego em tempo integral
na EDS, gigante norte-americana de computadores, e se dedicaria a aperfeiçoar a
arquitetura técnica do WikiLeaks, adotando o nome de guerra “Daniel Schmitt”.
A amizade de Domscheit-Berg e Assange acabaria numa amarga troca de
acusações, mas a relação entre os dois marcou uma fase decisiva na saída do
hacker australiano do casulo do meio estudantil de Melbourne. “Alguns amigos
me falaram sobre o WikiLeaks no fim de 2007”, diz Domscheit-Berg. “Comecei
a ler um pouco mais sobre ele e a entender o valor de um projeto como esse para
a sociedade.”
O Chaos Computer Club é um dos maiores e mais antigos grupos de hackers
do mundo. Um dos cofundadores, em 1981, foi o visionário hacker Herwart
“Wau” Holland-Moritz, cujos amigos criaram a Fundação Wau Holland após sua
morte. A instituição tornou-se um canal importante na coleta de doações para o
WikiLeaks em todo o mundo. Os membros do Chaos Computer Club no
congresso em Berlim, como Domscheit-Berg e o colega holandês Rop
Gonggrijp, tinham talentos que se mostraram decisivos no desenvolvimento do
projeto de guerrilha de Assange (embora o próprio Assange, mais tarde, tenha
tentado rejeitar o rótulo de hacker. Numa conferência em Oxford, ele disse que
“hackear” agora era considerado uma atividade “na maioria das vezes usada pela
máfia russa para roubar os dados bancários das vovozinhas. Por isso, a expressão
não é mais tão agradável quanto costumava ser”).
Domscheit-Berg estava entusiasmado com o idealismo social e recitava o
mantra dos hackers de que a informação deveria ser livre. “Qual a sua atitude em
relação à sociedade?”, provocaria mais tarde. “Você olha para o que está aí e
aceita como se fosse uma dádiva de Deus, ou vê a sociedade como algo onde
identifica um problema e então procura uma solução criativa? [...] Você é um
espectador ou participa ativamente da sociedade?”
Ele e Assange queriam desenvolver refúgios físicos para os servidores do
WikiLeaks em todo o mundo. Domscheit-Berg estimulava os colegas hackers
em Berlim, convidando-os a identificar países que poderiam ser usados como
bases do WikiLeaks: “Muitos países no mundo de hoje não têm mais uma
legislação forte para os meios de comunicação. Mas alguns países, como a
Bélgica, os Estados Unidos, com a primeira emenda, e a Suécia em particular,
têm uma forte legislação de proteção à mídia e ao trabalho de jornalistas
investigativos ou generalistas. Portanto, se houver suecos por aqui, vocês têm
que garantir que seu país [continue sendo] uma das fortalezas da liberdade de
expressão”.
A Suécia acabou se tornando o porto seguro dos que queriam vazar
informações confidenciais – ironicamente, considerando os problemas de
Assange com os hábitos e a moral dos suecos. Os hackers em Berlim tinham
ligações com o site dissidente sueco para compartilhamento de arquivos The
Pirate Bay. E dali a trilha conduzia a uma empresa de hospedagem na web
chamada PRQ, que proporcionou ao WikiLeaks uma face externa. Mikael
Viborg, o barbudo proprietário do provedor de acesso à internet, acabou
mostrando na tevê sueca a operação – localizada num modesto porão no
subúrbio de Estocolmo. “Primeiro, eles queriam passar o tráfego de informações
pelo provedor para desviá-lo de proibições nos locais em que não gostam do
WikiLeaks”, disse ele. “Mas depois puseram um servidor aqui.”
A PRQ oferece sigilo aos clientes. Eles dizem que seus sistemas evitam que
páginas de conversas online sejam grampeadas ou que se descubra quem enviou
o que para quem. “Nós oferecemos serviços anônimos e túneis VPN [virtual
private network, redes virtuais privadas]. O cliente se conecta ao servidor e baixa
as informações. Se alguém na fonte das informações tentar rastreá-lo, só chegará
até nós – e nós não divulgamos quem estava usando aquele número de IP
[protocolo de internet]. Aceitamos o que é considerado legal sob a legislação
sueca, independentemente de ser questionável, porque não fazemos juízos
morais.”
Essa atitude firme agradou a Domscheit-Berg: “A PRQ tem o histórico de ser o
provedor mais difícil de se encontrar no mundo. Não há ninguém que se
incomode menos com ameaças de advogados sobre o conteúdo hospedado”.
Os laptops do WikiLeaks têm criptografia em nível militar: se apreendidos, os
dados não podem ser lidos, nem mesmo diretamente no disco. O hacker
voluntário do WikiLeaks Jacob Appelbaum, de Seattle, afirma que destruiria
qualquer laptop que saísse de sua vista, por temer que ele fosse grampeado. Mas
ninguém da equipe se preocupa muito com as consequências de perder um
computador, porque as linhas de código para controlar o site são armazenadas
em computadores remotos sob seu controle – “em nuvens” –, e as senhas de
acesso são memorizadas.
Para as conversas internas, no dia a dia, o Skype – serviço de telefone via
internet, que também usa criptografia – é bastante popular. Como ele foi
desenvolvido na Suécia e não nos Estados Unidos, a equipe acredita que não
tenha uma backdoor através da qual a Agência de Segurança Norte-Americana
possa grampear as conversas.
Como o nome sugere, o WikiLeaks começou como um “wiki” – um site
editável pelos usuários (o que, algumas vezes, gerou confusão com a Wikipédia
– não há ligação entre eles). Mas Assange e os colegas rapidamente perceberam
que o conteúdo e a necessidade de remover informação perigosa ou
incriminatória tornavam esse modelo impraticável. Assange estava errado ao
acreditar que milhares de “jornalistas cidadãos” online estariam dispostos a
examinar os documentos publicados e descobrir se eram ou não genuínos.
Mas, apesar de as características “wiki” terem sido abandonadas, uma estrutura
que permite o envio anônimo de documentos vazados permanece no cerne do
WikiLeaks. O especialista em criptografia britânico Ben Laurie também foi
colaborador. Laurie, ex-matemático que vive na parte oeste de Londres e, entre
outras coisas, aluga abrigos à prova de bombas para hospedar servidores
comerciais de internet, conta que, quando Assange propôs pela primeira vez o
esquema para “uma agência de inteligência democrática de código aberto”,
pensou que fosse “balela”. Mas logo se convenceu, entusiasmou-se com o
projeto e o assessorou na parte de criptografia. “É uma questão técnica
interessante: Como você revela coisas sobre pessoas poderosas sem levar um pé
na bunda?”
Na forma atual, o WikiLeaks alega que não pode ser censurado nem rastreado.
Os documentos podem ser vazados em grande escala de um modo que “combina
a proteção e o anonimato de tecnologias de criptografia de ponta”. Assange e
colegas afirmam que usam OpenSSL (sistema de conexão segura de código
aberto, como os usados por varejistas online, como a Amazon), FreeNet (método
peer-to-peer de armazenamento de arquivos entre centenas ou milhares de
computadores, sem revelar a origem ou os proprietários) e PGP (programa de
criptografia de código aberto cuja sigla é a abreviação da expressão jocosa Pretty
Good Privacy – privacidade muito boa).
Mas o principal dispositivo de proteção ao anonimato é conhecido como Tor.
O WikiLeaks anuncia que “nenhum registro é mantido sobre o local em que o
arquivo foi carregado, o fuso horário, o navegador ou mesmo quando o envio foi
feito”. Trata-se de uma anonimização clássica via Tor.
As agências de inteligência norte-americanas consideram o Tor importante
para o trabalho de espionagem disfarçado e não ficaram satisfeitos ao vê-lo
usado para vazar os próprios segredos. Com o Tor, os envios podem ser
encobertos e as discussões internas podem ocorrer fora da vista de supostos
monitores. É um projeto do Laboratório de Pesquisa Naval dos Estados Unidos,
desenvolvido em 1995, que foi apropriado por hackers em todo o mundo. Ele
usa uma rede de cerca de dois mil servidores de computador voluntários no
mundo, através dos quais qualquer mensagem pode ser roteada, de modo
anônimo e não rastreável, via outros computadores Tor, até chegar a um receptor
fora da rede. O conceito-chave é o de que alguém de fora nunca será capaz de
associar o emissor e o receptor ao examinar os pacotes de dados.
Normalmente, isso não acontece com dados enviados online, em que cada
mensagem é dividida em “pacotes” que contêm informações sobre a fonte, o
destino e outros dados organizadores (por exemplo, onde o pacote se encaixa na
mensagem). Ao chegar ao destino, os pacotes são reunidos. Qualquer um que
monitore a conexão de internet do emissor ou do receptor verá o receptor e a
fonte da informação, mesmo se o conteúdo estiver criptografado. E, para quem
divulga informações confidenciais, isso pode ser um desastre.
O Tor introduz um nível de ofuscação inquebrável. Se Appelbaum, em Seattle,
quiser enviar uma mensagem para Domscheit-Berg, em Berlim, os dois precisam
executar o Tor em seus computadores. Appelbaum pode tomar a precaução de
criptografá-la primeiro, usando um sistema PGP gratuito. Então ele a envia
através do Tor. O programa cria outro canal criptografado roteado através dos
servidores Tor, usando alguns “nós” entre a rede mundial. A criptografia é em
camadas: à medida que a mensagem atravessa a rede, cada nó descasca uma
camada da criptografia, que indica qual nó deve enviar a carga útil para o
seguinte. Passagens sucessivas retiram mais criptografia, até que a mensagem
chegue ao limite da rede, onde sai com tanta criptografia quanto o original –
nesse caso, criptografado com o PGP.
Um observador externo em qualquer ponto da rede que tente interceptar a
informação não pode descriptografar o que foi enviado e só consegue ver um nó
anterior e um posterior. Portanto, monitorar as conexões do emissor ou do
receptor só vai mostrar uma transmissão entrando ou saindo de um nó do Tor – e
mais nada. Esse estilo “cebola” de criptografia, em camadas, deu origem ao
nome do procedimento: The Onion Router (O Roteador Cebola) – abreviado
para Tor.
O Tor também permite ao usuário criar “serviços ocultos”, como mensagens
instantâneas, que não podem ser vistos ao se grampear o tráfego nos servidores.
Eles são convenientemente acessados através de pseudodomínios de primeiro
nível, terminados em “.onion”. Isso garante outra medida de segurança, de modo
que alguém que tenha enviado uma versão física de um arquivo eletrônico, por
exemplo, em um pen drive, pode criptografá-lo e enviá-lo, e só depois revelar a
chave da criptografia. O Jabber, programa de bate-papo criptografado, é popular
entre os WikiLeakers. “A importância do Tor para o WikiLeaks não pode ser
subestimada”, disse Assange à revista Rolling Stone, quando esta publicou o
perfil de Appelbaum, o hacker associado da costa oeste dos Estados Unidos.
Mas o Tor tem uma fraqueza curiosa. Se a mensagem não for criptografada de
forma especial desde o princípio, seu conteúdo algumas vezes poderá ser lido
por outras pessoas. Isso soa como um ponto técnico obscuro, mas há evidências
de que explica a verdadeira razão para o lançamento do WikiLeaks, no fim de
2006 – não como uma empresa jornalística tradicional, mas como uma divisão
de hackeamento clandestino e oportunista. Em outras palavras: grampo.
Às vésperas da primeira publicação do WikiLeaks, no início de 2007, Assange
enviou uma mensagem animada a John Young, veterano curador do site de
vazamento de informações Cryptome, para explicar de onde vinha o material:
“Os hackers monitoram a inteligência chinesa, entre outras, enquanto estas
pesquisam seus alvos. Quando elas extraem as informações, nós também
extraímos. É uma fonte inesgotável de material, quase cem mil documentos/e-
mails por dia. Vamos abrir o mundo e deixar algo novo florescer [...]. Temos
tudo sobre o Afeganistão antes de 2005. Quase tudo sobre o BC indiano, meia
dúzia de ministérios estrangeiros, dúzias de partidos políticos e consulados,
Banco Mundial, Opep, departamentos das Nações Unidas, grupos comerciais,
associações do Tibete e de Falun Dafa e [...] a máfia russa do phishing, que
extrai dados de todos os lugares. Estamos nos afogando em documentos e não
conhecemos nem um décimo do que temos ou a quem isso pertence. Paramos de
armazenar ao chegar a 1 Tb [um terabyte, ou mil gigabytes]”.
Poucas semanas depois, em agosto de 2007, um especialista sueco em Tor,
Dan Egerstad, disse à revista Wired que confirmara ser possível coletar
documentos, conteúdo de e-mails, nomes de usuários e senhas de diversos
diplomatas e organizações, atuando como um nó de “saída” voluntário do Tor –
o servidor final no limite do sistema Tor, através do qual documentos sem
criptografia end-to-end eram enviados antes de sair. A revista informou que
Egerstad
descobriu contas que pertencem ao ministro das Relações Exteriores do Irã, ao Departamento de
Imigração do Reino Unido no Nepal e à Organização de Pesquisa e Desenvolvimento de Defesa do
Ministério da Defesa indiano. Além disso, Egerstad pôde ler a correspondência do embaixador indiano na
China, de muitos políticos em Hong Kong, de funcionários do gabinete de comunicação do Dalai-Lama e
de diversos grupos de direitos humanos sediados em Hong Kong.

“Fiquei chocado”, ele afirmou. “E estou convencido de que não fui o único a
descobrir isso.”
As especulações foram confirmadas em grande parte em 2010, quando
Assange permitiu que Raffi Khatchadourian redigisse seu perfil. O jornalista da
New Yorker escreveu:
Um dos ativistas do WikiLeaks era proprietário de um servidor que estava sendo usado como nó para a
rede Tor. Milhões de transmissões confidenciais passavam através dele. O ativista percebeu que
hackers da China estavam usando a rede para reunir informações de governos estrangeiros e começou
a registrar o tráfego. Apenas uma pequena parcela foi divulgada no WikiLeaks, mas o material inicial
possibilitou a criação do site, e Assange pôde afirmar: “Recebemos mais de um milhão de documentos
de treze países”. Em dezembro de 2006, o WikiLeaks divulgou o primeiro documento: uma “decisão
confidencial” assinada pelo xeque Hassan Dahir Aweys, líder rebelde somali da União dos Tribunais
Islâmicos, selecionada do tráfego que passava pela rede Tor rumo à China.
O mundo clandestino dos hackers era apenas uma parte do solo no qual o
WikiLeaks cresceu. Havia também os radicais anticapitalistas – a comunidade de
ativistas ambientais, defensores dos direitos humanos e revolucionários políticos
que formavam o que, na década de 60, era conhecido como “contracultura”.
Quando Assange falou em público pela primeira vez sobre o WikiLeaks,
estava em Nairóbi, no Quênia, para participar do Fórum Social Mundial (FSM),
em janeiro de 2007. Trata-se de uma paródia radical do Fórum Econômico
Mundial de Davos, na Suíça, onde pessoas ricas e influentes se reúnem para falar
sobre dinheiro. O FSM, que teve origem no Brasil, pretende, por sua vez, ser o
lugar em que os pobres e as pessoas desprovidas de poder se reúnem para falar
sobre justiça.
No evento, dezenas de milhares de pessoas entoaram, no Parque da Liberdade,
em Nairóbi: “Outro mundo é possível!” Os organizadores foram forçados a
desistir de cobrar o ingresso depois que moradores das favelas da cidade fizeram
uma manifestação. A BBC noticiou que dezenas de crianças de rua que
mendigavam comida invadiram a tenda de um hotel cinco estrelas e devoraram
as refeições que seriam vendidas a sete dólares, quando muitos quenianos viviam
com dois dólares por dia: “Outros participantes que reclamavam que a comida
era muito cara juntaram-se às crianças famintas, e a polícia, pega de surpresa,
não foi capaz de controlar a situação. Os recipientes com a comida foram
esvaziados”.
Assange passou quatro dias numa tenda do FSM com três amigos, fazendo
palestras, distribuindo folhetos e conhecendo pessoas. Ele estava tão animado
com o que chamou de “a maior festa na praia de uma ONG no planeta” que
permaneceu durante boa parte dos dois anos seguintes num acampamento em
Nairóbi, com ativistas dos Médicos sem Fronteiras e de outros grupos
estrangeiros.
“Muito rapidamente fui apresentado a profissionais experientes do jornalismo e
dos direitos humanos”, declarou, mais tarde, a um entrevistador australiano. “O
Quênia teve oportunidades extraordinárias de reformas. Houve uma revolução na
década de 70. Mas o país só se tornou uma democracia em 2004.”
Ele escreveu que encontrou, na África, “muitas pessoas empenhadas e
desremidas – grupos de oposição ilegais, pessoas que investigavam a corrupção,
sindicatos, imprensa audaciosa e o clero”. Esses indivíduos corajosos eram o
diferencial para ele – em uma circular, comparava-os de modo contundente com
os companheiros de viagem ocidentais: “Grande parte dos tipos do Fórum Social
são homossexuais inúteis que se especializam em fazer filmes sobre si mesmos e
dão festas com o dinheiro das fundações para ‘trocar ideias’ com os amigos. Eles
[...] amam as câmeras”.
Assange parecia preocupado em provar que ele, por outro lado, era um homem
de coragem. E invocou um de seus heróis pessoais na mensagem do WikiLeaks:
“Esta citação de Soljenítsin é cada vez mais apropriada – ‘O declínio da coragem
pode ser o traço mais evidente do Ocidente atual para um observador externo. O
mundo ocidental perdeu a coragem cívica [...]. Tal declínio é particularmente
perceptível entre as elites dominantes e intelectuais’”. Assange frequentemente
dizia a quem estava por perto: “A coragem é contagiosa”.
Foi o Quênia que proporcionou ao WikiLeaks o primeiro furo jornalístico. Um
relatório imenso sobre a suposta corrupção do ex-presidente Daniel arap Moi
fora encomendado à empresa de investigação privada Kroll. Mas seu sucessor, o
presidente Mwai Kibaki, que encomendara o relatório, não pôde divulgá-lo,
supostamente por razões políticas. “Esse relatório era o santo graal do jornalismo
no Quênia”, disse Assange mais tarde. “E, em 2007, eu fui até lá e o consegui.”
As circunstâncias da publicação foram mais complexas. O relatório foi
entregue a Mwalimu Mati, líder do Mars Group Kenya, um grupo anticorrupção.
“Alguém nos entregou o documento de bandeja”, afirmou. Incentivado por um
contato na Alemanha, Mati já havia se registrado como voluntário no
WikiLeaks. O medo de retaliação tornou muito perigosa a divulgação do
relatório no site do próprio grupo. “Então pensamos: Será que podemos divulgá-
lo no WikiLeaks?”
Em 31 de agosto, a história apareceu simultaneamente na primeira página do
The Guardian, em Londres. O texto integral do documento foi divulgado no site
do WikiLeaks com o título: “Os bilhões desaparecidos no Quênia”. Um
comunicado à imprensa explicava: “O WikiLeaks ainda não foi ‘lançado’ ao
público. Estamos abertos apenas para envio de material por contatos jornalísticos
e dissidentes. Entretanto, em virtude da situação política no Quênia, achamos
que seria negligência reter esse documento por mais tempo”. O site
acrescentava: “Referência deve ser feita a [...] Julian A., porta-voz do
WikiLeaks”.
O resultado foi, de fato, sensacional. Houve um alvoroço, e Assange mais tarde
declarou que foi observada uma variação de 10% na votação, nas eleições que se
seguiram no Quênia. No ano seguinte, o site divulgou um relatório muito
elogiado sobre os esquadrões da morte no país: “The Cry of Blood: ExtraJudicial
Killings and Disappearances” (O grito de sangue: massacres e desaparecimentos
extrajudiciais), baseado em evidências obtidas pela Comissão Nacional de
Direitos Humanos do Quênia. Quatro pessoas associadas à investigação dos
massacres foram assassinadas depois, incluindo os ativistas dos direitos humanos
Oscar Kingara e John Paul Oulu.
Assange foi convidado para ir a Londres receber um prêmio da organização de
direitos humanos Anistia Internacional – foi um momento de respeitabilidade
jornalística. Caracteristicamente, chegou à cidade com três horas de atraso, após
uma série de voos complicados desde Nairóbi, que envolveram ocultar das
autoridades até o último minuto as informações de seu passaporte. O discurso de
aceitação do prêmio foi generoso, embora um pouco eloquente: “Graças ao
trabalho corajoso de organizações como a Fundação Oscar, a KNHCR
[Comissão Nacional de Direitos Humanos do Quênia], o Mars Group Kenya,
entre outras, obtivemos o apoio primordial de que necessitamos para expor esses
assassinatos ao mundo. Sei que elas não descansarão, e que nós não
descansaremos, até que justiça seja feita”.
Mais uma vez, havia uma relação simbiótica com os grandes veículos de
comunicação: a história do Quênia só ganhou impulso mundial ao ser
investigada por Jon Swain, do Sunday Times, de Londres.
Nesse momento, Assange e seu grupo começavam a receber um fluxo
constante de documentos genuinamente vazados, inclusive de algumas fontes
militares do Reino Unido. Assange tentava distribuí-los. Ele escreveu diversas
vezes ao The Guardian, apresentando-se como “editor” ou “editor investigativo”
do WikiLeaks, tentando chamar a atenção de Alan Rusbridger, editor do jornal,
para suas histórias. E parecia incapaz de aceitar que, algumas vezes, os
vazamentos talvez não fossem tão interessantes – a ausência de resposta era
sempre vista como falta de coragem, ou coisa pior, por parte dos desprezados
meios de comunicação de massa.
Por exemplo, em julho de 2008, ele declarou: “Será que o The Guardian e
outros veículos de comunicação do Reino Unido perderam a coragem cívica ao
lidar com o Ato de Segredos Oficiais?” Ele estava oferecendo à mídia acesso a
uma cópia vazada do manual de contrainsurgência britânico de 2007, mas
ninguém se interessou. “Acho que a imprensa do Reino Unido perdeu o rumo
[...]. Desde que todos sejam igualmente castrados, todos são igualmente
lucrativos. É hora de romper o cartel de timidez.”
Quem se recorda do perfil de Assange num site de encontros de Melbourne
ficaria intrigado por sua observação de que divulgar revelações jornalísticas
combativas, como ele fazia, também era um excelente modo de arrumar uma
transa: “No Quênia, onde estamos acostumados a invasões a jornais e prisões
arranjadas, não nos importamos muito. Essas tentativas torpes corroboram a
história que deu causa a elas, vendem jornais, ficam bem no currículo e atraem
amantes como títulos de nobreza”.
Outro experimento de Assange na manipulação dos veículos de comunicação
foi a tentativa, em 2008, de leiloar um cache do que supostamente seriam
milhares de e-mails de um redator de discursos para o líder venezuelano Hugo
Chávez. O vencedor teria acesso exclusivo, durante algum tempo, aos
documentos. O leilão se baseava na teoria de que ninguém levaria o material a
sério se fosse oferecido gratuitamente. Assange comentou: “Sabe-se que a
revista People pagou mais de dez milhões de dólares pelas fotos do bebê de Brad
Pitt e Angelina Jolie”. Para sua surpresa, os detalhes da política venezuelana não
se mostraram tão vendáveis quanto as fotos do bebê das celebridades – ninguém
apresentou uma oferta.
Assange agora descobria – para seu desgosto – que não bastava divulgar em
um site longas listas de documentos não editados e aleatórios para mudar o
mundo. E refletia sobre o colapso da ideia original de crowdsourcing: “A ideia
inicial era algo do tipo: ‘Olhe para todas essas pessoas editando a Wikipédia.
Olhe para todo o lixo no qual trabalham [...]. Com certeza todas as pessoas que
estão ocupadas escrevendo artigos sobre história, matemática etc., e todos os
blogueiros que estão ocupados discursando sobre desastres dos direitos humanos
[...] com certeza essas pessoas vão se manifestar, dado o material inédito para
pesquisa, e fazer algo’. Não. Besteira. É tudo besteira. Na verdade, as pessoas
escrevem sobre coisas de modo geral (quando não têm relação com a profissão
delas) porque querem exibir seus valores para os colegas, que estão no mesmo
grupo. Na verdade, elas não estão nem aí com o material”.
Ele continuou procurando em vão um modelo de funcionamento para o
WikiLeaks que pudesse gerar receita e obter atenção política mundial. Suas
reflexões publicadas na época são reveladoras, porque mostram que ele
considerava o problema de uma perspectiva externa, mas ainda não conseguia
solucioná-lo: “O grande problema para o WikiLeaks é o material de primeira
classe indo para o lixo porque tornamos o fornecimento ilimitado, de modo que
as empresas de notícias, bem ou mal, se recusam a ‘investir’ em análise sem
incentivos adicionais. A economia é contraintuitiva: se você limita
temporariamente o fornecimento, aumenta a absorção [...] um conhecido
paradoxo em economia. Dado que o WikiLeaks precisa restringir o fornecimento
por um período para aumentar o valor percebido, até o ponto em que os
jornalistas invistam tempo para produzir histórias com qualidade, surge a
questão sobre que método deve ser utilizado para distribuir o material entre
aqueles que mais provavelmente investiriam nele”.
Havia apenas um modo – relativamente limitado – de o modelo de Assange
começar a atrair o interesse dos grandes veículos de comunicação: agir não da
maneira concebida originalmente, como deposito anônimo de documentos, mas
como o que ele chamou de “editor de última instância”. Um confronto fascinante
entre o WikiLeaks e um banco suíço demonstrou que pelo menos uma das
afirmações-chave para a nova ciberestrutura sem cidadania de Assange era
verdade – eles poderiam rir dos advogados.
Rudolf Elmer dirigira a filial do Banco Julius Baer nas ilhas Caimã durante
oito anos. Depois de se mudar para as ilhas Maurício e tentar, em vão, denunciar
às autoridades o que ele dizia ser uma evasão fiscal ultrajante por parte de alguns
dos clientes de seu antigo patrão, contatou Assange para divulgar os
documentos: “Fizemos contato através de um software criptografado e eu
recebia instruções sobre como proceder [...]. Eu não estava procurando
anonimato”.
Os furiosos banqueiros de Zurique moveram uma ação em um tribunal da
Califórnia para forçar o WikiLeaks a apagar os arquivos, alegando
“disseminação ilegal de registros bancários roubados e de informações das
contas pessoais dos clientes”. O banco ganhou uma batalha preliminar quando o
site de hospedagem de domínios Dynadot, com sede na Califórnia, foi obrigado
a desativar o domínio “wikileaks.org”. Mas Baer rapidamente perdeu a guerra: o
WikiLeaks manteve outros sites, hospedados na Bélgica e em outros países;
muitos “sites-espelho” surgiram, exibindo os documentos ofensivos; e a decisão
do tribunal foi revertida quando uma série de organizações norte-americanas se
uniu em apoio ao WikiLeaks em nome da liberdade de expressão. Entre elas,
estavam a União Americana pelas Liberdades Civis e a Fundação Fronteira
Eletrônica, assim como uma aliança jornalística que incluía a Associated Press, o
Gannett News Service e o Los Angeles Times.
O banco suíço e seus clientes corruptos só conseguiram jogar mais luz sobre si
mesmos, enquanto o WikiLeaks demonstrou ser verdadeiramente à prova de
liminares. A partida terminou assim: WikiLeaks 1, Julius Baer 0. Assange
recebeu outro prêmio em Londres, do grupo pela liberdade de expressão Index
on Censorship. Um dos membros do júri, o poeta Lemn Sissay, relatou em seu
blog uma típica atitude de Assange: “Não sabíamos se Julian Assange
apareceria. Felizmente ele veio: um homem alto, cuidadoso, de cabelos muito
louros e pele clara. Segundos antes de subir ao palco, ele sussurrou: ‘Pode ser
que alguém pule no palco para me entregar uma intimação. Não posso deixá-los
fazer isso, e terei que sair se os vir’”.
Agora o The Guardian, de Londres, via o valor de ter os próprios documentos
confidenciais divulgados no WikiLeaks. Os advogados do Banco Barclays
tinham acordado um juiz às duas horas da manhã para forçar a retirada dos
arquivos vazados do The Guardian que detalhavam os esquemas de evasão fiscal
do banco. Mas os arquivos foram imediatamente divulgados na íntegra por
Assange, tornando a obstrução inútil. (Numa divertida mistura de práticas
anticensura novas e antigas, o The Guardian e todos os outros veículos de
comunicação britânicos foram a princípio legalmente impedidos de dizer que os
arquivos estavam disponíveis no WikiLeaks. Foi necessário que um membro
democrata-liberal da Casa dos Lordes divulgasse a informação, sob a proteção
do antigo dispositivo do privilégio parlamentar, para que essa bobagem
acabasse.)
Do mesmo modo, o WikiLeaks funcionou como um reforço online, junto com
o Greenpeace e a tevê estatal norueguesa, ao divulgar na íntegra um relatório
incriminatório sobre o lixo tóxico descartado pela empresa de petróleo Trafigura.
Os advogados da Trafigura haviam impedido o The Guardian de divulgar o
relatório vazado, mas suas ações draconianas se mostraram uma perda de tempo
num mundo digitalmente globalizado.
Mas Assange ainda se esforçava para ser mais que um operador de nicho. No
início, em 2006, ele provocara a ira de John Young, do Cryptome, site análogo
de material de inteligência. Young lamentava a aproximação de Assange com o
bilionário George Soros – que fundara uma variedade de projetos de
comunicação, sobretudo na Europa do Leste – e rompeu relações quando
Assange falou em levantar cinco milhões de dólares. “Anunciar o objetivo de
arrecadar cinco milhões de dólares até julho de 2007 acabará com esta
iniciativa”, escreveu. “Isso faz com que o WikiLeaks pareça um golpe de Wall
Street. Essa quantia não poderia ser necessária em tão pouco tempo, exceto para
propósitos suspeitos. Soros vai expulsá-lo do escritório. As fundações estão
cheias de tagarelas pedindo muito dinheiro, gabando-se de nomes famosos e
prometendo resultados espetaculares.”
Dois anos depois desse início precipitado, Assange fez outra tentativa de obter
uma grande quantia. Ele e seu braço direito, Domscheit-Berg, foram até a
Fundação Knight, nos Estados Unidos, que estava realizando “um concurso de
inovação nos veículos de comunicação com o objetivo de fomentar o futuro da
imprensa, financiando novos modos de informação digital para as
comunidades”. Domscheit-Berg pediu 532 mil dólares para equipar uma rede
local de jornais com “botões do WikiLeaks”. A ideia, desenvolvida e elaborada
por ele, era que as pessoas que divulgavam informações confidenciais locais
pudessem fazer contato através dos sites de notícias e, assim, gerar um fluxo
regular de documentos. Um projeto rival – o DocumentCloud –, concebido para
criar uma base pública de dados com os documentos integrais por trás das
notícias, era apoiado pela equipe do The New York Times e pela ProPublica,
organização de jornalismo investigativo sem fins lucrativos. Eles receberam
719.500 dólares. E Assange não recebeu nada. No fim de 2009, o WikiLeaks
continuava lutando por uma reputação.
5

O vídeo do apache
Hotel Quality, Tønsberg, Noruega
TRÊS HORAS DA MANHÃ, 21 DE MARÇO DE 2010

“A culpa é deles por trazerem os filhos para uma batalha.”

– PILOTO DE HELICÓPTERO NORTE-AMERICANO

O MÊS DE MARÇO, ainda havia gelo no porto e a neve cobria a montanha


N onde ficava a velha fortaleza. Mas, no salão de dança do hotel, na orla, a
banda Boogie Wonder trabalhava duro, tocando ritmos vigorosos para centenas
de repórteres noruegueses que comemoravam o Jubileu – o baile do vigésimo
aniversário do Skup, a animada associação de jornalistas investigativos.
“Venham com belas roupas e muito bom humor”, dizia o convite, e, apesar de
Assange não ter tirado a fiel jaqueta de couro marrom, com o zíper fechado até o
pescoço, ele certamente estava de bom humor. Na verdade estava muito
animado, e por uma boa razão: em pouco tempo, daria o primeiro passo para se
tornar uma celebridade mundial.
O anúncio de sua palestra dizia: “Algumas pessoas acreditam que o WikiLeaks
fez mais jornalismo investigativo que o New York Times nos últimos vinte anos”.
Mas Assange sabia que o mundo ainda não vira nada, comparado ao que estava
por vir. Depois de uma noite regada a carne de rena e repetidos brindes ao estilo
viking, com copos erguidos, ele não pôde mais se conter. “Quer ver uma coisa?”,
perguntou a David Leigh, jornalista do The Guardian que também falaria na
conferência. Magro, de cabelos compridos e prateados, Assange sorria de modo
atraente e pueril, o que também tinha efeito sobre as mulheres à sua volta. O
convite atual era igualmente intrigante.
No quarto de hotel de Leigh, com a porta trancada e aferrolhada, Assange tirou
um de seus pequenos netbooks da mochila, que ele nunca perdia de vista, e
digitou uma série do que pareciam longas senhas. Depois de algum tempo, um
vídeo em preto e branco começou a ser exibido. Era uma das coisas mais
chocantes que Leigh já tinha visto.
A famosa sequência, mais tarde exibida repetidas vezes no YouTube, da China
ao Brasil, era uma tomada feita de cima, mostrando nuvens de poeira que se
erguiam em meio a um grupo disperso de homens, atingidos e mortos pela
artilharia de um helicóptero de combate. Um dos homens, ferido, tenta rastejar
para longe da carnificina, indo para o lado direito da tela. Em seguida, um
motorista pode ser visto tentando arrastar o homem para dentro de uma van,
atingida por mais tiros de canhão. Ao ouvir pelo rádio que crianças haviam sido
feridas, um dos pilotos diz em sua defesa: “Bem, a culpa é deles por trazerem os
filhos para uma batalha”.
As imagens foram feitas pela câmera militar de um helicóptero AH-64 Apache
que sobrevoava um subúrbio de Bagdá, atirando com seu canhão automático de
30 mm enquanto ficava praticamente invisível para quem estava no solo. O
helicóptero estava a um quilômetro de altitude. Leigh assistia, chocado,
enquanto o vídeo não editado do massacre era exibido no pequeno laptop
durante quase 39 minutos.
O vídeo era, como explicou Assange, o registro confidencial de um escândalo.
Em julho de 2007, pilotos do Exército norte-americano, numa dupla de
helicópteros de patrulha, haviam matado dois funcionários inocentes da agência
de notícias Reuters: Saeed Chmagh e Namir Noor-Eldeen. Noor-Eldeen era
fotógrafo de guerra e tinha 22 anos. Chmagh era motorista e assistente da
Reuters, tinha 40 anos, fora ferido e tentara rastejar. Ao todo, doze pessoas
morreram naquela única ocasião. Os dois filhos pequenos do motorista da van
foram feridos, mas sobreviveram.
Assange não disse de onde viera o vídeo bruto, apenas que obtivera material de
“fontes militares”. Mas disse ao jornalista do The Guardian o que planejava
fazer em seguida. Viajaria para a Islândia, onde faria com que aquele vazamento
sensacional tivesse sua veracidade confirmada e fosse editado numa versão com
legendas. Então, ele o revelaria ao mundo.
A Islândia, no extremo norte do Atlântico, parecia um destino estranho para
Assange, mas não era. O errante fundador do WikiLeaks tornara-se recentemente
muito popular no país, ao concordar em divulgar um documento secreto vazado
que listava os maiores empréstimos bancários do país, concedidos a amigos de
banqueiros e grandes acionistas de banco. O colapso financeiro da Islândia
deixara atrás de si uma população enfurecida e ressentida, que parecia apreciar a
transparência de Assange.
Kristinn Hrafnsson era um dos muitos islandeses impressionados com
Assange. Ele ficou tão inspirado que, em seguida, se tornou um colaborador
próximo. Hrafnsson, que viajaria para Bagdá com um cameraman para chegar a
história do helicóptero Apache a pedido de Assange, afirma: “A primeira vez
que ouvi falar do WikiLeaks foi no início de agosto de 2009. Eu trabalhava
como repórter para a televisão estatal quando recebi a dica de que o site tinha
divulgado importantes documentos online. Era a carteira de empréstimos do
falido Banco Kaupthing [...]. Eles [o banco] obtiveram uma liminar na justiça – a
primeira e única na história – proibindo a tevê estatal de divulgar a informação.
O escândalo gerou um convite para que Assange e o colega Daniel Domscheit-
Berg fossem até Reykjavik. Assim, os dois ativistas se viram estimulando o
pequeno país a promover uma legislação para a liberdade de imprensa. Assange
sentou-se num sofá no estúdio da tevê e perguntou: “Por que a Islândia não se
torna o centro editorial do mundo?”
Domscheit-Berg recorda: “Julian e eu estávamos apenas lançando a ideia,
declarando em rede nacional de tevê que achávamos que aquele seria o próximo
modelo de negócios para a Islândia. Foi muito esquisito perceber, no dia
seguinte, que todos queriam falar sobre isso”.
Assange era uma espécie de líder, reunindo em todo lugar seguidores em volta
de si. Outro entusiasta do WikiLeaks na Islândia, o programador Smári
McCarthy, disse a uma rede de televisão sueca: “Como país, falhamos porque
não compartilhávamos as informações de que necessitávamos. Tínhamos sede de
informação, e o WikiLeaks nos deu o impulso de que precisávamos. Tínhamos
uma ideia, mas não sabíamos como fazer. Então eles vieram e nos disseram, e
isso foi uma coisa incrivelmente valiosa. Eles são, sobretudo, ativistas da
informação, que acreditam no poder do conhecimento, no poder da informação”.
A parlamentar islandesa Birgitta Jónsdóttir estava na linha de frente dos passos
seguintes para elaborar uma proposta que seus defensores chamavam de MMI –
Modern Media Initiative (Iniciativa das Mídias Modernas) –, endossada
unanimemente pelo Parlamento islandês. A proposta foi delineada por Assange,
Rop Gonggrijp, seu amigo holândes meio hacker, meio homem de negócios, e
três islandeses: Jónsdóttir, McCarthy e Herbert Snorrason. Eles pediam a criação
de leis que preservassem a proteção das fontes, a liberdade de imprensa e de
informação. Jónsdóttir, de 43 anos, é uma artista e poetisa anticapitalista – uma
figura inesperadamente romântica em meio à legislatura de Reykjavik. “Eles
apresentaram essa ideia, chamada de a ‘Suíça dos bytes’”, ela explica, “que
basicamente consistia em pegar o modelo de paraíso fiscal e transformá-lo num
modelo de paraíso da transparência.”
Assange decidiu publicar alguns aperitivos islandeses do material confidencial
militar recentemente obtido para coincidir com a campanha do MMI – um deles
era um telegrama muito recente da embaixada norte-americana em Reykjavik,
com data de 13 de janeiro de 2010, descrevendo opiniões de oficiais islandeses
sobre a crise bancária. O ministro-conselheiro na embaixada, Sam Watson,
informou que as pessoas que ele encontrou “traçaram um quadro muito sombrio
para o futuro da Islândia”. Assange divulgou então perfis vazados do
embaixador islandês em Washington (“irritadiço mas pragmático [...] gosta da
música de Robert Plant, ex-membro do Led Zeppelin”), do ministro das
Relações Exteriores (“amigo dos EUA”) e da primeira-ministra, Jóhanna
Sigurðardóttir (“apesar da orientação sexual destacada pela imprensa
internacional, isso mal foi percebido pelo público da Islândia”).
As autoridades norte-americanas não tomaram nenhuma atitude visível em
relação a esses vazamentos. Não havia conexão aparente entre Reykjavik – onde
o material aparecera – e uma obscura base militar no deserto da Mesopotâmia, a
milhares de quilômetros de distância.
Assim, no fim de março, Assange retornou à Islândia depois da conferência
triunfal na Noruega e obteve um empréstimo de dez mil euros de Gonggrijp para
alugar uma casa e editar o vídeo do helicóptero Apache. Leigh, de volta a
Londres, tentou contatar Assange para propor um acordo segundo o qual o The
Guardian publicaria o vídeo. Assange disse que entraria em contato, mas nunca
o fez. Mais tarde descobriu-se que ele fizera um acordo jornalístico mais atraente
com a revista New Yorker, cujo escritor Raffi Khatchadourian o acompanhava
com a finalidade de redigir seu perfil (publicado em junho com o título “No
Secrets: Julian Assange’s Mission for Total Transparency” [Sem segredos: a
missão de Julian Assange pela transparência total]. Pouco depois, Assange disse
a amigos que aquilo era “muito lisonjeiro”).
Khatchadourian estava presente para gravar Jónsdóttir, a parlamentar feminista
briguenta do sul de Reykjavik cortando com certa má vontade o cabelo de
Assange, enquanto ele se sentava curvado diante do laptop, envolvido numa
importante troca de mensagens. O jornalista também tomava notas quando uma
mensagem chegou de Bagdá.
Os jornalistas que haviam ido até Bagdá [...] haviam encontrado as duas crianças da van. Elas viviam a
um quarteirão do local do ataque e o pai as levava para a escola naquela manhã. “Elas se lembram do
bombardeio, sentiram muita dor, disseram, e perderam a consciência”, escreveu um dos jornalistas. [...]
Jónsdóttir virou-se para Gonggrijp, cujos olhos estavam marejados.
– Você está chorando? – ela perguntou.
– Estou – ele respondeu. – Está tudo bem, está tudo bem, são só as crianças. É triste.
Gonggrijp se recompôs.
– Merda! – exclamou. [...]
Agora Jónsdóttir também chorava, assoando o nariz.

Assange exibiu o vídeo do helicóptero Apache no Clube Nacional de


Imprensa, em Washington, no dia 5 de abril. Ele o intitulou “Assassinato
colateral”. Embora o vídeo tenha causado certa comoção, algo saíra errado. Ele
não gerou a indignação universal e a pressão por reformas causadas, por
exemplo, pela exibição por Seymour Hersh, na New Yorker, de fotos vazadas
que mostravam prisioneiros iraquianos sendo humilhados e torturados na prisão
de Abu Ghraib.
Uma das razões pelas quais o vídeo provocou menos reação que a esperada por
Assange foi que a Reuters, cujos funcionários haviam sido assassinados, decidiu
não atacar com base na informação vazada. Dizia-se que um clipe parcial da
morte dos dois homens fora mostrado à agência de notícias poucos dias depois
dos acontecimentos, embora as solicitações subsequentes do vídeo completo,
com base na legislação de liberdade de informação, tivessem sido repetidamente
negadas. O editor-chefe da Reuters, David Schlesinger, escreveu uma coluna
serena para o The Guardian, que denotava mais tristeza que revolta:
Os editores da Reuters viram apenas uma parte do vídeo. Imediatamente mudamos nossos procedimentos
operacionais. A primeira parte do vídeo deixou claro que qualquer um andando com um grupo de pessoas
armadas pode ser considerado um alvo. Imediatamente decidimos que nossos jornalistas não poderiam
nem mesmo andar próximos a grupos armados. No entanto, não nos mostraram a segunda parte, em que o
helicóptero atira numa van que tenta evacuar os feridos. Se nós a tivéssemos visto, poderíamos ter
ajustado ainda mais nossos procedimentos.

Outra razão para a reação limitada ao vídeo foi o título tendencioso:


“Assassinato colateral”. Leitores e telespectadores costumam detestar a sensação
de que estão sendo coagidos a aceitar determinado ponto de vista. O que
aparecia na tela podia ser interpretado como um evento muito mais nuançado
para olhos não completamente cegos pelo rancor ou pela tristeza.
Os soldados haviam nitidamente cometido um erro. Alguns membros do grupo
no qual eles atiraram estavam, de fato, armados, e a teleobjetiva do fotógrafo da
Reuters realmente parecia uma arma apontada furtivamente para “nossos irmãos
em solo”, como afirmou um dos pilotos. A cruel decisão de tratar as ruas de
Bagdá como um campo de batalha em que todos são um alvo legítimo foi
tomada não por sádicos ou criminosos de guerra, mas por militares norte-
americanos de alto escalão. Os pilotos estavam desempenhando as atividades
mortais que haviam sido treinados para fazer – como alguns dos soldados na
unidade de solo envolvida declararam publicamente mais tarde. Certamente
havia muito mais a ser discutido do que aquilo que se poderia concluir pela crua
legenda “Assassinato colateral”.
No entanto, tratava-se de um debate que talvez nunca tivesse ocorrido se um
jovem soldado norte-americano não tivesse decidido que o vídeo deveria ser
visto e se Assange não o tivesse disponibilizado corajosamente para exibição
pública. Daquele momento em diante, as mortes de civis que os soldados
americanos com tanta frequência precipitavam do céu seriam tratadas de modo
um pouco menos casual pelo público do país. Certamente é disso que se trata
quando se fala em liberdade de expressão. Aos olhos de muitos, Assange
merecia ser considerado um herói.
Notas

* Trocadilho com as palavras churn (out) (produzir de maneira rápida e mecânica) e journalism
(jornalismo). (N. do E.)
8

The Guardian, quarto andar, Kings Place, Londres JULHO DE 2010


“Eu parecia uma criança numa loja de doces.”

– DECLAN WALSH, THE GUARDIAN

A PEQUENA SALA com paredes de vidro, no quarto andar do The Guardian,


N mapas dos distritos militares no Afeganistão e no Iraque estavam presos
com ímãs num quadro branco. Ao lado deles, os jornalistas rabiscavam
constantemente listas atualizadas das até então desconhecidas siglas das Forças
Armadas norte-americanas. “O que é EDF?”, gritava um dos repórteres.
“Escalada de força!”, alguém respondia. EEH? Equipe de exploração humana.
NL? Nacional local. IMEA era a contagem de corpos: inimigos mortos em ação.
Havia literalmente centenas de outros jargões, e no fim o jornal teve de publicar
um longo glossário anexo às histórias.
O discreto escritório, bem afastado das operações diárias de notícias do jornal,
tornara-se uma sala de guerra multinacional, com repórteres vindo de Islamabad,
Nova York e Berlim para analisar centenas de milhares de relatórios de campo
militares vazados. Eles tropeçavam em especialistas em informática e internet de
Londres. Uma fragmentadora de papéis fora instalada junto à fileira de seis
monitores, e o clima de segurança era intensificado pelo austero aviso colado na
porta: “Sala de Projetos. Privado & Confidencial. Proibido Acesso Não
Autorizado”.
Nick Davies estava tão obcecado por manter segredo que inicialmente se
recusara a contar sobre o projeto até para o chefe de redação do The Guardian, o
editor assistente Ian Katz. Ele ficou chocado ao descobrir como a notícia de seu
envolvimento numa história ultrassecreta se espalhara rapidamente. Outro
colega, Richard Norton-Taylor, o veterano editor de segurança do jornal,
perguntou a Davies pouco depois sobre o “furo”. Davies se recusou a contar.
Algumas horas depois, Norton-Taylor o encontrou novamente e o provocou em
tom jocoso: “Eu sei todos os seus segredos!” A redação de um jornal não é um
bom lugar para tentar esconder algo por muito tempo.
Todavia, a equipe do jornal fez o que pôde. Declan Walsh, correspondente do
The Guardian no Paquistão, foi chamado sob intenso sigilo. Sentanda em volta
de uma mesa na sala do editor, a equipe refletia sobre as dificuldades técnicas.
David Leigh estava irritado: “É como buscar minúsculos grãos de ouro numa
montanha de dados”, reclamou. “Como vamos saber se há realmente uma
história nisso?” A resposta a essa pergunta inseriu os veteranos do The Guardian
numa pronunciada curva de aprendizado, enquanto eles começavam a entender
como lidar com métodos modernos.
Primeiro descobriram, confusos, que o primeiro download, a planilha do
Afeganistão, não continha sessenta mil entradas, como acreditaram durante
vários dias. Continha muito mais. Mas a ultrapassada versão do Excel que o
jornal tinha simplesmente interrompera a leitura depois de sessenta mil linhas. O
total real de relatórios de campo hora a hora – os diários de guerra – chegava a
92.201 linhas de dados. O problema seguinte era ainda maior. Sabia-se que uma
planilha enorme como aquela seria muito lenta para ser manipulada, embora
fosse possível selecioná-la e filtrá-la para gerar uma imensa quantidade de
estatísticas e tipos diferentes de eventos militares. Assim, a divulgação dos
diários de guerra do Iraque jogou outros 391 mil registros no colo dos
jornalistas, quadruplicando os problemas com os dados.
Harold Frayman, o especialista técnico do The Guardian, resolveu esses
problemas improvisando rapidamente uma base de dados completa. Da mesma
maneira que o Google ou sofisticados mecanismos de busca de notícias – como
o LexisNexis –, a base de dados de Frayman podia ser pesquisada por data,
palavra-chave ou frase entre aspas. Declan Walsh recorda: “Quando acessei a
base de dados pela primeira vez, eu parecia uma criança numa loja de doces.
Meu primeiro impulso foi pesquisar ‘Osama bin Laden’, o homem que iniciara a
guerra. Muitos de nós digitamos o nome para ver o que resultaria (não muito,
como se viu mais tarde)”. Leigh também começou a se animar: “Agora esses
dados estão começando a fazer sentido!”, afirmou.
Ele foi apresentado a outro especialista do The Guardian, Alastair Dant:
“Alastair é nosso visualizador de dados”. Ao que Leigh comentou: “Eu nem
sabia que essa função existia!” Rapidamente ele recebeu as últimas informações.
O projeto WikiLeaks produzira novos tipos de dados. Agora eles precisavam ser
extraídos mediante novos tipos de jornalismo. Dant explicou que podia converter
num gráfico interativo animado as estatísticas dos milhares de explosões de
bombas registrados nos diários de guerra do Afeganistão. Ele podia usar o
mesmo modelo básico a partir do qual o The Guardian desenvolvera
anteriormente um popular mapa interativo do Festival de Glastonbury, uma bela
diversão para os fãs de música. Se o observador movesse o cursor sobre o mapa
da área do festival, apareceriam os artistas que tocariam no local naquele
determinado momento.
Agora, com o Afeganistão, o observador poderia apertar um botão do mesmo
modo, mas dessa vez seriam exibidas imagens mais assustadoras, que
revelariam, dia a dia e ano a ano, a incapacidade do Exército norte-americano de
conter os rebeldes no Afeganistão, enquanto literalmente milhares de “artefatos
explosivos improvisados” surgiam em todo o sistema rodoviário do país. O
observador poderia ver como a grande maioria das bombas na beira das estradas
estava assassinando civis comuns e não adversários militares, e como os ataques
iam e vinham conforme as mudanças nos desenvolvimentos políticos. Era uma
representação que permitia compreender pelo menos parte de uma guerra
fragmentada e mal contada.
O principal especialista em internet era Simon Rogers, editor de dados do The
Guardian. “Você é bom com planilhas, não é?”, perguntaram-lhe. “Esta aqui é
uma planilha e tanto!”, ele observou. Depois de trabalhar nela, concluiu:
“Algumas pessoas dizem que a internet está matando o jornalismo. A história do
WikiLeaks é uma combinação dos dois: técnicas de jornalismo tradicional e o
poder da tecnologia, usados para contar uma história extraordinária. No futuro, o
jornalismo de dados pode não parecer tão incrível e novo, mas hoje ele é. O
mundo mudou, e foram os dados que o transformaram”.
Uma oportunidade óbvia era, pela primeira vez, poder obter estatísticas
genuínas das baixas. As Forças Armadas norte-americanas haviam declarado
falsamente que, ao menos no que se referia a civis e “inimigos”, não havia
números disponíveis. Mas os jornalistas podiam ver agora que os diários de
guerra continham categorias altamente detalhadas que deviam ser preenchidas
para todo evento militar, divididos em norte-americanos e aliados, forças locais
iraquianas e afegãs, civis e combatentes inimigos, classificados, em cada caso,
como mortos ou feridos. Mas não era tão simples assim. Rogers e os repórteres
tinham de lidar com a realidade do terreno militar – uma realidade que
transformava conjuntos de dados aparentemente atraentes em estatísticas brutas
e pouco confiáveis.
No mínimo, uma pessoa listada como “ferida” na época poderia ter morrido
depois. Os campos das baixas às vezes não eram preenchidos. Os repórteres se
solidarizavam com os soldados, os quais, exaustos após um dia de combate, se
deparavam com formulários que exigiam o preenchimento de nada menos que
trinta campos de informações burocráticas. Algumas unidades eram mais
meticulosas que outras. Os primeiros anos das guerras traziam informações mais
superficiais que os últimos, quando os sistemas estavam mais organizados.
Quando havia intensos combates urbanos ou quando os corpos eram
transportados, era difícil calcular as baixas. Algumas unidades tinham a
tendência de registrar números absurdamente altos de supostos “inimigos mortos
em ação”. Às vezes, de modo sinistro, os civis mortos eram registrados como
“inimigos”. Isso evitava perguntas incômodas para as tropas. Os números eram,
em todo caso, muito baixos, porque faltavam alguns meses e anos, assim como
também faltavam informações das forças especiais, que operavam fora dos
círculos de comando normais do Exército. E muitos dos confrontos que
envolviam britânicos, alemães e outros “aliados” aparentemente não estavam
registrados na base de dados do Exército norte-americano.
Portanto, era uma tarefa complicada produzir estatísticas de real valor. Isso
enfatizava mais uma vez as limitações inevitáveis da ideologia purista do
WikiLeaks. O material encontrado nos documentos vazados, por mais extenso
que fosse, não era “a verdade”. Muitas vezes era apenas uma indicação de uma
parte da verdade e exigia uma interpretação cuidadosa.

O próprio Assange acabou voando de Estocolmo para Londres em uma noite


de julho de 2010. Ele chegou ao escritório do The Guardian com uma mochila e
um sorriso tímido, como um dos Garotos Perdidos de Peter Pan. “Você já tem
lugar para ficar?”, perguntou Leigh. “Não”, ele respondeu. “Já comeu?” A
resposta novamente foi negativa. Leigh o acompanhou até um pequeno
restaurante que ainda estava aberto, na estação de St. Pancras, e entregou-lhe o
cardápio. Assange comeu doze ostras e um pouco de queijo. Em seguida, passou
a noite no apartamento de Leigh, próximo de Bloomsbury.
Ele ficou um bom tempo lá, dormindo durante o dia e trabalhando no laptop a
noite toda. Depois, foi para um hotel próximo e passou o último fim de semana
da Copa do Mundo na casa de Nick Davies, em Sussex (mas, diz Davies, “ele
não parecia nem um pouco interessado em futebol”), estabelecendo-se então na
residência de Gavin MacFadyen, jornalista e professor da Universidade da
Cidade. Assange levou para a casa em Pimlico apenas três pares de meia, mas
rapidamente encantou a família MacFadyen, interessando-se pelos livros de
poesia nas prateleiras e pacientemente explicando o Big Bang, acrescido de
fórmulas matemáticas, para surpresas crianças que estavam de visita. O único
momento constrangedor ocorreu durante uma refeição em que seria servido
risoto, feito por Sarah Saunders, dona de um bufê e filha da esposa de
MacFadyen, Susan. Normalmente, Assange digitava no laptop durante as
refeições; outros participantes do WikiLeaks que às vezes apareciam
costumavam fazer a mesma coisa. Nessa ocasião, Saunders pediu a Julian que
desligasse o laptop, ao que ele imediatamente obedeceu.
Um mês depois, Assange estabeleceu uma base maior para sua crescente
organização no Frontline Club, a oeste de Londres. Algo no errante Assange
fazia com que as pessoas que se acercavam dele quisessem protegê-lo – mesmo
que o sentimento nem sempre fosse duradouro.
A equipe que frequentava a sala de guerra do The Guardian também
aumentava. Dois conhecidos veteranos do jornal no conflito do Iraque, Jonathan
Steele e James Meek, foram convocados. O editor executivo do The New York
Times, Bill Keller, enviou-lhes Eric Schmitt, experiente correspondente de
guerra. Schmitt, conhecedor de assuntos militares, pôde confirmar que os diários
de guerra pareciam autênticos. Ele os gravou num pen drive e voou de volta para
casa para iniciar o processo de construção da base de dados em Nova York.
O contingente alemão também fez contribuições decisivas para o processo de
verificação. Como intermediário do acordo original com o The Guardian e o The
New York Times, Nick Davies inicialmente não ficou muito satisfeito com a
entrada da revista Der Spiegel – uma possibilidade que fora apenas mencionada
de maneira incerta, no encontro de Bruxelas, pelo colega Ian Traynor. Assange
lhe dissera que estava ocorrendo um almoço com a Der Spiegel em Berlim.
Então, num telefonema de um homem que se apresentava como Daniel Schmitt
– na verdade, o braço direito de Assange, Daniel Domscheit-Berg –, ele soube
que não apenas a Der Spiegel, mas também uma estação de rádio alemã seriam
“parceiras de mídia” na divulgação dos diários de guerra. “Fiquei muito confuso.
Meu primeiro instinto foi dizer não”, recorda Davies. “Acordo é acordo, e
segurança é muito importante. E pensei: Não quero que entrem.” Davies
finalmente concordou que a Der Spiegel entrasse, mas a rádio alemã ficaria de
fora. Então, os repórteres da revista John Goetz e Marcel Rosenbach viajaram
até a sala de guerra.
“Eles se adaptaram muito bem. Gostávamos deles. E eles tinham muita
experiência no Afeganistão”, afirma Davies. Foi decisivo o fato de que as fontes
da Der Spiegel tinham acesso à investigação do Parlamento da Alemanha sobre a
Guerra do Afeganistão, incluindo material militar secreto norte-americano. Isso
foi essencial para a confirmação da autenticidade das informações oferecidas ao
The Guardian.
Porém os jornais tinham outra dor de cabeça. Normalmente, quando se tem
uma história dessa magnitude, o mais conveniente a fazer é publicá-la durante
muitos dias. Isso mantém o interesse dos leitores e ajuda a vender mais cópias.
Numa reportagem anterior sobre evasão fiscal de empresas, o The Guardian
publicara uma história por dia, sem interrupção, durante duas semanas. Dessa
vez, a estratégia seria impossível. Em primeiro lugar, porque os dois diários, de
Londres e de Nova York, estavam agora ligados a uma revista semanal na
Alemanha. Com uma única tacada, a Der Spiegel ia querer publicar todas as
histórias de uma vez.
Em segundo lugar, e mais grave, nenhum dos editores sabia se haveria uma
segunda chance. A resposta do governo dos Estados Unidos poderia ser tão
explosiva que eles poderiam enviar seus advogados com uma ordem de
proibição de publicação. Portanto foi decidido que, no caso do The Guardian, o
jornal publicaria tudo que tinha, em catorze páginas, no dia do lançamento.
Havia, claro, um lado negativo nesse método: embora o lançamento dos diários
de guerra do Afeganistão devesse causar imensa polêmica, seria difícil encontrar
alguém no dia seguinte, em Londres, que realmente tivesse percorrido todas as
catorze páginas. Simplesmente havia muito a ser lido. No momento da
publicação dos diários do Iraque, quando ficou claro que o governo norte-
americano não tentaria obter liminares e ordens de proibição contra a mídia, a
publicação foi dividida mais confortavelmente durante alguns dias.
A questão mais complicada envolvia a edição dos textos. Os jornais
planejavam publicar apenas um número relativamente pequeno de histórias
importantes e, com elas, o texto dos diários correspondentes. Por outro lado, o
WikiLeaks pretendia liberar o lote simultaneamente. Mas muitos dos registros,
em particular os “relatórios de ameaças” da inteligência, mencionavam nomes de
informantes ou de pessoas que haviam colaborado com as tropas norte-
americanas. Na cruel política interna do Afeganistão, essas pessoas poderiam
estar em perigo. Declan Walsh foi um dos primeiros a perceber isso: “Eu disse a
David Leigh que estava preocupado com a repercussão da publicação dos
nomes, que poderiam facilmente ser assassinados pelo Talibã ou por outros
grupos militantes, caso fossem identificados. David concordou que era um
problema e disse que discutiria a questão com Julian, mas este não pareceu
preocupado. Naquela noite, fomos até um restaurante de comida Moura, o Moro,
com os dois repórteres alemães. David falou sobre o problema novamente com
Julian. A resposta me desconcertou: ‘Bem, eles são informantes’, ele afirmou.
‘Se forem mortos, é porque pediram por isso. E o mereceram.’ Durante alguns
instantes, fez-se silêncio na mesa. Acho que todos se surpreenderam, por ser
uma coisa muito insensível de se dizer. Pensei nas bases norte-americanas que
tinha visitado, nos afegãos que conhecera nas pequenas vilas e cidades, na
complexa política local, que coloria tudo, e nos dilemas das pessoas durante uma
guerra sangrenta. Eu não iria pôr tudo isso em risco por causa de um documento
preparado por um soldado norte-americano novato, que podia ou não ter
entendido corretamente as informações recebidas. A outra questão que aquela
breve conversa me sugeria era que Julian tinha uma visão bastante ingênua – ou
arrogante – no que se referia aos veículos de comunicação. Além das
considerações morais, ele não parecia entender que a divulgação dos nomes dos
informantes poderia ter consequências sobre todo o projeto”.
Davies também ficou consternado com a dificuldade de persuadir Assange a
fazer a edição dos documentos. “Primeiro, ele simplesmente não entendia que
não é correto publicar material que causará a morte de pessoas”, afirmou. O
repórter do The Guardian estudara a força-tarefa 373, um misterioso grupo de
operações especiais cuja função era capturar ou matar talibãs do alto escalão.
Um diário de guerra era especialmente preocupante, porque descrevia que um
informante não identificado tinha um parente próximo vivendo uma exata
distância a sudeste da casa do alvo mencionado e que “ficará de olho nele”.
Evidentemente, era possível descobrir as identidades com a ajuda de algum
conhecimento local, e publicar o diário poderia fazer com que os talibãs
executassem os dois afegãos. Mas Assange, de acordo com Davies, parecia
indiferente. Apesar de sua simpatia pessoal pelo fundador do WikiLeaks, Davies
observa: “O problema é que ele é basicamente um hacker e tem – ou tinha,
naquele momento – uma ideologia simplista de que toda informação tem de ser
publicada, de que toda informação é boa”.
Para fazer justiça a Assange, no fim ele reviu sua posição, apesar das
dificuldades técnicas impostas ao WikiLeaks. E, na época em que os telegramas
do Departamento de Estado americano foram publicados – cinco meses depois –,
Assange já abraçara inteiramente a lógica da edição, desempenhando
praticamente o papel de um grande editor. Pouco tempo antes da divulgação do
material do Afeganistão, ele removeu maciçamente os quinze mil arquivos da
inteligência – listados como “relatórios de ameaças” – que provavelmente
continham detalhes que possibilitavam a identificação de pessoas. Isso deixou
algumas identidades ainda descobertas no corpo dos telegramas, fato que Rupert
Murdoch, do The Times de Londres, publicou de forma destacada. Apesar da
suposta desaprovação ao WikiLeaks, o jornal indicou informações que podiam
ajudar o Talibã a assassinar pessoas. Na época da publicação dos diários do
Iraque, Assange já tivera tempo de criar um programa de edição mais
sofisticado, que ocultava um vasto número de nomes. E, quando os telegramas
diplomáticos foram publicados, ele parecia ter abandonado a ambição inicial de
divulgar tudo. No decurso de 2010, deu-se por satisfeito em publicar apenas uma
fração dos telegramas – aqueles cujo texto já fora individualmente editado pelos
jornalistas dos cinco parceiros da mídia impressa.
No fim, então, toda a ansiedade sobre o destino dos informantes foi mera
especulação. No final do ano em que o WikiLeaks publicou essa imensa
quantidade de informação, nenhuma evidência concreta viera à tona de que
algum informante tivesse sofrido represálias reais. A única informação foi a do
secretário de Defesa, Robert Gates, que disse a um marinheiro a bordo de um
navio de guerra norte-americano em San Diego: “Não temos informações
específicas sobre um afegão que tenha sido assassinado”. A CNN informou, em
17 de outubro, que, de acordo com um oficial sênior da Otan, em Cabul, “Não
houve um único caso de afegãos que precisassem ser protegidos ou transferidos
por causa do vazamento”.
Como Walsh previra, os inimigos do WikiLeaks, porém, jogaram sujo. O
almirante Mike Mullen, chefe do Estado-maior das Forças Armadas, esteve entre
os primeiros. “A verdade é que eles podem ter nas mãos o sangue de um jovem
soldado ou de uma família afegã”, ele disse na coletiva de imprensa do
Pentágono, quatro dias depois do vazamento. Esse slogan – “sangue nas mãos”
–, por sua vez, transformou-se de especulação em fato, repetido de maneira
interminável e usado como justificativa para o desejo de sangue por parte de
alguns políticos norte-americanos, que aparentemente acharam que podiam
ganhar votos ao exigir o assassinato de Assange. Particularmente repugnante era
ouvir a frase sendo usada por generais norte-americanos que, como revelavam os
documentos do WikiLeaks, tinham litros de genuíno sangue civil nas mãos.
Assange começava a se mostrar um parceiro volátil em diversos aspectos. Nick
Davies era seu principal contato e o homem que o trouxera para o The Guardian.
Portanto, foi um choque quando a dupla brigou. Davies acreditava que ele e
Assange haviam desenvolvido uma amizade, fortalecida por jantares, piadas,
debates filosóficos na madrugada e refeições ao ar livre no centro histórico da
ilha de Estocolmo: “Eu o achava inteligente, interessante e uma companhia
divertida. Nós estávamos envolvidos nessa aventura excitante e muito
significativa”. Mas, na véspera da divulgação dos diários de guerra do
Afeganistão, o telefone de Davies tocou. Do outro lado da linha estava Stephen
Grey, um repórter freelance. Grey começou: “Adivinha só? Acabei de conversar
com Julian Assange”. E explicou que Assange lhe dera uma entrevista exclusiva
para a tevê sobre os bombásticos diários de guerra do Afeganistão. Ele também
fornecera material para o site da Channel 4. E havia mais notícias ruins: Grey
disse que Assange abordara a CNN e a Al Jazeera e lhes oferecera entrevistas
também. Davies ficou furioso. Assange, porém, insistiu: “Sempre foi parte do
acordo que eu faria isso”.
A discussão não era um bom sinal para o futuro, nem os crescentes atritos de
Assange com o The New York Times. O NYT se recusava a disponibilizar um link
direto para os telegramas do WikiLeaks a partir do próprio site do jornal. Bill
Keller queria fazer de modo diferente do The Guardian e da Der Spiegel, que,
depois de algumas discussões internas, haviam decidido publicar um link para o
WikiLeaks normalmente. O The New York Times assumiu a posição igualmente
defensável de que os leitores – e, na verdade, o próprio governo hostil dos
Estados Unidos – poderiam não considerar a equipe do jornal como repórteres
imparciais se eles os direcionassem para o WikiLeaks de maneira tão óbvia.
Keller afirma: “Temíamos – corretamente, como se viu depois – que o material
contivesse nomes de informantes do baixo escalão e os transformasse em alvos
do Talibã”. Assange ficou furioso com o que considerava a pusilanimidade dos
americanos. E dizia com seu sotaque australiano: “Eles precisam ser punidos!” O
editor do The New York Times, por sua vez, passou a considerar Assange um
“semianarquista arrogante”. Keller recorda: “Conversei com Assange algumas
vezes por telefone e ouvi suas reclamações. ‘Onde está o respeito?’, perguntava.
‘Onde está o respeito?’ Outra vez, ele me telefonou para dizer que não gostara
do perfil de Bradley Manning que tínhamos escrito. [...] Assange reclamava que
havíamos ‘psicologizado’ Manning e dado pouca importância ao seu ‘despertar
político’”.
Sob a superfície, ferviam todas essas tensões. Mas, para o público, a
divulgação da primeira parte dos diários de guerra do Afeganistão representava
um sutil e bem orquestrado golpe de mídia, que colocou os três veículos de
comunicação em máxima evidência e transformou Julian Assange, durante
algum tempo, no homem mais famoso do mundo. Era o maior vazamento da
história – até ser sucedido por um conjunto ainda mais ousado de revelações
sobre o Iraque. Essas eram duas guerras tremendamente controversas que os
Estados Unidos haviam infligido ao mundo. Agora, parecia impossível encobri-
las.
9

Os diários de guerra do Afeganistão


Ciberespaço
25 DE JULHO DE 2010

“Lamentamos a perda de vidas inocentes


por causa da covardia dos militantes.”

– CHRIS BELCHER, MAJOR DO EXÉRCITO NORTE-AMERICANO, AFEGANISTÃO

UMA NOITE NO Afeganistão, cinco pesados foguetes, lançados de um novo


N tipo de arma, chegaram guinchando em meio à escuridão e atingiram uma
escola religiosa – uma madraçal –, reduzindo-a a escombros. Quando os
helicópteros de ataque aterrissaram e as forças especiais norte-americanas
saíram, descobriram que haviam matado sete crianças. O alvo real, um
combatente de alto escalão da Al Qaeda, escapou. Esse evento – um dos muitos
durante a pouco civilizada Guerra do Afeganistão – ocorreu em 17 de junho de
2007 e foi descrito da seguinte maneira pelo serviço de notícias do Comando de
Operações Especiais do Exército norte-americano:
Ataque aéreo em Paktika
AEROPORTO DE BAGRAM, Afeganistão.
As forças afegãs e de coalizão realizaram uma operação no distrito de Zarghun Shah, na província de
Paktika, na noite de domingo, que resultou em sete crianças e diversos militantes mortos e dois militantes
presos. Inteligência confiável indicou o complexo, que incluía uma mesquita e uma madraçal, como um
esconderijo suspeito de combatentes da Al Qaeda.
As forças de coalizão confirmaram a presença de atividade perversa no local antes de receber aprovação
para realizar um ataque aéreo. Após o ataque, moradores do complexo confirmaram que combatentes da
Al Qaeda estiveram presentes durante todo o dia.
Informações anteriores [sugerem] que as sete crianças na madraçal foram mortas em consequência do
ataque. “Esse é mais um exemplo de como a Al Qaeda usa o abrigo de uma mesquita, bem como civis
inocentes, para se proteger”, afirmou o major do Exército Chris Belcher, porta-voz da Força-Tarefa
Combinada Conjunta 82. “Lamentamos a perda de vidas inocentes por causa da covardia dos militantes.”

A história real só apareceu com o texto de um diário militar vazado, obtido


pelo WikiLeaks três anos depois e publicado em todo o mundo pelo The
Guardian e seus parceiros, o The New York Times e a Der Spiegel. O relatório de
campo estava entre os 92 mil supostamente enviados pelo soldado norte-
americano Bradley Manning ao fundador do WikiLeaks, Julian Assange.
O diário revelou que, na verdade, não houve um “ataque aéreo” (as câmeras de
reconhecimento poderiam, de fato, ter sido mais precisas). Em vez disso, o que
aconteceu foi o teste de um novo e poderoso – embora potencialmente
indiscriminado – sistema de mísseis, um lança-foguetes guiado por GPS que
podia ser disparado da traseira de um caminhão a pouco mais de sessenta
quilômetros de distância, conhecido como Himars (high mobility artillery rocket
system, sistema de foguetes de artilharia de alta mobilidade). O ataque não foi
iniciado pelas “forças afegãs e de coalizão” comuns, mas por uma obscura tropa
de matadores norte-americanos conhecida como Força-Tarefa 373, cujos alvos
constavam de uma lista especial. E o ataque dos foguetes não foi motivado por
“atividade perversa”, mas pela esperança de que um precioso alvo – o
comandante al-Libi – estivesse na área.
O diário de guerra vazado trazia o seguinte relatório (as siglas estão escritas
por extenso):
Data 2007-06-17 21:00:00
Tipo Ação Amigável

Título 172100H[orário Zulu] F[orça]-T[arefa] 373 Rota OBJ[etiva]

Resumo
OBSERVAÇÃO: As informações a seguir (FT-373 e Himars) são Classificadas Secretas/NOFORN. O
conhecimento de que a FT-373 realizou um ataque Himars deve ser protegido. Todas as outras
informações a seguir são classificadas Secretas/LIB[eração] FIAS [Força Internacional de Assistência à
Segurança].

Missão
F[orça]-T[arefa] de O[perações] E[speciais] realiza ataque cinético, seguido por incursão da Força de
A[taque] com H[elicópteros] para matar/capturar ABU LAITH AL-LIBI, em Á[rea] de I[nteresse]
N[omeada] 2.

Alvo
Abu Laith al-Libi é um veterano comandante militar da Al Qaeda, líder do Grupo de Combate Islâmico
Líbio (GCIL). Dirige campos de treinamento em todo o Waziristão do Norte. A base é em Mir Ali,
Paquistão. Busca de informações durante a última semana indica concentração de árabes N[as]
P[roximidades] D[a] área do objetivo.

Resultado
6 x I[nimigos] M[ortos] E[m] A[ção]; 7 x N[ão] C[ombatentes] MEA 7 x presos

Resumo
A F[orça] de A[taque] com H[elicóptero] partiu da [base] Orgun-E para realizar conexão e
posicionamento em relação ao objetivo, imediatamente após os tiros de pré-ataque. Sob ordens, 5
foguetes foram lançados e destruíram estruturas no objetivo (AIN 2). A FAH rapidamente introduziu a
força de ataque na Zona de A[terrissagem do] H[elicóptero]. I[nteligência], V[igilância] e
R[econhecimento] informou diversos H[omens] N[ão] I[dentificados] deixando a área do objetivo. A
força de ataque rapidamente conduziu movimento desarmado para a área-alvo e estabeleceu contenção no
lado sul do objetivo. Durante o ataque inicial, recursos aéreos exclusivos prenderam diversos H[omens]
em I[dade] M[ilitar] fugindo da área do objetivo. O C[omandante] da F[orça] T[errestre] estimou que 3 x
IMEA fugitivos ao norte e 3 x IMEA fugitivos ao sul do complexo foram neutralizados com tiros dos
recursos aéreos. A força de ataque rapidamente manobrou com um elemento do ESQ[ua]D[rão] sobre os
fugitivos restantes, o qual deteve 12 x HIM e retornou para a área do objetivo. O CFT transmitiu
avaliação inicial de 7 x NC MEA (crianças). Durante a investigação inicial, foi avaliado que as crianças
não podiam sair do edifício, em virtude da presença de HNIs no complexo. A força de assalto conseguiu
descobrir 1 x criança NC nos escombros. A E[quip]E MÉD[ica] imediatamente limpou os destroços de
sua boca e realizou RCP* para reviver a criança durante 20 minutos. Em razão do tempo limitado, o
C[oman]D[ant]E da FT iniciou o elemento de F[orça] de R[eação] R[ápida] para combater um alvo
associado (AIN 5). Eles rapidamente imobilizaram o objetivo e iniciaram o ataque. O objetivo foi
assegurado e a força de ataque inicialmente prendeu 6 x HIM. O CFT recomendou que 7 HIM fossem
detidos para interrogatório adicional. O CDE da FT avaliou que a força de ataque continuará SSE.* O
governador local foi notificado da situação atual e solicita auxílio para cercar a Á[rea de] O[perações],
com apoio da Polícia N[acional] A[fegã] e das forças locais de coalizão, em busca do I[ndivíduo de]
A[lto] V[alor]. Uma E[quipe de] R[econs-trução] P[rovincial] está a caminho da AO.
1) O alvo era um Líder de Alto Escalão da A[l] Q[aeda]

2) Padrões de vida foram realizados em 18 de junho de 0800z a 1815z (hora do ataque) sem indicações de
mulheres ou crianças no objetivo

3) A mesquita não era o alvo nem foi atingida; relatórios iniciais indicam que não foi danificada

4) Um idoso que estava na mesquita afirmou que as crianças foram detidas à força e mantidas
intencionalmente no interior

ATUALIZAÇÃO: 18 0850Z junho 07

– O governador Khapalwak tentou, sem sucesso, falar com o presidente Karzai (a agenda do presidente
estava cheia), mas espera contatá-lo em uma hora (P[residente] d[o] A[feganistão] contatado durante a
tarde ~ 1400Z)

– O governador realizou uma Shura [consulta] nesta manhã; moradores dos distritos de Yahya Yosof &
Khail estavam presentes

– Ele apresentou os Pontos de Discussão que lhe foram oferecidos e acrescentou alguns que seguiram
nossa história atual

– O clima entre os moradores locais é de choque, mas eles entendem que isso foi causado, em última
instância, pela presença de criminosos

– O povo acha bom que homens maus tenham morrido

– O povo lamenta a morte das crianças

– O governador fez coro à tragédia da morte das crianças, mas destacou que isso poderia ter sido evitado
se as pessoas tivessem revelado a presença de insurgentes na área

– O governador prometeu outra Shura em poucos dias e que as famílias seriam compensadas pelas
perdas

– Ao governador foi questionado sobre como estava o humor das pessoas e disse que “a operação foi uma
coisa boa e o povo acredita no que lhe dissemos”

Há menos jargão militar cifrado que o usual neste trecho do diário de guerra. O
relatório é atipicamente longo e em linguagem relativamente simples, porque o
massacre das sete crianças transformou-se num escândalo e o presidente Karzai
estava protestando cada vez mais contra o número de civis mortos nas operações
norte-americanas no Afeganistão. De resto, é representativo do tipo de
documento que veio à tona quando os diários de guerra do Afeganistão foram
publicados pela primeira vez, em 25 de julho de 2010. Nesse dia, a matéria de
capa da Der Spiegel era sobre as atividades do esquadrão da morte, a Força-
Tarefa 373, com o título: “A guerra secreta da América”. No The Guardian,
Nick Davies revelou muitas informações sobre a lista de dois mil alvos para
“matar ou capturar” da FT 373. A lista aparecia representada por outra sigla
cifrada nos diários de guerra: JPel, isto é, joint priority effects list (lista de efeitos
de prioridade conjunta).
Davies escreveu:
O inspetor especial das Nações Unidas para os direitos humanos, professor Philip Alston, foi ao
Afeganistão, em maio de 2008, para investigar rumores sobre assassinatos extrajudiciais. Ele advertiu que
as forças internacionais não eram nem transparentes nem responsáveis, e que os afegãos que tentaram
descobrir quem havia matado seus entes queridos “frequentemente saíram de mãos vazias, frustrados e
amargurados”. Agora, pela primeira vez, os diários de guerra vazados revelam detalhes, previamente
escondidos sob uma cortina de desinformação, das missões mortíferas da FT 373 e de outras unidades,
que perseguiam e capturavam alvos da JPel. Tais detalhes levantam questões fundamentais sobre a
legalidade dos assassinatos e das prisões por longos períodos sem julgamento, e também,
pragmaticamente, sobre o impacto de uma tática que basicamente mata, fere e aliena os espectadores
inocentes cujo apoio a coalizão deseja.

A publicação do The Guardian/WikiLeaks revelou profundas divergências


sobre essas táticas entre a coalizão de ocupação. “Os diários de guerra
confirmam a impressão de que esta é uma campanha militar sem direção
estratégica clara, em meio a generais lutando para lidar com as realidades
sociais, políticas e econômicas do Afeganistão”, afirma Sir Sherard Cowper-
Coles, até junho de 2010 representante especial do governo do Reino Unido no
Afeganistão e, de 2007 a 2009, embaixador em Cabul. “A verdade é que a
campanha militar no Afeganistão não é adequadamente supervisionada ou
controlada. A lista de efeitos de prioridade conjunta [a famosa lista “matar ou
capturar”] não é submetida a nenhuma supervisão política genuína – é conduzida
pelos militares. A situação se deteriorou mais ainda desde que os diários de
guerra foram publicados. O general Petraeus intensificou a campanha pelo
massacre dos comandantes do Talibã, sem uma estratégia clara para conseguir
isso politicamente e em oposição à afirmação de seu próprio manual de campo
de que a oposição aos rebeldes é 80% política.”

Uma face até então oculta da Guerra do Afeganistão foi revelada com a
história da FT 373 e da lista de alvos. Outro véu foi erguido com a revelação do
implacável número de mortes de civis totalmente inocentes por tropas nervosas
andando em comboios. As tropas estrangeiras – não apenas americanas, mas
também britânicas, alemãs e polonesas – estavam compreensivelmente
apavoradas com a possibilidade de haver bombas na beira da estrada ou
terroristas suicidas aproximando-se em carros ou motos. Em tese, há
regulamentos estritos sobre as séries graduadas de passos de advertência que os
soldados devem seguir no Afeganistão antes de atirar para matar. Esses são os
procedimentos que governam a EDF – escalada de força. Mas, na prática, como
os registros do diário indicam repetidamente, alguns soldados tendiam a atirar
primeiro e perguntar depois.
Os relatórios de campo quase nunca continham admissões diretas de
comportamento impróprio – eles foram escritos por outros soldados e
destinavam-se à leitura dos oficiais mais graduados. Mas os norte-americanos
eram um pouco menos inibidos ao tratar da conduta dos aliados do que ao
escrever sobre a própria conduta. Assim, David Leigh e o colega Rob Evans
conseguiram extrair evidências do que parecia um uso excessivo de força contra
civis por parte de certas unidades britânicas. Eles identificaram um destacamento
dos Coldstream Guards que recentemente assumira posição no Campo Soutar,
em Cabul. O blog não oficial da tropa descrevia o humor reinante na época: “A
ameaça predominante é de atentados suicidas, que aconteceram em grande
número no passado recente”.
Quatro vezes em quatro semanas, essa unidade parece ter atirado em civis na
cidade para proteger os próprios membros. O pior evento foi em 21 de outubro
de 2007, quando soldados norte-americanos informaram um caso de fogo amigo
“azul no branco”,* no centro de Cabul, observando que tropas desconhecidas
haviam atirado num veículo civil com três intérpretes de uma empresa de
segurança privada e o motorista. As tropas estavam num “veículo de tipo militar
marrom com um soldado da artilharia no alto [...]. Não havia forças norte-
americanas nas proximidades do evento que pudessem estar envolvidas. Mais a
seguir!” Pouco depois, disseram: “A INVESTIGAÇÃO É CONTROLADA
PELOS BRITÂNICOS. NÃO CONSEGUIMOS OBTER A HISTÓRIA
COMPLETA. ESSE EVENTO PERTENCE ÀS FORÇAS BRITÂNICAS DA
FIAS”.
Foram necessários mais três meses, depois que os diários do WikiLeaks vieram
a público, para que o Ministério da Defesa, em Londres, admitisse que esse
tiroteio em Cabul de fato ocorreu. Eles confirmaram que a patrulha britânica
matou um civil e feriu outros dois num micro-ônibus prateado. Alegou-se que o
micro-ônibus não parou quando os soldados sinalizaram para que o fizesse.
Poucos dias depois do tiroteio ao micro-ônibus, em 6 de novembro, os
britânicos informaram que, por volta do meio-dia, haviam ferido outro civil em
Cabul, com o que chamaram de “tiro de advertência”. No fim da tarde, os
americanos souberam que o homem havia falecido e que isso poderia lhes trazer
problemas: “Poderia haver manifestações, porque o civil era filho de um general
afegão da Aeronáutica e estava de casamento marcado para aquela noite, com
muitos convidados”. Depois informaram: “Não era o casamento da pessoa que
foi morta. O casamento marcado para aquela noite era do irmão, mas agora foi
cancelado. A família levará o corpo amanhã de manhã”. Novamente o Exército
britânico acabou confirmando a revelação do WikiLeaks, depois de um longo
atraso. A versão britânica oficial é de que o filho do general “acelerou” seu
Toyota em direção a uma patrulha, dando aos soldados tempo só para gritar uma
advertência antes de atirar no carro, que então derrapou para o acostamento,
lançando o homem para fora, segundo dizem.
Esses eventos – assim como centenas de outros –, tomados juntos, constituem
a história oculta da Guerra do Afeganistão, em que pessoas inocentes eram
continuamente assassinadas por soldados estrangeiros. O impressionante nível
de detalhes fornecido pelos diários de guerra possibilitou que ela se tornasse,
pela primeira vez, acessível.

Contudo, enquanto os veículos de comunicação europeus se concentravam no


sofrimento de civis, o The New York Times tendia a tratar da Guerra do
Afeganistão de modo mais estratégico. Um de seus maiores interesses era
estudar a grande – e muitas vezes surpreendente – quantidade de evidências nos
diários de guerra de que os esforços americanos para suprimir o Talibã estavam
sendo dificultados pelo Paquistão. Havia repetidos registros comentando com
detalhes confrontos ou relatórios nos quais o serviço de inteligência do
Paquistão, a ISI, parecia ser o vilão, apoiando secretamente o Talibã por alguma
razão.
A administração Obama teve uma reação relativamente sofisticada a essa
informação, que o governo sabia que os jornais haviam descoberto. Ela usou a
situação para projetar uma mensagem. Quando os diários foram publicados, às
dez da noite (hora de Greenwich), no domingo, um porta-voz da Casa Branca
enviou um e-mail aos correspondentes jornalísticos em Washington com uma
nota não destinada a publicação, com a seguinte linha de assunto: “Pensamentos
sobre o WikiLeaks”. Eles até anexaram algumas citações úteis de oficiais do alto
escalão destacando a preocupação com a ISI e com locais seguros no
Afeganistão. “Agora isso foi divulgado”, disse um oficial de alto escalão do
governo ao The New York Times. “Agora é real. De alguma forma, isso facilita
para dizermos aos paquistaneses que eles precisam nos ajudar.” Um porta-voz
afirmou publicamente: “Os locais seguros para grupos extremistas violentos no
Paquistão continuam a representar uma ameaça intolerável aos Estados Unidos,
ao Afeganistão e ao povo do Paquistão”.
O primeiro-ministro britânico, David Cameron, numa viagem de dois dias à
Índia, entrou na conversa, de modo particularmente sincronizado. Falando para
um público executivo em Bangalore, dois dias depois da divulgação dos diários,
sinalizou a mesma linha dura: “Não podemos tolerar, de modo algum, a ideia de
que esse país [o Paquistão] possa olhar nas duas direções e promover a
exportação do terror, seja para a Índia, para o Afeganistão ou para qualquer outra
parte do mundo”, afirmou. “É por isso que essa relação é importante. Mas
deveria ser baseada numa mensagem muito clara: de que não é certo manter
contatos com grupos que promovem o terror. Estados democráticos que querem
fazer parte do mundo desenvolvido não podem fazer isso. A mensagem dos
Estados Unidos e do Reino Unido para o Paquistão é muito clara nesse ponto.”
Era uma reviravolta surpreendente, que confirmava o que a maioria dos
jornalistas investigativos já sabia instintivamente: que a divulgação de
informações até então secretas pode estimular todo tipo de resultados
inesperados. O The Guardian resumiu, num editorial, o objetivo de sua
cooperação com o WikiLeaks:
O nevoeiro da guerra é incomumente denso no Afeganistão. Quando ele se ergue, como faz hoje [...],
revela-se uma paisagem muito distinta daquela que conhecíamos. Esses diários de guerra – escritos no
calor da batalha – mostram um conflito brutalmente sujo, confuso e imediato. E contrasta, de algum
modo, com a guerra ”pública”, limpa e higiênica, tal como vista através dos comunicados oficiais e
fotografias necessariamente limitados dos jornalistas que acompanham as tropas [...]. O The
Guardian passou semanas examinando esse oceano de dados, que gradualmente revelou as histórias
de horror humano e de tessitura oculta infligidas diariamente durante uma guerra promovida, muitas
vezes, de modo desastrado. É importante considerar o material pelo que ele é: um catálogo
contemporâneo do conflito. Alguns dos relatórios mais chocantes da inteligência têm origem duvidosa:
alguns aspectos do registro de mortes de civis feito pela coalizão parecem suspeitos. Os diários de guerra
– classificados como secretos – são enciclopédicos, mas não completos. Removemos materiais que
pudessem ameaçar a segurança de tropas, informantes locais e colaboradores.
Com essas limitações, a imagem coletiva que emerge é muito perturbadora. Hoje descobrimos quase 150
incidentes nos quais as forças de coalizão, incluindo tropas britânicas, mataram ou feriram civis, a maior
parte dos quais nunca foi informada; centenas de conflitos nas fronteiras entre tropas afegãs e
paquistanesas, dois exércitos supostamente aliados; a existência de uma unidade de forças especiais cujas
tarefas incluem matar líderes do Talibã e da Al Qaeda; o massacre de civis pegos pelos dispositivos
explosivos improvisados dos talibãs; e um catálogo de incidentes nos quais as tropas de coalizão atiraram
e mataram umas as outras ou seus companheiros de armas afegãos.
Nesses documentos, as agências de inteligência do Irã e do Paquistão agem de forma descontrolada. A
Inteligência Interserviços do Paquistão está ligada a alguns dos comandantes mais famigerados da guerra.
A ISI supostamente enviou mil motocicletas para o comandante militar Jalaluddin Haqqani, destinadas a
ataques suicidas nas províncias de Khost e Logar, e esteve implicada numa impressionante variedade de
conspirações – de tentativas de assassinar o presidente Hamid Karzai ao envenenamento do suprimento
de cerveja das tropas ocidentais. Essas informações não podem ser averiguadas e podem fazer parte de
um bombardeio de informações falsas fornecidas pela inteligência afegã. Mas ontem a resposta da Casa
Branca às alegações de que elementos do Exército paquistanês foram especificamente associados aos
militantes tornou claro que o status quo é inaceitável. Eles disseram que locais seguros para os militantes
no Paquistão continuam a representar “uma ameaça intolerável” às forças norte-americanas. Por mais que
se corte, esse não é o Afeganistão que os Estados Unidos ou a Grã-Bretanha estão prestes a entregar
embrulhado para presente, com fitas cor-de-rosa, para um governo nacional soberano em Cabul. Ao
contrário: depois de nove anos de guerra, o caos ameaça dominar. Uma guerra travada ostensivamente no
coração e na mente dos afegãos não pode ser vencida assim.

O que o jornal não ousou dizer, por razões de segurança, era que o mundo em
breve seria apresentado a uma coleção ainda maior de documentos vazados, que
detalhavam verdades semelhantes sobre o banho de sangue no Iraque.
Notas

* Ressuscitação cardiopulmonar. (N. da T.)


* Su-sueste. (N. da T.)
* Maneira como os registros dos diários se referem a eventos envolvendo a morte de civis. (N. do E.)
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Os diários de guerra do Iraque


Ciberespaço
22 DE OUTUBRO DE 2010

“Você sabe que não fazemos contagem de corpos.”

– GENERAL TOMMY FRANKS

S DIÁRIOS DE GUERRA do Iraque tratavam de números. Tanto a


O administração norte-americana quanto o primeiro-ministro britânico
recusavam-se a admitir quantos iraquianos comuns haviam sido assassinados
desde a duvidosa “libertação” do país pelas tropas dos dois países. O general
Tommy Franks foi amplamente citado, em 2002, ao dizer: “Não fazemos
contagem de corpos” – um ano antes de conduzir a invasão militar norte-
americana ao Iraque. Talvez ele quisesse dizer que não cairia na armadilha
superotimista da Guerra do Vietnã, nos anos 60, quando generais norte-
americanos alegaram repetidas vezes ter abatido praticamente todo o efetivo
militar do Vietnã do Norte, antes de admitir a derrota final.
Mas como a invasão e a ocupação do Iraque em 2003 se transformaram num
banho de sangue não planejado, a frase “Não fazemos contagem de corpos”
tornou-se o mantra velado de Bush e Blair. As autoridades registraram
meticulosamente que 4.748 soldados das tropas americanas e aliadas perderam a
vida até o Natal de 2010. Mas os governos ocidentais alegaram durante anos que
não havia estatísticas oficiais das baixas.
A publicação da imensa base de dados vazada dos relatórios de campo
iraquianos, em outubro de 2010, refutou essa informação. Os diários revelaram
um registro detalhado, incidente a incidente, de pelo menos 66.081 mortes
violentas de civis no Iraque desde a invasão. Esse número, assustador por si só,
era, porém, apenas um ponto de partida estatístico. Era muito baixo. A base de
dados inicia um ano depois, em 2004, omitindo o elevado número de baixas do
período da invasão, no ano anterior, e termina em 31 de dezembro de 2009.
Além disso, os números norte-americanos são claramente duvidosos em relação
à questão mais delicada: o número de mortes de civis causadas diretamente por
atividades militares dos Estados Unidos.
Por exemplo, a cidade de Falluja foi palco das duas maiores batalhas urbanas,
em 2004, que reduziram o lugar praticamente a ruínas. Mesmo assim, as mortes
de civis não foram registradas pelos diários do Exército, com base no fato de que
anteriormente os moradores haviam recebido ordens de evacuar a área. Por outro
lado, monitores do grupo extraoficial Iraq Body Count (Contagem de Corpos do
Iraque) (IBC)conseguiram identificar mais de 1.200 civis mortos durante os
combates em Falluja.
Em outros casos, o Exército norte-americano matou civis que foram
erroneamente registrados na base de dados como combatentes inimigos. Por
exemplo, foram registrados como combatentes inimigos os dois funcionários da
Reuters atingidos em Bagdá, em 2007, pela artilharia de um helicóptero Apache
– no episódio registrado pela câmera de vídeo do helicóptero e, posteriormente,
descoberto e vazado para o WikiLeaks.
Como ocorre frequentemente, foi necessária investigação jornalística para
aprimorar os números brutos e distorcidos estatisticamente. A Iraq Body Count,
ONG que é uma ramificação do Grupo de Pesquisa de Oxford, cofundada por
um professor de psicologia, John Sloboda, dedicou-se por anos à contagem de
cadáveres que, de outro modo, seriam desconsiderados. Eles conseguiram cruzar
seus números com os dados militares vazados. O grupo afirma:
A divulgação e a publicação dos “Diários de Guerra do Iraque” pelo WikiLeaks proporcionaram ao IBC a
primeira base de dados de grande escala que podíamos comparar e cruzar com a nossa. Para a maior parte
dos incidentes, a base de dados militar é tão detalhada quanto a do IBC e, algumas vezes, até mais. A
divulgação de forma tão detalhada nos permitiu realizar pesquisas preliminares sobre o número de baixas
que os diários podem conter, que não foram registradas em outra parte. Consequentemente, o IBC foi
capaz de fornecer uma estimativa inicial – mas extremamente robusta – de que, após a análise completa
dos diários, outras quinze mil mortes de civis (incluindo três mil policiais comuns) seriam reveladas,
além do número de mortos conhecido anteriormente.

Os números encontrados nos diários de guerra não apenas deram lugar a mais
quinze mil baixas como também eram, de modo geral, comparáveis aos dados
extraoficiais do próprio IBC. No fim de 2010, o IBC concluiu que o número total
de mortes documentadas de civis pela violência no Iraque, desde 2003, variava
entre 99.383 e 108.501. A confiança que o público pode ter nesses números é
consequência direta da divulgação de Manning e Assange, além da dedicação
dos pesquisadores do IBC e do trabalho duro de jornalistas de três organizações
noticiosas. Futuros historiadores poderão avaliar se esse trabalho será capaz de
tornar as aventuras militares norte-americanas e britânicas menos precipitadas e
sangrentas.
Outro aspecto das estatísticas dos diários de guerra que provavelmente é muito
confiável – pois o Exército norte-americano não teria razão para subestimar
esses números – é o espantoso total de civis, soldados locais e membros das
forças de coalizão cuja morte foi causada por minas terrestres rebeldes ou por
combates entre membros do mesmo grupo. Nada menos que 31.780 mortes
foram atribuídas a bombas improvisadas plantadas na beira das estradas pelos
rebeldes. Atentados praticados por extremistas (registrados como “assassinatos”)
causaram mais 34.814 vítimas. No total, os diários de guerra detalharam 109.032
mortes.
Esse total de mortos caiu para os 66.081 civis detalhados anteriormente, mais
15.196 membros das forças de segurança do Iraque e 23.984 pessoas
classificadas como “inimigos”. Em 31 de dezembro de 2009, quando a base de
dados vazada é interrompida, o número total foi alcançado com a adição de
3.771 mortes de soldados norte-americanos e aliados. Todos os soldados
ocidentais que morreram tinham um nome, uma família e, provavelmente, uma
fotografia publicada no jornal local, acompanhada de condolências. Mas os
arquivos mostram que eles representam menos de 3,5% do número total de
mortos no Iraque.

Esse derramamento de sangue chocante foi justificado pelos Estados Unidos,


pelo Reino Unido e por parceiros de ocupação com base no fato de que eles
salvaram os iraquianos do brutal Estado policial de Saddam Hussein. Assim, foi
duplamente perturbador quando uma análise dos dados feita por Nick Davies, do
The Guardian, revelou que o Iraque ainda era uma câmara de tortura. O legado
deixado pelas tropas ocidentais foi de um Exército e de uma força policial
iraquianos que continuariam a prender, abusar e assassinar seus próprios
cidadãos, quase como se Saddam nunca tivesse sido deposto.
Foi a revolta de Bradley Manning com o comportamento da polícia iraquiana e
com a conivência dos militares norte-americanos que o levou, de acordo com
suas declarações nos registros de conversas, a pensar, em 2009, em revelar
informações confidenciais. Depois de ver descartada sua tentativa de inocentar
um grupo de iraquianos presos injustamente, “tudo começou a desmoronar [...].
Eu via as coisas de modo distinto [...]. Estava ativamente envolvido em algo do
qual discordava completamente”.
Davies afirmou, no The Guardian de 23 de outubro:
Autoridades norte-americanas deixaram de investigar centenas de relatos de abuso, tortura, estupro e até
assassinatos praticados pela polícia e pelos soldados iraquianos, cuja conduta parece ser sistemática e
normalmente ficar impune. [...] Os inúmeros relatos de abuso de presos, frequentemente apoiados em
evidências médicas, descrevem prisioneiros algemados, vendados, pendurados pelos pulsos ou tornozelos
e submetidos a chicotadas, socos, chutes e choques elétricos. Seis relatos terminam com a aparente morte
do prisioneiro.
Recentemente, em dezembro de 2009, os americanos receberam um vídeo que, ao que tudo indica,
mostrava oficiais do Exército iraquiano executando um prisioneiro em Tal Afar, no norte do Iraque. O
registro afirma: “A filmagem mostra aproximadamente doze soldados do Exército iraquiano. Dez
soldados conversavam entre si, enquanto outros dois seguravam o prisioneiro. Suas mãos foram
amarradas [...]. A filmagem mostra os soldados levando o prisioneiro pela rua, jogando-o no chão,
socando-o e atirando nele”. O relatório mencionou pelo menos um agressor e foi transmitido às forças de
coalizão.
Em dois casos, as autópsias revelaram evidências de morte por tortura. Em 27 de agosto de 2009, um
oficial médico norte-americano encontrou “contusões e queimaduras, além de ferimentos visíveis na
cabeça, braço, tronco, pernas e pescoço”, no corpo de um homem que a polícia alegava ter se matado. Em
3 de dezembro de 2008, foram encontradas “evidências de algum tipo de procedimento cirúrgico
desconhecido no abdome” de outro prisioneiro, que a polícia alegou ter morrido de “doença renal”.
Mas os registros revelam que a coalizão tem uma política formal de ignorar alegações de tortura. Eles
registram que “nenhuma investigação é necessária” e simplesmente transmitem os relatórios às mesmas
unidades iraquianas envolvidas nos atos de violência. Por outro lado, todas as alegações que envolvem
forças de coalizão são submetidas a inquéritos formais.

Mesmo quando torturas como essas não eram mencionadas, surgiam dos
registros das mortes no Iraque inúmeras imagens que devem ter sido
profundamente degradantes e prejudiciais para os agressores militares.
Em 22 de fevereiro de 2007, por exemplo, a tripulação de um helicóptero
Apache, da mesma unidade que matou os funcionários da Reuters – indicativo
de chamada Crazyhorse 18 –, contatou a base via rádio para ouvir instruções
sobre uma perseguição aérea. Eles estavam atrás de dois rebeldes que haviam
lançado morteiros contra uma base norte-americana e, em seguida, tentado fugir
numa van. O Crazyhorse 18 disparou contra o veículo. Os dois homens saltaram
e tentaram escapar num caminhão basculante. O Crazyhorse 18 voltou a atirar.
“Eles desceram, querendo se render”, comunicou a tripulação do helicóptero à
base, solicitando orientação. O que eles deveriam fazer?
O fato de que o advogado da base tenha se colocado imediatamente à
disposição, pronto para ser consultado, é sinal do respeito norte-americano à
legalidade. O controlador respondeu: “O advogado diz que eles não podem se
render a uma aeronave e que ainda são alvos válidos”. E a tripulação do
helicóptero matou os homens, enquanto eles tentavam se render.
Os dois homens mortos eram combatentes inimigos. O mesmo provavelmente
não pode ser dito de um carro que dirigia muito próximo a um comboio de
suprimentos, nos arredores de Bagdá. Os fuzileiros navais no último Humvee*
disseram, mais tarde, que fizeram sinais com as mãos e deram tiros de
advertência no bloco do motor, “para obrigar o veículo a diminuir a velocidade e
não se aproximar do comboio”. Quando ele se aproximou cerca de vinte metros
do Humvee, os fuzileiros começaram a atirar no para-brisa.
O texto em maiúsculas do relatório de campo vazado resume a história:
O VEÍCULO DESVIOU DA ESTRADA PARA UM CANAL 1,5 KM AO NORTE DE SAQLAWIYAH
(38S LB 768 976) E AFUNDOU. (1) HOMEM ADULTO SAIU DO VEÍCULO E FOI RETIRADO DO
CANAL; OS OUTROS PASSAGEIROS AFUNDARAM COM O VEÍCULO. O HOMEM ADULTO
RECEBEU CUIDADOS MÉDICOS NO LOCAL E FOI TRANSPORTADO PARA O CCC DE
SAQLAWIYAH E, EM SEGUIDA, PARA O HOSPITAL JORDANIANO. A F[ORÇA] P[OLICIAL]
I[RAQUIANA] DE SAQLAWIYAH FOI ATÉ O LOCAL E RETIROU DO VEÍCULO (2) MULHERES
ADULTAS, (3) CRIANÇAS COM IDADE ENTRE 5 E 8 ANOS E (1) BEBÊ. TODOS OS (6) SE
AFOGARAM. A FPI DE SAQLAWIYAH ESTÁ LEVANDO TODOS OS CORPOS RETIRADOS
PARA RAMADI.

Não se tratava agora da retórica militar hi-tech tão frequentemente exibida nos
comunicados do Exército norte-americano à imprensa, mas de atos de crueldade
mais dignos de uma versão moderna das gravuras sombrias de Goya do início do
século XIX – Os desastres da guerra.

Assange lançou a publicação dos diários do Iraque no grandioso salão de baile


do Hotel Park Plaza, no Tâmisa, com o Iraq Body Count, Phil Shiner, do Public
Interest Lawyers (Advogados em Defesa do Interesse Público) e uma equipe de
documentaristas televisivos. Pouco antes das dez da manhã, as equipes se
alinharam no corredor atrás de Assange, que vestia terno de corte reto e gravata
e os levou até o mar de flashes e luzes das câmeras. Ele estava cercado por uma
multidão. Era como se o australiano fosse uma estrela do rock acompanhado de
sua comitiva. Cerca de trezentos jornalistas viram seu desempenho – cinco vezes
mais que os presentes na divulgação dos diários do Afeganistão. Quando se fez
silêncio na sala lotada, Assange anunciou: “Esta revelação é sobre a verdade”.
Agora ele já havia divulgado dois dos controversos pacotes vazados para os
jornais, com resultados impressionantes. Mas a pergunta que permanecia na
mente dos jornalistas do The Guardian e do The New York Times, enquanto
observavam toda aquela bajulação, era se Assange estaria preparado para honrar
seu compromisso e entregar o terceiro pacote para publicação. Isso se revelaria
ainda mais sensacional.
Notas

* High mobility multipurpose wheeled vehicle (veículo multifuncional de alta mobilidade), utilitário militar
usado pelas Forças Armadas dos Estados Unidos e de outros países. (N. da T.)
Notas

* Literalmente, “Uma coleção de história desde 1966 até os nossos dias”. (N. da T.)
* Literalmente, “Diplomática”. (N. da T.)
* NOFORN = Not Releasable to Foreign Nationals (Não pode ser divulgado a cidadãos estrangeiros). (N.
da T.)
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O homem mais famoso do mundo


Apartamento de Sonja Braun, Estocolmo
SEXTA-FEIRA, 13 DE AGOSTO DE 2010

“Sonja tentou diversas vezes pegar a camisinha, mas Assange


a impediu, segurando seus braços e prendendo suas pernas.”

– DEPOIMENTO DE BRAUN, DOSSIÊ DA POLÍCIA SUECA

REVELAÇÃO DE QUE Julian Assange estava sendo acusado de estupro veio


A como uma bomba. Numa sequência de chamadas internacionais frenéticas,
Leigh e Davies tentavam juntar os pedaços de uma história de desastrosos
conflitos sexuais, ocorrida no alto verão nórdico, que levaria os promotores
suecos a emitir o pedido de extradição de Assange da Grã-Bretanha para ser
interrogado sobre as acusações de comportamento sexual impróprio. Ninguém
imaginara isso.
Uma coisa é certa: de acordo com as provas apresentadas, Julian Assange não
é, de modo algum, um estuprador no sentido usado por muitas pessoas – ou seja,
ele não pratica nem foi acusado da brutal e premeditada violência sexual que a
palavra “estuprador” evoca nas manchetes dos tabloides.
Mas, durante sua estada em Londres, Assange frequentemente demonstrou ter
uma atitude inquieta e predatória em relação às mulheres. Isso contrastava com
seu comportamento normalmente indiferente. Numa ocasião, sua conduta fez sua
loura advogada, Jennifer Robinson, do escritório Finers Stephens Innocent,
corar. Reunido no alto da escada no interior do prédio do The Guardian, um
grupo de repórteres famintos, com Assange e alguns membros de sua equipe de
advogados, falava sobre sair para comer. “Devemos levar os advogados
conosco?”, perguntou um jornalista. Assange olhou maliciosamente para
Robinson e disse: “Vamos levar só a moça bonita”.
Um membro da equipe do WikiLeaks confidenciou mais tarde: “Sempre
alertávamos Julian para que ele parasse de fazer comentários sexualmente
inapropriados”. A parlamentar islandesa Birgitta Jónsdóttir, uma de muitas
mulheres irritadas, comentou, com certa tolerância, que era importante ter em
mente a cultura de onde vinha Assange. Ela disse ao The Daily Beast online:
“Julian é brilhante em muitos aspectos, mas suas habilidades sociais não são
muito boas [...] ele é um australiano clássico, no sentido de que é um pouco
machista”.
Homens como Assange, que chamam as mulheres de “gostosas” e vêm de um
lugar onde são comuns piadas grosseiras sobre a cobra dentro das calças,
contrastam muito com a sobriedade dos suecos, que são bem avançados na
compreensão dos direitos sexuais femininos.
Nesse contexto, na Suécia, estava montado o cenário para um encontro
ambíguo e, como se viu, extremamente controverso.

Na quarta-feira, 11 de agosto, Assange chegou a Estocolmo vindo de Londres.


Naquela noite, jantou no Beirut Café, restaurante libanês ao norte da cidade, com
mais quatro pessoas. Estavam presentes Donald Boström, de 56 anos, jornalista
sueco que era o contato local do WikiLeaks, e a esposa. O outro casal na mesa
eram Russ Baker, repórter norte-americano de cabelo grisalho cortado bem curto
que, no ano anterior, publicara um polêmico livro sobre a família Bush, e uma
amiga com quem ele viajava. Assange a paquerou de forma tão descarada –
embora sem sucesso – que, segundo os presentes, aquilo acabou gerando uma
briga. “Assange e Baker acabaram se desentendendo do lado de fora do
restaurante”, afirma uma das pessoas envolvidas.
Boström comenta que se preocupava com o amigo famoso e que o prevenira a
respeito de seu comportamento, que poderia representar um risco à sua
segurança: “Ele não seria o primeiro grande homem a se deixar levar por uma
mulher de saia curta”. A fama de Assange e sua notória coragem se tornaram
muito atraentes para as mulheres, segundo Boström: “É mais ou menos o que
acontece com os astros do rock. Para algumas pessoas, ele é o homem mais
famoso do mundo. É inteligente de verdade – isso é atraente – e capaz de
enfrentar o Pentágono. Tudo isso impressiona muita gente. Eu poderia dizer que
a maioria das mulheres que entram em contato com ele se apaixona
completamente. Elas ficam enfeitiçadas”.
A sexta-feira 13 fez jus à fama, pelo menos para Assange. No início da
viagem, o famoso informante ficou hospedado no subúrbio de Södermalm, num
apartamento vazio que pertencia a Sonja Braun (nome fictício), de 31 anos,
ativista política de um movimento chamado Irmandade, grupo cristão ligado ao
Partido Social-Democrata. Braun é uma feminista magra de cabelos escuros,
anglófona, ex-funcionária para questões de igualdade numa importante
universidade sueca. Foi ela quem convidou Assange para ir até a Suécia
apresentar um seminário, e, na verdade, parece ter arranjado tudo para que ele
dormisse em seu apartamento, que tinha apenas um quarto e uma única cama,
como observam os advogados de Assange.
Antes da chegada do australiano, Braun telefonou para Boström, recorda o
jornalista: “Nós nunca havíamos nos encontrado antes, e ela me disse: ‘Olá, meu
nome é Sonja Braun. Estou organizando um seminário e estarei fora numa
viagem de negócios. Meu apartamento estará vazio e Julian poderia ficar lá. O
que você acha?’ Sairia mais barato para a Irmandade não pagar diárias de hotel,
e Julian ficaria melhor num apartamento que num hotel, por isso sugeri isso a
ele, que concordou com a ideia. Então, pus os dois em contato. Fui o
intermediário, por assim dizer. A ideia era que Julian ficasse lá até sexta-feira, eu
acho. O seminário era no sábado. Supostamente, Sonja voltaria no sábado”.
Mas ela decidiu voltar um dia antes. Nesse ponto, as histórias começam a
divergir. Os advogados de Assange forneceram uma cronologia precisa numa
audiência posterior em Londres, dizendo: “Braun chega sem explicação, o leva
para jantar e o convida para a cama dela. Ela lhe oferece uma camisinha e eles
têm relações sexuais diversas vezes”. Os advogados acrescentam com sarcasmo:
“De manhã, Braun tira uma foto (não autorizada) de Assange dormindo na cama
e depois a divulga na internet”.
Uma versão bem diferente foi dada à polícia pela própria Braun. Segundo ela,
era a história de uma noite de sexo ruim, com uma reviravolta. O documento da
polícia registra: “Enquanto eles estavam sentados tomando chá, Assange
acariciou a perna de Sonja, que declarou que em nenhum momento antes desse
ele tentara demonstrar qualquer interesse físico por ela, o que inicialmente ela
recebeu bem. Então, de acordo com Sonja, tudo foi muito rápido. Assange era
bruto e impaciente. Ele arrancou as roupas dela e, ao mesmo tempo, quebrou seu
colar. Sonja tentou vestir uma peça de roupa, porque as coisas estavam indo
rápido demais e de modo desagradável, mas Assange arrancou-as novamente.
Sonja afirma que não queria ir além, mas era muito tarde para impedi-lo, já que
ela fora longe demais. Ela afirma que sentia ser a única culpada e, por isso,
deixou que Assange a despisse”.
Essa ação vigorosa não parece distante da realidade. Outra mulher, de Londres,
que se envolveu com Assange mais ou menos na mesma época, disse aos autores
do livro: “Eu o beijei. Em seguida, ele começou a tentar tirar meu vestido. Essa
era a abordagem dele”.
Mas as queixas de Braun vão além. De acordo com sua declaração, ela
percebeu que ele estava tentando fazer sexo com ela sem proteção: “Ela tentou
girar os quadris e cruzar as pernas para interromper a penetração. Braun tentou
diversas vezes pegar a camisinha, mas Assange a impediu, segurando seus
braços e prendendo sua pernas, tentando penetrá-la sem preservativo. Braun
afirma que estava quase chorando e, como não podia pegar a camisinha, pensou:
‘Isso vai terminar mal’. Depois de algum tempo, Assange perguntou a Sonja o
que ela estava tentando pegar e por que estava cruzando as pernas, e ela
respondeu que queria que ele colocasse a camisinha [...]. Assange já soltara seus
braços e colocara a camisinha que ela lhe dera. Ela afirma que sentia haver uma
resistência velada por parte de Assange, o que a fez perceber que ele não gostava
que lhe dissessem o que fazer”.
Braun disse à polícia que, em algum momento, Assange “fizera algo” com o
preservativo, que fez com que este se rompesse, e ejaculara sem retirar o pênis.
Quando, mais tarde, questionado pela polícia de Estocolmo, Assange confirmou
que fizera sexo com Braun, mas disse que não rasgara o preservativo, alegando,
inclusive, que continuou a dormir na cama dela na semana seguinte sem que em
nenhum momento ela tocasse nesse assunto.
Às 9h30 da manhã seguinte, segundo os defensores de Assange, um jornalista
chegou para levá-lo para a palestra. “Ele ficou surpreso ao encontrar Braun lá.”
Ela também parecia constrangida e negou ter feito sexo com Assange. Boström
disse à polícia: “Ao ser questionada, ela brincou que Julian estava vivendo em
seu apartamento e dormindo em sua cama, mas que eles não tinham feito sexo.
Ela disse que ele havia tentado, mas que ela não quis”. Muito mais tarde,
segundo Boström, ela confessou, sem graça, que de fato fizera sexo com
Assange. A explicação: “Eu estava orgulhosa de ter o homem mais famoso do
mundo em minha cama, vivendo em meu apartamento”.
Às onze da manhã, na palestra de Assange com o tema “A verdade é a primeira
baixa da guerra”, Sonja Braun podia ser vista filmando no palco. Ela parecia
profissional, embora um pouco desanimada.
Boström começou a desconfiar de algo. No almoço após o seminário, ele
observou que Braun e Assange conversavam com intimidade: “Ela me disse,
rindo, que ele era um cara estranho, que levantava no meio da noite para
trabalhar no laptop, e ela achava isso engraçado. Mas depois, na festa, ela se
senta ao lado de Julian e volta a falar disso [...]. ‘Você ficou acordado ontem à
noite?’, diz. E continua: ‘Eu acordei, você tinha levantado e me senti
abandonada’. E foi essa palavra que me chamou atenção. Por que ela se sentiria
abandonada se eles não...” O relato é interrompido e toma outro rumo: “Peter
Weiderud [um dirigente da Irmandade] diz que é época de lagostim na Suécia,
que Julian veio de fora e que devia experimentar o lagostim sueco”. Braun,
então, zelosamente tuíta, às duas da tarde: “Julian quer ir a uma festa do
lagostim. Alguém tem lugares disponíveis para hoje ou amanhã?” A festa acabou
sendo organizada no apartamento dela, às sete da noite.
Mas, ao que tudo indica, Assange já tinha encontrado outro peixe. Prometendo
aparecer mais tarde na festa do lagostim, ele deixou o almoço não com Braun,
mas com outra admiradora, vestida com um suéter rosa. De cabelos louros
compridos, até o meio das costas, Katrin Weiss (nome fictício) – ou “uma
mulher qualquer”, como Braun supostamente a descreveu mais tarde – tem 25
anos e trabalha no museu local.
No depoimento de Weiss, ela explicou que algumas semanas antes vira
Assange na tevê e, desde então, acompanhara avidamente as notícias sobre o
WikiLeaks. Ela achou Assange “interessante, corajoso e admirável” e, ao
pesquisar seu nome no Google, descobriu, entusiasmada, que ele faria uma
palestra na Suécia. Foi uma das primeiras a se inscrever no seminário. “Sonja se
aproximou de Katrin e perguntou se ela podia ajudar procurando um cabo para o
computador de Julian. Então ela saiu e comprou dois cabos, para ter certeza de
que um deles serviria. Quando voltou, ele nem lhe agradeceu.”
Contudo, Katrin conseguiu transformar a situação numa chance de se
aproximar de seu herói: “Ela ouviu que eles sairiam para comer e perguntou se
poderia acompanhá-los. Então, foi com Sonja, Julian e outras pessoas para um
restaurante”. Segundo o depoimento, no restaurante, ela enviou animadas
mensagens de texto a duas amigas para dizer que estava com o australiano. “Ele
olhou para mim!”, escreveu numa delas. E aproveitou a oportunidade para falar
com ele. “Ele estava comendo uma fatia de pão com um pouco de queijo, ela
perguntou se estava bom, ele pegou um pedaço e deu na boca dela. Mais tarde,
ele comentou que precisava de um carregador para o laptop e ela se ofereceu
para ajudar, pois já tinha arrumado o cabo antes. Ele a segurou pela cintura e
disse: ‘É, você me deu o cabo’. Katrin achou lisonjeiro e percebeu que ele estava
flertando com ela.”
No entanto, os advogados de Assange alegam que foi Katrin quem “flertou
com Julian”. Boström afirma: “Depois que os jornalistas foram embora, ficou
essa mulher, que eu nunca tinha visto antes. Fiquei com a impressão de que ela
era uma dessas, como posso dizer, tietes [...] que são atraídas pela aura de
mistério de Julian. Na verdade, acho que ela não falou muito, exceto quando lhe
perguntei como ela entrara em contato com Sonja. Por isso, não dei muito mais
atenção, apenas pensei que parecia interessante. Ela e Julian se sentaram de
frente um para o outro e conversaram um pouco [...]. Fiquei com a impressão de
que ela estava fascinada por ele”.
Depois do almoço, Weiss se ofereceu para levá-lo até o computador do
trabalho dela. Quando Assange finalmente se cansou de surfar na rede e procurar
tuítes sobre si mesmo no computador de Katrin, no museu, eles foram ao
cinema. “No caminho, Julian parou para fazer carinho em alguns cachorros, e
Katrin achou aquilo encantador.” Ele pegou a mão dela, a beijou e acariciou na
escuridão da última fila. Antes que ele pegasse um táxi para ir à festa do
lagostim de Braun, trocaram números de telefone. Ele a abraçou, disse que não
queria ir embora e que gostaria de vê-la de novo.
Naquela noite, a festa do lagostim no apartamento de Braun parece ter tido
momentos difíceis. Uma amiga disse à polícia que “perguntou a Sonja se ela
tinha dormido com Julian [...] e ela respondeu: ‘Sim!’ parecendo bastante
orgulhosa disso”. Braun então tuitou, aparentemente entusiasmada: “Sentada ao
ar livre às duas da manhã, quase congelando, com as pessoas mais legais e
inteligentes do mundo”. Mas, nesse meio-tempo, Assange falava discretamente
ao telefone com Weiss. De acordo com outra amiga ouvida pela polícia, Kajsa,
Assange tentava, ao mesmo tempo, se aproximar dela, fato de que Braun não
gostou muito: “[Kajsa] percebeu a estranha tensão entre Sonja e Julian, [que]
flertava com ela e com outras garotas. Kajsa perguntou a Sonja se ela iria dormir
com Julian. Sonja falou que já o fizera e que fora o pior sexo de sua vida. E disse
a Kajsa que ela podia ficar com ele”. Supostamente, Braun disse algo mais:
“Julian prendera as mãos dela quando eles fizeram sexo e aquilo tinha sido
desagradável. Além de ter sido a pior transa do mundo, também foi violenta”. Às
três da manhã, segundo Kajsa, Assange tentou deixar a festa com ela, que afirma
ter recusado.
Os defensores de Assange têm uma versão diferente. Eles dizem que Braun era
“cordial” em relação a ele. Segundo os advogados, quando perguntaram se ela
queria que Julian saísse do apartamento, ela “insistiu que ele ficasse [...] e disse:
‘Não tem problema nenhum, ele é muito bem-vindo aqui’”.
Donald Boström também estava na festa, mas não pôde ajudar a esclarecer os
fatos. Ele estava mais preocupado com os crustáceos: “Durante a festa do
lagostim, passei a maior parte do tempo sentado, comendo. Eu gosto muito de
comer. Houve uma conversa sobre Julian sair do apartamento e ficar com outro
casal, mas a impressão geral era de que ele ficaria com Sonja”.
Naquela noite, Braun dividiu a cama novamente com Assange, mas, durante o
fim de semana, o criticou para outra amiga, Petra. No domingo, contou à amiga
que “eles não transavam mais porque Julian ultrapassara todos os limites [...].
Ela não se sentia segura [...]. Julian fora violento e quebrara seu colar. Ela
achava que ele havia rasgado [a camisinha] de propósito”. Petra acrescentou que
a amiga lhe contou um monte de outras informações incômodas, por exemplo,
“que Julian não tomava banho e não dava descarga”.
Os defensores de Assange contam outra história. Eles dizem que Sonja
organizou um jantar em homenagem a Assange no domingo à noite. Ela falou
muito bem dele e novamente recusou as ofertas de hospedá-lo em outro local.
No dia seguinte, telefonou para Boström – afirmam eles – e brincou,
desanimada, que Assange se tornara “seu primeiro filho adotivo”, porque ela
insistia em lavar suas roupas e fazer com que ele se alimentasse bem, como se
fosse sua madrasta. Não houve mais relações sexuais, apesar das tentativas de
Assange.
Enquanto isso, Weiss tentava em vão entrar em contato com Assange, visto
que o celular dele frequentemente estava desligado. Entre outras coisas, ele
estivera ocupado tentando descobrir como poderia conseguir residência sueca e
credenciais jornalísticas. Na noite de terça-feira, 17 de agosto, eles voltaram a se
encontrar. Mais tarde, Weiss forneceria à polícia um relato do que acabou se
transformando numa infeliz aventura de uma noite: “Ela concordou em esperar
por ele e, depois de sair do trabalho, andou um pouco pela cidade. Às nove da
noite, ainda não tivera notícias dele, então telefonou e ele disse que precisava ir a
mais uma reunião e que ela devia encontrar com ele lá”. Quando Assange
finalmente saiu, eles concordaram em pegar o trem para Enköping, a pequena
cidade onde ela morava, a oitenta quilômetros dali. Ele pediu a Katrin que
pagasse as passagens, pois era muito perigoso para ele usar o cartão de crédito.
Weiss disse à polícia que, no trem, ele admitiu que dormira na cama de Braun
após a festa do lagostim, mas fez o improvável comentário de que “Sonja
gostava de garotas – que ela era lésbica”.
Era meia-noite quando finalmente chegaram à casa de Weiss. “Eles tiraram os
sapatos, mas o relacionamento parecia ter esfriado. A paixão e a excitação
tinham desaparecido [...]. Escovaram os dentes juntos, o que parecia rotineiro e
entediante.” Assange a empurrou vigorosamente na cama, “para mostrar que era
homem de verdade”, disse Weiss à polícia, mas seu coração simplesmente não
estava lá. Subitamente ele se virou, dormiu e começou a roncar.
Weiss afirma que se sentiu “rejeitada e chocada” e que ficou acordada,
deprimida, trocando mensagens de texto com a amiga, Maria. Esta se lembra de
que acordou “com um monte de mensagens de Katrin que não eram positivas. O
sexo tinha sido ruim e Julian não tinha sido gentil. Ela disse que teria que ser
examinada por causa das longas preliminares”. As coisas pioraram um pouco
mais durante a noite. Julian acordou e fez sexo com Katrin, reclamando da
insistência dela em usar camisinha. Ele “murmurava que preferia ela ao látex”.
De manhã, começou a lhe dar ordens, exigindo que ela lhe trouxesse água e suco
de laranja e, em seguida, mandando-a comprar o café da manhã. Weiss declarou
que não gostava da ideia de deixá-lo sozinho no apartamento. Ao sair, pediu que
ele fosse “bonzinho”, deixando-o nu e esparramado na cama, feito um
imperador, segurando um de seus celulares. E ele respondeu: “Sou sempre
mau!”
Enquanto comprava o café da manhã, Weiss aproveitou para ligar para a
amiga, Maria: “Katrin disse que não iria comprar todas aquelas coisas e lhe dar
tudo na mão”. Mas ela voltou para casa, lhe preparou um mingau, foi para a
cama e eles transaram novamente, com camisinha, declarou a amiga. “Eles
dormiram de novo, e ela acordou ao perceber que ele a penetrava. Ela perguntou:
‘Você está usando alguma coisa?’, e ele respondeu: ‘Você’. Então ela disse:
‘Espero que você não tenha HIV’, e ele respondeu: ‘É claro que não tenho’. Ela
sabia que era tarde demais, que ele já a penetrara, então deixou que ele
continuasse. Ela nunca tinha feito sexo sem proteção antes. Então ela lhe
perguntou: ‘E se eu engravidar?’ Ele respondeu que a Suécia era um bom lugar
para criar uma criança. Ela o encarou, chocada.”
Segundo o depoimento da amiga, ele acrescentou, de maneira irreverente, que
eles poderiam chamar o bebê de “Afeganistão”. O relatório da polícia expõe um
comentário estranho e perturbador de Katrin: “Ele também disse que sempre
tinha pílulas do dia seguinte, mas que, na verdade, eram pílulas de açúcar”. O
que ele queria dizer com isso? Não raro Assange parecia curiosamente orgulhoso
de seu talento como pai. Nessa época, contou aos amigos que recentemente
engravidara uma coreana que conhecera em Paris e que ela estava perto de ter o
bebê.
Essa única noite passada com Katrin é a base da acusação de estupro contra
Assange. Fazer sexo com uma mulher inconsciente ou adormecida é crime, tanto
na Suécia quanto no Reino Unido. Mais tarde, a investigação colheu o
depoimento do ex-namorado de Weiss, que afirmou que ela se preocupava muito
em evitar os riscos do sexo sem proteção e que nunca o permitia. Depois que
Assange voltou para Estocolmo (ela precisou pagar a passagem dele
novamente), Weiss trocou os lençóis manchados, que considerava “nojentos”, e
comprou a pílula do dia seguinte na farmácia. “Quando ela contou às amigas,
percebeu que fora vítima de um crime. Foi até o Hospital Universitário de
Danderyd e de lá para o Södersjukhuset (Hospital Geral do Sul de Estocolmo),
onde foi examinada com o chamado kit de estupro.”
Hanna, amiga de Katrin, uma das pessoas que ela disse ter contatado naquela
manhã, resume a história: “Ela disse que não foi bom e que só queria que ele
fosse embora [...]. A personalidade de Assange mudou quando ele chegou ao
apartamento, e Katrin se arrependeu de tê-lo deixado ficar lá [...]. O que a irritou
foi que Assange fez sexo sem proteção com ela, enquanto ela estava dormindo.
Ele também tentou repetidas vezes fazer sexo sem proteção durante a noite.
Hanna perguntou por que Katrin não o empurrou quando soube que ele não
estava usando camisinha, e Katrin disse que estava muito chocada e paralisada e
não sabia realmente o que estava acontecendo. Hanna tem certeza de que ela não
deixou isso acontecer porque ele é famoso, embora possa ter importância o fato
de ser mais velho. Hanna disse que Katrin queria que Assange fizesse um teste
para detectar doenças sexualmente transmissíveis”.
O relato dos defensores de Assange contradiz a versão dos fatos fornecida por
Weiss em pelo menos um aspecto importante. Ela afirma que comprou o café da
manhã antes de ocorrer o suposto estupro. Eles declararam no tribunal britânico
que as compras para o café da manhã não foram feitas antes, mas “depois que
Assange a penetrou sem camisinha”. Assange não nega que tenha feito sexo sem
camisinha enquanto a parceira estava, como ele diz, “sonolenta”.
De volta a Estocolmo, depois de ter passado a noite toda fora, Assange agora
precisava retornar à casa de Sonja Braun, onde estava hospedado. De acordo
com Braun, que evidentemente percebeu que ele passara a noite com outra
mulher, sua abordagem da delicada situação foi bastante incomum: “Assange
subitamente tirou a calça e a cueca e esfregou o pênis ereto em Sonja. Ela afirma
que considerou esse comportamento estranho e desagradável. Ela não queria
mais que Assange ficasse no apartamento, fato que ele ignorou”.
Como resultado desse suposto incidente, Assange foi acusado pelos suecos de
assédio sexual. Braun afirma que dormiu num colchão naquela noite, e a
seguinte, passou com amigos.
A amiga Petra acrescenta que, na quarta-feira, “apesar de Sonja querer que
Julian saísse do apartamento, ele não saía”. No entanto, Braun não parecia
assustada: “Ele não era agressivo ou perigoso; ela só queria que ele fosse
embora”. Entretanto, Boström recorda: “Na quarta-feira, Sonja me disse: ‘Quero
que ele vá embora’. Diga isso a ele’, respondi, ao que ela retrucou: ‘Eu já disse,
mas ele não vai’. Então falei com Julian: ‘Sonja quer que você saia do
apartamento e diz que já lhe pediu isso’. Ele pareceu surpreso e disse que ela não
tinha falado nada. Então é como um estéreo: um canal diz uma coisa, o outro diz
outra”. A versão de Assange é completamente diferente: “Boström continua
tendo contato com Braun. Ela fala de Julian com carinho e insiste que ele fique
lá com ela”.
Por trás da prosa indistinta do depoimento à polícia, traduzida grosseiramente
do sueco, pode-se ver como a situação se tornara tensa. Só era preciso juntar as
peças. Se Braun e Weiss se encontrassem, poderiam começar a comparar
informações. E haveria confusão.
No dia seguinte, Katrin Weiss enviou uma mensagem de texto a Sonja Braun.
Preocupada de ter contraído alguma doença, Weiss tentava ansiosamente falar
com Assange e achou que Braun pudesse saber onde encontrá-lo. Segundo
Kajsa, amiga íntima de Braun, “Sonja entendeu o que acontecera e elas se
encontraram”. De acordo com essa testemunha, “Sonja disse que a outra garota
decidira ir à polícia para denunciar Julian por estupro e que Sonja a
acompanharia para apoiá-la”.
Outra amiga de Braun, Petra, declarou, em termos semelhantes, que Braun
telefonou “e comentou que encontrara a garota que dizia ter sido violentada por
Julian. Elas descobriram muitas semelhanças entre a experiência dela e a de
Sonja e que Julian queria fazer sexo com a outra garota sem camisinha. Sonja
afirmou que não queria acusar Julian, só queria dar um apoio para a outra garota.
Petra declarou que a história estava ficando cada vez mais confusa”.
Boström assustou-se ao receber um telefonema de Braun: “Pude perceber pela
voz dela que era algo sério; ela declarou: ‘Não é verdade o que eu disse [antes];
nós fizemos sexo’. Então ela disse que a outra mulher – Katrin – a procurara e
dissera a ela que Julian estivera lá e transara com ela. Nas duas ocasiões, havia
sido voluntário [...] Katrin contou a ela que, na manhã seguinte, Julian continuou
querendo transar com ela sem camisinha. E que ela não quis e protestou, mas,
Julian continuou, apesar das negativas. ‘OK’, respondi, meio espantado com a
conversa. E Sonja continuou: ‘Tenho de lhe dizer que fizemos sexo antes no
apartamento e que, para minha surpresa, ele rasgou a camisinha [...]. Ele rasgou
a camisinha e continuou, contra a minha vontade’”.
Boström afirma: “Acredito que Sonja é uma pessoa muito, muito confiável,
então não podia desconsiderar sua história sem falar com Julian e confrontá-lo –
o que, diabos, ele pensava que estava fazendo [...]. Elas queriam que Julian
fizesse um teste de aids, caso contrário o denunciariam. Mas não queriam falar
com ele. Então Braun saiu com Katrin, falamos ao telefone umas poucas vezes e
trocamos mensagens de texto. Liguei para Julian algumas vezes”.
Boström confrontou Assange firmemente. “E sua reação foi de choque. Ele não
entendia [...]. [E dizia:] ‘Katrin não fez nenhuma objeção’; eles ‘se divertiram’
[...]. Então tentei pressioná-lo: ‘Você tirou a camisinha, você rasgou a
camisinha?’ Ele não conseguia entender [...]. Portanto, há duas histórias, e não
posso chegar a nenhuma conclusão [...]. Julian afirma que não entende o que está
acontecendo e que eles fizeram sexo normalmente.” Quando soube que Katrin
alega ter protestado sobre a falta de camisinha, “Julian ficou furioso várias
vezes, dizendo que eles fizeram sexo normalmente [...]. ‘Ela não [reclamou] [...].
É tudo mentira! Mentira! Mentira!’” Mais tarde, Assange garantiu a Boström
que havia falado com Katrin e que achava que aquilo não passava de uma reação
exagerada, “mas eu disse a Julian que, se ele fizesse o teste, elas não o
denunciariam, mas, se não o fizesse, elas o denunciariam sim”.
Ambas as partes confirmam que Assange, num primeiro momento, se recusou
a fazer o teste de HIV. Se ele tivesse concordado, é improvável que o drama
policial que se seguiu tivesse acontecido. O irmão caçula de Katrin afirma que
Assange conversou com ela sobre isso: “Ela pediu a Julian que fizesse o teste,
mas ele alegou que não tinha tempo”. Supostamente, ele disse a Weiss que ela
teria que acreditar em sua palavra quando ele dizia que não tinha nenhuma
doença. Os advogados de Assange negam essa versão. De acordo com eles, o
australiano disse: “Posso fazer o teste, mas não quero ser chantageado [...].
Preferiria fazer voluntariamente”.
Mais tarde, Boström disse ao The Guardian: “Eu era uma espécie de
intermediário – telefonando para ela, para Julian. Isso continuou por horas a fio”.
No fim da tarde de sexta-feira, Assange finalmente aceitou fazer o teste. Mas era
tarde demais. As clínicas já estavam fechadas para o fim de semana. Braun
telefonou para Boström e disse que elas haviam estado na polícia e lá souberam
que não poderiam simplesmente pedir a Assange para fazer o teste. A polícia
insistiu que as declarações delas fossem transmitidas ao promotor de plantão, e
foi emitido um pedido de prisão preventiva de um réu estrangeiro: Julian
Assange.
Naquela noite, a história sobre as acusações contra o homem por trás do
WikiLeaks vazou para o tabloide sueco Expressen. Quem vazou? Não se sabe. A
promotora, que mais tarde se complicou ao confirmar essa informação, afirma
que foi avisada pelo jornal, que aparentemente recebera a dica de uma fonte.
Em consequência dessa sexta-feira agitada, na madrugada seguinte, sábado, 21
de agosto, começou a ser divulgado em todo o mundo que Assange era
procurado pela polícia por “estupro”. Na aldeia global eletrônica, todos podem
ter seus quinze minutos de fama. Assange estava numa situação difícil e
inesperada, e sua convicção de que não “estuprara” ninguém talvez seja
compreensível. Mas seu novo status de celebridade internacional, de “homem
mais famoso do mundo”, mostrava agora ser uma cruel faca de dois gumes. Os
jornalistas exigiam uma reação.
Às 9h15 da manhã, ele tuitou usando o nome do WikiLeaks: “Fomos avisados
de que devíamos esperar ‘truques sujos’. Vemos o primeiro agora”. E, na manhã
seguinte: “Lembrete: desde 2008 a inteligência norte-americana planeja destruir
o WikiLeaks”. Numa entrevista, o tabloide sueco Aftonbladet perguntou se ele
fizera sexo com as duas mulheres que o acusavam. Ele respondeu: “Suas
identidades são mantidas anônimas, então não tenho ideia de quem elas sejam”.
E acrescentou: “Fomos avisados de que o Pentágono, por exemplo, estava
planejando truques sujos para nos arruinar”. Ainda assim, Assange deve ter
imaginado quem eram as duas mulheres que o haviam denunciado à polícia.
Mas essa linha de ataque se mostrou imprudente. Ele deve ter percebido que,
na melhor das hipóteses, suas declarações eram altamente equivocadas. Sua
teoria conspiratória de uma “armadilha sexual” do Pentágono era arriscada e
parece também ter enfurecido as duas mulheres. A entrevista de Assange no
Aftonbladet foi publicada em 22 de agosto. Quando saiu, Maria, amiga de Weiss,
disse à polícia: “Katrin ficou chateada com a confusão e com muita raiva de
Assange”. Sonja também parecia irritada, ao dizer para o Aftonbladet: “As
acusações certamente não foram orquestradas pelo Pentágono nem por qualquer
outra pessoa. A responsabilidade pelo que aconteceu a mim e à outra garota é de
um homem que tem um comportamento deturpado em relação às mulheres e não
sabe ouvir ‘não’ como resposta”. E acrescentou: “Ele não é violento e não me
sinto ameaçada por ele”.

Passaram-se quatro meses de silêncio absoluto antes de Assange admitir em


público que não havia evidências de uma “armadilha sexual”. Seu advogado,
Mark Stephens, que havia usado a expressão, fora citado indevidamente,
explicaria Assange ao Today, programa da BBC, em 21 de dezembro; “aquelas
coisas clássicas russas, de Moscou [...], não são prováveis”. Embora ainda
alegasse que “interesses poderosos” poderiam estar por trás da calúnia,
finalmente admitiu: “Isso não significa que eles estejam lá desde o início e que
tenham inventado tudo”.
O que parecia ser o plano B veio em seguida: descrever as acusações das
mulheres, se não como declarações induzidas pela CIA, pelo menos como um
ataque de misandria. Escondido em Londres, Assange falou tristemente com
amigos sobre a abordagem severa dos burocratas suecos em relação às acusações
sexuais. “A Suécia é a Arábia Saudita do feminismo fundamentalista”, queixou-
se. “Uma das mulheres escreveu vários artigos sobre vingar-se dos homens por
infidelidade e é uma conhecida feminista radical”, disse ao The Times, de
Londres. Seus advogados acrescentaram à conspiração insinuações infundadas
sobre interesses financeiros: “Suas mensagens de texto [...] falam de vingança e
da oportunidade de ganhar muito dinheiro”.
As acusações de Assange envolvendo dinheiro se conectam de modo
significativo à declaração de uma das testemunhas oficiais de Weiss, sua amiga
Maria, que pode dar uma explicação mais inocente: “Maria lembrou que elas
falaram sobre ir até o [tabloide rival] Expressen, porque Julian falara com o
Aftonbladet. Mas isso foi algo que elas apenas mencionaram e não tinham a
intenção de fazer. Maria disse que Katrin havia sido contatada por um jornal
americano e elas brincaram dizendo que ela deveria ser bem paga”.
Aparentemente, nenhuma das mulheres vendeu a história. De qualquer modo,
essas conversas ocorreram depois que elas já tinham ido à polícia.
Assange então mudou para o que parecia ser o plano C: caracterizar as
mulheres que o acusavam como tolas que “ficaram nervosas” e foram
“enganadas”: “Supõe-se que elas foram à polícia em busca de orientação e que
não queriam prestar queixa. O que elas dizem é que descobriram que ambas
haviam sido minhas amantes ao mesmo tempo, que fizeram sexo sem proteção,
ficaram nervosas com a possibilidade de contrair alguma doença sexualmente
transmissível e foram até a polícia para fazer o teste [...]. E ir até a polícia por
causa disso foi uma coisa ridícula”, ele disse ao Today. “Uma das testemunhas,
amiga de uma das mulheres, afirma que ela declara ter sido enganada e levada a
isso pela polícia e por outras pessoas. Essas mulheres podem ser vítimas nesse
processo.”
Os promotores suecos foram posteriormente criticados pelo tratamento
desastrado, e mesmo sinistro, do caso. Um promotor de plantão ordenou a prisão
de Assange na própria noite de sexta-feira. Durante o fim de semana, a
promotora Eva Finne, de Estocolmo, retirou as acusações de estupro envolvendo
as duas mulheres e, em 24 de agosto, substituiu-as por uma acusação menos
grave e sem pena de prisão, equivalente a assédio sexual, restrita apenas ao caso
de Sonja Braun. Em 30 de agosto, ou seja, dez dias depois do início da
tempestade, Assange compareceu voluntariamente para um depoimento formal à
polícia sobre sua breve e, no fim das contas, desastrosa estada na casa de Braun.
Estavam presentes um detetive, Mats Gehlin, da Unidade de Violência
Doméstica da Delegacia de Polícia de Klara, e um advogado.
Assange: Se entre 13 e 14 de agosto, eu, como vocês dizem, deliberadamente rasguei uma camisinha
durante uma relação sexual?
Polícia: Como você reage diante disso?
Assange: Não é verdade.
Ele admitiu que houve algum comentário na ocasião, de acordo com o relatório
da polícia. “Sonja olhou para o lençol, viu que estava molhado e disse: ‘Olhe
isso’, e Julian respondeu: ‘Deve ter sido você’ [...]. Julian pensou que ela estava
mostrando aquilo querendo dizer que o sexo tinha sido bom, embora falasse
como se fosse algo dele [...]. Depois, não tocaram mais no assunto.” Ele admitiu
que não houve mais relações sexuais durante a semana que se seguiu àquele fato,
“mas que houve outros atos sexuais”.
Aos interrogadores, disse que Braun o confrontou apenas no fim da semana
que ele passou em seu apartamento: “Ela me acusou de várias coisas [...], muitas
delas falsas [...]. Que eu tirei a camisinha durante o sexo. Foi a primeira vez que
ouvi isso”. Uma amiga dela, Klara (nome fictício), entrou em contato, e Assange
tentou se encontrar com ela no dia seguinte para conversar sobre “mentiras
inacreditáveis” que ele soubera que estavam sendo contadas a seu respeito. Ele
não achava que Braun estivesse planejando fazer uma acusação formal e ficou
“realmente surpreso” ao descobrir que ela fora a um hospital e que falara sobre
DNA e polícia: “Eu esperava que tudo estivesse resolvido, até que ouvi as
notícias do Expressen”.
A história poderia ter acabado aí. Mas as duas mulheres ressentidas
contrataram um importante advogado para representá-las, Claes Borgström, ex-
ombudsman pela igualdade de oportunidades e proeminente político social-
democrata. Ele reabriu os dois casos, como permitido pela lei, recorrendo à
procuradora-geral de justiça Marianne Ny, especialista em crimes sexuais. Às
agências de notícias, Borgström disse que as mulheres não sabiam que era
possível recorrer da decisão de um promotor até que ele as aconselhasse a fazer
isso. “Li os relatórios da polícia, vi minhas clientes e ouvi suas histórias”, ele
declarou. “Em minha opinião, foi estupro e tentativa de estupro ou assédio
sexual.” E acrescentou: “Temos leis mais rígidas que as de outros países no que
se refere à igualdade de gêneros [...]. Isso significa que, aqui, as mulheres não
aceitam certas coisas, do modo como o fazem em outros países”.
Não é de surpreender que Assange tenha ficado consternado. Com a
perspectiva de enfrentar mais um interrogatório sobre a infeliz aventura de uma
noite com a segunda mulher, Katrin Weiss, decidiu sair da cidade. Disse aos
amigos que temia ser preso e exibido diante de um circo da mídia. Mais tarde,
aventou a ideia de que o pedido resultante de sua extradição era consequência da
pressão velada do governo norte-americano, que queria pôr as mãos nele por
causa das façanhas do WikiLeaks. Nenhuma evidência concreta veio ainda à
tona para sustentar essa teoria, embora os Estados Unidos tenham afirmado
repetidamente que tentariam apresentar denúncias contra Assange por crimes de
informação. A acusação certamente turvou as águas do WikiLeaks, pois teorias
conspiratórias começaram a aparecer na internet.
Naquele verão, contemplando de longe a confusão na Suécia, os repórteres do
The Guardian, em Londres, também estavam abalados. Leigh e Davies
decidiram que, apesar de tudo, tinham a obrigação de garantir que o The
Guardian fosse firme – e o primeiro, aliás – na divulgação dos fatos. O que
aconteceu em Estocolmo pode ter sido complexo e confuso, mas alguns
encontros sexuais duvidosos certamente ocorreram, e não havia evidências que
confirmassem as alegações de “truques sujos” e “armadilhas sexuais”. Os
jornalistas estavam profundamente conscientes de que ignorar a recente
controvérsia que surgira em torno de seu novo colaborador somente aumentaria
o risco de que o WikiLeaks como um todo tivesse seu nome manchado.
13

Parceiros incômodos
Escritório do editor, The Guardian, Kings Place, Londres
1º DE NOVEMBRO DE 2010

“Sou uma pessoa muito combativa.”

– JULIAN ASSANGE, CONFERÊNCIA TED, OXFORD, 2010

S TRÊS JORNAIS PARCEIROS decidiram que era hora de um encontro com


O Julian Assange. Tudo estava ameaçando ficar bastante confuso. O
controverso fundador do WikiLeaks agora queria que os americanos fossem
excluídos do já bem atrasado acordo para publicar os telegramas diplomáticos
em conjunto – uma punição, como foi dito, pela recente publicação de seu perfil,
escrito pelo veterano correspondente do The New York Times em Londres, John
F. Burns. Assange não gostara nem um pouco da matéria.
Os britânicos estavam inquietos porque uma cópia dos telegramas
aparentemente fora parar nas mãos de Heather Brooke, jornalista americana que
vive em Londres e é ativista da liberdade de informação. E os alemães
demonstravam preocupação com o fato de que as coisas poderiam ficar difíceis
em todos os aspectos, a menos que os editores tivessem um encontro para aclarar
a situação com o que restara do WikiLeaks.
Acreditava-se que havia pelo menos três cópias dos telegramas em circulação:
uma com Brooke, no Reino Unido; uma com Daniel Ellsberg – famoso pelos
Papéis do Pentágono –, nos Estados Unidos; e outra com Smári McCarthy, ex-
programador islandês do WikiLeaks, que, segundo Assange, repassara uma
cópia a Brooke. David Leigh comunicara ao The New York Times que estava
disposto a repassar-lhes uma cópia, se Assange não cooperasse. Mas nem uma
fração do imenso cache secreto de despachos do Deparcomo originalmente
planejado. Será que o audacioso projeto terminaria mal?
O encontro foi marcado para o dia 1º de novembro, nos escritórios do The
Guardian, em Londres, próximo à Estação de King’s Cross, com uma reunião
inicial para examinar o material em detalhes e chegar a um acordo sobre a
possível ordem de publicação, dia a dia. Assange deveria chegar por volta de
seis da tarde – mas uma série de mensagens de texto enviadas ao editor
assistente Ian Katz indicava que ele se atrasaria. Por volta de sete da noite, o
telefone de Alan Rusbridger tocou. Era Mark Stephens, advogado britânico
especialista em causas de difamação, que ele conhecia havia anos. O advogado
tinha algo para lhe dizer e perguntou se poderia passar no escritório. Vinte
minutos depois do telefonema, Stephens irrompeu pela porta da sala do editor,
acompanhado de Assange, do sisudo colaborador islandês Kristinn Hrafnsson e
de uma jovem, mais tarde apresentada como advogada do escritório de Stephens,
Jennifer Robinson. Parecia – e era – uma cilada.
Mal se sentou, Assange começou a censurar duramente o The Guardian. O The
New York Times tinha os telegramas? Como eles haviam conseguido? Quem lhes
dera? O clima era de desconfiança. Assange falava alto e com raiva. Sempre que
Rusbridger tentava responder, ele lançava outra pergunta. Quando finalmente
parou para tomar fôlego, Rusbridger observou que o pessoal da Der Spiegel e
outros executivos do The Guardian estavam esperando. “Por que não os
chamamos para continuar a discussão?” Mas a fúria de Assange era implacável:
a questão tinha de ser resolvida primeiro. Ele precisava saber a verdade sobre o
The New York Times. “Sentimos que uma grande organização está tentando
encontrar maneiras de driblar nosso acordo de cavalheiros. Não estamos
gostando disso.”
Rusbridger explicou que as coisas haviam mudado. O próprio WikiLeaks dera
origem a um vazamento. Os telegramas haviam caído nas mãos de Heather
Brooke. As coisas em breve começariam a fugir do controle, a menos que eles
decidissem agir rapidamente. Assange não parecia bem – estava pálido, suava e
tossia muito. Rusbridger continuou afirmando que não repassara os telegramas a
ninguém – o que era verdade – e, finalmente, convenceu Assange de que era
melhor tratar com o grupo todo.
Mas David Leigh imediatamente se opôs à presença de Stephens e Robinson.
“É uma reunião editorial”, protestou. Se os advogados de Assange ficassem ali,
o The Guardian também precisaria dos seus. Rusbridger saiu para tentar arrumar
um advogado. O chefe do departamento jurídico do The Guardian estava
voltando de bicicleta para casa e não ouviu o BlackBerry tocar, então Geraldine
Proudler, da firma de advogados Olswang, que já lutara em muitas batalhas a
favor do jornal no passado, foi chamada no meio de sua aula de ginástica e,
pouco depois, já entrava num táxi.
A discussão – nesse momento, sem os advogados – começou novamente com a
equipe da Der Spiegel: o editor-chefe Georg Mascolo, Holger Stark e Marcel
Rosenbach. Assange, porém, parecia obcecado pelo The New York Times e
começou a fazer repetidas acusações contra o jornal: “Eles publicaram uma
história de primeira página – de primeira página! – que era apenas um ataque
sujo contra mim e outras partes da organização, baseado em mentiras. Não eram
sequer críticas genuínas, reunidas de maneira isenta. O objetivo é fazê-los
parecer imparciais. Não é suficiente simplesmente ser imparcial. Não é
suficiente simplesmente dizer: ‘A história é esta’ e apresentá-la – eles têm que
ser ativamente hostis contra nós e demonstrar isso na primeira página, senão
seriam acusados de algum tipo de simpatia”.
O perfil escrito por Burns insistira, entre outras coisas, na investigação policial
sobre as acusações sexuais na Suécia. Assange fora citado dizendo: “Eles me
chamaram de James Bond do jornalismo. Eu arrumei muitas fãs, e algumas delas
acabaram me criando problemas”.
Burns escrevera que a equipe do WikiLeaks se voltou contra Assange quando
surgiu o escândalo. Segundo o jornalista, eles reclamavam que “a crescente
celebridade [do fundador] associara-se a um estilo cada vez mais ditatorial,
excêntrico e caprichoso”. Para um dos desertores, o islandês Herbert Snorrason,
de 25 anos, Assange enviara uma mensagem: “Se você tem problemas comigo,
se manda!” E anunciou: “Eu sou o coração e a alma desta organização: o
fundador, o filósofo, o porta-voz, o codificador original, o organizador, o
financiador e todo o resto”. Ao que Snorrason respondeu, determinado: “Ele não
está em seu juízo perfeito”.
O texto de Burns, na verdade, omitia parte da história: o principal colaborador
de Assange, Daniel Domscheit-Berg, também estava denunciando o “culto ao
estrelato” do fundador. Mais tarde, o alemão escreveria: “Não é à toa que muitos
que saíram se referem a ele como ‘ditador’. Ele se acha o governante autocrático
do projeto e acredita que não precisa prestar contas a ninguém. As críticas
justificadas – mesmo as internas –, tanto sobre suas relações com as mulheres
quanto sobre a falta de transparência de suas ações, são dispensadas com a frase:
‘Estou ocupado, existem duas guerras que preciso encerrar’, ou atribuídas às
campanhas de difamação dos serviços secretos”.
Agora, em volta da mesa do editor do The Guardian, os outros jornalistas se
sentavam em silêncio enquanto Assange atacava Burns e o The New York Times,
no estranho tom de barítono, antiquado e declamatório, que ele usava quando
estava zangado. E voltou a perguntar: “Eles têm os telegramas? Como?”
O problema – interrompeu Rusbridger – era que o jornal tinha uma segunda
fonte para os telegramas. Ele estava negociando com Heather Brooke para que
ela se juntasse à equipe do The Guardian. Caso contrário, ela estaria livre para
oferecê-los a qualquer outro jornal – o que significaria que o The Guardian
perderia todo o acesso, o controle e a exclusividade. Assange explodiu
novamente. Aquela não era uma segunda fonte. Brooke roubara os telegramas.
Isso fora feito “através de roubo, fraude [...] certamente meios pouco éticos”. Ele
sabia o suficiente sobre o modo como ela operara para “poder destruí-la”. O
clímax foi quando Assange – o informante clandestino de segredos ilegais – os
ameaçou, dizendo que seus advogados processariam o jornal por perdas
“financeiras” do WikiLeaks.
“Estou ansioso por um processo desses”, disse o editor do The Guardian com
um sorriso. Nada naquela diatribe fazia sentido para ele. Brooke era uma
jornalista profissional e não havia roubado nada. E, mais especificamente, ou o
The Guardian tinha uma segunda fonte – e não precisava mais da cópia de
Assange – ou tudo se originara, como o australiano alegava, de uma única fonte:
o WikiLeaks – e, nesse caso, a organização quebrara o acordo de fazer uma
cópia apenas para o The Guardian, o que não deixava Assange em posição de
criticar os outros.
Katz perguntou que outras cópias existiam da base de dados. Por exemplo, era
verdade que Ellsberg tinha uma? Ao que Assange retorquiu: “A cópia de Daniel
Ellsberg é um backup criptografado da base de dados, que ele ia oferecer ao New
York Times numa encenação política”.
Assange voltou ao seu tema favorito de como um informante cavalheiro
deveria se comportar: “Pessoas que não estão se comportando como cavalheiros
deveriam começar. Supondo que o The Guardian tenha repassado os telegramas
ao New York Times, por que deveríamos colaborar com o Guardian?”
E começou a sugerir acordos com outros jornais americanos. O The
Washington Post queria o material. Questionado, ele falou um pouco mais,
admitindo que já discutira uma possível cooperação tanto com o Post quanto
com o grupo jornalístico americano McClatchy. Depois recomeçou com o NYT:
“A estratégia que o New York Times desenvolveu não é muito cavalheiresca [...].
Eles escreveram um texto horrível sobre Bradley Manning e agora este texto
muito, muito ruim de John F. Burns sobre mim, na primeira página do jornal. Ele
disse que nunca foi tão duramente criticado em toda sua carreira jornalística
como no caso desse texto, e há uma razão para isso. Estamos dispostos a nos
empenhar na Realpolitik se necessário, mas essa é uma organização cujo modus
operandi é se proteger, nos destruindo. Aconselho-o a ler aquele texto. É óbvio
para qualquer um que o leia que ele foi escrito com a intenção de difamar,
usando fontes anônimas para citar pessoas ao acaso, que nunca tiveram nada a
ver com a organização, salvo em salas de bate-papo, dizendo que eu sou louco
etc. etc. Isso é mau jornalismo. Não estou pedindo muito. Só estamos pedindo
que o Times siga os próprios padrões. Os padrões que ele segue para outras
pessoas – porque são válidos –, e que não desvie de seu caminho para produzir
um ataque sujo e colocá-lo na primeira página”.
Katz perguntou-lhe diretamente até onde haviam ido as negociações com o The
Washington Post, e Assange respondeu: “Não fiz acordo, embora ache que
provavelmente nos entenderemos com o Post, a menos que haja uma
contraproposta muito boa, porque o Times violou nosso relacionamento”.
Rusbridger sugeriu um breve intervalo. Quando eles voltaram a se reunir, ainda
sem os advogados (Stephens e Robinson estavam sentados do lado de fora da
sala, e Proudler, no corredor), a temperatura baixara um pouco. Rusbridger
sugeriu que eles analisassem alguns dos problemas referentes à ordenação das
histórias. Ian Katz mostrou a Assange o trabalho feito anteriormente naquele dia
sobre a ordem em que os itens deveriam ser publicados. O australiano o ouviu
calmamente. A agressividade e o dedo em riste deram lugar a um novo empenho
– como se o cérebro dele tivesse acionado as áreas racionais e altamente
estratégicas que haviam ficado de fora da discussão anterior.
Contudo, ele ainda insistia em adiar a publicação. Os jornalistas perguntaram
como o WikiLeaks divulgaria os telegramas, ao que ele respondeu: “O ideal é
esperar até o ano que vem. Qualquer coisa antes de um mês será semiletal,
mesmo em condições de emergência. Nós despertamos um gigante ao atingirmos
uma de suas pernas [o Departamento de Defesa norte-americano], e a divulgação
desse material fará com que a outra perna [o Departamento de Estado] se
levante. Estamos reunindo toda a artilharia que podemos, mas não podemos
reunir mais”. E enfatizou que queria que os telegramas fossem divulgados de
modo organizado e não como um “grande despejo”. Idealmente, uma
“divulgação gradual, durante dois meses”. Mas disse que estava disposto a fazer
o lançamento dentro de trinta dias: “Em um mês, podemos avançar até uma
posição em que possamos sobreviver”.
Assange já havia falado, em tom de brincadeira, da necessidade de ter um
refúgio seguro em Cuba antes da publicação dos telegramas. Agora dizia que a
ordem de publicação tinha de ser organizada de modo que não parecesse
antiamericano (ele não queria que o WikiLeaks parecesse obcecado pelos
Estados Unidos). As histórias nos telegramas tinham um significado muito maior
– por isso, era importante estabelecer uma ordem para que as pessoas
entendessem que não se tratava apenas dos Estados Unidos. “Há revelações
sobre segurança e abusos de outros países, dos países árabes maus ou da
Rússia”, ele afirmou. “Isso dará o sabor inicial do material. Não devemos expor,
por exemplo, Israel nesta fase inicial, nas primeiras semanas. É melhor deixar o
contexto geral ser apresentado primeiro. A exposição desses outros países maus
vai definir o tom da opinião pública norte-americana. Nas primeiras semanas,
daremos o contexto que matizará o restante”.
Então Assange fez outro anúncio surpreendente: queria incluir outros jornais
de “línguas românicas”, para ampliar o impacto geopolítico. E mencionou o El
País e o Le Monde. As pessoas na sala trocaram olhares. Isso duplicaria as
complexidades do arranjo, que já era bastante difícil de coordenar. Como eles
poderiam fazer um acordo com um jornal norte-americano, num fuso horário
diferente, um jornal vespertino francês, um jornal matutino espanhol e um
semanário alemão?
Mas agora havia pelo menos uma negociação sobre os meios para avançar.
Eram aproximadamente dez da noite. As discussões já se estendiam
implacavelmente por quase três horas. Rusbridger arrumou algumas garrafas de
Chablis. Os ânimos se acalmaram, e todos concordaram prontamente que tudo
poderia ser arranjado durante o jantar, no restaurante Rotunda, no andar térreo
do Kings Place. Os jornalistas saíram e encontraram Mark Stephens, Geraldine
Proudler e Jennifer Robinson ainda sentados pacientemente do lado de fora do
escritório do editor.
O jantar foi mais relaxado, embora Assange ainda estivesse obcecado com o
The New York Times e seu comportamento. Quando lhe perguntaram em que
condições ele trabalharia com os americanos, disse que consideraria a questão se
o jornal concordasse em não publicar mais material negativo sobre ele e lhe
oferecesse direito de resposta ao texto de Burns, com o mesmo destaque. “Boas
relações são oferecidas a boas pessoas, não às más. A menos que vejamos uma
contraproposta muito séria [do The New York Times], eles perderam a
exclusividade [...]. O NYT é uma causa perdida ou um veículo de comunicação
confiável? Será que as coisas chegaram a esse ponto?”
Os outros decidiram ignorar essa questão naquele momento. Conversaram
mais detalhadamente sobre como poderiam elaborar um cronograma de
publicação com os temas combinados para cada dia. Assange queria que o
período de exclusividade se estendesse além do Ano Novo, ou do “calendário
cristão”, como ele costumava dizer. E comentou que o WikiLeaks já editara os
telegramas, “e, se houver um ataque crítico contra nós, publicaremos todos”.
À meia-noite, o restaurante já estava vazio, quase fechando. Ficou decidido
que Rusbridger telefonaria para Bill Keller, em Nova York, enquanto os outros
jornalistas voltariam – levando o vinho com eles – para o The Guardian, em
outra sala de reuniões. Rusbridger conhecia Keller havia cerca de dez anos, o
que o ajudou a resumir o que seria uma conversa ligeiramente surreal.
“Vou lhe dizer o que Assange quer”, disse Rusbridger. “Sei o que você vai
dizer, mas tenho que voltar e dizer a ele que falei com você.”
“Continue”, disse Keller.
“OK, ele quer uma réplica ao texto de Burns na primeira página e também quer
garantias de que vocês não publicarão mais nenhum ataque sujo contra ele.”
Keller bufou. “Ele pode escrever uma carta”, falou sumariamente.
“Estritamente falando, esse não é meu departamento, mas eu certamente posso
usar minha influência para recomendar sua publicação. E... Qual era a segunda
questão? Bem, você pode garantir a ele que não estamos pensando em nenhum
ataque sujo.”
Rusbridger voltou para a sala e repassou a mensagem de Keller. Como temia,
Assange reagiu de modo furioso, dizendo que aquilo não era o bastante e que
naqueles termos não havia mais acerto. E anunciou que, dali em diante, tanto o
The New York Times quanto o The Guardian estavam fora do acordo.
Então foi a vez de Georg Mascolo falar, deliberada e firmemente. Os três
veículos estavam associados. Se Assange rompesse com os outros dois, a Der
Spiegel também estaria fora.
Era por volta de 1h30 da manhã. A discussão não avançava, então Rusbridger
se virou para Assange e resumiu a situação: “Vejo que você tem três opções.
Primeira: não chegamos a um acordo; segunda: você substitui o New York Times
pelo Washington Post; terceira: você faz um acordo com nós três. A primeira e a
segunda não vão funcionar, porque você perdeu o controle do material e isso
acabará se transformando num caos. Assim, não vejo outra opção para você além
da terceira. Você vai ter que continuar conosco. E isso é bom. Temos sido bons
parceiros. Tratamos o material com responsabilidade. Dedicamos imensos
recursos para isso. E somos bons trabalhando juntos; gostamos uns dos outros,
nos comunicamos bem com sua equipe. E tudo tem dado certo. Por que, diabos,
jogar tudo isso fora?”
Se Assange se convenceu, não iria demonstrar. Pelo menos não aquela noite.
Rusbridger sabia que, fazendo as coisas do modo de Assange, ainda teria alguns
rounds pela frente antes do amanhecer. Quando o capo di tutti capi* do
WikiLeaks levantou para ir embora, ainda tossindo, apertou as mãos de David
Leigh, com quem havia trabalhado de maneira tão próxima, fitou-o
significativamente e disse em voz baixa e marcante: “Tome cuidado”.
No dia seguinte, Rusbridger enviou a Mark Stephens dez pontos para ser
transmitidos a Assange:
• Publicar em 29 de novembro de forma coordenada.
• Publicar durante duas semanas ou mais, até pouco antes do Natal.

• Exclusividade para G, NYT, DS (mais El País e ? Le Monde).


• Os temas deverão ser coordenados entre os parceiros, e inicialmente certos assuntos ficam de fora.
Não há proibição para ninguém em relação aos temas cobertos durante a série toda (depois de jan.).
WL publicará os documentos mencionados simultaneamente.
• Depois do Natal, a exclusividade continua por mais uma semana, iniciando em 3/4 de janeiro.
• A partir daí, WL começará a compartilhar as histórias regionalmente, entre quarenta jornais sérios em
todo o mundo, que terão acesso a “porções” de material relacionado a sua própria região.
• G contratará HB [Heather Brooke] com exclusividade.
• Em caso de ataque “crítico” ao WL, eles divulgarão tudo imediatamente.
• Se o material for vazado/compartilhado com outra organização noticiosa, em quebra a este acordo,
não haverá mais acerto.
• Em caso de acordo, a equipe começará a trabalhar numa série de histórias para a primeira fase.
Em 24 horas, Stephens telefonou para dizer que Assange aprovara o acordo.
Independentemente de satisfazer ou não os critérios do australiano para um
“acordo de cavalheiros”, pelo menos era um acordo.

Cinco dos jornais mais respeitados do mundo estavam agora comprometidos a


selecionar, editar e publicar, numa escala sem precedentes, o vazamento de
despachos diplomáticos secretos de uma superpotência. Era um projeto
extremamente audacioso, que poderia redefinir o jornalismo na era da internet.
Mas, enquanto os jornais trabalhavam para agir de maneira responsável, Assange
continuava a fazer as coisas a seu modo.
Disfarçado de senhora, como descrito no capítulo 1, ele transferiu as operações
para seu refúgio em Ellingham Hall, na zona rural de Norfolk. Lá, a segurança
dos telegramas, que ele já mencionara que valiam pelo menos cinco milhões de
dólares para qualquer agência estrangeira de inteligência, não parecia nada
sólida. Membros da equipe dizem que Assange entregava lotes deles para
jornalistas estrangeiros, incluindo alguém que se apresentara simplesmente como
“Adam”. “Parecia um senhor inofensivo”, comentou um dos colaboradores,
“salvo pelo hábito de ficar muito perto de nós e bisbilhotar o que estava escrito
na tela do computador.” Ele foi apresentado como pai do colega sueco de
Assange, o jornalista Johannes Wahlström, e levou cópias dos telegramas da
Rússia e dos Estados pós-soviéticos. De acordo com uma pessoa do grupo,
também pediu cópias dos telegramas sobre “os judeus”.
Esse homem, associado ao WikiLeaks, era mais conhecido como Israel
Shamir. Ele alega ser um judeu russo renegado, nascido em Novosibirsk, mas
atualmente pertencente à Igreja Ortodoxa grega. Famoso por negar o Holocausto
e publicar uma série de artigos antissemitas, em 2005 criou controvérsia no
Reino Unido, no lançamento de um livro parlamentar organizado por Lord
Ahmed, ao afirmar: “Os judeus [...] detêm, controlam e editam boa parte dos
veículos de comunicação de massa”.
Documentos internos do WikiLeaks, vistos pelo The Guardian, mostram que
Shamir não apenas recebeu os telegramas como também cobrou dois mil euros
do WikiLeaks, a ser depositados numa conta-corrente em Tallinn, por “serviços
prestados – jornalismo”. Que serviços? Ele afirma: “O que fiz para o WikiLeaks
foi ler e analisar os telegramas de Moscou”.
A assinatura de Shamir aparece em dois artigos anteriores que ridicularizam as
suecas que acusavam Assange. Em 27 de agosto, na Counterpunch, uma
pequena publicação radical norte-americana, Shamir afirma que Assange fora
incriminado por “espiãs de Langley”* e “feministas loucas” e que fora vítima de
uma “armadilha sexual”. Em 14 de setembro, ele atacou as “feministas
castradoras e os serviços secretos”, escrevendo que uma das mulheres
envolvidas, a quem deliberadamente mencionou, já discutira a oposição cubana a
Castro numa publicação acadêmica sueca “associada a” alguém com “ligações
com a CIA”.
Em seguida, Shamir apareceu em Moscou. De acordo com um repórter do
jornal russo Kommersant, ele se oferecia para vender artigos baseados nos
telegramas por dez mil dólares. E já repassara alguns para a publicação Russian
Reporter, que recebe apoio estatal. Depois viajou até Belarus, governado pelo
ditador ao estilo soviético Alexander Lukashenko, onde se encontrou com
autoridades do regime. A agência Interfax noticiou que Shamir era o
“representante russo” do WikiLeaks e “confirmara a existência do dossiê sobre
Belarus”. Segundo Shamir, o WikiLeaks tinha milhares de documentos secretos
“interessantes”. Em seguida, ele escreveu um artigo de propaganda servil pró-
Lukashenko na Counterpunch, afirmando que “as pessoas estão felizes,
empregadas e satisfeitas com o governo”.
Posteriormente, Assange afirmaria que teve apenas uma “breve interação” com
Shamir: “O WikiLeaks trabalha com centenas de jornalistas de diversas regiões
do mundo. Todos têm que assinar acordos de não divulgação e, em geral, têm
acesso limitado ao material relacionado a sua região”.
Pode-se apenas especular a que interesses Shamir estava servindo com suas
diversas publicações agressivas. Talvez seus interesses pessoais tenham sempre
estado na dianteira. Mas, enquanto os jornais elaboravam um acordo para tratar
dos telegramas com responsabilidade, as bufonarias secretas de Shamir
certamente fizeram o WikiLeaks parecer um tanto menos responsável.
Notas

*“Chefão dos chefões”. (N. da T.)


* Langley é a sede da CIA, na Virgínia. (N. da T.)
14

Antes do dilúvio
Jornal El País, Calle de Miguel Yuste, Madri
14 DE NOVEMBRO DE 2010

“Era um caça-níqueis. Bastava segurar


o chapéu embaixo dele por um tempo.”

– ALAN RUSBRIDGER, THE GUARDIAN

ISTAS NA TELA, as silhuetas despenteadas pareciam reféns mantidos no


V subsolo do esconderijo de um grupo terrorista. Uma das figuras
subterrâneas, com a barba por fazer, aproximou-se da câmera e levantou uma
folha de papel. Nela, estava escrito um misterioso número de seis dígitos. Seria
uma conta bancária secreta na Suíça? Um número de telefone? Alguma coisa
relacionada a O código Da Vinci?
As figuras indistintas não tinham, na verdade, sido capturadas por nenhuma
facção radical, mas eram um grupo de jornalistas do El País, da Espanha. E a
anotação também não era um pedido de resgate. Era o número de referência de
um dos mais de 250 mil telegramas. Desde que fora convidado a se juntar ao
consórcio Reino Unido-EUA-Alemanha – ou “aliança tripartite”, como Bill
Keller, do The New York Times, apelidara –, o El País não perdera tempo e
montara sua própria sala subterrânea de pesquisa.
O jornal – assim como o Le Monde, da França – juntara-se tardiamente ao
grupo do WikiLeaks e tinha apenas duas semanas para examinar os telegramas,
antes do Dia D da publicação. O The Guardian ficara na confortável posição de
ter o mesmo material durante vários meses. O editor-chefe do El País, Javier
Moreno, e o executivo Vicente Jiménez convocaram com urgência a Madri os
correspondentes estrangeiros. Sentados no bunker do jornal, próximos a uma
infinidade de copos de café descartáveis, eles avançavam pela base de dados.
Os jornalistas podem ter ficado animados ao ler que, de acordo com um
telegrama secreto das autoridades norte-americanas em Madri, com data de 12
de maio de 2008, o El País era o “jornal oficial” da Espanha. Aparentemente,
também era, “em geral, pró-governo”. Mas eles também encontraram um
material sensacional – a embaixada norte-americana em Madri tentara
influenciar juízes, o governo e promotores em casos que envolviam cidadãos
norte-americanos. Um deles envolvia um preso na baía de Guantánamo; outro
cobria voos de rendição secretos na Espanha; e outro era sobre o assassinato de
um jornalista espanhol num ataque norte-americano em Bagdá. Histórias da
América Latina – México, Argentina, Colômbia e Venezuela – também vieram à
tona.
Desde o início, os jornais concordaram em trabalhar de modo colaborativo.
Eles compartilhavam descobertas dos telegramas e até faziam circular listas de
possíveis histórias. Mais tarde, Assange afirmou, num documentário da TV
sueca, que era ele quem pessoalmente mexia os pauzinhos dos veículos de
comunicação conservadores. Ele disse: “A novidade é que forçamos a
cooperação entre organizações competitivas, que, de outro modo, seriam rivais,
para fazer o melhor pela história, em oposição a simplesmente fazer o melhor
pelas próprias organizações”.
Na verdade, essa era uma técnica de cooperação que o The Guardian, com
outros veículos de comunicação internacionais, há muito vinha construindo. No
ano anterior, por exemplo, o jornal afugentara com sucesso os advogados da
empresa Trafigura, que havia despejado lixo tóxico, trabalhando em conjunto
com o Newsnight, da emissora de TV BBC, o jornal holandês Volkskrant e a
emissora de TV norueguesa NRK. A gigante bélica britânica BAE também
chegara a um acordo de quatrocentos milhões de dólares com o Departamento de
Justiça norte-americano em relação às acusações de corrupção, após uma
campanha em que o The Guardian cooperou com outros veículos impressos e
televisivos, em países como Suécia, Romênia e Tanzânia.
O pioneiro mais ilustre dessa forma de investigação globalizada foi,
provavelmente, Charles Lewis, fundador do Center for Public Integrity (Centro
para a Integridade Pública), em Washington, D.C., que, uma década antes,
organizara a divulgação massiva da conivência da empresa British American
Tobacco no contrabando de cigarros, com publicação simultânea por veículos de
comunicação na Colômbia, em Londres e nos Estados Unidos.
Assim, o atual consórcio entre os cinco veículos de comunicação não era uma
invenção. Foi – ou seria, se funcionasse – a culminação de uma tendência cada
vez maior nos veículos de comunicação. E o que tornou essa tendência possível
também a fez necessária: o crescimento tecnológico das comunicações globais
massivas e quase instantâneas. Se os grupos midiáticos não aprendessem a
trabalhar nas histórias através das fronteiras, as histórias os deixariam para trás.
Antes do Dia D dos telegramas, Ian Katz, editor assistente e coordenador
dessas complexas relações, manteve conversas regulares pelo Skype com as
contrapartes multilíngues. “Eram conversas hilárias”, recorda Katz. A razão pela
qual os espanhóis estavam mostrando pela webcam o número de um telegrama
do Departamento de Estado norte-americano era a segurança – eles haviam
concordado que nenhuma menção confidencial seria feita por telefone ou e-mail.
Em Berlim, Marcel Rosenbach, da Der Spiegel, foi o primeiro a descobrir um
telegrama com o título enganosamente insípido: “Diretiva da Coleção Nacional
de HUMINT* sobre as Nações Unidas”. Na verdade, ele revelava que o
Departamento de Estado norte-americano (em nome da CIA) ordenara que seus
diplomatas espionassem autoridades de alto escalão da ONU e coletassem
“informações biométricas detalhadas”. Eles também deveriam pesquisar
“números de cartão de crédito; número da conta de passageiros que viajam de
avião com frequência; horários de trabalho e outras informações biográficas
relevantes”. O telegrama, de número 219058, era dinamite geopolítica. Ninguém
mais o vira. “Marcel escreveu o número. Eu só podia ver metade dele. E tinha de
lhe dizer: ‘Um pouco mais para a esquerda, um pouco mais para a esquerda’”,
recorda Katz.
Para Julian Assange – tal como Jason Bourne, o agente secreto de Hollywood
que foge constantemente da CIA –, elaboradas medidas de segurança podem ser
quase instintivas. Mas, para jornalistas acostumados a revelar segredos no bar
depois de uma ou duas doses, elas eram uma nova forma de arte, difícil de
dominar. Katz e Rusbridger se inspiraram em A escuta, série cult norte-
americana filmada em meio aos arranha-céus e traficantes de drogas de
Baltimore. A série era popular entre alguns membros da equipe do The
Guardian; nela, os traficantes sempre usavam celulares pré-pagos para enganar
os policiais.
Por isso, Katz pediu que seu assistente comprasse vinte celulares pré-pagos
para os principais membros da equipe dos telegramas. Agora o The Guardian
tinha sua própria rede à prova de vazamentos. Infelizmente, ninguém conseguia
lembrar o número do celular. Em determinado momento, Alan Rusbridger
enviou uma mensagem de texto de seu celular pré-pago para o celular
convencional de Katz – um erro básico que, em A escuta, certamente teria feito
os policiais o atacarem. O editor do The Guardian comprou outro celular pré-
pago durante uma viagem de cinco dias para a Austrália. Quando retornou a
Londres, Katz telefonou para o número. A conversa foi cortada depois de apenas
três minutos, quando acabaram os créditos de Katz. “Nós éramos completamente
inúteis com essas coisas de espionagem”, confessa Katz.
Como o El País, o The Guardian alocara uma equipe de especialistas e
correspondentes estrangeiros para uma análise final completa dos telegramas.
Alguns – como o correspondente em Moscou do The Guardian, Luke Harding –
foram trazidos para Londres, por razões de segurança. A equipe estrangeira
acessava os telegramas através de uma VPN (virtual private network, rede
privada virtual). Ian Traynor, em Bruxelas, examinou os telegramas que faziam
referência à União Europeia, à Otan e aos Bálcãs; Declan Walsh, correspondente
do The Guardian em Islamabad, analisou o Afeganistão e o Paquistão; David
Smith, a África, e Jason Burke, a Índia.
Outros repórteres incluíam Ewen MacAskill, correspondente em Washington,
e Rory Carroll, correspondente latino-americano em Caracas. (A conexão VPN
de Carroll rapidamente falhou, tornando impossível ver os telegramas sobre
Chávez.) Simon Tisdall, Ian Black e Jonathan Steele, todos muito experientes,
examinaram os telegramas referentes ao Oriente Médio e ao Afeganistão. A
extensão total de expertise jornalística que os cinco principais jornais
internacionais estavam depositando na base de dados talvez demonstrasse o
valor dos grandes veículos de comunicação no mundo. Eles poderiam ser os
verdadeiros profissionais da informação, destacando-se num universo de
efervescência da internet que de outro modo não teria valor.
Sentados no bunker do quarto andar, Harding e um colega, o repórter Robert
Booth, estavam entre os que passariam longas horas olhando, cada vez mais
zonzos, para os despachos. Em pouco tempo, tornou-se claro que havia uma arte
para pesquisar a base de dados. Se o termo de busca fosse muito generalizado –
por exemplo, “Grã-Bretanha” ou “corrupção” –, o resultado seria imenso. O
mecanismo de busca avisaria: “Mais de mil itens retornaram”. O truque era usar
um nome relativamente incomum. Melhor ainda era experimentar com algo
estranho e até um pouco maluco. Digitar “Batman”, por exemplo, produzia
apenas dois resultados. Mas um deles era um telegrama delicioso em que um
diplomata norte-americano comentava que “Dmitri Medvedev continua a ser o
Robin para o Batman de Putin”. A comparação entre o presidente da Rússia e
seu primeiro-ministro correria o mundo e levaria um irritado Vladimir Putin a
acusar os Estados Unidos de “arrogância” e comportamento antiético.
Do mesmo modo, digitar o termo de busca “vodca” produzia resultados
inesperados: reuniões alcoolizadas entre embaixadores norte-americanos e
déspotas da Ásia central; um memorável casamento no Daguestão, em que o
presidente da Chechênia – o sanguinário Ramzan Kadyrov – dançou com um
revólver folheado a ouro enfiado na calça; e a festa sexual de um saudita que
dizia muito sobre a hipocrisia da elite nobre do país árabe.
Em contraste com o jargão descontínuo dos diários de guerra, os telegramas
eram escritos numa prosa que se esperaria ler em Harvard ou Yale. Harold
Frayman havia improvisado o mecanismo de busca original usado para filtrar os
diários de guerra do Afeganistão e do Iraque, que eram bem menores. Agora ele
aprimorara a técnica. “Sou jornalista. Eu sabia o que estávamos procurando”,
explica. “Os diplomatas eram muito mais eloquentes que os soldados rasos em
campo. Eles conheciam palavras maiores.”
O conjunto de dados continha mais de duzentos milhões dessas palavras.
Originalmente, Frayman usou a linguagem de programação Perl para criar as
bases de dados do Afeganistão e do Iraque. Ele a descreve como um “conjunto
muito bem desenvolvido de bits de software [...]. Ela faz pequenos serviços de
forma muito organizada”. Para os telegramas, ele acrescentou melhorias. Os
jornalistas podiam pesquisar os telegramas enviados por embaixadas específicas.
No caso do Irã, que desde os anos 70 não tinha uma missão norte-americana, a
maior parte da conversa diplomática relevante vinha da embaixada dos Estados
Unidos em Ancara. Assim, era útil poder pesquisar rapidamente as informações
da embaixada na capital turca.
Dos arquivos, 40% eram classificados como confidenciais, e 6%, como
secretos. Frayman criou um sistema de busca por cinco categorias específicas:
secretos/NOFORN (isto é, arquivos que não poderiam ser lidos por não
americanos); secretos; confidenciais/NOFORN; confidenciais; e não
classificados. Não havia nenhum arquivo ultrassecreto – tais materiais super-
reservados foram omitidos da base de dados original, a SIPRNet, ao lado de um
grande número de despachos que o Departamento de Estado, em Washington,
considerava inadequados para ser compartilhados com os colegas das Forças
Armadas ou de qualquer outro lugar. Havia idiossincrasias nos dados: por
exemplo, parecia haver muito pouco material de Israel, sugerindo que a
embaixada norte-americana não desempenhava um papel importante nas
interações recíprocas entre Tel Aviv e Washington, permanecendo afastada na
maioria das vezes.
“Secreto” foi o termo pelo qual os jornalistas começaram a investigar.
Algumas das buscas produziram furos memoráveis. Muitas, porém, não
produziram nada. A categoria “secreto” – logo se percebeu – tendia a cobrir um
número limitado de temas: proliferação de material nuclear e instalações
nucleares; exportações militares para o Irã, a Síria e outros países considerados
“desagradáveis”; negociações envolvendo militares norte-americanos de alto
escalão. De longe, o maior número de histórias vinha de documentos com
classificação inferior.
Como os outros repórteres, Harding e Booth logo se viram desenvolvendo
técnicas peculiares de busca. Eles descobriram que, muitas vezes, era útil
começar de baixo, trabalhando de trás para frente, desde os telegramas mais
recentes de um país, escritos até 28 de fevereiro de 2010. Porém, essas buscas se
tornaram um exercício de resistência; depois de ler um lote de mais de quarenta
telegramas, eles precisavam parar. Ao lado do bunker secreto, havia uma
máquina de café gratuita e uma sala de relaxamento. “Ali, depois de uma longa
sessão de ataque aos telegramas, você podia ao menos colocar o aviso de
ocupado, pegar uma almofada, deitar no chão e roncar”, diz Harding. Mas,
mesmo com as despesas de massagem pagas pela empresa, nenhum dos
incansáveis leitores de telegramas tinha tempo a perder.
Para o editor-chefe, Alan Rusbridger, no início as abundantes revelações que
brotavam dos telegramas norte-americanos eram como se um jogador tirasse
sempre a sorte grande no cassino. Ele se lembra de como Leigh, surpreso e
risonho, após ler o material durante algumas semanas no verão, voltara com
histórias suficientes para dez matérias de destaque, artigos que poderiam estar na
primeira página do jornal. “Era um caça-níqueis. Bastava segurar o chapéu
embaixo dele por um tempo”, observa Rusbridger.
A analogia é boa. Mas talvez faça a tarefa parecer simples demais. Para
examinar os dados, equipes de funcionários do The Guardian tiveram de ser
recrutadas. Os repórteres, sobretudo os correspondentes estrangeiros, trouxeram
muitas contribuições: contextualização, conhecimento especializado e certo grau
de espírito empreendedor para adivinhar o que estavam procurando. Todas essas
habilidades foram necessárias para transformar os telegramas em histórias
jornalísticas significativas.
Leigh enviou um memorando a Rusbridger:
Chegamos agora à etapa de seleção das histórias no projeto 3. Os exercícios anteriores (Iraque e
Afeganistão) funcionaram bem politicamente, eu acho, porque Nick e eu conseguimos concentrar a
cobertura [e a cobertura global resultante] nos elementos que o público estaria mais interessado em saber.
Com o Afeganistão, eram as baixas civis. Com o Iraque, era a tortura. Dessa vez, acho que também é
importante tentarmos nos concentrar em histórias que sejam do interesse do público. Foi nisso que me
baseei quando tentei, inicialmente, reunir as primeiras doze histórias.
São histórias importantes que revelam corrupção, crime (Rússia, Berlusconi etc.) e comportamento
impróprio (por exemplo, pressão injustificada dos Estados Unidos sobre outros países, vazamento não
autorizado para os Estados Unidos por outras autoridades do país). Será que essa posição vai nos ajudar a
defender todos os fronts da melhor maneira?

A quantidade de artigos publicáveis começou a aumentar. A tarefa de prepará-


los para publicação recaiu sobre Stuart Millar, editor de notícias online do The
Guardian, que diz que se sentia como um cowboy atormentado: “Eu estava
tentando laçá-los em algum tipo de formato”. Esse era um problema de produção
muito mais complicado do que no caso dos diários de guerra do Iraque e do
Afeganistão. Primeiro, parecia que os telegramas produziriam apenas um
amontoado de histórias. Na véspera do Dia D, os jornalistas do The Guardian já
haviam elaborado mais de 160 artigos, e o tempo todo surgiam mais: “As
matérias apareciam em grande quantidade e de forma absurda”, lembra Millar.
Para ele, um especialista em web, era muito claro que o surgimento da imensa
base de dados de telegramas marcava o fim dos segredos de Estado, no sentido
antiquado, como na época da Guerra Fria. “A internet transformou tudo em
história”, reflete. “Para nós, havia uma responsabilidade especial em lidar
cuidadosamente com o material e contextualizar as histórias, em vez de
simplesmente divulgá-las.”
Havia outras preocupações. A intenção era que o texto integral dos telegramas
fosse divulgado online, com as reportagens individuais. Essa prática – que
Assange chamou de “jornalismo científico” – era algo que o The Guardian e
alguns outros jornais já adotavam havia muitos anos, desde que a tecnologia
permitira.
Cada repórter era responsável agora por editar os próprios telegramas,
apagando do original as fontes que pudessem ser postas em risco se tivessem
seus nomes publicados. Chefes de Estado, políticos conhecidos, pessoas de vida
pública de modo geral eram alvos legítimos. Porém, em algumas partes do
mundo – Oriente Médio, Rússia e Ásia central, Iraque, Afeganistão e Paquistão
–, apenas ser visto conversando com norte-americanos já era um negócio
arriscado.
A equipe que trabalhava com os telegramas agia de modo conservador. Se
houvesse risco de alguém se comprometer, o nome era riscado. Às vezes, isso
era frustrante: longos telegramas informativos eram reduzidos a uns poucos
parágrafos monótonos. Mas a alternativa era muito pior. Os textos editados eram
enviados a Jonathan Casson, o aparentemente milagroso chefe de produção, e
sua esforçada equipe, que montou acampamento numa sala vizinha, no quarto
andar, normalmente usada como sala de treinamento. Rusbridger sugeriu
inicialmente que cada jornal indicasse um “editor para a preparação do texto”, a
fim de proporcionar um método garantido e seguro de proteção às fontes. Casson
trabalhou arduamente, durante longos dias, comparando as decisões de edição do
The Guardian com as das outras partes e estudando as descrições de telegramas
particulares do Departamento de Estado norte-americano, passadas pelo The
New York Times. A tarefa se tornou muito mais difícil pela determinação dos
jornalistas de não falar sobre os telegramas por telefone ou e-mail. Depois da
rodada diária de ligações via Skype para os parceiros internacionais, Casson
alterava meticulosamente o tom de alguns dos cerca de setecentos telegramas
relacionados numa imensa planilha do Google, que apenas ele podia entender.
Ele parecia estar à beira de um ataque de nervos.
E depois havia os riscos legais. Será que o The Guardian poderia ser
processado por violação da Lei de Segredos Oficiais britânica ou da Lei de
Espionagem americana? E, nesse caso, será que o jornal teria de entregar os e-
mails e documentos internos? Rusbridger já pedira a opinião de Alex Bailin,
conselheiro da rainha especializado em questões de sigilo, antes da publicação
dos diários de guerra do Afeganistão. Não houve processo. Mas isso não
significava que a Casa Branca concordaria com a publicação, muito mais
prejudicial, dos telegramas secretos do Departamento de Estado norte-
americano.
Geraldine Proudler, da firma de advogados Olswang, que atende o The
Guardian, tivera muitos presságios. Antes da publicação dos diários de guerra
do Afeganistão e do Iraque, ela sugerira que era “perfeitamente possível” que os
Estados Unidos processassem o jornal com base na Lei de Espionagem – embora
um ataque aos parceiros de mídia internacionais parecesse improvável. Também
era possível que os americanos tentassem pôr as mãos em Rusbridger. “Na pior
das hipóteses, não podemos excluir tentativas de extradição.” De qualquer modo,
era “muito provável” que os Estados Unidos obtivessem uma liminar exigindo
que o The Guardian entregasse o material após a publicação, ela informara.
Além de se preocupar com os riscos de possíveis liminares baseadas na Lei de
Segredos Oficiais e na Lei de Espionagem, Gill Phillips, chefe do departamento
jurídico do The Guardian, passara muitas horas avaliando aqueles relacionados a
difamação e a invasão de privacidade – ambos eram grandes problemas no Reino
Unido, pois o país não tem a mesma proteção à liberdade de imprensa,
considerada sagrada pela Constituição norte-americana. Os telegramas eram
fascinantes e verossímeis como documentos – revelavam desonestidade e traição
internacionais, entre outras coisas. Mas o fato de ter sido escritos por diplomatas
norte-americanos não os tornava isentos de difamação. Alguns dos telegramas da
antiga União Soviética, do Paquistão e do Afeganistão faziam afirmações
alarmantes de corrupção nos altos escalões, mas será que eles podiam enquadrar
o The Guardian com um mandado oneroso? Tudo tinha de ser tratado com
cuidado.
Até certo ponto, Phillips poderia se basear no caso Reynolds, seguindo uma
celebrada sentença de 1999 de que os jornalistas poderiam publicar declarações
importantes que não podiam ser provadas, desde que o material fosse de
interesse público, o jornal agisse com responsabilidade e seguisse procedimentos
jornalísticos adequados. (O caso recebeu esse nome depois que Albert Reynolds,
premier irlandês, processou o The Sunday Times, de Londres.) Mas o julgamento
do caso Reynolds não significava um cartão de passe livre da prisão; em alguns
casos, o The Guardian precisaria, se necessário, ser capaz de provar nos
tribunais a verdade do que havia publicado.
Silvio Berlusconi era um bom exemplo. Os telegramas afirmavam que o
polêmico primeiro-ministro italiano se beneficiara, “pessoal e
consideravelmente”, de um relacionamento íntimo – segundo os telegramas,
excessivamente íntimo – com Vladimir Putin, o primeiro-ministro e ex-
presidente da Rússia. Mas Berlusconi poderia processar o The Guardian, em
Roma?, perguntava-se Phillips. Na ocasião da publicação, os jornais italianos
saíram na frente do The Guardian e divulgaram as afirmações detalhadas no
mundo todo.
Havia outras considerações. Jornalistas responsáveis normalmente entram em
contato com a pessoa sobre a qual estão escrevendo, antes da publicação, dando-
lhe a oportunidade de um comentário ou mesmo de uma refutação. Nesse caso,
porém, havia um grande risco. Isso revelaria que o The Guardian tinha os
telegramas; a outra parte, alertada, poderia imediatamente recorrer a uma
liminar, baseada no fato de que o jornal estava na posse ilegal de documentos
confidenciais. Uma ordem de proibição de publicação poderia ser desastrosa
para o jornalismo do The Guardian – poderia destruir todo o projeto dos
telegramas.
Jan Thompson, editora executiva do The Guardian, e Gill Phillips tiveram
acaloradas reuniões com o calejado David Leigh. O objetivo de Leigh era
publicar as melhores histórias possíveis. A tarefa da igualmente experiente
advogada era manter o jornal fora dos tribunais e o editor fora da prisão. Leigh
propôs o que considerava soluções engenhosas para o problema da difamação.
Algumas vezes, a advogada concordou. Era uma linha muito tênue. “Fomos
incrivelmente cuidadosos e responsáveis, do ponto de vista legal”, afirma
Phillips. Mas “legalizar” as histórias dos telegramas do The Guardian foi
“estimulante”, acrescenta. “Foi preciso se envolver totalmente. E subitamente se
tornar especialista em todos os governos do mundo.” Phillips, no fim, estava
confiante. Contudo, fez com que um conselheiro da rainha e um advogado da
Suprema Corte ficassem de prontidão na noite da publicação dos telegramas.
Adversários jurídicos do The Guardian ficaram conhecidos no passado por
acordar juízes britânicos, totalmente preparados para emitir ordens de proibição
de publicação contra o jornal, mesmo que estivessem de pijamas.
Houve uma grande reunião final de todas as partes em Londres, na quinta-
feira, 11 de novembro, para ajustar a elaborada grade de publicação diária das
histórias dos telegramas. Dessa vez, Assange chegou ao escritório do The
Guardian vestido em estilo executivo, com um terno azul elegante e bem
cortado. Sua advogada australiana, Jennifer Robinson, estava a seu lado. Os
representantes da Der Spiegel, do El País e do Le Monde chegaram com Ian
Fisher, subeditor internacional do The New York Times. Em contraste com a
atmosfera difícil do último encontro, Assange era um exemplo de charme e
cordialidade. Leigh, com quem trocara palavras inflamadas anteriormente,
preferiu não comparecer, em virtude do que alguns suspeitavam ser um caso de
gripe diplomática. O encontro foi surpreendentemente tranquilo.
Depois, os parceiros novamente foram jantar no restaurante Rotunda, no térreo
do prédio do The Guardian. Lá, enquanto os jornalistas tomavam cerveja,
Assange confidenciou que estava pensando em ir para a Rússia. A Rússia era
uma escolha estranha – especialmente à luz dos telegramas que em breve seriam
publicados e que descreviam o país como “um Estado praticamente mafioso”.
Contudo, ele não deu detalhes do relacionamento que iniciara com o novo
“representante russo” do WikiLeaks, o estranho personagem Israel Shamir.

Até que ponto o governo dos Estados Unidos sabia desse planejado desafio a
seus segredos? Os jornalistas supunham que a CIA havia seguido cada
reviravolta do projeto. O Exército norte-americano certamente sabia dos
milhares de telegramas diplomáticos desviados desde o verão, quando o soldado
raso Bradley Manning fora especificamente acusado de roubá-los. Mas a
administração Obama, extraordinariamente, parecia desconhecer que telegramas
o WikiLeaks e os veículos de comunicação parceiros tinham em sua posse.
Na semana anterior à publicação, o Departamento de Estado advertiu muitos
de seus aliados sobre o conteúdo embaraçoso dos telegramas. Mas eles não
pareciam saber que os telegramas vazados terminavam no fim de fevereiro e
acreditavam que alguns eram mais recentes. Circulavam rumores de que
Washington não se impressionara com David Cameron e com a nova coalizão
governamental britânica, que assumira o poder em maio. O embaixador norte-
americano em Londres, Louis B. Susman, supostamente dissera isso num
telegrama pós-eleição. Agora os americanos haviam timidamente informado seu
conteúdo para Downing Street.* Eles acreditavam que os telegramas vazados
iam até junho de 2010, mês em que Manning fora preso.
O The Guardian não tinha o telegrama sobre Cameron. Assim, o primeiro-
ministro sobreviveu ao drama do WikiLeaks relativamente ileso. “Ficamos
surpresos com o pouco que os Estados Unidos sabiam sobre o que estávamos
fazendo”, afirma Katz. “Eles não tinham ideia do conjunto de dados que
tínhamos. E deram informações massivas sobre o que estava nos telegramas.”
O The New York Times decidira prevenir o Departamento de Estado sobre os
telegramas que pretendia publicar. O The Guardian – que atuava na Grã-
Bretanha, sob um regime legal particularmente opressivo – não seguiria o
exemplo dos norte-americanos. O jornal estava disposto a ouvir, mas já fizera
tudo que estava a seu alcance, sem aviso oficial, a fim de proteger de represálias
contatos confidenciais e de não publicar nada de modo irresponsável.
Poucos dias antes da publicação dos telegramas, duas personalidades do alto
escalão da embaixada americana em Londres telefonaram para o escritório do
The Guardian para conversar. A discussão levou a um surreal telefonema
intercontinental na sexta-feira, 26 de novembro – dois dias antes do Dia D. Da
grande mesa circular de seu escritório, Rusbridger concordou em telefonar para
Washington. Do outro lado da linha, estava P.J. Crowley, porta-voz do
Departamento de Estado norte-americano. A conversa começou assim: “Muito
bem, aqui é P.J. Crowley. Queria que você soubesse que aqui conosco estão a
assessora de Hillary Clinton, secretária de Estado, representantes do DdD,* das
agências de inteligência e do Conselho de Segurança Nacional”. Tudo que
Rusbridger conseguiu responder foi: “E conosco está nossa chefe de redação...”
Crowley então descreveu como as camadas mais altas do governo americano
viam o escândalo dos telegramas: “Obviamente, para nós, trata-se de
documentos roubados. Eles revelam segredos e endereços militares confidenciais
que expõem pessoas a riscos de segurança”.
Crowley fez sua oferta. Afirmou que o governo americano estava “disposto a
ajudar” o The Guardian, se o jornal estivesse preparado para “compartilhar os
documentos” que tinha – em outras palavras, prevenir o Departamento de Estado
sobre os telegramas que pretendia publicar. Rusbridger foi evasivo e disse: “Não
acho que vamos chegar a um acordo, sendo assim, por que não falamos disso
depois?”
Crowley argumentou que as operações e negociações das forças especiais com
alguns países eram delicadas. Em seguida, pediu uma pausa. Poucos minutos
depois, declarou: “Sr. Rusbridger, não achamos que esta conversa esteja sendo
útil para nós, pois, no momento, só oferecemos um monte de histórias e não
recebemos nada em troca”.
A assessora de Clinton interrompeu, dizendo: “Tenho uma pergunta direta para
o senhor, sr. Rusbridger. Vocês, jornalistas, gostam de fazer perguntas diretas e
sei que esperam respostas diretas. Por isso, farei uma pergunta direta. O senhor
vai nos dar os números dos telegramas ou não?”
“Não, não vou.”
“Muito obrigada.”
Rusbridger decidiu contar aos americanos o cronograma de publicação
completo do The Guardian: “No primeiro dia trataremos do Irã; no segundo, da
Coreia do Norte e, no terceiro, do Paquistão”. Em seguida, a conversa terminou.
Na Alemanha, o editor-chefe da Der Spiegel recebeu um telefonema do
embaixador americano. Ele disse a Georg Mascolo que havia grande
preocupação com a segurança das fontes nos “níveis mais altos” – “Vidas podem
estar em jogo”. Mascolo respondeu que a Der Spiegel fizera tudo que estava a
seu alcance para proteger as fontes que pudessem estar em perigo. E convidou o
Departamento de Estado a compartilhar com ele as áreas de preocupação.
O The New York Times mantinha suas próprias negociações, algumas vezes
tensas, com as autoridades do governo americano. Os advogados do jornal
estavam confiantes de que ele podia divulgar os documentos secretos sem
infringir a legislação do país. Mas Bill Keller sentia que tinha grande
responsabilidade ética e moral em usar o material de modo sensato: “Embora
julgássemos ter pouca ou nenhuma capacidade de influenciar o que o WikiLeaks
fazia, sem falar no que poderia acontecer quando o material fosse liberado na
câmara de ressonância da blogosfera, isso não nos isentava da obrigação de
exercer com cuidado o jornalismo. Desde o início, determinamos que em nossos
artigos, e em quaisquer documentos do arquivo secreto que publicássemos,
descartaríamos todo material que pudesse pôr vidas em risco”, escreveu mais
tarde.
A política do The New York Times era pecar por excesso de cuidado. Nos
diários de guerra do Afeganistão e do Iraque, o jornal editara os nomes de todas
as fontes que haviam falado com soldados e diplomatas norte-americanos e
detalhes que poderiam ter revelado operações da inteligência ou táticas militares.
Mas, em virtude da extensão do material e da extrema suscetibilidade própria
dos atos diplomáticos, Keller considerava os telegramas da embaixada mais
potencialmente explosivos que os diários de guerra.
Dean Baquet, chefe da sucursal de Washington do The New York Times, deu à
Casa Branca um aviso em 19 de novembro. Cinco dias depois, na véspera do Dia
de Ação de Graças, Baquet e três colegas foram convidados para uma reunião a
portas fechadas no Departamento de Estado. Dela participavam representantes
da Casa Branca, do Departamento de Estado, do diretor de Inteligência Nacional,
da CIA, da Agência de Defesa de Inteligência, do FBI e do Pentágono, reunidos
em torno de uma mesa de reuniões. De pé, próximos à parede, convidados que
não se apresentaram. E, digitando no computador, um solitário escrivão.
A reunião era extraoficial, mas é justo dizer que o clima estava tenso. Scott
Shane, um dos repórteres que participaram do encontro, descreveu “um clima de
frustração e revolta reprimidas”. As reuniões e os telefonemas que se seguiram
foram menos espinhosos e mais objetivos, afirma Keller. O governo dos Estados
Unidos se preocupava com três aspectos. Primeiro, queria proteger os indivíduos
que haviam falado abertamente com diplomatas norte-americanos em países
opressivos – algo que o The New York Times estava feliz em fazer. Segundo,
queria remover referências a programas secretos americanos relacionados à
inteligência. E, terceiro, não queria que o jornal revelasse as sinceras declarações
feitas por chefes de Estado ou outras autoridades estrangeiras de alto escalão,
temendo que sua publicação prejudicasse as relações com outros países. “Na
maior parte, não estávamos convencidos”, recorda Keller.
Essa, claro, não era a primeira vez que o The New York Times publicava
segredos que constrangiam o governo norte-americano. Antes dos
acontecimentos envolvendo o WikiLeaks, nada que o jornal fizera sob a
supervisão de Keller havia causado tanta agitação quanto dois artigos publicados
pelo jornal sobre as táticas empregadas pela administração Bush após os ataques
de 11 de setembro de 2001. Um deles, publicado em 2005 e ganhador de um
prêmio Pulitzer, revelava que a Agência de Segurança Nacional havia instalado
escutas em telefones e e-mails particulares sem ter um mandado para isso. O
outro, publicado em 2006, descrevia um imenso programa do Departamento do
Tesouro para proteger registros bancários internacionais.
O editor tinha vívidas lembranças de se sentar no Salão Oval enquanto o
presidente George W. Bush tentava dissuadi-lo de publicar o artigo sobre as
escutas. Bush dissera a ele que, se o jornal o publicasse, deveria dividir a culpa
pelo próximo ataque terrorista. Pouco convencido, o jornal foi em frente, e a
reação do governo, e dos comentaristas conservadores em particular, foi
estrondosa.
Dessa vez, a reação do governo americano foi diferente. Na maior parte do
tempo, foi sóbria e profissional. A Casa Branca de Obama, enquanto condenava
o WikiLeaks por tornar os documentos públicos, não procurou obter uma liminar
para evitar a publicação. Não houve reprimendas no Salão Oval nem apelos a
Keller para que não escrevessem sobre os documentos. “Ao contrário, em nossas
discussões antes da publicação dos artigos, os funcionários da Casa Branca,
apesar de contestarem algumas das conclusões que tiramos do material, nos
agradeceram pelo cuidadoso tratamento dos documentos. Os secretários de
Estado e de Defesa e o procurador-geral resistiram à oportunidade de incentivar
uma orgia popular de acusações à imprensa”, afirma Keller, acrescentando:
“Embora a publicação dos documentos fosse terrivelmente embaraçosa, as
agências de governo colaboraram conosco, na tentativa de evitar a divulgação de
material genuinamente prejudicial a indivíduos inocentes ou aos interesses
nacionais”.
De seu refúgio secreto em Ellingham Hall, Assange tentava abrir o próprio
canal de negociações, enviando uma carta, em 26 de novembro, à embaixada
norte-americana em Londres. Com o cabeçalho “Julian Assange, editor-chefe,
WikiLeaks”, iniciava: “Prezado embaixador Susman, remeto às recentes
declarações públicas de autoridades governamentais dos Estados Unidos
demonstrando preocupação com a possível publicação, pelo WikiLeaks e outras
organizações midiáticas, de informações supostamente derivadas de registros
governamentais norte-americanos”.
Assange convidava o governo dos Estados Unidos a “indicar em particular”
exemplos de situações em que a publicação de um telegrama pudesse expor um
indivíduo “a risco significativo”. Ele prometia que o WikiLeaks rapidamente
consideraria qualquer envio do governo norte-americano antes da publicação dos
telegramas. O assessor jurídico do Departamento de Estado, Harold Koh,
respondeu com uma carta intransigente, em que afirmava que os telegramas
“foram fornecidos em violação à legislação norte-americana e sem considerar as
graves consequências desse ato”. Sua publicação “poria em risco a vida de
inúmeros indivíduos”, ameaçaria as atuais operações militares e a cooperação
entre os Estados Unidos e os aliados e parceiros. E também atrapalharia a
cooperação em “desafios comuns, como o terrorismo, as pandemias e a
proliferação nuclear”.
A carta exigia que Assange interrompesse os planos de publicar os telegramas,
devolvesse os arquivos roubados e “destruísse todos os registros do material nas
bases de dados do WikiLeaks”.
Assange escreveu a Susman novamente em 28 de novembro. Esclareceu que o
WikiLeaks não tinha intenção de pôr ninguém em risco, “nem queremos
prejudicar a segurança nacional dos Estados Unidos”. E continuou: “Entendo
que o governo dos Estados Unidos preferia que essas informações não fossem
divulgadas ao domínio público e que não seja a favor da abertura. Dito isso, ou
há um risco ou não há. O senhor escolheu responder de uma maneira que me
leva a concluir que os riscos são inteiramente imaginários e que, em vez disso,
está preocupado apenas em remover evidências de abusos de direitos humanos e
outros comportamentos criminosos”.
As negociações com o Departamento de Estado – se é que era disso que se
tratava – estavam, portanto, encerradas. Só restava se preparar para a publicação
simultânea do maior vazamento da história. O que poderia sair errado?
Notas

* Human intelligence ou “inteligência humana”, isto é, um dos métodos de coleta de informações. (N. da
T.)
* Departamento de Defesa. (N. da T.)
* Rua onde se localiza a residência oficial do primeiro-ministro britânico. (N. do E.)
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O dia da publicação Estação de trem


da Basileia, Suíça 28 DE
NOVEMBRO DE 2010
“Publica! Publica! Publica!”

– REDAÇÃO DO THE GUARDIAN

RA DOMINGO DE MANHÃ na sonolenta Badischer Bahnhof. Havia poucas


E pessoas por perto. A estação fica exatamente na fronteira entre a Alemanha
e a Suíça. Um clássico exemplo de cooperação europeia: os alemães fornecem os
trens, os suíços administram os cafés e bancas de jornais. Naquela manhã,
porém, a estação seria rapidamente conhecida por outra coisa: uma falha
gigantesca.
Logo cedo, a van chegou, trazendo quarenta cópias da revista alemã Der
Spiegel. O semanário normalmente começa a distribuir cópias aos jornaleiros
durante o fim de semana, com os boêmios de Berlim podendo comprá-lo no
sábado de madrugada, na volta para casa. Mas, nessa ocasião – como quando da
publicação dos diários de guerra do Afeganistão –, a Der Spiegel deveria ter
segurado todas as cópias dessa edição. A divulgação internacional dos
telegramas da embaixada norte-americana fora meticulosamente coordenada
para as 21h30 (hora de Greenwich) do domingo. O The Guardian, o The New
York Times, o El País e o Le Monde aguardavam ansiosamente para apertar o
botão do maior vazamento do mundo. A Der Spiegel concordara em divulgar as
histórias ao mesmo tempo no site, com a revista sendo publicada na manhã
seguinte de segunda-feira. Todos conheciam o roteiro.
Mas os deuses das notícias decidiram fazer as coisas de modo diferente. Por
volta das 11h30 da manhã, Christian Heeb, editor-chefe da Rádio Basel, uma
emissora local, encontrou uma cópia da Der Spiegel na estação. A data era de 29
de novembro de 2010. O preço, 3,80 euros. A capa era simplesmente
sensacional: “Revelado: como a América vê o mundo”. O subtítulo confirmava:
“Os despachos secretos do Ministério das Relações Exteriores norte-americano”.
Contra um fundo vermelho, via-se uma galeria de fotografias dos líderes
mundiais, cada uma acompanhada por uma citação selecionada dos telegramas
norte-americanos. Angela Merkel, chanceler alemã cada vez menos popular, era
“avessa a riscos e raramente criativa”. Guido Westerwelle, o desastroso ministro
das Relações Exteriores de Merkel, era “agressivo”. E havia outros. Vladimir
Putin? “Cão alfa.” Dmitri Medvedev? “Pálido e hesitante.” Silvio Berlusconi?
“Festas selvagens.” Mahmoud Ahmadinejad? “Hitler.” Próximo à Líbia de
Muammar Kadafi estavam as atraentes palavras “exuberante enfermeira loura”.
E ainda eram prometidas mais revelações extraordinárias dentro da revista.
A emissora de Heeb começou a transmitir as notícias, dizendo que umas
poucas cópias da Der Spiegel estavam disponíveis na estação da Basileia. Nesse
momento, um usuário anônimo do Twitter, chamado Freelancer_09, resolveu
checar por si mesmo. E tuitou: “Der Spiegel zu früh am Badischen Bahnhof
Basel! Mal schaun was da steht” (Der Spiegel cedo demais na estação da
Basileia! Vamos ver o que está acontecendo.) Freelancer_09 conseguiu obter
uma das duas ou três últimas cópias do lote, no momento em que executivos, em
pânico na sede da revista em Berlim, percebiam que algo saíra terrivelmente
errado: uma das vans de distribuição enviadas para cruzar a Alemanha saíra para
a Suíça 24 horas antes do programado.
A Rádio Basel, na Suíça, recebeu um telefonema apressado da Alemanha. Será
que eles sairiam do ar em troca de ajuda posterior com a história? Mas era tarde
demais. Freelancer_09 já estava trabalhando: em poucos minutos, ele começou a
tuitar o conteúdo da revista. Merkel tinha um relacionamento melhor com o
presidente americano George W. Bush do que com o sucessor, Barack Obama!
Diplomatas americanos têm uma opinião negativa dos políticos locais alemães!
Os americanos acham que Westerwelle é um idiota! No início da manhã,
Freelancer_09 tinha a escassa contagem de quarenta seguidores no Twitter. Suas
opiniões políticas pareciam bastante claras – alternativas, contraculturais, até
anarquistas –, a julgar pelos usuários de esquerda que ele seguia e pela foto de
seu perfil, uma criança gritando em um megafone as seguintes palavras: “Estado
policial”. Não se sabe ao certo quem ele era. (Sua identidade continuou
misteriosa, pois, algumas semanas depois, sua conta no Twitter foi desativada.)
Em pouco tempo, espalhou-se pela blogosfera a notícia de que um jornalista
anônimo da Basileia encontrara o Santo Graal. Outros jornalistas alemães
começaram a retuitar suas mensagens. A Der Spiegel enviava desesperadamente
mensagens para que ele entrasse em contato, mas ele as ignorava. “Rapidamente
seus seguidores no Twitter aumentaram, como uma bola de neve. Podíamos ver
que aquilo estava se transformando num problema sério”, admite Holger Stark,
da Der Spiegel. “Enquanto tentávamos consertar as coisas, ele tinha conseguido
uma cópia da revista.”
Em Londres, sentado sem poder fazer nada, Alan Rusbridger percebeu que o
embargo das 21h30 (hora de Greenwich) para a divulgação dos telegramas
parecia ter sido furado. “Você tem cinco das organizações noticiosas mais
poderosas do mundo e tudo é paralisado por um pequeno freelancer.
Começamos a ter reuniões de hora em hora e nos perguntávamos o que fazer”,
ele afirma. E havia outras más notícias. Veículos de comunicação alemães rivais
contataram Freelancer_09 e pediram a ele que começasse a escanear páginas
inteiras da edição da Der Spiegel. Por volta de três da tarde, ele já tinha 150
seguidores e, a cada minuto, outros tantos se juntavam. Às quatro da tarde, os
artigos proibidos, já escaneados, eram enviados pela internet. Seus seguidores
chegaram a cerca de seiscentos. Um site-espelho francês começou a traduzir as
mensagens de Freelancer_09. “Percebemos que a história não ia parar. Nós
mesmos tínhamos dado origem a um vazamento”, recorda Rusbridger com
sarcasmo. Era uma grande ironia. Rusbridger fora um partidário precoce do
Twitter, encorajando incessantemente os jornalistas do The Guardian a se
registrarem no site de microblogging de San Francisco. Agora o Twitter se
voltava contra ele e – falando em linguagem figurada – o jogava para escanteio.
Na véspera, sábado, por volta das cinco da tarde, um técnico alemão do serviço
online da Der Spiegel, em Hamburgo, cometera um primeiro erro: ele entrou no
site em tempo real com um trecho da edição da revista. E forneceu os primeiros
detalhes intrigantes: havia 251.287 telegramas; um deles datava de 1966, mas a
maioria era recente, a partir de 2004; 9.005 documentos datavam dos primeiros
dois meses de 2010. Stark desculpou-se pelo incidente e disse que o link alemão
fora apagado assim que descoberto. As capturas de tela circularam pela net
durante algum tempo. Então, no domingo à tarde, mais material apareceu no
popular site da Der Spiegel em inglês. Agora os rumores estavam se espalhando
febrilmente pelo Twitter. A expectativa era máxima.
Em pouco tempo, o The New York Times identificou a matéria online da Der
Spiegel. Os diretores do jornal disseram que o embargo estava acabado – agora
efetivamente não fazia sentido. “O que foi incrível foi a ironia de ver justamente
os alemães estragarem tudo”, afirmou Katz, nem sempre o representante mais
politicamente correto do The Guardian. Até aquele momento, somente os
alemães – sempre impecavelmente éticos – haviam conseguido evitar as
recriminações lançadas livremente por Assange, tanto aos norte-americanos
quanto aos britânicos. Janine Gibson, editora do guardian.co.uk, o site do The
Guardian, comparou a divulgação antecipada dos telegramas ao Grand National
de 1993 na Grã-Bretanha – a caótica etapa da histórica corrida de cavalos foi
vergonhosamente cancelada depois de duas largadas falsas.
“Tudo ficou terrivelmente bagunçado”, afirma Rusbridger. “Foi a coisa mais
complicada que já fizemos: coordenar um jornal matutino espanhol, um jornal
vespertino francês, um semanário alemão e um [jornal] americano, num fuso
horário diferente e com um monte de anarquistas num bunker que só se
comunicavam via Jabber [serviço de mensagens instantâneas online].”
Às seis da tarde, o The Guardian e todos os outros concordaram em publicar.
Como se estivesse no Centro de Controle de Missões da Nasa, em Houston, a
equipe de produção do The Guardian estava preparada, no escritório do jornal,
em King’s Cross, diante de uma fileira de telas brilhantes. O chefe de produção,
Jon Casson, perguntou: “Vamos publicar?” E Katz respondeu: “PUBLICA!” A
palavra foi repetida e instantaneamente se espalhou pelas cadeiras do fundo da
sala. Então, a redação fez coro: “Publica! Publica! Publica!” O maior vazamento
do mundo tornava-se público.
A matéria de primeira página do The Guardian tornou evidentes as dimensões
históricas das informações. Assinada por David Leigh, ela apareceu no
guardian.co.uk às 18h13. A manchete dizia: “Vazamento de telegramas da
embaixada norte-americana produz crise diplomática global”. E começava: Os
Estados Unidos foram lançados em uma crise diplomática mundial hoje com o
vazamento, para o The Guardian e outros veículos de comunicação
internacionais, de mais de 250 mil telegramas confidenciais de suas embaixadas,
muitos enviados em datas recentes, como em fevereiro deste ano. Com o início
de uma série de trechos diários dos telegramas da embaixada norte-americana –
muitos designados “secretos” –, o The Guardian pôde revelar que líderes
árabes estavam secretamente encorajando um ataque aéreo ao Irã, e que oficiais
americanos foram instruídos a espionar a liderança das Nações Unidas.
A história continuava: “Essas duas revelações, sozinhas, provavelmente teriam
repercussão no mundo todo. Mas os despachos secretos, obtidos pelo WikiLeaks
– o site de informantes –, também revelam a avaliação sobre Washington sobre
muitos outros temas internacionais extremamente delicados”.
Às 18h15, o The Guardian publicou um blog em tempo real do WikiLeaks,
para registar as reações à medida que chegassem. Mais blogs em tempo real se
seguiriam – se tornariam uma parte inovadora da cobertura dos telegramas. As
revelações na reportagem de Leigh foram as primeiras de muitas, feitas durante
as quatro semanas seguintes. Apesar da publicação fragmentada, a divulgação
dos telegramas do Departamento de Estado norte-americano equivalia ao maior
vazamento desde 1971, quando Daniel Ellsberg repassou os Papéis do
Pentágono ao The New York Times, provocando um processo histórico e
revelando os segredos sujos da Casa Branca no Vietnã. O vazamento atual de
dados era muito maior – uma divulgação sem precedentes de informações
secretas vindas do coração da única superpotência mundial.
Ninguém poderia pensar numa história mais importante – ainda mais sendo
escrita pelos próprios veículos de comunicação. “Podia-se dizer que o ataque ao
World Trade Center ou a Guerra do Iraque eram histórias maiores. Mas, em
termos de jornais, em que, ao publicar uma história, você a revela e em seguida
ela é discutida em cada canto do planeta – e você é uma das poucas pessoas que
a conhecem e a publicam diariamente; bom, isso é excepcional”, observa
Rusbridger.
A essa altura, o Departamento de Estado norte-americano já reunira uma
equipe de 120 pessoas para varar a noite e tentar descobrir que telegramas
provavelmente seriam revelados. O departamento também emitiu uma
declaração condenatória, que dizia: Antecipamos a revelação, no domingo à
noite, do que supostamente são centenas de milhares de telegramas confidenciais
do Departamento de Estado, que detalham discussões diplomáticas privadas com
governos estrangeiros. Por sua natureza, os relatórios de campo para Washington
são informações verdadeiras, mas muitas vezes incompletas. Não são expressão
da política e nem sempre configuram as decisões finais da política. Contudo,
esses telegramas podem comprometer discussões privadas com governos
estrangeiros e líderes da oposição e, quando o conteúdo de conversas privadas é
impresso nas primeiras páginas dos jornais em todo o mundo, pode influenciar
profundamente não apenas os interesses da política estrangeira norte-americana,
mas os de nossos aliados e amigos em todo o mundo.
A divulgação dos telegramas era uma “ação incauta e perigosa”. E punha vidas
em risco, declarou a Casa Branca.
A declaração foi um exercício de contenção de danos. Mesmo os adversários
do WikiLeaks tinham de reconhecer que algumas das revelações – por exemplo,
a de que os Estados Unidos espionaram oficiais das Nações Unidas e buscaram
reunir números de cartões de crédito – eram essencialmente de interesse público.
Além disso, a Casa Branca muitas vezes expressou preocupação quando outros
regimes autoritários impuseram restrições à liberdade de expressão. Essa
resposta irritada, na ocasião em que o vazamento ocorreu no interior de sua
imensa máquina governamental, levaria russos, chineses e muito mais gente a
acusar Washington de usar dois pesos e duas medidas.
O The Guardian publicou uma réplica, destacando que o jornal editara
cuidadosamente muitos telegramas. E isso fora feito “para proteger várias fontes
citadas e, portanto, para não revelar certos detalhes das operações especiais”.
O The New York Times também defendeu vigorosamente a decisão de publicar:
Os telegramas contam a história, sem retoques, de como o governo toma suas
principais decisões, que custam ao país, sobretudo, vidas e dinheiro. Eles
esclarecem as motivações – e, em alguns casos, a duplicidade – dos aliados no
outro extremo do ‘galanteio’ e do auxílio internacional norte-americano. Eles
iluminam a diplomacia em torno de duas guerras atuais e de diversos países,
como o Paquistão e o Iêmen, onde cresce o envolvimento das Forças Armadas
norte-americanas. Por mais assustador que seja publicar tal material contra as
objeções oficiais, seria arrogância concluir que os americanos não têm o direito
de saber o que está sendo feito em seu nome.
Franco Frattini, ministro das Relações Exteriores italiano, foi um dos primeiros
políticos a perceber que o vazamento não poderia ser desfeito, chegando a ponto
de mudar o jogo. “Será o 11/9 da diplomacia mundial”, exclamou. Pela primeira
vez, a comparação não parecia um exagero. “O vazamento estava sendo
discutido na Casa Branca, no Kremlin, no Élysée, por Berlusconi e pela ONU,
por Chávez, em Camberra e em cada capital do mundo”, afirmou Rusbridger.
“Onde ele não estava sendo discutido, sabíamos que eles estavam se preparando
para isso. Tinha-se a sensação de completa confusão. Todas aquelas pessoas
incrivelmente poderosas, as mais poderosas do mundo, estavam brigando em
reuniões de emergência.”

Em Kings Place, a reunião editorial do dia seguinte estava mais cheia que o
normal. As reuniões matutinas são um ritual no The Guardian: os chefes das
editorias – nacional, estrangeira, cidades, esportes, assim como a de reportagens
especiais, comentários e arte – fazem um breve relatório das contribuições do
dia. A equipe toda pode participar, e qualquer um pode falar. A organização das
cadeiras reflete a hierarquia velada do The Guardian: Rusbridger senta-se no
meio de um sofá amarelo e comprido; a equipe de novatos senta-se, sem nenhum
conforto, nos bancos próximos às paredes de vidro. Depois da rodada de
notícias, o editor normalmente diz: “Mais alguma coisa?” Muitas vezes há um
silêncio. Alguém corajoso, ou tolo, inicia o debate; às vezes o silêncio se estende
embaraçosamente por dez segundos. Nessa manhã, porém, não houve hesitação.
A sala estava lotada; a atmosfera era de agitação e espanto pelo fato de que o
The Guardian conseguira, com umas poucas falhas, publicar a história.
Um dos rostos desconhecidos ali era o de Luke Harding, correspondente do
The Guardian em Moscou, que examinara os telegramas à procura de uma série
de histórias sobre a Rússia e que, recém-chegado de Moscou, estava de pé
próximo à porta, com a barba por fazer, atordoado com a mudança de fuso
horário. Ian Katz recordou os eventos dramáticos do domingo e explicou a
decisão de prosseguir com a publicação, quando ficou claro que o próprio
Cablegate originara um vazamento. Katz descreveu as cômicas discussões do
The Guardian com seus muitos parceiros europeus: “Era um misto de liderar um
comitê em Bruxelas com um episódio de ’Allo ’Allo”.* Ele propôs uma analogia
um tanto rococó: era “como ser uma espécie de controlador de tráfego aéreo,
com diversos pequenos acidentes de avião em Stansted, mas conseguindo
aterrissar alguns jatos dos grandes em Heathrow”.
O site do The Guardian tinha ficado “completamente confuso”, informou
Janine Gibson. A história produziu um tráfego incrível: 4,1 milhões de usuários
únicos, o número mais elevado de todos os tempos. Números recorde
continuariam, com 9,4 milhões de navegadores exibindo as histórias do
WikiLeaks entre 28 de novembro e 14 de dezembro. Cerca de 43% vinham dos
Estados Unidos. A equipe do The Guardian projetara um gráfico interativo que
permitia aos leitores realizarem suas próprias buscas na base de dados dos
telegramas. Esse gráfico se tornou o aspecto mais popular da cobertura do The
Guardian. Pessoas no mundo todo podiam ver o que os oficiais norte-
americanos haviam escrito de forma privada sobre seus governantes. “Era
realmente agradável”, afirma Gibson. “As pessoas pesquisavam e se envolviam
com os telegramas, não estavam apenas ‘assangeando’.”
À medida que os telegramas apareciam diariamente, um retrocesso
desagradável, e muitas vezes desordenado, ocorria nos Estados Unidos. Um coro
vingativo surgiu, sobretudo entre os republicanos. O congressista de Nova York
Peter King, que assumiria a presidência do Comitê de Segurança Interna, falou
em “traição” e sugeriu que o WikiLeaks fosse designado como “uma
organização terrorista estrangeira”. Evitando qualquer risco de meias-palavras,
ele disse: “O WikiLeaks representa um perigo claro e presente para a segurança
nacional dos Estados Unidos”.
Foi noticiado que o congressista Pete Hoekstra, de Michigan, exigia
execuções: “Evidentemente podemos ir atrás da pessoa que vazou a informação
ou a hackeou em nossos sistemas, e podemos prendê-la por espionagem ou
traição. Se formos atrás dela – e pudermos condená-la por traição –, então a pena
de morte se torna uma opção”.
Seu colega Mike Rogers, também de Michigan, não fez por menos. Ele disse a
uma estação local de rádio: “Afirmo que a pena de morte deve ser considerada
nesse caso. Ele claramente ajudou o inimigo, o que pode resultar na morte de
soldados ou colaboradores norte-americanos. Se esse não é um delito passível de
pena de morte, eu não sei o que é”.
A ex-governadora do Alasca Sarah Palin, queridinha da direita insana,
denunciou “a espionagem doentia e antiamericana” de Assange e quase incitou
seu assassinato: “Por que ele não foi perseguido com a mesma urgência com que
perseguimos os líderes do Talibã e da Al Qaeda? [...] Ele é um espião
antiamericano com sangue nas mãos”.
Mas veio do senador Joe Lieberman, presidente do Comitê de Segurança
Interna do Senado, um gavião da política estrangeira e democrata dissidente, a
crítica mais voraz e objetiva contra o WikiLeaks. Lieberman descreveu o
vazamento em termos apocalípticos, como “uma ação ultrajante, incauta e
desprezível, que minará a capacidade de nosso governo e de nossos parceiros de
manter o povo seguro e de colaborar para defender nossos interesses vitais”. Ele
não chegou a denunciar Assange como “terrorista”, mas afirmou: “O que o
WikiLeaks fez foi terrível. Espero que estejamos fazendo o possível para tirar o
site deles do ar”.

No domingo, primeiro dia de publicação dos telegramas, o WikiLeaks foi


vítima de um ataque hacker massivo. O tráfego da net para o site saltou de 13
gigabits (milhares de milhões de bits) por segundo para cerca de 17 Gbps,
chegando ao nível máximo de 18 gigabits por segundo. O WikiLeaks estava
acostumado a ataques DDOS (distributed denial of service – negação de serviços
distribuídos). No controle de um botnet de dezenas de milhares de PCs com
Windows, havia alguém aparentemente os orquestrando, numa tentativa de fazer
com que o wikileaks.org ficasse sobrecarregado.
Num ataque DDOS normal, os PCs tentam se comunicar com o site-alvo. Um
método típico é enviar uma solicitação ping, com uns poucos pacotes de dados.
É como tocar a campainha da porta da frente do site. Em geral, o site responde,
confirmando que os dados chegaram. É fácil um site lidar com uma solicitação
ping. Mas, quando um monte delas chega continuamente do mundo inteiro,
torna-se impossível para o site fazer algo proveitoso, pois ele está muito ocupado
tentando responder às solicitações.
O ataque DDOS que atingiu o WikiLeaks naquela tarde era oito vezes maior
que os anteriores. O hacker por trás dele parecia ser um curioso patriota de
direita chamado “The Jester”, ou, na linguagem que ele usava, “th3j35t3r”. The
Jester se autodenominava um “hacktivista do bem”. Seu objetivo, de acordo com
sua conta do Twitter, era obstruir “as linhas de comunicação de terroristas,
simpatizantes, montadores, facilitadores, regimes opressivos e caras maus em
geral”. Enquanto os ataques continuaram a atingir o WikiLeaks, ele tuitou,
animado: “www.wikileaks.org – TANGO DOWN – por tentar pôr em risco a
vida das nossas tropas, ‘outros bens’ & as relações internacionais”.
Normalmente, The Jester preferia derrubar sites que ele considerava que eram
usados por grupos jihadistas e outros revolucionários islâmicos; sempre que
conseguia, enviava a mesma mensagem satisfeita: “TANGO DOWN”.
Supostamente um ex-recruta das Forças Armadas norte-americanas, The Jester
parecia ter decidido que Assange era o alvo da vez.
O ataque de The Jester foi o primeiro combate intrigante de uma séria
ciberluta. Grandes corporações norte-americanas tentavam tirar Assange da
internet. Mas em sua defesa acorria um grupo engajado de libertários online e
cyber-freaks menores de idade. Nessa guerra, alguns discerniam o princípio de
um movimento de protesto global descentralizado. Outros a desprezavam como
travessuras de um bando de jovens sexualmente frustrados. Mas não havia
dúvidas de que o WikiLeaks estava cercado.
Para esquivar-se dos ataques DDOS, Assange desviou a página principal do
WikiLeaks – mas não a dos telegramas diplomáticos – para que funciosse no
serviço EC2, ou “Elastic Cloud Computing”, da Amazon. O diretório
cablegate.wikileaks.org e seu conteúdo permaneceram fora da Amazon, num
servidor localizado na França. O serviço comercial da Amazon era grande o
bastante para absorver os ataques DDOS. Na terça-feira, 30 de novembro, houve
mais ataques contra o site principal da Amazon e o site do WikiLeaks com os
telegramas, hospedado na França. Usando máquinas da Rússia, da Europa
oriental e da Tailândia, os ataques eram maiores e mais sofisticados. Apesar
disso, o WikiLeaks conseguiu conter a tempestade, com o auxílio dos poderosos
servidores EC2 da Amazon. Assange divulgou que iria contratá-los.
O senador Lieberman intensificou a campanha: contatou a Amazon e exigiu
que deixassem de hospedar o WikiLeaks. A intimidação de Lieberman
funcionou – a Amazon removeu o WikiLeaks de seus servidores. Em vez de
admitir que cedera à pressão política, a empresa alegou, de modo evasivo, que o
WikiLeaks violara os “termos de serviço”. “Está claro que o WikiLeaks não é
proprietário de todos os direitos do conteúdo confidencial nem os controla”,
afirmou a Amazon. “Além disso, não parece verossímil que o extraordinário
volume de 250 mil documentos confidenciais que o WikiLeaks está publicando
possa ter sido cuidadosamente editado, de modo que se possa garantir que eles
não estão pondo pessoas inocentes em risco.”
Essa declaração da Amazon não se baseava em evidências concretas. Apenas
uma pequena parcela dos 250 mil telegramas havia sido publicada, e cada um
estava, de fato, sendo cuidadosamente editado. Parecia que os executivos da
Amazon estavam apenas regurgitando frases ditadas a eles pelos políticos.
O senador saudou a “decisão certa” da Amazon e incitou “qualquer outra
empresa ou organização que esteja hospedando o WikiLeaks a imediatamente
cessar o relacionamento com eles”. E continuou: “Os atos ilegais, ultrajantes e
incautos do WikiLeaks comprometeram a segurança nacional e puseram vidas
em risco em todo o mundo. Nenhuma empresa responsável – norte-americana ou
estrangeira – deveria auxiliar o WikiLeaks em seus esforços para disseminar o
material roubado”.
A equipe do WikiLeaks usara um software livre para gerar um gráfico que
exibia uma visão geral da classificação, do número e de outros dados gerais dos
telegramas. A pequena empresa que o licenciava – Tableau Software – removeu
o gráfico do site público, também pressionada (embora não tenha havido contato
direto) pelo gabinete de Lieberman. Os dominós começaram a cair. A empresa
EveryDNS, que fornece serviços de roteamento gratuitos (traduzindo endereços
de leitura amigável, como wikileaks.org, em endereços de internet lidos pelo
sistema, por exemplo, 64.64.12.170), excluiu o nome de domínio wikileaks.org e
também apagou todos os endereços eletrônicos associados a ele. Para justificar a
ação, a EveryDNS afirmou que os constantes ataques de hackers ao WikiLeaks
estavam prejudicando os outros clientes.
Com efeito, o WikiLeaks agora desaparecera da web para qualquer um que não
soubesse como descobrir um endereço numérico para o site. O WikiLeaks
transferiu-se para um endereço alternativo, www.wikileaks.ch, registrado na
Suíça, mas hospedado num abrigo sueco para resistir a uma guerra nuclear.
Novos problemas surgiram: o PostFinance, o sistema postal suíço, encerrou a
conta bancária de Assange, baseado no fato de que ele não morava em Genebra,
como solicitado nas regras. O PayPal, do site de leilões norte-americano eBay,
afirmou que suspenderia a conta do WikiLeaks em virtude de “violação da
política de uso aceitável do PayPal”. Um porta-voz afirmou que a conta “não
pode ser usada para atividades que encorajem, promovam, facilitem ou instruam
terceiros a participar de atividade ilegal”. Mais tarde, foi revelado que o
Departamento de Estado norte-americano escrevera à empresa em 27 de
novembro – véspera da publicação dos telegramas – declarando que o
WikiLeaks era considerado ilegal nos Estados Unidos. Na segunda-feira, 6 de
dezembro, a gigante dos cartões de crédito MasterCard tomou a mesma decisão,
afirmando que o WikiLeaks “transgredira as regras”. Na terça-feira, a Visa
europeia fez o mesmo. Esses eram métodos fáceis e populares de doação online;
quando as duas empresas encerraram as operações, grande parte dos fundos do
WikiLeaks foi bloqueada. (Os críticos assinalaram que, enquanto as doações
para o WikiLeaks estavam suspensas, o site da Ku Klux Klan continuava
direcionando os doadores a um site que aceitava ambos os cartões, MasterCard e
Visa.) Foi um golpe mortal, que deixou Assange com dificuldades para pagar
suas despesas jurídicas e as do WikiLeaks, que não paravam de crescer.
Esses ataques contra o WikiLeaks não ficaram sem resposta: fizeram crescer a
fúria online por tal demonstração de pressão política e de interesse próprio
corporativo americano. Enquanto as pesquisas sugeriam que muitos americanos
apoiavam o bloqueio do WikiLeaks, outros estavam irritados pela supressão da
liberdade de expressão, e outros ainda pensavam que a ruína da empresa eram
um mau presságio para a liberdade de expressão na internet.
Nesse cenário, surgiu o Anonymous, um grupo de cerca de três mil pessoas.
Alguns eram hackers, especialistas no controle de botnets de pequena escala;
outros eram novatos na net, que buscavam uma causa para apoiar. Tratava-se de
uma comunidade livre, formada sobretudo por adolescentes, que tinham tempo
de sobra, e pessoas mais velhas (quase todas homens), com mais bom senso e
habilidades técnicas. A multidão do Anonymous era um grupo apenas em
sentido amplo, escreveu o editor de tecnologia do The Guardian, Charles Arthur:
“É mais como um rebanho em fuga, sem saber ao certo o que quer, mas certo de
que não haverá obstáculos, até que eles chegam a um entrave insuperável e
procuram outra coisa”.
O Anonymous – que surgiu do igualmente caótico fórum “b”, no site de
discussões 4chan.org – no passado atormentara cientologistas, republicando
vídeos e vazando documentos secretos que a seita queria esconder. A ampla
bandeira do Anonymous é lutar contra a supressão da informação – mas seus
membros também praticavam atos infantis simplesmente para chatear e frustrar
usuários da web, para sua própria diversão (atos conhecidos como “doing it for
the lulz”*). De vez em quando, simpatizantes do Anonymous apareciam em
manifestações – alguns usando a mesma máscara assustadora de Guy Fawkes
que decorava a página do Twitter do grupo, Anony_Ops. “É complexo, pueril,
bizarro e caótico”, falou um deles a Arthur.
A Operação Vingança do grupo fora anteriormente dirigida contra os websites
das firmas de advogados que perseguiam piratas de música online, assim como
contra a Associação da Indústria Fonográfica da América. Agora era a vez das
empresas de pagamento online. Apesar de não haver uma hierarquia ou um líder
identificáveis, na quarta-feira, 8 de dezembro, os hackers do Anonymous tiraram
do ar, durante várias horas, o site da MasterCard e interromperam
temporariamente a conta do cartão de crédito de Sarah Palin. O Anonymous
também afirmou ter atingido o site do PostFinance e do gabinete da promotoria
sueca. Alguns simpatizantes do Anonymous divulgaram um “manifesto”:
“Defendemos o livre fluxo de informações. O Anonymous está ativamente em
campanha para alcançar esse objetivo de todas as formas. Isso exige liberdade de
expressão para a internet, para o jornalismo, para os jornalistas e para os
cidadãos do mundo. Embora reconheçamos que vocês podem discordar,
acreditamos que o Anonymous está em campanha para que vocês nunca tenham
que silenciar”.
Não se sabe ao certo que efeito o ataque teve nas operações financeiras da
MasterCard – a empresa não divulgou que transações (que eram transmitidas por
linhas seguras para os computadores principais) foram afetadas. De modo geral,
ela ignorou o ataque, esperando não instigar outros hackers. A tática funcionou:
o Anonymous em seguida voltou sua ira contra a Amazon e o PayPal, mas a
natureza desorganizada do grupo significava que eles não poderiam reunir poder
de fogo suficiente para atingir os sites off-line – a Amazon era muito grande, e o
PayPal resistiu a alguns ataques. Comentava-se que os poderosos hackers que
haviam atacado a MasterCard não queriam prejudicar a si mesmos derrubando o
PayPal, que eles usavam constantemente.
Esse evento foi algo novo – o equivalente, na internet, a uma manifestação
política barulhenta. O que começara com alguns nerds adolescentes
transformara-se numa ciber-revolta contra as tentativas de limitar a informação.
Como eles disseram num profético vídeo do YouTube, com o som de guitarras
ao fundo: “Nós estamos em toda parte”. Certamente estavam na Holanda, onde,
em dezembro, a polícia prendeu dois adolescentes, de 16 e 19 anos. Alguns
simpatizantes do Anonymous sem habilidades informáticas não se deram conta
de que o software – chamado LOIC – que lhes fora oferecido para os ataques
forneceria sua localização na internet. A polícia poderia, a qualquer momento,
associá-la a um usuário.

Contudo, por trás de toda a efervescência online, estava em andamento um


jogo muito mais sério. O procurador-geral do presidente Obama, Eric Holder,
convocou uma entrevista coletiva para anunciar que havia uma “investigação
criminal ativa e permanente” sobre o vazamento de informações confidenciais. E
prometeu fazer com que todos que infringissem a lei nos Estados Unidos
“respondessem por isso”. Ele afirmou: “Na medida em que existam lacunas nas
leis, nos aproximaremos dessas lacunas, o que não significa dizer que alguém,
nesse momento, por sua cidadania ou local de residência, deixa de ser um alvo
ou de estar submetido a uma investigação em andamento”. Em Alexandria, na
Virgínia, perto de Washington, começaram a correr rumores de que um grande
júri secreto fora montado e de que muitas liminares seriam expedidas. Bradley
Manning, o jovem soldado que estava havia sete meses praticamente em
confinamento solitário, só veria um fim para o seu duro tratamento – segundo a
opinião de seus amigos – se estivesse disposto a implicar Julian Assange e o
WikiLeaks em alguns crimes graves.
Parecia claro que processar Assange – um cidadão australiano que vivia no
Reino Unido – por espionagem ou conspiração seria um caso difícil,
especialmente por causa da natureza obsoleta da Lei de Espionagem norte-
americana. Mas também ficou claro que a Casa Branca, exasperada, queria ser
vista perseguindo energicamente essa opção. Será que o Departamento de Justiça
tentaria retirar Assange à força de seu refúgio, na zona rural inglesa? E não havia
ainda uma investigação policial não solucionada sobre seu comportamento na
Suécia? A ameaça de extradição – e a possibilidade de muitas décadas numa
prisão de segurança máxima nos Estados Unidos – começou a tomar forma para
Assange, enquanto o restante do mundo tentava digerir o significado da
montanha de documentos que ele revelara.
Notas

* Série de TV britânica, transmitida entre 1982 e 1992, que retratava a França ocupada. (N. da T.)
* Essa expressão constitui uma variante de LOL (laughing out loud) e pode ser traduzida como “tirando
sarro da cara (de alguém)”. (N. da T.)
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O maior vazamento da história


Ciberespaço
30 DE NOVEMBRO DE 2010

“É o sonho do historiador. E é o pesadelo do diplomata.”

– TIMOTHY GARTON ASH, HISTORIADOR

QUE NÓS APRENDEMOS COM O WIKILEAKS? A pergunta – assim como tudo


O que se relacionava aos vazamentos – é polarizante. Havia, desde o início,
um desinteresse dos bien pensants* das metrópoles, que achavam que sabiam de
tudo. Os árabes não gostam do Irã? O governo russo é corrupto? Alguns países
africanos são cleptocracias? Continuem, surpreendam-nos. Só falta vocês nos
dizerem que o papa é católico.
Segundo essa crítica, as revelações diziam o óbvio e se resumiam a
“entediantes confidências diplomáticas”. (Essa frase foi extraída da London
Review of Books. O acadêmico Glen Newey afirmou que não se impressionara
com a revelação de que o líder francês, Nicolas Sarkozy, “é um homem baixinho
com complexo de Napoleão”.)
Depois, havia as pessoas que afirmavam que os telegramas não revelavam o
suficiente sobre o mau comportamento americano. Para a esquerda, isso era
motivo de decepção e, algumas vezes, de suspeita. Um pequeno grupo de
conspiradores começou a analisar os telegramas atrás de provas de edição ou
censura ideológica. E por que tão pouco sobre Israel? Para a direita e o governo,
isso servia de combustível para o argumento de que não havia interesse público
na divulgação do material. Não era como os Papéis do Pentágono, eles
justificavam. Havia pouca ilegalidade na política estrangeira norte-americana
revelada nos documentos; onde estava, portanto, a justificativa para revelar
tudo? Depois, lá estava o governo dos Estados Unidos, que insistia que os
vazamentos estavam pondo vidas em risco, destruindo a capacidade de
Washington de fazer negócios com os aliados e parceiros e ajudando os
terroristas.
O que esses argumentos não levavam em conta era o anseio pelos telegramas
em países que não tinham democracia em pleno funcionamento ou o tipo de
liberdade de expressão desfrutado em Londres, Paris ou Nova York. Pouco
depois da divulgação dos primeiros telegramas, o The Guardian começou a
receber um fluxo constante de solicitações de editores e jornalistas de todo o
mundo, querendo saber o que os despachos revelavam sobre seus próprios países
e governantes. Era mais fácil chamar as revelações de previsíveis e até mesmo
maçantes quando se vivia na Europa ocidental, e não em Belarus, na Tunísia ou
em qualquer outro regime opressor.
Tratava-se de um argumento poderoso a favor das revelações do WikiLeaks.
Não era particularmente edificante ver comentaristas e políticos ocidentais
desprezando o interesse público na divulgação daquelas informações, que eram
ávida e desesperadamente buscadas por pessoas em países distantes, dos quais,
sem dúvida, eles sabiam muito pouco. Quem poderia dizer que efeito as
revelações teriam, mesmo que elas divulgassem coisas que, de algum modo, já
eram conhecidas? Muitas vezes a publicação em si servia como autenticação e
verificação daquilo de que já se suspeitava.
De fato, longe de ser rotineiro, o vazamento não tinha precedentes, pelo menos
em tamanho. O WikiLeaks chamava-o, corretamente, de “o maior conjunto de
documentos confidenciais já divulgados publicamente”. Havia 251.287
comunicados internos do Departamento de Estado, escritos por 280 embaixadas
e consulados, em 180 países. Entre eles, havia avaliações transparentes e, muitas
vezes, nem um pouco lisonjeiras de líderes mundiais; análises – muitas de boa
qualidade; comentários, relatórios de reuniões, súmulas e fofocas. Havia relatos
de jantares regados a vodca, reuniões com oligarcas, encontros em restaurantes
chineses e até de uma festa sexual na Arábia Saudita. Alguns dos telegramas
eram longos ensaios, que ofereciam uma reflexão original sobre problemas
complexos do ponto de vista histórico, como no caso da Chechênia; outros eram
meras solicitações a Washington.
Eles enfatizavam interesses e preocupações geopolíticas da superpotência
norte-americana: a proliferação nuclear, a suposta ameaça do Irã, a situação
militar de difícil controle em Cabul e Islamabad. Os telegramas da embaixada
norte-americana vinham de importantes centros de poder (Londres e Paris), mas
também da periferia distante (Asgabate, Ierevan e Bishkek). E não eram
entediantes – ao contrário, ofereciam um mosaico incomparavelmente detalhado
da vida e da política no início do século XXI. Mas, mais importante que isso,
incluíam a revelação de coisas que os cidadãos têm o direito de saber. E isso vale
tanto para os americanos quanto para os não americanos. Os telegramas
discutiam casos de abuso aos direitos humanos, corrupção e ligações financeiras
duvidosas entre os líderes do G8. Falavam de espionagem corporativa, golpes
baixos e contas-correntes secretas. Em suas conversas privadas, os diplomatas
norte-americanos dispensam as superficialidades que caracterizam o serviço
público e fazem avaliações relativamente sinceras e imediatas, oferecendo um
vislumbre da mentalidade que rege o alto escalão do poder nos Estados Unidos.
De certo modo, os telegramas eram a verdade.
O princípio constante que fundamentou a seleção do The Guardian – o que
seria ou não impresso – era se o telegrama continha material de interesse público
mais amplo. Em nenhum lugar isso foi mais nítido do que em uma diretiva
confidencial, de julho de 2009, que revelava que o governo dos Estados Unidos
estava espionando as Nações Unidas e seu discreto secretário-geral sul-coreano,
Ban Ki-moon. O telegrama começava solicitando informações diplomáticas
previsíveis sobre posições e opiniões em temas controversos, como Darfur,
Somália, Afeganistão, Irã e Coreia do Norte. Mas, lido com mais atenção,
claramente obscurecia a linha entre diplomacia e espionagem.
A diretiva de Washington pedia informações confidenciais: senhas, códigos de
criptografia. Solicitava dados biométricos detalhados “sobre os principais
funcionários da ONU, incluindo subsecretários, chefes de agências
especializadas e seus conselheiros, auxiliares de alto escalão do SG [secretário-
geral], chefes de operações de paz e missões de campo políticas, incluindo os
comandantes das forças”, assim como informações de inteligência sobre “o
estilo de gestão e de tomada de decisões e a influência [de Ban] na secretaria”.
Washington também queria números de cartões de crédito, endereços
eletrônicos, números de telefone, fax e pager e números de programas de milhas
de personalidades da ONU. Buscava ainda “informações biográficas e
biométricas sobre os representantes permanentes do Conselho de Segurança das
Nações Unidas”.
A “diretiva da coleção nacional de inteligência humana” foi distribuída para
missões norte-americanas na ONU em Nova York, Viena e Roma, e para 33
embaixadas e consulados, incluindo as de Londres, Paris e Moscou. Em todas as
principais agências de inteligência de Washington – o serviço clandestino da
CIA, o Serviço Secreto Norte-Americano e o FBI –, assim como no
Departamento de Estado, circulavam essas “necessidades de coleta e
informação”.
Há muito tempo a ONU tem sido vítima de operações de escuta e espionagem.
Diplomatas veteranos estão acostumados a conduzir as discussões mais
delicadas extramuros, e nem todos foram pegos de surpresa por essas revelações.
Robert Baer, ex-oficial de campo da CIA no Oriente Médio, observou: “Existe
uma razão para que a base da CIA esteja normalmente ligada à seção política nas
embaixadas. Existem embaixadores que adoram essas coisas. No sistema
americano, isso espirra para todo lado”.
Mas o telegrama – assinado “CLINTON” – iluminou uma cínica campanha de
espionagem. A equipe diplomática norte-americana tem imunidade e pode agir
sem levantar suspeitas. O historiador britânico e colunista do The Guardian
Timothy Garton Ash foi um dos que ficaram perturbados com a diretiva. Ele
observou que “diplomatas americanos estão sendo solicitados a fazer coisas que
normalmente se espera de espiões de baixo escalão”.
Especialistas em legislação internacional também ficaram indignados. O
telegrama parecia expor a violação, por parte dos Estados Unidos, de três
tratados fundamentais das Nações Unidas. O porta-voz de Ban, Farhan Haq,
enviou uma carta lembrando aos Estados-membros que respeitassem a
inviolabilidade da ONU: “A Carta das Nações Unidas, o Acordo de Sede e a
Convenção de 1946 contêm disposições relacionadas aos privilégios e
imunidades da organização. A ONU confia na adesão dos Estados-membros a
essas diversas obrigações”.

Os telegramas norte-americanos continham inúmeros outros segredos que


deveriam ser revelados para o público. Incontáveis memorandos das bases
americanas no Oriente Médio expunham amplamente as pressões dos bastidores
para conter o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, que os Estados Unidos,
os Estados Árabes e Israel acreditavam estar perto de obter armas nucleares.
Surpreendentemente, os telegramas mostravam o rei Abdullah, da Arábia
Saudita, encorajando os Estados Unidos a atacarem o Irã e destruírem o
programa nuclear do país. Outros aliados árabes também estavam incitando
secretamente a ação militar contra Teerã. Bombardear as instalações nucleares
do Irã até então era considerado publicamente uma medida extrema e
desesperada, que poderia dar início a uma guerra muito mais ampla – a qual não
estava seriamente na pauta diplomática de ninguém, exceto, talvez, a dos
israelenses.
De acordo com os telegramas, o rei saudita “frequentemente exortava os
Estados Unidos a atacarem o Irã e porem um fim em seu programa de armas
nucleares”. Segundo o relatório da reunião de Abdullah com o general norte-
americano David Petraeus, em abril de 2008, Adel al-Jubeir, embaixador saudita
em Washington, comentou que o rei incentivava os americanos a “cortar a
cabeça da cobra”.
Os telegramas também destacavam a ansiedade de Israel em preservar o
monopólio nuclear na região, sua disposição em agir de forma independente
contra o Irã e as tentativas contínuas de influenciar a política norte-americana. O
ministro da Defesa, Ehud Barak, alegou, por exemplo, em junho de 2009, que
havia uma janela “de seis a dezoito meses a partir de agora na qual ainda pode
ser viável impedir que o Irã obtenha armas nucleares”. Depois disso, Barak
afirmou, “qualquer solução militar resultará em danos inaceitáveis”.
A verdadeira escala do envolvimento militar secreto dos Estados Unidos no
Iêmen – a nação mais pobre do mundo árabe – também foi revelada. A
preocupação de Washington de que o Iêmen se tornasse um refúgio para a Al
Qaeda na Península Arábica (Aqap) era compreensível. O grupo realizara uma
série de ataques a alvos ocidentais, incluindo uma tentativa fracassada de
bombardear um avião de carga, em outubro de 2010, e, no ano anterior, uma
investida para derrubar um avião de passageiros em Detroit. Menos justificável,
talvez, fosse o motivo de os Estados Unidos terem concordado com um acordo
secreto com o presidente do Iêmen, Ali Abdullah Saleh, para apresentar ataques
americanos a alvos da Al Qaeda como sendo seus.
Os telegramas mostravam que Saleh ofereceu aos americanos uma “porta
aberta” para conduzir missões contraterroristas no Iêmen e lançar ataques de
mísseis de cruzeiros no território iemenita. O primeiro, em dezembro de 2009,
matou dezenas de civis, assim como supostos militantes. Saleh o apresentou
como obra do próprio Iêmen, auxiliado pela inteligência norte-americana. Numa
reunião com o general Petraeus, chefe do Comando Central americano, Saleh
admitiu ter mentido à população sobre os ataques e enganado o Parlamento:
“Continuaremos a dizer que as bombas eram nossas, e não suas”, disse a
Petraeus. Era uma mentira que os Estados Unidos pareciam prontos a aceitar.

Como Bill Keller, do The New York Times, afirmou, os documentos


promoveram nosso conhecimento do mundo não em grandes saltos, mas em
pequenos passos. Para quem se interessa por política externa, eles ofereciam
nuances, texturas e dramas. Quem acompanhava as histórias com mais
distanciamento era capaz de entender as relações internacionais de forma mais
dinâmica. Mas os telegramas também incluíam alguns momentos assombrosos,
quando uma cortina parecia se abrir e revelar a verdadeira face de um país.
A mais dramática dessas revelações não veio do Oriente Médio, mas da
Rússia. É amplamente conhecido o fato de que a Rússia – teoricamente
controlada pelo presidente Dmitri Medvedev, mas na verdade governada pelo
primeiro-ministro Vladimir Putin – é corrupta e antidemocrática. Mas os
telegramas iam muito além. Eles pintavam um quadro lúgubre e desesperador de
uma cleptocracia centrada na liderança de Putin, em que autoridades, oligarcas e
o crime organizado estão ligados num “Estado praticamente mafioso”.
Tráfico de armas, lavagem de dinheiro, enriquecimento pessoal, proteção a
gângsteres, extorsões e subornos, malas cheias de dinheiro e contas secretas no
exterior – os telegramas da embaixada americana desatavam um sistema político
em que o suborno chegava a trezentos bilhões de dólares ao ano, sendo muitas
vezes difícil distinguir entre as atividades do governo e as do crime organizado.
Lida em conjunto, a coleção de telegramas oferecia um raro momento de
verdade sobre um regime ao qual normalmente se atribuía respeitabilidade
internacional.
Apesar da melhora das relações Estados Unidos-Rússia, desde que o presidente
Obama assumiu o poder, os americanos não tinham ilusões sobre seus
interlocutores russos. Os telegramas afirmavam que espiões usavam chefões
veteranos da máfia para executar operações criminosas, como tráfico de armas.
Enquanto isso, as agências responsáveis pelo cumprimento da lei, tais como a
polícia, as agências de espionagem e a promotoria praticavam um esquema de
extorsão para as redes criminosas. O ex-prefeito de Moscou, Yuri Luzhkov,
afastado em 2010 por Medvedev, por razões políticas, presidia uma “pirâmide de
corrupção”, sugeriam as autoridades americanas. (A bilionária esposa de
Luzhkov, Yelena Baturina, descartou as acusações como uma “baboseira
completa”.)
A burocracia russa é tão corrupta que opera o que é, com efeito, um sistema
fiscal paralelo para o enriquecimento privado da polícia, de autoridades e do
sucessor da KGB, o Serviço de Segurança Federal (FSB), afirmam os
telegramas. Há anos correm rumores de que Putin acumulou em proveito próprio
uma fortuna secreta, escondida no exterior. Os telegramas deixam claro que os
diplomatas norte-americanos tratavam esses rumores como verdadeiros – eles
especulam que Putin escolheu deliberadamente um sucessor fraco quando
deixou a presidência da Rússia, em 2008, pois poderia estar preocupado com a
perda dos “procedimentos ilícitos” em investigações da polícia. Enquanto isso,
em Roma, diplomatas norte-americanos lançavam suspeitas de que o primeiro-
ministro italiano, Silvio Berlusconi, poderia estar “lucrando, pessoal e
consideravelmente”, ao tomar um atalho nos acordos com Putin para energia
clandestina.
Um telegrama particularmente incriminador sobre a Rússia foi enviado de
Madri. Com data de 8 de fevereiro de 2010, comunicava a Washington um
informe de um promotor espanhol. José González passou mais de uma década
tentando desemaranhar as atividades do crime organizado russo na Espanha.
Encontrando-se com autoridades norte-americanas em janeiro, disselhes que a
Rússia se transformara num “Estado praticamente mafioso”, em que “não se
pode diferenciar entre as atividades do governo e dos grupos de CO [crime
organizado]”. González afirmava ter evidências – foram feitas milhares de
escutas telefônicas nos últimos dez anos – de que certos partidos políticos na
Rússia trabalhavam de mãos dadas com gangues mafiosas. Ele disse que oficiais
da inteligência orquestraram carregamentos de armas para grupos curdos para
desestabilizar a Turquia e estavam mexendo os pauzinhos num caso de 2009
referente ao navio de carga Arctic Sea, suspeito de carregar mísseis destinados
ao Irã. Os gângsteres desfrutavam de apoio e proteção e, com efeito,
trabalhavam “como um complemento às estruturas estatais”, comunicou às
autoridades americanas.
González afirmou que o insatisfeito oficial dos serviços de inteligência russa,
Alexander Litvinenko, encontrou-se secretamente com oficiais de segurança
espanhóis em maio de 2006, seis meses antes de ser assassinado em Londres
com polônio radioativo. Litvinenko notificou a Espanha de que os serviços de
inteligência e segurança russos controlavam a rede de crime organizado do país.
Um telegrama separado de Paris, datado de dezembro de 2006, revelava que os
diplomatas norte-americanos acreditavam que Putin provavelmente sabia sobre o
assassinato de Litvinenko. Daniel Fried, na época o diplomata americano mais
antigo na Europa, afirmou que seria incrível se o líder da Rússia não soubesse
nada sobre o assunto, em virtude de sua “atenção a detalhes”. Os russos se
comportavam com uma “autoconfiança tão grande que beira a arrogância”,
observou Fried.
O The Guardian publicou as revelações do WikiLeaks sobre a Rússia em 2 de
dezembro de 2010, em um total de cinco páginas, com o impressionante título:
“Por dentro do ‘Estado mafioso’ de Putin”. A foto de primeira página mostrava
Putin, um ex-oficial de inteligência estrangeira da KGB, com um par de óculos
escuros. Para muitos, as revelações do WikiLeaks sobre a Rússia foram as mais
intensas. Janine Gibson, editora do site do The Guardian, ficou impressionada
com a resposta online: “O dia da Rússia foi brilhante e muito lido. Foi o melhor
dia. Pudemos dizer tudo que queríamos, mas nunca havíamos dito porque
tínhamos medo. Foi extraordinário”. E continuou: “Você pode ver o que a
internet pensa sobre as coisas. Dava para perceber o que todos pensavam. Havia
uma enorme sensação de ‘Ah-há!’”
(Do outro lado do Atlântico, porém, como se estivesse determinado a
consolidar sua reputação de atenuar os fatos, o The New York Times publicou o
mesmo material com uma manchete propositalmente tímida: “Em telegramas,
Estados Unidos desaprovam a Rússia”. O contraste entre as práticas jornalísticas
do Estados Unidos e do Reino Unido poderia dar o que pensar aos estudantes de
comunicação.)
Sem dúvida, os telegramas mostravam a natureza anômala do moderno Estado
russo. Mas mostravam também a força literária do Departamento de Estado.
Entre os muitos bons escritores do serviço estrangeiro norte-americano, William
Burns, embaixador em Moscou e hoje o principal diplomata do país, revelou-se
o mais talentoso. Sua mente é como um Rolls Royce. Suas mensagens sobre os
mais diversos assuntos, de Stálin a Soljenítsin, são emocionantes, precisas e
nuançadas, combinando análise extensa com profundidade histórica. Não fosse
pelo fato de que deveriam ser secretas, suas reflexões mereceriam um prêmio
Pulitzer.
Num despacho glorioso, Burns descreve como o governante da Chechênia,
Ramzan Kadyrov, convidado de honra num tumultuado casamento no
Daguestão, “dançou desajeitadamente com a automática folheada a ouro enfiada
na parte de trás do jeans”. Durante a “opulenta” recepção, Kadyrov ofereceu
notas de cem dólares aos dançarinos e deu ao feliz casal um presente pouco
comum: “um bloco de ouro de cinco quilos”. O embaixador era um dos mais de
mil convidados do casamento do filho de Gadzhi Makhachev, político local e
poderoso presidente da estatal petrolífera da região.
Burns foi ao jantar na “imensa casa de veraneio [de Gadzhi], no aprazível
litoral do mar Cáspio“. A lista de convidados que ele descreve é quase digna de
Evelyn Waugh,* e incluía um comandante checheno (assassinado mais tarde),
celebridades do esporte e da cultura, “camponeses pardos encarquilhados”, um
nanofísico, um “lutador bêbado” chamado Vakha e um capitão de submarino.
Alguns eram refinados, ele observou, mas outros, “jurássicos”.
“A maioria das mesas estava disposta com os pratos tradicionais, além de
esturjões assados inteiros e carneiro. Mas, às oito da noite, a área foi invadida
por dezenas de mujahidin* fortemente armados para a entrada do líder checheno
Ramzan Kadyrov, vestindo jeans e camiseta e parecendo mais baixo e menos
forte que nas fotos, com uma expressão um tanto estrábica no rosto”. Kadyrov e
seus acompanhantes sentaram-se à mesa para comer e ouvir “Bênia, o rei do
acordeão”, informou Burns. Houve uma exibição de fogos de artifício, seguida
pela lezginka – a dança tradicional do Cáucaso, realizada por duas meninas e três
meninos pequenos. “Primeiro, Gadzhi juntou-se a eles, depois Ramzan [...]. Os
dois jogaram notas de cem dólares às crianças; os dançarinos provavelmente
pegaram mais de cinco mil dólares do chão.”
Isso divertia e descrevia fatos de uma região – o norte do Cáucaso – que saíra
do radar do mundo. Era uma reportagem das melhores.
Mas também havia revelações de outras áreas problemáticas, que eram de
grande preocupação em Washington. Longe de ser aliados naturais e estáveis,
como muitas pessoas supunham, a China tinha uma relação surpreendentemente
turbulenta com a Coreia do Norte. Pequim já sinalizara a disposição em aceitar a
reunificação das Coreias e estava secretamente se distanciando do regime da
Coreia do Norte, como mostravam os telegramas. Ao que parecia, os chineses
não estavam mais dispostos a oferecer apoio à bizarra ditadura de Kim Jong-il.
A posição emergente da China foi revelada em discussões confidenciais entre
Kathleen Stephens, embaixadora norte-americana em Seul, e o vice-ministro das
Relações Exteriores da Coreia do Sul, Chun Yung-woo. Citando dois oficiais
chineses de alto escalão, Chun disse à embaixadora que os líderes mais jovens
do Partido Comunista Chinês não consideravam mais a Coreia do Norte um
aliado útil ou confiável. Além disso, eles não se arriscariam a renovar o conflito
armado na península, afirmou. O telegrama dizia: “Os dois oficiais, de acordo
com Chun, estão prontos para ‘encarar a nova realidade’ de que a DPRK [Coreia
do Norte] agora tem pouco valor para a China como um Estado-tampão – uma
opinião que, desde o primeiro teste nuclear da Coreia do Norte, em 2006,
supostamente avançou entre os líderes mais antigos da RPC [República Popular
da China]”.
É espantoso ver a posição chinesa descrita desse modo. Prevendo o colapso da
Coreia do Norte, o telegrama afirmava: “a RPC estaria confortável com uma
Coreia reunificada, controlada por Seul e ancorada nos Estados Unidos, numa
‘aliança benigna’ – desde que a Coreia não fosse hostil em relação à China”. Em
resumo, os chineses estavam fartos dos problemáticos vizinhos norte-coreanos.
Em abril de 2009, Pyongyang lançou um míssil de longo alcance que sobrevoou
parte do Japão antes de cair no oceano Pacífico, num ato de pura beligerância. O
vice-ministro das Relações Exteriores da China, He Yafei, não se deixou
impressionar – disse aos oficiais da embaixada americana que os norte-coreanos
estavam se comportando como “crianças mimadas” para chamar a atenção de
Washington. Isso era novidade.
Os telegramas também revelaram, de maneira preocupante para o futuro da
internet, que o Google fora forçado a se retirar da China continental por causa de
um acaso infeliz. Um membro veterano do Partido Comunista usou o mecanismo
de busca para pesquisar o próprio nome e não ficou satisfeito com o que
encontrou – diversos artigos que o criticavam pessoalmente. Consequentemente,
o Google foi forçado a deixar um link do mecanismo de busca em chinês para a
página Google.com não censurada, e – como se lia no telegrama – a “se afastar
de um mercado potencial de quatrocentos milhões de usuários de internet”.

No que se referia ao Reino Unido, os telegramas constituíam uma leitura


nitidamente desconfortável. Americanos cultos muitas vezes consideram a
família real britânica com um divertido desprezo, como um retorno à Ruritânia.
Rob Evans, do The Guardian, percebeu isso e rapidamente descobriu um perfil
que lançava uma incômoda luz sobre o príncipe Andrew, um dos filhos da
rainha. Andrew, que regularmente viajava o mundo como “representante
comercial especial”, à custa dos pagadores de impostos britânicos, era o tema de
um ácido telegrama enviado a Washington do distante Quirguistão. Descrito
como rude, apareceu gabando-se e rindo do suborno local, e – para o choque e o
deleite dos repórteres do The Guardian – altamente ofensivo em relação às
revelações de corrupção feitas pelo jornal. O embaixador norte-americano o
citou denunciando “os (malditos) repórteres, em especial os do National [sic]
Guardian, que enfiam o nariz em tudo e que (provavelmente) tornaram as coisas
mais difíceis para os homens de negócios britânicos fazerem negócios”.
Menos cômico era o tom adotado pelos americanos em relação a seus aliados
do Reino Unido, que desejavam uma “relação especial”. Enquanto havia
evidências por toda parte da intimidade e do intercâmbio de inteligência que
ocorria no mundo todo entre os dois países anglófonos, havia também sinais de
uma atitude condescendente. Os telegramas mostraram que a superpotência
norte-americana estava interessada, sobretudo, em suas próprias prioridades:
queria o uso irrestrito das bases militares britânicas; que políticos britânicos
enviassem tropas para suas guerras e ajudassem nas campanhas de sanções, em
particular contra o Irã; e que o Reino Unido comprasse armas e produtos
comerciais norte-americanos. Richard LeBaron, o encarregado de negócios
norte-americano na embaixada, em Londres, recomendou que os Estados Unidos
continuassem a satisfazer as fantasias britânicas de que a relação entre os dois
países era especial: “Embora seja tentador afirmar que manter o GSM [Governo
de Sua Majestade] confuso sobre sua atual posição conosco possa tornar Londres
mais disposta a responder favoravelmente quando pressionada por auxílio, a
longo prazo não é do interesse dos Estados Unidos que o público britânico
conclua que a relação está enfraquecendo, de nenhum dos lados. A promessa de
recursos britânicos – financeiros, militares, diplomáticos –, em apoio às
prioridades globais norte-americanas, continua sem paralelos”.
Nos telegramas vazados, era visível a relação desigual entre os dois parceiros.
Quando o ministro das Relações Exteriores britânico, David Miliband, tentou
impedir voos espiões secretos norte-americanos da base britânica em Chipre, foi
categoricamente posto em seu lugar. Do mesmo modo, quando a Grã-Bretanha
pensou em impedir bombas de fragmentação americanas em seu território em
Diego Garcia, os Estados Unidos imediatamente botaram um ponto final na
questão. A Grã-Bretanha chegou a se oferecer para declarar a área ao redor da
base americana em Diego Garcia uma reserva de vida marinha, para que os
habitantes saídos de lá não pudessem voltar. Entretanto, quando Gordon Brown,
na época primeiro-ministro britânico, implorou pessoalmente por compaixão
para Gary McKinnon, um jovem hacker britânico procurado para extradição, o
pedido foi ignorado de modo humilhante. A nova administração conservadora
britânica, liderada pelo ministro das Relações Exteriores William Hague, se
alinhou covardemente para prometer ao embaixador norte-americano um
“regime pró-Estados Unidos”.

Pesquisando nessa imensa base de dados de documentos diplomáticos, era


difícil não sair com uma opinião deprimente sobre a natureza humana. A
humanidade, em todo o mundo, parecia revelar-se uma espécie indigna e voraz.
Muitos líderes políticos mostravam ganância e corrupção notáveis. Um dos
exemplos mais chocantes foi o de Omar al-Bashir, presidente do Sudão. A
informação era de que ele desviara nove bilhões de dólares do país e guardara
grande parte do dinheiro em bancos londrinos. Uma conversa com o procurador
de justiça da Corte Penal Internacional mostrou que alguns dos fundos poderiam
estar guardados no Lloyds Bank, de Londres. O banco negou qualquer ligação
com o governante.
Uma história semelhante ocorreu no Afeganistão, um regime que – como a
Rússia – estava se transformando numa cleptocracia. Os telegramas mostram
temores de corrupção governamental desenfreada; os Estados Unidos
aparentemente não podiam fazer nada. Num incrível incidente em outubro de
2009, diplomatas norte-americanos alegaram que o então vice-presidente,
Ahmad Zia Massoud, fora barrado e interrogado em Dubai depois de voar para o
emirado com 52 milhões de dólares em dinheiro. Oficiais que tentavam
interromper a lavagem de dinheiro o interrogaram e o liberaram. (Massoud nega
que isso tenha ocorrido.)
Os Estados Unidos também estavam profundamente frustrados com Hamid
Karzai, presidente do Afeganistão. Eles o consideravam instável, sensível,
suscetível a acreditar em teorias conspiratórias – e ligado a militares criminosos.
Diplomatas americanos explicitaram sua convicção de que Ahmed Wali Karzai,
meio-irmão caçula do presidente e uma personalidade importante em Kandahar,
era corrupto.
Algumas das maiores empresas do mundo também se envolveram em práticas
duvidosas e golpes baixos, afirmavam os comunicados. O vice-presidente da
Shell para a África subsaariana gabava-se de que a gigante do petróleo
conseguira introduzir membros de sua equipe em todos os principais ministérios
do governo da Nigéria. A Shell estava tão bem posicionada que sabia dos planos
do governo para abrir concorrência para concessões de petróleo. A executiva da
Shell Ann Pickard disse ao embaixador norte-americano, Robin Renee Sanders,
que a Shell havia alocado funcionários em cada departamento do governo, assim
eles sabiam “tudo o que estava sendo feito nos ministérios”.
As revelações pareciam confirmar o que os veteranos há muito diziam: que
havia ligações cruzadas entre a gigante do petróleo e políticos, num país onde,
apesar dos bilhões de dólares de receita do petróleo, 70% das pessoas ainda
viviam abaixo da linha de pobreza.
A Pfizer, a maior empresa farmacêutica do mundo, também era citada em
despachos da África. De acordo com um telegrama vazado da embaixada norte-
americana em Abuja, capital da Nigéria, a Pfizer contratou investigadores para
descobrir evidências de corrupção contra o procurador-geral do país. A empresa
queria pressioná-lo a retirar os processos contra um controverso experimento
clínico que envolvia crianças com meningite. A Pfizer nega que houve delito e
afirma que solucionou um caso de 2009 levantado pelo governo da Nigéria e do
estado de Kano, onde o medicamento foi usado durante uma epidemia de
meningite.

O que esse padrão mundial de segredos diplomáticos significa? Alguns


comentadores o consideraram prova de que os Estados Unidos estavam lutando
para encontrar seu caminho no mundo, como uma superpotência entrando num
longo período de relativo declínio. Outros achavam que as revelações pelo
menos mostravam a burocracia do Departamento de Estado sob uma luz
relativamente positiva. No The Guardian, Timothy Garton Ash confessou que se
impressionara com o profissionalismo do corpo diplomático norte-americano –
um grupo comprometido e diligente. “Minha opinião sobre o Departamento de
Estado melhorou muito”, escreveu. “Na maioria das vezes [...] o que vejo aqui
são diplomatas fazendo seu trabalho direito: descobrindo o que está acontecendo
nos lugares para os quais foram designados, trabalhando para promover os
interesses nacionais e as políticas governamentais.”
Alguns líderes mundiais ignoraram as embaraçosas revelações – pelo menos
em público –, enquanto outros partiram para o ataque. O presidente do Irã,
Mahmoud Ahmadinejad, que ficou numa posição desfavorável com a revelação
de sua impopularidade regional, tachou o vazamento de dados do WikiLeaks de
“guerra psicológica”. Ele alegou que os Estados Unidos vazaram
deliberadamente os próprios arquivos num complô para desacreditá-lo. O
primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyip Erdog an, reagiu furiosamente aos
telegramas, que sugeriram que ele era um islamista enrustido corrupto. Mas, nos
países onde não há liberdade de imprensa – a Eritreia é um bom exemplo, mas
há muitos deles –, não houve reação alguma, apenas silêncio.
Os russos realizaram uma notável manobra. Primeiro, o presidente Medvedev
descartou os telegramas da Rússia como “indignos” de comentário. Mas, quando
ficou claro que, a longo prazo, o vazamento era muito mais prejudicial para os
Estados Unidos e seus interesses multilaterais, um dos auxiliares de Medvedev
propôs, ironicamente, que Julian Assange fosse indicado ao Prêmio Nobel da
Paz.
Na Austrália, o próprio Assange dominava a cobertura da imprensa. O The
Sydney Morning Herald o saudava como o “Ned Kelly da era da internet”, em
referência ao popular herói australiano fora da lei do século XIX. Entretanto, a
primeira-ministra australiana, Julia Gillard, agiu como o restante dos líderes
mundiais irritados: condenou a publicação como ilegal e as ações de Assange
como “brutalmente irresponsáveis”. Os telegramas revelaram uma visão nem um
pouco lisonjeira da classe política australiana. O ex-primeiro-ministro e atual
ministro das Relações Exteriores, Kevin Rudd, foi chamado de “controlador”
ofensivo e impulsivo, que liderara uma série de fiascos de política estrangeira.
Será que o Grande Vazamento dos telegramas estava mudando alguma coisa?
O ano estava terminando e ainda era muito cedo para dizê-lo. O efeito a curto
prazo certamente foi rápido em alguns casos, com diplomatas afastados e oficiais
andando na corda bamba. A Der Spiegel noticiou que uma “fonte segura” no
Partido Democrático Liberal vinha informando a embaixada norte-americana
sobre negociações secretas da coalizão imediatamente após o resultado das
eleições de 2009 na Alemanha. O misterioso homem foi rapidamente revelado
como sendo Helmut Metzner, chefe do gabinete do presidente do partido e vice-
chanceler Guido Westerwelle. Metzner perdeu o emprego.
Em janeiro de 2011, Washington foi forçado a retirar o embaixador Gene Cretz
da Líbia. O coronel Kadafi estava nitidamente magoado com os comentários a
respeito de sua enfermeira ucraniana de longo tempo – uma “voluptuosa loura”,
como dissera Cretz. Outra equipe diplomática norte-americana também foi
aconselhada a arrumar as malas e ir embora. Sylvia Reed Curran, a encarregada
de negócios em Asgabate, foi transferida depois de escrever um perfil bastante
crítico do presidente do Turcomenistão, Gurbanguly Berdymukhamedov. Ela o
descreveu como “vaidoso, desconfiado, cauteloso, severo, muito conservador”,
“controlador” e “experiente mentiroso”. E acrescentou, de modo memorável:
“Berdymukhamedov não gosta de pessoas mais inteligentes que ele. E como ele
não é muito inteligente – afirmou nossa fonte –, desconfia de muita gente”.
O destino de Curran? Vladivostok, onde o sol raramente brilha.
Alguns outros desenvolvimentos foram positivos e sugeriam que a missão do
WikiLeaks de revelar segredos poderia ajudar a trazer resultados. Um telegrama
da embaixada norte-americana em Bangladesh mostrou que o governo britânico
estava treinando uma força paramilitar, condenada por organizações dos direitos
humanos como um “esquadrão da morte governamental” e considerada
responsável por centenas de assassinatos. Revelou-se que os britânicos estavam
treinando o “Batalhão de Ação Rápida” em técnicas de interrogatório e “leis de
combate”. Desde a divulgação dos telegramas, nenhuma morte foi anunciada.
Na Tunísia, o ditador do país, Zine El Abidine Ben Ali, bloqueou o site de um
jornal libanês que publicou telegramas sobre o regime. Os relatórios da
embaixada norte-americana em Túnis eram extremamente desfavoráveis e não
usavam eufemismos para descrever o estado decrépito do pequeno país do
Magreb, considerado amplamente um dos mais repressivos numa região
repressiva. “O problema é evidente”, escreveu o embaixador Robert Godec em
julho de 2009, num despacho secreto divulgado pelo jornal al-Akhbar, de
Beirute. “A Tunísia é governada há 22 anos pelo mesmo presidente. Ele não tem
sucessor. E, enquanto o presidente Ben Ali merece crédito por continuar muitas
das políticas progressistas do [antecessor], o presidente Bourguiba, ele e o
regime perderam contato com o povo da Tunísia. Eles não toleram conselhos ou
críticas, domésticas ou internacionais. Cada vez mais, dependem da polícia para
controlar e se concentram em preservar o poder.”
O telegrama continuava: “A corrupção dentro do país está crescendo. Os
tunisianos estão intensamente conscientes dela, e o coro de reclamações vem
aumentando. Eles detestam – chegam mesmo a odiar – a primeira-dama Leila
Trabelsi e sua família. Em particular, os oponentes do regime a ridicularizam, e
até os mais próximos do governo mostram preocupação com seu
comportamento. Enquanto isso, cresce a revolta na Tunísia, pelo elevado nível
de desemprego e pelas desigualdades regionais. Consequentemente, os riscos à
estabilidade do regime, a longo prazo, estão aumentando”.
Os comentários do embaixador eram visionários. Um mês depois da
publicação dos telegramas, a Tunísia estava próxima do que alguns chamaram de
a primeira revolução do WikiLeaks.
Notas

* “Conservadores”. (N. da T.)


* Escritor inglês cujos romances eram uma crônica detalhada da aristocracia inglesa. (N. do E.)
* “Combatentes sagrados”, em árabe. (N. da T.)
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A balada da prisão de Wandsworth


Corte de Magistrados de Westminster, Horseferry Road, Londres
7 DE DEZEMBRO DE 2010

“Eu caminhava, com outras almas em sofrimento.”

– OSCAR WILDE, BALADA DO CÁRCERE DE READING

E ALIENÍGENAS ATERRISSASSEM sua nave espacial do lado de fora do


S edifício, poderiam muito bem supor que um dos santos de Deus estava
prestes a ascender. Para muitos, Julian Assange acabara de se transformar no são
Sebastião da era da internet, um mártir perfurado pelas muitas flechas dos
incrédulos. Uma fileira de cameramen amontoava-se nos portões da Corte de
Magistrados de Westminster. Na calçada, uma poliglota multidão de jornalistas
esperava impacientemente para entrar. Alguns repórteres tentavam se infiltrar,
aglomerando-se em torno da entrada do andar térreo.
Na noite anterior, os promotores suecos haviam decidido expedir um mandado
de prisão para Assange, relacionado à investigação, ainda não solucionada, das
acusações de que ele havia assediado duas mulheres em Estocolmo. Ele estava
na lista de procurados da Interpol – procurado, segundo a advertência da Lista
Vermelha, por “crimes sexuais”. Naquela noite, sentado no ambiente em estilo
georgiano de Ellingham Hall e vendo suas opções rapidamente se reduzirem,
Assange concluíra que teria de se entregar. Mal conseguira dormir nos últimos
dias – estava sob o cerco dos veículos de comunicação, e o caminho a seguir
deve ter lhe parecido árduo e complicado. Segundo colaboradores do WikiLeaks,
depois de tomar a decisão de ir à polícia, Assange finalmente conseguiu dormir.
Logo cedo, foi de carro até Londres. Lá, às 9h30 da manhã, encontrou-se com
oficiais da unidade de extradição da polícia metropolitana. O encontro fora
arranjado com antecedência. Assange estava acompanhado de Mark Stephens e
Jennifer Robinson, seus advogados. Os oficiais imediatamente o prenderam –
estavam agindo em nome das autoridades suecas, que haviam expedido um
mandado de prisão europeu, válido na Grã-Bretanha, o qual acusava Assange
por uma alegação de coerção ilegal, duas alegações de assédio sexual e uma
alegação de estupro, todas supostamente cometidas em agosto de 2010. A Corte
de Magistrados de Westminster decidiria, naquela tarde, se lhe concederia
fiança.
A notícia de sua prisão estimulou alguma comemoração em Washington, que
encontrara pouca coisa para celebrar nos últimos dias, pois o conteúdo das
mensagens diplomáticas privadas havia sido divulgado no mundo inteiro. “Isso
soa como uma boa notícia para mim”, afirmou o secretário de Defesa norte-
americano, Robert Gates, no Afeganistão, com um largo sorriso no rosto.
Às 12h47, Assange entrou no tribunal pela porta dos fundos. Stephens disse
aos veículos de comunicação que o aguardavam que seu cliente estava “bem”.
Ele tivera um encontro bem-sucedido com a polícia. “O encontro foi muito
cordial. Os policiais confirmaram a identidade de Assange, e estamos prontos
para ir ao tribunal.” Mas o restante dos procedimentos da tarde não saiu como
planejado. Numa sala de audiência bege, no andar de cima, o juiz Howard
Riddle perguntou a Assange se ele concordava com a extradição para a Suécia e
se estava pronto para responder às acusações referentes a seu mandado de prisão.
“Eu entendo, mas não concordo”, respondeu Assange. O juiz então perguntou
seu endereço. A resposta foi: “Caixa postal 4080”.
Era o tipo de resposta aparentemente irreverente que se esperaria de um
nômade global. Afinal de contas, Assange era um homem cheio de mistérios,
que mudava constantemente de país, carregando apenas algumas mochilas com
equipamentos de informática e uma camiseta levemente fedida. Como seus
amigos sabiam muito bem, localizar Assange era excepcionalmente difícil. Mas,
na verdade, a resposta pode não ter sido tão irreverente quanto pareceu. Ele não
sabia o que esperar na sala de audiência e estava nervoso por ter que revelar
publicamente seu paradeiro, pois temia inimigos. Deveria ter sido aconselhado a
pedir para escrever seu endereço atual num pedaço de papel, o que teria sido
perfeitamente normal.
Aparentemente, a resposta divertiu a plateia, mas desagradou o tribunal. Riddle
esclareceu que não estava ali para julgar a batalha maniqueísta de Assange
contra o Pentágono ou outras forças obscuras. “Este caso não envolve o
WikiLeaks.” Depois de ouvir um breve resumo dos fatos ocorridos na Suécia, o
juiz concluiu que os vínculos sociais de Assange no Reino Unido eram fracos. A
promotoria também alegou – sem razão, como foi demonstrado posteriormente –
que não estava claro como Assange entrara na Grã-Bretanha. Riddle concluiu
que havia risco de que Assange não se apresentasse para a audiência de
extradição – ou, em linguagem coloquial, de que ele fugisse. E recusou a fiança.
A decisão, pronunciada às 15h30, foi um golpe inesperado. Assange estava
confiante de que estaria livre para sair do tribunal. Ele nem sequer havia levado
uma escova de dentes. Não haveria nenhuma entrevista coletiva triunfante; em
vez disso, Assange foi conduzido numa viatura para a prisão de Wandsworth,
seu novo lar. O sombrio conjunto de prédios cinzentos, em estilo vitoriano,
poderia ter saído das páginas de Charles Dickens – e seria um excelente cenário
para o que certamente se tornaria a cine-biografia de Assange. A história de sua
vida já tinha a trajetória de um thriller. Mas agora havia uma mudança de rumo,
com uma sequência mostrando o sofrimento e o martírio do protagonista. Nelson
Mandela, Oscar Wilde, Alexander Soljenítsin (o herói de Assange), todos
haviam passado um tempo na prisão e usaram o confinamento para meditar e
refletir sobre a natureza transitória da existência humana e, no caso de
Soljenítsin, sobre as brutalidades do poder soviético. Agora era a vez de Assange
ser encarcerado, segundo a opinião de alguns, num úmido gulag britânico.
A situação de Assange atraiu um grupo de glamourosos assangistas de
esquerda, muitos inicialmente reunidos pelos advogados para oferecer garantias
para a fiança. Entre eles estavam John Pilger, militante e jornalista australiano,
que vive no Reino Unido; o cineasta britânico Ken Loach; e Bianca Jagger (ex-
mulher de Mick Jagger), ex-modelo e ativista dos direitos humanos. Também
estava presente Jemima Goldsmith, descrita, de modo geral, como socialite. A
respeito dessa denominação, ela tuitou, indignada: “’Socialite’ é um insulto a
qualquer pessoa que se preze”. Dos Estados Unidos, o documentarista de
esquerda Michael Moore comprometera-se a contribuir com vinte mil dólares
para a fiança, enquanto encorajava os observadores a “não serem ingênuos sobre
o modo como o governo age quando decide ir à caça”. Outro simpatizante que
iria às audiências posteriores no tribunal era Gavin MacFadyen, ex-produtor de
tevê da Agência de Jornalismo Investigativo da Universidade da Cidade, que,
durante o verão, oferecera hospedagem a Assange em sua residência em
Londres. Alguns conheciam o australiano pessoalmente; outros, não. Alguns
pareciam convencidos de que o processo não tinha ligação com o que ocorrera
num quarto sueco. Em vez disso, achavam que aquela era uma tentativa de
prendê-lo pelo crime “real”: divulgar documentos secretos que humilhavam os
Estados Unidos.
Para alguns radicais, Assange tinha um charme extraordinário: ele era
corajoso, intransigente e perigoso. Será que Pilger e Loach viam em Assange os
fantasmas de sua própria juventude revolucionária? Os alvos do australiano eram
os mesmos contra os quais os radicais dos anos 60 haviam combatido: em
primeiro lugar, o imperialismo norte-americano, na época no Vietnã, mas agora
no Afeganistão e no Iraque. Também havia outros abusos secretos revelados por
Assange: a crueldade das Forças Armadas norte-americanas e o amplo uso de
tortura. Mas o processo em Horseferry Road tinha, estritamente falando, pouco a
ver com isso.
Muitas das emissoras do lado de fora do tribunal também estavam confusas
com o aparecimento espontâneo de tantas celebridades. Quando o grisalho
Loach saiu da corte, repórteres da CNN, em transmissão ao vivo, não tinham
ideia de quem ele era. “Quem é esse senhor? Pode ser o advogado de Julian
Assange; vamos tentar descobrir”, disse o desconcertado âncora da CNN. A
presença de Jemima Goldsmith era ainda mais estranha. Ela admitiu que não
conhecia Assange, mas estava lhe oferecendo ajuda porque era uma defensora da
liberdade de imprensa. Essa causa não fora do agrado de seu falecido pai, James
Goldsmith, um excêntrico bilionário de direita com uma queda por ameaças de
processos por difamação.
Para alguns dos defensores de Assange, a série de ações de extradição e fiança
iniciadas pela Suécia parecia evidência da conspiração norte-americana. Seu
advogado, Mark Stephens, insinuou isso, mais tarde, nos degraus do tribunal.
Comparando a procuradora sueca Marianne Ny ao ogro soviético homicida
Lavrenti Béria,* Stephens descartou as acusações sexuais como “realmente
muito tênues”. Posteriormente, afirmou que Assange estava sendo preso na
mesma cela que, no século XIX, fora ocupada pelo dramaturgo Oscar Wilde,
vítima de sua sexualidade. Mais tarde, o homossexual Wilde foi enviado a uma
segunda prisão, onde escreveu a famosa Balada do cárcere de Reading.
Stephens disse que muitas pessoas acreditavam que as acusações contra Assange
tinham motivação política. Ele também fez referência a uma “armadilha sexual”,
sugerindo que Assange fora vítima de uma armação. O próprio Assange
censurou o que chamou de constelação invisível de interesses – pessoais,
domésticos e estrangeiros –, os quais ele sentia que estavam conduzindo o caso.
A recusa do juiz em conceder fiança provocou um turbilhão de revolta online
mais ou menos desinformada.
Aos olhos dos críticos, a equipe de Assange estava armando uma estratégia de
relações públicas. O efeito era desviar a atenção da batalha de Assange para
fazer com que os governos prestassem contas (o que era uma coisa boa) com as
acusações de comportamento sexual impróprio (o que era um assunto
completamente separado para os tribunais). Durante os meses seguintes, essas
duas questões sem ligação – o princípio universal da liberdade de expressão e a
batalha pessoal de Assange para evitar a extradição para a Suécia – se
confundiriam. Essa confusão pode ter servido aos interesses de Assange. Mas
falar de armadilhas sexuais tinha um aspecto sórdido: abastecia uma campanha
global de difamação contra as duas suecas que o acusavam – e que tiveram sua
identidade rapidamente conhecida em todo o mundo.
Em Wandsworth, Assange fez o melhor para se ajustar à nova vida de
presidiário. Ele ficou preso durante uma semana. Para um homem que passava
dezesseis horas por dia em frente ao laptop, o eco dos corredores subterrâneos e
das celas vitorianas deve ter sido uma experiência desesperadora. A equipe
jurídica foi embora esperando conceber uma linha de ataque mais bem-sucedida.
A tarefa era libertar Assange da prisão o mais rápido possível, certamente antes
do Natal.
A fama de Assange alcançara o que parecia proporções galácticas na segunda
vez em que compareceu ao tribunal, em 14 de dezembro, quando um membro
independente da elite britânica finalmente foi em seu socorro. A multidão do
lado de fora da Corte de Westminster era ainda maior, e os primeiros repórteres
montaram seus equipamentos de madrugada. Obter um passe para a audiência
era um pouco como pôr as mãos em um dos bilhetes dourados de Willy Wonka.
O tradicional humor e a solidariedade tribal entre os jornalistas deram lugar a um
nítido empurra-empurra. O tribunal estava lotado quando Assange – ladeado por
dois guardas da empresa privada Serco – foi escoltado para o banco dos réus,
com um painel de vidro na frente. Ele fez sinal de positivo, erguendo o polegar,
para Kristinn Hrafnsson, seu leal colaborador. Mas, durante a audiência,
permaneceu sentado, em silêncio.
Gemma Lindfield, representando as autoridades suecas, estabeleceu novamente
as acusações. E concluiu: “Ele [Assange] continua em risco significativo de
fuga”. Então foi a vez do conselheiro da rainha Geoffrey Robertson, conhecido
advogado australiano dos direitos humanos recém-contratado por Assange. De
pé para se dirigir ao juiz, Robertson começou a falar de modo sedutor. Num tom
de voz melodioso, descreveu o fundador do WikiLeaks como um “filósofo e
orador da liberdade de expressão”. A ideia de que ele tentaria fugir era ridícula,
afirmou. Robertson anunciou que Vaughan Smith, do Frontline Club, o anfitrião
do antigo refúgio secreto de Assange durante o mês de novembro, estava
disposto a responsabilizar-se por seu bom comportamento. O “capitão Smith”,
como Robertson triunfantemente o descreveu, estava preparado para abrigar
Assange novamente em Ellingham Hall, em Norfolk, se o juiz concordasse em
conceder a fiança.
A saga da prisão do fundador do WikiLeaks até então não produzira nenhuma
piada. Mas Robertson tinha uma pronta. Não seria tanto uma “prisão domiciliar,
mas uma prisão em mansão”, brincou. E não apenas isso, mas era inconcebível
que Assange tentasse fugir, “porque a noite começa muito cedo naquela região
da Grã-Bretanha”. Ademais, o réu estava disposto a entregar o passaporte
australiano e usar uma tornozeleira eletrônica. Por fim, provavelmente não
conseguiria ir muito longe, porque sua “exposição à mídia” o tornara “muito
conhecido em todo o mundo”.
Robertson convidou Smith a fazer sua avaliação do controverso fundador do
WikiLeaks. “Ele é uma pessoa honrada, tremendamente corajosa, altruísta e
cordial. Não são coisas sobre as quais se lê”, afirmou, com sinceridade, o capitão
Smith.
Depois de estabelecer que Smith era ex-oficial dos Granadeiros e ex-capitão de
artilharia do Exército britânico, o conselheiro da rainha pediu detalhes de sua
propriedade familiar. Parecia que esse era o argumento final. “Ela tem dez
quartos e sessenta acres.” Melhor ainda, havia até uma delegacia de polícia lá
perto: “De bicicleta, vou até lá em quinze minutos [...] cerca de um quilômetro e
meio de casa. Talvez um pouco mais”. Smith acrescentou, para ajudar: “É um
lugar onde ele estaria cercado. Temos empregados. Meus pais moram próximos
também. Meu pai foi mensageiro da rainha e coronel dos Granadeiros. Ele
patrulha a propriedade”. Smith acrescentou que sua governanta também poderia
manter o australiano sob sua vista. “Meus funcionários me manterão informado,
senhor.”
Se o juiz tinha instinto de classe, dificilmente haveria um apelo mais
apropriado. A essa altura, a promotoria também admitira que Assange havia
chegado legitimamente à Grã-Bretanha, vindo da Suécia, em 27 de setembro. Do
lado de fora da sala lotada, os defensores famosos reuniam-se no segundo andar,
próximos a uma máquina de café. Pilger, Goldsmith e Loach estavam lá
novamente – Bianca Jagger conseguira um lugar na sala de audiência. Depois,
Jagger comentou com amigos que as fãs também haviam sido um problema para
o ex-marido famoso: “Era muito pior com Mick. Quando você é conhecido
mundialmente, as mulheres se jogam em cima de você”, ponderou. Apesar da
demonstração de apoio, a presença das celebridades era muito menos importante
que o dinheiro delas. Todos ofereceram garantias de vinte mil libras esterlinas.
Dentro da sala de audiência, Robertson passou a descrever uma imagem do
período de Assange na prisão. As condições em Wandsworth eram um
verdadeiro inferno: “Ele não pode ler outro jornal que não seja o Daily Express!
Esse é o tipo de situação vitoriana em que ele se encontra”. E continuou: “A
revista Time enviou um exemplar com a foto dele na capa, mas tudo que lhe
permitiram ter foi o envelope!”
O juiz anunciou que a fiança seria “concedida sob certas condições”, que se
mostraram relativamente onerosas: tornozeleira eletrônica, toque de recolher à
tarde e à noite e a exigência de comparecer a delegacia de polícia de Bungay,
próximo a Ellingham, entre seis da tarde e oito da noite, diariamente. Ah, e
duzentas mil libras em espécie. Os advogados de Assange perguntaram se o
tribunal aceitaria cheques. Não – a soma deveria ser paga em dinheiro.
A notícia da fiança de Assange – comunicada via Twitter, é claro – fez com
que 150 pessoas, reunidas do outro lado do tribunal, aclamassem seu herói e
agitassem bandeiras e cartazes para o mundo. Em um deles, podia-se ler:
“Crimes sexuais uma ova!” Em outro: “É exatamente disso que precisamos –
outro inocente na cadeia”. E um terceiro: “Suécia: fantoche dos EUA”. Três
jovens ativistas estavam tão emocionados que começaram um coro improvisado
de We Wish You a Leaky Christmas.
A comemoração foi prematura. Lindfield e a Promotoria da Coroa
previsivelmente recorreram da decisão do juiz no Supremo Tribunal, deixando
Assange ainda temporariamente na prisão. Mas, no banco dos réus, ele parecia
bem-humorado. Quando os guardas o levaram, tentou fazer um sinal de positivo,
erguendo o polegar para uma repórter de tevê turca de cabelos escuros. Ela se
gabou: “Fiz uma entrevista exclusiva com ele há um mês”.
Dois dias depois, em 16 de dezembro, todos se reuniram novamente no
Tribunal Real de Justiça, em Strand, para a terceira audiência de Assange. Do
lado de fora do tribunal, vários jornalistas aguardavam numa fila mais
organizada que antes, tomando café e folheando os jornais matutinos. Entre eles,
estava um grupo de repórteres australiano que, em tom de voz nasalado,
lamentava a derrota da seleção do país, durante a noite, nas mãos da Inglaterra
no torneio The Ashes.* Mas as chances de Assange pareciam melhores. Às
11h30 da manhã, o juiz Ouseley caminhou até a sala de audiência, decorada com
livros jurídicos encadernados em couro e um solene acabamento de madeira em
estilo gótico.
Sua primeira preocupação não era Assange, mas o quarto poder – mais
especificamente, os jornalistas internacionais sentados nos abarrotados bancos
de madeira diante dele. Muitos já estavam usando furtivamente o BlackBerry. E
comentavam sobre a audiência, ao vivo, para todo o mundo. O juiz havia
deixado claro que eles não poderiam tuitar no tribunal – apesar de isso ter sido
permitido por Howard Riddle, dois dias antes, na audição anterior de Assange. O
Twitter estava proibido, segundo as palavras do juiz. Imediatamente, vários
jornalistas tuitaram a decisão. Provavelmente, foi o ato de desacato ao tribunal
mais rápido na história da justiça.
Lindfield repetiu as acusações, advertindo que, se Assange fosse libertado sob
fiança, talvez não saísse do país, mas simplesmente desaparecesse no Reino
Unido. O juiz não se mostrou convencido. Ele parecia aceitar a alegação de que
o promotor de Estocolmo originalmente decidira que não havia nenhum caso a
responder, antes de o segundo promotor concordar em continuar com as
acusações. “O histórico do modo como isso foi tratado pelo promotor sueco
daria ao sr. Assange alguma base para que ele fosse absolvido após o
julgamento.” Para Assange, sentado no banco dos réus, atrás de barras
decoradas, isso foi muito encorajador.
Robertson levantou-se novamente. Perto dele, estavam muitos dos defensores
de Assange: Smith, Loach, Pilger e a marquesa de Worcester, ex-atriz que se
transformara em ecoativista. Na terceira fila, estava sentada a mãe de Assange,
com os cabelos frisados, vinda da Austrália. Robertson declarou ser mera
especulação que Assange tentaria fugir ou que defensores ricos o tirariam da
Grã-Bretanha. “Foi realmente sugerido que o sr. Michael Moore vai passar pela
alfândega usando um boné de beisebol, ir até Norfolk no meio da noite e levar
este cavalheiro para um lugar qualquer?”
Era ridículo descrever Assange como “uma espécie de Houdini”. Mesmo que
ele tentasse sair de Ellingham Hall, não iria longe, com os “guarda-caças
procurando por ele e pelo sr. Smith”. Robertson alegou que Assange cooperara
com os investigadores suecos. Ele também definiu três categorias de estupro, de
acordo com a legislação sueca: estupro grave, de quatro a dez anos de prisão;
estupro comum, de dois a seis anos; e estupro menos grave, no máximo quatro
anos. Assange fora acusado de estupro menos grave, afirmou. Se fosse
condenado, provavelmente pegaria de “oito a doze meses, com dois terços da
pena cumpridos em liberdade condicional por bom comportamento”.
O juiz declarou que se preocupava com o fato de que alguns dos defensores de
Assange pudessem pensar que escondê-lo era uma “resposta legítima” às
dificuldades: “Estou preocupado com até que ponto o apoio [a Assange] se
baseia no apoio ao WikiLeaks”. Mas, pouco antes do almoço, o juiz Ouseley
decidiu que Assange poderia retornar a Ellingham Hall. Ele confirmou a decisão
da Corte de Magistrados de Westminster de conceder a fiança. Mas também o
advertiu de que ele provavelmente seria enviado à Suécia no fim da audiência de
extradição, marcada para 7 e 8 de fevereiro de 2011.*
O juiz impôs rigorosas condições. (Surgiu a notícia de que a delegacia de
polícia mais próxima à propriedade de Smith, na cidade de Bungay, fechara
permanentemente. Assim, Assange teria de comparecer a Beccles, onde a
delegacia abria apenas à tarde – e permaneceria fechada durante todo o Natal e o
Ano Novo.) As condições da fiança eram um depósito de duzentas mil libras
esterlinas em espécie, mais quarenta mil em dois depósitos.
Durante as horas seguintes, iniciou-se uma corrida para encontrar fiadores que
cedessem o dinheiro, sem o qual Assange passaria mais uma noite em
Wandsworth. A equipe jurídica propôs cinco novos fiadores: o ilustre jornalista
investigativo aposentado, autor de The First Casualty [A primeira baixa], Sir
Phillip Knightley; o milionário editor de revistas Felix Dennis; o vencedor do
Prêmio Nobel Sir John Sulston; o ex-ministro do Trabalho e presidente da
editora Faber & Faber, Lord Matthew Evans; e a professora universitária
aposentada Patricia David.
A equipe do WikiLeaks saiu do tribunal britânico, de arquitetura gótica, com
ótimo humor. Vaughan Smith prometeu a Assange um jantar rústico de cozido e
bolinhos de carne, e disse que não havia chance de ele escapar da propriedade de
Norfolk: “Ele não é bom em ler mapas. Não tem boa orientação espacial. Se
correr para o bosque, eu o encontrarei”. Kristinn Hrafnsson, colaborador de
Assange, também comemorou a libertação: “Estou contente com a decisão. Será
ótimo ter Julian de volta”. Mas, entre os defensores do australiano, foi Pilger
quem manifestou a maior preocupação de todas: que os Estados Unidos o
acusassem de espionagem. Pilger – que fora rejeitado pelo juiz como fiador
porque era “outro australiano peripatético” – saudou a concessão da fiança como
“um vislumbre de justiça britânica”. Mas, continuou, “acho que não deveríamos
olhar tanto para a extradição para a Suécia, e sim para os Estados Unidos. Isso é
o que ainda não foi dito neste caso. O fantasma que todos conhecemos é que ele
pode terminar em alguma prisão de segurança máxima nos Estados Unidos. É
uma possibilidade real”.
Pouco antes do encerramento do expediente, as condições da fiança foram
satisfeitas. Às 17h48, Assange surgiu nos degraus do Supremo Tribunal para os
flashes das câmeras de tevê e dos fotógrafos, segurando os papéis da fiança, com
o braço direito erguido em triunfo. Ouviram-se gritos e saudações de seus
defensores. Ele ficou preso por apenas nove dias. Mas o clima era como se
tivesse feito uma longa caminhada até a liberdade, assim como Nelson Mandela.
Dirigindo-se à multidão, declarou:
É muito bom sentir [o] ar fresco de Londres novamente... Em primeiro lugar, alguns agradecimentos. A
todas as pessoas, no mundo inteiro, que acreditaram em mim e apoiaram minha equipe enquanto estive
afastado. Aos meus advogados, que empreenderam uma luta corajosa e, em última análise, bem-sucedida,
aos nossos fiadores e às pessoas que deram dinheiro diante de grande dificuldade e aversão. Aos
membros da imprensa, porque nem todos foram enganados e decidiram analisar mais profundamente seu
trabalho. E, finalmente, ao sistema judiciário britânico, porque, se a justiça não é sempre o resultado, pelo
menos o sistema ainda não está morto.
Durante o tempo em que estive em confinamento solitário, no fundo de uma prisão vitoriana, tive tempo
de refletir sobre as condições das pessoas em todo o mundo que também estão em confinamento solitário,
que também estão sob prisão preventiva, em condições mais difíceis do que as que enfrentei. Essas
pessoas precisam de sua atenção e apoio. E, com isso, espero continuar meu trabalho e continuar a alegar
inocência nesta questão, e revelar, assim que as obtivermos, o que não conseguimos ainda, as evidências
dessas acusações. Obrigado.

Foi um discurso estranho, executado em frases curiosamente reiteradas e numa


sintaxe singular. Mas, como texto de dramaturgia televisiva, era perfeito – com
Assange se identificando com a liberdade e a justiça, ao mesmo tempo em que
manifestava preocupação virtuosa pelos semelhantes. Os advogados estavam a
seu lado – Robertson, Robinson e Stephens – e pareciam tentar irradiar, ao
mesmo tempo, solenidade e contentamento. No fim das contas, a decisão do
tribunal não deveria mudar muita coisa: Assange ainda teria de enfrentar seus
acusadores na Suécia, e a chance de extradição para os Estados Unidos se
aproximava como um fantasma obscuro. Mas, no momento, Assange e o
WikiLeaks estavam de volta.
Ele saiu do tribunal no antigo Land Rover blindado de Smith, anteriormente
dirigido por este durante o trajeto de volta da Bósnia e normalmente estacionado
– algumas vezes com um pneu furado – em frente ao Frontline Club. Com a neve
começando a cair, o oficial da Guarda e o subversivo da internet partiram juntos
para a última fase de sua grande aventura. Smith já estivera nos Bálcãs, no
Iraque e nas montanhas do Afeganistão central, onde as temperaturas caíam
abaixo de zero durante a noite. Mas isso era algo novo, que também tinha
ingredientes em comum com guerras e reportagens de guerra. Havia um clima de
muita adrenalina, uma sensação de viver o momento. Mas, acima de tudo, havia
um clima de incerteza no ar, pois ninguém sabia muito bem o que iria acontecer.
Notas

* Lavrenti Pavlovich Béria, líder do NKVD (Comissariado do Povo para Assuntos Internos), a polícia
secreta do Partido Comunista, foi um dos homens mais temidos da União Soviética no período Stálin. (N.
da T.)
* Torneio de críquete, disputado por Austrália e Inglaterra. (N. da T.)
* Uma nova audiência foi marcada para o dia 24 de fevereiro pelo juiz Howard Riddle. (N. do E.)
APÊNDICE
Telegramas diplomáticos
americanos*

Tradução
Marcos Malvezzi Leal
Nota

* Para ler (em inglês) todos os telegramas publicados pelo The Guardian, acesse
<www.guardian.co.uk/wikileakscablesdatabase>.
Tunísia – um enigma nas relações exteriores dos Estados
Unidos
Sexta-feira, 17 de julho de 2009, 16h19
SEÇÃO SECRETA 01 DE 05 TÚNIS 000492

NOFORN
SIPDIS*
DEPT PARA NEA AA/S FELTMAN, DAS HUDSON, EMBAIXADOR NOMEADO GRAY, E
NEA/MAG* DO EMBAIXADOR
EO* 12958 DECL:* 13/07/2029
TAGS PREL, PGOV, ECON, KPAO, MASS, PHUM, TS
ASSUNTO: TUNÍSIA PROBLEMÁTICA: O QUE FAZER?
Classificado pelo embaixador Robert F. Godec como E.O. 12958 razões 1.4 (b) e (d).

Resumo

1. (S/NF*) Por muitas razões, a Tunísia deveria ser um forte aliado dos Estados Unidos, mas não é. Embora
tenhamos em comum alguns valores-chave e o país tenha um sólido registro de desenvolvimento, a Tunísia
tem muitos problemas. O presidente Ben Ali está envelhecendo, seu regime é caquético e não há sucessor
evidente. Muitos tunisianos se sentem frustrados pela falta de liberdade política e irritados com a corrupção
da Primeira Família, com o alto índice de desemprego e com as desigualdades regionais. O extremismo é
uma ameaça constante. Para aumentar os problemas o GDT* não tolera conselhos nem críticas, sejam de
natureza doméstica ou internacional. Pelo contrário, se empenha em impor um controle ainda maior,
geralmente por meio da polícia. Resultado: a Tunísia é problemática, e nossas relações também.

2. (S/NF) Nos últimos três anos, a missão americana em Túnis respondeu oferecendo maior cooperação nas
áreas em que os tunisianos afirmam mais precisar, não deixando de evidenciar, porém, a necessidade de
mudança. Tivemos algum sucesso, principalmente em áreas comerciais e de assistência militar, mas
também tivemos fracassos. Fomos barrados, em parte, pelo ministro das Relações Exteriores que tenta
controlar todos os nossos contatos no governo e em muitas outras organizações. O GDT frequentemente
prefere a ilusão de comprometimento ao difícil trabalho da verdadeira cooperação. Mudanças importantes
na Tunísia terão de esperar pela saída de Ben Ali, mas o presidente Obama e suas políticas criam
oportunidades neste momento. Como podemos tirar proveito delas?
Recomendamos:

– manter foco sólido na reforma democrática e no respeito aos direitos humanos, mas mudando nosso modo
de promover tais metas; – tentar envolver o GDT em um diálogo sobre questões de interesse mútuo,
incluindo comércio e investimento, paz no Oriente Médio e maior integração em Magrebe; – oferecer aos
tunisianos (principalmente aos jovens) mais educação na língua inglesa, intercâmbios educacionais e
programas culturais; – afastar nossa assistência militar do FMF,* mas procurar novos modos de promover a
segurança e a cooperação de inteligência; – aumentar contatos de alto nível, mas enfatizar que uma
cooperação mais profunda por parte dos Estados Unidos depende de um real comprometimento tunisiano.
Fim do resumo.

Pano de fundo: relações históricas e valores comuns

3. (SBU) Os Estados Unidos e a Tunísia têm duzentos anos de sólidos vínculos e interesses comuns,
incluindo o avanço da paz regional, o combate ao terrorismo e o desenvolvimento da prosperidade. Desde a
independência, a Tunísia merece crédito pelo progresso econômico e social. Sem os recursos naturais de
seus vizinhos, o país se concentrou no povo e diversificou sua economia. Com um raro sucesso, o GDT é
eficaz na prestação de serviços (educação, assistência médica, infraestrutura e segurança) à população. O
governo tem procurado construir uma “economia do conhecimento” para atrair investimento estrangeiro
direto, o que criará empregos com alto valor agregado. Como resultado, o país tem desfrutado, na última
década, de um crescimento real de 5% do PIB. Em relação aos direitos da mulher, a Tunísia é modelo, e
tem longo histórico de tolerância religiosa, como demonstrado na forma como trata sua comunidade
judaica. Apesar dos desafios significantes (sobretudo os 14% no índice de desemprego), a Tunísia está
melhor que a maioria dos países da região.

4. (SBU) Na política externa, a Tunísia vem desempenhando papel de moderação (embora recentemente sua
meta seja “se dar bem com todos”). O GDT rejeita o boicote imposto pela Liga Árabe aos produtos
israelense. Apesar do rompimento com Israel em 2000, o GDT tem tido discussões esporádicas com oficiais
israelenses. O GDT também apoia a liderança de Mahmoud Abbas da Autoridade Palestina. A Tunísia
participou da Conferência de Anápolis e tem apoiado nossos esforços em promover negociações entre
israelenses e palestinos. O GDT tem ainda a mesma posição que nós em relação ao Irã, trata-se de um
aliado na luta contra o terrorismo e tem uma embaixada no Iraque. Além disso, a Tunísia recentemente
assinou um tratado de anistia de dívida com o governo do Iraque nos termos do Clube de Paris, sendo o
primeiro país árabe a fazer isso.

5. (SBU) Por fim, embora os tunisianos estejam profundamente zangados com a Guerra do Iraque e tenham
percebido a parcialidade americana em relação a Israel, a maioria ainda admira o “sonho americano”. A
despeito da raiva dirigida contra a política externa norte-americana, vemos um crescente desejo pelo
aprendizado da língua inglesa, maior procura por intercâmbios educacionais e

TÚNIS 00000492 002 DE 005

científicos e crença na cultura americana da inovação. Os tunisianos percebem a importância disso para seu
futuro.

O problema: um regime caquético e a crescente corrupção

6. (C) Apesar do progresso econômico e social da Tunísia, seu histórico de liberdade política é fraco. A
Tunísia é um Estado policial com pouca liberdade de expressão ou de associação e sérios problemas de
direitos humanos. O GDT pode pontuar algum progresso político na última década, incluindo o fim das
análises prévias de livros e o acesso do ICRC* a muitas prisões. Mas para cada passo adiante, outro tem
sido dado para trás, como a recente apropriação de importantes veículos de mídia privados por pessoas
próximas ao presidente Ben Ali.

7. (C) O problema é evidente: a Tunísia é governada há 22 anos pelo mesmo presidente. Ele não tem
sucessor. E, enquanto Ben Ali merece crédito por continuar muitas das políticas progressistas do ex-
presidente Bourguiba, ele e o regime perderam contato com o povo da Tunísia. Eles não toleram conselhos
ou críticas, domésticas ou internacionais. Cada vez mais, dependem da polícia para controlar e se
concentram em preservar o poder. E a corrupção dentro do país está crescendo. Os tunisianos estão
intensamente conscientes dela, e o coro de reclamações vem aumentando. Eles destetam – chegam mesmo a
odiar – a primeira-dama Leila Trabelsi e sua família. Em particular, os oponentes do regime a ridicuralizam,
e até os mais próximos do governo mostram preocupação com seu comportamento. Enquanto isso, cresce a
revolta na Tunísia pelo elevado nível de desemprego e pelas desigualdades regionais. Consequentemente, os
riscos à estabilidade do regime, a longo prazo, estão aumentando.

O que fazer, então?

13. (C) Apesar das frustrações de se fazer negociações por aqui, não podemos ignorar a Tunísia. Há muita
coisa em jogo. Temos interesse em impedir que a Al Qaeda no Magrebe islãmico e outros grupos
extremistas estabeleçam uma cabeça-de-ponte aqui. Temos interesse em manter as Forças Armadas
tunisianas profissional e neutra. Desejamos também promover maior abertura política e respeito pelos
direitos humanos. Também é de nosso interesse possibilitar a prosperidade e o desenvolvimento da classe
média do país, a base para a estabilidade duradoura da Tunísia. Além disso, precisamos aumentar o
entendimento mútuo com o intuito de melhorar a imagem dos Estados Unidos e assegurar maior cooperação
para os nossos vários desafios regionais.

Os Estados Unidos precisam de ajuda na região para promover nossos valores e políticas. A Tunísia é o
lugar onde, com o tempo, poderemos encontrar essa ajuda.
Uma mão estendida

14. (C) Desde a posse do presidente Obama, os tunisianos têm sido mais receptivos aos Estados Unidos.
Oficiais superiores do GDT ouvem de bom grado as declarações e falas de Obama. Seu discurso no Cairo
atraiu especial elogio, levando o ministro das Relações Exteriores a chamá-la de “corajosa”. Ao mesmo
tempo, alguns contatos da sociedade civil que vinham boicotando funções da embaixada em oposição à
Guerra do Iraque começam a rever suas posições. De modo geral, a metáfora da “mão estendida” no
discurso de posse de Obama teve uma repercussão poderosa em meio aos tunisianos. Concretamente, eles
têm dado as boas-vindas a muitas ações da administração do presidente americano, entre as quais a decisão
de fechar o centro de detenção da baía de Guantánamo, bem como os planos de retirada de algumas tropas
do Iraque. Acima de tudo, os tunisianos gostam do tom, das declarações e das ações do presidente (até
agora) em relação ao Oriente Médio.

...

GODEC
Notas

* Termo utilizado para documentos que devem ser distribuídos por meio da SIPRNet (Rede de Roteadores
do Protocolo Secreto de Internet). (N. do E.)
* Escritório de assuntos do Magrebe. (N. do E.)
* Special Delivery Official, sigla para fins postais. (N. do E.)
*Declassify, tornar público em. (N. do E.)
*Secret/No Foreign, sigilo, não pode ser divulgado a estrangeiros. (N. do E.)
* Governo da Tunísia. (N. do T.)
* Foreign Military Finance, programa norte-americano de financiamento militar no exterior. (N. do. T.)
* International Committee of the Red Cross, Comitê Internacional da Cruz Vermelha. (N do T.)
O estilo de vida “exagerado” do genro do presidente da
Tunísia, que inclui um tigre de estimação
Segunda-feira, 27 de julho de 2009, 16h09
SECRETO TÚNIS 000516

SIPDIS
NEA/MAG; INR/B
EO 12958 DECL: 28/02/2017
TAGS PREL, PTER, PGOV, PINR, ENRG, EAID, TS
ASSUNTO: TUNÍSIA – JANTAR COM SAKHER EL MATERI
REF: TÚNIS 338
Classificado como confidencial pelo embaixador Robert F. Godec por razões 1.4 (b) e (d)

Resumo

1. (S) O embaixador e sua esposa jantaram com Mohamed Sakher El Materi e sua esposa, Nesrine Ben Ali
El Materi, na casa dos El Materi em Hammamet, em 17 de julho. Durante o farto jantar, El Materi levantou
a questão da Escola Cooperativa Americana de Túnis e disse que tentaria “resolver o problema antes da
partida do embaixador”, como um gesto “amigo”. Elogiou as políticas do presidente Obama e defendeu
uma solução de dois estados para Israel e os palestinos. Também expressou interesse em abrir uma franquia
do McDonald’s e se queixou do atraso por parte do governo em aprovar uma lei de franquias. Falou do
orgulho de sua rádio islâmica de Zaitona e das entrevistas com líderes de partidos da oposição publicadas
por seu recém-adquirido grupo de jornais. Ao longo da noite, El Materi alternava entre difícil e gentil. Às
vezes, parecia desejar aprovação. Vive, porém, em grande riqueza e ostentação, ilustrando um dos motivos
pelos quais vem aumentando no país o ressentimento em relação aos parentes do presidente Ben Ali. Fim
do resumo.

A situação da ECAT

2. (S) Genro do presidente e rico empresário, Mohamed Sakher El Materi, e a mulher, Nesrine Ben Ali El
Materi, receberam o embaixador e sua esposa para um jantar em sua residência na praia de Hammamet, em
17 de julho. El Materi levantou a questão da Escola Cooperativa Americana de Túnis (ECAT), perguntando
o que estava acontecendo. O embaixador explicou a situação e enfatizou que há irritação e preocupação em
Washington e na comunidade americana de língua inglesa em Túnis. Disse que se a escola fosse fechada,
haveria sérias consequências em nossas relações. El Materi disse que poderia ajudar e tentaria resolver a
situação imediatamente, ou seja, antes de o embaixador ir embora. Explicou que gostaria de fazer isso por
um “amigo”. Acrescentou que havia ajudado o embaixador do Reino Unido a marcar vários encontros
(incluindo um almoço com o primeiro-ministro) para o príncipe Andrew do Reino Unido durante visita
recente. Antes de sua intervenção, disse El Materi, o príncipe teve apenas um encontro com um único
ministro.

Liberdade de expressão

3. (S) O embaixador mencionou a necessidade de liberdade de expressão e de associação na Tunísia. El


Materi concordou. Queixou-se do fato de ter, como novo proprietário do Dar Assaba, o maior grupo privado
de jornais do país, recebido telefonemas do ministro das Comunicações reclamando dos artigos que está
publicando (Comentário: Isso é duvidoso). Riu e sugeriu que, às vezes, tem vontade de “devolver o Dar
Assaba”. El Materi comentou as entrevistas com líderes da oposição publicadas em seus jornais (mencionou
o secretário-geral do FDTL,* Mustapha Ben Jaafar). Mostrou-se visivelmente orgulhoso das entrevistas.

4. (S) El Materi disse ser importante ajudar os outros, acrescentando que esse fora um dos motivos pelos
quais adotou uma criança. O embaixador mencionou os projetos de assistência humanitária da embaixada,
comentando que não tinham tido cobertura da mídia. O genro do presidente disse, com veemência, que
seriam divulgados, que era importante a embaixada buscar tal espaço na imprensa. Disse ainda que
combateria parte da imagem negativa dos Estados Unidos. O embaixador perguntou se El Materi enviaria
jornalistas para escrever matérias sobre os projetos assistenciais dos Estados Unidos. El Materi disse que
certamente faria isso.

5. (S) O genro do presidente reclamou extensivamente da burocracia tunisiana, dizendo que era difícil fazer
qualquer coisa. Disse que a comunicação burocrática é terrível. Comentou que as pessoas com frequência
“levam informações erradas” ao presidente, o que faz com que às vezes ele tenha de intervir para que as
coisas sejam corrigidas.

El-Materi revelado: vida pessoal

11. (S) A casa de El Materi é ampla e fica logo acima da praia pública de Hammamet. O complexo é grande
e vigiado por seguranças do governo. Fica próximo ao centro de Hammamet, com vista para o forte e para a
parte sul da cidade. A casa foi reformada recentemente e inclui uma piscina imensa e um terraço de talvez
cinquenta metros. Embora a construção seja em estilo moderno (e predominantemente branca), há artefatos
antigos por toda parte: colunas romanas, afrescos e até uma cabeça de leão da qual jorra água para a piscina.
El Materi afirmou que as peças são reais. Ele espera se mudar para sua nova (e palacial) residência em Sidi
Bou Sadi entre oito e dez meses.

12. (S) O jantar incluiu talvez doze pratos, entre peixe, bife, peru, polvo, cuscuz de peixe e muito mais. A
quantidade era suficiente para um grande número de convidados. Antes do jantar, uma variedade enorme de
petiscos foi servida, regada a três tipos de suco diferentes (incluindo kiwi, normalmente não encontrado por
ali). Depois do jantar, foram servidos sorvete e frozen yogurt, trazidos de avião de Saint-Tropez,
acompanhados de mirtilos e framboesas, além de frutas frescas e bolo de chocolate. (NB. El Materi e
Nesrine tinham acabado de voltar de Saint-Tropez em seu jato particular após duas semanas de férias. El
Materi estava preocupado em acomodar o piloto americano no país. O embaixador disse que teria prazer em
convidar o piloto para eventos da comunidade americana para que se enturmasse.)

13. (S) El Materi tem um grande tigre (“Pasha”) no complexo, que vive em uma jaula. Adquiriu o animal
quando este tinha poucas semanas de vida. O tigre come quatro frangos por dia. (Comentário: A situação
lembrou o embaixador da jaula de leão de Uday Hussein, em Bagdá.) El Materi tinha funcionários por todo
lado. Havia pelo menos doze pessoas, incluindo um mordomo de Bangladesh e uma babá da África do Sul.
(NB. Isso é extraordinariamente raro e caro na Tunísia.)

14. (S) O casal têm três filhos: duas meninas e um menino. Leila tem 4 anos e a outra menina tem 10 meses.
O menino foi adotado e tem 2 anos. A filha mais nova é cidadã canadense, pois nasceu no Canadá. O
destino favorito para as férias da família são as Ilhas Maldivas.

15. (S) El Materi disse que havia começado um programa de exercícios e dieta. Comentou que perdeu peso
recentemente (o que é visível). O genro do presidente afirmou que come de maneira “equilibrada”. Tinha
acabado de passar uma hora pedalando, disse. Nesrine afirmou não praticar exercícios.

16. (S) O casal fala inglês, embora ambos tenham vocabulário e gramática limitados. Estão claramente
interessados em aprimorar o idioma. Nesrine disse que adora a Disney, mas adiou uma viagem para lá este
ano por causa da gripe H1N1. Por algum tempo, ela manteve o Tamiflu sempre por perto (tomando-o em
algumas viagens). A princípio, tinha o remédio por medo da gripe aviária. Ela põe o medicamento também
na mala de El Materi quando ele viaja. Nesrine disse que visitou várias cidades dos Estados Unidos. Já seu
marido só esteve em Illinois recentemente, numa conexão para a compra de um avião.

Comentário

17. (S) No decorrer da noite, El Materi deixou ao embaixador a impressão de ser exigente, vaidoso e difícil.
Ele tem plena consciência de sua riqueza e poder, e suas ações refletem pouca delicadeza. Repetidamente,
apontou para a magnífica vista da casa e corrigiu várias vezes os empregados, dando ordens e
repreendendo-os com severidade. Apesar disso, El Materi tinha consciência do efeito que causava nas
pessoas à sua volta e às vezes se mostrava gentil. Foi extraordinariamente solícito e prestativo para com a
mulher do embaixador, deficiente física. De vez em quando, parecia estar à procura de aprovação. Um
embaixador ocidental em Túnis, que conhece El Materi, comentou que ele tem habilidades políticas no
estilo ocidental na disposição para se envolver com cidadãos comuns. Trata-se de um traço incomum por
aqui.

18. (S) Nos últimos meses, El Materi tem sido mais visto na comunidade diplomática local. É evidente que
ele decidiu (ou lhe recomendaram) servir como ponto de contato entre o regime e os principais
embaixadores. Nesrine, 23 anos, pareceu amigável e interessada, porém ingênua e inocente. Ela reflete a
vida rica, privilegiada e protegida que tem vivido. Quanto ao jantar propriamente, foi parecido com o que
poderíamos esperar em um país do Golfo, e fora do comum para a Tunísia.

19. (S) O mais surpreendente, no entanto, foi a riqueza na qual vive o casal. A residência em Hammamet é
impressionante, com o tigre aumentando a impressão de “estilo exagerado” de viver. Ainda mais
extravagante é a casa em construção em Sidi Bou Said. Essa residência, a julgar pela aparência externa, será
mais próxima a um palácio. Ela domina a linha do horizonte a partir de determinados locais de vista
privilegiada e já foi alvo de muitos comentários críticos particulares. A opulência em que vivem El Materi e
Nesrine e o comportamento deles deixam claro por que alguns tunisianos detestam ou mesmo odeiam os
dois e outros membros da família de Ben Ali. Os excessos da família do presidente estão aumentando.

Visite o site confidencial da embaixada da Tunísia em:

http://www.state.sgov.gov/p/nea/tunis/index.c fm GODEC
Nota

* Fundo Democrático pelo Trabalho e as Liberdade. (N. do T.)


Rei saudita nos pressiona para atacar Irã
Domingo, 20 de abril de 2008, 08h47
SEÇÃO SECRETA 01 DE 03 RIAD 000649

SIPDIS
SIPDIS
CASA BRANCA PARA OVP, DEPARTMENTO PARA NEA/ARP E S/I

SATTERFIELD
EO 12958 DECL: 19/04/2018
TAGS EAID, ECON, EFIN, IZ, PGOV, PREL, MOPS, SA, IR
ASSUNTO: REI SAUDITA ABDULLAH E PRÍNCIPES NA QUESTÃO DA POLÍTICA SAUDITA EM
RELAÇÃO AO IRAQUE
Classificado como confidencial por: CDA* Michael Gfoeller, razões 1.4 (b, d)

1. (S) Resumo: O embaixador norte-americano no Iraque, Ryan Crocker, e o general David Petraeus
reuniram-se com o rei da Arábia Saudita, Abdullah bin Abd al-Aziz, o ministro das Relações Exteriores
príncipe Saud al-Faisal, o chefe geral de inteligência da presidência príncipe Muqrin bin Abd al-Aziz e o
ministro do Interior Nayif bin Abd al-Azis durante visita a Riad nos dias 14 e15 de abril. O rei saudita e os
príncipes avaliaram em detalhes a política saudita em relação ao Iraque, todos apresentando basicamente as
mesmas posições. Disseram que o reino não enviará um embaixador a Bagdá nem abrirá uma embaixada
enquanto o rei e os oficiais superiores sauditas não estiverem convencidos de que a situação de segurança
melhorou e de que o governo do Iraque tem implementado políticas que beneficiem todos os iraquianos,
reforçando a identidade árabe iraquiana e resistindo à influência iraniana. Os sauditas revelam de certa
forma maior flexibilidade em relação às questões de assistência econômica e humanitária ao Iraque e anistia
da dívida. Em conversa com o encarregado de negócios em 17 de abril, o embaixador saudita nos Estados
Unidos, Adel al-Jubeir, ressaltou que o rei ficou muito impressionado com a visita do embaixador Crocker e
do general Petraeus, e al-Jubeir deu a entender que o governo saudita pode anunciar mudanças na política
com o Iraque antes da visita do presidente a Riad, em meados de maio. Fim do resumo.

Sinais positivos no Iraque

2. (S) Em todos os encontros com membros da família real saudita, tanto o embaixador Crocker quanto o
general Petraeus transmitiram o progresso no Iraque e confirmaram o papel negativo do Irã nesse país.
Caracterizaram como devastadores os efeitos das recentes operações lideradas pelas forças internas de
segurança contra as milícias xiitas em Basra e Bagdá; entre eles, o mais importante foi o fato de voltar a
opinião púbica contra as milícias. Embora a decisão do primeiro-ministro Nuri al-Maliki de partir para a
ação contra as milícias tenha sido descrita como precipitada e mal planejada, o embaixador Crocker e o
general Petraeus enfatizaram que todas as falhas táticas foram ofuscadas pelo efeito positivo maior de
unificar o Iraque e demonstrar a resolução determinada do GDI,* particularmente de al-Maliki, de dominar
as milícias xiitas, principalmente Jaysh al-Mahdi. Ao mesmo tempo, essas operações demonstraram de
maneira inequívoca as atividades subversivas do Irã no Iraque e suas ambições regionais maiores. Durante
todas as discussões, o embaixador e o general enfatizaram a importância e a necessidade urgente de os
sauditas se juntarem a nós no apoio ao Iraque.

A questão da embaixada saudita

3. (S) O rei Abdullah, o ministro das Relações Exteriores e o príncipe Muqrin afirmaram que o governo
saudita não enviaria embaixador a Bagdá nem abriria ali uma embaixada em futuro próximo, citando como
motivo para isso a questão da segurança. O ministro das Relações Exteriores afirmou que havia considerado
a possibilidade de despachar um embaixador e tinha enviado diplomatas sauditas a Bagdá para encontrar
um local para a embaixada. Entretanto, disse ele, “o rei simplesmente nos proibiu de seguir adiante”. O rei
Abdullah confirmou o relato em reunião separada com o embaixador Crocker e o general Petraeus. Afirmou
que a segurança em Bagdá era frágil demais para expor o envio de um embaixador saudita. “Ele se tornaria
alvo imediato para os terroristas e as milícias”, disse.

4. (S) O rei também rejeitou a ideia de que, ao enviar um embaixador saudita a Bagdá, poderia dar apoio
político essencial ao governo iraquiano, enquanto este se empenha em resistir à influência e à subversão
iranianas. Ele expressou dúvida perene quanto à disposição do governo do Iraque de resistir ao Irã. Também
repetiu suas dúvidas frequentemente expressas acerca do primeiro-ministro iraquiano, al-Maliki, aludindo a
suas “conexões iranianas”. O monarca saudita afirmou não confiar em al-Maliki porque este já “mentiu”
para ele no passado, prometendo tomar certas providências que não tomou. O rei não disse exatamente
quais seriam essas supostas promessas não cumpridas. Repetiu sua já conhecida visão de que al-Maliki
governa o Iraque em nome de sua seita xiita, e não de todos os iraquianos.

5. (S) Entretanto, em um gesto potencialmente significativo, o rei não rejeitou completamente a ideia de
despachar um embaixador saudita para Bagdá. Disse que levaria em conta

RIAD 00000649 002 DE 003

essa possibilidade depois das eleições provinciais no Iraque, realizadas no outono. A direção dessas eleições
indicaria se o governo do Iraque está de fato interessado em governar em nome dos iraquianos ou apenas
em apoio aos xiitas, afirmou o rei Abdullah.

Reconhecimento a contragosto da mudança no Iraque

6. (S) O ministro das Relações Exteriores assinalou outro potencial abrandamento na política saudita,
dizendo que o problema do reino não era com al-Maliki como pessoa, mas com a conduta do governo
iraquiano. O próprio rei admitiu que o comportamento do governo desse país tem melhorado nos últimos
meses e, embora a contragosto, reconheceu que al-Maliki e suas forças de segurança têm realmente
combatido extremistas, especificamente os xiitas em Basra e Bagdá, bem como extremistas sunitas e a Al
Qaeda em Mosul. No entanto, o rei e os príncipes disseram precisar de mais tempo para julgar se a recente
mudança de comportamento é duradoura e sincera. O rei sugeriu que boa parte do progresso da atuação do
governo iraquiano se atribui mais à interferência dos Estados Unidos do que a uma mudança nas atitudes do
Iraque.

7. (S) O ministro das Relações Exteriores também sugeriu que o governo dos Estados Unidos deveria
insistir para o que o aiatolá Sistani se pronuncie a favor de um Iraque unificado e da reconciliação nacional
entre diferentes seitas e grupos. “Vocês pagaram um preço alto em sangue e tesouro, e Sistani e seu pessoal
têm se beneficiado diretamente disso. Têm todo o direito de exigir isso dele”, disse o príncipe Saud al-
Faisal.

Possível assistência econômica saudita

8. (S) O rei, o príncipe Muqrin e o ministro das Relações Exteriores deram a entender que o governo da
Arábia Saudita estaria disposto a considerar a provisão de assistência econômica e humanitária ao Iraque. O
príncipe Muqrin pediu que o embaixador Crocker e o general Petraeus lhe enviassem uma lista das formas
de assistência que o governo americano gostaria que o reino oferecesse ao Iraque. Posteriormente, al-Jubeir
disse ao encarregado de negócios que essa assistência seria separada do um bilhão de dólares que o governo
saudita prometeu na Conferência de Madri, mas que ainda não entregou por preocupações relativas à
segurança. Ele disse que o compromisso de Madri consistia em quinhentos milhões de dólares em créditos
comerciais e quinhentos milhões em assistência a projetos com estrita condicionalidade, de acordo com os
ditames do Banco Mundial. Al-Jubeir acrescentou ainda que a assistência possivelmente oferecida pelo
governo saudita por meio do príncipe Muqrin seria, inicialmente, algo entre 75 e trezentos milhões de
dólares.
Possível amortização da dívida

9. (S) O rei observou que o alívio da dívida do Iraque “virá em algum momento”, embora não tenha dito
quando. Al-Jubeir disse ao encarregado de negócios que o alívio da dívida é uma possibilidade real.
Também comentou que o governo saudita poderá realizar mudanças na política em relação ao Iraque, talvez
incluindo tanto a assistência quanto o alívio da dívida, antes da visita do presidente a Riad.

A necessidade de resistência ao Irã

10. (S) O rei, o ministro das Relações Exteriores, o príncipe Muqrin e o príncipe Nayf concordaram que o
reino precisa cooperar com os Estados Unidos para resistir e rechaçar a influência e a subversão iranianas
no Iraque. O rei insistiu muito nesse ponto, sendo apoiado pelos príncipes. Al-Jubeir enfatizou as frequentes
exortações do rei aos Estados Unidos para que ataquem o Irã, pondo fim ao programa de armas nuclear do
país. “Ele lhes pediu para cortar a cabeça da cobra”, lembrou ao encarregado de negócios, acrescentando
que o trabalho junto aos Estados Unidos para rechaçar a influência iraniana no Iraque é prioridade
estratégica para o rei e seu governo.

11. (S) O ministro das Relações Exteriores, por outro lado, solicitou sanções norte-americanas e
internacionais mais severas contra o Irã, incluindo proibição de viagens e maiores restrições a empréstimos
bancários. O príncipe Muqrin concordou, enfatizando que algumas sanções poderiam ser implementadas
sem a aprovação das Nações Unidas. O ministro das Relações Exteriores afirmou também que o uso de
pressão militar contra o Irã não deve ser descartado.

RIAD 00000649 003 DE 003

12. (S) Comentário: As atitudes sauditas em relação ao Iraque, do rei para baixo, continuam marcadas pelo
ceticismo e pela desconfiança. Dito isso, os sauditas têm acompanhado eventos recentes no Iraque e estão
ansiosos por trabalhar com os Estados Unidos na resistência e reversão do avanço furtivo iraniano no país.
O rei ficou impressionado com a visita do embaixador Crocker e do general Petraeus, assim como o
ministro das Relações Exteriores, o chefe da inteligência e o ministro do Interior. Cautelosos como de
costume, os sauditas podem, no entanto, estar dispostos a considerar novas medidas nas áreas de assistência
e alívio da dívida, embora mais discussões sejam necessárias até que tal ideia se transforme em realidade.
Fim do comentário.

13. (U) Este telegrama foi analisado e autorizado pelo embaixador Crocker e o general Petraeus.
GFOELLER
Notas

* Communications Decency Act, código de ética na internet. (N. do E.)


* Governo do Iraque. (N. do T.)
China “aceitaria” reunificação coreana SECRETO SEUL
000272

SIPDIS
EO 12958 DECL: 22/02/2034
TAGS PREL, PGOV, KNNP, ECON, SOCI, KS, KN, JA”>JA”>JA, CH
ASSUNTO: VMRE CHUN YUNG-WOO NA QUESTÃO DAS RELAÇÕES SINO-NORTE-COREANAS
Classificado pela embaixadora Kathleen Stephens. Razões 1.4 (b/d).

Resumo

1. (S) O vice-ministro das Relações Exteriores Chun Yung-woo disse à embaixadora, em 17 de fevereiro,
que a China não poderia impedir o colapso da Coreia do Norte após a morte de Kim Jong-il (KJI). A
RDPC,* disse Chun, já caíra economicamente e sofreria um colapso político dois ou três anos após a morte
de Kim Jong-il. Chun descartou informações veiculas pela mídia da República da Coreia de que empresas
chinesas teriam concordado em injetar dez bilhões de dólares americanos na economia do Norte. Beijing
“não estava disposta” a usar sua modesta influência econômica para forçar uma mudança nas políticas de
Pyongyang – caracterizado pela RDPC como “o mais incompetente funcionário na China” – e tinha
mantido sua posição como chefe da 6PT da República Popular da China. Ao descrever uma diferença de
geração nas atitudes chinesas em relação à Coreia do Norte, Chun afirmou que XXXXXXXXXXX
acreditava que a Coreia deveria ser unificada sob controle da República da Coreia. Chun reconheceu a
posição da embaixadora de que uma relação sólida entre a RDC e o Japão ajudaria Tóquio a aceitar uma
Península Coreana reunificada. Fim do resumo.

VMRE Chun na questão das relações sino-norte-coreanas...

2. (S) Durante almoço oferecido pela embaixadora Stephens, em 17 de fevereiro, no qual vários assuntos
foram abordados, o vice-ministro das Relações Exteriores da RDC e ex-chefe de delegação da Six Party-
Talks (6PT), Chun Yung-woo, previu que a China não seria capaz de impedir o colapso da Coreia do Norte
após a morte de Kim Jong-il (KJI). A RDPC, disse Chun, já ruíra economicamente e, após a morte de KJI, o
país sofreria um colapso político em “dois ou três anos”. Chun descartou relatos da mídia da RDC que
afirmavam que empresas chinesas teriam concordado em injetar dez bilhões de dólares na economia do
Norte. Tais relatos “não têm substância”, disse. O VMRE também ridicularizou a “apresentação” do
ministro das Relações Exteriores chinês à embaixada da RDC em Beijing sobre a visita de Wang Jiarui à
Coreia do Norte. O apresentador não identificado “basicamente leu um comunicado à imprensa da Xinhua”.
Chun lamentou o fato de o interlocutor da RPC não estar disposto a responder perguntas simples, como se
Wang tinha ido a Hamhung de avião ou tomado um trem para se encontrar com KJI.

3. (S) O VMRE comentou que a China teve muito menos influência na Coreia do Norte do que “muita
gente pensa”. Beijing não teria “a menor vontade” de usar sua influência econômica para forçar uma
mudança nas políticas de Pyongyang, e a liderança da RDPC “sabe disso”. Chun reconheceu que os
chineses realmente querem que a Coreia do Norte seja desnuclearizada, mas a RPC também está satisfeita
com o status quo. A menos que a China force a Coreia do Norte até o “ponto de colapso”, a RDPC
provavelmente continuaria se recusando a tomar medidas significativas em relação à desnuclearização.
XXXXXXXXXXX

4. (S) Quanto ao Six Party-Talks, Chun disse que era “muito ruim” o fato de Wu Dawei manter sua posição
como chefe da delegação da RPC. XXXXXXXXXX disse que pareceu que a RDPC “deve ter intercedido
de maneira extremamente dura” para que o já aposentado Wu continuasse como chefe da China na 6PT.
XXXXXXXXXX reclamou que Wu é XXXXXXXXXX um ex-guarda vermelho, cria marxista da RPC,
que “nada sabe a respeito da Coreia do Norte, nem da não proliferação, e tem dificuldade em se comunicar
porque não fala inglês”. Wu também era nacionalista convicto, que proclamava em altos brados – para
quem quisesse ouvir – que a ascensão econômica da RPC representava um “retorno à normalidade”, com a
China como grande potência mundial.

... A “nova geração” chinesa de força de trabalho coreana...

5. (S) Oficiais chineses sofisticados XXXXXXXXXX revelam marcante contraste em relação a Wu,
segundo o VMRE Chun. XXXXXXXXXX Chun afirmou XXXXXXXXXX acreditar que a Coreia deveria
ser unificada sob o controle da RDC. XXXXXXXXXX, de acordo com Chun, estavam prontos para
“encarar a nova realidade”, de que a RDPC agora tem pouco valor para a China como um Estado-tampão –
uma opinião que, desde o teste nuclear da Coreia do Norte, em 2006, supostamente avançou entre os líderes
mais antigos da RPC.

... Ações da RPC em um cenário de colapso da RDPC...

6. (S) Chun argumentou que, na eventualidade de um colapso norte-coreano, a China decididamente “não
veria com bons olhos” qualquer presença militar americana no norte da ZDM.* XXXXXXXXXX Chun
XXXXXXXXX disse que a RPC se sentiria confortável com uma Coreia reunificada sob controle de Seul e
ancorada nos Estados Unidos em “aliança benigna” – desde que a Coreia não fosse hostil para com a China.
Oportunidades significativas de comércio e exportação de mão de obra para as empresas chinesas, disse
Chun, também ajudariam a aliviar as preocupações da RPC com relação ao convívio com uma Coreia
reunificada. Chun descartou a possibilidade de intervenção militar por parte da RPC no caso de um colapso
da RDPC, observando que os interesses econômicos estratégicos da China se concentram hoje nos Estados
Unidos, no Japão e na Coreia do Sul, não na Coreia do Norte. Além disso, comentou Chun, uma
intervenção militar flagrante da RPC em uma crise interna da RDPC poderia “fortalecer as forças
centrífugas em áreas minoritárias chinesas”.

... e Japão

7. (S) Chun reconheceu a posição do embaixador de que um relacionamento sólido entre RDC e Japão
ajudaria Tóquio a aceitar uma Península Coreana reunificada sob controle de Seul. Chun afirmou que,
embora a “preferência japonesa” seja manter a Coreia dividida, Tóquio não tem influência para impedir a
reunificação no caso de a RDPC entrar em colapso. STEPHENS
Notas

* República Democrática Popular da Coreia. (N. do T.)


* Zona desmilitarizada. (N. do T.)
Uma festa de casamento à moda do Cáucaso
Quinta-feira, 31 de agosto de 2006, 06h39
SEÇÃO CONFIDENCIAL 01 DE 05 MOSCOU 009533

SIPDIS
SIPDIS
EO 12958 DECL: 30/08/2016
TAGS PGOV, ECON, PINR, RS”>RS
ASSUNTO: UMA FESTA DE CASAMENTO NO CÁUCASO
Classificado pelo subcomandante de Missão Daniel A. Russell. Razão 1.4 (b, d)

Resumo

1. (C) Os casamentos são sofisticados no Daguestão, a maior autonomia no Cáucaso do Norte. Em 22 de


agosto, fomos a uma festa de casamento em Makhachkala, capital do país. O filho de Gadzhi Makhachev,
membro da Duma e presidente da companhia de petróleo do Daguestão, se casou com uma colega de classe.
A festa suntuosa e a bebedeira intensa ocultavam a extremamente séria política de terras, etnias, clãs e
aliança do Cáucaso do Norte. A lista de convidados incluía toda a estrutura de poder da região – estrelando
o líder checheno Ramzan Kadyrov – e assinalava até que ponto a política da região pode ser pessoal. Fim
do resumo.

2. (C) As festas de casamento no Daguestão são um negócio sério: palco para mostrar respeito, fidelidade e
aliança entre famílias; os noivos em si são pouco mais que peças de exibição. As cerimônias acontecem por
três dias em locais discretos. No primeiro, as famílias do noivo e da noiva dão recepções separadas e
simultâneas. No decorrer da recepção, o noivo conduz uma delegação à recepção da noiva e a leva até a
recepção dele, quando então ela passa a fazer parte da nova família e abdica da sua e de seu clã. No dia
seguinte, os pais do noivo dão outra recepção, agora para a família e os amigos da noiva, que podem
“inspecionar” a família à qual deram sua filha. No terceiro dia, a família da noiva realiza uma terceira
recepção para os pais e familiares do noivo.

Pai do noivo
Pai do noivo

3. (C) Em 22 de agosto, Gadzhi Makhachev realizou o casamento do filho de 19 anos, Dalgat, com Aida
Sharipova. A cerimônia em Makhachkala, à qual estivemos presentes, foi um microcosmo das relações
sociais e políticas do Cáucaso do Norte, a começar pela própria biografia de Gadzhi. Ele começou como
líder do clã Avar. Enver Kisriyev, autoridade intelectual da sociedade, nos disse que, quando a potência
soviética se retirou do Daguestão, no fim da década de 80, a complexa sociedade retrocedeu para o que era
antes da estrutura russa. A unidade estrutural básica é a monoétnica “jamaat”; a melhor tradução para o
termo é “cantão” ou “comunidade”. Os grupos étnicos são um constructo russo: confrontados com centenas
de jamaats, os conquistadores russos do século XIX aglutinaram cantões de dialetos próximos e os
chamaram de “Avar”, “Dargin” etc., para reduzir o número de “nacionalidades” do Daguestão para 38.
Desde então, os jamaats dentro de cada grupo étnico têm competido pela liderança do grupo. Essa
concorrência é acentuada principalmente entre os avars, a maior nacionalidade do Daguestão.

4. (C) Com o afrouxamento do poder russo, cada cantão organizou, tanto nas montanhas quanto na capital,
Makhachkala, uma milícia para defender seu povo. Gadzhi tornou-se líder de seu cantão nativo, Burtunay,
em Kazbek Rayon. Posteriormente, declarou suas ambições pan-avar fundando a Frente Popular Imam
Shamil – que leva o nome do grande líder avar da resistência montanhesa aos russos –, para promover os
interesses avars e o papel de Burtunay dentro do grupo étnico. Entre suas aventuras, destacam-se o papel na
defesa militar do Daguestão contra a invasão, em 1999, da Chechênia por parte de Shamil Basayev e al-
Khattab, e a defesa política de aldeias avar sob pressão na Chechênia, na Geórgia e no Azerbaijão.

5. (C) Gadzhi investiu no capital social que criou a partir do nacionalismo, convertendo-o em capital
financeiro e político – como presidente da companhia de petróleo do Daguestão e como único representante
oficial de Makhachkala na Duma, na Rússia. Suas negociações no ramo petrolífero – incluindo cerrada
cooperação com empresas dos Estados Unidos – o deixaram suficientemente abastado para adquirir
luxuosas residências em Makhachkala, Kaspiysk, Moscou, Paris e San Diego, além de uma grande coleção
de automóveis de luxo, incluindo um Rolls Royce Silver Phantom, no qual Dalgat trouxe Aida da recepção
dos pais dela. (Gadzhi, certa vez, nos deu uma carona no Rolls Royce em Moscou, mas o espaço ficou um
pouco restrito pela presença de uma AK7 aos nossos pés. Gadzhi sobreviveu a diversas tentativas de
assassinato, e o mesmo acontece com a maioria dos líderes ainda vivos do Daguestão. Ali, ele sempre se
locomove em uma BMW blindada, com um ou dois carros atrás, cheios de seguranças armados e
uniformizados.)

6. (C) Gadzhi foi além de sua base avar, implementando uma política multiétnica para criar uma rede de
seguidores leais. Enviou jovens do país, inclusive seus filhos, a um tipo de colégio militar perto de San
Diego (conhecemos um estudante, um garoto judeu de Derbent hoje estudando em San Diego. Ele não tem
planos de entrar para as Forças Armadas russas.)

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A política multiétnica de Gadzhi ilustra o que nos disse o editor do Chernovik, um jornal do Daguestão, que
nos últimos anos o desenvolvimento de clãs empresariais interétnicos tem desgastado as tradicionais
lealdades jamaat.

7. (C) Mas o simbolismo avar ainda é forte. O irmão de Gadzhi, um artista de São Petersburgo, enviou
como presente de casamento uma estátua em tamanho real de Imam Shamil. Shamil é o símbolo icônico
nacional, apesar do caráter sério e inflexível (retratado em Khadji-Murát, de Tolstói, como o equivalente
tirânico das montanhas ao czar absolutista). Hoje em dia, a ligação com Shamil significa nobreza entre os
avars. Gadzhi frequentemente menciona que descende, pelo lado materno, de Gair-Bek, um dos
representantes de Shamil.

O dia anterior

8. (C) A imensa casa de veraneio de Gadzhi, em Kaspiysk, fica no aprazível litoral do mar Cáspio. Conta
essencialmente com uma grande sala de recepção circular – como um amplo restaurante – atrelada a uma
torre de controle verde de quarenta metros de altura, acessível apenas por elevador, com alguns dormitórios,
uma sala de recepção e uma gruta cujo piso de vidro é o teto de um enorme aquário. O complexo,
fortemente vigiado, também conta com uma segunda casa, alas anexas, quadra de tênis e dois píeres que
dão para o mar, um deles com plataforma para jet ski. Na tarde de 21 de agosto, a casa ficou cheia de
convidados de toda parte do Cáucaso. O chefe do Parlamento da República da Inguchétia chegou com dois
colegas de carro; entre os visitantes de Moscou, havia políticos, empresários e um técnico de futebol avar.
Muitos dos visitantes cresceram com Gadzhi em Khasavyurt, incluindo um lutador olímpico da Inguchétia,
Vakha, que parecia incessantemente bêbado. Outro grupo de amigos da juventude de Gadzhi em
Kahsavyurt chegou, conduzido por um homem parecido com Shamil Basayev em um dia de folga – chinelo,
camiseta, boné de beisebol, barba por fazer –, que se revelou rabino chefe de Stavropol. Ele nos disse ter
doze mil correligionários na província, oito mil deles na capital, Pyatigorsk. Setenta por cento são como ele,
judeus do Cáucaso que falam persa; o restante é uma mistura de europeus, georgianos e bucarianos.

9. (C) Também estava presente o membro da Duma da Chechênia, Khalid (também conhecido como
Ruslan) Yamadayev, irmão do comandante do notório batalhão Vostok. Na ocasião, ele estava reservado,
mas, em diálogo posterior em Moscou em 29 de agosto (favor proteger), queixou-se de que a Chechênia, na
ausência de especialistas para desenvolver programas de recuperação econômica, está simplesmente
exigindo e descartando dinheiro do governo central. Quando insistimos no assunto dos desaparecimentos,
ele admitiu que alguns de fato ocorreram, mas afirmou que frequentemente pais alegavam que seus filhos
haviam sido sequestrados, quando, na verdade, tinham fugido para se juntar a guerrilheiros ou – num caso
ocorrido na semana anterior – haviam assassinado a filha num ato sacrifical. Mencionamos o sequestro da
viúva de Basayev, supostamente para se ter acesso ao dinheiro dele. Khalid disse não ter conhecimento do
caso, mas sabia que Basayev não tinha interesse em riqueza; ele pode ter sido um fanático religioso, mas era
uma pessoa “normal”. Os guerrilheiros remanescentes não são uma força militar séria, na visão de Khalid, e
muitos se renderiam sob termos apropriados e imunidade. Ele mesmo estava providenciando a imunidade
de um oficial superior da era Maskhadov, cujo nome não revelaria.

10. (C) Durante o almoço, Gadzhi recebeu um telefonema congratulatório do presidente do Daguestão,
Mukhu Aliyev. Gadzhi disse a Aliyev que ficaria honrado se ele pudesse comparecer à festa do casamento.
Houve certa tensão na conversa, que se deu entre duas figuras que implicitamente reivindicavam o manto da
liderança dos avars. Na ocasião, Aliyev esnobou Gadzhi e não compareceu à recepção, embora os demais
líderes políticos do Daguestão o tenham feito.

11. (C) Apesar de a casa de Gadzhi não ter sido o local da recepção principal, ele assegurou que todos os
convidados fossem constantemente supridos de comida e bebida. Os cozinheiros pareciam deixar bois e
carneiros inteiros fervendo em caldeirão dia e noite, colocando pedaços de carcaças sobre a mesa sempre
que alguém adentrava o recinto. Os dois chefes de cozinha de Gadzhi mantiveram vasta variedade de pratos
raros em circulação (além da onipresente carne cozida e caldo gorduroso). O consumo de álcool antes,
durante e depois do casamento muçulmano foi estupendo. Em meio a um déficit de álcool, Gadzhi mandou
trazer dos Urais, de avião, milhares de garrafas de vodca Beluga Export (“Melhor consumida com caviar”).
Também tivemos alguns espetáculos, começando já naquele dia com artistas de renome tanto na recepção
quando na casa de veraneio de Gadzhi. A principal atração de Gadzhi, um cantor nascido na Síria chamado
Avraam Russo, não pôde comparecer porque levou um tiro alguns dias antes do casamento, mas havia

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um trupe “cigana” de São Petersburgo, alguns astros pop do Azerbaijão; e, de Moscou, Bênia, o rei do
acordeão, com sua família de cantores. Diversas bandas locais, cantando em avar e dargin, completaram o
constante espetáculo.

10. (C) A principal atividade do dia foi comer e beber – tendo início às quatro horas da tarde, com duração
de cerca de oito horas – seguida, após todos já terem se fartado o suficiente – de passeios de jet ski no mar
Cáspio. De qualquer forma, depois do jantar, a primeira banda iniciou uma apresentação livre – bateria,
acordeão e clarinete tocando a lezginka, dança típica do Cáucaso. Para o ocidental não iniciado, a música
parece um bloco indiferenciado de som. Era sinal para dar início à dança: um a um, cada um dos homens
dramaticamente barrigudos (não havia mulheres presentes) entrava na arena e exibia sua própria lezginka
até o limite de sua duração, geralmente algo em torno de trinta segundos e um minuto. Cada grupo étnico
possui uma lezginka diferente – a do Daguestão é a mais energética, a da Chechênia a mais agressiva e
hostil, e da Inguchétia a mais suave.

Primeiro dia de cerimônia

11. (C) Uma hora antes de a recepção começar, o salão Marrakech estava repleto de convidados – homens
tomavam ar do lado de fora e mulheres já ocupavam várias mesas ali dentro, as mais velhas com lenços na
cabeça, acompanhando dezenas de garotas adolescentes. Um parlamentar do Daguestão explicou que as
cerimônias de casamento são um dos principais eventos para os jovens – e, ainda mais importante, para seus
pais – se observarem com a intenção futuros enlaces. A segurança era intensa: a polícia estava presente na
propriedade e havia atiradores posicionados no telhado de um prédio adjacente. Gadzhi designou um de
seus guardas como nosso guarda-costas durante a recepção. O gerente disse a Gadzhi que havia cadeiras
para mais de mil convidados. No auge da recepção não havia mais assentos.

12. (C) Exatamente às duas da tarde, os convidados homens começaram a formar fila. Variavam de
políticos a oligarcas de todos os tipos – de modernos a jurássicos; camponeses pardos e encarquilhados de
Burtunay; e celebridades do mundo do esporte e da cultura do Daguestão. Khalid Yamadayev comandava
uma mesa de políticos no menor dos dois salões (a música tocava no outro), com Vakha, o lutador bêbado,
parlamentares da Inguchétia, um membro do Conselho da Federação, que também é nanofísico e já proferiu
palestras no Vale do Silício, e Ismail Alibekov, primo de Gadzhi, capitão de mar e guerra e submarinista de
primeira patente, hoje servindo ao Estado-maior em Moscou. O ambiente próprio do Daguestão parece ser
do tipo em que altamente instruídos e indivíduos armados podem facilmente se misturar – e frequentemente
são a mesma pessoa.

13. (C) Cerca de duas horas depois, o comboio de Dalgat voltou buzinando com Aida. Os noivos desceram
do Rolls Royce e foram recepcionados ao som de serenata no salão, e no seio da família Makhachev, com
um coro de meninos perfilados dos dois lados do tapete vermelho, vestidos em trajes que imitavam
armaduras medievais do Daguestão, com pequenos escudos e espadas. A entrada do casal foi o sinal para o
mestre de cerimônias partir para a ação, e, após alguns brindes, os “ciganos” Piter deram início à
apresentação. (No dia seguinte, um dos convidados que estavam na casa de Gadzhi zombou. “Belos
ciganos! O líder da banda certamente era judeu e os outros eram loiros.” Ele tinha razão, mas pelo menos as
duas dançarinas pareciam ciganas.)

14. (C) Enquanto as bandas tocavam, garotas casadouras dançavam a lezginka, dando passos que pareciam
uma lenta conga giratória perfilada, enquanto rapazes se sentavam juntos às mesas, as observando
atentamente. Todos os garotos usavam camisa branca e calça preta, enquanto as meninas trajavam uma
grande variedade de vestidos de festa coloridos e elegantes. De vez em quando, alguém fazia chuva de
dinheiro sobre as dançarinas – havia milhares de notas de rublos, mas as notas preferidas eram as de cem
dólares. O chão estava repleto delas. Crianças recolhiam o dinheiro para distribuir entre as dançarinas.

15. (C) Gadzhi assumiu plenamente o papel de anfitrião. Cumprimentou pessoalmente cada convidado que
entrou no salão – se falhasse nisso, causaria grande insulto – e depois foi de mesa em mesa brindando com
todos. Os 120 drinques que calculou ter ingerido teriam matado qualquer um, beberrão inveterado ou não,
mas Gadzhi tinha seu próprio garçom afegão, Khan, acompanhando-o com uma garrafa de vodca especial
que continha água. Mesmo assim, ele estava esgotado no fim da noite. Em determinado momento, o
flagramos dançando com duas russas seminuas, que pareciam estar muito longe de casa. Uma delas,
descobrimos, era uma poetisa de Moscou (que mais tarde recitaria um poema incompreensível em
homenagem a Gadzhi) que

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estava na cidade com um diretor de cinema para elaborar um roteiro para um filme imortalizando a defesa
do Daguestão de Gadzhi contra Shamil Basayev. Às seis da tarde, a maioria dos convidados hospedadas na
casa havia retornado para lá para nadar e andar de jet ski. Mas, às oito da noite, o restaurante da casa de
veraneio estava cheio mais uma vez, com comida e bebida abundantes, os mesmos aristas agora se
apresentando em versão acústica e alguns convidados estupendamente gordos exibindo sua lezginka para
entreter as duas russas visitantes, que haviam deixado a recepção.

Segundo dia de cerimônia: Entra O homem

16. (C) A recepção do dia seguinte no Marrakeck foi o tributo de Gadzhi à família de Aida, e logo depois
disso todos nós voltamos para um jantar na casa de veraneio do anfitrião. A maioria das mesas estava
disposta com os pratos tradicionais, além de esturjões assados inteiros e carneiro. Mas, às oito da noite, a
àrea foi invadida por dezenas de mujahidin fortemente armados para a entrada do líder checheno Ramzan
Kadyrov, vestindo jeans e camiseta e parecendo mais baixo e menos forte que nas fotos, com uma
expressão um tanto estrábica no rosto. Após cumprimentar Gadzhi, Ramzan e cerca de vinte pessoas de seu
séquito sentaram-se às mesas e começaram a comer e beber ao som de Bênia, o rei do acordeão. Gadzhi
então anunciou uma exibição de fogos de artifício em homenagem ao aniversário do falecido pai de
Ramzan, Ahmat-Hadji Kadyrov. Os fogos tiveram início com um forte estrondo que fez com que Gadzhi e
Ramzan hesitassem. Desde o começo, o anfitrião havia pedido que nenhum dos convidados, a maioria
armada, disparassem suas armas em comemoração. Durante toda a celebração, eles obedeceram, não
disparando um único tiro nem mesmo durante a magnífica exibição de rojões.

17. (C) Após os fogos, os músicos tocaram a lezginka no pátio, e um grupo de duas meninas e três meninos
– um com não mais de 6 anos – apresentaram versões em ginástica da dança. Primeiro Gadzhi se juntou a
eles, depois Ramzan dançou desajeitadamente com a automática folheada a ouro enfiada na parte de trás do
jeans (mais tarde, um dos convidados da casa diria que o revestimento em ouro eliminava qualquer uso
prático da arma, mas zombou acrescentando que Ramzan provavelmente não saberia usá-la de qualquer
maneira). Os dois jogaram notas de cem dólares às crianças; os dançarinos provavelmente pegaram mais de
cinco mil dólares do chão de pedra. Gadzhi nos disse depois que Ramzan havia comprado para o feliz casal
“um bloco de cinco quilos de ouro” como presente de casamento. Após a dança e um rápido passeio pela
propriedade, Ramzan e seu exército voltaram à Chechênia. Perguntamos por que Ramzan não passou a
noite em Makhachkala, e ouvimos a seguinte resposta: “Ramzan nunca passa a noite em lugar nenhum”.

18. (C) Após a partida de Ramzan, o jantar e as bebidas – estas principalmente – continuaram. Um coronel
FSB avar, sentado ao nosso lado, completamente embriagado, ficou muito ofendido quando não o deixamos
colocar “conhaque” no nosso vinho. “É praticamente a mesma coisa”, ele insistiu, até que um general FSB
russo, sentado de frente para ele, mandou que parasse. De qualquer forma, estávamos inclinados a dar uma
chance ao coronel – ele é chefe da unidade de combate ao terrorismo no Daguestão, e Gadzhi nos disse que
cedo ou tarde os extremistas matam todos que entram para a unidade. Ficamos mais preocupados quando
um amigo de guerra afegão do coronel, reitor da Escola de Direito da Universidade do Daguestão, bêbado
demais para se sentar, ainda mais para ficar de pé, puxou a pistola e perguntou se precisávamos de proteção.
Nesse momento, Gadzhi e seu pessoal se aproximaram, apoiaram o reitor em seus ombros e nos deixaram
fora da mira da pistola.

Pós-escrito: usos práticos de uma cerimônia de casamento no Cáucaso

19. (C) A presença de Kadyrov foi sinal de respeito e aliança, resultado de um cultivo cauteloso de Gadzhi
– que remonta à amizade pessoal com o pai de Ramzan. Trata-se de uma ferramenta política necessária em
uma região em que as dificuldades só podem ser resolvidas por meio de relacionamentos pessoais para se
chegar a acordos informais ad hoc. Um exemplo estava bem à vista: em 22 de agosto, o presidente do
Parlamento checheno, Dukvakha Abdurakhmanov, concedeu uma entrevista na qual fez reivindicações
territoriais específicas às regiões de Kizlyar, Khasavyurt e Novolak, no Daguestão. As duas primeiras têm
populações chechena-akkin significativas, e a última fez parte da Chechênia até a deportação de 1944,
quando Stálin realocou ali o grupo étnico dos laks (uma nacionalidade do Daguestão) pelo uso da força.
Gadzhi disse que teria de responder a Abdurakhmanov e trabalhar com Ramzan para reduzir as tensões que
“aquele idiota” havia causado. Quando lhe perguntaram por que ele levava tais relatos a sério, ele nos disse
que no Cáucaso todas as disputas giram em torno da terra, e tais reivindicações nunca podem ser

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descartadas. Reivindicações de terra não solucionadas são o “pavio” que o centro russo sempre mantém
pronto para acender quando necessário. Perguntamos por que tais reivindicações estavam surgindo agora, e
ele respondeu que se tratava pura e simplesmente de euforia. Depois de tudo que haviam recebido, os pés da
liderança chechena estavam a quilômetros do solo. (Um contato checheno bem relacionado nos disse mais
tarde que achava que o irredentismo nacionalista crescente era parte do esforço de Abdurakhmanov de
ganhar uma base política independente de Kadyrov.)

20. (C) O “poder horizontal” representado pela relação de Gadzhi com Ramzan é a antítese do “poder
vertical” imposto por Moscou. Sócio de Gadzhi nos negócios e chefe da Rosneft-Kaspoil, Khalik Gindiyev,
queixou-se de que Moscou deveria deixar os caucasianos locais, e não os russos – “Magomadovs e Aliyevs,
não Ivanovs e Petrovs” – resolverem os conflitos da região. A verticalidade do poder, disse ele, não é
aplicável ao Cáucaso, uma região que burocratas de Moscou como PolPred Kozak nunca entenderiam. O
Cáucaso precisa ter margem de ação para resolver seus próprios problemas. Mas isso não seria abertura para
a democracia. Gadzhi nos disse que a democracia sempre fracassaria na região, onde a concepção de Estado
é uma extensão da família caucasiana, na qual a palavra do pai é a lei. “Onde há espaço para democracia
nisso?”, perguntou. Parafraseamos Hayek: Se você administra uma família como administra um Estado,
destrói a família. Administrar um Estado como se administra uma família destrói o Estado – laços de
parentesco e amizade sempre derrubam a regra da lei. O sócio de Gadzhi concordou, balançando tristemente
a cabeça. “Essa é uma questão para as próximas gerações”, disse.

BURNS
Príncipe Andrew desabafa contra a França, o SFO e o
The Guardian
Quarta-feira, 29 de outubro de 2008, 12h07
SEÇÃO CONFIDENCIAL 01 DE 04 BISHKEK 001095
CÓPIA CORRIGIDA (DESTINATÁRIO)
Classificado pela embaixadora Tatiana Gfoeller, razão 1.4 (b) e (d).

1. (C) RESUMO: Em 28 de outubro, a embaixadora participou de um brunch de duas horas para passar
algumas informações ao honorável duque de York antes das reuniões que ele teria com o primeiro-ministro
do Quirguistão e outros oficiais de alta patente. Ela era a única cidadã não súdita do Reino Unido ou do
Commonwealth convidada pelo embaixador britânico na República do Quirguistão. Entre os outros
participantes estavam grandes investidores britânicos no país e o empresário canadense da mina de Kumtor.
A discussão abordou o clima de investimento para firmas ocidentais na República do Quirguistão, o
problema da corrupção, a retomada do “Grande Jogo”, as influências russa e chinesa no país e a visão
pessoal do príncipe quanto à promoção de interesses econômicos britânicos. Espantosamente franca, a
discussão chegou a ser rude em determinados momentos (pelo lado britânico). Fim do resumo.

2. (C) O embaixador britânico na República do Quirguistão, Paul Brummell, convidou a embaixadora para
participar da preleção a Sua Alteza Real príncipe Andrew, duque de York, antes das reuniões em 28 de
outubro com o primeiro-ministro do Quirguistão, Igor Chudinov, e outros oficiais de alta patente. O
príncipe estava no Quirguistão para promover interesses econômicos britânicos. Originalmente marcada
para durar uma hora no decorrer do brunch, a preleção teve duração de duas horas, graças às perguntas
aguçadas do superengajado príncipe. A embaixadora era a única presente que não era súdita britânica ou
ligada ao Commonwealth. A ausência de seus colegas franceses e alemães foi notada. Aparentemente, eles
não foram convidados, apesar de também serem membros da União Europeia. Outros convidados eram
alguns grandes investidores britânicos no Quirguistão e o empresário canadense da mina de Kumtor.

“VOCÊ TEM DE ACEITAR TANTO OS PONTOS POSITIVOS QUANTO OS NEGATIVOS”

3. (C) A discussão foi iniciada pelo presidente da mina de Kumtor, administrada pelo Canadá, que
descreveu detalhadamente os percalços da empresa na tentativa de negociar uma concessão revista de
mineração que determine ao governo do Quirguistão maior participação na matriz de Kumtor, em troca de
regime de taxação mais simples e concessão expandida. A fala foi seguida pela do representante do
proprietário britânico da Kyrgyzneftigas, que explicou o papel da empresa na exploração e produção de
petróleo no Quirguistão; ele também se queixou de ser importunado pelas autoridades tributárias do país.
Deu como exemplo o caso de um acionista quirguistanês que estava processando a empresa, alegando que
seus “direitos humanos” estavam sendo violados segundo os termos do acordo de acionistas

4. (C) O príncipe reagiu com desmedido fervor patriótico. Em um gesto louvável, ele diligentemente
empenhou-se em compreender o ponto de vista quirguistanês. Entretanto, quando os participantes
explicaram que alguns quirguistaneses sentem que foram injustamente “induzidos”, nos anos 90, a assinar
contratos desfavoráveis com ocidentais, ele não demonstrou o menor sinal de solidariedade. “Um contrato é
um contrato”, insistiu. “Você tem de aceitar tanto os pontos positivos quanto os negativos.”

“TUDO ISSO ESTÁ SE PARECENDO MUITO COM A FRANÇA”

5. (C) Após terem, sem muito empenho, rodeado o assunto por algum tempo, mencionando, de maneira
obtusa, apenas “interesses pessoais”, os representantes empresariais passaram a descrever o que veem como
um espantoso estado de corrupção na economia do Quirguistão. Embora tenham afirmado que nunca
aceitaram nem pagaram propina, um dos representantes de uma empresa de médio porte declarou que “às
vezes a tentação é grande”. Em extraordinária demonstração de franqueza, em um hotel público onde
estávamos tomando o brunch, todos os empresários disseram, quase em coro, que nada dá certo no
Quirguistão se XXXXXXXXXX não receber “sua cota”. O príncipe Andrew se inflamou durante a
conversa, dizendo que está sempre ouvindo o nome XXXXXXXXXX “repetidas vezes”, sempre que
discute negócios no país. Encorajado, um empresário disse que fazer negócios aqui é “como fazer negócios
no Yukon” no século XIX, ou seja, só as pessoas dispostas a participar das práticas corruptas locais são
capazes de ganhar dinheiro. Seus colegas concordaram prontamente, sendo que um deles apontou para o
fato de que “nada muda aqui. Antes, só ouvíamos o nome do filho de Akayev. Agora é o nome
XXXXXXXXXX”. Nesse instante, o duque de York riu a valer, dizendo que: “Tudo isso está se parecendo
muito com a França”.

6. (C) O príncipe, então, se voltou para a embaixadora, querendo ouvir a posição americana na situação. A
embaixadora descreveu os interesses comerciais americanos no país, que vão desde grandes investimentos
como o hotel Hyatt e a empresa de telecomunicações Katel, até investimentos menores em uma variedade
de setores. Ela afirmou que parte do problema com as condições empresariais no Quirguistão era a rápida
rotatividade nos postos do governo. Alguns reagiam aos curtos mandatos de maneira corrupta, querendo
“roubar enquanto podem” até serem depostos. Após mencionar a necessidade de maior transparência nas
negociações empresariais, ela afirmou que havia presidido o Dia do Associado da Câmara do Comércio na
semana anterior (frequentada pelo ministro das Relações Exteriores e o vice-ministro das Relações
Comerciais), que contou com presença maciça e foi um sucesso estrondoso (ver telegrama referente). Em
seguida, descreveu o impacto benéfico na economia do Quirguistão da base aérea da coalizão no aeroporto
Manas.

“A PRÓPRIA PESSOA TEM DE QUERER SE CURAR DA ANOREXIA”


7. (C) Com um falso lamento, o duque de York, então, exclamou: “Meu Deus, o que devo dizer a essas
pessoas?!” Depois, mais sério, pediu aos convidados que sugerissem meios de melhorar o futuro econômico
e a atratividade do Quirguistão. Todos concordaram que nos diálogos com o primeiro-ministro e com outras
pessoas, ele deveria enfatizar a regra legal e a estabilidade em longo prazo.

8. (C) Concordando com a posição da embaixadora em relação à rápida rotatividade no governo, insistiram
para que ele convencesse seus anfitriões a respeito da previsibilidade e da inviolabilidade dos contratos,
com o intuito de atrair mais investimento ocidental. Ao mesmo tempo, acrescentaram que nada disso seria
necessário para atrair investimentos russos, chineses ou cazaquistaneses. Parecia-lhes que os
quirguistaneses estavam satisfeitos com o nível destes, e estavam prestes a “não se incomodar” em realizar
as melhorias necessárias para atrair investimentos ocidentais. Retornando ao que obviamente parecia ser seu
assunto favorito, o príncipe Andrew zombou: “Também não precisarão fazer mudança alguma para atrair os
franceses!” Pensativo mais uma vez, o príncipe refletiu que quem é de fora pouco poderia fazer para mudar
a cultura de corrupção local. “Eles próprios têm de mudar a atitude. Assim como uma pessoa tem de querer
se curar da anorexia. Ninguém pode fazer isso por ela."

NO GRANDE JOGO (POR EXTENSÃO, OS AMERICANOS TAMBÉM)

9. (C) Dirigindo-se diretamente à embaixadora, o príncipe Andrew mencionou as políticas regionais.


Afirmou abertamente que "o Reino Unido, a Europa Ocidental (e, por extensão, os americanos)" estavam
agora de volta ao Grande Jogo. Mais animado do que nunca, afirmou, presunçoso: "E dessa vez queremos
ganhar!" Sem contradizê-lo, a embaixadora delicadamente relembrou que os Estados Unidos não veem sua
presença na região como uma continuação do Grande Jogo. Apoiamos a independência e a soberania do
Quirguistão, mas também vemos de modo favorável as boas relações entre esse país e todos os seus
vizinhos, inclusive a Rússia.

10. (C) O príncipe precipitou-se ao som desse nome. Disse à embaixadora que visitava frequentamente a
Ásia Central e o Cáucaso, e vinha notando um acentuado aumento na pressão russa e concomitante
ansiedade entre os habitantes quanto aos eventos pós-agosto na Geórgia. Ele contou a seguinte história, que
lhe havia sido recentemente relatada pelo presidente do Azerbaijão, Aliyev. Aliyev tinha recebido uma carta
do presidente Medvedev informando que se o Azerbaijão apoiasse na ONU a designação da fome artificial
bolchevique na Ucrânia de “genocídio”, “então você pode se esquecer de ver novamente Nagorno-
Karabakh”. O príncipe Andrew acrescentou que todo presidente da região lhe afirmara ter recebido
semelhante “diretiva” de Medvedev, exceto Bakiyev. Ele perguntou à embaixadora se Bakiyev havia
recebido uma carta do tipo. Ela afirmou desconhecer a existência de tal carta.

11. (C) Em seguida, o duque afirmou que estava preocupado com o ressurgimento da Rússia na região.
Como exemplo, citou o recente acordo de troca de energia e água (telegrama separado), que sabia ter sido
“engendrado pela Rússia, que finalmente deu um murro na mesa e mandou que todos entrassem em fila”.
(NOTA: Interessante observar que o embaixador da Turquia na República do Quirguistão descreveu
recentemente sua análise do acordo à embaixadora usando linguagem incrivelmente semelhante. FIM DA
NOTA.)

12. (C) Mostrando que é participante do Grande Jogo com iguais oportunidades, Sua Alteza voltou ao
assunto da China. Relatou que quando questionou recentemente o presidente do Tajiquistão a respeito do
que ele achava da crescente influência chinesa na Ásia Central, o presidente respondeu “com palavras que
não usarei diante de senhoras”. Seus interlocutores disseram ao príncipe que, enquanto os russos costumam
ser vistos com simpatia por toda a região, os chineses não. Ele assentiu com a cabeça, dizendo que expansão
econômica e possivelmente outras formas de expansão na região eram “provavelmente inevitáveis, mas
uma ameaça”.

LINGUAGEM RUDE À MODA BRITÂNICA

13. (C) O brunch já durava quase o dobro do planejado, mas o príncipe parecia estar apenas começando.
Finalizado o assunto do Quirguistão, ele se voltou para a questão geral de promover os interesses britânicos
no exterior. Vociferou contra os investigadores anticorrupção britânicos, que cometeram a “idiotice” de
quase desfazer o acordo Al-Yamama com a Arábia Saudita. (NOTA: O duque fazia referência a uma
investigação, encerrada em seguida, de supostas propinas que um membro importante da casa real saudita
havia recebido em troca de um longo e lucrativo contrato com a BAE Systems para fornecer equipamento e
treinamento para as forças de segurança sauditas. FIM DA NOTA.) Os súditos de sua mãe sentados à mesa
expressaram estrondosa aprovação. Em seguida, ele falou “desses (malditos) repórteres, em especial os do
National Guardian, que enfiam o nariz em tudo” e (provavelmente) tornaram as coisas mais difíceis para os
homens de negócios britânicos fazerem negócios. A multidão aplaudiu. Ele encerrou com um comentário
mordaz: tripudiando sobre “nossos estúpidos governos britânico e americano, que fazem um planejamento
de no máximo dez anos enquanto os povos dessa parte do mundo planejam séculos”. Agora todos o
solicitavam no salão privado do brunch. Infelizmente para os súditos britânicos reunidos, seu amado
príncipe estava atrasado para o encontro com o primeiro-ministro. Desculpou-se por ter de se despedir. Na
saída, um deles confessou à embaixadora: “Que representante maravilhoso do povo britânico! Não
podíamos estar mais orgulhosos de nossa família real!”

COMENTÁRIO

14. (C) COMENTÁRIO: O príncipe Andrew dirigiu-se à embaixadora com respeito e cordialidade,
evidentemente valorizando os pontos de vista dela. Entretanto, reagia quase com um patriotismo nevrálgico
sempre que era feita qualquer comparação entre Estados Unidos e Reino Unido. Por exemplo, um
empresário britânico observou que, apesar do “esmagador poder da economia americana em comparação à
nossa”, a quantidade de investimento americano e britânico no Quirguistão era semelhante. O duque
interveio: “Não me surpreende. Os americanos não entendem de geografia. Nunca entenderam. No Reino
Unido, temos os melhores professores de geografia do mundo!” FIM DO COMENTÁRIO. GFOELLER
Mervyn King expressa dúvida quanto a David Cameron e
George Osborne Histórico de artigo
17-02-2010 EMBAIXADA DE LONDRES CONFIDENCIAL/NOFORN
ASSUNTO: GOVERNADOR DO BANCO DA INGLATERRA: PREOCUPAÇÃO COM A
RECUPERAÇÃO
Classificado pelo embaixador Louis B. Susman

1. (C/NF) Resumo. Controlar a dívida do Reino Unido será o maior desafio do partido que vencer a
esperada eleição geral de 6 de maio, disse o governador do Banco da Inglaterra, Mervyn King, ao
embaixador em reunião em 16 de fevereiro. Embora nenhum dos partidos tenha suficientemente detalhado
os planos para reduzir o déficit, King expressou grande preocupação com a falta de experiência do líder dos
Conservadores e afirmou que o líder do partido, David Cameron, e o chanceler-sombra, George Osborne,
não se deram conta das pressões de diferentes grupos que enfrentarão quando tentarem cortar custos. King
também demonstrou preocupação quanto à recuperação da economia global, argumentando que o
crescimento global em 2010 seria anêmico, e ainda havia a possibilidade de uma recessão profunda. Os
sérios problemas econômicos da Grécia desencadearão maior consolidação no poder dentro da zona do
euro, com Alemanha e França provavelmente impondo o direito de inspecionar se não exercer certo
controle sobre as contas do governo grego em troca de garantia implícita ou explícita, previu. O Reino
Unido tem participado indiretamente do debate em torno da Grécia e poderia ter menor influência na União
Europeia, enquanto Alemanha e França buscam maior coesão política na zona do euro após a crise grega,
afirmou.

Reino Unido sombrio e cenário econômico global 2. (C/NF) Nos próximos dez meses, o Reino Unido
enfrentará o desafio de adotar medidas de redução do déficit, controlando a inflação e lidando com o
desemprego crescente... Empresas cortarão postos de trabalho mais rapidamente este ano e eliminarão
muitos empregos de meio período, na medida em que os empregadores perceberem que a recuperação
econômica será um longo e exaustivo processo, disse King...

Conservadores – Não preparados

4. (C/NF) Os líderes conservadores David Cameron e George Osborne não compreendem totalmente as
pressões que enfrentarão quando tentarem reduzir custos, quando “centenas de funcionários do governo
tentarem justificar por que seus orçamentos não podem ser reduzidos”, afirmou King. Em reuniões recentes
com eles, pressionou para que lhe dessem detalhes de como planejam lidar com a dívida, mas recebeu
apenas respostas gerais. Tanto Cameron quanto Osborne têm a tendência de pensar nas questões apenas em
termos políticos, e em até que ponto elas podem afetar a capacidade de eleição do Tory. King também
expressou preocupação com o fato de que as funções duais de Osborne como chanceler-sombra do
Exchequer e coordenador geral de eleições do partido possam criar potenciais problemas no trato de
questões econômicas.

5. (C/NF) King também se disse preocupado com a falta de profundidade do partido Tory. Cameron e
Osborne têm poucos conselheiros, e pareciam resistentes a se aventurar fora de seu pequeno círculo. A
parceria Cameron/Osborne não é diferente da equipe Tony Blair/Gordon Brown dos primeiros anos do New
Labour, quando ambos trabalhavam bem juntos como parte do partido de oposição, mas, por várias razões,
fissuras surgiram quando os Trabalhistas assumiram o poder. Tensões semelhantes podem ocorrer se
Cameron e Osborne discordarem quanto ao modo de lidar com o déficit.

7. (C/NF) A mudança na zona do euro para maior coesão política pode trazer algumas desvantagens ao
Reino Unido, especulou King. Durante reunião da ECOFIN em 16 de fevereiro, os governos da zona do
euro educadamente escutaram o chanceler Darling quando este comentou sobre a situação na Grécia, mas
ele não foi convidado a participar das discussões internas, já que o Reino Unido não é parte da zona do
euro. Seria vital para o Reino Unido mostrar que o país tem algo a dizer e se engajar construtivamente na
União Europeia, caso de fato ocorra essa maior coesão política entre os governos da zona do euro,
comentou King.
Nicolas Sarkozy atemoriza seus conselheiros
Sexta-feira, 04 de dezembro 2009, 11h49
SEÇÃO CONFIDENCIAL 01 DE 04 PARIS 001638

NOFORN
Classificado pelo embaixador Charles Rivkin por razões 1.4(b) e (d).

1. (C/NF) Resumo. No meio de seu mandato de cinco anos, o presidente da França, Sarkozy, continua
sendo a força política dominante, praticamente sem questionamento, do país. Lento com as reformas
internas devido a interesses arraigados e à crise financeira mundial, Sarkozy concentra-se cada vez mais em
alavancar a influência da política externa francesa sobre o cenário mundial. Ambicioso e prático, o
presidente francês não hesita em romper com políticas tradicionais francesas e buscar novos parceiros,
desde Arábia Saudita e Síria até Índia e Brasil. Sua impaciência por resultados e desejo de agarrar a
iniciativa – com ou sem o apoio de parceiros internacionais e de seus próprios conselheiros – nos desafia a
voltar suas propostas impulsivas para direções construtivas, com o olhar voltado para resultados de longo
prazo. O próprio Sarkozy está firmemente convencido da necessidade de uma sólida parceria transatlântica,
e há muito deseja ser O principal parceiro dos Estados Unidos na Europa, seja nas questões de mudança
climática e de não proliferação ou do Irã e Oriente Médio. Nosso esforço em assegurar maior contribuição
francesa no Afeganistão oferece uma perspectiva interessante da centralização dos poderes da tomada de
decisões-chave do presidente francês e de como trabalhar melhor com Sarkozy como parceiro valoroso e
valioso. Com eventos importantes, como o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) pré-
agendado para a próxima primavera, e Sarkozy se preparando para conduzir a liderança da França no G-
8/G-20 em 2011, acreditamos poder melhor assegurar nossos interesses por meio de uma frente ampla, com
consultas continuas a nossos parceiros franceses (inclusive, e talvez particularmente, nos níveis mais altos),
de olho na promoção da forte posição política de Sarkozy, em seu desejo por ação e em sua disposição para
converter decisões difíceis em multiplicadores de força para nossos interesses de política externa. Fim do
resumo.

DRAMA INTERNO, MAS NENHUMA OPOSIÇÃO INTERNA

2. (C/NF) A posição nacional de Sarkozy praticamente não sofre questionamento, apesar de as pesquisas de
opinião indicarem índice de aprovação de apenas 39%. Seu partido de centro-direita, o UMP, controla as
duas casas do Parlamento, e os líderes da oposição passaram os últimos dois anos brigando entre si, em vez
de impor um sério desafio político ao presidente. A política de “abertura” de Sarkozy, nomeando políticos
da oposição para cargos importantes, tem contribuído para drenar a liderança da esquerda. O presidente do
FMI, Dominique Strauss-Kahn, e o ministro das Relações Exteriores, Kouchner, são dois exemplos dessa
bem-sucedida manobra política. Apesar da segurança política – ou talvez por causa dela – há certo
descontentamento interno a respeito do estilo impetuoso de Sarkozy dentro do próprio partido, revelado
pela recente tentativa de nomear o filho universitário de 23 anos, Jean Sarkozy, para um cargo na direção da
mais prestigiosa comissão de desenvolvimento empresarial de Paris. Brilhante estrategista político, o
presidente está levantando o perfil das eleições regionais de março de 2010 para assegurar sua base e roubar
votos da extrema direita, como parte de um estratagema para sua candidatura à reeleição em 2012. Embora
isso o torne mais sensível ao impacto político nacional em curto prazo de certas questões de política externa
(como o Afeganistão), seu prestígio nacional permanece fundamentalmente seguro, liberando-o para se
concentrar em sua meta de alavancar o poder francês na Europa e no globo.

SUCESSOS E DESAFIOS DA POLÍTICA EXTERNA

3. (C/NF) O resultado do domínio de Sarkozy no cenário político nacional é o fato de também ser um dos
líderes mais sólidos da Europa, sem nenhuma coalizão inoportuna ou eleições presidenciais iminentes para
distrai-lo ou atrapalhá-lo. Sarkozy reconhece que para ser ouvido no cenário mundial – seja em questões
estratégicas ou na crise financeira global – a voz da França é amplificada quando em sintonia com outras. O
presidente francês tem trabalhado arduamente para converter a complicada relação pessoal com a chanceler
alemã, Merkel, em um

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tandem bem coordenado que impulsione grande parte da política europeia. Do mesmo modo, vai se aliar
com frequência a Merkel e ao primeiro-ministro do Reino Unido, Brown, para adicionar a influência
necessária a mensagens em Bruxelas e Washington. A habilidade de Sarkozy em potencializar sua voz (e da
França) no cenário mundial por meio de parcerias estratégicas é uma de suas maiores forças. Uma de suas
maiores fraquezas, porém, pode ser a impaciência e a propensão a lançar propostas sem consultar
adequadamente outros grandes jogadores.

4. (C/NF) Os sucessos mais evidentes de Sarkozy são, em grande parte, no domínio das relações exteriores,
com suas maiores conquistas na Europa. Nos primeiros meses no poder, ele defendeu o Tratado de Lisboa,
ajudando a acabar com o impasse em torno da reforma das instituições da União Europeia. A isso se seguiu
a liderança da presidência rotativa da UE na segunda metade de 2008, que incluiu a criação da União para o
Mediterrâneo (UPM), o lançamento da operação antipirataria da UE e a negociação de um cessar-fogo após
a invasão russa da Geórgia. Tipicamente, não hesita em negligenciar sensibilidades europeias ao tentar
conservar a liderança em portfólios específicos, como quando duvidou da habilidade da República Tcheca
em continuar com a necessária liderança na UE após Praga ter assumido a presidência rotativa em janeiro
de 2009. Nas questões de segurança, Sarkozy é igualmente audaz. Autorizou pessoalmente o enviou de
mais tropas francesas para o Afeganistão na reunião de cúpula da OTAN em Bucareste, em 2008, e este ano
lutou para recolocar a França no comando militar integrado da OTAN, revertendo mais de quarenta anos de
política bipartidária francesa, apesar do forte ceticismo dentro de seu partido e da intensa oposição.

NOVOS PARCEIROS, NOVAS IDEIAS

5. (C/NF) Diferentemente de líderes franceses anteriores, Sarkozy também tem voltado esforços para
acordos bilaterais com países como Israel, Arábia Saudita e Síria, reconhecendo que são os principais
protagonistas no Oriente Médio, onde as ambições francesas têm sido frustradas. Oficiais franceses estão
convencidos de que a aproximação de Sarkozy com a Síria fez com que o presidente sírio, al-Assad, se
tornasse um parceiro mais produtivo na resolução de questões do Oriente Médio (embora tenham
dificuldade em dar exemplos concretos de mudança). Sarkozy reconhece plenamente o papel crescente de
potências emergentes como o Brasil (ele se reuniu com o presidente Lula nove vezes nos últimos dois anos)
e a Índia (cujas tropas convidou para estrelar no desfile militar de 14 de julho de 2009). Fez um bem-
sucedido lobby para a reunião do G-20 em Washington, cuja pauta era a crise financeira global, e apoia um
Conselho de Segurança da ONU expandido, conquistando com isso mais popularidade entre os países
emergentes. Os franceses também veem o Brasil como parceiro para as negociações sobre mudanças
climáticas e como comprador de equipamentos de defesa franceses – incluindo a primeira venda além-mar
em potencial de caças Rafale. Todos esses esforços de aproximação são resultantes de convicções genuínas,
bem como de um olhar na imagem da França no centro de uma rede global de líderes influentes.

6. (C/NF) Sarkozy tende a decepcionar quando, em sua impaciência por ação, acaba “passando à frente” de
outros atores-chave e dos próprios conselheiros. O presidente da França tem total convicção de que os
problemas diplomáticos mais resistentes só podem ser resolvidos quando os líderes se reúnem
pessoalmente, ignorando a papelada burocrática, e tomam decisões corajosas – daí sua predileção por
propostas de reuniões de cúpula. Não tem muita paciência para os passos gradativos da diplomacia e
quando se apega a uma ideia, não quer abrir mão dela. Impaciente de ver progresso no Oriente Médio,
procurou meios de tornar a França ator de peso, primeiramente por meio da criação da UPM e depois com a
defesa de uma cúpula, ou dentro da UPM ou agora por meio de outros parceiros (como os Estados Unidos,
o Quarteto etc.) para alcançar suas metas. Em outro exemplo, seu anúncio-surpresa em junho passado, em
apoio a um novo tratado sobre arquitetura de segurança europeia, pegou muitos de seus aliados e sua
própria equipe desprevenidos. Embora o debate tenha sido direcionado para o processo de Corfu na
Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) no presente, Sarkozy já se irrita com aquilo
que considera falta de progresso nessa questão estratégica, e pressiona sua equipe para que apresentem
novas propostas que abordem o impasse da CFE, melhorem as relações com a Rússia e ofereçam outras
ideias para superar iniciativas obstruídas.
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NINGUÉM DIZ “NÃO”

7. (C/NF) Sarkozy tem poucas restrições – políticas, pessoais ou ideológicas – que refreiem suas ambições
globais. Em âmbito nacional, recompensa líderes de partidos dispostos a adotar suas políticas e marginaliza
quaisquer oponentes com visão diferente. Vários ministros de gabinete “favorecidos” e bem-vistos no início
de sua administração – como Rama Yade e Rachida Dati – foram demovidos para cargos secundários após
terem discordado de Sarkozy. Por outro lado, o secretário de Estado para assuntos europeus, Pierre
Lellouche, não hesitou em retirar seu antigo apoio declarado à entrada da Turquia na União Europeia em
troca de seu posto atual. Enquanto o conselheiro diplomático (equivalente à NSA) Jean-David Levitte
continua sendo um ator-chave, com extenso background em diplomacia e personalidade calma, outros
conselheiros como o secretário-geral Claude Guéeant têm desempenhado papel cada vez mais público.
Apesar de receberem a atenção de Sarkozy em vários aspectos, poucos parecem exercer qualquer influência
significativa sobre o presidente ativista.

8. (C/NF) Os próprios conselheiros de Sarkozy também demonstram pouca independência e parecem ter
pouco efeito na hora de conter o hiperativo presidente, mesmo quando ele está mais inconstante. Contatos
no país nos informam a respeito do esforço desses conselheiros para não desagradá-lo nem provocar sua ira
– chegando ao ponto de recentemente desviar o trajeto do avião presidencial para que ele não visse a Torre
Eiffel iluminada com as cores turcas quando da visita do primeiro-ministro Erdogan (decisão tomada pela
prefeitura de Paris). Após dois anos no poder, muitos oficiais do governo estão saindo para assumir tarefas
prestigiosas como recompensa pelo empenho, levantando a questão de se um novo rosto estaria mais
disposto a apontar quando o imperador não estiver totalmente vestido.

TRABALHANDO JUNTOS NO
FUTURO
9. (C/NF) Quando eleito, em 2007, Sarkozy foi um dos primeiros líderes franceses a abraçar abertamente os
Estados Unidos, apesar de, na época, a administração americana ser bastante impopular na Europa. Isso se
deveu à convicção do presidente de que a França pode alcançar mais em cooperação com os Estados Unidos
do que contrário a eles. Quando o então senador e candidato à presidência Obama foi à França em julho de
2008, Sarkozy liberou sua agenda para se encontrar com ele e, além disso, quebrou as regras de seu próprio
protocolo, realizando uma coletiva de imprensa (privilégio normalmente reservado aos chefes de Estado em
visita). Sarkozy está disposto a ser o parceiro-chave dos Estados Unidos na Europa e espera ter contatos
regulares intensos com o presidente Obama (o que melhora o prestígio nacional de Sarkozy e, portanto,
eleva diretamente sua habilidade para tomar decisões difíceis). Jornalistas franceses têm apontado, com
cada vez mais frequência, que Sarkozy não visitou o presidente Obama na Casa Branca, e oficiais franceses
começam a expressar preocupação com a visível falta de visitas importantes e outras consultas regulares.
Jornalistas e oficiais do governo expressam a preocupação de que a França, e a Europa como um todo, pode
ter menos importância estratégica para os Estados Unidos hoje em dia (uma visão que, levando-se tudo em
conta, não aumenta os incentivos deles de trabalhar mais próximos de nós).

10. (C/NF) Quanto a questões estratégicas, Paris frequentemente se mostra disposta a apoiar posições norte-
americanas, mesmo diante da relutância europeia geral. Paris dá boas-vindas aos esforços dos Estados
Unidos de “rearranjar” as relações com a Rússia, e tem enfatizado o desenvolvimento de uma abordagem
comum com Washington em relação a Moscou. Em relação ao Irã, o presidente Sarkozy continua
pessoalmente engajado e se mostra disposto a trabalhar intensamente na Europa (tanto institucionalmente na
UE quanto por meio de esforços para persuadir países individuais a adotar medidas nacionais). Nas
questões de não proliferação e desarmamento, o GDF tem encorajado consultas regulares até a conferência
de revisão do TNP em 2010 e início das discussões de um tratado para o corte de material físsil (FMCT). O
mais importante para os oficiais franceses e para o próprio Sarkozy é sentir-se parte do processo de tomada
de decisão, e não que são convocados apenas para ratificar decisões já tomadas em Washington.

AFEGANISTÃO: UM CASO ILUSTRATIVO

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11. (C/NF) Nosso esforço em assegurar uma maior contribuição francesa nas questões do Afeganistão
assinala até que ponto o poder de decisão cabe ao presidente francês e como podemos trabalhar com ele
para alcançar os resultados desejados. No ano passado, a nosso pedido, Sarkozy foi contra todos os seus
conselheiros políticos e militares e enviou uma OMLT* para auxiliar as forças holandeses no Uruzgan, um
reforço importante de um aliado-chave. Foi também Sarkozy, sozinho, que tomou a decisão de enviar mais
setecentas tropas na cúpula de Bucareste, no ano passado – no momento do anúncio, nem mesmo os
membros-chefe tinham certeza de qual seria a decisão final. Neste ano, em intenso intercâmbio com todas
as principais figuras francesas, incluindo o ministro das Relações Exteriores, Kouchner, o equivalente da
ASN, Levitte, e o CHOD francês Georgelin, todos expressaram apoio à política norte-americana, mas
demonstraram dúvida quanto aos recursos adicionais financeiros ou militares da França, citando
frequentemente a afirmação anterior de Sarkozy de “nenhuma tropa adicional”.

12. (C/NF) Entretanto, em subsequente conversa direta com o presidente Obama, o presidente Sarkozy
abdicou da até então firme posição de “não” e deu um passo à frente mais rápido e proativo do que
havíamos previsto, abrindo “em tempo” a porta para reforços militares e prometendo maior assistência
financeira e treinamento. Embora nada tenha sido especificado, a aproximação pessoal ao presidente
Sarkozy fez a diferença entre obter uma resposta burocrática cautelosa e um compromisso genuíno por parte
de um aliado-chave quando precisamos. A imprensa francesa afirmou em suas matérias que Sarkozy foi o
primeiro líder estrangeiro na lista de visitas de Obama, aumentando assim a pressão sobre Sarkozy de reagir
favoravelmente.

COMENTÁRIO

13. (C/NF) Comentário: Como um dos líderes mais politicamente seguros no comando de um país com
significativa habilidade de contribuir mais com a resolução de problemas globais em vasto escopo, desde o
Afeganistão até a mudança climática, a estabilização econômica, o Irã e o processo de paz no Oriente
Médio, Sarkozy representa um ator-chave no cumprimento de nossas políticas compartilhadas. Nem sempre
estaremos de acordo; e as diferenças quanto a questões-chave (como a não proliferação e o desarmamento,
vistas como importantes para os interesses nacionais franceses) são avultantes. No entanto, por meio de
consulta aprimorada (incluindo – e talvez especialmente – aos níveis mais altos), acredito que podemos
lidar com essas diferenças, minimizar propostas inúteis e fomentar maior colaboração para melhor
alavancar os interesses franceses e cumprir os nossos. A França é um país de mentalidade parecida com a
nossa, uma importante economia e possui a segunda maior força diplomática e militar. Tocando a nota certa
em nossa relação bilateral, podemos potencializar as forças de Sarkozy, incluindo sua disposição de tomar
posição em assuntos nada populares e de ser um dos principais colaboradores das metas norte-americanas.
Também devemos reconhecer que Sarkozy tem um extraordinário grau de poder de tomada de decisão que
lhe é garantido como presidente da França. Sou da opinião de que será necessária periódica intervenção
presidencial para assegurar Sarkozy de nosso comprometimento como aliado e parceiro e, em muitos casos,
para fecharmos acordos. Sarkozy continuará sendo um poder com o qual contaremos na França e um
significativo condutor da Europa para o futuro próximo. É, sem dúvida, de nosso interesse trabalhar no
sentido de canalizar sua energia e iniciativas em uma forma construtiva de cooperação que aumente nossa
habilidade em solucionar em conjunto problemas globais. Fim do comentário. RIVKIN
Nota

* Operational Mentor and Liaison Team, equipe de transição militar. (N. do T.)
“A BP está roubando nosso petróleo”, diz o presidente do
Azerbaijão Terça-feira, 9 de outubro de 2007, 14h14
SEÇÃO CONFIDENCIAL 01 DE 03 BAKU 001227

SIPDIS
SIPDIS
VILNIUS POR FAVOR PASSE A MATT BRYZA EO 12958 DECL: 09/10/2017
TAGS ENRG, PREL, PGOV, RS”>RS, TU, UP, KZ, PL, GG, LH, TX, AJ
ASSUNTO: PRESIDENTE ALIYEV NA QUESTÃO DA ENERGIA ANTES DA CÚPULA EM
VILNIUS
REF: A. (A) BAKU 1224 B. (B) TBILISI 2498
Classificado pela embaixadora Anne E. Derse. Razão: 1.4 (B)(D) 1. (C) RESUMO: Em uma reunião de
uma hora com a embaixadora, no dia 8 de outubro, o presidente Aliyev esboçou, com frustração, os
problemas de energia atuais, antes da reunião de cúpula em Vilnius. A British Petroleum (BP) está
“roubando nosso petróleo”, afirmou, taxativo, tentando pressionar o Azerbaijão para postergar para 2010 o
advento de uma divisão de lucros de 80/20 marcada para o ano que vem, sob o Acordo de Partilha de
Produção (APP) da empresa Azeri Chirag Guneshli (ACG), ameaçando diminuir o fornecimento de
petróleo para governo do Azerbaijão, do campo da ACG, de 3bmc para 1,4bmc.* “Só a Geórgia sofrerá” se
a BP continuar nesse caminho, alertou, ressaltando o compromisso do Azerbaijão de ajudar a Geórgia com
petróleo este ano. Ele disse que o primeiro-ministro da Geórgia havia lhe prometido pedir a ajuda de
Washington com a BP. Disse que a BP tinha pedido tempo, até 19 de outubro, para retomar as discussões.
Se não for encontrada uma solução, o Azerbaijão “fará uma denúncia pública de que a BP está roubando
nosso petróleo”, Aliyev afirmou. De modo semelhante, disse ele, os 15% da fixação de preço netback da
Turquia para trânsito de petróleo é “inaceitável”, pois exigiria que o Azerbaijão expusesse à Turquia
contratos de vendas com clientes da Europa e permitisse à Turquia vender 15% do petróleo do Azerbaijão
em mercados europeus. Um acordo de trânsito não “é tão urgente para que aceitemos as condições
injustificadas da Turquia”.

2. (C) Continuação do resumo: O Azerbaijão tem um MDE* com a Grécia, logo dará início a discussões
com a Itália e não permitirá à Turquia “obstruir a parceria Azerbaijão-Europa”. Ele disse que o
Turcomenistão parece desejar que a opção transcaspiana seja implementada, mas “para se esconder da
Rússia”. O Azerbaijão tem mostrado “máxima construtividade” – oferecendo sua infraestrutura ao
Turcomenistão e prometendo servir meramente como país de trânsito –, mas o Azerbaijão não dará os
passos seguintes com o Turcomenistão – “Não podemos desejar isso mais do que eles”. O Azerbaijão não
apoia o oleoduto Odessa-Brody-Plotsk por razões políticas (“Ucrânia, Polônia e Geórgia são países
amigos”) e apresentará um plano concreto com os próximos passos em uma reunião com a Ucrânia, Polônia
e Geórgia, em Vilnius, cujo objetivo será tornar o projeto comercialmente viável. Aliyev pediu aos Estados
Unidos que tentem dar à Turquia a mensagem de não aceitação da proposta de 15% de preço bruto. Ele
continua apoiando a ideia de Nazarbayev de uma cúpula a três com Cazaquistão, Azerbaijão e
Turcomenistão como sinal positivo e uma maneira de fortalecer as relações entre os três países, mas não
quer dar início à reunião. Fim do resumo.

Petróleo para o inverno da Geórgia 3. (C) O presidente Aliyev abriu a discussão sobre energia, dizendo que
o Azerbaijão ajudará a Geórgia neste inverno, como já fez no passado. Disse ter confirmado isso ao
primeiro-ministro da Geórgia em visita a Baku em 27 de setembro. O GDA, porém, está tendo certas
dificuldades com a BP, disse. Como o GDA suspendeu as negociações sobre o Acordo de Partilha de
Produção (APP) e o desenvolvimento de Shah Deniz, a BP está “tentando exercer pressão política sobre
nós, cortando o fornecimento de petróleo para o Azerbaijão, de 3bmc para 1,4bmc”. Mas “só a Geórgia
sofrerá” com tal medida, porque o petróleo de Shah Deniz que receberá do Azerbaijão não será suficiente”.
“Se a BP reduzir o suprimento de petróleo para o Azerbaijão, a Geórgia receberá menos.” O primeiro-
ministro da Geórgia, disse Aliyev, havia lhe dito estar ciente do perigo, e acrescentou que falaria com
Washington para “pedir ajuda” (Ver Ref. A para informações sobre as negociações entre Azerbaijão e BP).

4. (C) Aliyev continuou, afirmando que “essas coisas estão interligadas. Se a BP nos apoiar e nos ajudar,
não haverá problemas com o abastecimento da Geórgia”. Mas a situação com a BP é “desagradável – eles
estão nos ludibriando na questão da divisão de lucros do ADP, de acordo com nossos cálculos”. O GDA crê
que a divisão deveria ter sido alterada no segundo trimestre deste ano. “Eles estão roubando nosso petróleo
– estão unilateralmente mudando a fórmula da taxa de retorno (ROR – rate of return) para que a divisão de
lucros aconteça em 2010. A SOCAR* conversou com Bill Schrader (diretor da BP no Azerbaijão). A BP
pediu um tempo, até 19 de outubro, para retomar as discussões.”

BAKU 00001227 002 DE 003

(Comentário: Em 9 de outubro, a BP no Azerbaijão não tinha notícia de visita do CEO da empresa,


conforme Ref. B. Fim do comentário.) Se não houver uma resposta boa, “faremos uma denúncia pública de
que a BP está roubando nosso petróleo... petróleo que pertence ao Azerbaijão, porque ela quer que a divisão
de lucros de 80/20, que deveria ser feita no ano que vem, seja postergada para 2010”. A situação na
Geórgia, repetiu Aliyev, “está ligada a isso”.

Acordo de trânsito com a Turquia


5. (C) Aliyev disse que o Azerbaijão rejeita a proposta turca de 15% do preço bruto. A fórmula turca
exigiria que o Azerbaijão revelasse ao governo da Turquia seus acordos comerciais com a Grécia, com a
Itália e com outros países europeus – “qualquer lugar para onde vai nosso petróleo”. A proposta de preço
netback “não é aceitável – não existe em nenhum outro contrato de trânsito. Perderíamos dinheiro, e a
Turquia poderia vender 15% de nosso petróleo em nosso mercado. Isso não é justo. Pagaremos uma tarifa
de trânsito acordada. Queremos que isso seja feito com base na melhor prática internacional. Nossa posição
com a Turquia é bastante firme. Se eles obstruirem um acordo, serão os responsáveis. O ministro sempre
diz que a Turquia fará o necessário, mas nada faz. Não aceitaremos pressão”.

6. (C) Aliyev apontou para o fato de que são os consumidores turcos e europeus que precisam do acordo de
trânsito. “Não é tão urgente para nós a ponto de precisarmos concordar com condições injustificadas da
Turquia.” O Azerbaijão conta com mercados adequados para seu petróleo na Geórgia e na Turquia,
observou. Aliyev pediu aos Estados Unidos, “entreguem esta mensagem à Turquia (se possível). A Turquia
quer ter tudo”. A Turquia não entende que o Azerbaijão assinou um memorando de entendimento com a
Grécia e em breve dará início às negociações com a Itália. “A Turquia não pode barrar a parceria
Azerbaijão-Europa.” Aliyev disse ser boa a proposta do ministro das Finanças francês, Samir Sharifov, de
assistência técnica da USTDA* para reavaliar as melhores práticas internacionais em acordos de trânsito. O
Azerbaijão deseja que o acordo com a Turquia seja baseado na melhor prática internacional, e não que
“algo novo seja inventado”. Ele encorajou os Estados Unidos a considerar a assistência técnica.

Turcomenistão e o gasoduto transcaspiano 7. (C) Aliyev referiu-se à declaração do presidente do


Turcomenistão, Berdimuhamedov, segundo a qual ele “venderia petróleo à Europa na fronteira do
Turcomenistão”, acrescentando, no entanto, que ele deixou de especificar a qual fronteira estava se
referindo – com a Rússia, o Irã, ou o mar Cáspio? Aliyev disse acreditar que o Turcomenistão deseja que a
opção transcaspiana seja implementada, mas “quer esconder isso da Rússia”. O Azerbaijão, ele disse,
demonstrou “máxima ação construtiva – oferecemos toda a nossa infraestrutura, afirmamos que seríamos
apenas um país de trânsito, não como a Turquia está tentando fazer. Mas não ficaremos mais interessados
do que eles. Não darei início a um encontro com Berdimuhamedov, não é certo fazer isso”. O Azerbaijão,
repetiu, “não iniciará negociações com o Turcomenistão, porque não precisamos do petróleo deles – não
podemos dar a impressão de precisar dela (a opção transcaspiana) mais do que eles”.

Odessa-Brody-Plotsk

8. (C) O Azerbaijão finalizou seu plano energético, disse Aliyev. O Azerbaijão apoiou a reunião de cúpula
de Cracóvia e a proposta do oleoduto Odessa-Brody-Plotsk, “embora o projeto seja visto como antirrusso”,
porque a Ucrânia, a Polônia e a Geórgia são aliadas do Azerbaijão. Aliyev disse que o ponto-chave é que o
oleoduto Odessa-Brody-Plotsk seja “comercialmente viável”. Por essa razão ele pediu ao ministro da
Energia, Natiqu Aliyev, que preparasse uma proposta concreta a ser discutida em Vilnius, que incluirá a
participação do Azerbaijão como acionista no oleoduto Sarmatia e o lançamento de um estudo de
viabilidade. Além disso, será criada uma joint trade company para o petróleo do mar Negro. Com Supsa e
Novorossiysk há uma grande quantidade de petróleo disponível no mar Negro, disse Aliyev. O ponto-chave,
repetiu, é tornar o projeto Odessa-Brody-Plotsk comercialmente viável. O Azerbaijão o apoia
economicamente, “mais para demonstrar apoio político do que por uma necessidade urgente”.

BAKU 00001227 003 DE 003

Reunião de cúpula de mão tripla

9. (C) Aliyev disse que o primeiro-ministro da Lituânia, Adamkus, o informara no mês passado em Vilnius
que o Cazaquistão não participaria da reunião de cúpula de Vilnius. Ele disse, mais uma vez com certa
frustração, que a ideia de uma reunião de cúpula de mão tripla entre Azerbaijão, Turcomenistão e
Cazaquistão foi ideia de Nazarbayev, mas até onde ele sabia não houve progresso para levar a proposta
adiante. Com a implicação clara de que o Cazaquistão deveria levar a ideia adiante, Aliyev disse ainda
acreditar que essa reunião trilateral “seria um bom sinal, fortalecendo nossas relações, e que poderia ser
algo positivo”.

10. (C) Comentário: Aliyev estava claramente frustrado e atipicamente impetuoso ao falar sobre a Turquia,
o Turcomenistão e especialmente a BP, e desapontado com o que encara como um equívoco do
Cazaquistão. Durante a conversa, ele repetiu que o interesse do Azerbaijão em vender petróleo para a
Europa é estratégico, movido pelo desejo do país de aprofundar a parceria com a Europa. Salientou
também, em clara referência à Rússia, que o Azerbaijão “não pode ser visto” como se ocupasse a liderança
da região no que se refere às questões ligadas ao petróleo. É importante tranquilizar Aliyev em Vilnius a
respeito do compromisso do governo dos Estados Unidos no que se refere ao Corredor do Sul e ao trabalho
conjunto com o Azerbaijão para sua realização, e encorajá-lo a encontrar um caminho produtivo daqui em
diante, em termos práticos, com a Turquia, o Turcomenistão e a BP. Um telegrama a parte dará mais
informações sobre a BP e a SOCAR a respeito da situação das negociações entre governo do Azerbaijão-
AIOC* e a capacidade do país de fornecer petróleo à Geórgia no próximo inverno.
Fim do comentário.
Notas

* Bilhões por metros cúbicos. (N. do T.)


* Memorando de entendimento. (N. do. T.)
* Companhia Pública de Petróleo do Azerbaijão (State Oil Company of Azerbaijan Republic – SOCAR).
(N. do T.)
* Agência Norte-Americana para o Comércio e Desenvolvimento (em inglês: United States Trade and
Development Agency – USTDA). (N. do T.)
* Companhia Operacional Internacional do Azerbaijão (Azerbaijan International Operating Company). (N.
do. T.)
Temores quanto à segurança das armas nucleares do
Paquistão
Terça-feira, 22 de setembro de 2009, 14h13
SEÇÃO SECRETA 01 DE 05 LONDRES 002198

NOFORN
Classificado pelo conselheiro político Robin Quinville pelas razões 1.4 (b) e (d).

1. (S/NF) Resumo: A subsecretária Tauscher participou de reuniões em Londres, entre 2 e 4 de setembro, à


margem da Conferência P5 sobre a criação de medidas de segurança para o desarmamento nuclear, com o
ministro das Relações Exteriores David Miliband, Simon McDonald, chefe de gabinete da Secretaria de
Política Externa e de Defesa, Mariot Leslie, diretora-geral, Defesa e Inteligência, Ministério dos Negócios
Estrangeiros e do Commonwealth (FCO), e Jon Day, diretor-geral de políticas de segurança do Ministério
da Defesa. Os interlocutores do Reino Unido expressaram amplo apoio aos objetivos do governo dos
Estados Unidos no que se refere à não proliferação e ao desarmamento, e destacaram a necessidade de
definir a coordenação da P3 e da P5, preparando o caminho para a reunião de cúpula dos chefes de governo
do Conselho de Segurança das Nações Unidas e da Conferência de Reavaliação (RevCon) do Tratado de
Não Proliferação Nuclear (TNP). Também previram que a política de controle de armamento do Reino
Unido não seria afetada nem pelas eleições do próximo ano, nem pela futura Reavaliação de Defesa
Estratégica. McDonald citou a necessidade de endurecer com o Irã se este não responder à proposta até o
fim de setembro. Tauscher expressou o contínuo compromisso com a ratificação do Tratado do Controle do
Comércio de Armas e afirmou estar trabalhando junto ao Senado para resolver questões relacionadas à
implementação. Fim do resumo.

Acolhendo a liderança dos Estados Unidos

2. (S/NF) Em visita a Londres para participar da Conferência P5 sobre a criação de medidas de segurança
para o desarmamento nuclear, em 3 e 4 de setembro, a subscretária teve reuniões particulares com o
ministro das Relações Exteriores David Miliband, Simon McDonald, chefe de gabinete da Secretaria de
Política Externa e de Defesa, Mariot Leslie, diretora-geral, Defesa e Inteligência, Ministério dos Negócios
Estrangeiros e do Commonwealth (FCO), e Jon Day, diretor-geral de políticas de segurança do Ministério
da Defesa. Os interlocutores afirmaram que o Reino Unido aceita a liderança dos Estados Unidos no
controle da não proliferação, desarmamento e controle de armas. O ministro das Relações Exteriores
expressou apreço pelo discurso do presidente Obama em Praga, observando que o processo para se chegar a
“um mundo próximo a zero no que se refere a armas nucleares não se trata de uma linha reta”, mas é longo
e complexo. McDonald disse que, nos últimos quarenta anos, os Estados com armas nucleares têm
menosprezado a obrigação de espalhar o poder nuclear civil e o desarmamento; a liderança do presidente
Obama representa uma oportunidade de mudar essa dinâmica. A DG Leslie observou que os tomadores de
decisão do Reino Unido estão “inflamados pelo modo como o presidente assumiu para si a agenda da não
proliferação”. O primeiro-ministro Brown quer “renovar e reformular” o Tratado de Não Proliferação
(TNP), disse ela. O DG Day disse que estava “muito feliz” pelo fato de os Estados Unidos terem
“reassumido a liderança” na não proliferação, no controle de armas e no desarmamento.

Mantendo unidade em P3 e P5

3. (S/NF) Leslie enfatizou que a posição do Reino Unido é “realmente muito semelhante à sua
administração em praticamente tudo”. A meta do Reino Unido é que a P5 trabalhe bem em conjunto, mas
que não deveríamos “assustar os cavalos”, o que significa “não assustar os franceses” e “manter os chineses
e russos a bordo”. Ela reconheceu ser “difícil reunir todos” para a Conferência P5 de 3 e 4 de setembro, mas
expressou esperança de que isso ajudaria a consolidar a unidade da P5 para a Conferência de Reavaliação
do TNP. Day reconheceu que a Conferência P5 não era um meio com o objetivo de fazer progresso “aos
trancos e barrancos”. Ele enfatizou que “o envolvimento é imprescindível” e ajudaria a consolidar a unidade
da P5.

4. (S/NF) Precisamos de um sinal forte, mas unânime, do Conselho de Segurança da ONU (CSONU) e dos
chefes de Estado da reunião de cúpula do CSONU, salientou Simon McDonald, observando que o primeiro
esboço de resolução foi uma decepção. Os interlocutores do Reino Unido concordaram a respeito da
importância da unidade da P5 na reunião, assim como a importância de definir a coordenação da P3 e da P5,
preparando o caminho para a reunião de cúpula e a RevCon do TNP. McDonald também observou que a
Líbia estava no CSONU e que a P5 deveria fazer uma observação positiva a respeito do fato de a Líbia ter
feito uma “mudança estratégica” na proliferação nuclear.

A França e a unidade da P3

5. (S/NF) A DG Leslie disse que o Reino Unido havia realizado “um trabalho árduo e expressado
compromisso com o desarmamento... e que os franceses estão se sentindo desconfortáveis com isso”. Leslie
disse que o Reino Unido “tem bom relacionamento” com os franceses, mas que eles estão “excessivamente
preocupados com o que veem como um desarmamento unilateral do Reino Unido”. Ela disse que as
discussões na P3 vão ajudar a manter a unidade da P3. “Precisamos tranquilizar a França”, afirmou. Leslie
caracterizou as relações mais próximas entre Estados Unidos e França como “extremamente saudáveis”.
6. (S/NF) A subsecretária, Leslie, e Day concordaram em manter reuniões regulares da P3, começando em
outubro, para ajudar a fortalecer a unidade da P3. Durante encontros bilaterais separados com Tauscher, os
interlocutores franceses também concordaram com a importância de consultas regulares à P3.

Defesa contra mísseis e a reavaliação da postura nuclear

7. (S/NF) A subsecretária Tauscher descreveu a reavaliação da Defesa contra mísseis, em processo em


Washington, com ênfase em opor-se à ameaça iraniana de mísseis contra a Europa com tecnologia
comprovada. Também descreveu a Reavaliação da Postura Nuclear (RPN) que substituiria a RPN 2002 e
abordaria questões como impedimento estendido e garantias de segurança. Seus interlocutores do Reino
Unido expressaram considerável interesse em ambas as reavaliações, e ela deixou claro que os Estados
Unidos consultarão de maneira bilateral e à OTAN assim que as reavaliações progredirem a tal ponto.

China, Paquistão

16. (S/NF) Leslie assinalou a “verdade inconveniente” de que “a China está construindo seu arsenal
nuclear”. Evocou uma corrida armamentista no Pacífico diante do programa nuclear indiano. Não obstante,
Leslie disse que estava otimista em relação ao comprometimento da China com a cooperação multilateral, e
sugeriu que os Estados Unidos e o Reino Unido impulsionem a China a progredir até que “digam ‘pare’”.
Ela observou que há um ano os chineses “de fato” afirmaram que se os Estados Unidos ratificassem o
CTBT,* a China faria o mesmo. Além do mais, a China “criticou” o Paquistão na Conferência para o
Desarmamento (CD), o que é um “bom sinal”. Tauscher encorajou a ação da P5 em fazer com que o
Paquistão pare de impedir o progresso da CD do Tratado de Redução de Materiais Físseis (TRMF).

17. (S/NF) O Reino Unido tem profundas preocupações acerca da segurança das armas nucleares do
Paquistão, e a China poderia desempenhar importante papel na estabilização do Paquistão, disse Leslie. O
Paquistão aceitou ajuda para a segurança nuclear, mas sob a bandeira da Agência Internacional de Energia
Atômica (AIEA) (apesar dos técnicos britânicos). Os paquistaneses temem que os Estados Unidos “venham
mais tarde e tomem suas armas”, disse Leslie.

18. (S/NF) Day expressou apoio pelo desenvolvimento de relação semelhante a uma “guerra fria” entre
Índia e Paquistão, o que “introduziria grau de certeza” entre os dois países em suas negociações. Ele
observou que informações recentes indicam que o Paquistão “não está caminhando em boa direção”. O
Paquistão vê o debate sobre o Afeganistão nos Estados Unidos e no Reino Unido como demonstração de
que os aliados não têm intenção de manter seus compromissos ali. Os paquistaneses também creem que
recentes sucessos contra extremistas no vale do Swat validam a convicção de que podem lidar com seus
problemas internos sem mudar a abordagem em relação à Índia. Day perguntou se os Estados Unidos
seriam “obrigados” a cortar relação com o Paquistão se os militares assumissem o controle novamente. Ele
disse que, da última vez que os militares assumiram o poder, o Reino Unido manteve vínculos militares.
Day também perguntou sobre perspectiva americana quanto a Nawaz Sharif, que descreveu como
“potencialmente menos mercenário” que outros líderes paquistaneses.

SUSMAN
Nota

* Tratado para a Proibição Completa de Ensaios Nucleares (Comprehensive Nuclear -Test-Ban Treaty –
CTBT). (N. do T.)
David Miliband ofereceu “raros momentos de poder de
estrela” para o partido sem Blair
Segunda-feira, 3 de março de 2008, 17h06
CONFIDENCIAL LONDRES 000639

SIPDIS
SIPDIS

NOFORN
Classificado pelo embaixador Robert Tuttle, razões 1.4 b, d

1. (C/NF) Resumo: A conferência de primavera do Partido Trabalhista, realizada de 27 de fevereiro a 2 de


março em Birmingham, foi caracterizada pela baixa energia, poucos presentes e pela falta de uma liderança
carismática, apesar de servir como pontapé inicial para a campanha do partido para as eleições locais de 1º
de maio na Inglaterra e no País de Gales. Em seu discurso de abertura em 2 de março, o primeiro-ministro
Brown enfatizou a necessidade de se preparar para a economia do futuro e levou em conta os custos de
oportunidade para a Grã-Bretanha de pobreza, educação abaixo do padrão e assistência médica deficitária,
prometendo que seu governo “resoluto e progressivo” continuaria a combater tais flagelos. A visão de
Brown não gerou oposição, mas tampouco causou entusiasmo em uma conferência pré-campanha que
contava com poucos frequentadores e, aparentemente, finanças restritas. Visando basicamente ativistas
locais do partido, a conferência enfocou o recrutamento de mulheres candidatas, melhor comunicação com
comunidades minoritárias e maior desempenho do Partido Trabalhista no governo local. A mídia se
concentrou na ironia do fato de a secretária de Comunidades e Governo Local Hazel Blears enaltecer o
prefeito Ken Livingstone por “revitalizar Londres” antes da corrida para a prefeitura em 1º de maio, sem se
lembrar de que, apenas ointo anos atrás, os Trabalhistas expulsaram Livingstone do partido por este ter
insistido em concorrer como independente. O ministro das Relações Exteriores David Miliband ofereceu
raros momentos de poder de estrela a um partido que parece sentir falta do carisma de Tony Blair. Fim do
resumo.
Brown: “Usar a oportunidade de poder”

2. (C/NF) A conferência de primavera, entre 27 de fevereiro e 2 de março, do Partido Trabalhista, marcada


como evento inaugural para as eleições locais em 1º de maio, teve como destaque o discurso de abertura do
primeiro-ministro Gordon Brown com a intenção de inflamar a crença no partido. Eloquente na articulação
de sua visão do propósito do partido o discurso não conseguiu arrancar do público mais do que aplausos de
polidez. Dando início à sua fala com o reconhecimento de que os últimos meses foram difíceis, Brown falou
da série de desafios que o governo enfrentou logo que assumiu o cargo: enchentes, febre aftosa, gripe
aviária e o encolhimento do crédito global. Ele não mencionou a decisão de não ir para as eleições
antecipadas que precipitaram a queda dos números do Partido Trabalhista (ver ref.). Em vez disso, Brown
falou da economia global do futuro, na qual trabalhadores qualificados e empresários teriam retornos
valiosos, e declarou que os padrões superiores de educação forneceriam o necessário aos britânicos para
obterem sucesso na economia globalizada do futuro. Enfatizou sua visão segundo a qual a pobreza,
particularmente entre crianças, era uma “cicatriz na Grã-Bretanha”, e expôs em gráficos os custos em
habilidade e empreendimentos à Grã-Bretanha quando o potencial é negligenciado por causa de saúde
debilitada e educação fraca. Um governo trabalhista “resoluto e progressivo” (Brown cometeu um ato falho
e disse “poderoso e progressivo”, mas se corrigiu) tinha de usar a “oportunidade de poder” para levar o
“poder da oportunidade” àqueles indivíduos da sociedade britânica em necessidade.

3. (SBU) Embora o discurso de Brown tenha abordado basicamente questões nacionais, ele estendeu sua
análise dos custos da pobreza para o restante do mundo, observando que 72 milhões de crianças não têm
acesso à escola e prometendo eliminar doenças como difteria, tuberculose e malária. Brown solicitou uma
extensão das sanções contra o Sudão e a libertação da dissidente birmanesa Aung San Suu Kyi.

4. (SBU) Em uma sessão de perguntas e respostas após as observações de Brown, muitas das perguntas do
público eram sobre a administração do governo trabalhista nas questões do padrão escolar e da assistência
médica – perguntas feijão com arroz para membros do Partido Trabalhista em nível local. (Comentário da
embaixada: A discussão sobre questões educacionais foi muito detalhada – um parlamentar de Birmingham
disse a Poloff que “o Partido Trabalhista é composto de professores”, explicando que suas preocupações de
classe tendem a dominar os eventos do partido. Fim do comentário.) Curiosamente, relatos da mídia em
torno de uma possível e iminente rebelião contra o governo por causa da legislação de segurança para
estender o período de detenção legal de 28 para 42 dias, as questões do terrorismo, poder policial e
liberdades civis não foram citados. Enquanto Brown atacou o partido Conservador pelos planos de cortes de
imposto e oposição ao plano de reforma da UE do Tratado de Lisboa, pouco se referiu às futuras batalhas
por conselhos locais que o partido Liberal Democrata apresenta como grande ameaça tanto aos Trabalhistas
quanto aos Conservadores. Um membro dos “estudantes do Partido Trabalhista” de Cardiff se levantou para
dizer que tinha 8 anos quando o Partido Trabalhista entrou no poder, e perguntou o que deveria dizer às
pessoas agora a respeito do que faz do partido uma força radical. Brown reiterou seu apelo para acabar com
a pobreza e eliminar a doença em nível global. Um palestino que perguntou o que Brown faria para acabar
com o conflito na Palestina provocou rara explosão de aplauso; Brown respondeu mencionando uma já
marcada conferência de investimentos.

As preocupações financeiras dos Trabalhistas

5. (C/NF) A falta de energia que pairava sobre o discurso de abertura era evidente também em outros
lugares, por causa dos poucos presentes ou das preocupações financeiras do partido. Membros do Partido
Trabalhista reclamaram que os organizadores da conferência escolheram um fim de semana ruim – os
membros do País de Gales não compareceram por causa do feriado de St. David, em 1º de março (St. David
é o padroeiro do País de Gales, e a comemoração de seu dia é um dever nacional). E o Dia das Mães na
Grã-Bretanha, em 2 de março, deixou muitos possíveis frequentadores na posição de ter de escolher entre o
Partido Trabalhista e sua “mãe”. A julgar pela frequência, as mães ganharam em muitos casos. Os
trabalhadores do Partido, que têm vivido com pouco dinheiro há vários anos, eram raros. Aqueles que
compareceram não estavam particularmente motivados: quando Poloff pediu uma cópia do discurso do
primeiro-ministro, um trabalhador do partido recomendou a versão na internet, que várias horas depois
ainda não havia sido atualizada a ponto de refletir extensas mudanças no conteúdo. Alguns membros,
cientes das dificuldades financeiras do partido, perguntaram por que tanto dinheiro havia sido gasto na
corrida para vice-presidente do Partido Trabalhista em 2007, observando que o dinheiro levantado pelos
candidatos teria sido mais bem aproveitado para apoiar as campanhas locais do partido este ano.

Recrutamento feminino

6. (C) Organizada em torno de três temas-chave, a conferência enfocou o recrutamento de mulheres


candidatas, melhor comunicação com as minorias e maior desempenho do Partido Trabalhista no governo
local. As três áreas foram selecionadas com a visão de se preparar para as eleições locais, mas parecia haver
discordância entre o estado desses esforços e a iminência das eleições de maio. Na questão da delegação de
poder às mulheres, a parlamentar Barbara Follett deu conselhos sobre como uma mulher pode efetivamente
se apresentar como candidata a um público de cerca de 25 mulheres que incluía uma possível, porém não
ativa, candidata. (Comentário da embaixada: Embora o Partido Trabalhista congratule a si próprio por ter
mais mulheres no Parlamento que os Tories, o processo de recrutamento/delegação na conferência parecia
estar ainda em estágios iniciais. Fim do comentário.) Organizações locais do partido e sindicatos, segundo
outros porta-vozes das questões da mulher, são os lugares em que as mulheres têm de subir sozinhas, sem
muita ajuda do aparato central do partido.

Buscando eleitores muçulmanos

7. (C) Dez pessoas (incluindo Poloff) compareceram a um evento com o objetivo de melhorar o alcance do
Partido Trabalhista em comunidades muçulmanas (Comentário da embaixada: Devido à perda de apoio dos
muçulmanos ao Partido Trabalhista, após a Guerra do Iraque, o baixo comparecimento de ativistas do
partido no evento foi inexplicável. Fim do comentário). O conselheiro de Manchester e ex-prefeito Afzal
Khan fez recomendações aos candidatos do Partido Trabalhista que buscam votos nas comunidades
muçulmanas, incluindo: usem “As Salam Aleikum” como saudação; não aperte a mão das mulheres;
participem de programas de rádio muçulmanos; envie cartões nos feriados religiosos muçulmanos; e
distribuam panfletos do lado de fora das mesquitas às sextas-feiras. O MPE* Gary Titley, de Bolton,
também deu um conselho importante aos candidatos, que evitem presumir que todos os muçulmanos têm a
mesma opinião e que é fundamental manter elos com organizações de comunidades de base. Um
muçulmano britânico de Nottingham descreveu o que considerava supressão de grande contingente
muçulmano em seu Partido Trabalhista local; Khan respondeu que havia um processo democrático e que os
muçulmanos em Nottingham deveriam usá-lo.

8. (SBU) A secretária de Comunidades e Governo Local Hazel Blears ressaltou as realizações do Partido
Trabalhista no governo local. O centro revitalizado de Birmingham, incluindo o centro onde ocorreu o
evento, foi apontado como uma conquista do Partido Trabalhista, assim como a “revitalização de Londres”
na administração do prefeito Ken Livingstone. Em grupos isolados, no entanto, houve uma sessão
desagradável de “efetiva oposição”. Os membros do Partido Trabalhista reclamaram que para os
conselheiros do partido – que estão na linha de frente, por assim dizer, enfrentando os conselhos dominados
pelos Tories e Liberais Democratas – há pouco ou nenhum apoio do partido tanto em termos de política
substantiva quanto de assistência pessoal.

O poder de estrela de Miliband

9. (C/NF) Por outro lado, em uma conferência-chave com poucas pessoas, a enorme excitação sempre que o
ministro das Relações Exteriores David Miliband aparecia era evidente. O evento do Partido Trabalhista do
Parlamento europeu, que aconteceu na hora do almoço, falou sobre o Tratado de Lisboa e teve Miliband
como palestrante, ficou lotado. Após a apresentação ele teve uma sessão com mais de cem estudantes do
Partido Trabalhista que claramente o idolatraram. Tropeçando em uma sessão que mais tarde foi revelada
como “particular”, Poloff ouviu Miliband esboçar seus critérios para um “país bem-sucedido” no futuro:
abertura, poder para toda a população e elos globais. Há uma distinção cada vez menor entre políticas
externas e internas, disse aos estudantes, e o desafio é mobilizar as pessoas para que mudem. As lições das
décadas de 80 e 90 foram que “coalizões arco-íris não funcionam”; para mobilizar “forças dinâmicas”, os
líderes políticos devem desenvolver uma narrativa unificadora de ideologia. A esse respeito, o Partido
Trabalhista deve decidir se é o partido da classe trabalhadora ou da classe média. Respondendo a perguntas
sobre política externa, Miliband apoiou a reforma das Nações Unidas e observou que a “questão real” na
ONU é seu fracasso em cumprir sua “responsabilidade de proteger”, porque a maioria das ameaças aos civis
vem de seus próprios governos e não de invasões estrangeiras. Ele defendeu a participação do Reino Unido
nos jogos olímpicos da China como oportunidade de jogar uma luz sobre a “verdadeira China, não obstante
seus defeitos e imperfeições”. Ele enfatizou que o Irã representa perigo não apenas no que se refere às
armas nucleares, mas nas próprias práticas internas de direitos humanos. Ele observou, por exemplo, que o
Irã era o país com maior índice per capita de pena de morte no mundo.

Comentário

10. (C/NF) Os membros do Partido Trabalhista cada vez mais perguntam a si mesmos o que levantou um
estudante de Cardiff: O que torna o Partido Trabalhista “radical” após onze anos no governo? Para um
partido que ainda contém grande elemento que se sente mais confortável na oposição, esse
autoquestionamento contribui para um sentimento de falta de direcionamento pós-Blair. Ainda que Blair
tenha se tornado impopular, ele era o sol em torno do qual o partido orbitava, e seus discursos,
independentemente do conteúdo, provocavam reação emocional. A visão sólida e louvável de Brown não
provoca oposição, mas também não causa grande entusiasmo. A dois meses das eleições locais, um Partido
Trabalhista limitado em termos financeiros dificilmente parece ser capaz de mobilizar-se para uma
campanha que não apenas determinará o destino do Partido Trabalhista em nível local, mas que também
poderá afetar o próprio mandato de Gordon Brown como líder. A conferência com baixo índice de
comparecimento não teve o furor que uma forte representação parlamentar do partido teria provocado e, não
obstante o poder de estrela de Miliband, nenhum possível desafiante de Brown surgiu. Mas a ironia no fato
de o partido manter Ken Livingstone como modelo de conquista do Partido Trabalhista, apenas oito meses
depois de sua expulsão por concorrer à prefeitura de Londres como candidato independente, não passou
despercebido na mídia do Reino Unido.
Nota

* MEP – Membro do Parlamento Europeu. (N. do T.)


Afirmam que o prefeito de Moscou lidera o sistema
corrupto
Sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010, 15h39
SEÇÃO SECRETA 01 DE 03 MOSCOU 000317

SIPDIS
EO 12958 DECL: 11/02/2020
TAGS PGOV, PREL, PHUM, PINR, ECON, KDEM, KCOR, RS”>RS
ASSUNTO: O DILEMA LUZHKOV
Classificado pelo embaixador John R. Beyrle. Razão: 1.4 (b), (d).

1. (C) Resumo: O prefeito de Moscou Yuriy Luzhkov permanece um membro leal do Partido Rússia Unida,
com reputação de garantir que a cidade tenha os recursos necessários para seu bom funcionamento. Cada
vez mais surgem questões acerca das ligações de Luzhkov com organizações criminosas e o impacto
causado no governo por elas. Luzhkov se mantém em posição firme devido a seu mérito como consistente
captador de votos para o partido governante. Infelizmente, o mundo obscuro de práticas de negócios
corruptas sob a administração Luzhkov continua em Moscou, com funcionários corruptos exigindo
subornos de empresas que tentam funcionar na cidade. Fim do resumo.

Visão geral: o dilema Luzhkov do Kremlin

2. (C) O prefeito de Moscou Yuriy Luzhkov é a personificação de um dilema político para o Kremlin.
Membro leal e fundador do Rússia Unida, além de confiável captador de votos e influência para o partido
político e seu líder, o primeiro-ministro Putin, as ligações de Luzhkov com a comunidade empresarial de
Moscou – a grande e legítima, assim como a marginal e corrupta – permitiram a ele pedir apoio sempre que
necessário para obter votos para o Rússia Unidaou garantir que a cidade tenha os recursos fundamentais
para seu bom funcionamento. A reputação nacional de Luzhkov como homem que governa o ingovernável,
limpa as ruas, mantém o metrô funcionando e a ordem na maior metrópole da Europa, com quase onze
milhões de pessoas, lhe assegura certa liberdade por parte dos líderes do governo e do partido. Em outubro,
ele supervisionou o que até os membros do Rússia Unida consideraram uma eleição suja, comprometida,
para a Duma em Moscou, e recebeu apenas um tapinha na mão do presidente Medvedev.
3. (C) Os moscovitas questionam cada vez mais os procedimentos-padrão de trabalho de seu chefe
executivo, um homem que, desde 2007, não elegem mais diretamente. As ligações de Luzhkov com o crime
organizado e o impacto que essas ligações causaram no governo e no desenvolvimento de Moscou são cada
vez mais questão de debate público. Embora Luzhkov tenha ganhado um processo judicial contra o líder da
oposição Boris Nemtsov pela recente publicação: “Luzhkov: An Accounting ”, Nemstov e seus aliados do
movimento Solidariedade ficaram encorajados com o fato de o juiz não ter dado a vitória com base nas
acusações de corrupção, mas pelo tecnicismo da difamação.

4. (C) Poucos acreditam que Luzhkov deixará voluntariamente o cargo antes de 2012, quando a Duma de
Moscou deve apresentar um lista de candidatos a prefeito a Medvedev para seleção. O Rússia Unida
provavelmente contará com a máquina política de Luzhkov e seu genuíno apoio político para obter votos
para os candidatos do partido nas eleições da Duma estadual em 2011, assim como para as eleições
presidenciais de 2012. Sem sucessor aparente, e com nenhuma ambição além de continuar sendo prefeito,
Luzkhov está em uma posição firme. A evidência de seu envolvimento, ou pelo menos associação, com a
corrupção permanece significativa. Este telegrama apresenta esse lado de Luzhkov – que envolve não
apenas ele e o modo como lida com os políticos locais, mas também Putin e Medvedev à medida que se
aproximam as eleições de 2012.

Uma visão geral do mundo do crime de Moscou

5. (C) A ligação direta do governo municipal de Moscou com a criminalidade faz com que alguns o
chamem de governo “disfuncional” e a afirmar que este funciona mais como cleptocracia do que como
governo. Os elementos criminais desfrutam de um “krysha” (termo do mundo do crime/da máfia que
significa literalmente “telhado” ou proteção) que permeia a polícia, o Serviço Federal de Segurança (FSB),
o Ministério do Interior russo (MVD), bem como toda a burocracia do governo municipal de Moscou.
Analistas identificam uma estrutura em três camadas do mundo do crime de Moscou. Luzhkov no topo, o
FSB, o MVD e a milícia no segundo nível e, por fim, criminosos comuns e oficiais corruptos no nível mais
baixo. Trata-se de um sistema ineficiente no qual grupos criminosos preenchem um vazio em algumas áreas
porque a cidade não fornece certos serviços.

6. (C) XXXXXXXXXX nos disse que grupos criminosos étnicos de Moscou fazem negócios e pagam em
troca. São as sedes dos partidos, não os grupos criminosos, que decidem quem participará da política.
XXXXXXXXXX afirmou que são os partidos políticos que têm a força política, portanto têm poder sobre
esses grupos criminosos.

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Grupos criminosos trabalham com burocratas municipais, mas em nível baixo. Por exemplo, armênios e
georgianos tinham forte envolvimento em jogos de azar até que oficiais municipais fecharam as instalações
de jogos. Esses grupos étnicos precisavam de proteção contra as legislações impostas, por isso procuraram
cooperação com os burocratas municipais. Em tais cenários, grupos criminosos pagavam por proteção
policial.

As ligações de Luzhkov com figuras do crime

7. (S) XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX

8. (S) Segundo XXXXXXXXXX, Luzhkov usou dinheiro do crime para apoiar sua ascensão ao poder e se
envolveu com suborno e acordos em torno de lucrativos contratos de construção por toda a Moscou.
XXXXXXXXXX nos disse que amigos e associados de Luzhkov (incluindo o mafioso russo Vyacheslav
Ivankov, morto recentemente, e o supostamente corrupto representante da Duma XXXXXXXXXX) são
“bandidos”. XXXXXXXXXX. XXXXXXXXXX disse que o governo de Moscou tem ligações com muitos
grupos criminosos e costuma receber propina de empresas. As pessoas subordinadas a Luzhkov mantêm
essas ligações criminosas. Recentemente, o líder do partido ultranacionalista da oposição PLDR (Partido
Liberal Democrata da Rússia), Vladimir Zhirinovskiy, criticou abertamente Luzhkov e pediu sua saída,
afirmando que seu governo era o “mais criminoso” na história da Rússia. Essa impressionante denúncia,
feita no Canal 1 de TV estatal, foi vista como uma repreensão indireta do Kremlin a Luzhkov.

9. (S) XXXXXXXXXX nos disse que sabe que as leis russas não funcionam. O sistema de Moscou se
baseia em permitir que os funcionários ganhem dinheiro. Os burocratas do governo, o FSB, o MVD, a
polícia e o Ministério Público recebem propinas. XXXXXXXXXX afirmou que tudo depende do Kremlin e
que achava que Luzhkov, bem como prefeitos e governadores, pagam a funcionários de dentro do Kremlin.
XXXXXXXXXX disse que o sistema vertical funciona porque as pessoas pagam propinas em todos os
níveis. Ele nos disse ainda que é comum testemunhar funcionários se dirigindo ao Kremlin com grandes
valises e guarda-costas, e especulou que essas valises estão repletas de dinheiro. Os governadores, em todas
as regiões, recebem dinheiro baseado em propinas, em um esquema parecido com o sistema de impostos.
XXXXXXXXXX descreveu que existem estruturas paralelas nas regiões em que as pessoas podem pagar
seus líderes. Por exemplo, o FSB, o MVD e a milícia têm sistemas próprios de recebimento de dinheiro.
Além disso, XXXXXXXXXX nos explicou que os deputados geralmente têm de comprar suas posições no
governo. Precisam de dinheiro para chegar ao topo, mas quando chegam ali, a posição se converte em
oportunidades bastante lucrativas de ganhar dinheiro. Os burocratas em Moscou são notórios por fazer toda
espécie de negócio ilegal para conseguir dinheiro extra.

10. (S) Segundo XXXXXXXXXX, Luzhkov está seguindo ordens do Kremlin para não perseguir grupos
criminosos de Moscou. Por exemplo, XXXXXXXXXX afirmou que o fechamento de casas de jogos não foi
nada mais do que um espetáculo de relações públicas de Putin. XXXXXXXXXX disse que não ver sentido
no fato de malas de dinheiro entrarem no Kremlin, já que seria muito mais fácil abrir uma conta secreta no
Chipre. Especulou que os chefes de polícia de Moscou possuem um orçamento de guerra secreto de
dinheiro. XXXXXXXXXX disse que esse dinheiro provavelmente é usado para resolver problemas
decididos pelo Kremlin, como fraudar as eleições. Esse fundo pode ser acessado como recurso quando
chegam ordens superiores, por exemplo, para propinas ou suborno de pessoas, quando necessário.
XXXXXXXXXX postulou que o Kremlin é capaz de dizer a um governador que ele pode governar
determinado território, mas em troca ele deve fazer o que o Kremlin manda.

11. (C) Apesar da posição sólida de Luzhkov, alguns de nossos contatos creem que sua armadura apresenta
ranhuras, devido

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às atividades corruptas. XXXXXXXXXX nos disse que Luzhkov tem muitos inimigos, porque sua mulher
tem os acordos comerciais mais lucrativos de Moscou e muita gente acha que Luzhkov já ganhou dinheiro
demais. XXXXXXXXXXX. XXXXXXXXXX afirmou ainda que Luzhkov está “de saída”, embora tenha
reconhecido que o Kremlin ainda não identificou substituto adequado. Questões como a corrupção e o
congestionamento no trânsito até certo ponto desgastaram a popularidade de Luzhkov. Putin, disse
XXXXXXXXXX, provavelmente escolherá o indivíduo menos esperado para substituir Luzhkov.

Todos precisam de um “Krysha” em Moscou

12. (C) De acordo com muitos observadores, o clima sem lei na Rússia dificulta a sobrevivência de
empresas sem que tenham de pagar por algum tipo de proteção. XXXXXXXXXX explicou como as
propinas funcionam em Moscou: o dono de um café paga, em dinheiro, ao chefe da polícia local por meio
de um mensageiro. Ele precisa pagar certa quantia negociada, obtida de certos lucros. Os altos preços dos
produtos em Moscou cobrem esses custos ocultos. Às vezes, as pessoas recebem “má proteção”, no sentido
de que o “krysha” extorque uma quantia excessiva em dinheiro. O resultado disso é que não conseguem
arrecadar o suficiente para ter lucro e manter a empresa. Se alguém tenta sobreviver sem a proteção, acaba
fechando as portas imediatamente. Por exemplo, funcionários do serviço de combate a incêndio ou do
serviço sanitário aparecem na empresa e inventam alguma violação. Segundo XXXXXXXXXX, todos
aderiram a proteção em Moscou. Desse modo, isso virou norma. De maneira geral, os moscovitas têm
pouca liberdade para se pronunciar contra as atividades corruptas, e têm medo de seus líderes.

13. (C) XXXXXXXXXXX explicou que os empresários de Moscou entendem que é melhor obter proteção
do MVD e do FSB (em vez de grupos de crime organizado) porque eles não só possuem mais armas,
recursos e poder do que os grupos criminosos, como também são protegidos pela lei. Por isso, a proteção
concedida por gangues criminosas não tem mais uma demanda tão grande. A polícia e o MVD recebem
dinheiro das empresas pequenas enquanto o FSB recebe das empresas grandes. Segundo XXXXXXXXXX,
o “krysha” do FSB é supostamente a melhor proteção. Ele nos disse que, embora tanto o MVD quanto o
FSB tenham estreitas ligações com Solntsevo, o FSB é o verdadeiro “krysha” para Sointsevo. Esse sistema
não se trata de um incentivo para empresas menores e ninguém está imune; mesmo os ricos que pensam
estar protegidos são presos. De acordo com a pesquisa da Transparência Internacional de 2009, as propinas
custam trezentos bilhões de dólares por ano à Rússia, ou cerca de 18% de seu produto interno bruto.

XXXXXXXXXX argumentou que o sistema de “krysha” provocou um desgaste na disciplina interna da


polícia. Por exemplo, jovens oficiais da polícia gastam dinheiro comprando veículos luxuosos que um
trabalhador comum jamais poderia adquirir.

Comentário

14. (S) Apesar da declarada campanha anticorrupção de Medvedev, a corrupção em Moscou continua
generalizada, com Luzhkov no topo da pirâmide. Luzhkov lidera um sistema no qual parece que quase
todos, em todos os níveis, estão envolvidos em alguma forma de corrupção ou comportamento criminoso. O
dilema de Medvedev e Putin é decidir quando Luzhkov se tornará mais dívida do que lucro. Enquanto o
descontentamento da opinião pública com Luzhkov tem crescido desde as eleições “manchadas” em
outubro de 2009, a liderança do Rússia Unida sabe que ele tem sido um apoiador leal, capaz de obter votos.
Tirá-lo do posto antes da hora pode criar grandes dificuldades, porque ele pode ligar outras pessoas do
governo à corrupção. Embora uma mudança nas atividades questionáveis de Luzhkov pareça ser a atitude
correta, mantê-lo no governo administrando a cidade com eficiência é a melhor opção do Rússia Unida. No
fim, o tandem acabará tirando Luzhkov de cena, como já fez com outros líderes regionais havia muito no
poder, como o governador do oblast* de Sverdlovsk, Eduard Rossel, e o presidente da República do
Tartaristão, Mintimir Shaymiev.

BEYRLE
Nota

* Subdivisão administrativa e territorial em alguns países eslavos e ex-repúblicas soviéticas. (N. do T.)
Almoço regado a álcool ajudou as relações militares entre
Estados Unidos e Tajiquistão
Terça-feira, 01 de agosto de 2006, 12h12
SEÇÃO CONFIDENCIAL 01 DE 02 DUSHANBE 001464

SIPDIS
SIPDIS
DECLARADO PARA SCA/CEN, EUR/RUS, EUR/CARC, PM, S/P
EO 12958 DECL: 1/8/2016
TAGS PGOV, PREL, MARR, GG, RS”>RS, TI
ASSUNTO: OBSESSÃO DO MINISTRO DA DEFESA TAJIQUISTANÊS DA VELHA GUARDA
SOBRE A OTAN E A GEÓRGIA
DUSHANBE 00001464 001.2 DE 002
CLASSIFICADO POR: embaixador Richard E. Hoagland, embaixada de Dushanbe, Departamento de
Estado, RAZÃO: 1.4 (b), (d)

1.(C) RESUMO: O embaixador suportou um almoço de mais de três horas com o ministro da Defesa do
Tajiquistão, Sherali Khairulloyev, em 01 de agosto. Além da conversa geral, o ministro pediu desculpas
pelas relações anteriores que não atingiram as expectativas; falou repetidamente sobre a OTAN, a Geórgia e
Saakashvili; e afirmou que a Organização de Cooperação de Xangai deve se tornar um bloco militar para
enfrentar a OTAN. No fim do almoço regado a álcool, o ministro estava falando indistintamente e mal se
aguentava em pé. Suspeitamos que o presidente Rahmonov ordenou que o ministro fosse o anfitrião desse
almoço de despedida. Embora tenha sido incomum em muitos aspectos, acreditamos que o almoço nos
ajudou a dar mais um passo em direção às relações militares entre Estados Unidos e Tajiquistão. FIM DO
RESUMO.

2. (C) O ministro da Defesa Khairulloyev pediu desculpas várias vezes pelos “mal-entendidos e
oportunidades perdidas” no passado quanto às relações militares entre Estados Unidos e Tajiquistão.
Afirmou repetidas vezes que espera um relacionamento cada vez melhor e mais produtivo. Ele disse
entender que o Tajiquistão precisa de um número de parceiros iguais, não apenas um (a Rússia), se deseja
prosperar.

3. (C) O ministro Khairulloyev falou várias vezes sobre a OTAN e a Geórgia. Perguntou repetidamente:
“Por que a OTAN quer um país como a Geórgia? Nem o Pacto de Varsóvia incluiu perdedores!” Ele
perguntou se a OTAN vai melhorar a economia “sem esperança” da Geórgia. Perguntou por que os Estados
Unidos “favorecem o adolescente” presidente Saakashvili. A única explicação possível, afirmou o ministro,
é “enfiar o dedo no olho de Moscou”. Ele acrescentou: “Quando Stálin criou a República Socialista
Soviética da Geórgia, incluiu a Abcásia e a Ossétia do Sul, porque sozinhos os georgianos são
‘insignificantes’. “Sem a Abcásia e a Ossétia do Sul”, afirmou o ministro, “a Geórgia não tem esperança de
existir”.

4. (C) Khairulloyev explicou que a Organização de Cooperação de Xangai (OCX) tem de se desenvolver
para se tornar um bloco militar “com um terço da população mundial” para enfrentar a OTAN. O
embaixador perguntou por que a Rússia e as ex-repúblicas soviéticas viam a OTAN como inimiga.
Khairulloyev levantou-se e declarou: “Quando o Bloco de Varsóvia se desintegrou, é claro que um novo
bloco surgiu para dominar o mundo. Essa é a dialética histórica. Agora é hora de enfrentar a OTAN”.

Cor

5. (C) Esse almoço aconteceu na sala de jantar particular do ministro Khairulloyev, em seu escritório
particular reformado recentemente. O ministro enfatizou que raramente recebe convidados em sua sala de
jantar particular e que apenas um outro embaixador em especial havia participado de um jantar ali – o ex-
embaixador russo Maksim Peshkov.

6. (C) O embaixador perdeu a conta dos brindes após o décimo. Havia vodca no copo do ministro e o copo
grande estava sempre cheio de uísque. Mais tarde, durante o almoço, o ministro falava indistintamente e não
conseguia andar em linha reta. Além disso, enquanto o embaixador tentava sair com elegância, o ministro
insistiu em lhe mostrar “salas secretas” no ministério. Cada “sala secreta” era apenas mais uma sala de
reunião com um grande vaso de flores e – mais uma vez – copos dispostos nas mesas para fazer brindes.

Comentário

6. (C) Esse evento bizarro foi curioso, porque as relações militares entre Estados Unidos e Tajiquistão têm
melhorado acentuadamente, principalmente com a Guarda Nacional, mas também com o Ministério da
Defesa russo-cêntrico. Khairulloyev continua deixando claro que serve à conveniência do presidente
Rahmonov e pode ser substituído após a eleição presidencial de novembro. Embora esse festival de
bebedeira tenha indicado como muitos da velha guarda das ex-repúblicas soviéticas fazem negócios
mútuos, foi bastante incomum para um convidado americano. Foi, até certo ponto, sinal de respeito. Não
ficaríamos surpresos se o presidente Rahmonov tivesse mandado Khairulloyev “fazer alguma coisa para o
embaixador que estava de partida”, e nos perguntamos se seria uma espécie de discurso de despedida de um
ministro de segurança da velha guarda que desconfia que seus dias de serviço estão contados. Seja como
for, ficamos felizes por Khairulloyev ter bebido. FIM DO COMENTÁRIO.

HOAGLAND
Este e-book foi desenvolvido em formato ePub
pela Distribuidora Record de Serviços de Imprensa S. A.

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