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Lynn Picknett

&
Clive Prince

A GRANDE HERESIA
O Segredo da Identidade do Cristo

Tradução Adriano José Sandoval


2000
Beca

Para aqueles a quem amamos,


Os daqui e os que estão além. . .

AGRADECIMENTOS
Este livro só se tornou possível em virtude do auxílio e apoio de um grande número de pe
ssoas. Devido, porém, à natureza controversa de nossas conclusões, devemos deixar clar
o que aqueles que compõem esta lista não estão necessariamente de acordo com nossas op
iniões.
Gostaríamos de agradecer a:
Keith Prince, por sua pesquisa meticulosa, tanto em bibliotecas quanto em campo
e por seu incisivo e com freqüência pouco ortodoxo modo de pensar sobre os mais dive
rsos assuntos e por, literalmente, ter arriscado sua própria vida por este projeto
.
Craig Oakley, por seu apoio, entusiasmo e auxílio incansáveis em favor de nossa pesq
uisa.
Filip Coppens, por nos ter direcionado de forma entusiástica e por nos trazer um v
olume incomensurável de material de pesquisa.
Lavinia Trevor, nossa agente, por facilitar os caminhos para a realização deste livr
o e por nos ter mantido a salvo das pressões.
Jim Cochrane, nosso editor, por seus comentários construtivos e bem informados, e
por nos manter sob pressão. E agradecemos também a seus colegas Kate Melhuish, Sheil
a Corr e Martin Macrae.
Lucien Morgan, por ter feito com que pensássemos seriamente em escrever este livro
!
Os materiais sobre Rennes-le-Château, nos capítulos Oito e Nove, são em grande parte d
ecorrentes de informações e discussões trocadas com muitas pessoas:
No Reino Unido, aos membros do grupo de pesquisa de Rennes-le-Château, especialmen
te John e Joy Millar, Gay Roberts, Howard Barkway, Jonothon Boulter, Marke Pawso
n e Guy Patton. Também temos que agradecer a Guy por nos ajudar em nossa pesquisa
sobre os Cavaleiros Templários.
Na França, agradecemos particularmente a Alain Féral, Sonia Moreau, Antoine e Claire
Captier, Jean-Luc e Louise Robin, Celia Brooke, Mareel Captier e Elizabeth van
Buren (e também a Monique e Michel Marrot do La Pomme Bleue, em Rennes-le-Château, c
ujas refeições muitas vezes salvavam nosso dia). Também gostaríamos de confirmar nosso déb
ito para com Jos Bertaulet e sua pesquisa sobre Notre-Dame de Marceille. Agradec
emos à sua viúva, Suzane, e aos filhos, Christian e Diederick, pela hospitalidade.
John Stephenson e Anita Forsythe, por nos auxiliarem em Ferran, tornando alegres
nossas viagens ao Languedoc e por compartilharem seus conhecimentos sobre a reg
ião. Agradecemos também por sua maravilhosa hospitalidade, pelos momentos divertidos
e por nos emprestarem Gold.
Peter Humber, por permitir que usássemos sua casa no Languedoc durante nossa prime
ira viagem de pesquisa e por reagir com extrema calma ao ver no que quase a tran
sformamos.
...e também agradecemos aos moradores dos povoados de Ferran e ao Departamento de
Bombeiros de Montreal por terem vindo nos ajudar naquele fatídico 17 de janeiro. E
pelo pranto atrasado de Peter no Café Fou na Rua Boundary, que pareceu ter sido d
estinado a se tornar nosso refúgio.
Robert Howells, por muitas conversas longas e adoráveis sobre o tema do esoterismo
e por compartilhar conosco a amplitude de seu conhecimento.
André Douzet, por ter generosamente compartilhado os resultados de sua pesquisa ex
austiva sobre os mistérios franceses.
Niven Sinclair, por sua generosidade e por sua fascinante percepção sobre a Capela R
osslyn e os Cavaleiros Templários.
Jane Lyle, por compartilhar seu extenso conhecimento sobre a sexualidade sagrada
e, como sempre, pelo apoio, encorajamento e também por sua gargalhada.
Steve Wilson, por nos ajudar com os madianitas, por nos oferecer uma tribuna no
'Talking Stick' e por uma memorável e divertida viagem de trem.
Karine Esparseil López, ao ajudar na tradução de textos em francês, pelo apoio e por sua
valiosa amizade.
Também agradecemos às seguintes pessoas, ou por terem nos auxiliado de diversas form
as ou por nos proporcionarem acesso a informações bastante necessárias ou ainda simple
smente por seu apoio e encorajamento:
Nicole Dawe e Charles Bywaters e seus filhos, Lura Dawe e Kathryn e Jennifer Byw
aters;Trevor Poots;Andy Collins; Dominique Hyde; Lionel Beer e seu grupo TEMS; S
teve Moore do Fortean Times; Bob e Veronica Cowley da RILKO; Georges Keiss; Yuri
Stoyanov; Benoist Riviêre; Henri Buthion; Jean Pierre Aptel; André Galaup; Louis Va
zart; Gino Sandri; Manfred Cassirer; Alun Harris;John Spencer; Steve Pear; Olivi
a Robertson da Sociedade de Ísis; Caroline Wise; Gareth Medway; Tony Pritchett; Mi
ck e Lorraine Jones; Mark Bennett; Dave Smith e Natalie Hac; Loren McLughlin; Da
vid N. Corona; Dr. Richard Wiseman; Sylvia patton; Barry e Fiona Johnstone; Sara
h Litvinoff; Vida Adamoli; Helen Scott; Michêle Kaczynski; Mary Saxe-Falstein; Sal
ly 'Morgana' Morgan;Will Fowler; Sheila e EricTaylor; Samuel López;James Dew; Nic
Davis; Lisa Bailey; David Bell; I-N. E para os funcionários das Salas de Leitura d
a Biblioteca Britânica e da Biblioteca de Westminster.
Obrigado ao pessoal do serviço de emergência do Lymoux e Carcassone por terem resgat
ado Keith Prince e ao nosso amigo anônimo que telefonou de Notre-Dame de Marceille
pedindo socorro.

ÍNDICE
Introdução, 12
Parte Um: As Tramas da Heresia
Capítulo I O Código Secreto de Leonardo da Vinci, 15
Capítulo II Entrando em Outro Mundo, 33
Capítulo III No Rastro de Maria Madalena, 57
Capítulo IV O Berço da Heresia, 85
Capítulo V Guardiães do Graal, 107
Capítulo VI O Legado dos Templários, 131
Capítulo VII Sexo: O Sumo Sacramento, 161
Capítulo VIII "Este é Um Lugar Terrível" , 195
Capítulo IX Um Tesouro Curioso, 217
Capítulo X Decifrando os Caminhos Secretos, 238
Parte Dois: As Teias da Verdade
Capítulo XI As Inverdades do Evangelho, 244
Capítulo XII A Mulher que Jesus Beijava, 265
Capítulo XIII Filho da Deusa, 285
Capítulo XIV João Cristo, 326
Capítulo XV Os Devotos do Senhor da Luz, 348
Capítulo XVI A Grande Heresia, 362
Capítulo XVII De Dentro do Egito, 377
Apêndice, Maçônicos Ocultistas da Europa Continental, 391
Bibliografia Selecionada, 394
Ilustrações: entre as páginas 208 e 209

INTRODUÇÃO
Leonardo da Vinci foi a razão de iniciarmos a busca que nos levaria a escrever est
e livro. Foi a partir de nossa pesquisa sobre este fascinante porém ardiloso gênio d
o Renascimento, e sua participação na falsificação do Sudário de Turim, que iniciamos uma
investigação muito mais ampla e profunda relacionada à questão das 'heresias' que, secre
tamente, teriam guiado suas ambições. Buscávamos descobrir no que estava ele metido, o
que sabia e no que acreditava e a razão de ter empregado certos códigos e símbolos na
obra que legou à posteridade. Temos, então, que agradecer a Leonardo pelas descober
tas que realizamos, descobertas que resultaram neste livro, embora saibamos que
este agradecimento é um tanto dúbio.
À primeira vista parece ser algo estranho que fôssemos atraídos para esse mundo comple
xo e, com freqüência, tenebroso de sociedades secretas e de crenças heterodoxas. Afina
l de contas, Leonardo é conhecido por todos como sendo ateu e racionalista. Entret
anto, viríamos a descobrir que ele não era exatamente assim. De qualquer modo, após um
breve espaço de tempo nós o deixamos para trás e nos vimos sozinhos enfrentando algum
as deduções profundamente perturbadoras. O que havia se iniciado como uma modesta e
interessante pesquisa sobre alguns cultos que acreditávamos pouco difundidos, acab
ou por tornar-se uma investigação sobre as próprias raízes e crenças do cristianismo.
Essa foi, essencialmente, uma jornada através do tempo e do espaço: primeiro, de Leo
nardo até os dias de hoje, e então de volta à época anterior ao Renascimento, passando p
ela Idade Média até chegar à Palestina do primeiro século, onde se desenrolou o drama es
crito com as palavras e ações de nossos três protagonistas principais: João Batista, Mar
ia Madalena e Jesus. Durante essa jornada tivemos que parar e examinar muitas or
ganizações e grupos secretos com um olhar completamente novo e objetivo: os Maçons, os
Cavaleiros Templários, os Cátaros, o Monastério de Sion, os Essênios e o culto de Ísis e
Osíris.
Esses assuntos, é claro, já foram discutidos recentemente em muitos outros livros, e
m particular por The Holy Blood and the Holy Grail, de Michael Baigent, Richard
Leigh e Henry Lincoln, que de início nos serviu de inspiração; The Sign and the Seal,
de Graham Hancock; The Temple and the Lodge, de Baigent e Leigh, e, mais recente
mente, The Hiram Key, de Christopher Knight e Robert Lomas. Temos um débito de gra
tidão para com todos esses escritores pela luz que lançaram em nossas áreas correlatas
de investigação, mas acreditamos que nenhum deles chegou a encontrar a chave essenc
ial para se atingir o âmago desses mistérios.
E não causa surpresa alguma que assim tenha sido. Toda a nossa cultura se baseia e
m certos pressupostos relacionados ao passado, e em particular ao cristianismo,
o caráter e as motivações de seu fundador. Se esses pressupostos estiverem errados, en
tão as conclusões neles baseadas estarão muito longe da verdade ou no mínimo apresentarão
uma visão distorcida dos fatos.
Quando nos confrontamos pela primeira vez com as conclusões perturbadoras que expu
semos neste livro, pensamos ter cometido um engano. Mas foi chegada uma hora em
que tivemos que tomar uma decisão: deveríamos continuar as investigações e publicar noss
as conclusões ou deveríamos simplesmente esquecer que havíamos um dia realizado essas
descobertas cruciais? Decidimos seguir em frente; afinal, este livro parece ser
uma seqüência natural daqueles que foram citados acima e portanto já era chegada a hor
a de se materializar.
Ao investigar as crenças ocultas de milhares de 'heréticos' ao longo dos séculos, desc
ortinamos um quadro espantosamente consistente. Por trás das tradições dos mais divers
os grupos, aparentemente sem qualquer relação entre si, encontramos os mesmos segred
os ou no mínimo segredos muito semelhantes. De início pensamos que essas sociedades
eram secretas por uma questão de costume ou talvez por afetação, mas agora compreendem
os o porquê da necessidade de se manter o conhecimento afastado das autoridades e
especialmente longe das mãos da Igreja. O centro da questão, entretanto, não está em sab
er no que eles acreditavam, mas sim em saber se essas crenças baseavam-se ou não em
alguma coisa sólida. Pois se assim é, e se o mundo herético realmente guardou a chave
perdida da cristandade, então estamos diante de um cenário verdadeiramente revolucio
nário.
Este livro relata oito anos de investigações em um terreno bastante inexplorado, poi
s, embora outros tenham feito mapas que nos mostraram por onde caminhar, suas in
dicações terminaram muito antes de onde acabaríamos por chegar.
Lynn Picknett
Clive Prince

Parte Um
As Tramas da Heresia

CAPÍTULO I
O Código Secreto de Leonardo da Vinci

Durante séculos ela tem sido uma das obras de arte mais famosas do mundo. A Última C
eia de Leonardo da Vinci é o único fragmento restante da igreja de Santa Maria delle
Grazie, nos arredores de Milão. A parede em que está pintada foi a única que permanec
eu de pé após o bombardeio aliado na II Guerra Mundial ter transformado em ruínas a an
tiga construção. Embora outros artistas admiráveis como Ghirlandaio e Nicolas Poussin
e até mesmo o idiossincrático pintor Salvador Dali tenham apresentado ao mundo suas
visões dessa cena bíblica repleta de significados, é a obra de Leonardo que, por algum
a razão, parece ter sido capaz de capturar a imaginação da maioria de nós. É possível encon
rar, em qualquer lugar do planeta, as mais diferentes versões da Última Ceia de Leon
ardo, com todos os matizes possíveis de gosto, do sublime ao ridículo.
Algumas imagens são tão familiares para nós que nunca as examinamos com uma atenção verdad
eira, e embora estejam ali, à nossa frente, totalmente expostas ao olhar do observ
ador, convidando-nos para um exame mais cuidadoso até que finalmente as capturemos
em um nível mais profundo e significativo, continuam, na verdade, a ser como as pág
inas de um livro fechado. Assim é com a Última Ceia de Leonardo e, inacreditavelment
e, com quase todas as suas obras.
Foi a obra de Leonardo (1452-1519), o atormentado gênio italiano do período renascen
tista, que nos colocou na trilha que nos levaria a revelações tão inacreditáveis em relação
suas conclusões que, à primeira vista, nos pareciam ser total e completamente impro
váveis: não parecia ser plausível que várias gerações de pesquisadores simplesmente não tiv
em observado aquilo que havia tomado de assalto nossa espantada atenção, e nos parec
ia implausível que tal informação explosiva esperasse, calmamente, todo esse tempo par
a ser descoberta por escritores que, como nós, não fazem parte dos grupos oficiais d
e pesquisa histórica e religiosa.
Assim, para dar um início mais apropriado à nossa história, temos que retomar à Última Cei
a de Leonardo e olhá-la com outros olhos. Porém, não iremos observá-la com olhos pertenc
entes a um contexto de pressupostos histórico-artísticos familiares. Dessa vez o nos
so olhar sobre a obra de arte mais conhecida do mundo será a de um recém-iniciado, u
m olhar de quem a vê pela primeira vez. E como recém-iniciados na obra, esperamos qu
e toda a gama de conceitos pré-concebidos sejam varridos de nossos olhos e então, pe
la primeira vez talvez, consigamos realmente enxergá-la.
A figura central, é claro, é a de Jesus, a quem Leonardo, nas suas anotações relativas à o
bra, se referiu como 'o Redentor'. (Ainda assim, o leitor é avisado a não se deixar
levar por nenhum pressuposto óbvio.) Jesus olha contemplativamente para baixo, lev
emente para sua esquerda, as mãos abertas, estendidas sobre a mesa, como que ofere
cendo um presente ao observador. Essa é a Última Ceia, na qual, segundo nos diz o No
vo Testamento, Jesus deu início ao sacramento do pão e do vinho, incitando seus apósto
los a compartilhá-los como sendo sua própria "carne" e "sangue". Poder-se-ia, com ra
zão, esperar que um cálice de vinho fosse colocado diante dele, complementando tal r
itual. Afinal, para os cristãos, essa ceia se passou no jardim de Gethsemane, imed
iatamente antes da Paixão - quando Cristo, pediu com fervor: "Pai, se é de teu agrad
o, afasta de mim este cálice", (uma outra alusão ao simbolismo do vinho/sangue) - e
da morte pela crucificação, quando seu sangue sagrado foi derramado em nome de toda
a humanidade. Não há, porém, vinho algum diante de Jesus (e em toda a mesa há apenas alg
uns copos com uma quantidade mínima). Será possível que essas mãos estendidas estejam re
alizando, essencialmente, como observaria um artista, um gesto sem qualquer sign
ificado?
Em face da ausência de vinho, talvez não seja também um mero acaso que de todos os pães
presentes na mesa apenas alguns estejam partidos. Será essa uma mensagem sutil rel
acionada à verdadeira natureza do sofrimento de Jesus, já que este, ao identificar o
pão com seu próprio corpo, partiu-o, dando-o como representação de seu supremo sacrifício
?
Isso, contudo, é apenas a ponta do iceberg de toda a heterodoxia que está presente n
essa obra. Na Bíblia, o jovem São João, conhecido como "o Amado", é quem estava, nessa o
casião, tão próximo fisicamente a Jesus a ponto de parecerem estar "colados um ao outr
o". Todavia a figura desse jovem, na obra de Leonardo, não está assim tão inclinada em
direção a Jesus, como teria exigido, digamos, uma "direção de palco" bíblica. Muito ao co
ntrário, João é retratado afastando-se exageradamente do Redentor, com a cabeça, de um m
odo um tanto afetado, pendendo para a direita. E isso não é tudo o que pode ser dito
a respeito desse personagem e, portanto, devemos perdoar os recém-iniciados na ob
ra ao vermos que podem ser tomados por pensamentos cheios de dúvida em relação ao assi
m chamado São João. Seria razoável, durante um certo tempo, pensar que as predileções part
iculares do artista tenderiam a fazê-lo representar o supra-sumo da beleza masculi
na de um modo um tanto efeminado, porém, com certeza, o que nós vemos é uma mulher. Tu
do o que se relaciona a "ele" é chocantemente feminino. Ainda que o afresco seja m
uito antigo e bastante castigado pelo tempo, qualquer pessoa é capaz de notar as mão
s finas e graciosas, a figura bela e élfica, o colo distintamente feminino e a gar
gantilha dourada colocada em seu pescoço. Essa mulher, porque é disso que se trata,
além de tudo veste-se com trajes que a diferenciam, tornando-a alguém especial. Seu
traje é a imagem espelhada do traje do Redentor: enquanto um veste uma túnica azul e
uma capa vermelha, o outro veste uma túnica vermelha e uma capa azul do mesmo est
ilo. Nenhum outro, na mesa, veste roupas que sejam como a imagem espelhada das r
oupas de Jesus. Nenhum outro na mesa é, porém, uma mulher.
No centro de toda a composição está uma forma construída em conjunto pelas figuras de Je
sus e dessa mulher, um grande e exagerado "M", quase como se eles estivessem lit
eralmente grudados pelos quadris, mas, de repente, saíssem de alinhamento ou então f
ossem apartados. Não é de nosso conhecimento que qualquer pesquisador tenha se refer
ido a essa figura feminina de outra forma que não fosse como São João. O "M" formado p
elas duas figuras também passou desapercebido pelos pesquisadores. Leonardo era, c
onforme descobrimos em nossas pesquisas, um excelente psicólogo que se divertia pr
esenteando, aos que lhe haviam feito uma encomenda de obras religiosas comuns, c
om imagens extremamente heterodoxas, consciente de que as pessoas olhariam com s
erenidade para a óbvia heresia porque, como de costume, elas só vêem aquilo que querem
. Se lhe pedissem para fazer um quadro de uma cena cristã conhecida e você apresenta
sse algo que tivesse uma semelhança apenas superficial com a cena pedida, ninguém ja
mais questionaria seu simbolismo. Leonardo, contudo, deve ter tido esperanças de q
ue talvez outras pessoas que também compartilhassem sua interpretação incomum da mensa
gem do Novo Testamento perceberiam o que ele fizera em sua versão, ou que alguém, em
algum lugar, um observador que fosse objetivo, um dia repararia na imagem dessa
mulher misteriosa ligada à letra "M" e começasse a fazer perguntas óbvias. Quem era "
M", e por que era tão importante? Por que Leonardo arriscaria sua reputação, para não di
zer sua própria vida, naqueles dias de fogueiras flamejantes, para incluí-la nessa c
ena tão crucial ao cristianismo?
Quem quer que seja ela, seu próprio destino também não parece estar muito a salvo, poi
s uma mão se atravessa, de um modo que parece ameaçador, à frente de seu gracioso pesc
oço inclinado. O Redentor também é ameaçado por um dedo em riste que aponta, com clara v
eemência, diretamente para seu rosto. Tanto Jesus quanto "M" parecem estar complet
amente alheios a essas ameaças, perdidos no redemoinho de seus próprios pensamentos,
serenos e tranqüilos. Entretanto, é como se fossem utilizados símbolos secretos, não ap
enas para avisar Jesus e sua companheira de que seus destinos se separaram, como
também para dar (ou talvez lembrar) ao observador alguma informação que, se fosse de
outro modo, haveria perigo em expor. Estaria Leonardo utilizando sua obra para e
ncobrir alguma crença particular, a qual seria uma insensatez compartilhar com uma
audiência maior e de um modo mais óbvio? E poderia ser que essa crença fosse uma mens
agem a ser comunicada aos que não pertencessem a seu círculo social imediato, talvez
mesmo uma mensagem para os de nossa época?
Olhemos com mais profundidade para essa obra surpreendente. No afresco, um homem
de barba postado à direita do observador se inclina, quase até se dobrar, para fala
r ao último discípulo na mesa. Ao fazer isso ele dá totalmente as costas ao Redentor.
Esse discípulo é São Judas Tadeu, cuja figura é tida como sendo a do próprio Leonardo. Nad
a do que retratavam os pintores renascentistas era desprovido de significado ou
simplesmente incluído por uma questão de beleza, e essa obra em particular, um model
o da época e da profissão, era reconhecida pelo rigor na apresentação de um visível duplo
sentido (a preocupação de Leonardo em utilizar o modelo certo para cada discípulo pode
ser percebida em sua maldosa insinuação de que o irritado Bispo do Monastério de Sant
a Maria pousou para a caracterização de Judas!). Então, por que Leonardo pintou a si m
esmo olhando tão claramente para o lado contrário àquele em que estava Jesus?
Ainda há mais. Uma mão estranha aponta um punhal para o ventre de um discípulo que está
ao lado de "M". Por mais imaginação que tenhamos, essa mão não pode pertencer a qualquer
pessoa que esteja sentada à mesa, simplesmente porque é fisicamente impossível que es
tes conseguissem contorcer a própria mão de modo a poder segurar o punhal naquela po
sição. Entretanto, o que é realmente espantoso sobre a mão desacompanhada de um corpo, não
é tanto a sua existência, mas o fato de que, em tudo o que lemos sobre Leonardo, te
nhamos descoberto apenas algumas poucas referências a ela, o que demonstra uma cur
iosa relutância em perceber qualquer coisa que possa haver de anormal. Tanto quant
o o fato de São João ser na verdade uma mulher, uma vez que esta mão seja devidamente
mostrada nenhum fato poderia tornar-se mais óbvio, nem mais bizarro, embora possa
perfeitamente passar despercebida aos olhos e à compreensão do observador, simplesme
nte por ser algo tão absurdo e ultrajante.
Muitas vezes ouvimos dizer que Leonardo era conhecido como um cristão piedoso cuja
s obras sobre motivos religiosos refletiam a profundidade de sua fé. Até onde pudemo
s perceber, pelo menos uma de suas obras carrega em si um imaginário extremamente
dúbio em relação à ortodoxia cristã, e nossas pesquisas posteriores, como veremos, revelam
que nada poderia estar mais longe da verdade do que a idéia de que Leonardo era r
ealmente um crente, isto é, de um modo que fosse aceitável para o pensamento cristão.
Os aspectos anormais e curiosos presentes em apenas uma de suas obras já parecem i
ndicar que ele estava tentando nos falar sobre um outro nível de significado relac
ionado àquela cena bíblica familiar, de um outro mundo de crenças que estava além dos co
ntornos aceitáveis para uma imagem congelada em um mural dos arredores da cidade d
e Milão do século XV.
O que quer que signifiquem essas inclusões heterodoxas, elas estavam, nunca é demais
reafirmar, em total desacordo com a ortodoxia cristã. Para os racionalistas/mater
ialistas de hoje em dia nada disso tem qualquer significado, pois, para estes, L
eonardo foi o primeiro cientista verdadeiro e, portanto, era um homem que não tinh
a tempo para superstições ou religião de qualquer espécie, sendo a verdadeira antítese de
um místico ou ocultista. Eles também não são capazes de enxergar o que é, de um modo tão cl
ro, oferecido a seus olhos. Pintar a Última Ceia sem numerosas evidências de vinho é c
omo pintar o exato momento de uma coroação sem mostrar a coroa: ou se deixa totalmen
te de retratar o tema em questão ou se retrata um outro completamente diferente, a
ponto de marcar o pintor como um herege consumado, alguém que possui crenças religi
osas mas que está em rixa ou mesmo em guerra contra a ortodoxia cristã. Descobrimos
que as outras obras de Leonardo também trazem suas obsessões heréticas específicas, por
meio de um imaginário consistente e cuidadosamente aplicado, algo que não aconteceri
a se o artista fosse apenas um ateu preocupado em ganhar a vida. Esses símbolos e
inclusões impertinentes são também bem mais, muito mais do que uma resposta céptica e sa
tírica ao que lhe fora encomendado. Não é, por exemplo, a mesma coisa que colocar um n
ariz de palhaço em São Pedro. O que estamos olhando na Última Ceia e em outras obras é o
código secreto de Leonardo da Vinci, que acreditamos ser algo de fundamental impo
rtância para nosso mundo atual.
Pode-se argumentar que o que quer que Leonardo acreditasse ou não, sua simbologia
herética era apenas um sinal de fraqueza de um homem notoriamente excêntrico, cuja h
istória é um paradoxo interminável. Ele pode ter sido um solitário, mas era também a alma
e a vida de seu grupo; desprezava os cartomantes e adivinhos, mas sua contabilid
ade registra pagamentos realizados a astrólogos; era vegetariano e protetor dos an
imais, mas sua ternura raramente se estendia à raça humana; dissecou corpos obsessiv
amente, e acompanhava execuções com os olhos de um anatomista; era tanto um pensador
profundo quanto um mestre em enigmas; arquitetava truques, artimanhas e trapaças.
De uma figura assim tão complexa, talvez fosse de se esperar que tivesse uma visão
pessoal religiosa e filosófica um tanto incomum, quem sabe mesmo peculiar. Essa se
ria uma razão, quando isolada do quadro geral, para se desconsiderar as crenças heréti
cas de Leonardo como sendo algo sem relevância para os dias de hoje. Embora Leonar
do seja mundialmente reconhecido como alguém de imenso talento, nossa tendência, rep
leta de um 'modernismo' irritante e arrogante, é a de subestimar suas descobertas.
Afinal, na época em que ele estava no auge de suas atividades, até mesmo o processo
de impressão era uma novidade. O que um inventor solitário, de um período tão remoto e
primitivo, seria capaz de oferecer a um mundo inundado de informações via Internet e
que pode, em questão de segundos, comunicar-se através de telefone ou fax com pesso
as em continentes que nem sequer haviam sido descobertos no século XV?
Há duas respostas para essa questão. A primeira é a de que Leonardo não era, fazendo uso
de um paradoxo, um gênio de segunda categoria. Embora as pessoas saibam que ele p
rojetou máquinas voadoras e primitivos tanques de guerra, algumas de suas invenções er
am tão incomuns para sua época que alguns tipos mais extravagantes chegaram realment
e a sugerir a possibilidade de Leonardo ter tido visões do futuro. Seus projetos d
e bicicleta, por exemplo, tornaram-se conhecidos apenas na década de 60. Ao contrári
o do árduo e moroso processo de desenvolvimento, baseado em tentativa-e-erro, das
primeiras bicicletas construídas na época vitoriana, a bicicleta de da Vinci já nasceu
moderna, com duas rodas de mesmo tamanho e um mecanismo de engrenagens e corren
te. Ainda mais fascinante do que o próprio projeto seria descobrir a razão que o ter
ia levado a inventar a bicicleta. O homem sempre quis voar como os pássaros, mas u
m desejo incontrolável de pedalar sobre vias muito pouco adequadas, equilibrando-s
e precariamente sobre duas rodas, é algo inimaginável (e, ao contrário do ato de voar,
este é um desejo que não faz parte de nenhum conto clássico). Leonardo também previu o
telefone, entre muitas outras coisas merecedoras de fama. Se Leonardo era muito
mais do que o gênio que nos é revelado pelos livros, fica pendente a questão de se sab
er qual seria o conhecimento que ele poderia ter em mãos capaz de ser impingido, d
e forma significativa e difundida, ao mundo atual, cinco séculos depois de sua mor
te. Embora se possa argumentar que os ensinamentos de um rabino do primeiro século
sejam ainda mais irrelevantes para nossa época, também é verdade que algumas idéias são u
niversais e eternas e que a verdade, se puder ser encontrada ou definida, nunca
será corroída em sua essência pela passagem dos séculos.
Não foi, entretanto, a filosofia de Leonardo (seja pública ou oculta) ou suas invenções
que nos atraíram em sua direção. Foi sua obra mais paradoxal, pois é, ao mesmo tempo, a
mais famosa e a menos conhecida, que nos levou a uma intensa pesquisa sobre ele.
Como já discorremos em detalhes em nossa obra anterior, encontramos provas de que
foi o Mestre quem falsificou o Sudário de Turim, que há muito acreditava-se ter sid
o miraculosamente impresso com a imagem de Jesus Cristo na ocasião de sua morte. E
m 1988, um teste de carbono-14 provou a todos, menos para um punhado de crentes
desesperados, que o Sudário na realidade é um artefato do final da época medieval ou i
nício do Renascimento. Para nós, entretanto, ele continua a ser uma peça verdadeiramen
te admirável, para dizer o mínimo. Nosso maior interesse, o que nos enchia de curios
idade, era descobrir a identidade do embusteiro, pois quem quer que fosse capaz
de criar tal "relíquia" deveria ser um gênio.
O Sudário de Turim comporta-se como uma fotografia, como é reconhecido em todas as r
eferências, tanto nas que são favoráveis como nas que são contrárias à sua autenticidade. E
e apresenta um curioso "efeito de negativo", o que significa que se parece a olh
os nus com uma tênue mancha chamuscada, mas que pode ser vista em detalhes em um n
egativo fotográfico.
Já que nenhuma tinta conhecida ou processo de xilogravura se comporta dessa maneir
a, o efeito de negativo foi tomado pelos "sudaristas" (aqueles que acreditam na
autenticidade do Sudário de Jesus) como sendo a prova das qualidades miraculosas d
a imagem. Entretanto, nós percebemos que a imagem gravada no Sudário de Turim se com
porta como uma fotografia porque ela é precisamente isso.
O Sudário de Turim é uma fotografia. Isso dito assim de chofre é um pensamento um tant
o perturbador. Com a ajuda de Keith Prince, reconstruímos o que acreditamos ser a
técnica que foi originalmente utilizada e, ao fazermos isso, nos tornamos as prime
iras pessoas a reproduzir todas as características até então inexplicáveis do Sudário de T
urim. E, apesar dos sudaristas reclamarem que isso era impossível, nós o fizemos uti
lizando equipamentos bastante simples, como uma câmara escura, um pedaço de tecido r
ecoberto quimicamente, tratado com materiais facilmente disponíveis no século XV, e
muita luz. Usamos, entretanto, como objeto de nossa experiência fotográfica, um bust
o de gesso de uma garota comum, o que está, infelizmente, a anos-luz, em importância
, do objeto utilizado originalmente. Pois o rosto do Sudário não é, como sempre se pen
sou, o de Jesus. Na verdade é o rosto do próprio mistificador. Em suma, estamos conv
encidos de que o Sudário de Turim é, entre outras coisas, uma fotografia com quinhen
tos anos de idade de ninguém mais, ninguém menos do que o pr6prio Leonardo da Vinci.
Apesar de algumas curiosas afirmações dizerem o contrário, essa obra não pode ter sido r
ealizada por um cristão piedoso. O Sudário de Turim, visto como o negativo de uma fo
tografia, aparentemente mostra o corpo de Jesus, sangrando e repleto de fraturas
. Deve ser lembrado que esse não é um sangue comum, pois para os cristãos ele não é apenas
literalmente divino: é também o veículo através do qual o mundo pode ser redimido. A no
sso ver, ninguém poderia simplesmente falsificar aquele sangue e ser considerado u
m crente, nem poderia ser alguém que tivesse um pingo de respeito pela pessoa de J
esus ao substituir a imagem de Cristo pela sua própria. Leonardo fez as duas coisa
s, com um cuidado meticuloso e até mesmo, suspeitamos, com um certo prazer. Pois c
om certeza ele sabia que o Sudário, ao carregar em si mesmo a suposta imagem de Je
sus, já que ninguém sequer suspeitaria que essa era na verdade a do próprio artista de
Florença, seria venerado por um número infindável de peregrinos, já mesmo no período em q
ue o artista ainda estava vivo. Daquilo que descobrimos sobre ele e sobre seu ca
ráter, podemos imaginar, com alguma certeza, que ele se esgueirava dentre as sombr
as e observava as pessoas venerando o Sudário. Mas teria ele previsto a massa de p
eregrinos que passaria em frente de sua imagem ao longo dos séculos? Teria ele ima
ginado que algum dia muitas pessoas inteligentes se converteriam ao catolicismo
simplesmente ao olhar para aquela face bela e torturada? E teria ele previsto qu
e o mundo ocidental construiria a figura de Jesus baseando-se quase que totalmen
te na imagem gravada no Sudário de Turim? Teria ele percebido que um dia milhões de
pessoas de todo o mundo estariam venerando a imagem de um homossexual herético do
século XV no lugar do seu Santo adorado, que Leonardo da Vinci se tornaria literal
mente a imagem de Jesus Cristo?
O Sudário é provavelmente a mais bem-sucedida e audaciosa trapaça jamais realizada. E
embora tenha enganado milhões de pessoas, ela é muito mais do que uma celebração à habilid
ade de concretizar uma mistificação de mau gosto. Acreditamos que Leonardo se utiliz
ou da oportunidade para criar a relíquia cristã definitiva como um veículo para duas c
oisas: uma técnica inovadora e uma crença herética oculta. A técnica fotográfica primitiva
era, como nos contam os acontecimentos históricos, perigosa demais para ser demon
strada publicamente naquela época cheia de superstição e paranóia. Não há dúvida de que, pa
seu próprio deleite, Leonardo arranjaria um meio de fazer com que seu protótipo fica
sse aos cuidados dos mesmos bispos que ele tanto desprezava. É claro que a ironia
implícita nessa proteção por parte do bispado talvez seja apenas pura coincidência, apen
as mais uma brincadeira do destino introduzida nesta história, já por si só inacreditáve
l. Para nós, porém, isso demonstra a obsessão de Leonardo em ter total controle sobre
tudo, controle que, como se vê, ultrapassou em muito sua própria morte.
O Sudário de Turim, falsificação e obra de um gênio, também traz em si certos símbolos que
alientam as obsessões particulares de Leonardo que, no geral, também podem ser vista
s e melhor compreendidas em outras obras suas. Por exemplo, podemos ver na base
do pescoço da figura do Sudário uma linha demarcada bastante nítida. Quando a imagem c
omo um todo é transformada em um "mapa de contorno", utilizando-se as técnicas compu
tadorizadas mais sofisticadas, podemos ver que essa linha marca a parte final da
imagem da cabeça; a partir daí existe como que um oceano de inimaginável escuridão até a
imagem começar novamente no início do tórax. Acreditamos que existam duas razões para is
so. Uma delas é de ordem puramente prática, pois a imagem frontal é um composto, o cor
po sendo de alguém realmente crucificado e o rosto sendo do próprio Leonardo e, port
anto, a linha é um indicativo da necessária "junção" entre as partes. Entretanto, esse m
istificador não era de modo algum um artesão de segunda classe, e poderia com relati
va facilidade obscurecer ou remendar aquele sinal revelador. Mas e se Leonardo não
quisesse realmente se livrar dessa linha reveladora? E se ele a tivesse deixado
de propósito como uma pista para aqueles que "tem olhos que vêem"?
Qual é o volume possível de material herético, mesmo em código, que o Sudário de Turim pod
e transportar em si mesmo? Há com certeza um limite para os símbolos que alguém pode e
sconder em uma imagem simples e estática de um homem crucificado e nu, uma imagem
que, além disso, foi analisada por muitos cientistas eminentes dotados de equipame
ntos de última geração. Voltaremos a esses assuntos mais tarde, mas façamos por agora um
a mera indicação de que essas questões podem ser respondidas ao olharmos novamente par
a os dois aspectos principais da imagem. O primeiro se relaciona com a abundância
de sangue que parece estar ainda escorrendo dos braços de Jesus e que, à primeira vi
sta, contradiz a simbólica falta de vinho na mesa da Última Ceia, mas que de fato re
força esse ponto em particular. O segundo aspecto se refere à óbvia linha demarcatória e
ntre o corpo e a cabeça, como se Leonardo estivesse chamando nossa atenção para a deca
pitação...Até onde sabemos, Jesus não foi decapitado, e se a imagem é uma composição, estam
então sendo levados a fazer suposições sobre uma imagem composta de duas pessoas que,
contudo, nunca estiveram tão juntas antes. Mas, mesmo assim, por que alguém que foi
decapitado teria sido 'colado' à imagem de alguém que foi crucificado? .
Como ainda veremos, essa pista da cabeça decapitada do Sudário de Turim é apenas um re
forço no simbolismo presente em muitas outras obras de Leonardo. Percebemos o quan
to a estranha mulher, "M", da Última Ceia, está aparentemente sendo ameaçada por uma mão
que atravessa seu pescoço delicado, assim como Jesus também está sendo ameaçado por um
dedo em riste que aponta diretamente para seu rosto, como se estivessem dando um
aviso ou talvez uma advertência ou, quem sabe, ambos. Nas obras de Leonardo esse
dedo em riste sempre aparece, em todos os casos, como uma referência direta à figura
de João Batista.
Esse santo, dito predecessor de Jesus, que proclamou ao mundo "contemplai o Cord
eiro de Deus", cujas sandálias ele não era merecedor sequer de tocar, foi de suprema
importância para Leonardo, se julgarmos apenas pela onipresença deste em suas obras
. Essa obsessão é bastante estranha para quem é considerado por racionalistas contempo
râneos como alguém sem tempo para perder com religião. Um homem para quem todas as car
acterísticas e tradições do cristianismo nada significassem, dificilmente devotaria ta
nta energia e tanto tempo a um santo em particular, como ele fez com João Batista.
De tempos em tempos é esse João quem domina a vida de Leonardo, tanto no nível consci
ente, que está representado em suas obras, como em termos de sincronicidade relaci
onada com as coincidências que o envolviam. É quase como se João Batista o perseguisse
. Por exemplo, a sua amada cidade de Florença é dedicada ao santo, bem como a catedr
al de Turim, onde o falso Sudário de Leonardo está exposto. Sua última obra, que, junt
o com Mona Lisa, ficou exposta, sem ser reivindicada por quem quer que fosse, no
aposento onde passou suas últimas horas de vida, era um quadro de João Batista; e o
único fragmento de uma escultura sua (realizada em conjunto com Giovan Francesco
Rustici, um conhecido ocultista) também retratava João Batista. Ela agora está colocad
a no alto da entrada do batistério de Florença, bem em cima da cabeça dos turistas e,
infelizmente, servindo de alvo para um bando de pombos irreverentes.
Aquele dedo em riste, que chamamos de o 'sinal de João', foi retratado em Escola d
e Atenas, de Rafael (1509). Nele vemos o venerável Platão fazendo esse sinal, mas ne
ssas circunstâncias não chega a ser propriamente uma insinuação misteriosa, como alguém po
deria suspeitar. De fato, o modelo para Platão foi ninguém mais, ninguém menos que o p
róprio Leonardo, obviamente fazendo um gestual que não era apenas uma característica s
ua em particular, mas que também tinha um significado profundo para ele (bem como,
provavelmente, para Rafael e outros do mesmo círculo).
No caso de pensarem que talvez estejamos dando excessiva importância a isso que de
nominamos o 'sinal de João', vamos verificar outros exemplos em que ele aparece em
outras obras de Leonardo.
Aparece em muitas de suas pinturas, como já dissemos, sempre com o mesmo significa
do. No seu inacabado Adoração dos Reis Magos (que fora iniciado em 1481) um espectad
or anônimo faz o mesmo gesto bem próximo de um monte de terra ao lado do qual cresce
uma alfarrobeira. Muitos observadores provavelmente nem notariam tal coisa, poi
s seus olhos seriam inevitavelmente atraídos para o que pensariam ser o ponto cent
ral da pintura, conforme sugere o título da obra, a adoração da Sagrada Família pelos "h
omens sábios" ou Reis Magos. A bela e sonhadora Virgem, com o menino Jesus em seu
colo, é retratada como uma personagem insípida e pálida. Ajoelhados, os Reis Magos mos
tram-lhe os presentes que trouxeram para a criança, enquanto ao fundo uma multidão o
s cerca, aparentemente também em atitude de devoção para com a mãe e a criança. Como na Últ
ma Ceia, porém, esta é uma pintura cristã apenas na superfície e merece um olhar mais at
ento.
Os devotos no primeiro plano dificilmente poderiam ser chamados de exemplos de s
aúde e beleza. Esqueléticos, quase a ponto de parecerem defuntos, suas mãos estendidas
, menos em atitude de admiração e mais como se eles estivessem querendo se agarrar à V
irgem e ao menino, evocam um clima de pesadelo. Os Reis Magos mostram seus prese
ntes, mas apenas dois dos três da lenda estão retratados. Incenso e mirra estão sendo
oferecidos, mas não ouro. Para os da época de Leonardo, o ouro significava não somente
imediata riqueza mas também um símbolo de realeza - e isso está sendo negado a Jesus.
Atrás da Virgem e dos Reis Magos parece haver um segundo grupo de devotos. Esses são
muito mais saudáveis e têm um aparência normal, mas se alguém seguir a linha de direção de
seus olhares verá que não estão olhando nem para a Virgem e nem para a criança; ao invés d
isso, parecem estar reverenciando as raízes da alfarrobeira, na qual uma pessoa es
tá fazendo o "sinal de João". A alfarrobeira, aliás, é tradicionalmente associada à figura
de João Batista...
Embaixo e ao fundo, do lado direito da pintura, um jovem se volta deliberadament
e para o lado oposto ao da Sagrada Família. De modo geral aceita-se que esse seja
o próprio Leonardo, mas o argumento utilizado para explicar sua repulsa, a de que
o artista não se sente no direito de encará-la, é um tanto frágil e, como já veremos, difi
cilmente se mantém. Pois Leonardo é bem conhecido por não ter nenhum amor pela igreja.
Além disso, na caracterização de São Judas Tadeu na Última Ceia, ele também está voltado e
ireção oposta ao Redentor, deixando assim subentendida alguma emoção extrema em relação à f
ra central da história cristã. E como Leonardo não era exatamente um exemplo nem de pi
edade nem de humildade, essa reação não parece ter sido resultado de um sentimento de
inferioridade ou subserviência.
Voltando para os belos e obsessivos esboços de Leonardo para a Virgem Maria e o Me
nino Jesus com Sant'Ana (1501), que embeleza as paredes da National Gallery de L
ondres, encontramos novamente elementos que deveriam, embora raramente o façam, pe
rturbar o observador, em razão de suas implicações subversivas. Os desenhos mostram a
Virgem e o menino Jesus juntamente com Sant'Ana (mãe de Maria) e um João Batista cri
ança. O menino Jesus aparentemente abençoa seu primo João, que reflexivamente olha par
a cima, enquanto Sant'Ana, fazendo o "sinal de João" com uma enorme e estranha mão m
asculina, perscruta atentamente o rosto distraído de sua filha. Entretanto, esse d
edo em riste levanta-se exatamente sobre a delicada mão de Jesus que está dando bênçãos, c
omo se estivesse metafórica e literalmente ofuscando-a. E embora a Virgem pareça est
ar sentada em uma posição bastante desconfortável, quase como se estivesse montada de
lado em uma sela feminina, é a posição do menino Jesus que é realmente peculiar. A Virge
m o segura quase como se o impelisse a abençoar, como se ela o colocasse em cena a
penas para isso e apenas com dificuldade pudesse mantê-lo ali. Enquanto isso, João r
ecosta-se casualmente no joelho de Sant'Ana como se não se apercebesse da honra qu
e lhe estava sendo dada. Poderia ser que a própria mãe da Virgem a estivesse lembran
do de alguma coisa secreta relacionada com João?
Segundo a nota que acompanha a obra na National Gallery, alguns especialistas em
arte, confusos com a juventude de Sant'Ana e a estranha presença de João Batista, têm
especulado que a obra na verdade retrata Maria e sua prima Isabel, mãe de João. Iss
o é algo plausível, e se estiver correto reforça as nossas teses.
Essa aparente confusão entre Jesus e João também pode ser vista em uma das duas versões
da A Virgem dos Rochedos de Leonardo. Os historiadores da arte nunca explicaram
satisfatoriamente o porquê de serem duas. Uma delas é exposta com freqüência na National
Gallery em Londres e a outra, que para nós é muito mais interessante, está no Museu d
o Louvre em Paris.
A encomenda foi feita por uma organização conhecida como Irmandade da Imaculada Conc
eição, para uma única pintura a ser colocada como peça central de um tríptico para o altar
da capela da igreja de São Francesco Grand em Milão. (As outras duas pinturas do tríp
tico foram feitas por outros artistas). O contrato, de 25 de abril de 1483, aind
a existe e mostra um interessante contraste entre a obra encomendada e o que os
membros da irmandade realmente receberam. Eles especificaram cuidadosamente no c
ontrato o formato e as dimensões do quadro que queriam, o que era uma necessidade,
pois a moldura para a tela já existia. Estranhamente, ambas as versões acabadas de
Leonardo estavam dentro dessas especificações, embora não se saiba por que fez duas ve
rsões. Podemos, entretanto, arriscar um palpite sobre essas duas interpretações diverg
entes que, provavelmente, não foram feitas por uma questão de perfeccionismo e sim d
evido à consciência do potencial explosivo implícito.
O contrato também especificava o que deveria ser pintado. O tema se referia a um a
contecimento que não é mencionado nos Evangelhos, embora seja uma lenda cristã bastant
e conhecida. Era sobre a história de como, durante a fuga para o Egito, José, Maria
e Jesus, ainda um bebê, se abrigaram em uma caverna no deserto onde se encontraram
com o menino João Batista, que era protegido pelo arcanjo Ariel. O ponto central
dessa lenda é a de que ela permite evitar uma das questões mais óbvias e embaraçosas dec
orrentes do batismo de Jesus, conforme relatado nos Evangelhos. Por que alguém sup
ostamente sem pecados como o filho de Deus deveria ser submetido ao que, clarame
nte, era um ato de autoridade por parte de João Batista?
Essa lenda nos diz como, durante esse incrível encontro entre as duas crianças santa
s, Jesus conferiu a seu primo João a autoridade de batizá-lo quando ambos se tornass
em adultos. Por diversas razões essa encomenda da Irmandade é para nós uma das mais irôn
icas já pedidas a Leonardo, porém, também podemos suspeitar que ele teria ficado delic
iado em recebê-la e em fazer a interpretação que bem quisesse, pelo menos em uma das d
uas versões.
De acordo com o estilo então vigente, os membros da Irmandade solicitaram especifi
camente uma obra suntuosa, bastante ornamentada, arrematada com abundantes folha
s douradas e uma profusão de querubins e espíritos dos profetas do Antigo Testamento
para preencher os vazios. O que receberam, porém, foi algo bastante diferente, a
tal ponto que as relações entre eles e o artista se tornaram bastante estremecidas,
culminando em um processo jurídico que se arrastou por mais de 20 anos.
Leonardo decidiu representar as cenas de forma tão realista quanto possível, sem per
sonagens extras. Não haveria gorduchos querubins ou fantasmagóricos profetas do apoc
alipse. De fato, a dramatis personae talvez tenha sido reduzida de um modo um ta
nto excessivo, pois, embora tal cena supostamente retrate a fuga para o Egito da
Sagrada Família, José não aparece na pintura de forma alguma.
A versão que está no Louvre, a primeira das duas, mostra a Virgem vestida com um man
to azul protegendo uma criança e a outra criança sendo retratada em conjunto com Ari
el. O curioso é que as duas crianças são idênticas, mas, mais estranho ainda, é a criança q
e está junto ao anjo estar abençoando a outra e a criança junto a Maria estar ajoelhad
a em subserviência. Isso fez com que os historiadores da arte presumissem que Leon
ardo escolheu, por qualquer razão que seja, colocar o menino João junto a Maria. Afi
nal, não há legendas identificando as pessoas e certamente a criança que tem a autorid
ade para abençoar deve ser Jesus.
Existem, porém, outras maneiras de se interpretar essa obra, maneiras que não apenas
sugerem uma forte mensagem subconsciente e de cunho não ortodoxo, mas que também re
forçam os códigos utilizados por Leonardo em outros trabalhos. Talvez a semelhança ent
re as duas crianças sugira que Leonardo, deliberadamente e com propósitos particular
es, camuflou suas identidades. E enquanto Maria está abraçando protetoramente a cria
nça geralmente identificada como sendo João, ela estende sua mão esquerda acima da cab
eça de 'Jesus' , no que parece ser um gesto de clara hostilidade. Serge Bramly, em
sua recente biografia de Leonardo, descreveu esse gesto como 'reminiscências das
garras de uma ave de rapina'. Ariel está apontando em direção à criança que está com Maria,
mas está também, significativamente, olhando de forma enigmática para o observador, ou
seja, olhando de forma resoluta para longe da Virgem e o menino. Embora possa s
er mais fácil e aceitável interpretar tal gesto como sendo uma indicação de qual dos doi
s é o Messias, existem outras possibilidades de resposta.
E se admitirmos, como seria lógico esperar, que a criança que está com Maria, na versão
do Louvre de A Virgem dos Rochedos, é Jesus e a mais jovem com Ariel é João? Nesse cas
o é João quem está abençoando Jesus, e este estaria se submetendo à autoridade daquele. Ar
iel, como protetor especial de João, está até mesmo evitando olhar para Jesus. E Maria
, protegendo seu filho, está mostrando uma mão ameaçadora bem acima da cabeça de João. Alg
uns centímetros diretamente abaixo da mão espalmada de Maria, a mão de Ariel se atrave
ssa de um modo que faz com que esses dois gestos pareçam conter alguma pista enigmát
ica. É como se Leonardo estivesse indicando que algum objeto, algum traço significat
ivo, embora invisível, deveria preencher o vazio deixado. Dentro desse contexto não
seria nada fantasioso imaginar que os dedos estendidos de Maria estariam ali pos
icionados em substituição a uma coroa colocada sobre uma cabeça invisível, enquanto os d
edos de Ariel cortam o espaço justamente onde deveria estar o pescoço de tal cabeça. E
ssa cabeça fantasma flutua precisamente acima da criança que está com Ariel...Assim, p
oderá haver dúvida sobre a identidade daquela das duas crianças que será morta por decap
itação? E se essa criança que está abençoando for realmente João Batista, não será ela, por
, superior à outra?
Contudo, quando nos voltamos para a versão que está na National Gallery, que é de um p
eríodo posterior, percebemos que todos os elementos necessários para produzir essas
deduções heréticas se perdem, mas apenas esses elementos. As duas crianças são bastante di
ferentes em sua aparência, e a que está com Maria traz em si a cruz de João Batista (e
mbora talvez seja verdade que ela tenha sido acrescida, tempos depois, por um ou
tro artista).Aqui, a mão de Maria ainda está estendida sobre a outra criança. Dessa ve
z, porém, não há nada que sugira uma ameaça. Ariel não aponta e nem olha para longe da cen
a. É como se Leonardo estivesse nos convidando a 'localizar a diferença', deixando q
ue nós mesmos tirássemos as conclusões necessárias sobre essas anomalias. .
Esses estudos da obra de Leonardo revelam uma diversidade de significados oculto
s ao mesmo tempo provocantes e perturbadores. Parece haver uma repetição, utilizando
vários símbolos e sinais simples e subconscientes, ao redor do tema de João Batista.
Ele é continuamente colocado, e as imagens denotam isso, acima da figura de Jesus,
inclusive, se estivermos certos, nos símbolos que estão dissimuladamente gravados n
o próprio Sudário de Turim.
Há algo de compulsivo nessa insistência, não apenas em relação à complexidade das imagens q
e Leonardo utilizou como, também, no risco que correu em mostrar ao mundo essas he
resias, mesmo construídas de modo tão inteligentemente subliminar. Talvez, como já col
ocamos, a razão de ele ter finalizado tão poucas obras não deva ser debitada na conta
de um perfeccionismo exagerado, mas ao fato de ter consciência do que poderia lhe
acontecer se alguém importante conseguisse enxergar para além da linha que separa a
ortodoxia e a completa 'blasfêmia' oculta sob a superfície. Talvez até mesmo um gênio co
mo Leonardo se acautelasse, a fim de não cair nas garras das autoridades. Uma vez
já foi o suficiente para ele.
Contudo, com certeza ele não teria nenhuma necessidade de pôr sua cabeça a prêmio retrat
ando tais heresias em suas obras, a menos que acreditasse nelas de forma verdade
iramente apaixonada. Como já vimos, longe de ser o materialista ateu amado por mui
tos de nossos contemporâneos, Leonardo estava seriamente comprometido com um siste
ma de crenças que navegava em direção totalmente contrária ao que era, e ainda é, o discur
so central do cristianismo. Esse sistema de crenças era o que muitos chamariam de
'ocultismo'.
Atualmente, para muitas pessoas esse é um mundo que tem conotações pré-concebidas e bem
pouco positivas. O ocultismo é diretamente relacionado com magia negra ou truques
de charlatães depravados ou ambos. No entanto, a palavra 'ocultismo' significa sim
plesmente 'escondido' e é comumente utilizada na astronomia para, por exemplo, des
crever algum corpo espacial que esteja 'ocultando' ou eclipsando um outro. No qu
e se refere a Leonardo, poderíamos concordar que enquanto houvesse realmente eleme
ntos em sua vida e em sua crença que resvalavam para rituais sinistros e práticas mági
cas, é verdade também que ele buscava conhecimento, acima e além de qualquer coisa. Do
que ele procurava, entretanto, a maior parte era mantida realmente 'oculta', pe
la sociedade de um modo geral e por uma organização, onipresente e poderosa, em part
icular. A Igreja desaprovava, na maior parte da Europa, qualquer experiência científ
ica e tomava medidas drásticas a fim de silenciar quem tornasse públicas suas visões h
eterodoxas ou extremamente pessoais.
Florença, entretanto, onde Leonardo nasceu, se educou e em cuja corte sua carreira
realmente se iniciou, era um centro florescente de uma nova onda tecnológica. Iss
o, extraordinário por si só, estava em total consonância com o fato de a cidade ser um
refúgio para um grande número de mágicos e ocultistas influentes. Os primeiros patron
os de Leonardo, a família dos Medici, que governava a cidade, encorajaram ativamen
te o estudo do ocultismo e até patrocinavam pesquisadores a procurar e traduzir ce
rtos manuscritos perdidos.
Essa fascinação pelo misterioso não era o equivalente renascentista do interesse por h
oróscopos, avidamente procurados nos jornais de hoje em dia. Embora houvesse inevi
tavelmente áreas de investigação que pareceriam a nós ingênuas e tolamente supersticiosas,
havia também muitas outras que representavam uma séria tentativa para entender o un
iverso e o lugar do homem nele. Os mágicos, entretanto, procuraram ir um pouco mai
s longe ao tentar descobrir como controlar as forças da natureza. Olhando sob essa
ótica, talvez não seja tão inacreditável que Leonardo fosse, entre tantos outros, um at
ivo participante do movimento ocultista de sua época e de sua cidade. E a distinta
historiadora Dame Frances Yates chegou mesmo a sugerir que a chave que permitia
o vôo de longo alcance da genialidade de Leonardo se ancorava nos conceitos sobre
magia desenvolvidos em sua época.
Os detalhes das filosofias predominantes na época, inseridas no movimento ocultist
a de Florença, podem ser encontrados em nosso livro anterior, mas, em linhas gerai
s, a pedra de toque de todos os grupos da época era o hermetismo, denominação que vinh
a de Hermes Trismegistos, o grande, se não legendário, mago egípcio cujos livros apres
entam um coerente sistema de magia. A parte mais importante do pensamento hermétic
o era a idéia de o homem ser literalmente divino, um conceito por si só tão ameaçador qu
e a Igreja, a fim de não deixar que ele entrasse nos corações e espíritos de seu rebanho
, o classificou como motivo para a excomunhão de quem o professasse.
Os princípios herméticos estavam, certamente, presentes na vida e na obra de Leonard
o, mas à primeira vista parecia haver uma óbvia discrepância entre essas sofisticadas
idéias filosóficas e cosmológicas e os aspectos heréticos que, apesar de tudo, preservav
am a importância das figuras bíblicas. (Devemos destacar que as crenças heterodoxas de
Leonardo e seu círculo não eram apenas conseqüência de uma reação contra uma igreja corrup
a e dogmática. Como está escrito na história, havia realmente uma forte e explícita reação
ontra a Igreja de Roma: o movimento Protestante. Mas estivesse Leonardo vivo hoj
e e nós, com certeza, tão pouco o encontraríamos rezando nesse tipo de igreja).
Entretanto, há uma evidência suficientemente forte para fazer com que os herméticos po
ssam também ser considerados totalmente heréticos. Giordano Bruno (1548-1600), prega
dor fanático do hermetismo, proclamou que suas crenças vieram de uma antiga religião e
gípcia que, além de ser anterior ao cristianismo, era muito mais importante do que e
ste.
Uma parte desse próspero mundo ocultista, embora ainda um tanto frágil para merecer
a desaprovação da Igreja, era formada pelo grupo dos alquimistas. Eles também são um gru
po atingido pelo preconceito atual. Hoje em dia recebem a pecha de tolos que des
perdiçavam suas vidas tentando em vão transformar metal comum em ouro. Na verdade, p
orém, essa imagem foi uma útil cortina de fumaça para os alquimistas sérios que estavam
mais preocupados com experiências científicas e também com transformações pessoais e o con
trole implícito de seus próprios destinos. Mais uma vez, não é difícil concluir que alguém
faminto por conhecimento quanto era Leonardo faria parte de tal movimento, talv
ez fosse até mesmo um de seus pioneiros. Embora não haja uma evidência direta de seu e
nvolvimento, ele era conhecido por manter relações com ocultistas dos mais diversos
matizes, e nossa pesquisa sobre sua falsificação do Sudário de Turim nos dá segura indic
ação de que essa imagem foi um resultado direto de suas próprias experiências 'alquímicas'
(na verdade, chegamos à conclusão de que a fotografia era apenas um entre outros gr
andes segredos da alquimia).
Simplificando: é muito improvável que Leonardo não tenha tido um contato íntimo com algu
m dos sistemas de conhecimento que estavam disponíveis em sua época, mas ao mesmo te
mpo, dados os riscos envolvidos em fazer parte deles abertamente, é igualmente imp
rovável que deixasse registrado por escrito qualquer traço de evidência que o ligasse
a tais sistemas. Contudo, como já vimos, os símbolos e imagens que ele utilizou repe
tidamente nas suas assim chamadas obras cristãs com certeza não seriam apreciadas pe
las autoridades da Igreja, tivessem elas percebido sua verdadeira natureza.
De qualquer modo, essa fascinação com o hermetismo parece ser, ao menos na superfície,
quase que o extremo oposto de uma escala de preocupações que colocasse João Batista e
o suposto significado da mulher "M" no ponto máximo. Na verdade, foi essa discrepân
cia que nos confundiu a tal ponto que tivemos que nos aprofundar ainda mais. É cla
ro que se poderia argumentar que o significado dessa coleção de dedos em riste apena
s nos diz que um gênio da Renascença era obcecado por João Batista. Seria possível, porém,
que houvesse um significado mais profundo por trás da crença pessoal de Leonardo? A
mensagem que podemos ler em suas pinturas tinha algum fundo de verdade?
Com certeza o Mestre já era bastante conhecido nos círculos do ocultismo como sendo
alguém possuidor de um conhecimento secreto. Quando começamos a pesquisar sua partic
ipação no Sudário de Turim nos deparamos com muitos rumores antigos que diziam que não só
havia um dedo dele nessa criação, como também era conhecido por ser um mago de algum r
enome. Há até mesmo um cartaz parisiense do século XIX fazendo propaganda do Salão da Ro
sa + Cruz, um lugar de encontros para ocultistas de espírito artístico, que retratav
a Leonardo como o Guardião do Santo Graal (que em determinados círculos pode ser tom
ado como alcunha do Guardião dos Mistérios). Mais uma vez, rumores e licença poética não a
crescentam muita coisa por si mesmos, mas, colocados em conjunto com todas as in
dicações listadas acima, certamente abriram nosso apetite para conhecermos mais sobr
e esse Leonardo desconhecido.
Até aqui conseguimos isolar o que parece ser o foco principal das obsessões de Leona
rdo:João Batista. Embora fosse natural que, vivendo em Florença, recebesse encomenda
s para pintar ou esculpir esse santo, já que essa cidade era dedicada a João Batista
, a verdade é que, ao ser deixado livre para fazer o que bem quisesse, Leonardo es
colhia exatamente o mesmo. Afinal, a última pintura de Leonardo, em 1519, foi um q
uadro relativo à morte de João Batista, que não fora encomendado por ninguém e sim feito
por vontade própria.Talvez quisesse a imagem para observá-la enquanto estivesse mor
rendo. E mesmo quando era pago para pintar uma cena cristã ortodoxa, e sempre que
possível, ele enfatizava o papel de João Batista.
Conforme vimos, suas imagens de João foram elaboradamente preparadas para veicular
uma mensagem específica, mesmo que fosse divulgada de forma imprecisa e sublimina
r. João, com certeza, devia ser retratado como sendo alguém importante. Afinal, ele
era o predecessor, o parente heráldico e sangüíneo de Jesus, e, portanto, era natural
que seu papel fosse reconhecido dessa forma. Mas Leonardo não dizia que o Batista
era inferior a Jesus, como faziam todos os outros. No seu quadro Virgem dos Roch
edos o anjo está, afirmamos, apontando para João, que está abençoando Jesus, e não o contrá
io. Na Adoração dos Reis Magos as pessoas saudáveis e de aparência normal estão venerando
as nobres raízes de uma alfarrobeira, árvore de João, em vez da pálida Virgem com o meni
no. E o "sinal de João", aquele dedo da mão direita em riste, está apontado para a fac
e de Jesus na Última Ceia no que, com certeza, não é uma maneira de se demonstrar amor
ou apoio; na verdade, a imagem parece dizer de um modo rude e ameaçador, "Lembre-
se de João". E o menos conhecido dos trabalhos de Leonardo, o Sudário de Turim, se a
póia no mesmo tipo de simbolismo, com sua imagem de uma aparente cabeça decapitada c
olocada 'sobre' um corpo crucificado. A evidência irresistível é que, para Leonardo ao
menos, João Batista foi realmente superior a Jesus.
Tudo isso pode fazer com que Leonardo pareça ser uma voz solitária pregando no deser
to. Afinal, muitos dos grandes gênios têm sido pessoas excêntricas, para dizer o mínimo.
Talvez essa fosse uma área de sua vida onde ele podia se colocar ao largo das con
venções de sua época. Estamos, porém, conscientes, desde o início de nossa pesquisa no fin
al dos anos 80, do aparecimento recente de evidências, embora de uma natureza alta
mente controversa, que o ligam a uma sociedade secreta poderosa e sinistra. Esse
grupo, que, alega-se, já existia muitos séculos antes do aparecimento de Leonardo,
incluía alguns dos indivíduos mais influentes da história européia e, de acordo com noss
as fontes, continua a existir atualmente. Os primeiros líderes dessa organização, conf
orme indícios que levantamos, pertenciam à aristocracia, e atualmente são algumas das
figuras mais influentes na área política e econômica, que a mantêm viva por propósitos par
ticulares.
Embora acreditássemos piamente, no início de nossas pesquisas, que iríamos gastar noss
o tempo em galerias de arte, decodificando obras do renascimento, logo percebemo
s que não podíamos estar mais equivocados.
* Aos vinte e quatro anos, Leonardo foi preso sob acusação de sodomia, crime cuja pe
na era a morte. A acusação foi retirada, pois um dos jovens que fora preso junto com
ele pertencia à família que dominava Florença.A experiência, porém, parece ter causado um
efeito profundo em sua vida, e a partir de então ele nutriu suas obsessões no silênci
o de sua privacidade.
CAPÍTULO II
Entrando em Outro Mundo
Nossa pesquisa sobre esse 'Leonardo desconhecido' iria se tornar uma investigação lo
nga, envolvente e inacreditável, mais parecida com uma iniciação do que com uma simple
s viagem do ponto A até o ponto B. Durante nossa iniciação, chegamos a muitos becos se
m saída e começamos a nos sentir emaranhados no mundo daqueles que estavam conectado
s com essas sociedades secretas; e que se divertiam com jogos sinistros e em des
empenhar o papel de agentes de desinformação. Perguntamo-nos várias vezes, ainda um ta
nto aturdidos, como é que uma simples pesquisa sobre a vida e a obra de Leonardo d
a Vinci poderia ter nos arremessado em um mundo que acreditávamos só existir em film
es impenetráveis como Orphée, do grande surrealista francês Jean Cocteau, que é a descrição
de um outro mundo, onde só se pode entrar atravessando um espelho.
Na verdade, foi esse grande representante do bizarro, Cocteau, quem nos daria ai
nda outras pistas, não só sobre as crenças pessoais de Leonardo, como também em relação à e
tência ininterrupta de uma tradição ocultista que se ocupava dos mesmos assuntos tão car
os a ele. Iríamos descobrir que Cocteau (1889-1963) realmente parecia ter se envol
vido com essa sociedade secreta; o que nos permite inferir isso será discutido mai
s tarde. Primeiro vamos analisar o conjunto de evidências que está mais à mão, aquele qu
e está bem diante de nossos olhos.
Surpreendentemente próximo às luzes brilhantes e glamourosas da Praça Leicester, em Lo
ndres, está a igreja de Notre-Dame de France. Localizada no bairro de Leicester, v
izinha de uma sorveteria da moda, é bem difícil de se achar, porque sua fachada não of
erece a resplandecência que associaríamos à maioria das igrejas católicas. Poder-se-ia p
assar por ela sem sequer notá-la e certamente sem perceber o quanto sua aparência se
diferencia da maioria das outras igrejas cristãs.
Construída em 1865, em um local relacionado aos Cavaleiros Templários, Notre-Dame de
France foi quase totalmente destruída pelas bombas nazistas durante a blitzkrieg
(Em alemão no original. Palavra referente aos rápidos e maciços ataques alemães durante
a II Guerra Mundial) e reconstruída no final dos anos 50. Passando por seu modesto
aspecto exterior, o visitante entra em uma sala grande, alta e ventilada que, à p
rimeira vista, parece ter sido projetada com a mesma arquitetura típica das igreja
s modernas. Quase desprovida dos ornamentos usuais que adornam muitas outras igr
ejas, ela possui, contudo, pequenas placas retratando a Via Crucis; um altar alt
o sob uma tapeçaria retratando uma Virgem jovem e loura, rodeada por adoráveis anima
is, os quais, embora lembrem algumas das cenas mais engraçadinhas dos filmes de Di
sney, ainda assim cabem no que se pode chamar de uma descrição aceitável de Maria quan
do jovem. E há também alguns anjos de gesso reinando sobre as laterais da capela. Do
lado esquerdo de quem olha o altar de frente, entretanto, há uma pequena capela q
ue não tem nenhuma estátua a ser cultuada, embora, na verdade, tenha seu próprio séquito
de devotos. Os visitantes, admirados, tiram fotografias do mural incomum, de au
toria de Jean Cocteau, que o terminou em 1960. A igreja, por sua vez, orgulha-se
de vender cartões-postais estampados com a sua obra de arte, que é bastante famosa.
Mas, como acontece com os chamados trabalhos cristãos de Leonardo, esse afresco,
quando examinado de modo mais meticuloso, revela um simbolismo muito pouco ortod
oxo. A comparação com as obras de Leonardo não é de modo algum fortuita. Mesmo levando-s
e em conta o espaço de 500 anos entre uma obra e outra, seria possível imaginar que
Leonardo e Cocteau estiveram, de algum modo, colaborando entre si através dos temp
os?
Antes de centrarmos nossa atenção nessa preciosa obra de Cocteau, façamos uma visita à i
greja de Notre-Dame de France. Embora não seja a única, com certeza é algo bastante in
comum uma igreja católica ter um formato circular, sendo este bastante enfatizado
aqui, em diversos detalhes. Por exemplo, há uma notável cúpula em formato de clarabóia,
adornada com desenhos de círculos concêntricos, os quais, não seria tolice se assim in
terpretássemos, formam uma espécie de teia de aranha. E as paredes, tanto as de dent
ro quanto as de fora, contêm um repetitivo motivo de cruzes de lados iguais, e ain
da mais círculos.
A igreja do pós-guerra, relativamente nova, portanto, e que, como descobriremos, e
ra um ponto de convergência para os grupos cujas crenças religiosas não eram tão ortodox
as quanto nos levariam a acreditar os livros de história, incorporou com muito org
ulho em sua construção uma laje de pedra que pertencera à Catedral de Chartres, a jóia d
a coroa da arquitetura gótica. Pode-se argumentar que nada há de tão excepcional ou si
nistro em utilizar essa laje de pedra na construção, pois afinal, durante a guerra,
essa igreja era um ponto de encontro da resistência francesa, e uma pedra vinda de
Chartres seria, com certeza, um símbolo pungente da terra natal a ser defendida.
Entretanto, nossa pesquisa iria mostrar que há ainda muito mais do que isso.
Dia após dia, muitas pessoas, londrinos e visitantes de outros lugares, entram em
Notre-Dame de France para rezar e assistir aos serviços religiosos. A igreja parec
e ser uma das mais freqüentadas de Londres, além de servir como um abrigo convenient
e para os moradores de rua, que são tratados com extrema bondade. Porém, é o mural de
Cocteau que age como um ímã para a maioria dos que lá vão, como parte do roteiro de sua
visita a Londres, embora também aproveitem esse oásis de sossego para fugir ao barul
ho e à agitação da metrópole.
Ao se olhar o afresco pela primeira vez, é bem possível que se fique um tanto desapo
ntado, pois, como muitas outras obras de Cocteau, a princípio ele parece ser pouco
mais do que um esboço pintado, o retrato de uma cena simples com um parco colorid
o sobre o gesso. O afresco mostra a crucificação: a vítima rodeada de atemorizados sol
dados romanos, mulheres mortificadas e discípulos. Estão aí presentes, pode-se dizer,
todos os elementos necessários para se retratar a cena tradicional da crucificação de
Jesus. Contudo, assim como na Última Ceia de Leonardo, ela também merece um exame ma
is cuidadoso, mais crítico e, até mesmo, mais sensato.
É bem possível que a figura central, vítima de um dos mais terríveis tipos de morte atra
vés de tortura, seja Jesus. No entanto, a verdade é que, simplesmente, desconhecemos
sua identidade, porque o vemos apenas do joelho para baixo. A parte de cima do
corpo não é mostrada. E aos pés da cruz há uma enorme rosa vermelho-azulada.
No primeiro plano há um personagem que não é nem romano nem discípulo, e está se afastando
da cruz. Sua fisionomia transparece um grande incômodo relacionado à cena. De certo
, presenciar a morte de qualquer homem em tais circunstâncias é um acontecimento ext
remamente perturbador, algo certamente angustiante. Ainda mais nesse caso em par
ticular, pois deve ser algo indescritivelmente traumático estar presente quando o
Deus encarnado está se esvaindo em sangue. No entanto, a expressão desse personagem
não é a de um homem consternado, nem a de um devoto desolado. Se formos realmente ho
nestos, o cenho franzido e o olhar de soslaio caracterizam uma testemunha um tan
to desiludida, até mesmo cheia de aversão. Essa reação não é de alguém que está disposto, m
que remotamente, a submeter-se à autoridade de outrem, postar-se de joelhos e começa
r a orar, mas sim a de alguém que expressa sua opinião diante de um igual.
Quem será essa presença que comparece ao ato mais sagrado do cristianismo com um ar
de desaprovação? Ninguém mais, ninguém menos do que o próprio Cocteau. E se considerarmos
que Leonardo retratou a si mesmo desviando seu olhar para longe da Sagrada Família
na Adoração dos Reis Magos, e de Jesus na Última Ceia, há pelo menos alguma semelhança en
tre essas obras. E quando levamos em conta as afirmações de que os dois artistas era
m membros de alto escalão da mesma e herética sociedade secreta, torna-se irresistível
a realização de uma investigação mais profunda.
Pairando sobre a cena, há um sol negro, como um olhar ameaçador, espalhando seus rai
os escuros por todo o céu. Diante dele posta-se uma pessoa, talvez um homem, com a
silhueta recortada contra o horizonte, cujos olhos erguidos e salientes parecem
-se incrivelmente com um par de seios buliçosos, Quatro soldados romanos, em poses
épicas, colocam-se ao redor da cruz. Seguram lanças em ângulos estranhos e talvez sig
nificativos, sendo que um deles porta um escudo, que tem como emblema uma águia es
tilizada. Aos pés dos dois está uma peça de tecido sobre o qual alguns dados estão espal
hados. A soma total dos números que aparecem é igual a 58.
Um jovem insípido cruza suas mãos aos pés da cruz. Seu olhar um tanto vago observa uma
das duas mulheres que são retratadas. Elas, por sua vez, parecem estar unidas, fo
rmando um grande "M", bem debaixo do homem com olhos em forma de seios, A mais v
elha das mulheres olha para baixo, aflita, parecendo verter lágrimas de sangue. A
mais jovem, que literalmente se afasta, dá as costas à cruz, mesmo estando próxima a e
ssa. Outra figura em forma de 'M' repete-se na frente do altar, que está diante do
mural. Na extrema direita da obra, a última das figuras retratadas é a de um homem
de idade indeterminada, cujo único olho visível tem a aparência inconfundível de um peix
e.
Alguns estudiosos têm dito que o ângulo das lanças dos soldados forma um pentagrama, u
m símbolo nada ortodoxo e que não tem lugar em uma cena cristã tradicional como essa.
Esse símbolo, mesmo sendo intrigante, não faz parte de nossa investigação. Como já vimos,
parecem existir ligações visíveis entre as mensagens subconscientes presentes nos trab
alhos religiosos de Cocteau e Leonardo, e é esse uso compartilhado de certos símbolo
s que nos chama a atenção.
Os nomes de Leonardo da Vinci e Jean Cocteau aparecem na lista dos Grãos Mestres d
aquela que se auto denomina uma das mais antigas e influentes sociedades secreta
s da Europa, o Prieuré de Sion, o Monastério de Sion. Fonte de muitas controvérsias, s
ua existência tem sido colocada em dúvida e, portanto, quaisquer de suas supostas at
ividades têm sido, com freqüência, ridicularizadas, e suas conexões, ignoradas. No início,
tivemos a mesma reação, porém, investigações posteriores revelaram que a questão não era a
m tão simples.
O Monastério de Sion chamou atenção, pela primeira vez, dos povos de língua inglesa some
nte em 1982, através do best-seller The Holy Blood and the Holy Grail, de Michael
Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln, embora sua edição original em francês seja do
início dos anos 60. O Monastério é uma ordem cavalheiresca e semi-maçônica com alguma ambiç
política e, parece, considerável força nos labirintos do poder. Posto isso, é bastante d
ifícil categorizar o Monastério, talvez porque haja algo essencialmente quimérico em r
elação à operação como um todo. Nada há de ilusório, entretanto, em relação à informação qu
sada por um representante do Monastério, com quem nos encontramos no início de 1991.
Esse encontro foi resultado de uma série de cartas, um tanto estranhas, enviadas
a nós, após termos participado de um debate no rádio sobre o Sudário de Turim.
Os fatos relacionados a esse encontro um tanto surreal estão detalhados em um livr
o anterior. Por ora, diremos apenas que um certo 'Giovanni', a quem só conhecemos
através desse pseudônimo, um italiano que dizia pertencer ao alto escalão do Monastério
de Sion, havia nos observado cuidadosamente durante os primeiros estágios de nossa
pesquisa sobre Leonardo e o Sudário. Qualquer que tenha sido a razão, ele finalment
e decidiu entrar em contato conosco e falar sobre certos interesses da organização e
, quem sabe, nos envolver em seus planos. Grande parte das informações que nos passo
u foi divulgada em nosso livro sobre o Sudário de Turim, após termos, de um modo um
tanto tortuoso, checado a fundo todas elas. Porém, mais uma vez, essas informações não são
pertinentes a este trabalho e, portanto, não falaremos delas aqui.
Apesar das conseqüências possivelmente espantosas, ou mesmo chocantes, relacionadas às
informações de Giovanni, nós nos sentíamos realmente tentados a levar a sério a maior par
te delas, pois nossas pesquisas as confirmavam. Por exemplo, a imagem do Sudário d
e Turim comporta-se como uma fotografia, conforme já demonstramos, pois é exatamente
isso o que ela é. E se as informações de Giovanni, como ele afirmou, realmente tivess
em como fonte os arquivos do Monastério, então existe uma razão efetiva para seguirmos
a linha de raciocínio proposta por essa organização, quem sabe, talvez, com uma pitad
a de saudável ceticismo, sem de modo algum negá-las de forma imediata e definitiva,
como fazem muitos dos inimigos do Monastério.
Quando começamos a nos aprofundar no mundo secreto de Leonardo, logo percebemos qu
e, se essa sociedade oculta realmente fosse parte integral da sua vida, então seri
a bem possível que fosse a fonte geradora das forças que o motivavam. Se ele realmen
te fizesse parte de alguma rede poderosa do submundo, então talvez seus influentes
patronos, como os Lorenzo de Medici e Francisco I, da França, também o fizessem. Tu
do indica que havia realmente uma sociedade secreta que alimentava as obsessões de
Leonardo: mas será que era, como alguns alegam, o Monastério de Sion?
Se as afirmações relacionadas ao Monastério forem verdadeiras, então essa organização já er
enerável quando Leonardo ingressou em suas fileiras. Sendo tão antigo quanto for, po
rém, o Monastério deve ter exercido uma poderosa atração, talvez mesmo inigualável, para o
jovem artista e para muitos de seus incrédulos colegas renascentistas. Talvez, co
mo os modernos maçons, ela propiciasse um avanço material e social, facilitando os p
assos do jovem artista entre os meandros da corte européia mais influente, mas iss
o não explica a evidente profundidade das estranhas crenças pessoais de Leonardo. Te
nha ele feito parte ou não, a sociedade exerceu um forte apelo sobre o seu espírito,
tanto quanto sobre os seus interesses materiais.
A base do poder do Monastério de Sion reside, ao menos em parte, na sugestão de que
seus membros eram, e sempre foram, guardiães de um grande segredo, um segredo que,
se fosse tornado público, faria balançar os alicerces tanto da Igreja quanto do Est
ado. O Monastério de Sion, algumas vezes chamado de Ordem de Sion ou Ordem de Noss
a Senhora de Sion, além de alguns outros títulos pouco utilizados, afirma que sua fu
ndação remonta a 1099, época da primeira Cruzada. E mesmo essa data serve apenas ao pr
opósito de institucionalizar o grupo, guardião de um conhecimento explosivo, que, po
rém, já existia há muito mais tempo. O Monastério afirma ser a força criadora por trás dos
avaleiros Templários, esse original corpo medieval de monges-soldados de sinistra
reputação. O Monastério e os Templários se tornaram, ao menos assim se afirma, virtualme
nte a mesma organização, presidida pelo mesmo Grã-Mestre, até que fossem vítimas de um cis
ma e se separassem, em 1188. O Monastério continuou sob a custódia de uma série de Grão-
Mestres, incluindo alguns dos nomes mais ilustres da história, como Isaac Newton,
Sandro Filipepi (conhecido como Botticelli), Robert Fludd, o filósofo do ocultismo
inglês e, claro, Leonardo da Vinci que, alega-se, presidiu o Monastério durante os úl
timos nove anos de sua vida. Entre seus líderes mais recentes estiveram Victor Hug
o, Claude Debussy e o artista, escritor, roteirista e diretor de filmes Jean Coc
teau. E embora estes não fossem Grãos Mestres, o Monastério, afirmam alguns, vem atrai
ndo diversos luminares ao longo dos séculos, como Joana D'Arc, Nostradamus (Michea
l de Notre Dame) e até mesmo o Papa João XXIII.
Celebridades à parte, a história do Monastério de Sion, segundo se alega, envolve gerações
e gerações de algumas das famílias mais influentes da aristocracia européia. Estas incl
uem os d'Anjous, os Habsburgs, os Sinclair e os Montgomery.
O objetivo público do Monastério é proteger os descendentes da antiga dinastia dos Mer
ovíngios, reis do que hoje é a França, e clã detentor do poder nessa região, do século quin
o até o assassinato de Dagoberto II, no final do século dezessete. Seus detratores,
entretanto, afirmam que o Monastério de Sion passou a existir apenas a partir de 1
950 e que consiste de um punhado de mitômanos sem qualquer poder real, monarquista
s com ilimitados sonhos de grandeza.
Então, se por um lado temos as afirmações do próprio Monastério sobre sua linhagem e raiso
n d'étre, por outro, temos as opiniões de seus críticos. Deparamo-nos, então, com um im
enso rio sem pontes e, para sermos sinceros, estávamos cheios de dúvidas sobre conti
nuar seguindo com essa linha de pesquisa. Entretanto, percebemos que, embora uma
análise do Monastério recaia logicamente em duas frentes, ou seja, as questões pertin
entes à sua existência recente e suas próprias alegações de cunho histórico, o assunto é po
emais complexo e nada é muito claro em relação ao que quer que esteja em conexão com ess
a organização. Uma conexão dúbia ou uma aparente contradição em relação às atividades do Mo
inevitavelmente faz com que os cépticos denunciem a coisa toda como um completo ab
surdo do início ao fim. Devemos relembrar, contudo, que estamos lidando com fabric
antes-de-mitos, que com freqüência preocupam-se mais em tornar convenientes, através d
o uso de imagens arquetípicas, idéias poderosas e até mesmo chocantes, do que em trans
mitir uma verdade de modo literal.
Que o Monastério existe atualmente, não temos a menor dúvida. Nossas conversas com Gio
vanni nos persuadiram de que, no mínimo, não era um confidente trapaceiro e ocasiona
l, e que deveríamos dar crédito às suas informações.Ele não apenas nos passou informações i
máveis sobre o Sudário de Turim, como também nos supriu com detalhes relacionados a vári
os outros indivíduos que estão atualmente envolvidos com o Monastério, além de informações
obre outras organizações esotéricas, talvez associadas, tanto na Inglaterra quanto no
continente europeu. Mencionou, por exemplo, como sendo seu companheiro de organi
zação, um publicitário com o qual um de nós já havia trabalhado nos anos 70. À primeira vis
a, a afirmação de Giovanni sobre esse homem nos pareceu apenas uma maliciosa fantasi
a de sua parte, porém, dali a alguns meses, algo muito estranho aconteceu.
Por meio de uma notável sincronicidade, o publicitário compareceu a uma festa dada p
or uma de nossas amigas, em novembro de 1991, em um restaurante de que ela gosta
va em particular, bem longe de sua casa em Home Counties (bairro da cidade de Lo
ndres) , mas logo na esquina da casa de um de nós. Foi, portanto, uma enorme surpr
esa encontrar alguém que havia sido mencionado por Giovanni, como sendo um dos mem
bros da organização, em um restaurante nas vizinhanças. Entramos, então, em contato e, l
ogo depois, fomos convidados a ir até sua casa em Surrey. Sempre uma boa companhia
, passamos horas bastante agradáveis com ele e sua esposa, mas pouco a pouco o fat
o se tornou evidente: ele era membro do Monastério de Sion.
Nossos contatos resultaram em um convite para uma festa em sua casa de campo, após
as festividades de Natal. Era uma festa chique, porém, aconchegante, e os outros
convidados eram charmosos cosmopolitas, todos admiravelmente, diríamos até excessiva
mente, interessados em nosso trabalho sobre Leonardo e o Sudário. Era algo muito l
isonjeiro, mas, ao mesmo tempo, um tanto inquietante, especialmente porque todos
eram executivos do sistema financeiro internacional.
Sabíamos que nosso anfitrião tinha conexões com algum tipo de organização maçônica mas, ape
de sua cultivada e com freqüência confusa inteligência, era também praticante do oculti
smo. Sabemos que isso é verdade, em parte, porque ele mesmo nos contou, deliberada
mente. Com certeza, queria que tomássemos conhecimento de algo sobre as conexões, su
as e de seu círculo de amigos, com o ocultismo, mas o que exatamente? Qualquer que
seja a natureza de sua agenda secreta, havíamos chegado à conclusão de que o Monastério
existia em um mundo de homens e mulheres cultos e influentes.
Giovanni também mencionou, como participante do Monastério, um certo diretor de uma
empresa publicitária de Londres, que também conhecíamos. Embora não tenhamos conseguido
confirmar sua participação na organização, descobrimos que seu interesse no ocultismo se
estendia muito além dos livros e artigos ocasionais que escrevia, através de pseudôni
mos, sobre o assunto. Ele também desempenhou um importante papel na publicação de The
Holy Blood and The Holy Grail, na edição de 1982. E com certeza não é coincidência ter ele
uma segunda casa nas vizinhanças de uma certa cidadezinha francesa que tem, como
veremos, um papel importante no drama desenrolado em torno do Monastério de Sion.
O resultado realmente importante de nossas conversas com esses homens é que o atua
l Monastério de Sion não é, como afirmam os críticos, apenas uma invenção de um punhado de
ranceses com fantasias monarquistas. Em conseqüência de nossos recentes contatos e o
bservações diretas, não temos mais dúvida alguma da existência real do Monastério nos dias
e hoje.
Sua suposta linhagem histórica, entretanto, é uma questão completamente diferente. Dev
e-se admitir que os críticos do Monastério têm um ponto a seu favor, pois a primeira d
ata realmente documentada de sua existência é de 25 de junho de 1956. A lei francesa
obriga todas as associações a se registrar, mesmo no caso, paradoxalmente, das assi
m chamadas sociedades 'secretas'. A declaração do Monastério na época de seu registro fo
i a de que seu objetivo era o de prover 'ajuda mútua e estudos para seus membros',
uma declaração que, embora digna dos personagens dos romances de Dickens por seu br
ando altruísmo, é também um caso de estudo em matéria de cuidadosa neutralidade. Ela dec
lara uma única atividade, a de publicar um jornal chamado Circuit, que servia, nas
palavras do próprio Monastério, 'para informação e defesa dos direitos e liberdades da
população de baixa renda'. A declaração lista quatro funcionários da associação, sendo que
ais interessante e mais conhecido deles é Pierre Plantard, que também era o editor d
o Circuito
Contudo, desde a época dessa obscura declaração, o Monastério de Sion passou a tornar-se
conhecido para um público muito maior. Seus estatutos não só foram impressos, devidam
ente assinados pelo suposto Grão-Mestre, Jean Cocteau (embora, é claro, pudesse ser
uma falsificação), como também apareceram em diversos livros. Sua estréia foi em 1962 em
Les Templiers sont parmis nous (Os templários estão entre nós), de Gérard de Sede, que
incluía uma entrevista com Pierre Plantard. O Monastério, entretanto, teve que esper
ar mais vinte anos para poder causar impacto no mundo de língua inglesa. Em 1982,
o fenomenal best-seller The Holy Blood and The Holy Grail, de Michael Baigent, R
ichard Leigh e Henry Lincoln, estourou nas livrarias, e a controvérsia que a parti
r daí se instalou fez do Monastério um assunto da moda, pronto a ser debatido entre
um público muito maior. O que esse livro afirma sobre a organização, e extrapola de se
us supostos objetivos, será discutido mais tarde.
Pierre Plantard aparece ao público como um personagem vívido que aperfeiçoara a técnica
dos políticos em olhar diretamente para os olhos do entrevistador, enquanto, astut
amente, dá uma resposta que pouco tem a ver com a pergunta proposta. Nascido em 19
20, tornou-se notícia pela primeira vez na época da França ocupada, em 1942, como o ed
itor do jornal chamado Vaincre pour une jeune chevalerie (A conquista de uma nov
a ordem de cavalaria), que era marcadamente neutro em relação aos opressores nazista
s e que, na verdade, era publicado com a aprovação destes. Era o órgão oficial da ordem
Alpha-Galates, uma sociedade semi-maçônica e cavalheiresca baseada em Paris, da qual
Plantard tornou-se Grão-Mestre com apenas vinte e dois anos de idade. Seus editor
iais apareceram primeiramente sob o nome de 'Pierre de France', e então como 'Pier
re de France-Plantard' e finalmente apenas como 'Pierre Plantard'. Sua obsessiv
a procura do que ele considerava ser a versão correta de seu nome, pode ser vista
mais uma vez quando adotou o título bem mais eloqüente de 'Pierre Plantard de Saint-
Clair' , que foi o nome com que apareceu em The Holy Blood and The Holy Grail e
utilizou enquanto era Grão-Mestre do Monastério de Sion, entre 1981 e 1984. (Vaincre
é hoje o título do boletim interno do Monastério, editado por Pierre Plantard de Sain
t-Clair e seu filho Thomas ).
Ex-projetista de uma fábrica de fogões, Pierre Plantard, apesar de ter exercido cons
iderável influência na história européia, vez ou outra, afirmam alguns, tinha dificuldad
es em pagar o aluguel. Pierre Plantard de Saint-Clair, sob o cognome de 'Captain
Way' (Capitão Caminho), era quem estava por trás da organização do Comitê de Segurança Púb
a, cujo empenho possibilitou a volta ao poder do General Charles de Gaulle, em 1
958.
Vamos agora considerar a natureza essencialmente paradoxal do Monastério de Sion.
Primeiro, de onde será que realmente vieram as informações públicas sobre a organização, e
uão confiáveis são elas? Conforme afirma The Holy Blood and The Holy Grail, a fonte pr
imária é a coleção de sete documentos enigmáticos arquivados na Biblioteca Nacional de Par
is, onde são conhecidos como Dossiers secret (dossiês secretos). À primeira vista, ele
s se parecem com uma mistura entre genealogias históricas, textos e obras alegóricas
mais modernas, que são atribuídas a autores anônimos com pseudônimos espalhafatosos ou
com nomes de pessoas que não têm nenhuma relação com eles. Muitas dessas notas referem-s
e à suposta obsessão Merovíngia da sociedade, e se concentram no famoso mistério de Renn
es-le-Château, um remoto povoado na região de Languedoc, ponto de partida para Baige
nt, Leigh e Lincoln realizarem suas investigações (falaremos mais sobre isso depois)
. No entanto, a partir daí surgiram outras questões que, para nós, têm um significado mu
ito maior e com as quais havíamos lidado apenas brevemente. O primeiro volume dos
dossiês secretos foi arquivado na biblioteca em 1964, embora a data registrada sej
a de 1956. O último item foi arquivado em 1967.
Pode-se, com toda razão, caracterizar grande parte do conteúdo dos dossiês como sendo
algum tipo de piada. Entretanto, advertimos contra tal reação porque, através de nossa
experiência em relação ao Monastério de Sion e seu modus operandi, podemos afirmar que
ele é perito na arte de divulgar desinformações de forma completa, deliberada e detalh
ada. Por trás dessa cortina de fumaça de tergiversação, confusão e tolices, há uma intenção
o coerente e muito séria.
Contudo, a suposta obsessão em restaurar a linhagem Merovíngia, extinta já há muito temp
o, a uma posição de poder na França moderna, nem mesmo em um milhão de anos poderia fasc
inar e motivar, durante um período tão longo, pessoas tão famosas e importantes quanto
Leonardo da Vinci e Isaac Newton.A insinuação encontrada nos dossiês secretos que rel
aciona a questão da sobrevivência da dinastia para além do Rei Dagoberto II, sem menci
onar a continuidade de uma linha direta de descendência até o final do século vinte, é n
a melhor das hipóteses frágil e, na pior, deliberadamente fabricada. Afinal, qualque
r um que já tenha tentado traçar a árvore genealógica de sua própria família, para além de
s ou três gerações, logo percebe o quão complexo e problemático é todo esse processo. Então
ais uma vez, colocamos a questão de como poderia uma causa como essa inspirar gerações
de homens e mulheres extremamente inteligentes. É realmente difícil imaginar que as
preferências de Newton e Leonardo pudessem ser sobrepujadas por uma sociedade bri
tânica cujos objetivos fossem restaurar o poder dos descendentes do Rei Haroldo II
(assassinado por William, o Conquistador de homens, em 1066).
No que tange ao atual Monastério de Sion, há dificuldades enormes em concretizar os
objetivos de restaurar a linhagem dos Merovíngios. Além de fazer da república francesa
novamente uma monarquia, proposta rejeitada um século atrás, há ainda a questão de que,
mesmo que essa restauração ocorresse (presumindo-se que fosse possível provar a existên
cia de um sucessor verdadeiro da dinastia dos Merovíngios), essa dinastia em parti
cular não poderia reclamar a coroa, já que a nação francesa sequer existia naquela época.
Conforme colocou de forma sucinta o escritor francês Jean Robin; 'Dagoberto era...
um Rei na França, mas de modo algum um Rei da França"
Os dossiês secretos podem parecer um completo absurdo, mas a magnitude dos esforços
e recursos colocados nele, e na manutenção de suas reivindicações, nos faz parar para pe
nsar. Mesmo o escritor francês Gérard Sede, que devotou várias páginas muito bem argumen
tadas com o intuito de colocar por terra as supostas evidências relacionadas à questão
merovíngia colocadas nos dossiês, admitiu que o volume de recursos à disposição para a pe
squisa de estudiosos e acadêmicos era de uma desproporção impressionante. Embora seja
cáustico acerca 'desse mito delirante', ele, no entanto, concluiu que realmente há u
m mistério por trás disso tudo. Outra curiosidade relacionada aos dossiês é a dedução óbvia
que o autor, ou autores, teve acesso aos arquivos oficiais do governo.
Tomemos apenas dois exemplos, dentre muitos: em 1967 uma brochura foi adicionada
aos dossiês e se chamava Le serpent rouge (A serpente vermelha), atribuída a três aut
ores, Pierre Feugére, Louis Saint-Maxent e Gaston de Koker, com data de 17 de jane
iro de 1967, embora o recibo de depósito na Biblioteca Nacional seja de 15 de feve
reiro. Esse texto extraordinário, de trinta páginas, que se pode apreciar como um ex
emplar de talentos a poesia, também compreende astrologia, simbolismo alegórico e al
químico. A parte sinistra, entretanto, é que os três autores foram encontrados enforca
dos em um intervalo de vinte quatro horas, entre os dias 6 e 7 de março daquele an
o.A conclusão óbvia é que essas mortes foram resultado da elaboração de Le serpent rouge.
Entretanto, investigações subseqüentes mostraram que a obra foi arquivada junto aos do
ssiês em 20 de março, após, portanto, a morte dos três, e o recibo de depósito foi deliber
adamente falsificado para mostrar a data de fevereiro. Mas, de longe, o mais ass
ombroso dessa coisa toda, por si só totalmente estranha, é que esses três autores não ti
nham, na verdade, ligação alguma com esse texto, nem com o Monastério de Sion... Alguém
presumivelmente aproveitou-se da bizarra sincronicidade dessas três mortes e as ut
ilizou para seus próprios e estranhos propósitos. Mas por quê? E, como nota Sede, pass
aram-se apenas treze dias entre as três mortes e o arquivamento do texto na Biblio
teca Nacional. Foi, portanto, um trabalho muito rápido, o que torna bastante prováve
l que o(s) autor(es) verdadeiro(s) tinha(m) acesso às investigações confidenciais da p
olícia. E Franck Marie, escritor e detetive particular, provou conclusivamente qu
e o mesmo tipo gráfico foi utilizado tanto em Le serpent rouge, como em alguns dos
últimos documentos dos dossiês secretos.
Chegamos, então, ao caso dos documentos forjados do Lloyds Bank. Tidos como pergam
inhos do século dezessete, foram encontrados por um padre francês no final do século p
assado e, supostamente, provavam a continuidade da descendência Merovíngia. Foram ad
quiridos por um inglês, em 1955, e depositados em um cofre de uma agência do Lloyds
Bank,em Londres. Embora ninguém tenha realmente visto esses documentos, existiam c
artas que confirmavam o fato de terem sido depositados. Estas eram assinadas por
três proeminentes executivos ingleses, que já haviam tido conexões com o serviço secret
o inglês. Entretanto, durante a pesquisa para The Messianic Legacy (a seqüência de The
Holy Blood and The Holy Grail) , Baigent, Leigh e Lincoln foram capazes de prov
ar que as cartas eram forjadas, embora contivessem partes dos documentos genuínos
que portavam as assinaturas verdadeiras, além de cópias dos registros de nascimento
dos três executivos. A questão mais significativa e de maiores conseqüências é que, provav
elmente, quem quer que as tenha forjado obteve as partes genuínas dos documentos n
os arquivos do governo francês, o que implicava seriamente o seu serviço secreto.
Mais uma vez, tivemos uma sensação bastante estranha. Um acúmulo enorme de tempo, esfo
rço e talvez mesmo de perigo pessoal, deve ter sido utilizado para produzir essa t
rama tão bem elaborada. Contudo, em última análise, todo esse esforço parece ter sido co
mpleta e totalmente inútil. Na verdade, toda essa trama segue os ditames da antiga
tradição dos serviços secretos, nos quais poucas coisas são o que aparentam ser e as co
isas mais indubitáveis sobre determinadas questões podem muito bem ser apenas um exe
rcício de desinformação.
Existe, porém, uma razão para se fazer uso de paradoxos, mesmo que sejam completamen
te absurdos. Temos a tendência de relembrar os absurdos e mais ainda os aspectos c
ompletamente ilógicos que, ao serem deliberadamente apresentados como argumentos e
stritamente factíveis, têm um poderoso efeito em nosso inconsciente. Afinal, o incon
sciente é o lugar onde são criados nossos sonhos e opera com seus próprios tipos de pa
radoxo e não-lógica. E é esse inconsciente que motiva, cria, que, assim que tenha sido
'fisgado', continuará a trabalhar nas mensagens subconscientes por anos a fio, ex
traindo cada pedaço de significado simbólico do mais diminuto fragmento do que parec
e ser um palavreado sem sentido.
Os cépticos, que se orgulham em geral de sua sabedoria universal, são, com freqüência, c
uriosamente ingênuos, pois vêem tudo como se fosse preto ou branco, verdadeiro ou fa
lso, que é exatamente a forma como certos grupos querem ser vistos. Haverá melhor ma
neira de atrair atenção por um lado, mas, ao mesmo tempo, filtrar a entrada de intru
sos indesejáveis ou de curiosos casuais por outro lado, do que se apresentar ao públ
ico com uma informação aparentemente intrigante, porém, virtualmente sem nenhum sentid
o? É como se o próprio ato de se aproximar do significado real do Monastério por si só já
constituísse uma iniciação: se sua disposição não for verdadeiramente essa, então, a cortin
e fumaça se encarregará de impedi-lo de realizar uma investigação profunda. Mas, se de a
lguma forma você realmente tem essa vontade, então logo lhe será dado - ou você mesmo de
scobrirá, de um modo tão sincrônico que chega a ser suspeito -, aquele conhecimento ex
tra sobre os aspectos interiores da organização que fará, de repente, com que tudo se
encaixe em seu lugar.
Em nossa opinião é um grande engano desprezar os dossiês secretos simplesmente porque
sua mensagem manifesta é comprovadamente implausível. O volume de trabalho e esforço c
olocados nos dossiês são um argumento em favor da possibilidade deles terem algo rea
l a oferecer. Admitimos que muito tempo se gasta, de maneira obsessiva, em pesqu
isas ou obras extremamente vastas e completamente tolas, e as horas/trabalho env
olvidas nisso sequer resultam em algo que valha a nossa atenção ou respeito. Mas est
amos lidando aqui com um grupo que, certamente, está trabalhando sobre um plano in
trincado, e, tomados em conjunto com todas as pistas e palpites (que ficarão mais
claras no decorrer de nossa jornada), parece claro que alguma coisa está acontecen
do. Ou eles estão tentando nos dizer algo ou estão tentando esconder alguma coisa. E
nquanto isso, mais pistas sobre sua importância continuam a aparecer.
Então, o que podemos deduzir das afirmações históricas feitas pelo Monastério? Remontarão r
almente ao século XI, e contariam as suas fileiras com os nomes ilustres mencionad
os nos dossiês secretos? Inicialmente, pode-se afirmar que sempre é difícil provar a e
xistência, atual ou histórica, de uma sociedade secreta. Afinal, quanto mais bem-suc
edida é uma entidade em manter-se secreta, mais complicado é comprovar sua existência.
Entretanto, podendo-se demonstrar que existem reiterados interesses, assuntos e
objetivos comuns entre aqueles que são tidos como pertencentes a esse grupo, dura
nte anos, então é correto e mesmo sensato assumir que tal grupo pode realmente exist
ir ou ter existido.
Mesmo que a lista de chamada dos Grão-Mestres do Monastério (de acordo com o que está
escrito nos dossiês secretos) pareça ser totalmente inverossímil, comprovou-se, através
da pesquisa de Baigent, Leigh e Lincoln, que ela não é aleatória. Existem realmente co
nexões persuasivas no processo sucessório dos Grão-Mestres. Além de se conhecerem, e em
muitos casos serem aparentados, esses luminares compartilham determinados intere
sses e preocupações. É sabido que muitos deles estavam associados a movimentos esotérico
s e a sociedades secretas, tais como a Maçonaria, os Rosas-cruzes e a Compagnie du
Saint-Sacrement, todas compartilhando alguns objetivos em comum. Por exemplo, há
um tema hermético peculiar que é comum às suas literaturas: uma sensação de arrebatamento
ante a perspectiva do Homem se tornar quase igual a Deus, na medida em que seu c
onhecimento aumenta ilimitadamente.
Além disso, nossa própria pesquisa independente, que foi apresentada em nosso último l
ivro, confirmou que aqueles indivíduos e famílias que estavam supostamente envolvido
s com os interesses do Monastério durante o passar dos séculos, também eram a força motr
iz que sustentou o que pode ser chamado de O Grande Embuste do Santo Sudário.
Como já vimos, tanto Leonardo quanto Cocteau se utilizaram de simbolismo não ortodox
o em suas obras supostamente cristãs. Separados por 500 anos, o imaginário deles apr
esenta uma notável consistência, e outros escritores e artistas que estiveram ligado
s ao Monastério também se utilizaram desses motivos em suas obras. Isso sugere que e
les realmente faziam parte de algum tipo de movimento secreto e organizado, que
já estava muito bem estabelecido na época de Leonardo.Tanto Leonardo quanto Cocteau
foram mencionados como sendo Grão-Mestres, e se levarmos em consideração suas preocupações
compartilhadas, parece razoável deduzir que eles realmente eram altos membros de
algum grupo no mínimo bastante semelhante ao Monastério de Sion.
O grosso das evidências reunidas por Baigent, Leigh e Lincoln em Tbe Holy Blood an
d Tbe Holy Grail, a fim de comprovar historicamente a existência do Monastério, é inco
ntestável. E as demais evidências, que têm sido reunidas por outros pesquisadores, for
am publicadas na edição do livro por eles revisada em 1996. (Esse livro é essencial pa
ra qualquer pessoa que esteja interessada nesse mistério.)
Todas essas evidências demonstram que havia uma sociedade secreta operando desde o
século XII, mas será o atual Monastério de Sion seu herdeiro verdadeiro? Embora os do
is grupos não devam, como querem, estar necessariamente vinculados, o atual Monastér
io tem realmente um conhecimento profundo sobre a história daquela antiga organização.
Afinal, foi através de seus membros atuais que ouvimos, pela primeira vez, a resp
eito de um Monastério que existira no passado.
Porém, ter acesso aos arquivos do antigo Monastério não implica necessariamente ser um
a continuação genuína deste. Em uma conversa recente, o artista francês Alain Féral, que,
como protegido de Cocteau, trabalhou com ele e o conhecia bem, disse-nos, de mod
o inflexível, que seu mentor não fora Grão-Mestre do Monastério de Sion. Pelo menos, Féral
nos assegurou, Cocteau não estava envolvido com essa organização à época da proclamação de
erre Plantard de Saint-Clair como Grão-Mestre. Entretanto, Féral conduziu sua própria
investigação sobre certos aspectos da história do Monastério de Sion, especialmente no q
ue se relaciona com o vilarejo de Rennes-le-Château, no Languedoc, e sua opinião é que
aqueles que são listados como Grãos Mestres nos dossiês secretos, o que inclui Coctea
u, estavam realmente conectados através de uma genuína tradição oculta.
Nessa altura de nossa pesquisa, decidimos ignorar a suposta ambição política do atual
Monastério e nos concentrar nos aspectos históricos, os quais poderiam, obviamente,
jogar alguma luz sobre o passado.
Os dossiês secretos, descontando a mitomania Merovíngia, colocava grande ênfase no San
to Graal, na tribo de Benjamim e na personagem Maria Madalena do Novo Testamento
. Por exemplo, em Le serpent rouge aparece esta declaração:
Daquela a quem quero libertar, eleva-se ante mim o perfume que impregna a sepult
ura. Antigamente alguns a chamavam ÍSIS, rainha das causas beneficentes, VENHAM ATÉ
MIM TODOS AQUELES QUE SOFREM E QUE SE SENTEM ESMAGADOS E EU OS CONFORTAREI; outr
os, MADALENA, do famoso vaso de bálsamo curativo. Os iniciados conhecem seu nome v
erdadeiro: NOTRE DAME DES CROSS.
Essa pequena passagem é confusa, e não apenas porque a última frase, Notre Dame des Cr
oss, não faz nenhum sentido (a menos que 'Cross' seja um sobrenome, e nesse caso e
la se torna apenas um pouco mais inteligível). 'Des' é a palavra francesa para a pre
posição 'das', mas cross não existe na língua francesa, e, é claro, está no singular (Cross
a palavra inglesa para cruz). E há também a peculiar confusão de Ísis com Maria Madalena
, afinal de contas, a primeira era uma deusa e a segunda uma 'mulher decaída', além
de serem personagens pertencentes a culturas diferentes sem qualquer conexão visível
.
Com certeza, pode-se pensar, há uma perplexidade que se manifesta de imediato ao v
incular assuntos aparentemente tão distintos quanto Madalena, o Santo Graal e a tr
ibo de Benjamim, para não mencionar a deusa egípcia Ísis, com a questão da dinastia Mero
víngia. Os dossiês secretos explicam que os Franco-Sicambrianos (Membros do povo ger
mânico que conquistou Gaul no século VI d.C.) a tribo de origem judaica da qual des
cendem os Merovíngios, eram a tribo perdida de Benjamim, que emigrou para a Grécia e
então para a Alemanha, onde se tornaram os Sicambrianos.
Entretanto, os autores de Tbe Holy Blood and Tbe Holy Grail fizeram com que o ce
nário se tornasse ainda mais complexo. De acordo com eles, a importância da dinastia
Merovíngia não estava meramente em ser o sonho impossível de um punhado de monarquist
as excêntricos. Suas afirmações colocaram a questão de um modo completamente diverso, um
modo que captou a imaginação dos milhões de leitores que se entusiasmaram com esse li
vro. Eles afirmaram que Jesus fora casado com Maria Madalena e que dessa união nas
ceu um filho. Jesus teria sobrevivido à cruz, mas sua mulher partiu sem ele, levan
do seu filho para um colônia judia estabelecida naquilo que é hoje o sudoeste da Fra
nça. Foram os descendentes dessa criança que se tornaram a família poderosa dos Sicamb
rianos, e então fundaram a dinastia de reis Merovíngios.
Essa hipótese parece dar sentido ao que afirma o Monastério, mas provoca questioname
ntos ainda maiores. Como vimos, seja qual for sua origem, é impossível para qualquer
linhagem hereditária sobreviver em estado 'puro', o que seria necessário para que a
quela hipótese tivesse uma base sólida.
É inegável existir uma possibilidade real de Jesus ter sido casado com Maria Madalen
a, ou pelo menos ter tido algum tipo de relacionamento íntimo com ela (o que será di
scutido em detalhes mais tarde) e até mesmo que ele tenha sobrevivido à crucificação. De
fato, ao contrário do que comumente se pensa, nenhuma dessas assertivas se baseia
no trabalho de Baigent, Leigh e Lincoln, pois já vêm sendo discutidas há muitos anos,
bem antes da publicação de The Holy Blood and The Holy Grail.
Há, entretanto, uma outra questão relacionada aos pressupostos que estão por trás desses
argumentos, uma questão da qual Baigent, Leigh e Lincoln estão plenamente conscient
es, embora tentem não chamar muita atenção sobre isso. Para eles, os Merovíngios são impor
tantes porque são os descendentes de Jesus. Mas, se ele sobreviveu à crucificação, não pod
eria ser o redentor de nossos pecados, não teria ressuscitado e, portanto, não poder
ia ser divino, nem era o filho de Deus. Então, por que, perguntaríamos, seus descend
entes seriam considerados tão importantes?
Um dos que, acredita-se, faz parte desse grupo de abençoados descendentes é ninguém ma
is, ninguém menos, que o próprio Pierre Plantard de Saint-Clair.Apesar da inflamada
linguagem utilizada por alguns estudiosos ao comentarem tal hipótese, deve ser dit
o que ele mesmo nunca se declarou descendente de Jesus, e nunca é demais enfatizar
que não é a idéia cristã de Jesus ser Deus encarnado, e portanto seu rebento ser de alg
uma maneira também divino, que dá ao caso da sucessão Merovíngia sua suposta importância.
A base de toda essa crença é que, como Jesus descendia de Davi e, portanto, do Rei l
egítimo de Jerusalém, esse título automaticamente pertence, mesmo que teoricamente, à su
a futura família. A questão política, mais do que a divina, é que está embutida na conexão
erovíngia.
Baigent, Leigh e Lincoln, claramente, formularam sua teoria a partir das afirmações
colocadas nos dossiês secretos, mas em nossa opinião eles foram um tanto seletivos a
o escolher as que citariam como evidência. Por exemplo, os dossiês afirmam que os re
is Merovíngios, de seu fundador Merovée até Clovis (que se converteu ao cristianismo e
m 496), eram 'reis pagãos devotos de Diana'. Isso é bastante difícil de reconciliar c
om a idéia de que eles eram descendentes de Jesus ou de uma tribo judia.
Um outro exemplo dessa curiosa seletividade por parte de Baigent, Leigh e Lincol
n está relacionado ao 'documento Montgomery'. Este, de acordo com os autores, é uma
narrativa encontrada nos arquivos pessoais dos Montgomery, que lhes foi apresent
ada por um de seus membros. A data de sua origem é incerta, mas a versão aqui referi
da origina-se no século XIX. Seu valor reside no fato de que, em essência, endossa a
s teorias divulgadas em Tbe Holy Blood and Tbe Holy Grail, embora, é claro, isso n
ada prove. Apenas fica estabelecido que a idéia de que Jesus fora casado com Maria
Madalena já era discutida há pelo menos um século antes do início da pesquisa dos três au
tores.
O documento Montgomery conta a história de Yeshua bem Joseph (Jesus, filho de José)
que era casado com Miriam (Maria) de Betânia (o personagem bíblico que muitas pessoa
s tomam como sendo Maria Madalena). Como resultado direto de uma revolta contra
os romanos, Miriam foi presa, sendo solta apenas por estar grávida. Ela, então, fugi
u da Palestina, chegando a Gaul (no que hoje é a França), onde deu à luz uma menina.
Embora seja fácil ver o porquê do documento Montgomery ter sido pinçado por Baigent, L
eigh e Lincoln como apoio para sua hipótese, é estranho não terem valorizado mais cert
os aspectos da história. Nessa narrativa, Miriam de Betânia é descrita como 'uma sacer
dotisa do culto feminino', de forma idêntica à devoção dos Merovíngios à deusa Diana; isso
diciona um distinto verniz pagão à história, o que torna difícil reconciliá-la com a afirm
ação de que o interesse primário do Monastério está na continuidade da descendência do Rei
udeu Davi, da qual Jesus faz parte.
E é bastante interessante que o atual Monastério nem confirme, nem negue a hipótese co
locada em The Holy Blood and Tbe Holy Grail, o que faz com que, mais uma vez, as
suspeitas recrudesçam. Será que o Monastério de Sion está fazendo um jogo?
Uma coisa tornara-se bastante clara: a ambição que motiva o Monastério não está puramente
relacionada ao poder político, como afirmam Baigent, Leigh e Lincoln. Mais de uma
vez os dossiês mencionam pessoas - tanto entre os atuais Grão-Mestres quanto entre a
queles associados com o Monastério -, que não são prioritariamente políticos, mas sim oc
ultistas. Por exemplo, Nicolas Flamel, Grão-Mestre de 1398 a 1418, era um mestre a
lquimista, Robert Fludd (1595-1637) era rosa-cruciano e, mais próximo de nossa época
, Charles Nodier (Grão-Mestre de 1801 a 1844) foi de grande influência para o renasc
imento do ocultismo nos dias de hoje. Mesmo Sir Isaac Newton (Grão-Mestre, 1692-17
27), bem mais conhecido como cientista e matemático, era um devotado alquimista e
hermetista, e certamente possuía muitas cópias comentadas dos manifestos rosa-crucia
nos. E há, é claro, Leonardo da Vinci, um outro gênio a quem nossos contemporâneos de mo
do algum compreendem, vendo sua inteligência aguçada como fruto, apenas, de um pensa
mento materialista. De fato, como já vimos, suas obsessões tinham origem em diversas
outras fontes, e o tornavam um outro candidato ideal para a lista dos Grão-Mestre
s do Monastério.
Causa surpresa que, ao mesmo tempo em que admitem o interesse no ocultismo de mu
itas dessas pessoas, Baigent, Leigh e Lincoln pareçam não dar valor ao amplo signifi
cado de suas obsessões. Afinal, em muitos casos, o ocultismo não era um passatempo o
casional, mas sim o foco principal de suas vidas. E nossa própria experiência tem in
dicado que os indivíduos relacionados com o atual Monastério também são ocultistas prati
cantes.
Assim, qual poderia ser o segredo capaz de arregimentar, por tanto tempo, tantas
mentes brilhantes do ocultismo, dado que é improvável que essa seja a implausível his
tória Merovíngia? Tão persuasivo e profundo quanto possa ser The Holy Blood and the Ho
ly Grail, sua explicação dos objetivos e movimentos do Monastério é, essencialmente, ins
atisfatória. Há com certeza alguma coisa acontecendo. E é improvável que tenha apenas a
ver com a legitimidade de uma monarquia francesa, dado o enorme volume de tempo
e energia que isso parece ter exigido ao longo dos séculos. E o que quer que seja,
deve ser algo tão ameaçador para o status quo a ponto de, mesmo após o iluminismo, se
r mantido em segredo, ser um assunto guardado por uma rede de iniciados, que se
mantêm ocultos.
Logo no início de nossa pesquisa sobre Leonardo e o Sudário de Turim, deparamo-nos,
novamente, com o inevitável sentimento da existência de um segredo real que está sob a
guarda, um tanto ciumenta, de um grupo seleto de pessoas. Na medida em que noss
as investigações prosseguiam, não havia meio de nos livrarmos das suspeitas de que os
temas que detectamos, na vida e na obra de Leonardo, eram paralelos aos que tínham
os discernido no material divulgado pelo Monastério. E, certamente, isso valia no
mínimo uma segunda checagem sobre a possibilidade desses mesmos temas também estarem
interpostos na obra de Jean Cocteau.
Já descrevemos o mural do artista na igreja de Notre-Dame de France, em Londres. M
as qual é a relevância desse imaginário notavelmente peculiar, para o trabalho muito a
nterior de Leonardo, e em relação a um suposto movimento esotérico ou mesmo herético?
A conexão mais óbvia com a obra de Da Vinci é o fato de o artista ter pintado a si mes
mo desviando o olhar da cruz. Leonardo, como já mencionamos, retratou a si mesmo d
esse modo ao menos duas vezes, em A Adoração dos Reis Magos e na Última Ceia. Levando
em consideração a expressão do rosto na obra de Cocteau, a qual, certamente, denuncia
um profundo desconforto em relação à cena toda, talvez não estejamos indo tão longe assim
se vislumbrarmos uma hostilidade similar na violência com que Leonardo voltou suas
costas para a Sagrada Família na Adoração.
No mural de Cocteau, vemos o homem pregado na cruz apenas dos joelhos para baixo
, o que torna suspeita sua verdadeira identidade. Como vimos na Última Ceia, a cur
iosa falta generalizada de vinho parece suscitar uma questão muito séria sobre a nat
ureza do sacrifício de Jesus: aqui o artista vai ainda mais longe, simplesmente não
mostrando a figura de Jesus. Muito semelhante, também, é a utilização de um "M" gigante.
Na obra de Cocteau esse "M" liga as duas mulheres em prantos, presumivelmente,
a Virgem Maria e Maria Madalena. Mais uma vez, pode-se assumir que é a última que de
svia o olhar da figura de Jesus. Enquanto sua mãe olha para baixo, chorando, é a mul
her mais jovem que lhe dá as costas. Na Última Ceia o "M" liga Jesus a um efeminado
São João, e esta 'dama M' também está se afastando o quanto pode dele, enquanto, ao mesm
o tempo, parece permanecer próxima.
O mural de Cocteau também contém um simbolismo que, a partir do momento em que tomam
os conhecimento das preocupações do Monastério de Sion, está completa e explicitamente c
onectado a este. Por exemplo, há cinqüenta e oito pontos mostrados nos dados que estão
sendo lançados pelos soldados, e este é o número esotérico do Monastério.
A brilhante e enorme rosa vermelho-azulada aos pés da cruz é, claramente, uma alusão a
o movimento rosa-cruciano, o qual, como veremos, tem fortes ligações com o Monastério
e certamente com Leonardo.
Conforme já vimos, os membros do Monastério acreditam que Jesus não morreu na cruz e a
lgumas de suas facções afirmam que uma vítima substituta sofreu o que estava destinado
a ele. Julgando pelo imaginário estampado neste único mural, pode-se ficar tentado
a pensar que este representa apenas a visão particular de Cocteau. Por exemplo, não
apenas não enxergamos o rosto da vítima, como há também a inclusão de uma figura que não es
usualmente associada à cena da crucificação. É o homem que está na extrema direita, cujo ún
co olho visível está desenhado de forma a assemelhar-se com um peixe, certamente uma
alusão ao código, utilizado nos primórdios do cristianismo, para designar 'Cristo'. E
ntão, quem é essa figura de olhar de peixe? Sob a ótica cristã do Monastério, a de que Cri
sto nunca sofrera o martírio da cruz, não poderíamos chegar à conclusão de que essa figura
extra não é senão o próprio Jesus? Seria o suposto Messias realmente uma testemunha da
tortura e morte de um substituto seu? Se isso é verdade, podemos com certeza imagi
nar seu estado emocional.
Mais uma vez então, tanto no mural de Leonardo quanto no de Cocteau, nós vemos a Dam
a M, em ambos os casos, com certeza, Maria Madalena.Agora, sabendo da crença do Mo
nastério de que ela era casada com Jesus, isso explicaria o porquê de fazer ela part
e da Última Ceia, postada ao lado direito de seu marido, e porque ela, e a sua 'ou
tra metade', estão usando roupas iguais e invertidas, como imagens no espelho.
Embora exista uma pequena e pouco conhecida tradição, da era medieval e do início da R
enascença, de retratar Madalena na Última Ceia, Leonardo fez saber que o personagem à
direita de Jesus era São João. Então, por que ele tramou tal ilusão? Seria, talvez, uma
maneira sutil de dar ao seu imaginário um poder subconsciente? Afinal de contas, o
artista nos diz ser este um homem, mas nosso cérebro nos diz que é uma mulher, e a
confusão faz nosso subconsciente ponderar contínua e longamente sobre essa questão.
Tanto no mural de Cocteau quanto no de Leonardo, Madalena parece estar expressan
do, calmamente, através de seu corpo, suas dúvidas sobre o suposto papel de Jesus. E
la, realmente, era assim tão próxima a ele a ponto de saber a verdadeira história? Ser
ia Madalena realmente a mulher de Jesus, e, portanto, cúmplice na ocultação da verdade
relacionada ao que aconteceu na crucificação? Será esse o motivo dela se voltar para
o outro lado?
O papel de Madalena é sutilmente, senão subliminarmente, enfatizado na Última Ceia, ma
s a maior obsessão de Leonardo, parece estar com aquele personagem trágico do Novo T
estamento, São João Batista. Se ele realmente era membro do Monastério de Sion, e dada
a enorme ênfase que este dá à linhagem hereditária de Jesus, essa obsessão com o Batista
se mostra um tanto confusa. Porém, será que isso se coaduna com os interesses do Mon
astério de Sion?
Nosso misterioso informante, Giovanni, nos deixara com uma questão inquietante: 'p
or que os Grão-Mestres são sempre chamados de João? 'Na época nós achamos que isso era alg
um tipo de insinuação semi-velada ao seu próprio cognome, e inclusive mencionamos que
ele mesmo não era nenhum soldado raso. De fato, porém, ele estava chamando nossa ate
nção para um outro assunto muito mais significativo.
Os Grão-Mestres do Monastério são conhecidos na organização como Nautonnier' (Timoneiro) e
também recebem o nome de 'Jean' (João) ou, se forem mulheres, Jeanne (Joana). Leonar
do, por exemplo, aparece nas listas como Jean IX. Vale a pena notar, pois bastan
te peculiar para uma antiga ordem cavalheiresca, que o Monastério sempre afirmou s
er uma sociedade secreta com oportunidades iguais para todos, e quatro de seus G
rão-Mestres foram mulheres, (atualmente uma das seções francesas do Monastério está sob co
ntrole de uma mulher). Entretanto, essa política é totalmente consistente com a verd
adeira natureza e objetivos do Monastério, de acordo com o modo como viemos a ente
ndê-los.
As preocupações do Monastério são indicadas pelos títulos que eles utilizam em sua hierarq
uia organizacional. De acordo com os estatutos, abaixo dos Nautonnier há um grau q
ue consiste de três iniciados, chamados de 'Prince Noachite de Notre Dame', e abai
xo desses há um grau de nove membros chamados de 'Croisé de Saint Jean' ou 'Cruzados
de São João' (o último aparece apenas como 'Condestável' nas últimas versões dos estatutos
.
Há ainda outros seis graus, mas os três primeiros, compreendendo os treze membros do
alto escalão, formam o corpo de direção. Coletivamente este é conhecido como Arch Kyria
. Kyria é uma palavra grega cortês para designar mulher, o equivalente na língua ingle
sa a 'lady' (senhora). Especificamente, no mundo helênico dos primeiros séculos ante
s da era cristã, este era o epíteto para a deusa Ísis.
O primeiro Grão-Mestre da sociedade, deve ser dito, chamava-se realmente João, Jean
de Gisors, um nobre francês do século XII. Mas o enigma real está no curioso fato de q
ue seu título no Monastério era na verdade 'Jean II' . Segundo as próprias indagações dos
autores de The Holy Blood and the Holy Grail:
Uma questão maior, é claro, será: qual João? João, o Batista? João, o Evangelista, o 'Apó
lo Amado' do Salmo IV? Ou João, o Divino, autor do Livro das Revelações? Parece-nos qu
e não é nenhum desses três...quem, então, era Jean I?
Um outro pensamento-conexão provocador relacionado a 'João' é mencionado no livro de 1
982 Rennes-le-Château; capitale secrete de l'histoire de France, de Jean-Pierre De
loux e Jacques Brétigny. Os autores são conhecidos por estarem bastante envolvidos c
om Pierre Plantard de Saint-Clair. Estavam presentes, por exemplo, entre os que
receberam Baigent, Leigh e Lincoln no encontro destes com Pierre Plantard nos an
os 80. Plantard, com certeza, contribui bastante para aquele livro. Uma óbvia prop
aganda do Monastério, o livro explica como a sociedade se formou. (Deloux e Brétigny
também escreveram artigos relacionados ao Monastério de Sion na revista L'Inexpliqué,
a versão francesa para The UnexPlained, que, de acordo com algumas pessoas, era f
inanciada pelo Monastério).
A idéia principal era a de se formar um 'governo secreto', tendo Godofroi de Bouil
lon, um dos líderes da Primeira Cruzada, como gênio inspirador. Na Terra Santa, Godo
froi se deparou com uma organização chamada Igreja de João e, então, 'formulou um grande
projeto'. 'Colocou sua espada a serviço da Igreja de João, essa Igreja esotérica e de
iniciação que representava a Tradição, baseada na primazia do Espírito'. Foi a partir des
se grande projeto que se formaram o Monastério de Sion, a organização que sempre chamo
u seus Grão-Mestres de 'João', e os Cavaleiros Templários. E como nos diz Pierre Plant
ard de Saint-Clair através de Deloux e Brétigny:
Assim, no início do século XII, reunimos os significados temporal e espiritual, o qu
e permitiu realizar o sonho sublime de Godofroi de Bouillon: a Ordem do Templo s
eria a espada da Igreja de João e os porta-estandartes da primeira dinastia, os br
aços obedientes ao espírito de Sion.
O resultado desse fervilhante 'joanismo' seria o 'renascimento espiritual' , que
faria o 'cristianismo ser virado de cabeça para baixo'. Apesar de sua importância óbv
ia para o Monastério, a ênfase em 'João' permanecia totalmente obscura, e no início da i
nvestigação nós nem sabíamos qual João era tão reverenciado, muito menos o porquê. Qual é,
a razão dessa obscuridade? Por que eles não nos dizem a que João estão se referindo? E p
or que razão essa reverência (um tanto extrema), por qualquer um desses santos João, s
eria uma ameaça aos alicerces do cristianismo?
É possível pelo menos dar um palpite em relação ao João que o Monastério tinha em mente, se
tivermos em vista a obsessão de Leonardo pelo Batista. No entanto, como vimos, o c
onceito que o Monastério faz do papel de Jesus é bem pouco ortodoxo e, portanto, par
ece ilógico acreditar que isso esteja de acordo com a reverência a um homem que, sup
ostamente, deve sua importância apenas ao fato de ser o antecessor de Jesus. Poder
ia ser que o Monastério, como Leonardo, reverenciasse João Batista como sendo superi
or a Jesus?
É uma idéia perturbadora. Se há alguma razão para acreditar que o Batista fora superior
a Jesus, então as repercussões seriam de uma magnitude traumática inimaginável para a Ig
reja. Mesmo que a visão "joanina" fosse baseada em um engano, não há dúvida dos efeitos
que essa crença causaria se fosse mais difundida. Seria quase a última heresia, e os
dossiês secretos enfatizam repetidamente o caráter anti-clerical dos descendentes M
erovíngios, e seu positivo encorajamento a essa heresia. O Monastério é astuto o basta
nte para achar que a heresia é algo muito conveniente para algumas de suas próprias
razões.
Percebemos que a suposta heresia Batista teria implicações atordoantes, e que, se pe
netrássemos mais a fundo no Monastério, iríamos nos defrontar, mais cedo ou mais tarde
, com a questão de João Batista, embora de início não estivéssemos convencidos de que enco
ntraríamos qualquer evidência que apoiasse essa heresia.
Naquele momento, tudo que tínhamos como evidência em relação às crenças do Monastério sobre
Batista era a manifesta obsessão de Leonardo para com ele, e o fato de que os Grão-M
estres eram todos chamados de 'João'. Francamente, não tínhamos qualquer esperança verda
deira de encontrar algo mais concreto do que isso, mas, com o passar do tempo, i
ríamos descobrir evidências muito mais sólidas de que o Monastério era realmente parte d
e uma tradição joanina.
Com ou sem evidência a apoiá-la, essa heresia permanecera crível para várias gerações de as
ociados do Monastério. Era esse, ao menos em parte, o grande segredo que eles supo
stamente possuíam e guardavam com tanta tenacidade?
A outra figura do Novo Testamento de imenso significado para o Monastério é, como já v
imos, Maria Madalena. Os autores de The Holy Blood and The Holy Grail explicaram
que sua particular importância está relacionada apenas ao (suposto) fato de que ela
fora casada com Jesus e era mãe de seu filho. Mas levando em conta a admiração nada i
ncondicional do Monastério em relação a Jesus, essa explicação é bastante frágil. Para a or
ização, Madalena parece ter alguma importância por si mesma, e Jesus por si mesmo é quas
e irrelevante. Na história dos 'documentos Montgomery', por exemplo, seu papel está
confinado simplesmente a ser o pai, e ele não participa de modo algum do resto da
narrativa. Pode-se até dizer que, mesmo sem relacioná-la a Jesus, há algo de suma impo
rtância nessa mulher.
Mais tarde, durante nossas pesquisas, tentamos arranjar um encontro com Pierre P
lantard Saint-Clair, para falar sobre algumas questões relacionadas ao interesse d
o Monastério por Maria Madalena. Recebemos uma resposta do secretário de Plantard, G
ino Sandri, um italiano que vive em Paris, que, embora curta e concisa, exalava
a célebre manobra de desvio de atenção do Monastério. No comunicado, Sandri disse que ta
lvez pudesse nos ajudar, mas 'quem sabe vocês já não possuam a informação de que necessita
m?'. Essa era uma indicação clara de que ele sabia alguma coisa sobre nós, porém, não leva
mos isso muito a sério. Ele parecia querer afirmar que já tínhamos toda a informação de qu
e precisávamos e que dependia de nós torná-la compreensível.A carta de Sandri portava ai
nda uma outra tentativa de nos desviar: embora fosse postada em 28 de julho, a c
arta dentro do envelope fora datada de 24 de junho, dia de São João Batista.
Para um leigo, qualquer conexão particularmente esotérica entre Maria Madalena e João
Batista é um assunto fantástico, pois os Evangelhos conhecidos não registram sequer qu
e eles tenham se encontrado. Há aqui, aparentemente, mais um antigo segredo que en
volve e reverencia a ambos, de um modo bem claro. O que havia com esses personag
ens do século I que pudesse assegurar uma tradição, 'talvez herética', tão duradoura? O qu
e poderiam representar que fosse capaz de causar tanta preocupação à Igreja?
Assim sendo, pode-se imaginar como era difícil saber por onde começar. No entanto, p
or onde quer que começássemos a nos aprofundar na história de Madalena, uma região muito
mais próxima de nossos lares do que Israel se elevava em importância. O Monastério de
u ênfase em particular à lenda que contava que Madalena fora levada para o sul da Fr
ança, e, portanto, era para onde teríamos que ir, ao menos a fim de descobrir por nós
mesmos se essa história era meramente uma fábula medieval criada visando lucros. Mas
havia, desde o começo, algo especialmente atraente relacionado à conexão desse enigmáti
co personagem do Novo Testamento com essa região, algo que estava além de considerações
mercenárias. Pusemo-nos a campo para investigar o segredo de Madalena em sua própria
terra natal.
CAPÍTULO III
No Rastro de Maria Madalena
Sua beleza é nobre como a das estátuas de deusas gregas, muito além do que hoje consid
eramos ser bonita. Vigorosa, cabelos longos repartidos ao meio, ela nos passa a
imagem de austeridade e integridade de uma diretora de escola. Pouco aqui faz le
mbrar a libertina e voluptuosa mulher das lendas. Pois essa, conforme nos inform
am, é a cabeça de Maria Madalena.
O crânio, normalmente em exposição na basílica, em toda a sua chocante e pavorosa glória,
está agora encapsulado, decentemente, em uma máscara de ouro, exibida diante da mult
idão da cidade de São Maximiano, na Provença. O evento anual acontece no domingo mais
próximo do dia de Madalena, 22 de julho. Em 1995, ano de nossa visita, a comemoração o
correu em 23 de julho, sob um sol esplendoroso e causticante.
Já eram quase quatro horas da tarde, hora em que finalmente terminou o longo almoço
francês, quando os moradores da cidade trouxeram a relíquia para fora da basílica, sob
re uma liteira suspeitamente trêmula. Centenas de pessoas se uniram à procissão, talve
z apenas porque já estavam por ali e todos adoram uma parada, mas parecia haver mu
itos peregrinos genuinamente fervorosos dentre a multidão, olhos alegremente fixos
na curiosa cabeça que estava sendo conduzida no meio deles. Entretanto, tivemos q
ue lembrar a nós mesmos que sempre existem peregrinos, sempre existem crentes ferv
orosos, em qualquer lugar ou em qualquer tipo de coisa, e que a crença em si mesma
não é uma medida de autenticidade histórica. Contudo, vindo, como nós, de uma cultura n
a qual Madalena relativamente pouco representa, o enorme poder desse festival no
s fez refletir. Estamos, com certeza, na casa de Maria Madalena.
Há também uma certa ironia em relação à nossa presença em São Maximiano. O teste de carbono
, no Sudário de Turim, realizado em 1988, confirmando sua falsidade, e que por sua
vez provocou nosso interesse no assunto, havia utilizado, como amostra de contr
ole, material retirado de um manto proveniente do século XIII, pertencente a 'São' L
uís IX, e que estava guardado na basílica de St. Maximim.
Entretanto, a fim de nos concentrarmos apenas nos objetivos da atual investigação, t
odos os pensamentos relacionados ao Sudário de Turim foram postos de lado. Estávamos
lá, no sul da França, para descobrir a verdade sobre Maria Madalena, a mulher que s
e acreditava ser o núcleo de mistérios muito antigos, e cujo poder se estendia à cultu
ra atual, de um modo que ainda não havíamos compreendido inteiramente. Parados ali,
naquele calor infernal, perdidos em pensamentos contraditórios, assistíamos à procissão
anual da suposta cabeça de Maria Madalena. Para aqueles que, como nós, cresceram na
Inglaterra protestante, festivais católicos e todo aquele ritual criado em torno d
e uma relíquia, só podem mesmo ser fonte de um forte choque cultural. Coisas como es
sas podem se afigurar como eventos extravagantes, de mau gosto, repulsivos até.
Contudo, o que nos chamava a atenção não era a apresentação ridícula de uma superstição, ma
evoção e o orgulho do povo local, cujo entusiasmo, por essa santa em particular, não p
oderia ser definido como exatamente solene. Talvez aqui ainda atue o mundo 'loca
l', pois a bandeira que vemos balançar ao vento é a da Provença, e não a da França. E Mada
lena é tida, realmente, com uma santa local, mesmo que tenha chegado a essas parag
ens já quase no final de sua vida. Maria Madalena, acredita-se, veio da Palestina
através do mar e se fixou na Provença, onde morreu. Seu poder é tão grande e duradouro,
que, nessa região, atualmente, ela não é apenas reverenciada, mas sim idolatrada e com
uma rara paixão.
Há, é claro, uma extraordinária, até mesmo fanática, devoção a ela na Provença, e a lenda r
onada à sua morte persiste na região: para muitos, é um fato consumado. Contudo, essa
devoção não é apenas mais um exemplo de uma piedosa tradição católica que se perpetua com o
ssar do tempo. Fomos invadidos por um sentimento penetrante de que algo muito ma
is significativo existia sob a superfície. E foi exatamente isso que emergiu, um v
eio subterrâneo pleno de significados, que estávamos decididos a desvendar.
Primeiro, como pode ser que o corpo de uma judia do século I, vinda da Palestina,
viesse descansar eternamente no sul da França? O que há para ser desvendado sobre es
sa mulher, essa santa em particular, que provoca, tanto tempo após sua morte, uma
paixão e uma devoção tão intensas? E por que, se realmente for verdade, o Monastério de Si
on dedica a ela uma veneração tão incomum?
Mesmo antes de realizarmos nossa primeira viagem à França, especialmente para pesqui
sar os locais tradicionalmente associados ao culto de Madalena, passamos muito t
empo refletindo sobre seu passado. Precisávamos saber como ela era vista historica
mente em nossa cultura, e quão forte seu impacto continuaria a ser. Pois, em contr
aste com a relativa indiferença com que ela é recebida pela cultura protestante da I
nglaterra moderna, para muitos católicos europeus de sangue quente ela é objeto de u
ma devoção ardorosa e passional. Para esses, após a Virgem Maria, ela é a mulher mais im
portante.
Pergunte à maioria das pessoas de boa cultura quem foi e o que representou Maria M
adalena, e a resposta será muito interessante. Quase todo mundo responderá que ela f
oi uma prostituta, mas após dizerem isso, dependendo do ponto de vista da pessoa e
nvolvida, com freqüência haverá algum comentário sobre a pouco definida, porém implícita, r
lação entre ela e Jesus. Essa pressuposição cultural, não importa o quão confusa possa pare
er, encontrou expressão na canção de Tim Rice/Andrew Lloyd 'I Don't Know How to Love H
im' (Eu não sei como devo amá-lo) do musical Jesus Cristo Superstar (1970), em que M
adalena retoma sua auto-estima através das mãos de seu amado e, no papel da mulher q
ue consola Jesus, é retratada como 'a prostituta de bom coração', tão adorada pelo teatr
o britânico. Quando o musical foi apresentado pela primeira vez, e mais tarde tran
sformado em filme, logo causou um enorme rebuliço no mundo cristão, até mesmo entre os
britânicos, bastante conhecidos por serem pouco emotivos. Assim se deu, provavelm
ente, em razão do sentimento de ultraje decorrente da figura de Jesus ter sido exp
lorada pelo showbiz, e sua história ter se transformado em uma ópera-rock!
Uma outra versão de Madalena apareceu no filme Vida de Brian (1970), do grupo de c
omediantes ingleses Monty Python, embora não tenha sido ela, Madalena, o motivo pa
ra as manifestações de ultraje desencadeadas por cristãos ao redor do mundo. Caracteri
zando o personagem de Brian como sendo o próprio Jesus, de um modo levemente disfa
rçado, essa estranha, inteligente e perturbadora comédia foi, ampla e abertamente, a
cusada de ser uma total e completa blasfêmia. Colocando de lado toda a impertinência
, o filme nunca pretendeu retratar Jesus, sendo, na verdade, um comentário satírico
aos cultos atuais relacionados ao Messias. Em nossa opinião, entretanto, seja por
acidente ou deliberadamente, o filme incorpora algumas profundas percepções e alguns
detalhes curiosos muito bem pesquisados. A namorada de Brian, surrealmente apre
sentada como sendo do País de Gales, era o verdadeiro poder por trás dele e de seu m
ovimento: Judith, cuja retórica ferina fez dele um homem, embora terminasse por fa
zê-lo também um mártir.
Os cristãos fizeram piquetes em frente aos cinemas, em diversos países, quando foi a
presentado o filme de Martin Scorsese, A Última Tentação de Cristo (1988). Embora Jesu
s fosse retratado de uma forma um tanto simplória, não parece ter sido essa a razão do
filme ter provocado tanto horror. Essa reação ocorreu muito mais pela explícita descr
ição de sexo entre Maria Madalena e Jesus, mesmo que essa tenha sido uma seqüência que r
epresentava uma fantasia. Por razões que analisaremos depois, todo esse conceito é c
uriosamente repugnante para a maioria dos cristãos, provavelmente porque isso os l
eva a questionar alguns pontos fundamentais acerca da divindade de Jesus. Para e
les, a noção de sexualidade ativa de Jesus, mesmo dentro do contexto de um casamento
, é automaticamente uma blasfêmia: sugestões nesse sentido implicam em que ele pode não
ter sido o filho de Deus. Para nós, muito mais significativo em A Última Tentação de Cri
sto, era a óbvia e extensa fascinação de Scorsese por Madalena e pela idéia de sua íntima
relação com Jesus (o diretor, aliás, é cristão).
Entretanto, não foi a possível permissividade moderna o agente que transformou Madal
ena em algo próximo a um ícone. Ao longo da história, ela sempre, de alguma forma, inc
orporou a atitude contemporânea da mulher de um modo que não é permitido à outra figura
feminina importante do Evangelho, a assexuada e inacessível Virgem Maria. Na época v
itoriana, por exemplo, Madalena era uma boa desculpa para retratar arrependidas
prostitutas enlevadas, porém, semi-nuas; ao mesmo tempo santas e pecadoras, conhec
idas e desconhecidas. Era moda nos bordéis da época que as 'internas' pagassem suas
penitências, embora as regras dessas 'encenações' pouco tenham a ver com a história de M
adalena, conforme é contada nos Evangelhos. Nos dias pós-feministas de hoje, o que s
e enfatiza é sua relação com Jesus.
Pode ser que Madalena continue a manter o seu papel como referencial para os cos
tumes sexuais seculares contemporâneos, mas a imagem que fica através dos tempos tam
bém reflete a atitude da Igreja em relação às mulheres e à sua sexualidade. Somente como u
ma prostituta arrependida é que ela é admitida na congregação dos santos e a disseminação d
sua lenda decorre da sua penitente e inconfortável vida solitária. Sua santidade se
apóia na auto-abnegação.
Nas duas últimas décadas, essa Maria se tornou uma referência para se observar a manei
ra como a Igreja Cristã tem lidado com seu rebanho feminino de modo geral e, em pa
rticular, na controvérsia criada quando a Igreja Anglicana ordenou as primeiras mu
lheres padres. O sermão lido, quando as primeiras mulheres foram ordenadas, em 199
4, não por acaso, foi a história do Novo Testamento contando como o ressurrecto Jesu
s encontrou-se com Madalena, no jardim. Naturalmente, sendo a única mulher signifi
cativa na história de Jesus, além de sua mãe, ela é colocada por muitas mulheres ativist
as, dentro da Igreja moderna, como um símbolo poderoso em defesa de seus direitos.
Pois o poder permanente de Maria Madalena não é imaginário: sempre existiu e exerceu
uma profunda atração ao longo dos séculos, como Susan Haskins deixou claro no seu rece
nte estudo Mary Magdalen (1993).
À primeira vista, o grande poder de atração de Madalena pode parecer enigmático, especia
lmente porque ela, praticamente,não é mencionada no Novo Testamento. Somos levados a
pensar que, como no caso de Robin Hood, a extrema escassez de informação proporcion
a uma tentação incontrolável em inventar material mítico, a fim de preencher as lacunas.
Contudo, se alguém criou uma fantasia chamada Maria Madalena, esse alguém foi a própr
ia Igreja. A imagem dela como uma prostituta arrependida nada tem a ver com a hi
stória contada em Mateus, Marcos, Lucas e João: a personagem descrita no Novo Testam
ento é completamente diferente daquela construída pela Igreja.
Os Evangelhos são os únicos textos referentes a Maria Madalena com os quais a maiori
a das pessoas está familiarizada; pois então, vamos a eles. Até recentemente, sua pers
onagem tem sido lembrada, pela maioria dos cristãos, como sendo a de uma figura ma
rginal na história de Jesus e de seus discípulos. Mas, nos últimos vinte anos, tem hav
ido uma clara mudança na percepção dos estudiosos em relação a ela. Seu papel tem sido con
siderado bem mais importante, e é sob a ótica dessas considerações que baseamos nossa próp
ria hipótese.
Além da Virgem Maria, Madalena é a única mulher que tem seu nome mencionado nos quatro
Evangelhos. Ela aparece, pela primeira vez, durante a pregação de Jesus na Galiléia,
como uma das mulheres que o seguiam, e que 'lhe assistiam de suas posses'. Ela f
oi aquela que teve 'sete demônios' arrancados de si. A tradição também a identifica com
outras duas mulheres do Novo Testamento: Maria de Betânia, irmã de Marta e Lázaro, e u
ma mulher, cujo nome não foi revelado, que ungia Jesus com nardo indiano tirado de
uma jarra de alabastro. Essa ligação será explorada mais tarde, mas, por agora, conce
ntremo-nos na figura inequivocamente identificada como Maria Madalena.
Seu papel torna-se completamente outro, de significado profundo e duradouro, qua
ndo ela é retratada como tendo estado presente à crucificação, e, mais especialmente, qu
ando se torna a primeira testemunha da Ressurreição. Embora os quatro relatos dos Ev
angelhos sobre a descoberta da tumba vazia sejam notoriamente diferentes, estão, c
ontudo, em concordância sobre a identidade da primeira testemunha do levantar-se d
e Jesus. Essa testemunha era, sem sombra de dúvida, Maria Madalena. Ela foi não apen
as a primeira testemunha feminina, mas a primeira pessoa a vê-lo após se levantar da
tumba, um fato que tem sido ofuscado pelos muitos que preferem afirmar que apen
as os homens que seguiam Jesus eram seus verdadeiros apóstolos.
A Igreja, de fato, baseou toda a sua autoridade no conceito do apostolado. Pedro
, sendo o 'primeiro Apóstolo', é, portanto, o fio condutor através do qual o próprio pod
er de Jesus foi transmitido para a posteridade. Sua autoridade, que embora muito
s acreditem seja decorrente da afirmação, em forma de trocadilho, 'sobre esta pedra
edificarei minha Igreja', oficialmente se apóia no fato de ter sido Pedro o primei
ro discípulo de Jesus a vê-lo após sua ressurreição. O Novo Testamento, porém, torna claras
as contradições existentes nos ensinamentos oficiais da Igreja sobre esse assunto.
Madalena sofreu, claramente, apenas nesse relato, uma grande injustiça, que teve e
normes implicações. Porém, há mais. Ela também foi a primeira discípula a receber uma missã
postólica diretamente de Jesus, ao ser instruída a levar a notícia de sua ressurreição aos
outros discípulos. Curiosamente, a Igreja, em seus primórdios, reconhecia o verdade
iro lugar de Madalena na hierarquia e deu a ela o título de Apostola Apostolorum (
Apóstola dos Apóstolos), ou de modo mais explícito 'A Primeira Apóstola'.
A razão de Jesus ter escolhido mostrar-se pela primeira vez a uma mulher, em sua f
orma ressurrecta, sempre foi uma pedra no sapato dos teólogos. Talvez a explicação mai
s original tenha sido dada na era medieval, quando se sugeriu, seriamente, que a
maneira mais rápida de difundir essa notícia seria passando-a para uma mulher!
Hoje, de modo geral, os estudiosos admitem, muito mais do que a Igreja se permit
e, o papel ativo que as mulheres desempenharam no movimento de Jesus, tanto dura
nte sua vida quanto após sua morte, quando sua palavra se espalhou entre os gentio
s. Ironicamente, talvez nem mesmo agora pudéssemos conhecer o verdadeiro lugar das
mulheres, se não fosse a controvérsia criada com a campanha que moveram pela própria
ordenação. O papel das mulheres só foi minimizado quando a Igreja se tornou uma instit
uição formal, sob a forte influência de São Paulo. E o processo foi também retroativo. Em
outras palavras, embora as mulheres não fossem personagens menores nos primórdios do
drama cristão, Paulo e seu pessoal de confiança se asseguraram de que elas seriam r
elegadas para as notas de rodapé da história.
É verdade que a impressão dada nos Evangelhos é a de que os discípulos de Jesus eram tod
os homens. Uma única referência no Evangelho de Lucas menciona mulheres que viajavam
com Jesus. Causa certa confusão quando de repente, do nada, surgem mulheres para
tomar conta do palco central ao redor da cruz. A julgar pela arbitrária marginaliz
ação das mulheres nos relatos, é um tanto difícil entender o porquê delas passarem, abrupt
amente, a ser o centro das atenções. Seria, talvez, porque todos os discípulos do sexo
masculino abandonaram Jesus? Teria sido permitido às mulheres aparecer nesse mome
nto crucial da história, apenas porque elas eram as únicas pessoas de seu círculo que
lhe permaneceram fiéis? Os relatos dos Evangelhos talvez precisassem reescrever o
papel das mulheres durante a crucificação, simplesmente porque elas foram suas únicas
testemunhas, e é no testemunho delas, apenas, que a história se baseia. No entanto,
nas cortes jurídicas judias daquela época, o testemunho das mulheres não era admitido,
e, portanto, não era considerado relevante para o que quer que fosse. Dentre as m
uitas implicações relacionadas a essa questão, está a possibilidade de estar baseada em
fatos a versão de que Maria Madalena teria sido a primeira pessoa a encontrar o re
ssurrecto Jesus. Uma história baseada apenas na palavra de uma mulher teria poucas
possibilidades de frutificar.
Essas mulheres mereciam ser aplaudidas, pois, ao permanecerem leais a um crimino
so convicto, tornaram-se exemplos excepcionais de lealdade e coragem. Uma delas
em especial: Maria Madalena. Sua importância é inferida do fato de que, quase sem ex
ceção, seu nome aparece em primeiro lugar em qualquer lista que se faça sobre as mulhe
res que seguiam Jesus. Até alguns católicos de hoje sugerem que assim deva ser, pois
ela era a líder das mulheres discípulas. Naquela sociedade rigidamente formal e hie
rarquizada, essa honra não era pequena nem acidental: Madalena vinha em primeiro l
ugar, mesmo quando a lista era feita por aqueles que achavam que as mulheres não m
ereciam ter um lugar no movimento de Jesus e, especialmente, não tinham qualquer s
impatia por aquela mulher em particular.
Ela, como vimos, 'lhes assistia de suas posses', a Jesus e aos discípulos homens.
Essa passagem sempre foi explicada através da idéia de ser ela uma espécie de devotada
serva, sempre prostrada ante os homens, muito mais importantes. Os fatos, porém,
são completamente outros: não há dúvida de que as palavras utilizadas no Evangelho realm
ente significavam 'sustentar' Jesus e os outros 'com seus recursos'. Na opinião de
muitos estudiosos, Maria Madalena, talvez como as outras mulheres do movimento
de Jesus, não era uma mulher pobre e dependente, mas uma mulher de vontade própria q
ue mantinha Jesus e os outros homens. Embora o relato bíblico também utilizasse essa
s palavras em relação a outras mulheres que o apoiavam, foi Madalena, certamente, a
primeira de todas.
Maria Madalena é definitiva e deliberadamente colocada em separado em relação às outras
mulheres. Todas as outras mencionadas pelo nome no Evangelho canônico, estão definid
as por sua relação com um homem, como 'mulher de...' ou 'mãe de...'Apenas Madalena tem
o que parece ser um nome de verdade. O porquê disso será discutido depois.
Entretanto, essa personagem poderosa e importante permanece curiosamente enigmátic
a. Após a atenção um tanto ambígua que os Evangelhos lhe deram, enquanto parece estar so
zinha, ela simplesmente não é mais mencionada nem nos Atos dos Apóstolos, nem nas Epísto
las de Paulo (mesmo em seu relato sobre a descoberta da tumba vazia), nem nas Epís
tolas de Pedro. Esse é um daqueles mistérios que pareceria destinado a ser muito dis
cutido, porém, nunca solucionado, até o momento em que voltamos nossa atenção para os te
xtos conhecidos como Evangelhos Gnósticos, onde o quadro se torna claro de um modo
até mesmo surpreendente. Esses documentos, dos quais existem cerca de quinze, for
am descobertos em 1945, em Nag Hammadi, no Egito, e são uma coletânea dos primeiros
textos Gnósticos Cristãos. Os originais de alguns deles são, comprovadamente, quase qu
e da mesma época dos Evangelhos canônicos. Esses textos foram condenados como 'herétic
os' pela igreja católica, sendo, então, sistematicamente caçados e destruídos, como se c
ontivessem algum grande segredo potencialmente perigoso para o sistema sócio-cultu
ral que então começava a se desenvolver.
A maioria desses textos proibidos afirmava a preeminência de Maria Madalena: um de
les chama-se inclusive O Evangelho de Maria. A Maria desse evangelho não é a Virgem,
mas sim Madalena.
Talvez não seja coincidência que os quatro evangelhos do Novo Testamento, efetivamen
te, a marginalizem, enquanto os textos 'heréticos' enfatizam sua importância. Seria
o Novo Testamento, na verdade, uma forma de propaganda em favor daqueles que era
m contrários a Madalena?
Embora discutamos os Evangelhos Gnósticos detalhadamente, no último capítulo, os ponto
s que se seguirão são de imediata importância. A história do Novo Testamento indica, com
certa relutância, que Madalena teve uma participação maior no movimento de Jesus. Os
Evangelhos Gnósticos, porém, o afirmam abertamente e confirmam sua preeminência. E mai
s, esse status superior não se refere apenas à sua posição entre as mulheres; ela é litera
lmente a Apóstola dos Apóstolos e, portanto, reconhecida como a segunda pessoa mais
importante, depois do próprio Jesus, colocada acima de todos os seus discípulos, tan
to homens quanto mulheres. Ela, parece, era a única pessoa a fazer a ponte entre J
esus e todos os seus outros discípulos e era quem interpretava as palavras deste p
ara o beneficio de todos. Nesses textos, Pedro não foi o escolhido por Jesus como
o segundo em comando, mas sim Maria Madalena.
Foi ela quem, de acordo com o Evangelho Gnóstico de Maria, reagrupou os discípulos d
esanimados após a crucificação e lhes injetou algum ânimo quando já estavam a ponto de des
istir e voltar para casa, após a perda aparente de seu carismático líder. Ela esclarec
eu todas as dúvidas, de forma apaixonada e inteligente, e conseguiu inspirá-los a po
nto de se tornarem apóstolos verdadeiramente devotados. Tal feito não deve ter sido
fácil, pois ela teve que superar, presume-se, o sexismo prevalecente na cultura de
sua época, além de ser forçada a se bater contra um poderoso antagonista. Seu inimigo
era Pedra, o Grande Pescador de Homens da lenda, o mártir e fundador da Igreja Ca
tólica Apostólica Romana. Ele, afirmam repetidamente os Evangelhos Gnósticos, a odiava
e a temia, embora, enquanto seu Mestre estivesse vivo, pudesse apenas protestar
, inutilmente, contra o peso de sua influência. Muitos dos textos relatam acalorad
as discussões entre Maria e Pedro, com este se perguntando como Jesus poderia, apa
rentemente, ter preferência pela companhia daquela mulher. Como diz Maria Madalena
em outro Evangelho Gnóstico, o Pistis Sophia: 'Pedro me faz hesitar: tenho medo d
ele, pois ele odeia a espécie feminina'. E nos Evangelhos Gnósticos de Tomás, encontra
mos Pedro dizendo: 'deixem que Maria se vá, pois as mulheres sequer merecem viver'
.
Há ainda outras coisas relacionadas aos textos gnósticos que os tornam explosivos pa
ra a Igreja. O retrato do relacionamento entre Maria e Jesus não é exatamente o de u
m professor e sua pupila, ou mesmo o do guru e sua estudante favorita. Eles são re
tratados, muitas vezes quase graficamente, em termos bem mais íntimos. Veja, por e
xemplo, o Evangelho Gnóstico de Felipe:

Cristo, porém, amou-a mais do que a todos os seus discípulos e, com freqüência, a b
eijava na boca. Os outros discípulos se ofendiam e deixavam clara sua desaprovação. El
es disseram a Jesus, 'por que você a ama mais do que a todos nós?' O Salvador respon
deu dizendo-lhes 'por que não amo vocês como a amo?
No mesmo Evangelho Gnóstico, lemos uma frase aparentemente inócua; 'havia três que sem
pre andavam junto ao Senhor: sua mãe Maria, sua irmã e Madalena, que é chamada de sua
companheira. Sua irmã, sua mãe e sua companheira todas se chamavam Maria. E a compan
heira do Salvador é Maria Madalena'.
Embora atualmente a palavra 'companheiro' sugira coleguismo, amizade, em um sent
ido puramente platônico, a palavra original do grego significava 'consorte' ou par
ceira sexual... Os fundamentalistas acreditam que o motivo pelo qual somente os
Evangelhos Canônicos foram incluídos no Novo Testamento, é que eles e apenas eles contêm
a verdadeira palavra de Deus. No entanto, não há porque admitir que os Evangelhos G
nósticos não sejam tão válidos quanto os de Mateus, Marcos, Lucas e João.
Se Madalena fosse realmente amante ou mulher de Jesus, então sua posição enigmática no N
ovo Testamento estaria explicada. Ela parece ser importante, mas os motivos de s
ua posição elevada nunca ficam claros; talvez os escritores da época esperassem que se
us leitores já tivessem um conhecimento prévio do relacionamento entre ela e Jesus.
Afinal, e isso tem sido colocado, rabinos se casam: um pregador celibatário teria
causado muito mais comentários e, com certeza, haveria nos Evangelhos uma observação a
esse respeito. Se Jesus fosse celibatário e não tivesse filhos, em uma cultura dinást
ica como aquela, isso não só teria causado um alvoroço, como faria parte, de um modo m
ais claro e difundido, do relato de seus ensinamentos. De fato, o celibato era,
e é considerado tão horrível na tradição judaica como é hoje ser considerado um pecador. Je
us teria se tornado notório por pregar o celibato: esta, porém, não é uma acusação levantad
contra ele, nem mesmo por seus inimigos mais implacáveis. A vida monástica foi um a
pêndice adicionado ao cristianismo muito tempo depois - até mesmo o aparentemente mi
sógino Paulo admitia que 'é melhor casar do que abrasar.'
A própria idéia de Jesus ser sexuado é tão desagradável para a maioria dos cristãos moderno
que a seqüência do filme de Martin Scorsese que mostra Jesus e Madalena na cama pro
vocou um grito em uníssono de horror. Cristãos de todas as partes acusaram tal cena
de ser sensacionalista, sacrílega e blasfema. Mas a razão verdadeira para esse ultra
je é, nada mais nada menos, o atavismo subjacente relacionado ao medo e ao ódio à mulh
er. Tradicionalmente, elas são vistas como sujas e sua proximidade física polui corp
o, mente e espírito dos naturalmente bons e puros homens; com certeza o filho de D
eus nunca poderia colocar-se na posição de perigo de um mero mortal. O horror sentid
o perante a idéia de Jesus, entre todos os homens, ser o parceiro sexual de qualqu
er mulher, multiplica-se milhares de vezes quando sua amante atende pelo nome de
Maria Madalena, uma conhecida prostituta.
Iremos discutir, mais adiante, essas questões de um modo mais completo, mas seria
interessante adiantar que o fato de ser ela, ou ter sido, uma mulher das ruas, d
eve permanecer em aberto. Existem evidências que tanto afirmam como negam sua anti
ga profissão, mas o aspecto mais significativo sobre esse assunto é que a Igreja esc
olheu retratá-la como uma prostituta, pelo menos uma prostituta arrependida. Na me
lhor das hipóteses, essa interpretação bastante seletiva sobre seu caráter também é conveni
nte para transmitir duas mensagens principais: a de que Madalena, em particular,
e todas as mulheres, no geral, são sujas e espiritualmente inferiores aos homens,
e a idéia de que a redenção só é possível através da Igreja.
Se é inimaginável que Jesus e essa (suposta) ex-prostituta fossem amantes, então para
muitos cristãos é quase igualmente ultrajante sugerir que eles eram marido e mulher.
Como vimos, os autores de The Holy Blood and The Holy Grail argumentam que, se
Madalena era a mulher de Jesus, então estaria explicada a razão de ela ter sido tão im
portante para o Monastério de Sion e à idéia de uma linhagem sagrada. Não foi essa, porém,
a primeira vez em que isso foi colocado no papel.
Em 1931, D.H. Lawrence publicou o romance The Man who Died, no qual Jesus sobrev
ive à cruz e encontra a verdadeira redenção através do ato sexual com Maria Madalena, qu
e é claramente identificada com a sacerdotisa Ísis. Lawrence também associou Jesus com
a morte e renascimento do deus Osíris, consorte daquela deusa. A história foi origi
nalmente intitulada como The Escaped Cock, (O Pênis Fujão), e como Susan Haskins esc
reve:
O pênis é... associado com a idéia de 'ascensão' do corpo (o personagem-Cristo se util
iza do trocadilho ao exclamar 'Estou de pé!', quando finalmente tem uma ereção...)
(Parece estranho que tanta atenção tenha sido dada a O amante de Lady Chatterley, en
quanto esse outro romance, muito mais controverso, tenha escapado da censura).
Embora haja bons argumentos para afirmar que Jesus e Madalena fossem casados e,
implicitamente, tivessem filhos, isso por si só não parece ser uma razão suficientemen
te boa para o Monastério investir tanta energia na devoção à Madalena, porque, como vimo
s no capítulo anterior, existem boas razões para se desconfiar da idéia de que a dinas
tia Merovíngia seja descendente desses dois. O fascínio de Madalena reside clarament
e em alguma outra coisa, algo indefinível mas não impossível de perceber. Algumas pist
as desse algo indefinível podem ser encontradas no poder que sua imagem tem em nos
sa cultura, sabendo-se que foi na França que, supostamente, ela viveu os últimos dia
s de sua vida.
O texto mais famoso sobre Madalena na França é Golden Legend, de Jacobus Voragine (1
250). Nele, de Voragine, o Arquebispo Dominicano de Gênova, se refere a ela tanto
como Iluminata quanto como Illuminatrix - a Iluminada e a Iluminadora - o que é pa
rticularmente interessante porque esses papéis são designados a ela em todos os text
os Gnósticos 'proibidos'.
Ela é retratada como sendo iluminada e iluminadora, iniciada e iniciadora; sem nen
huma sugestão de que era espiritualmente inferior devido ao fato de ser mulher, mu
ito pelo contrário.
Como acontece em todas as lendas, há muitas variações sobre o tema central, o qual, co
ntudo, permanece admiravelmente constante. A história principal é a seguinte: logo a
pós a crucificação, Maria Madalena, juntamente com seus parentes, Marta e Lázaro, e vários
outros, cujas identidades variam dependendo da versão da história, viajaram pelo ma
r até a costa do que hoje é a Provença. Entre o variável corpo de extras está São Maximiano
que, além de ser o lendário primeiro bispo da Provença, teria sido um dos setenta e d
ois discípulos de Jesus; Maria Jacobina e Maria Salomé, supostamente tias de Jesus;
uma serva negra chamada Sara; e José de Arimatéia, um amigo rico de Jesus que geralm
ente está vinculado à história de Glastonbury. O suposto motivo dessa longa, confusa e
inconfortável viagem também depende da versão da história que se lê. Uma delas diz que es
se grupo escapou da perseguição da Igreja aos judeus, e outra diz que eles foram del
iberadamente colocados à deriva por seus inimigos, em um bote rudimentar e sem rem
os. Portanto, foi literalmente um milagre terem alcançado terra firme.
O retrato histórico medieval do sul da França, na época da chegada de Madalena, mostra
uma região selvagem e habitada por uns poucos pagãos incultos. Na verdade, Provença f
azia parte do grande Império Romano, sendo uma região bastante civilizada, com cresc
entes comunidades romanas, gregas e mesmo judaicas; a família de Herodes, inclusiv
e, era proprietária de terras no sul da França. E longe de ser uma jornada extremame
nte árdua e fora de mão, era uma rota comum para navios mercantes, além de ser uma via
gem tão difícil quanto, digamos, de Tiro ou Sídon até Roma. Se essas pessoas vieram para
r na Provença, é bem possível que o tenham feito voluntariamente, não tendo sido forçadas
a isso.
As lendas concordam que eles desembarcaram na cidade atualmente conhecida como S
aintes-Maries-de-la-Mer, na Camargue. Uma vez lá, o grupo se dividiu e seguiu cami
nhos variados, com o intuito de difundir as palavras do Evangelho.A história diz q
ue Madalena pregou por toda a região, convertendo o gentio, antes de se tornar rec
lusa e habitar uma caverna em Sainte-Baume.Algumas histórias dizem que ela viveu lá
por implausíveis, mas bíblicos, quarenta anos, usando todo esse tempo para se arrepe
nder de seus pecados e meditar sobre a figura de Jesus. Para colocar um pouco de
tempero na história, acredita-se que ela viveu todos esses anos nua em pelo, com
exceção do cabelo, tão abundante que efetivamente a vestia, algo que lembra remotament
e as peles de animais que João Batista usava. No final de sua vida, dizem, foi car
regada por anjos à presença de São Maximiano (que era, então, o primeiro bispo da Provença
), que lhe deu os últimos sacramentos, logo antes de sua morte. Seu corpo foi quei
mado na cidade que a homenageou com seu próprio nome.
Com certeza um belo conto, mas haverá nele algum fundo de verdade? Para começar, é mui
to improvável que Madalena tenha se tornado uma reclusa, não importa por quanto temp
o, passando a viver em uma caverna em Sainte-Baume. Até mesmo os atuais guardiães do
santuário católico admitem que ela nunca esteve lá. O lugar não é desprovido de significa
do, entretanto. Nos tempos romanos, longe de ser um local ermo, como diz a lenda
, essa região era bastante povoada, e a tal caverna, um centro de culto à deusa Dian
a Lucífera (a que trazia luz ou Illuminatrix). Embora uma Madalena nua, mas não tota
lmente pelada, viesse com certeza a se tornar o centro das atenções, ela dificilment
e ficaria sozinha nesse lugar de culto, pois muitos outros devotos e sacerdotisa
s viriam em bandos até a caverna. Mas, embora a cristianização de lugares pagãos, ao men
os em retrospectiva, seja uma prática histórica bastante conhecida, algo mais parece
estar sendo insinuado aqui.
(É bastante interessante que Arles, a cidade populosa que está mais próxima do local o
nde supostamente Madalena desembarcou, fosse um grande centro de culto à deusa Ísis.
Essa inóspita e dura região parece ter sido um lar para muitos grupos que cultuavam
essa deusa, e sem dúvida continuou a ser um refúgio para seus praticantes durante o
s tempos do cristianismo).
De fato, a metamorfose da outrora voluptuosa Madalena em uma ermitã desolada e dur
a, foi a cristianização deliberada de uma história muito mais ambivalente: todos os el
ementos-chave foram retirados da lenda de Santa Maria do Egito, do século XV, que
também era uma prostituta que se tornou eremita e cuja penitência na inóspita Palestin
a durou quarenta anos. (Entretanto, é claro que velhos hábitos demoram a morrer, poi
s ela financiou sua viagem pelo mar oferecendo seus serviços pessoais aos marinhei
ros e, ainda mais incrível, foi considerada ainda mais santa por fazer isso...).
É claro que, ainda mais sob a ótica de outra evidência que será fornecida mais adiante,
a parte 'penitente' da história de Madalena é uma invenção deliberada da Igreja medieval
, que queria torná-la mais aceitável. Porém, descobrir o que ela não era não explica por s
i mesmo nem sua história, nem sua personalidade. E então, mais uma vez, nos encontra
mos frente a uma curiosa atração por essa mulher, que vai além de um mero carisma que
cativa nossos contemporâneos, e cujo apelo não só sobreviveu aos séculos mas, realmente,
parece ter aumentado em nossa época.
Há centenas de lendas referentes a santos, algumas mais críveis que outras, mas, inf
elizmente, a maioria não passa de fábulas. Por que o caso de Maria Madalena seria di
ferente? Por que deveríamos encontrar qualquer substância em sua lenda? Muitos estud
iosos têm afirmado que a lenda de Madalena na França foi, simplesmente, uma invenção de
astutos publicitários franceses, ansiosos por criar um espúrio legado bíblico para ele
s mesmos (ao contrário das histórias do menino Jesus em visita ao sudoeste da Inglat
erra).
Inegavelmente, muitos detalhes da história de Madalena na França foram acrescentados
mais tarde, mas existem razões para suspeitar que no geral ela se baseia em fatos
. Pois, embora talvez seja ir um pouco longe demais afirmar que Jesus visitou o
sudoeste da Inglaterra, então uma região bastante remota do Império Romano, não é exatamen
te a mesma coisa que sugerir que uma mulher independente financeiramente pudesse
navegar até uma cidade culturalmente emergente, situada no litoral de um Mediterrân
eo romanizado. A natureza de seu papel nesses contos era mostrada de forma muito
mais vigorosa: ela é explicitamente retratada como uma pregadora. Como vimos, em
seus primórdios a Igreja se referia a ela como 'a Apóstola dos Apóstolos', mas lá pela I
dade Média tornara-se impensável descrever dessa forma o papel destinado às mulheres.
Se, como dizem os críticos, a lenda da Madalena francesa tivesse sido inventada po
r monges medievais, eles dificilmente teriam lhe dado o papel de Apóstola, que é, co
nforme o próprio pensamento deles, um papel essencialmente masculino. Isso sugere
que a história foi baseada em uma memória verdadeira relacionada a essa mulher, mesm
o que tenha sido um tanto enfeitada ao longo dos séculos. E, significativamente, o
s historiadores concordam que o cristianismo se estabeleceu na Provença no século 1.
Tomando a cidade de Marselha como base, passamos a visitar os principais locais
associados à lenda de Madalena.
A trilha, como a própria história, começou em Saintes-Maries-de-la-Mer, que fica a cer
ca de duas horas de carro de Marselha, dentro da Camargue, uma área pantanosa pont
ilhada de lagoas, onde a foz do rio Reno se encontra com o Mediterrâneo. Saintes-M
aries é a única cidade em uma região reservada exclusivamente à criação de cavalos de raça,
e fazem a fama de Camargue, e que, além disso, serve como santuário para muitas espéci
es de aves aquáticas, incluindo bandos de flamingos que visitam a costa vindos da Áf
rica. É um lugar selvagem, repleto de mosquitos ao anoitecer, e, após uma longa jorn
ada através dos pântanos de Arles, é quase um choque chegar em Saintes-Maries e se dep
arar com essa barulhenta cidade turística, cheia de alegria, bares e restaurantes.
Como o resto da Camargue, ela tem um inconfundível ar espanhol, contando até mesmo
com uma arena de touros, que aqui fica à beira-mar.
A igreja de Notre-Dame de la Mer, em formato de galeão, eleva-se abruptamente sobr
e os prédios baixos da cidade. Ensinam-nos, embora não nos surpreendam, que a igreja
do século XII é repleta de fortificações: construída em uma cidade remota no litoral, est
ava sob constante ameaça de ataques de piratas e inimigos.
Três Marias aqui são veneradas: Maria Madalena, Maria Jacobina e Maria Salomé. A igrej
a era de particular interesse para René d'Anjou (1408-1480), Rei de Nápoles e Sicília,
e, de acordo com o Monastério de Sion, seu Grão Mestre. O 'Bondoso Rei René', como é co
nhecido historicamente, era um devoto ardoroso de Madalena, e obteve permissão do
Papa para exumar a cripta. Encontrou dois esqueletos, que foram declarados como
sendo das Marias Jacobina e Salomé. De Madalena, porém, ele nada achou.
No interior da igreja, há um curioso altar dedicado a Sara, a Egípcia, supostamente,
serva das Marias. A tradição afirma que era negra. Ela é a deusa dos ciganos, que con
vergem para a cidade aos milhares, todo 25 de maio, para um festival comemorativ
o em sua honra. Durante o festival, há a eleição da Rainha Cigana, que se realiza defr
onte à estátua de Sara, a qual é então levada em procissão e cerimoniosamente colocada no
mar. Naturalmente, esse festival tornou-se uma forte atração para turistas, e tem tr
azido muitos visitantes famosos ao longo dos anos, incluindo Bob Dylan, que, após
ter ido ao festival, escreveu uma canção sobre a visita.
Dentre outras visitas ilustres, há uma que foi eternizada com uma placa na praça def
ronte à igreja: a do Cardeal Angelo Roncalli (1881-1963), então embaixador do Vatica
no na França e mais tarde Papa João XXIII. Afirma-se que ele era um dos membros do M
onastério de Sion, na mesma época em que Jean Cocteau, ao tornar-se Grão Mestre, receb
eu como título o nome de João XXIII.
Seguindo o que se diz ser o próprio itinerário de Madalena, voltamos à quente e barulh
enta Marselha, onde ela pregou. Das duas catedrais, que ficam lado a lado, uma t
em apenas 150 anos e é ainda utilizada. Embora sua decoração celebre o tema de Madalen
a, isso, provavelmente, é resultado das tradições e expectativas locais. A construção mais
antiga, a Vieille Major, é muito mais interessante e contém aparentemente descrições au
tênticas da vida e da obra de santos que atuaram na região. E, da mesma forma que a
cúpula da igreja de Notre-Dame de France, em Londres, o teto foi decorado de forma
a assemelhar-se a uma teia de aranha. No entanto, essa catedral não está mais abert
a ao público, pois foi considerada insegura.
Construída no século XII, no lugar onde antes havia um batistério do século V, ela respl
andece de antigo madalenismo. Além de uma capela dedicada especificamente a Madale
na, e da mesma forma que a capela de Saint Serenus, ela também tem uma série de baix
os-relevos, encomendados por René d'Anjou, retratando cenas da vida de Madalena. U
m deles, inclusive, a Madalena pregando, reforçando assim a imagem de apóstola que t
ransparece nos Evangelhos Gnósticos. E como, presumivelmente, ela foi bem-sucedida
em converter os 'pagãos', alguém devia estar pronto a batizá-los na fé da igreja cristã,
mas quem era este? Teria a própria Apóstola dos Apóstolos se encarregado da tarefa?
A tradição local diz que ela pregava nas escadas de um antigo templo dedicado a Dian
a. O local dessa construção nada tem a ver com as catedrais de Marselha, estando próxi
mo, afirma-se, de onde hoje é a Place de Lenche, em um emaranhado de ruas a cerca
de duzentos metros dali. Não há nenhuma placa comemorativa indicando ser este um loc
al historicamente famoso, mas existe algo que faz com que haja essa insistência em
afirmar que aquela área triangular foi um lugar onde Madalena uma vez pregou.
Passando o forte de São João Batista, e o antigo e pitoresco porto com o mundialment
e famoso, diríamos fétido, mercado de peixe, fica a abadia de São Vítor. Este é um outro l
ocal religioso importante, pois ali existia um Monastério desde o início do quinto séc
ulo, e que, por sua vez, fora construído em cima de um cemitério pagão. O prédio atual é d
o século XIII, mas sua cripta, muito mais velha, é adornada com sarcófagos do período ro
mano. A cripta também contém uma capela, que lembra uma caverna, dedicada a Madalena
. Mas para nós, o que há de mais fascinante nesse lugar é a estátua do século XIII de Notr
e-Dame de Confession. Segurando uma criança em seus braços, a cor de sua pele é negra.
Ela é uma das controvertidas e lendárias 'Madonas Negras',
A leste de Marselha está Sainte-Baume, a grande caverna onde Madalena supostamente
viveu seus últimos dias, em reclusão. Há uma subida escarpada e sinuosa de quase 1.00
0 metros, antes de se chegar a uma planície que leva o visitante a um pequeno agru
pamento de casas, que constituem o povoado de Sainte-Baume. Dali, há uma longa e d
ura caminhada através da floresta até a gruta, agora um santuário católico. Entretanto,
não há nenhuma indicação que demonstre ter ela estado aqui, pois, como já vimos, a Igreja
enxertou Sainte-Baume na história de Madalena, a fim de fazer um paralelo desta co
m a vida de uma outra prostituta, Maria do Egito, além do que, na época da suposta c
hegada de Madalena, a gruta era um centro de culto à deusa pagã. O mito, porém, tem um
duplo valor: transformar uma indomável Madalena em alguém mais aceitável para ser pat
rocinada pela Igreja, e fazer de um antigo local de culto pagão um centro de pereg
rinação cristã.
De Sainte-Baume, a estrada continua até o local onde supostamente Madalena morreu
e foi cremada, Saint-Maximim-la-Sainte-Abume, lugar do bem-sucedido festival anu
al em sua homenagem. A gloriosa procissão da cabeça de Madalena começa com os serviços m
inistrados na basílica de Sainte-Marie-Madeleine e então a relíquia, que normalmente e
stá trancada na sacristia, é colocada em uma liteira e carregada através de uma rota p
redeterminada por entre as ruas sinuosas e estreitas da cidade de São Maximiano. U
ma banda de sopros e percussão, trajada com roupas tradicionais da Provença, lidera
a parada, acompanhada de bispos, padres, monges dominicanos e as pessoas mais im
portantes do local. Talvez a fim de se fazer uma espécie de 'aquecimento', há mais d
uas outras liteiras transportando estátuas menores de santos de menor importância. E
então, após uma longa espera, lá vem ela, a cabeça de Madalena. Adornada com pequenas m
edalhas de ouro nas beiradas do dossel, a preciosa relíquia é, obviamente, de uma im
portância extrema. Os moradores da cidade postam-se ao lado dela, portando bandeir
as, formando uma guarda simbólica. O poder de atração da parada é tão grande que uma jovem
apareceu na janela para vê-la, esquecendo completamente qualquer noção de modéstia, poi
s estava totalmente nua (alguns diriam que isso está bem de acordo com a ocasião, le
vando-se em conta a santa que está sendo homenageada).
As mesmas ladainhas cantadas pelo clero e pela multidão, em especial o hino dedica
do a Madalena, acompanham a relíquia durante toda a procissão, que culmina com uma s
ublime interpretação, dentro da própria basílica, puxada por seu órgão mundialmente famoso.
Porém, será que toda essa opulência e cerimônia não têm como único intuito dourar a pílula?
ue ela nos diz alguma coisa sobre a verdadeira Maria Madalena, a enigmática mulher
do Novo Testamento, que realmente pode ter sido a mulher de Jesus?
Seus restos queimados foram encontrados, dizem, na cripta da igreja de São Maximia
no, em 9 de dezembro de 1279, por Charles II d'Anjou, conde da Provença. O que se
acreditava ser seu esqueleto foi descoberto em um rico sarcófago de alabastro, dat
ado do século V. A explicação para esse sepultamento tardio foi encontrada nos documen
tos descobertos dentro da própria tumba. Os documentos atestam que, em 710 d.C., o
corpo de Madalena foi colocado em outro sarcófago, a fim de protegê-lo dos invasore
s sarracenos, e só então, nessa data tardia, é que se fez o devido registro. O esquele
to ainda está em seu caixão de pedra, na cripta da basílica, embora o crânio esteja no r
elicário ornamentado de ouro, dentro da sacristia. Charles d'Anjou patrocinou a co
nstrução da basílica e também, com a aprovação papal, colocou-a sob a proteção da Ordem Dom
na. O prédio, que começou a ser construído em 1295, levou cerca de 250 anos para ficar
pronto, mas, como é comum na construção de catedrais, nunca ficou realmente pronto. A
intenção original de Charles era fazer deste um centro de peregrinação para os devotos
de Madalena, embora não se esperasse que fosse tão famoso quanto, digamos, São Tiago d
e Compostela.
O comércio de relíquias medievais, mesmo naquela época, era uma atividade encarada com
o infame. Para as pessoas bem nascidas, era simplesmente uma forma espúria de se f
azer dinheiro fácil às custas de gente simples e piedosa. Milhares de peregrinos e c
rentes colocaram dinheiro nos cofres das autoridades da Igreja, que afirmavam a
autenticidade das relíquias sagradas sob sua guarda. É claro que as relíquias mais luc
rativas eram o corpo de algum santo, ou pelo menos uma parte deste. Por onde que
r que se caminhasse pelo mundo cristão, com certeza, se encontraria a unha do dedão
do pé de algum personagem sagrado ou o lóbulo da orelha de algum outro. O mais irônico
é que até o mais cínico e ultrajante dos comerciantes de relíquias percebeu o quanto er
a difícil convencer as hordas de ansiosos peregrinos de que eles não podiam consegui
r nada que fosse parte do corpo de Jesus, pois, afinal de contas, seu corpo não as
cendeu aos céus? O mais próximo que eles poderiam arranjar eram os espinhos da coroa
ou uma lasca da verdadeira Cruz, da qual havia tantas que se fossem todas coloc
adas uma ao lado da outra produziriam uma verdadeira floresta.
Poucos estudiosos da época, especialmente não seguidores da igreja católica, não tiveram
coragem de denunciar tais relíquias como falsificações, até mesmo afirmando que eram em
bustes tão patéticos que adicionavam insulto à injúria. Infelizmente, os 'ossos de Maria
Madalena', em São Maximiano, são definitivamente falsos e também pode ser provado, se
m qualquer sombra de dúvida, que os documentos que atestariam a autenticidade são ta
mbém forjados. Utilizaram neles um sistema de datação que era comum no século XIII, o qu
al é muito diferente do que se usava no século VIII.
Havia, entretanto, elementos nessa história que sugeriam existir algo mais do que
uma simples venalidade por trás do embuste. É verdade que a posse de relíquias era um
negócio lucrativo, mas onde quer que existam restos mortais de grandes figuras his
tóricas, com freqüência há outros motivos envolvidos. Por exemplo, os supostos restos mo
rtais do Rei Artur e de sua rainha foram encontrados em Glastonbury no século XI.
Muitas pessoas acreditam que isso foi apenas uma tentativa do abade para colocar
no mapa sua abadia, porém, essa questão é um pouco mais complexa. Na época em que os in
gleses estavam envolvidos na conquista do país de Gales, o gaulês Rei Artur era um h
erói legendário, um símbolo da rebeldia gaulesa, que, como se crê popularmente, não só não
rera como retornaria, em um futuro indefinido, para tomar parte na luta contra s
eus inimigos. Ao produzir seu esqueleto, os ingleses soltaram uma verdadeira bom
ba psicológica no colo dos gauleses.
Os ossos de Maria Madalena, pensava-se, estavam em Vézelay, no Burgundy, para onde
foram levados da Provença e mantidos sob o altar da abadia de Sainte-Marie-Madale
ine e, a partir de então, nunca mais foram vistos. Então, em 1265, São Luís, um grande c
olecionador e venerador de relíquias, ordenou que fossem exumados e, dois anos mai
s tarde, expostos em uma grande cerimônia, à qual ele compareceu. Infelizmente, o qu
e os monges de Vézalay puderam mostrar não passava de um punhado de ossos em um cofr
e de metal e não o esqueleto completo que, supunha-se, estava em seu poder. (Essa
história é extraordinária por mostrar a completa falta de imaginação dos monges para tal t
ipo de situação.) Na posição de sobrinho de Luís, Charles d'Anjou, então com dezenove anos,
também estava presente.
Após esse acontecimento, Charles convenceu-se de que, por razões que permanecem mist
eriosas, o esqueleto verdadeiro de Madalena ainda estava em algum lugar na Prove
nça, e encontrá-lo tornou-se uma obsessão. Sua paixão por ela sempre confunde os estudio
sos, e levou um historiador francês a escrever: 'gostaríamos de saber de onde o prínci
pe tirou essa devoção toda'. Charles ordenou a escavação da igreja de São Maximiano, cavan
do com suas próprias mãos. Embora os despojos que foram desenterrados, e que são hoje
reverenciados, sejam falsos, da atitude de Charles poderíamos inferir que, se houv
esse qualquer trapaça a esse respeito, ele teria sido sua vítima, jamais seu autor.
Entretanto, existe outra possibilidade: a 'descoberta' da relíquia de São Maximiano
era, de fato, um estratagema utilizado para evitar qualquer outra tentativa post
erior de procurá-la. Enquanto isso, Charles e sua família continuariam a pesquisar s
ecretamente...
Quando os ossos foram encontrados, Charles manobrou junto ao Papa a fim de obter
reconhecimento oficial para aquelas relíquias, em detrimento das de Vézelay, o que
ele obteve em 1295, além da aprovação para a construção da basílica. Entretanto, parecia qu
algo mais estava acontecendo, pois é sabido que Charles discutiu seus planos em e
ncontros secretos com os arcebispos locais. Ele também se mostrou bastante astuto
ao recolocar a Ordem dos Dominicanos no lugar dos Beneditinos, que já estavam inst
alados em São Maximiano, embora aqueles estivessem relutantes, sendo, finalmente,
obrigados pelo próprio Papa a atendê-lo.A basílica foi colocada sob controle direto do
Papa, em vez do arcebispo local; tantas mudanças, porém, provocaram uma resistência d
e tal intensidade que Charles teve que enviar tropas para ajudar os novos mestre
s Dominicanos e os representantes do papa e do rei, quando oficialmente assumira
m o controle. Um resultado curioso disso tudo foi que os Dominicanos acabaram po
r adotar Madalena como sua santa protetora, em 1297, com o epíteto de 'filha, irmã e
mãe' da ordem.
Como já vimos, um distante descendente de Charles d'Anjou, René d'Anjou (um suposto
Grão Mestre do Monastério de Sion), também tinha Madalena em alta estima. Dizem que el
e possuía uma taça semelhante à do Graal, contendo a seguinte inscrição:
Aquele que sorve profundamente encontrará Deus. Aquele que sorve o todo em um únic
o gole encontrará Deus e Madalena.
Maria Madalena, incontestavelmente, era de extrema e permanente importância para o
s d'Anjou: contudo, há um mistério escondido nessa devoção. O fato de René d'Anjou ter esc
avado em Saintes-Maries-de-la-Mer, aparentemente em busca dos restos mortais de
Madalena, foi algo particularmente fantástico, pois, duzentos anos antes, Charles
d'Anjou afirmara tê-los encontrado em São Maximiano. Apesar das afirmações de cada um, p
arece que nenhum dos dois realmente os achou.
Encontramos em Marselha uma das estranhas 'Madonas Negras' que sabíamos estar inti
mamente conectadas à tradição de Madalena, embora não estejamos completamente certos nem
de como, nem por quê.
Essas estátuas religiosas são exatamente iguais às descrições da Madona com a criança, mas,
por alguma razão, a Madona é apresentada como sendo negra. Há muitas teorias relaciona
das à sua cor. Contudo, as Madonas não eram lá muito queridas pela Igreja, que as cons
iderava suspeitas, para dizer o mínimo. Que possível conexão teriam elas com Madalena,
uma mulher que, presume-se, era da raça do Oriente Médio e que, como diz a tradição, não
teve filhos? Aprofundamo-nos, então, no culto da Madona Negra, com a esperança de en
contrar algumas pistas.
Também conhecidas como as Virgens Negras, cada uma das estátuas, onde quer que estiv
essem, tornavam-se o centro de um culto. Embora as Madonas Negras fossem encontr
adas em uma grande área por toda a Europa, incluindo lugares localizados na Polônia
e mesmo no Reino Unido, a grande maioria delas, cerca de 65% de acordo com a pes
quisa de Ean Begg, de 1985, achava-se na França, grande parte no sul...
Mesmo sem nunca terem recebido o reconhecimento ou apoio oficial da Igreja Católic
a, essas estátuas ainda evocam a paixão de uma massa enorme de devotos, embora isso
aconteça em uma escala local. Alguma coisa não estava 'cheirando bem', podemos afirm
ar por experiência própria, no caso das Madonas Negras. Ean Begg, em seu livro The C
ult of the Black Virgin (1985), diz:
...não se camuflou a hostilidade quando, em 28 de dezembro de 1952, enquanto (er
am apresentados documentos) sobre as Virgens Negras à American Association for the
Advancement of Science, (Associação Americana para o Progresso da Ciência) todos os p
adres e freiras presentes foram se retirando.
Ele segue dizendo que, pondo a hostilidade de lado, muitos padres modernos profe
ssam falta de interesse ou ignorância sobre o assunto e não têm nenhum desejo de inves
tigá-lo.
Durante a pesquisa para seu livro, Begg visitou com freqüência os locais relacionado
s à Madona Negra, apenas para ouvir os padres locais dizerem nada saber sobre tal
estátua ou afirmar que ela havia desaparecido, sabe-se lá como. De qualquer forma, c
onsiderando as Madonas Negras existentes ou ainda as que continuem a ser encontr
adas, a verdade é que há uma enorme devoção e amor local para com elas. Então, por que ess
a devoção é tão antipática para a maior parte do corpo da Igreja Católica?
Muitas teorias foram formuladas para explicar sua cor de pele, indo do ridículo ao
sublime, embora pendam mais para o ridículo. Ean Begg cita uma conversa típica, ent
re um colega e um padre, sobre o assunto: para a questão, 'padre, por que a Madona
é negra?' a resposta do padre foi, 'Meu filho, ela é negra porque é negra . Outras expl
icações incluem a condescendente sugestão de que tais estátuas tornaram-se negras porque
, ao longo dos séculos, estiveram expostas à atmosfera repleta da fumaça proveniente d
e velas. É claro que o fato de todas as outras estátuas da mesma idade e do mesmo lu
gar serem capazes de suportar uma boa faxina coloca um ponto final nessa hipótese.
As pessoas não são tão ingênuas a ponto de cultuar algumas Madonas de cara suja, por sécu
los e séculos e, ainda por cima, com uma paixão rara e especial. Muitas das estátuas f
oram deliberadamente pintadas de negro ou feitas com material negro, como o ébano;
portanto, pode-se supor, com alguma certeza, que eram intencionalmente negras.
Talvez mais plausível seja a idéia de que as estátuas são negras porque foram trazidas p
elos Cruzados de lugares onde as pessoas eram de pele escura. O fato, entretanto
, é que a maioria das Virgens Negras eram, na verdade, feitas no mesmo lugar onde
passaram a ser cultuadas e, de modo algum, eram cópias de um modelo trazido pelos
Cruzados de algum país exótico.
Há ainda uma outra teoria, bem mais persuasiva. As Madonas Negras estão, em sua maio
ria, associadas a muitos dos mais antigos lugares dedicados ao culto pagão. E embo
ra a cristianização desses lugares fosse um fenômeno bastante comum na Europa, a negru
ra dessas imagens indica a continuação do culto à deusa pagã, que está vestida na pele de
uma santa cristã. Esse é, presumivelmente, o porquê da igreja as tratar com desdém, embo
ra o fervor em relação a elas torne impossível um interdito formal. Além disso, para que
um interdito oficial seja efetivo, pelo menos hoje em dia, as razões que deveriam
ser apresentadas apenas atrairiam ainda mais atenção para o que vem acontecendo há já q
uase 2000 anos.
As conexões pagãs, por si só, não explicam o porquê das Madonas serem negras, apesar de al
guns apologistas cristãos afirmarem que tal associação, mesmo que simbolicamente, é "pou
co clara". Contudo, muitos desses locais estão associados com deusas da era pré-cris
tã, tais como Diana e Cibele, que eram representadas como sendo negras durante o l
ongo período em que foram cultuadas.
Uma outra deusa que algumas vezes aparece com a pele negra é Ísis, cujo culto, na re
gião do Mediterrâneo, durou bastante tempo, já dentro da era cristã. Irmã de Neythys, era
uma deidade multifacetada cujos dons especiais incluíam a magia e a cura, estando
intimamente associada com o mar e a lua. Seu companheiro, Osíris, que como Deus do
mundo subterrâneo e da morte também tinha pele negra, foi facilmente traído e levado à
morte pelo perverso deus Set, mas, através da magia, foi trazido de volta à vida por
Ísis, a fim de poder dar vida ao menino Horus.
É sabido que os primeiros cristãos apropriaram muito da iconografia de Ísis para carac
terizar a Virgem Maria. Por exemplo, foram-lhe dados muitos dos títulos de Ísis, com
o a 'Estrela do Mar' (Stella maris) e 'Rainha do Céu". E, tradicionalmente, Ísis é mos
trada de pé sob uma lua crescente, ou com estrelas nos cabelos ou ao redor da cabeça
; da mesma forma que Maria, a Virgem. Porém, a imagem que mais impressiona pela se
melhança é aquela da mãe com o filho. Os cristãos poderiam acreditar que as estátuas de Ma
ria com o menino Jesus representassem exclusivamente a iconografia cristã, mas na
verdade, todo o conceito da Madona com a criança já estava firmemente presente no cu
lto de Ísis.
Ísis também era cultuada como uma virgem sagrada. Mas embora ela também fosse mãe de Hor
us, isso não se afigurava um problema para os corações dos milhões de seus devotos. Muit
o embora se espere que os modernos cristãos aceitem que o nascimento do filho da V
irgem seja um artigo de fé e um fato real, os devotos de Ísis e de outros deuses pagão
s não sofriam com tal dilema intelectual. Para eles, Zeus,Vênus ou Ma'at podem ou não
ter um dia andado sobre a terra: o que realmente importava era o que eles repres
entavam. Cada um dos deuses do panteão tinha o domínio de uma determinada área relacio
nada à humanidade; por exemplo, a deusa egípcia Ma'at lidava com o conceito de justiça
, tanto no mundo material quanto no espiritual, onde pesava na balança as almas do
s que morriam. Entendia-se que os deuses representavam arquétipos e não personagens
históricos. Os devotos de Ísis não desperdiçavam seu tempo procurando por panos que pode
riam ter enrolado o corpo de Osíris, nem achavam importante encontrar lascas do ca
ixão onde ele foi colocado. Muito longe de ser uma religião ignorante ou sem sofisti
cação, eles pareciam ter uma profunda compreensão da psique humana.
Ísis era cultuada tanto como Virgem quanto como Mãe, mas não como uma Mãe Virgem. Os dev
otos de Ísis considerariam a noção de um rebento filho de uma Virgem francamente ridícul
a: os deuses eram bem capazes de realizar milagres, mas não exigiam que seus filho
s suprimissem seu senso crítico de forma tão completa. O culto da maioria das princi
pais deusas enfatizava a essência feminina, pela divisão desta em três aspectos princi
pais, cada um representando o ciclo de vida real das mulheres. Primeiro, há a Virg
em, então a Mãe e então a Anciã; todas as três estão ligadas com a lua crescente, a lua che
a e a lua nova, respectivamente. Cada deusa, incluindo Ísis, era vista como um cen
tro de apoio para a experiência feminina como um todo, incluindo o amor sexual, e,
portanto, poderia ser invocada para ajudar em qualquer tipo de problema, ao con
trário da Virgem Maria, cuja pressuposta pureza é uma barreira impenetrável para aquel
as que gostariam de compartilhar com ela seus problemas sexuais.
Ísis, uma mulher vigorosa que representa o ciclo de vida feminino por completo, fo
i representada como sendo negra algumas vezes. E seu culto muito mais difundido
do que se imagina. Por exemplo, um templo dedicado a ela foi encontrado bem ao n
orte de Paris, e existem evidências para se supor que esse não era um estabeleciment
o isolado. Ísis, a bela mulher-deusa a quem qualquer mulher podia recorrer, consci
entemente, a respeito de qualquer coisa, teria um grande poder entre as mulheres
de qualquer cultura. O primeiro impulso da igreja patriarcal foi erradicar o cu
lto da deusa pagã. Mas a devoção a essa deusa era muito mais forte e manteve-se firme,
representando uma ameaça à Igreja. A Virgem Maria, então, tornou-se uma espécie de versão
enxugada de Ísis, resoluta e não muito adequada quanto à biologia, emoção e espírito inere
tes às mulheres reais, uma deusa construída por misóginos e para misóginos. Mas era impr
ovável que a assexuada Virgem Maria pudesse tomar Ísis como exemplo sem que houvesse
resistência por parte dos devotos da deusa pagã. Como poderia a boa, mas essencialm
ente insípida, mãe de Jesus tomar completamente o lugar de uma Ísis exuberante, não apen
as Virgem, Mãe e Anciã, mas iniciadora sexual e controladora dos destinos dos homens
? Será que o culto de Maria Madalena, como o das Madonas Negras, tão menosprezado pe
la Igreja, esconderia na verdade uma idéia de irmandade das mulheres, muito mais a
ntiga e completa?
Já está bem demonstrado que os locais associados às Madonas Negras também estão relacionad
os com antigos lugares de cultos pagãos, mas há uma outra ligação que não é tão plenamente
onhecida. As enigmáticas estátuas e os antigos cultos, a elas associados, repetidame
nte parecem surgir lado a lado com os locais relacionados com Maria Madalena. Po
r exemplo, a famosa estátua negra de Santa Sara, a Egípcia, foi encontrada em Sainte
s-Maries-de-la-Mer, o mesmo lugar onde Madalena teria desembarcado após chegar da
Palestina. E em Marselha, há não menos que três Madonas Negras, uma na cripta da basílic
a de São Vítor, logo ao lado da Igreja subterrânea dedicada a Madalena. Há uma outra na
"sua" igreja em Aix-en-Provence (próximo do lugar onde, acredita-se, ela foi crema
da) e ainda uma outra na igreja de São Salvador, a igreja principal da cidade.
A ligação entre o culto de Maria Madalena e o das Madonas Negras é inegável. Ean Begg ci
ta que não menos do que cinqüenta centros da primeira também contém um santuário dedicado à
Virgens Negras. Um mapa de estudo dos locais das Madonas Negras na França mostra
que há uma grande concentração na região de Lyon/Vichy/Lermont-Ferrand, com o centro loc
alizado nas montanhas chamadas de Monts de Madeleine. Grandes concentrações de lugar
es associados às Madonas Negras também são encontrados na Provença e nos Pireneus ociden
tais, ambas regiões intimamente conectadas com a lenda de Madalena. Portanto, a as
sociação entre os dois cultos é bastante clara, embora desconheçamos a razão disso.
Nesse ponto nos deparamos mais uma vez com o Monastério de Sion, pois este tem um
interesse particular no culto das Madonas Negras, embora isso não seja muito conhe
cido. (É curioso esse fato não ter sido mencionado em Tbe Holy Blood and The Holy Gr
ail, já que dois de seus autores, Michael Baigent e Richard Leigh, escreveram arti
gos sobre o assunto para uma publicação semanal chamada The Unexplained, na mesma époc
a da publicação do livro). Muitos dos lugares associados ao Monastério têm suas próprias M
adonas Negras, como Sion-Vaudémont e o lugar onde seus membros encontram-se tradic
ionalmente para eleger os Grão-Mestres, Blois, Vale do Loire.
O culto das Madonas Negras é uma questão central para o Monastério. Seus membros, para
veneração especial, preferem a de Goult, próximo a Avignon; ela é conhecida como 'Notre
-Dame des Lumieres' (Nossa Senhora das Luzes). Para eles, ao menos, não existe dúvid
a em relação ao significado real das Madonas Negras. Pierre Plantard de Saint-Clair
escreve, de modo explícito, 'A Virgem Negra é Isis e seu nome é Notre-Dame de Lumiere'
.
Parece haver aqui uma discrepância, pois que possível ligação poderia haver entre Ísis/Mad
ona Negra e a obsessão do Monastério com a linhagem dos Merovíngios? Plantard de Saint
-Clair explica a conexão entre o Monastério e as Madonas Negras ao afirmar que o cul
to destas foi promovido pelos Merovíngios. Mesmo colocando de lado a suspeita em r
elação a essa linhagem, isso se encaixa admiravelmente com as afirmações da descendência e
m linhagem direta de Davi. Begg nota uma outra discrepância: embora a veneração do atu
al Monastério em relação a Ísis possa ser vista como uma tentativa de prover a eles mesm
os de uma árvore genealógica que remonte aos tempos dos romanos - e além -, as entidad
es femininas cultuadas em Gaul eram, na verdade, Cibele e Diana e não Ísis. Plantard
de Saint-Clair insiste em afirmar que o envolvimento do Monastério está, especifica
mente, relacionado a Ísis, mas por quê? Begg sugere que isso poderia ser uma forma d
e insinuar uma conexão com uma importante ancestralidade egípcia.
Se há uma figura legendária que pode nos dar a resposta para esse mistério, ou que rep
resenta a ponte entre os pagãos e as tradições do cristianismo que vieram juntas com o
culto das Madonas Negras, com certeza é Maria Madalena. Mas, exatamente, por que
essa famosa cristã penitente deveria estar associada a locais de antigos cultos pa
gãos?
Uma pista pode ser o Cântico dos Cânticos, a coletânea de poesia erótica bizarramente in
cluída no Antigo Testamento e que é tradicionalmente atribuída ao Rei Salomão, que a esc
reveu para louvar os generosos dotes da Rainha de Sabá. E, estranhamente, uma dess
as passagens é lida em voz alta nas igreja católicas no dia em que se homenageia San
ta Madalena. Lê-se (Cântico dos Cânticos 3:1-4):
Eu busquei de noite no meu leito aquele a quem ama a minha alma:
busquei-o e não o achei.
Levantar-me-ei e rodearei a cidade: buscarei pelas ruas e praças públicas aquele a q
uem ama a minha alma.
Busquei-o e não o achei.
Os guardas, que rondam a cidade, me encontraram, e eu lhes disse:
vistes porventura aquele a quem ama a minha alma?
A poucos passos, que me tinha apartado deles, achei eu aquele a quem ama a minha
alma. E agarrar-me-ei a ele: não o largarei, até o não introduzir em casa de minha mãe,
e levar à câmara daquela que me gerou.
O Cântico dos Cânticos tem sido associado, desde os primeiros anos da era cristã, com
Madalena. Nesse caso, talvez haja alguma outra conexão escondida nos versos, pois
neles também há a fala da amante feminina 'Eu sou negra, mas formosa' , o que é uma ou
tra ligação com o culto das Madonas Negras, e, se dermos crédito ao Monastério, com a de
usa egípcia Ísis.
Esse ponto é um tanto desconcertante, pois, se parece haver umas poucas conexões óbvia
s entre a Madalena e as Madonas Negras, também existem umas poucas entre a santa e
o Cântico dos Cânticos. Embora, da mesma forma que a amante que se lamenta naqueles
versos, Ísis saísse em busca de seu marido Osíris, que paralelo possível há com a história
de Maria Madalena? À primeira vista não há uma resposta direta. Parece não haver nenhum
conjunto de permutações capaz de encaixar todos os fatos conhecidos.
Há um outro elemento, ainda mais confuso, para se levar em conta. Provença, lar do m
adalenismo e de muitas Madonas Negras, também está envolta pela presença de uma outra
figura significativa do Novo Testamento, João Batista. Levamos um choque ao descob
rir o número de igrejas dedicadas a ele e de lugares com seu nome na mesma região. E
m Marselha, sem levar em conta uma igreja dedicada a Batista, há os antigos Cavale
iros Hospitalários do Forte de São João, que ainda mantém sua entrada pelo porto. Em Aix
-en-Provence encontramos a enorme igreja de São João de Malta, onde há um baixo-relevo
de João em cima do muro de uma casa, na rua principal da cidade. Em qualquer luga
r por onde passamos em nossa viagem, nos vimos frente a frente com o mesmo fenômen
o inexplicável; onde quer que encontremos grandes concentrações de locais dedicados a
Madalena, também existe um número bem maior do que seria razoável de igrejas dedicadas
a João Batista. Talvez tenha sido essa aparentemente estranha conexão que fez Ean B
egg dizer:
...a história da Virgem Negra também pode incluir o segredo herético que tem o poder
de chocar e atormentar até mesmo correntes pós-cristãs atuais, um segredo que, além do
mais, envolve forças políticas ainda influentes na Europa moderna.
Obviamente, a prevalência das construções dedicadas a João Batista podem facilmente ser
explicadas pelo fato de que os Cavaleiros Hospitalários (que mais tarde passaram a
ser conhecidos como os Cavaleiros de Malta, e que têm uma forte presença na região) s
empre tiveram uma veneração especial por esse santo. Havia outra ordem cavalheiresca
que era uma força a ser levada em consideração no sul da França, a bem mais famosa Orde
m dos Templários, que também prestava especial homenagem ao Batista.
Enquanto estávamos na Provença, não poderíamos deixar passar a oportunidade de visitar a
região de St-Jean-Cap-Ferrat, onde Cocteau construiu sua fama.A viagem de Marselh
a a Nice parece durar uma eternidade, embora Nice esteja apenas um pouco mais além
, seguindo a linha do litoral, da requintada cidade-estado de Mônaco. St-Jean-Cap-
Ferrat fica no final de uma península e é conhecida por servir de refúgio para estrela
s de cinema como David Niven. Certamente, nela estão algumas das mais ricas residênc
ias que alguém pode imaginar, fora dos filmes de James Bond, e um certo Château St J
ean, que se aninha quase ameaçadoramente em suas sinistras escarpas, parecendo ser
algo tirado de algum filme de Hitchcock. Contudo, nesse parque de diversões dos r
icos e famosos, nem tudo é tão materialista quanto parece; e a ênfase local em São João não
acidental.
O próprio lugarejo tem uma igreja dedicada a João Batista, o santo cujo nome batizou
a região. Mais uma vez, isso se deve à presença dos Cavaleiros de Malta, cuja capela
de St Hospice ainda está de pé, no lugar do forte original, na ponta extrema da peníns
ula, o Ponto de São João, um ótimo lugar para um posto de observação. As paredes da capela
são decoradas com muitas placas comemorativas das visitas de vários Grão-Mestres de s
ua ordem ao longo dos anos, e a região ao redor recebe o nome de 'Place des Cheval
iers de Malte' (Praça dos Cavaleiros de Malta). Esta é dominada por uma enorme estátua
de bronze de uma Madona e sua criança, que, embora tenha acumulado uma pátina verde
-escuro, é conhecida localmente como La Vierge Noir, A Virgem Negra. Com cerca de
cinco metros de altura, ela tem observado o mar por quase um século. Esse é o estran
ho fenômeno de uma aparente simbiose dos locais das Virgens Negras com aqueles ded
icados a Batista.
Ali perto, entretanto, encontramos uma conexão inesperada com o Monastério de Sion.
Na pequena cidade de Villefranche-sur-Mer, há uma pequenina capela voltada para o
porto e freqüentada pela comunidade de pescadores. Em virtude de seu público, ela é de
dicada a São Pedro (o Grande Pescador), mas para nós o interesse principal está na ide
ntidade do criador da admirável decoração. Foi projetada e executada por Jean Cocteau,
que a completou em 1958, embora tenha sido um sonho seu durante muitos anos. No
final, ele era pessoalmente responsável por todos os aspectos da decoração da capela,
desde a recolocação de gesso nas paredes até o desenho dos candelabros. O resultado f
inal é, sem meias palavras, estranho. Há uma similaridade vaga com a decoração de um tem
plo maçônico, embora a estatuária seja consideravelmente surreal. Olhos observadores p
intados em todos os lugares: dois destes são gigantescos e estão colocados em cada u
m dos lados do altar, além de um conjunto de olhos pequenos generosamente espalhad
os por toda a parte, e figuras peculiares - tais como uma mulher apontando três de
dos de modo deliberado, para o observador - embelezam as paredes.
De todo o conjunto bizarro de figuras e símbolos, entretanto, um em particular nos
atrai de forma especial: mostra a figura de ciganos dançando em companhia de uma
jovem, desenhada como se fosse uma deusa, uma clara alusão à cerimônia anual em Sainte
s-Maries-de-la-Mer. Essa referência peculiar também é encontrada na outra ponta de Pro
vença, em uma capela dedicada a São Pedro, que, de acordo com o Evangelho Gnóstico, fo
i o inimigo da adorada Maria Madalena do Monastério.
Cocteau decorou sua capela imediatamente antes de trabalhar no mural de Londres,
e em ambos os casos o visitante ao sair leva consigo um sentimento de estranham
ento, como se uma imagem subconsciente estivesse lhe comunicando algo completame
nte diferente da mensagem que, supõe-se, integram aquelas construções cristãs.
Cerca de trinta e cinco quilômetros ao norte da luxuriante Nice existe um conjunto
de vilarejos que faz parte do surpreendente padrão de coexistência de locais dedica
dos a Madalena e a João Batista. Ao longo do vale do Rio Vésubie, fica a outrora imp
ortante rota dos Alpes até a costa, próximo da região com nomes de lugares que evocam
as mesmas associações que encontramos perto de St Jean-Cap-Ferrat. Por exemplo, o vi
larejo de Sainte-Madaleine (sic) se encontra próximo de lugares denominados Marie
e St Jean.
E isso não é tudo. Exatamente na mesma região está a antiga cidade templária de Utelle, cu
jas casas medievais ainda portam os sinetes esotéricos dos alquimistas, e para além
do vale está Roquebilliere, um outro local da irmandade dos cavaleiros. A maior de
ssas cidades é St-Martin-de-Vésubie, local de um lendário massacre de templários, em 130
8.
Essa é a terra natal da Madona Negra: la Madone des Fenetres (a Madona das Janelas
, embora esta derivação seja contestada), que foi introduzida na região pelos templários
. A estátua, porém, de acordo com a tradição local, foi trazida à França por Maria Madalena
E embora as lendas não estejam necessariamente baseadas nos fatos, é bastante inter
essante ver que o povo daqui, aparentemente, acha natural fazer associações entre Ma
dalena, o culto da Virgem Negra e os Templários.
Logo depois de atravessar o vale, vindo de St-Martin-de-Vésubie, está o vilarejo de
Venanson, onde a capela de Saint Sébastien fica encarapitada em uma rocha acima da
única rodovia da região. Dentro, há uma pintura de St. Grat, que fora um bispo da reg
ião, segurando a cabeça de João Batista. Há cerca de cinco quilômetros dessa capela, no vi
larejo de Saint-Dalmas, está a igreja templária de Sainte-Croix, uma das mais antiga
s construções religiosas da França. Suas paredes exibem pinturas de Salomé, mostrando a
cabeça de João Batista para sua mãe Herodíada e o padastro Herodes.
É claro que muitas igrejas, tanto católicas quanto protestantes, possuem algum tipo
de representação de João Batista, mas de costume mostram-no batizando Jesus. Muito pou
cas imagens de João o mostram sendo decapitado, ou exibem sua cabeça decapitada, poi
s apenas nos lugares onde é particularmente venerado isso é considerado apropriado.
Nessa região da França, entretanto, há algumas representações desse tipo, e obviamente não
or acaso, como já vimos, pois esse local é uma região de grande concentração de templários
de sua ordem. João Batista sempre foi conhecido como santo protetor dos templários
e é portanto especialmente reverenciado por eles. Mas por que, exatamente, João Bati
sta foi tão importante para os templários e para os Cavaleiros de Malta? Essa é uma qu
estão que assumiria uma importância cada vez maior enquanto nossa investigação progredia
.
A viagem à Provença revelou-nos que havia algo substancial por trás das lendas locais
relacionadas a Madalena, mas isso também permitiu lampejos tantalizantes de algo m
ais antigo, maior, mais organizado, talvez mesmo mais obscuro. Conforme seguimos
as pegadas de Madalena começamos a encontrar camadas e mais camadas de associações es
otéricas que, com freqüência, remontavam há séculos. Onde quer que Madalena estivesse, qua
se sempre havia uma Madona Negra, e onde quer que se realizasse o culto, sempre
havia um próspero santuário dedicado à deusa pagã.As outras tramas da teia conectavam es
se triunvirato feminino ao Monastério de Sion, e, inexplicavelmente, com a veneração d
os templários por João Batista.
Nesses estágios iniciais de nossa investigação, reconhecemos que tais conexões existiam,
mas pouco sentido faziam. Algumas vezes, realmente, tememos que nunca viessem a
fazer. Mas, enquanto insistíamos em nossa pesquisa, fatos, lendas e personagens a
parentemente irreconciliáveis começaram a se encaixar como um todo, em um quadro com
preensível. E esse quadro, com certeza, deixaria o próprio Leonardo orgulhoso.
Sem qualquer idéia de quão chocantes poderiam ser nossas últimas descobertas, deixamos
Provença para trás e penetramos fundo no berço da heresia européia.
CAPÍTULO IV
O Berço da Heresia
As lendas relacionadas a Madalena ultrapassam as fronteiras da Provença, embora ap
enas lá se possam encontrar os locais associados com a sua passagem pela França. His
tórias sobre ela afloram em abundância por todo o sul, concentrando-se particularmen
te nas proximidades do sudeste dos Pireneus e em Ariege. E dizem que foi para es
ses lugares que ela trouxe o Santo Graal. Como já era de se esperar, essas terras
também são morada de um grande número de Madonas Negras, em particular nos Pireneus or
ientais.
Seguindo em direção oeste, tendo Marselha atrás de nós, chegamos à região de Languedoc-Rous
illon, que já foi a região mais rica da França e hoje é uma das mais pobres. Nessa região
despovoada, os pensamentos de cada pessoa parecem ecoar sobre a terra, reverbera
ndo cada vez mais, pouco a pouco, milha após milha, a despeito do número crescente d
e turistas que vêm sorver sua história encharcada de sangue; e, claro, o vinho local
também. E embora nós, como bons europeus, fizéssemos nossa própria contribuição à economia
cal, estávamos lá, em primeiro lugar, para examinar o passado.
Em todos os lugares podem-se ver as evidências da turbulenta história vivida pela re
gião. Castelos arruinados e antigas fortalezas, postos abaixo por ordens de reis e
papas, sujam a paisagem e nos falam de brutalidades que ultrapassam até mesmo a p
ropensão medieval comum de governar por meio da atrocidade. Pois se existe um luga
r na Europa que possa ser lembrado como o lar da heresia, esse é Languedoc-Roussil
lon. E foi esse único fato histórico o responsável pelo empobrecimento sistemático da re
gião. Não levando em consideração regiões como a Bósnia e a Irlanda do Norte, raramente a r
ligião deixou marcas tão profundas sobre a prosperidade de um país, de um modo tão explíci
to, como o fez nessa região.
Antigamente só o Languedoc (de Langue d'Oc, o idioma local) se estendia da Provença à
região entre Toulouse e os Pireneus orientais. Até o século XIII, não fazia exatamente p
arte da França, sendo governado pelo condado de Toulouse que, embora nominalmente
devesse submissão aos reis da França, na prática era, na verdade, mais rico e poderoso
.
Nos séculos XI e XII essa região causava inveja a toda a Europa, por sua civilização e c
ultura. Sua arte, literatura e ciência eram, sem sombra de dúvida, as mais avançadas d
a época; no século XIII, porém, essa cultura resplandecente foi cortada ao meio pela i
nvasão dos povos bárbaros do norte, causando um ressentimento que persiste até hoje em
dia. Muitos dos habitantes ainda preferem chamar a região de Occitania, seu nome
anterior. Essa região, como iríamos descobrir, é dona de uma memória particularmente lon
ga.
O antigo Languedoc sempre foi um berço para idéias heréticas e não-ortodoxas, provavelme
nte porque uma cultura que encoraje a busca de conhecimento tenda a tolerar pens
amentos novos e radicais.
Uma das principais figuras desse ambiente eram os trovadores, esses menestréis and
arilhos cujas canções de amor eram, em essência, hinos dedicados ao Princípio Feminino.
Essa tradição, voltada para o amor elegante, era centrada na idealização das mulheres e,
dentre as mulheres, a mulher ideal, a Deusa. Eles podem ter sido românticos, mas
as canções dos trovadores também transmitiam um real erotismo. A influência do movimento
, porém, estendeu-se para além do Languedoc, e em particular, com grande êxito, na Ale
manha e nos Países Baixos, onde os trovadores eram conhecidos como minnesingers, l
iteralmente, 'os cantores de senhoras', embora aqui a palavra tenha o significad
o de mulher idealizada ou arquetípica.
O Languedoc assistiu ao primeiro ato de genocídio cometido pelos europeus, quando
100.000 membros da heresia dos cátaros foram massacrados por ordem do Papa, durant
e a cruzada contra os albigenses (em razão da cidade de Albi, uma fortaleza cátara).
A Santa Inquisição foi originalmente criada para, especificamente, interrogar e ext
erminar os cátaros. Talvez seja apenas pelo fato da cruzada dos albigenses ter oco
rrido em uma época tão remota quanto o século XIII que esse massacre nunca tenha tido
o mesmo impacto histórico de holocaustos mais contemporâneos. Porém, muitos dos habita
ntes locais ainda sentem o sangue ferver à simples menção desse assunto, e alguns até su
gerem que houve uma operação oficial de cobertura ao longo dos séculos, uma verdadeira
conspiração para impedir que a história dos cátaros fosse mais amplamente conhecida.
Além dos cátaros, essa região era, e sempre foi, um reduto da alquimia, e várias aldeias
atestam o interesse pela alquimia de seus antigos moradores, notadamente Alet-l
es-Bains, perto de Limoux, onde as casas ainda são enfeitadas com simbolismo esotéri
co.Foi também em Toulouse e Carcassonne que surgiram as primeiras acusações conhecidas
contra as assim chamadas Bruxas do Sabbath, entre 1330 e 1340. Em 1335, sessent
a e três pessoas foram acusadas de feitiçaria em Toulouse e suas confissões obtidas at
ravés dos métodos usuais que garantiam que qualquer um confessasse. A chefe era uma
jovem mulher chamada Anne-Marie de Georgel, que parecia falar em nome de todas a
o descrever suas crenças. Afirmou que viam o mundo como um campo de batalha entre
dois deuses, o Deus do Céu e o Deus deste Mundo. Ela e as outras apoiavam este últim
o porque acreditavam que ele seria o vencedor. Tal coisa pode ter significado 'f
eitiçaria' para os juizes eclesiásticos, mas era na verdade gnosticismo, pura e simp
lesmente. Outra mulher, acusada de crime semelhante, testemunhou ter assistido a
o 'Sabbath' a fim de 'servir os cátaros ao jantar'. Muitos elementos pagãos sobreviv
em nessa região, podendo ser encontrados nos lugares mais surpreendentes. Pois, em
bora as esculturas do 'Homem Verde', o deus da vegetação que era venerado na maior p
arte das regiões rurais da Europa, possam, por outro lado, ser vistas em muitas ig
rejas cristãs, como a Catedral de Norwich, ele normalmente não é descrito como sendo d
escendente de uma deidade do Antigo Testamento. Como A.T. Mann e Jane Lyle escre
vem:
Na catedral de St-Bertrand-de-Comminges, nos Pireneus, Lilith encontrou um jeito
de entrar em uma igreja: uma escultura que retrata uma mulher alada, com pés de pás
saro, que dá à luz uma figura dionisíaca, um Homem Verde.
A mesma cidadezinha afirma ser o local da tumba de ninguém mais, ninguém menos que H
erodes Antipas, o governador da Palestina, que mandou executar João Batista. De ac
ordo com o cronista hebreu do século I, Josephus, o frágil triunvirato composto por
Herodes, sua esposa, a intrigante Herodíada e a enteada Salomé, que é conhecida pela '
Dança dos Sete Véus', estavam todos exilados na cidade romana de Lugdunum Convenarum
, em Gaul, no que hoje é St-Bertrand-de-Conuninges. Herodes desapareceu sem deixar
rastro, mas Salomé morreu em um córrego nas montanhas, e Herodíada transformou-se em
lenda local, tornando-se líder de um grupo de 'feiticeiras'.
Outra lenda pitoresca de Languedoc se refere à 'Rainha do Sul' (Reine du Midi), um
título das condessas de Toulouse. No folclore, a protetora de Toulouse é La Reine P
edauque (a Rainha Ganso). Isso pode ser uma referência, na cifrada e esotérica 'ling
uagem dos pássaros', para o Pays d'Oc, mas os pesquisadores franceses identificara
m essa figura com a deusa síria Anath, que por sua vez está intimamente ligada a Ísis.
E também há a associação óbvia com Lilith.
Um outro personagem legendário da região é Meridiana. Seu nome parece ligá-la ao meio-di
a e ao sul (ambos midi em francês). Sua aparição mais famosa aconteceu quando Gerbert
d'Aurillac (940-1003), que mais tarde tornar-se-ia o Papa Silvestre II, rumou pa
ra a Espanha a fim de aprender os segredos da alquimia. Silvestre, que tinha com
o oráculo uma cabeça falante, recebeu sua sabedoria desta Meridiana, que lhe oferece
u 'seu corpo, riquezas e a sabedoria da magia', com certeza algum tipo de conhec
imento alquímico e esotérico transmitido através de rituais de iniciação sexual.A escritor
a e pesquisadora americana Barbara G.Walker deriva o nome Meridiana de 'Maria-Di
ana', unindo assim essa complexa deusa pagã com a lendária Madalena do Sul da França.
Foi também o Languedoc que abrigou, sem dúvida nenhuma, a maior concentração de cavaleir
os templários na Europa, até que fossem suprimidos, no início do século XIV. A região é tod
pontilhada com as evocativas ruínas dos castelos e edificações militares da ordem.
Se, como suspeitamos, existiram muitas outras ramificações do culto 'herético' de Mari
a Madalena, além das que encontramos na Provença, então, com certeza, o Languedoc seri
a o lugar para encontrá-las. Uma das maiores cidades por onde passaríamos, ao viajar
pela auto-estrada de Marselha, viu o despertar de incontroláveis paixões em nome de
la; e milhares de pessoas haviam sido, de modo horrível, levadas à morte em virtude
do significado que ela tinha para eles.
A cidade de Béziers, hoje pertence à província de Hérault, no Languedoc-Roussillon é uma c
idade populosa a cerca de dez quilômetros do Golfo dos Leões, no Mediterrâneo. Em 1209
, porém, todos os habitantes da cidade, até o último deles, foram caçados e mortos impie
dosamente pelos cruzados da albigense. Mesmo para uma cruzada marcada pela quant
idade de sangue derramado, essa passagem é uma história particularmente bizarra.
Essa história já foi relatada por vários comentadores contemporâneos, mas aqui nos limit
aremos ao relato de Pierre des Vaux-de-Cemat, um monge de Cister (Ordem austera
baseada nas regras beneditinas, fundada em 1098, na cidade de Cister, França), esc
rito em 1213. Ele não esteve presente aos eventos, mas baseou seu relato nos dos c
ruzados que lá estiveram.
Béziers tornou-se algo como um reduto para hereges, razão da existência, à época do ataque
dos cruzados, de um enclave de 222 cátaros, que lá viviam sem serem molestados pela
população. Embora não se saiba ao certo se o Conde de Béziers seria ele mesmo um cátaro o
u apenas um simpatizante, o certo é que ele nada fez para persegui-los ou suprimi-
los, e isso era o que, em particular, enfurecia os cruzados.
Eles ordenaram que os citadinos, os católicos comuns, ou entregassem os cátaros ou d
eixassem a cidade, para que pudessem lidar com os cátaros com mais facilidade. Ape
sar dessa exigência ter sido feita sob pena de excomunhão - uma questão de extrema imp
ortância para uma época em que o inferno era uma realidade concreta - e a alternativ
a oferecida parecesse bastante generosa, pois representava uma chance de escapar
ao iminente massacre, uma coisa surpreendente aconteceu. Os citadinos se recusa
ram a obedecer a qualquer exigência. Como escreveu des Vaux-de-Cemat, eles preferi
ram 'morrer como hereges em vez de viverem como cristãos'. E de acordo com o relatór
io enviado ao Papa por aqueles que o representavam, os citadinos juraram defende
r os hereges.
Sendo assim, em julho de 1209, os cruzados marcharam em direção a Béziers e, sem qualq
uer dificuldade, tomaram a cidade, matando todos os que lá estavam, homens, mulher
es, crianças e padres, e então atearam fogo ao local. Entre 15.000 e 20.000 pessoas
foram mortas: destas, apenas 200 eram heréticas. 'Nada poderia salvá-los, nem a cruz
, nem o altar, nem o crucifixo'. Quando os cruzados perguntaram aos delegados do
Papa como eles separariam os hereges do resto do povo da cidade, receberam a ho
je notória resposta: 'Mate-os todos. Deus saberá separá-los' .
Embora seja fácil pensar que os habitantes tenham querido defender sua cidade cont
ra as depredações habituais dos exércitos, chamamos a atenção para o fato de que havia sid
o oferecida a eles a oportunidade de partirem e se, a manutenção intacta de suas pro
priedades fosse algo de suprema importância para eles, poderiam simplesmente entre
gar os hereges aos cruzados e voltar para o cotidiano de suas vidas sem sequer o
lhar para trás. Porém, escolheram ficar na cidade, assinando assim a sentença de morte
de todos, e reafirmaram-na ao jurarem lutar em defesa dos cátaros. Mas o que real
mente estava acontecendo em Béziers?
Primeiro, deve-se levar em conta a data precisa do massacre. Era 22 de julho, o
dia dedicado a Maria Madalena, algo apontado por vários escritores contemporâneos co
mo tendo um significado singular. E foi na igreja de Maria Madalena em Béziers que
, quarenta anos antes, o senhor local, Raymond Trencavel I, foi morto, embora não
se saiba exatamente o porquê. Em Béziers pelo menos, a ligação entre Madalena e a heresi
a não era meramente acidental, e isso nos dá uma visão mais aguçada sobre o pano de fund
o da cruzada dos albigenses.
Como escreveu Pierre des Vaux-de-Cernat:
Béziers foi ocupada no Dia de Santa Maria Madalena. Oh!, justiça suprema da Providên
cia!... Os hereges afirmavam que Santa Maria Madalena era concubina de Jesus Cri
sto... foi então uma causa justa esses cães asquerosos terem sido massacrados no dia
das festividades daquela que haviam insultado...
Talvez para os bondosos monges e para os cruzados essa idéia possa ter sido um tan
to chocante, mas, obviamente, não o era para a grande maioria do povo da cidade, q
ue tinha escolhido apoiar os hereges até a morte. Está claro que essa crença era uma t
radição local extremamente poderosa nos corações e mentes daquelas pessoas. Como já vimos,
os Evangelhos Gnósticos e outros textos antigos não hesitam em descrever a relação entr
e Maria Madalena e Jesus como sendo aberta e publicamente sexual. Mas como será qu
e essa idéia chegou aos ouvidos desses moradores urbanos da França medieval? Os Evan
gelhos Gnósticos ainda não haviam sido descobertos (e mesmo que já o tivessem é improvável
já terem sido disseminados entre eles). Assim, de onde será que veio essa tradição?
A cruzada foi apenas o tiro de partida da guerra contra os albigenses, como um t
odo, que iria saquear o Languedoc durante mais de quarenta anos, causando cicatr
izes tão profundas na psique coletiva das pessoas que não há nada de estranho em afirm
ar que perduram até hoje. Então, quem eram esses cátaros, cujas crenças foram a causa de
uma cruzada especialmente montada para lutar contra eles? O que possuíam que foss
e capaz de provocar tanto terror ao Sistema a ponto de ter-se criado a Santa Inq
uisição especificamente para ser uma arma mortal apontada para eles?
Ninguém pode, com alguma segurança, estabelecer a gênese da fé dos cátaros, mas eles rapid
amente tornaram-se um poder a ser levado em conta no Languedoc do século XI. Para
os languedocianos, os cátaros não eram tratados com o desdém ou o ridículo com que nossa
própria cultura tende a considerar os cultos religiosos minoritários; ao contrário, e
ram a religião dominante da região e, localmente, a tratavam com extremo respeito. A
s famílias nobres da região ou eram reconhecidamente cátaras ou então simpatizantes dest
es, dando-lhes um apoio efetivo. O catarismo era, virtualmente, a religião oficial
do Languedoc.
Conhecidos como Les Bonhommes ou Les Bons Chrétiens, homens bons ou os bons cristãos
, os cátaros aparentemente não ofendiam ninguém. Comentadores contemporâneos, especialme
nte aqueles que têm uma visão da "nova era" , afirmam que os cátaros representavam um
movimento autêntico com o intuito de voltar aos fundamentos do cristianismo. Embor
a, como veremos, tivessem absorvido muitas outras idéias e tivessem uma ideologia
própria um tanto confusa, é verdade que seu modo de vida era uma tentativa de obedec
er aos ensinamentos de Jesus. Acusavam a Igreja Católica de ter se desviado muito
do conceito original do cristianismo. Consideravam como anátema a riqueza e a pomp
a da Igreja, que viam como o oposto do que Jesus havia pregado a seus seguidores
.Vistos de modo superficial, poderiam parecer os precursores do movimento protes
tante, mas, apesar de certas semelhanças, não era esse o caso.
Os cátaros levavam vidas muito simples. Preferiam passar o tempo ao ar livre ou em
casas simples do que em igrejas, e embora tivessem uma hierarquia administrativ
a que incluía bispos, todos os membros batizados eram espiritualmente iguais e con
siderados padres. Para aquela época o mais surpreendente talvez fosse a ênfase que d
avam à igualdade entre os sexos, embora a culta região do Languedoc já possuísse uma ati
tude mais iluminada em relação às mulheres do que era habitual. Eram vegetarianos que
comiam peixes (por razões ligeiramente relacionadas à saúde, como discutiremos mais ta
rde), eram pacifistas e acreditavam em uma forma de reencarnação. Eram também pregador
es itinerantes, viajando em pares, vivendo com simplicidade e em extrema pobreza
, parando onde quer que fosse para ajudar e curar os que pudessem. De qualquer p
onto de vista, os Homens Bons não pareciam representar ameaça alguma para quem quer
que fosse. No entanto, a Igreja encontrou razões suficientes para persegui-los.
A Igreja e os cátaros eram visceralmente antagônicos no que dizia respeito ao simbol
ismo da cruz, pois estes viam na cruz uma lembrança horrível e doentia do instrument
o de tortura que levou Jesus à morte. Tinham também um ódio mortal ao culto aos mortos
e ao comércio de relíquias que dele decorria, e que constituía um dos principais meio
s utilizados naquela época para alimentar os cofres de Roma. Mas a principal razão d
os cátaros terem caído em desgraça perante a Igreja foi a sua recusa em reconhecer a a
utoridade do Papa.
Ao longo do século XII, vários conselhos da Igreja condenaram os cátaros, mas finalmen
te, em 1179, eles e seus protetores foram 'excomungados'. Até então a Igreja havia e
nviado os missionários adequados, oradores talentosos daquela época, a fim de tentar
trazer os languedocianos de volta à 'fé verdadeira', mas tais missões foram recebidas
com apatia. Até mesmo o grande São Bernardo de Clairvaux (1090-1153) foi enviado àque
la região apenas para voltar exasperado. Porém, o que é bastante significativo, no rel
atório que enviou ao Papa, tomou o cuidado de explicar que embora os cátaros, no que
concerne à doutrina, caíssem em erro, se fosse 'examinado o seu modo de vida, não se
acharia nada mais impecável'. Essa constatação tornou-se senso comum entre todos os cr
uzados, até o ponto de mesmo os inimigos dos cátaros 'terem que admitir que o estilo
de vida deles era exemplar' .
A estratégia seguinte da Igreja foi tentar bater os hereges em seu próprio campo, en
viando para a região sua própria versão de pregadores itinerantes. Entre os primeiros,
em 1205, estava o famoso Dominic Guzman, um monge espanhol que para lá fora envia
do com a missão de fundar a Ordem dos Frades Oradores (mais tarde chamada de Ordem
de São Domingos, cujos membros, tempos depois, seriam encarregados dos tribunais
da Santa Inquisição).
A partir de então, os dois lados viram-se jogados em uma série de disputas abertas,
um tipo de debate em público terrivelmente sério, que nada solucionou. Finalmente, e
m 1207, o Papa Inocêncio III perdeu a paciência e excomungou o Conde de Toulouse, Ra
ymond VI, por não ter entrado em ação contra os hereges. Esse passo era obviamente imp
opular, pois o próprio delegado papal encarregado de transmitir ao conde essas notíc
ias foi morto por um dos cavaleiros de Raymond. Essa foi a gota d'água: o Papa con
vocou uma cruzada de todos contra os cátaros e os que os apoiavam ou com eles simp
atizavam. A cruzada se reuniu em 24 de junho de 1209, dia comemorativo de São João B
atista.
Até então, todas as cruzadas haviam sido convocadas para lutar contra os muçulmanos, c
ontra os 'bárbaros estrangeiros' que viviam em terras tão distantes a ponto de serem
, literalmente, inimagináveis. Mas essa cruzada seria uma guerra de cristãos contra
cristãos, quase que às portas do palácio do próprio Papa. Havia, portanto, toda a probab
ilidade dos cruzados conhecerem pessoalmente alguns dos hereges que eles haviam
jurado exterminar.
A cruzada dos albigenses, que começou em Béziers, em 1209, prosseguiu com extrema br
utalidade, enquanto cidade após cidade caía ante os soldados, que estavam sob as ord
ens de Simon de Montfort. A campanha durou até 1244, um período bastante considerável,
durante o qual os cruzados realizaram tudo o que se possa imaginar de pior. Ain
da hoje há lugares no Languedoc onde o nome de Simon de Montfort evoca um sentimen
to misto de medo e abominação.
Na ocasião, as razões religiosas tornadas públicas para justificar a campanha logo for
am acompanhadas pelos motivos políticos mais cínicos. A maioria dos cruzados veio d
o norte da França: a riqueza e poder do Languedoc era atraente demais para ser ign
orada. No começo da cruzada essa região desfrutava de considerável independência; no fin
al fazia, definitivamente, parte da França.
Esse episódio da história européia foi, sob quaisquer padrões, de significado extremo. Não
só fora o primeiro genocídio europeu, como também um movimento crucial para a unificação
da França, e deu o motivo necessário para a criação da Santa Inquisição. Para nós, entretan
há muito mais nessa cruzada dos albigenses do que uma campanha plena de atrocidad
es que, curiosamente, foi relegada ao esquecimento.
Os cátaros eram pacifistas que desprezavam 'o imundo invólucro da carne' a ponto de
estarem ansiosos por esvaziá-lo, mesmo que os meios necessários para tal significass
em o martírio de ser queimado vivo. Durante a campanha, muitos milhares de cátaros t
erminaram seus dias na fogueira, e muitos sequer deixaram transparecer o mais le
ve horror ou medo em face disso. Alguns, aparentemente, chegaram ainda mais long
e e não demonstraram sentir dor alguma. Tal feito foi particularmente notável no cer
co final ao último refúgio dos cátaros, em Montségur.
Uma parada essencial para os turistas contemporâneos, Montségur tornou-se um lugar u
m tanto mítico, bastante similar ao rochedo de Glastonbury. Mas embora aqueles que
estão fora de forma possam achar que este último representa uma subida íngreme e difíci
l demais, não é nada quando comparado com a estrada que leva ao topo do 'château' de M
ontségur: uma fortaleza de pedra, encravada quase que de uma maneira impossível nas
alturas vertiginosas de uma montanha escarpada, toscamente parecida com um pão de
açúcar, contemplando do alto o povoado e um vale tornado perigoso devido às constantes
quedas de pedras dos precipícios. Sinais em vários idiomas advertem contra rompante
s no sentido de escalar o 'château' até mesmo por aqueles que estão, sem sombra de dúvid
a, no auge de suas forças e forma física: mesmo os andarilhos mais contumazes acham
essa trilha particularmente dura. É difícil imaginar como os cátaros e seus suprimento
s chegavam até o topo. Uma vez lá, porém, era relativamente fácil imaginá-los tranqüilament
sentados, pois para os cruzados, com suas armaduras e cavalos, nem sequer valia
a pena tentar a escalada.
Montségur havia se tornado o quartel-general dos cátaros remanescentes, no início dos
1240, quando os cruzados os haviam forçado a recuar até os contrafortes dos Pireneus
. Um lar para cerca de 300 cátaros, e em particular para os líderes principais, Mont
ségur era um prêmio reluzente para os homens do Papa. A Rainha da França, Blanche de C
astilha, reforçou a importância dada a Montségur quando, ao relatar sobre sua captura,
escreveu: [devemos] cortar fora a cabeça do dragão'.
Durante os dez meses de cerco a Montségur, um fenômeno curioso aconteceu. Vários dos s
oldados sitiantes desertaram e juntaram-se aos cátaros apesar de saberem exatament
e como tudo aquilo terminaria, inclusive para eles. O que poderia ter causado tão
absurda defecção? Alguns sugeriram que eles ficaram impressionados com o comportamen
to exemplar dos cátaros e assim foram tomados por uma conversão interna e profunda.
Como já vimos, os cátaros viam a morte certa, através de tortura, não só com estoicismo, m
as com total tranqüilidade, mesmo quando, dizem, as chamas começavam a dançar em volta
deles. Para os que podem se lembrar dos anos 70, vem imediatamente à mente a imag
em assombrosa daquele solitário monge budista que se imolou em protesto contra a G
uerra do Vietnã. E permaneceu sentado e ereto, em um transe desenvolvido após longo
treinamento e inimaginável disciplina, enquanto o fogo o matava. Os cátaros estavam
conscientemente preparados para a morte, tendo feito até mesmo um juramento que es
pecificamente prometia a submissão de todos à própria fé em face de quaisquer tipos de t
ortura. Teriam eles também o conhecimento de uma técnica de transe semelhante, que l
hes permitisse superar a agonia mais extrema? Com certeza, esse seria um segredo
que todos os soldados de qualquer época gostariam de conhecer.
Seja como for, a queda de Montségur deu vida a muitos mistérios duradouros que foram
fonte de fascinação para muitas gerações, inclusive para os nazistas caçadores de tesouro
, e para aqueles que estavam em busca do Santo Graal. O mistério mais persistente
de todos está relacionado com o chamado
Tesouro dos Cátaros, que quatro deles supostamente teriam conseguido carregar na n
oite anterior ao massacre final. Esses intrépidos hereges teriam de alguma forma c
onseguido escapar, sendo descidos por cordas, no meio da noite, pelo lado partic
ularmente escarpado da montanha.
Embora formalmente os cátaros tenham se rendido no dia 2 de março de 1244, foi-lhes
dada permissão para permanecer na fortaleza durante mais quinze dias, por razões que
nunca foram bem explicadas; depois de tal período eles se dirigiram por vontade p
rópria para a fogueira. Alguns relatos os descrevem como tendo de fato corrido mon
tanha abaixo e pulado para dentro das fogueiras que os esperavam na planície. Espe
culou-se que eles haviam pedido esse tempo extra para executar algum tipo de rit
ual, mas ninguém jamais saberá realmente a verdade sobre isso.
A natureza exata do tesouro dos cátaros é assunto de intensa especulação. Julgando pela
rota perigosa percorrida pelos quatro fugitivos, provavelmente não poderiam ter ca
rregado bolsas com pesadas barras de ouro. Alguns especularam que era o próprio Sa
nto Graal - ou algum outro objeto ritualístico de grande significado -, enquanto o
utros afirmam que o que eles levavam eram escrituras, ou conhecimentos, e até mesm
o que os quatro cátaros, eles mesmos, é que eram o tesouro, devido à sua própria importânc
ia. Eles poderiam representar uma linha de autoridade, talvez até mesmo encarnando
, literalmente, lendária linhagem sangüínea descendente de Jesus.
Mas se o tesouro dos cátaros fosse na verdade algum conhecimento secreto, qual ser
ia seu formato? No que realmente os cátaros acreditavam? É difícil acessar suas crenças
com alguma segurança, porque eles deixaram poucos registros escritos e muito do qu
e é dito sobre suas crenças vem dos documentos de sua inimiga, a Santa Inquisição. E com
o Walter Birks e R.A. Gilbert sabiamente apontam em seu livro The Treasure of Mo
ntségur (1987), coloca-se muita ênfase na teologia que lhes é imputada quando, com cer
teza, seu estilo de vida é o que mereceria mais atenção. Contudo, a religião originou-se
de uma visão específica do mundo, e essas origens permanecem discutíveis.
Os cátaros eram um ramo dos bogomilos, um movimento herético que surgiu e floresceu
em primeiro lugar nos Bálcãs, na metade do século X, e que se manteve influente na reg
ião, mesmo depois de os cátaros terem sido destruídos. O bogomilismo se difundiu ampla
mente, até pelo menos onde hoje é Constantinopla, e foi considerado uma séria ameaça à ort
odoxia religiosa.
Os bogomilos da Bulgária são os herdeiros de uma longa linhagem de 'heresias', tendo
adquirido uma reputação um tanto pitoresca dentre seus oponentes. Por exemplo, a pa
lavra inglesa 'bugger' (sodomita) deriva do nome búlgaro, denotando o significado
pejorativo, tanto literalmente - pois todos os hereges são acusados de desvio sexu
al, seja a acusação justa ou não -, quanto em um sentido geral.
Os bogomilos e seus diversos ramos, como os cátaros, eram dualistas e gnósticos: par
a eles, o mundo é inerentemente mal, o espírito preso em um corpo de imundices, e o ún
ico modo para se tornar livre era por meio da Gnosis, a revelação pessoal que conduz
a alma à perfeição e ao conhecimento de Deus. Há uma variedade de possíveis raízes para o
nosticismo; a filosofia grega antiga, os cultos de mistério como o Dionisismo, e r
eligiões dualistas, como Zoroastrismo, são possíveis candidatos. (Detalhamento mais pr
ofundo pode ser obtido no estudo magistral de Yuri Stoyanov, The Hidden Traditio
n in Europe (1994).
Diante do tipo de literatura sobre o catarismo disponível em muitas lojas turísticas
do Languedoc, pode-se perdoar aqueles que pensam que esse era um tipo de religião
da Nova Era, com uma teologia clara e simplista. Há dúzias de livros e folhetos que
celebram o humanitarismo e as crenças dos cátaros inseridos nos conceitos 'modernos
' como reencarnação e vegetarianismo. Em geral, porém, isso é uma tolice sentimental. Os
cátaros praticavam o vegetarianismo não porque amavam os animais, mas sim devido ao
ódio que devotavam à procriação, e só comiam peixe porque acreditavam erroneamente que a
reprodução destes era assexuada. Por outro lado, a noção que tinham da reencarnação baseava
se no conceito do 'bom final' (morte), que normalmente significava ser martiriza
do em razão da própria fé. Se se deparassem com tal fim não havia nenhuma dúvida de que não
reencarnariam mais neste desprezível vale de lágrimas; se assim não fosse, então eles vo
ltariam até que fizessem isso direito.
Alguns tentaram argumentar que o catarismo era um produto restrito ao Languedoc:
esse argumento é manifestamente impreciso, embora tenha incorporado material típico
da região para a construção de sua teologia. Uma coisa que era unicamente dos cátaros e
ra a crença de que Maria Madalena foi mulher de Jesus, ou então sua concubina. Julga
va-se, porém, que esse conhecimento não era apropriado para todos os cátaros, devendo
ser restrito aos iniciados de alto grau, o círculo interno, e só. Os cátaros eram visc
eralmente contra o sexo e até mesmo contra o matrimônio, e assim tal convicção era algo
bastante difícil de reconciliar e, portanto, eles deveriam ficar tão horrorizados em
relação a isso que reservaram tal conhecimento para os que já haviam, sobejamente, pr
ovado sua fé.
Os cátaros achavam-se, com freqüência, em uma posição teológica delicada, pois, por um lado
eles encorajavam seus seguidores a lerem a Bíblia (contrastando com o catolicismo
ortodoxo que se opunham ao acesso popular à Bíblia); por outro lado, porém, tomavam a
atitude radical de reinterpretar os eventos bíblicos a fim de ajustá-los às suas própri
as crenças. O principal exemplo de suas reinvenções do Novo Testamento é a visão que tinha
m da crucificação: afirmavam que um Jesus de puro espírito é que fora pregado à cruz. Embo
ra não haja nenhuma evidência bíblica sobre isso, eles se viram obrigados a inventar e
sse 'outro' Jesus em razão da repugnância que tinham do corpo físico e, portanto, ter
um crucificado corpóreo era inconcebível para eles.
Assim, a idéia de Jesus e Maria Madalena serem parceiros sexuais não poderia ser res
ultado de algum tipo de pensamento tendencioso. Na realidade, eles se engalfinha
vam com várias justificativas teológicas diferentes, na tentativa de explicar o matr
imônio, algo em que não empregariam tanto tempo e energia se sentissem que poderiam
simplesmente desconsiderar a história todo como sendo um completo absurdo. O que i
sso parece indicar é a prevalência no Languedoc dessa época da idéia do relacionamento d
e Jesus com Madalena. Isso não apenas era parte daquilo que as pessoas comuns acre
ditavam sem qualquer questionamento, como também era algo central para o mundo cri
stão daquela região como um todo, a tal ponto que era melhor tratar abertamente do a
ssunto do que tentar ignorá-lo. E como escreve Yuri Stoyanov:
O conhecimento de Maria Madalena como a 'mulher' ou 'concubina' de Cristo pare
ce ser, além de tudo, uma tradição original dos cátaros que não encontra nenhuma contrapar
te nas doutrinas dos bogomilos.
Embora Madalena fosse, e ainda seja, uma santa curiosamente popular na Provença, o
nde se supõe que tenha vivido, foi no Languedoc que ela se tornou o centro de conv
ergência para as crenças abertamente heréticas, e, como iremos descobrir, foi também nes
sa região que essas mesmas crenças deram origem a paixões surpreendentes, rumores bárbar
os e obscuros segredos.
Como já vimos, a idéia de Jesus e Maria Madalena serem amantes também pode ser encontr
ada nos Evangelhos de Nag Hammadi, que foram escondidos no Egito no século IV. Ser
ia razoável imaginar que as semelhanças com as crenças do Languedoc se originassem daq
ueles ou de uma fonte em comum? Alguns eruditos, com destaque para Marjorie Malv
ern, têm especulado que o culto do sul da França a Madalena preservou essas antigas
idéias gnósticas. E há alguma evidência de que seja realmente esse o caso.
Nos anos de 1330 um tratado extraordinário intitulado Schwester Katrei (Irmã Catarin
a) foi publicado em Estrasburgo, supostamente escrito pelo místico alemão Meister Ec
khart. Os eruditos, porém, concordam que o autor verdadeiro era uma das suas segui
doras. Esse livro apresenta uma série de diálogos entre a 'Irmã Catarina' e seu confes
sor sobre a experiência religiosa de uma mulher e, embora incorpore muitas idéias or
todoxas, também mostra várias outras que são, decididamente, bem menos. Por exemplo, há
essa declaração: 'Deus é a Mãe Universal...' e de modo claro revela uma forte inspiração do
cátaros, além daquela advinda das tradições dos trovadores (minnesinger).
Esse tratado franco e incomum une Madalena a Minne, a Senhora do Amor dos minnes
ingers, e, ainda mais estimulante, deu o que pensar aos eruditos porque contém idéia
s sobre Maria Madalena que só são encontradas nos Evangelhos de Nag Hammadi: ela é des
crita como sendo superior a Pedro, devido à maior compreensão que tem de Jesus, e há a
qui a mesma tensão entre Maria e Pedro. Além disso, incidentes realmente descritos n
os textos de Nag Hammadi são mencionados no tratado da Irmã Catarina.
A professora Barbara Newman, da Universidade da Pensilvânia, destaca o dilema acadêm
ico da seguinte forma: "a utilização desses temas na 'Irmã Catarina' coloca uma questão
espinhosa no que tange à transmissão histórica" e confessa que isso é 'um fenômeno real, m
esmo sendo desconcertante'. Como poderia o autor de Irmã Catarina, em pleno século X
IV, ter tido acesso a textos que só seriam descobertos no século XX? Não pode ser mera
coincidência o tratado mostrar a influência dos cátaros e trovadores do Languedoc, e
a conclusão óbvia é que foi através deles que o conhecimento dos Evangelhos Gnósticos rela
tivos a Maria Madalena foi transmitido; seus segredos não só podem estender-se sobre
o que conhecemos como os textos de Nag Hammadi, como também sobre documentos seme
lhantes e de igual valor que, contudo, ainda não foram redescobertos.
É interessante que haja uma crença duradoura no sul da França sobre a natureza sexual
da relação entre Madalena e Jesus. A pesquisa inédita de John Saul revelou muitas refe
rências na literatura do sul da França, do século VII, sobre tal união, especificamente
nas obras de homens que estavam associados ao Monastério de Sion, como César, o filh
o de Nostradamus (cuja obra foi editada em Toulouse).
Tínhamos visto na Provença que onde quer que houvesse centros de culto a Maria Madal
ena havia, normalmente, locais associados a João Batista. Como os cátaros pareciam tê-
la em alta conta, então talvez eles também demonstrassem a mesma reverência para com o
Batista. Muito pelo contrário, porém, os cátaros pareciam sentir total repugnância para
com o Batista, a ponto do descrevê-lo como sendo um 'demônio'. Essa repugnância vem d
iretamente dos bogomilos, alguns destes se referindo a ele (de um modo um tanto
confuso) como 'o precursor do anticristo'.
Um dos poucos textos santos remanescentes dos cátaros é o Livro de João, também conhecid
o como Liber Secretum, que é uma versão gnóstica do Evangelho de um João completamente d
iferente: grande parte é exatamente igual ao Evangelho canônico, porém, contém algumas '
revelações' extras pretensamente dadas pessoalmente a João, o 'Discípulo Amado'. Foram e
ssas idéias de caráter dualista e gnóstico que concorreram para a formação da teologia ger
al dos cátaros.
Nesse livro, Jesus diz a seus discípulos que João Batista, na verdade, era o emissário
de Satanás (o Deus do mundo material), enviado com o intuito de antecipar-se à sua
missão redentora. Esse texto era originalmente dos bogomilos e não foi totalmente ac
eito, nem pelos cátaros, nem por todos os bogomilos. Muitos membros de outras facções
dos cátaros se entretinham com idéias bastante mais ortodoxas sobre João, e existem si
nais de que, na verdade, os bogomilos dos Bálcãs realizavam um ritual comemorativo t
odo 24 de junho.
O certo é que os cátaros tinham uma consideração especial para com o Evangelho de João, qu
e no geral é tido pelos eruditos como sendo o mais gnóstico dos textos do Novo Testa
mento. (Em círculos ocultos vicejam rumores de que os cátaros tinham uma outra versão,
hoje perdida, do Evangelho de João. Muitos ocultistas vasculharam a região ao redor
de Montségur na esperança de encontrá-lo, sem sucesso porém).
Está claro que os cátaros tinham idéias pouco ortodoxas, mesmo que um tanto confusas,
sobre João Batista. Mas havia alguma coisa de verdadeiro em seu conceito de um João
mau e um Jesus bom? Talvez não muito, mas, como sugerem vários comentadores contempo
râneos, a relação entre esses dois homens pode não ter sido tão claramente definida quanto
a maioria dos cristãos é levada a acreditar. Essa idéia dos cátaros pode representar o
caráter dualista de sua filosofia, do modo mais simplista possível: um dos dois é o be
m e o outro é o mal. Nesse caso, entretanto, a conclusão lógica é que eles os considerar
am iguais porém opostos. Os cátaros, portanto, deviam vê-los como rivais, o que não é de f
orma alguma uma visão cristã tradicional. E isso demonstra que dúvidas desconcertantes
sobre o suposto apoio de João à missão de Jesus já existiam há muito tempo naquela região.
Assim como a relação de Madalena com Jesus, a de João e Jesus parece compreender uma v
ersão radicalmente diferente daquela ensinada pela Igreja.
Buscar nos cátaros uma confirmação da importância da figura de João para os movimentos heré
icos é trilha certa para a decepção, ao menos superficialmente. Mas há uma organização hist
ricamente bastante significativa que mais do que contrabalança esse desapontamento
. Estamos falando, é claro, dos cavaleiros templários, para quem João Batista sempre f
oi, inexplicavelmente, objeto de grande devoção. E do mesmo modo que a cruzada contr
a os cátaros deixou uma marca traumática indelével na paisagem do Languedoc, assim tam
bém os castelos desses cavaleiros enigmáticos ainda apontam entre brancas névoas nos r
ecônditos mais remotos daquela zona rural.
Os templários hoje tornaram-se uma espécie de clichê esotérico, como bem sabe qualquer u
m que esteja familiarizado com a ficção de Umberto Eco, e a maioria dos historiadore
s não sente nem um pingo de remorso sequer ao tratar com absoluto desdém qualquer co
isa que chame atenção para seus 'segredos'. No entanto, qualquer mistério que esteja c
onectado com o Monastério de Sion também envolve esses monges-guerreiros, e, portant
o, são uma parte inerente desta investigação.
Um terço de todas as propriedades dos templários na Europa se encontrava no Languedo
c. Suas ruínas contribuem para tornar ainda mais bela essa região selvagem. Uma das
lendas locais mais pitorescas é a de que todo 13 de outubro que caía em uma sexta-fe
ira (o dia do mês e da semana em que a Ordem foi suprimida de forma súbita e brutal)
faz com que apareçam luzes estranhas nas ruínas, além de negras figuras que podem ser
vistas se movendo dentro delas. Infelizmente, nas sextas-feiras que passamos na
quela região, não vimos nem ouvimos nada além do que o alarmante grunhido de javalis s
elvagens. Ao menos essa história demonstra o quanto os templários se tornaram parte
da lenda local.
Os templários mantiveram-se vivos na memória dos habitantes locais, através de recordações
que não são de forma alguma negativas. Mesmo em nosso século, ainda encontramos vestígi
os que atestam isso, como nos conta a famosa cantora de ópera Emma Calvé, nascida na
região de Aveyron, no norte do Languedoc. Emma registrou em suas memórias que o pov
o local, quando queria dizer que um menino era especialmente bonito ou inteligen
te, usava o seguinte dito popular: 'Ele é um verdadeiro filho dos templários'.
Os principais fatos relativos aos cavaleiros templários são bastante simples. Oficia
lmente denominados como A Ordem dos Cavaleiros Pobres do Templo de Salomão, a orde
m foi formada em 1118 pelo nobre francês Hugues de Payens, para servirem de escolt
a dos peregrinos que se dirigiam para a Terra Santa. Nos primeiros nove anos era
m apenas nove cavaleiros. Então a Ordem foi reconhecida oficialmente e logo se est
abeleceu como uma força a ser levada em consideração, não só no Oriente Médio como também e
oda a Europa.
Depois do reconhecimento da Ordem, o próprio Hugues de Payens empreendeu uma viage
m através da Europa, solicitando, à realeza e à nobreza, terras e dinheiro. Em 1129 vi
sitou a Inglaterra, onde fundou a primeira sede dos templários naquele país, no luga
r onde hoje está a estação Holborn do metrô londrino.
Como todos os outros monges, os cavaleiros fizeram voto de pobreza, castidade e
obediência. Mas eles eram homens do mundo e assim empunhavam sua espada sempre que
fosse necessário lutar contra os inimigos de Cristo. A imagem dos templários vincul
ou-se, de forma inseparável, à das cruzadas, que foram organizadas para expulsar o i
nfiel de Jerusalém, mantendo-a cristã.
O Conselho de Troyes reconheceu oficialmente os templários como uma ordem religios
a e militar, em 1128. A figura principal por trás dessas operações era Bernard de Clai
rvaux, o cabeça da Ordem de Cister, que tempos depois seria canonizado. Mas como e
screve Bamber Gascoigne:
Ele era agressivo e abusivo... e era um político trapaceiro e sem qualquer escrúpu
lo nos métodos que utilizava a fim de derrubar seus inimigos.
Foi Bernard quem escreveu a Regra dos Templários, baseada na dos cistercienses, e
foi um de seus protegidos, na posição de Papa Inocêncio II, quem declarou, em 1139, qu
e os templários, dali em diante, só responderiam diretamente ao papado. Como os temp
lários e a Ordem de Cister desenvolviam-se em paralelo, podemos inferir que havia
uma certa e deliberada coordenação entre eles. Por exemplo, o Conde de Champagne, se
nhor de Hugues de Payens, doou a Bernard as terras de Clairvaux, onde então constr
uiu seu 'império' monástico. E é bastante significativo que André de Montbard, um daquel
es nove Cavaleiros que fundaram a ordem, fosse tio de Bernard. Chegou-se a suger
ir que os templários e cistercienses agiam em comum acordo por meio de um plano pré-
organizado, a fim de assumir o domínio sobre a cristandade, mas o esquema não vingou
.
Dificilmente exageraríamos ao falarmos do prestígio e do poder financeiro dos templári
os no período em que sua influência na Europa estava no auge. Praticamente não havia n
enhuma área civilizada importante onde eles não tivessem uma preceptoria, como atest
am, por exemplo, vários locais espalhados pela Inglaterra, como o Templo da Fortun
a, o Templo da Barra (Londres) e o Templo das Pradarias (Bristol). Porém, à medida q
ue seu império se espalhava, crescia também sua arrogância, o que fez com que suas rel
ações com as autoridades principais começassem a se envenenar.
A riqueza dos templários em parte resultava de sua Regra: todos os novos membros d
eviam entregar todas as propriedades à Ordem, além de amealharem uma fortuna conside
rável por meio de volumosas doações de terra e dinheiro de muitos reis e nobres. Seus
cofres logo ficaram abarrotados também devido ao fato deles terem desenvolvido uma
impressionante astúcia financeira, o que fez com que se tornassem os primeiros ba
nqueiros internacionais, cujas avaliações de crédito serviam de parâmetro para todos os
outros financistas. Com certeza esse era um meio seguro para se estabelecerem co
mo um dos principais centros de poder. Em um período bastante curto o título de 'Cav
aleiros Pobres' tornou-se uma piada, embora seus soldados permanecessem bem pobr
es.
Além de sua incrível riqueza, os templários também eram conhecidos por sua habilidade e
coragem no campo de batalha, chegando às vezes a serem até temerários. Tinham regras e
specíficas que determinavam sua conduta como combatentes: era-lhes, por exemplo, p
roibido render-se, a menos que o inimigo estivesse em vantagem numérica de pelo me
nos três para um, e mesmo assim deviam antes obter a permissão de seu superior. Eles
eram os Serviços Especiais daquela época, uma tropa de elite com Deus (e o dinheiro
) a seu lado.
Apesar de todos os esforços, a Terra Santa foi dominada pelos sarracenos, pedaço por
pedaço, até que, em 1291, o último território ainda em poder do mundo cristão, a cidade d
e Acre, fosse tomada por mãos inimigas. Não havia mais nada que os templários pudessem
fazer a não ser voltar à Europa e planejar a eventual reconquista de Jerusalém. Infel
izmente, porém, até mesmo a motivação para uma campanha como essa havia desaparecido da
mente dos vários reis que poderiam financiá-la. A principal razão de sua existência havi
a se reduzido a um grande nada. Desempregados, mas ainda ricos e arrogantes, tin
ham contra si um ressentimento generalizado, pois estavam isentos de tributação e de
viam submissão apenas ao Papa.
Assim, em 1307, eles, inevitavelmente, caíram em desgraça. O todo-poderoso Rei francês
, Filipe, o Belo, começou a orquestrar a queda dos templários, com a devida conivência
do Papa, que de qualquer forma era alguém que Filipe tinha no bolso. Foram emitid
as ordens secretas aos representantes aristocráticos do rei, e os templários foram r
eunidos numa sexta-feira, no dia 13 de outubro de 1307, sendo então presos, tortur
ados e queimados.
Pelo menos, é essa a história que se conta na maioria das obras relativas a esse ass
unto. Essas obras nos levam a entender que a Ordem, toda ela, conheceu sua horríve
l destruição final naquele exato dia, e que os templários foram efetivamente varridos
da face da terra, para sempre. Contudo, a verdade não é absolutamente essa.
Para começar, apenas alguns poucos templários foram de fato executados, embora a mai
oria dos que foram capturados fossem 'submetidos a interrogatório' , um bem conhec
ido eufemismo para designar uma tortura excruciante. Relativamente poucos enfren
taram a fogueira, embora o Grão Mestre Jacques de Molay tenha sido 'assado' lentam
ente até a morte na Île de la Cité, à sombra da Catedral de Notre-Dame, em Paris. Dos ou
tros milhares de templários, apenas aqueles que se recusaram a confessar, ou reneg
aram suas confissões, foram executados. Mas que validade poderiam ter essas confis
sões obtidas através de ferros em brasa e do aperto de parafusos das máquinas de tortu
ra? E o que exatamente era esperado que eles confessassem?
O relato das confissões dos templários são bastante pitorescas, para dizer o mínimo. Lem
os que eles adoravam um gato, ou se compraziam em orgias homossexuais como parte
de seus deveres cavalheirescos, ou veneravam um demônio conhecido como Baphomet e
/ou uma cabeça decapitada. Também foi dito que eles haviam pisoteado e batido na cru
z em um rito de iniciação.Tudo isso, é claro, era para fazer parecer um total absurdo
a idéia de que eles eram Cavaleiros dedicados a Cristo, verdadeiros sustentáculos do
ideal cristão. Quanto mais eles eram torturados, mais aparente ficava essa divergên
cia.
Isso não causa surpresa: não são muitas as vítimas de tortura que conseguem retesar os p
róprios dentes e recusar-se a concordar com as palavras que são colocadas em suas bo
cas por seus algozes. Nesse caso, contudo, existem muito mais coisas do que pare
ce haver à primeira vista. Por um lado, houve insinuações de que todas as acusações levant
adas contra os templários eram fraudulentas, manipuladas por aqueles que invejavam
sua riqueza e exasperavam-se com o poder que tinham. Estes, então, tramaram uma b
oa desculpa para que o rei francês pudesse se livrar das dificuldades econômicas vig
entes apropriando-se da enorme riqueza dos templários. Por outro lado, embora as a
cusações pudessem não ser estritamente verdadeiras, existem evidências de que os templário
s estavam metidos com algo misterioso, talvez algo 'negro' no sentido oculto do
termo. Claro está que essas duas visões não são, necessariamente, mutuamente exclusivas.
Muita tinta já foi gasta com argumentações sobre as acusações feitas contra os templários,
as conseqüentes confissões. Teriam eles realmente cometido todos os atos que confes
saram, ou os inquisidores inventaram previamente as acusações e, então, simplesmente t
orturaram os cavaleiros até que eles concordassem em confessá-las? (Alguns cavaleiro
s, por exemplo, testemunharam afirmando que haviam dito que Jesus era um 'falso
profeta'.) É impossível adotar conclusivamente qualquer uma das hipóteses.
Há, entretanto, ao menos uma confissão em particular que nos faz parar e refletir. É a
confissão de um certo Fulk de Troyes, que disse que os templários lhe mostraram um
crucifixo e lhe disseram: 'Não coloque tanta fé nisso, pois é algo muito recente'. Par
ece haver pouca probabilidade dessa declaração enigmática ter sido formulada por um in
quisidor, dada a pouca educação histórica vigente na época.
É certo que o Monastério de Sion afirma ser o poder criador que estava por trás do sur
gimento dos cavaleiros templários: se esse é o caso, então esse é um dos segredos mais b
em guardados da história. Mesmo assim, dizem que as duas ordens eram virtualmente
a mesma, até o momento do cisma em 1188, depois do qual seguiram caminhos separado
s. E na verdade parece ter havido algum tipo de conspiração relacionada com o surgim
ento dos templários. O bom senso sugere que deve ter sido necessário mais do que os
nove cavaleiros originais para proteger e prover refúgio a todos os peregrinos que
iam visitar a Terra Santa, e ainda por cima durante nove anos; além disso, há muito
pouca evidência de que eles tenham feito qualquer tentativa séria de realizar tal e
scolta. Os templários logo se transformaram nos queridinhos da Europa, tendo receb
ido privilégios e honras totalmente desproporcionais em relação ao que realmente merec
iam. Por exemplo, foi-lhes concedido uma ala inteira do palácio real, em Jerusalém,
um lugar que antes fora uma mesquita. Por sua vez, foi dito, erroneamente, que t
al palácio havia sido construído sobre as fundações do Templo de Salomão, de onde os templá
ios tiraram seu nome oficial.
Outro mistério relacionado aos inícios dos templários centra-se no fato de haver evidênc
ias de que a Ordem de fato já existia bem antes de 1118, embora o motivo de a data
ter sido falsificada permaneça obscuro. Muitos comentadores sugeriram que o prime
iro relato conhecido sobre a criação dos templários, de William de Tiro, que o escreve
u há cerca de cinqüenta anos após o evento, era simplesmente uma história para despistar
. (Embora William fosse profundamente hostil ao templários, presume-se que ele est
ava recontando a história conforme seu entendimento.) Uma vez mais, porém, podemos a
penas especular sobre qual era o motivo para tal tentativa de despistamento.
Hugues de Payens e seus nove companheiros vieram todos ou de Champagne ou, inclu
sive, do Languedoc, Condado da Provença, e é certo que eles foram à Terra Santa com um
a missão específica em mente. Talvez, como já se sugeriu, estivessem à procura da Arca d
a Aliança ou de algum outro tesouro antigo ou mesmo de documentos que pudessem con
duzi-los a isso ou a algum tipo de conhecimento secreto que lhes desse domínio sob
re as pessoas e suas riquezas. Recentemente, Christopher Knight e Robert Lomas a
rgumentaram em seu livro The Hiram Key, que os templários buscaram e encontraram o
esconderijo de documentos que tinham a mesma origem dos Manuscritos do Mar Mort
o. No entanto, tão intrigante quanto possa ser tal sugestão, ela não fornece qualquer
evidência convincente e, como veremos, a questão relacionada às origens dos Manuscrito
s do Mar Morto está repleta de concepções erradas e míticas. Existem, porém, evidências rea
s de que os templários buscavam obter novos conhecimentos dos árabes e dos outros po
vos que encontravam em suas viagens.
Para nós uma das coisas mais fascinantes sobre os templários é a forte e incomum reverên
cia a João Batista, que parece ser para eles muito mais importante do que teria si
do um mero santo protetor. O Monastério de Sion, que uma vez fora, como afirmam, i
nseparável dos templários, chama todos os seus Grão-Mestres de 'João', quem sabe em reve
rência ao Batista. No entanto, é totalmente impossível descobrir a razão de tal submissão,
por parte dos templários, em quaisquer das obras a eles dedicadas; a explicação habit
ual é a de que João lhes era especial por ter sido professor de Jesus. Alguns sugeri
ram que a cabeça decapitada que alguns afirmam ter sido fonte de veneração dos templário
s era a do próprio Batista. Porém, tal adoração a um totem como esse implica em ver os t
emplários como sendo algo muito diferente do que simples cavaleiros cristãos.
Até mesmo muito de seu simbolismo, aparentemente ortodoxo, esconde específicas insin
uações a 'João'. Por exemplo, o Cordeiro de Deus era uma de suas imagens mais importan
tes. A maioria dos cristãos o tomam como sendo Jesus - o Batista tendo dito aparen
temente referindo-se a ele: 'Eis o Cordeiro de Deus' - mas em muitos lugares, co
mo as partes ocidentais da Grã-Bretanha, esse símbolo é utilizado como referência ao própr
io João, e para os templários também parece ser esse o significado. O símbolo Cordeiro d
e Deus foi adotado pelos templários em seu selo oficial; esse selo era específico da
Ordem no sul de França.
Uma pista de que a reverência dos templários para com João Batista não era uma simples q
uestão de prestar homenagem ao seu santo protetor, mas que na verdade ocultava alg
o muito mais radical, pode ser encontrada na obra de um padre erudito chamado La
mbert de St Omer. Lambert estava associado a Godefroi de St Omer, um dos nove ca
valeiros fundadores e o segundo em comando das forças de Hugues de Payens. Em The
Hiram Key, Christopher Knight e Robert Lomas reproduzem uma ilustração de Lambert re
tratando 'a celestial Jerusalém' , e observam que ela:
...aparentemente mostra o fundador [da celestial Jerusalém] como sendo João Batist
a. Não há nenhuma menção a Jesus nesse, assim chamado, documento cristão.
Como no simbolismo das pinturas de Leonardo, a conclusão é que João, o Batista, é import
ante por si mesmo, e não meramente em decorrência de seu papel como precursor de Jes
us.
Dois anos depois das prisões em massa, enquanto os cavaleiros ainda estavam sendo
julgados, o catalão visionário e ocultista Ramon Lull (1232-c.1316), anteriormente u
m leal partidário da Ordem, escreveu que os julgamentos revelavam as 'ameaças à barca
de São Pedro', e acrescentou:
Existem, talvez, muitos segredos no cristianismo, dentre os quais há um (em partic
ular) capaz de causar uma incrível revelação, assim como aquele (que está) emergindo atr
avés dos templários... tal pública e manifesta infâmia pode por si mesma colocar em peri
go a barca de São Pedro.
Lull parece não só estar se referindo aos perigos para a Igreja causados pelas revel
ações sobre os templários, como também a outros segredos, de igual magnitude. Ele também p
arece aceitar as acusações levantadas contra a Ordem, embora, àquela altura dos fatos,
não fosse uma idéia muito inteligente colocá-las em questão.
Poderia o Languedoc, que foi o local de maior concentração de templários na Europa, fo
rnecer alguma pista que nos levasse à verdade sobre a Ordem? Ainda hoje, após tanto
tempo, essa região conta com muitas recordações persistentes, e continua a ser saudave
lmente desatenta em relação ao convencional.
Como vimos, os cátaros e os templários floresceram aqui e ao mesmo tempo, mas posto
o que geralmente é entendido como seus valores relativos, parece que esses dois gr
upos altamente influentes deveriam estar em lados opostos. Realmente, a cruz ver
melha sobre um fundo branco, símbolo dos templários, é com freqüência vista como um símbolo
tipicamente pertencente às cruzadas. Porém, existem muitas indicações de que os templários
eram, senão ativamente apoiados, vistos com certa simpatia pelos 'hereges' das mo
ntanhas, e é incontestável que os templários se notabilizaram por sua ausência na cruzad
a dos albigenses. Os cavaleiros admitiam abertamente que seu interesse primário na
ocasião estava na longínqua Terra Santa, além de muitos deles terem saído das mesmas fa
mílias que os cátaros, mas nenhuma dessas razões pode explicar totalmente a falta de i
nteresse dos templários em sair ao encalço dos cátaros.
Quais eram, porém, os verdadeiros interesses e motivações dos templários? Eles eram apen
as os monges-guerreiros que afirmavam ser, ou havia algo de secreto em seus plan
os, uma outra dimensão oculta?
CAPÍTULO V
Guardiães do Graal
A corrente acadêmica afirma que idéias ocultistas sobre os templários são apenas tolice:
maioria dos historiadores atesta que eles eram apenas e tão-somente os monges-gue
rreiros que afirmavam ser, e qualquer insinuação que se faça de que eles estavam, mesm
o que remotamente, envolvidos em qualquer coisa esotérica é resultado de fértil imagin
ação ou de pesquisa mal conduzida. Sendo isso um consenso, os historiadores que têm al
gum interesse nesse aspecto da Ordem não o demonstram abertamente por temerem perd
er suas reputações (e os fundos de pesquisa acadêmica). Tal tipo de pesquisa ou é evitad
a ou, se levada a cabo, permanece inédita. (Há vários historiadores de renome que rese
rvadamente reconhecem que o aspecto esotérico dos templários é importante, mas nunca o
dirão publicamente).
Essa atitude fez com que se negligenciasse o estudo de alguns locais importantes
relacionados com os templários. E descobrimos que a região que foi a maior vítima des
se fenômeno, a um grau que beira a mistificação, é a área de nosso maior interesse: o Lang
uedoc-Roussillon. Sem contar a Terra Santa, essa era a pátria da Ordem. Mais de 30
por cento de todas as fortalezas e edificações templárias em toda a Europa ficavam ne
ssa pequena região. Contudo, apenas um volume desprezível de trabalho arqueológico foi
lá realizado, e existem várias localizações importantes que não mereceram qualquer invest
igação.
Felizmente a negligência oficial é contrabalançada por muitos pesquisadores privados q
ue têm um interesse apaixonado por esses misteriosos cavaleiros, e muitos dos mora
dores locais vêem como seu dever preservar e proteger os antigos locais relacionad
os com os templários. Há também vários 'amadores' (no sentido de que eles não são bancados
or fundos de pesquisa) e organizações de pesquisa, como o Centro de Estudos e Pesqui
sa dos Templários, dirigido por Georges Kiess, em Espéraza (Aude), de excelente qual
idade. As descobertas feitas por esses entusiastas, através do estudo tanto dos lo
cais quanto dos muitos documentos relativos aos templários, que estão intactos e arm
azenados em arquivos locais, são impressionantes. Especialmente dada a falta de re
cursos oficiais e a completa frustração de lidar com arquivistas apáticos.
Um desses grupos de pesquisa é o Abraxas, dirigido pelo britânico expatriado Nicole
Dawe e pelo texano Charles Bywaters, na estância hidromineral de Rennes-les-Bains,
Aude. Suas pesquisas, em conjunto com as da rede de grupos semelhantes, realiza
ram descobertas sólidas e documentadas que, literalmente, reescrevem os estudos de
dicados aos templários. Nadando contra a maré da apatia oficial, por um lado, e, por
outro lado, tentando controlar o entusiasmo extremo dos caçadores de tesouro loca
is, que representam uma ameaça bastante real aos sítios arqueológicos de pesquisa, Nic
ole e Charles descobriram locais fundamentais relativos aos templários que, no ent
anto, nunca haviam sido tocados pelas pás dos arqueólogos. Grande parte de seus trab
alhos ainda permanece inédito, embora eles planejem publicá-los em um futuro próximo.
Portanto, se quisermos saber mais sobre a vida dos templários, nesse berço da heresi
a que é o Languedoc-Roussillon, não devemos procurar os centros acadêmicos, mas sim Ch
arles e Nicole.
Sentados no apartamento de Charles em Rennes-les-Bains, localizado na rua princi
pal (na verdade praticamente a única), começamos perguntando a ele e a Nicole sobre
a possível conexão entre os templários e os cátaros.
. Eles responderam que havia claras ligações entre os dois grupos e que essas foram
bem além de meros laços familiares, os quais eram geralmente negligenciados pelos hi
storiadores. Por exemplo, até mesmo no auge da cruzada dos albigenses, os templários
abrigaram cátaros fugitivos, e existem exemplos documentados de que também prestara
m socorro aos cavaleiros que abertamente lutaram ao lado dos cátaros contra os cru
zados.
Como disse Nicole:
Você só precisa cruzar os sobrenomes cátaros dos documentos da Santa Inquisição com os nom
es dos templários do mesmo período para perceber que são os mesmos. No entanto, mais p
articularmente, é inegável que algumas edificações dos templários alojaram, deram abrigo,
e até mesmo enterraram os cátaros em chão sagrado.
Alguns têm sido cínicos a ponto de sugerir que isso ocorreu porque essas pessoas, a
fim de se tornarem membros seculares do Templo, doaram-lhes todas as suas posses
e bens. Na verdade, temos provas de cátaros que se socorreram junto aos templários
depois de terem perdido completamente tudo o que possuíam, e não só foram recolhidos e
m determinados abrigos, como lá foram enterrados ao morrerem. Mais tarde, os templár
ios algumas vezes faziam o que estivesse ao seu alcance para assegurar às família cáta
ras, ou a seus descendentes, que tivessem suas terras de volta.
Charles prosseguiu:
Em uma área em particular, os templários, claramente, permitiram que houvesse ativid
ade hostil partindo de suas edificações. Os cavaleiros cátaros continuavam a lutar, e
quando se retiravam seguiam para uma propriedade dos templários. Esses fatos estão f
artamente documentados.
Isso representava algo bastante significativo para nós porque, dado que algumas da
s acusações levantadas contra os templários foram indubitavelmente forjadas, a única coi
sa não usada como evidência contra eles foi a íntima relação que mantinham com os cátaros d
sterrados. Que a Inquisição estava completamente ciente desse fato é revelado pelas es
cavações que fez nas propriedades templárias, desenterrando os corpos dos cátaros a fim
de queimá-los e dessa forma intimidar outros possíveis hereges, mesmo já tendo se pass
ado mais de trinta anos desde o final da Cruzada. (E foi a Inquisição que torturou o
s templários, portanto, se alguém sabia da conexão destes com os cátaros, esse alguém era
a própria Santa Inquisição.) Era óbvio que havia mais coisas acontecendo, talvez até mesmo
algo que fosse do conhecimento da Coroa Francesa, mas era algo considerado tão pe
rigoso se fosse tornado público que nem uma palavra sobre esse assunto veio à tona.
Durante toda a nossa pesquisa sobre os templários tivemos o desconfortável - e cresc
ente - sentimento de que algum segredo monumental estava à espreita, abaixo da sup
erfície da história oficial. Poderia ser que os templários e os cátaros compartilhassem
algum conhecimento potencialmente explosivo? E esse segredo poderia ter sido o r
eal motivo de Filipe, o Belo, ter arquitetado essa muito bem planejada campanha
contra os templários?
Nem todos os templários pereceram naquela sexta-feira fatídica do século XIII. Há muitos
permitiu-se que vivessem e recomeçassem usando um outro nome. Dois países em partic
ular ofereceram moradias seguras para os cavaleiros fugitivos, a Escócia e Portuga
l. (Neste último, os templários tornaram-se conhecidos como os Cavaleiros de Cristo.
) A região ao redor do Languedoc, aprendemos com Charles e Nicole, foi testemunha
de uma curiosa exceção no padrão geral empregado na perseguição. Roussillon, parte leste d
a região, na verdade vivia sob proteção do reino espanhol de Aragon, enquanto o norte,
que incluía Carcassonne, fazia parte da França. Os Templários de Roussilion foram pre
sos, julgados e inocentados. Quando o Papa fechou oficialmente a Ordem, eles ou
se juntaram a outras fraternidades semelhantes ou passaram o resto das vidas em
suas terras, vivendo de pensão.
Como sugeriram vários comentadores, os templários sobreviveram à tentativa de exterminá-
los totalmente e continuaram existindo até hoje em dia, embora haja evidências de qu
e eles sofreram muitos cismas e operaram através de diferentes organizações, todas afi
rmando ser descendentes diretas da Ordem original.
Se os templários estivessem escondendo algo que fosse julgado extremamente perigos
o pelo rei francês, a ponto de fazê-lo tomar uma ação drástica contra eles, o que poderia
ser? Quem estava usando quem entre o Papa e Filipe? De qualquer ângulo que vejamos
essa história, parece que um elo crucial está faltando.
Suponha que esse componente evasivo fosse do interesse do Monastério de Sion. Como
já vimos, existem indicações de uma presença sombria por trás do próprio surgimento dos te
plários, e esse mesmo grupo de manipuladores (quem quer que eles fossem) parecia d
irigir as cenas conforme sua vontade. Charles e Nicole não têm nenhuma dúvida sobre a
existência de um 'círculo secreto' organizado dentro da própria liderança dos templários,
o qual ante datou o início oficial da Ordem. Eles assim prosseguem até o ponto de ar
gumentar que o movimento templário fora criado para dar a esse círculo secreto uma f
ace pública, na mesma época em que a Terra Santa fora aberta aos viajantes europeus.
Outros pesquisadores também chegaram à mesma conclusão. Como o escritor francês Jean Rob
in (utilizando-se das pesquisas de Georges Cagger) afirma:

A Ordem do Templo constituía-se na verdade de sete círculos 'externos', dedicados


aos mistérios secundários, e de três círculos 'internos', correspondendo à iniciação nos gr
es mistérios. E o 'núcleo' era composto por aqueles setenta templários 'interrogados'
por Clemente V [após terem sido presos em 1307].
De modo semelhante, no seu The Sign and the Seal, o autor britânico Graham Hancock
escreve:
...a pesquisa que eu havia conduzido sobre as crenças e comportamentos desse est
ranho grupo de monges-guerreiros, convenceram-me de que eles haviam deparado com
alguma tradição de sabedoria sumamente antiga...
Constituir um grupo interno secreto era algo bastante possível, pois os templários e
ram, essencialmente, uma escola de mistério, isso é; eles operavam como um sistema h
ierárquico que se baseava na iniciação e no segredo. É, portanto, bastante provável que não
só os templários de patente rasa soubessem consideravelmente menos do que seus super
iores, como que as crenças desses últimos fossem bastante diferentes. É provável que a m
aioria dos cavaleiros templários não fosse mais do que os simples soldados cristãos qu
e aparentavam ser. O círculo secreto, porém, era algo muito diferente.
A razão da existência do círculo secreto dos templários parece ter sido a de acelerar o
avanço das pesquisas sobre questões esotéricas e religiosas.
Talvez uma das razões para que se mantivessem em segredo fosse o fato de lidarem c
om aspectos enigmáticos relacionados aos mundos judeu e islâmico. Eles buscavam, lit
eralmente, os segredos do universo, onde quer que suspeitassem que poderiam ser
encontrados, e em sua rota geográfica e intelectual de incessantes questionamentos
talvez viessem a tolerar, e até mesmo a abraçar, algumas crenças não muito ortodoxas.
Naqueles dias, a busca incessante de conhecimento deve ter sido uma força motriz p
articularmente forte e irresistível. Os templários, porém, não se interessariam de vonta
de própria por essas complexas pesquisas, afinal eles eram pessoas intrinsecamente
práticas. Quando seguiam uma linha de pesquisa em particular, era por uma razão mui
to boa e, por causa disso, deixaram certas pistas sobre o que realmente importav
a para eles.
Uma dessas pistas encontra-se nas obsessões de Bernard de Clairvaux, éminence grise
(Eminência parda) dos templários. Esse ferino monge intelectual aparentemente devota
va-se totalmente à Virgem Maria, como bem mostram muitos de seus sermões. No entanto
, parece-nos que a Virgem não era objeto do verdadeiro amor espiritual de Bernard.
Era uma Maria completamente diferente, cuja real identidade é sugerida pelo fato
dele ter sido particularmente apaixonado pelas Madonas Negras. Também chegou a esc
rever quase noventa sermões sobre o Cântico dos Cânticos, e pregou de modo muito mais
explícito ligando a 'Noiva' a Maria de Betânia, que naquela época era inquestionavelme
nte a própria Maria Madalena.
'Sou negra, mas graciosa', diz a amante, uma frase que também une o Cântico dos Cântic
os ao culto das Madonas Negras, a quem Bernard (que nasceu em Fontaines perto de
Dijon, lugar central do culto das Madonas Negras) era excepcionalmente dedicado
. Ele afirmou ter recebido sua inspiração como uma criança que recebe três gotas do leit
e milagroso do peito da Madona Negra de Chântillon. Especulou-se que isso era uma
referência codificada à iniciação dele, Bernard, ao culto das Madonas. E quando Bernard
rezou pela Segunda Cruzada, escolheu fazê-lo em Vézalay, centro fundamental ao culto
de Maria Madalena.
Então, é provável que a aparente devoção de Bernard para com a Virgem fosse simplesmente u
ma cortina de fumaça para sua verdadeira paixão por Madalena, embora, é claro, as duas
não sejam mutuamente exclusivas. Contudo, ao criar a Regra dos Templários, Bernard
recomendou que os cavaleiros prestassem 'obediência a Betânia e ao castelo de Maria
e de Marta'. E ele é bem conhecido por ter repassado tal devoção particular à Ordem. Até m
esmo em face da total extinção, os cavaleiros aprisionados com o Grão-Mestre Jacques d
e Molay, nas masmorras da fortaleza de Chinon, compuseram uma oração dedicada a 'Not
re Dame' (Nossa Senhora) na qual mencionam São Bernardo como fundador da religião da
Santificada Virgem Maria. Em face, porém, de todas as outras evidências, essa também
pode ter sido uma outra referência codificada ao culto de Madalena.
É bastante significativo que o juramento dos templários fosse a 'Deus e a Nossa Senh
ora', Ou com freqüência a 'Deus e a Santa Maria'. Alguns insinuam que a 'Nossa Senho
ra' do juramento não é a Virgem, o que é reforçado pelas palavras da Absolvição dos Templár
: 'eu peço a Deus que perdoe os meus pecados, como perdoou os de Santa Maria Madal
ena e os do ladrão que foi pregado na cruz'. Isso pelo menos demonstra a importância
de Madalena para os templários. (É notável que no caso dos templários de Roussillon, du
rante seu cativeiro, as condições em que se encontravam fossem deliberada e especifi
camente pioradas - por ordem do próprio Papa - no exato dia em que se comemorava S
anta Maria Madalena. Lembremos que o massacre de Béziers também aconteceu no dia das
festividades a Madalena para deixar bem claro a natureza da 'heresia'.)
Na realidade, os templários estavam preocupados com a idéia do Feminino como um todo
, um conceito que pode parecer estar seriamente em conflito com sua imagem de gu
erreiros. Contudo, como Charles e Nicole descobriram, a Ordem do Templo incluía mu
lheres. Durante os primeiros anos de sua existência muitas mulheres fizeram o jura
mento da Ordem, embora tenham permanecido como membros seculares do Templo. Embo
ra não haja nenhuma indicação de que havia um enclave de rainhas guerreiras dentro da
Ordem dos Templários, como afirmaram Michael Baigent e Richard Leigh em The Temple
and the Lodge (1989):
... um antigo relato do século XII, na Inglaterra, fala de uma mulher que é recebi
da no Templo como uma Irmã, e insinua de modo bastante claro haver algum tipo de a
la ou anexo feminino na Ordem. Contudo, nenhuma elaboração ou esclarecimento foi enc
ontrado sobre esse assunto. Mesmo tal informação, que poderia estar contida nos regi
stros oficiais da Inquisição, já há muito tempo desapareceu ou foi suprimida.
Nicole e Charles, partindo de estudo profundo dos documentos dos templários, são bem
mais enfáticos:
Se você voltar aos documentos do século XII, verá que há inúmeros exemplos de mulheres que
haviam se juntado à Ordem, com certeza em seu primeiro século de existência. Qualquer
pessoa que ingressasse na ordem deveria em juramento 'dar minha casa, minhas te
rras e meu corpo e alma à Ordem do Templo'. Você tem os nomes de mulheres no término d
esses documentos, assim como de homens também, e você tem com freqüência casais que ingr
essavam em conjunto e, portanto, as mulheres também deveriam fazer o juramento. Es
ses documentos são principalmente dessa região [o Languedoc], e existem muitos exemp
los que demonstram que deve ter havido um número bastante grande de mulheres envol
vidas em determinada época.
Os documentos também indicam que houve uma mudança posterior nas regras, naquelas qu
e especificamente proibiam que os templários tivessem mulheres, ficando subentendi
do que até aquele momento eles haviam procedido em conformidade com a regra.
Quando expressamos nossa surpresa quanto a isso não ser mais amplamente conhecido,
e certamente, tirando algumas vagas sugestões, o envolvimento das mulheres não apar
ecer nas obras comuns dedicadas aos templários, Charles explicou:
Às vezes parece que muitas dessas informações foram intencionalmente negligenciadas.
O que você obtém nos livros é um punhado de informações redundantes, a mesma coisa repeti
da inúmeras vezes. Isso faz com que tenhamos apenas duas opções possíveis: ou essas pess
oas são cegas ou por alguma razão muito específica elas não estão interessadas naquelas in
formações. Se você é um pesquisador, o que supostamente essas pessoas são, essas informaçõe
everiam faze-los saltar. Porém, elas nem sequer levam isso em consideração.
É notável que o arrastão geral de 13 de outubro de 1307 ocorresse sem derramamento de
sangue. Por toda a França, os senescais do rei receberam ordens lacradas que lhes
ordenavam que organizassem tropas suficientes para prender os mais bem treinados
guerreiros da cristandade, algo como uma delegacia de polícia receber ordens para
prender tropas da Polícia do exército estacionadas na região.A maioria dos templários n
a França parece ter sido levada como cordeiros para o matadouro. É estranho que os c
avaleiros não tenham pedido reforços de fora da França.
De modo significativo, alguns dos cavaleiros, inclusive o tesoureiro da Ordem, c
onseguiram escapulir, de um modo que indica que eles teriam sido avisados com an
tecedência. Além disso, a famosa frota dos templários, fundeada na França, simplesmente
desaparecera naquele momento. Em todos os registros das pilhagens dos templários p
elo rei francês, não há um único navio listado. Onde a frota foi parar? Dificilmente ter
ia desaparecido no ar.
O círculo secreto dos templários, porém, parece ter caminhado grandes distâncias a fim d
e preservar seu conhecimento secreto. Como o respeitado estudioso do Novo Testam
ento, Hugh Schonfield, demonstrou, os templários utilizaram um código conhecido como
a Cifra de Atbash. Isso é algo verdadeiramente notável pois esse mesmo código havia s
ido usado pelos autores de alguns dos Manuscritos do Mar Morto mil anos antes da
fundação da Ordem dos Templários. O que quer que isso signifique, por si só já revela que
os templários eram peritos em manter seus segredos através dos mais engenhosos meio
s, além de mostrar que seus conhecimentos vinham de fontes longínquas e esotéricas. Sc
honfield revela que, quando o código é aplicado ao nome do misterioso ídolo decapitado
venerado pelos templários, Baphomet, esse então se transforma na palavra grega Soph
ia. Graham Hancock escreve, em The Sign and tbe Seal, que 'Sophia' significa nad
a mais nem menos que 'sabedoria' . Na realidade, porém, significa muito mais do qu
e isso, e seu significado total acrescenta uma luz diferente a toda raison d'être
dos templários.
Citada significando simplesmente 'Sabedoria', em hebreu Chokmah, uma figura femi
nina que aparece no Antigo Testamento, especificamente no Livro dos Provérbios, So
phia tem causado muito embaraço entre os estudiosos judeus e cristãos porque é apresen
tada como sendo a parceira de Deus, a que exerce influência sobre ele e de fato o
aconselha.
Sophia também era fundamental para a cosmologia gnóstica; na verdade, nos textos Pis
tis Sophia do Nag Hammadi, está intimamente associada a Maria Madalena. E, assim c
omo Chokmah, ela é a chave para se compreender o gnosticismo da Cabala (o importan
te e muito influente sistema esotérico que deu base para a magia do período medieval
e do Renascimento). Para os gnósticos ela era a deusa grega Atenas e a deusa egípci
a Ísis, que às vezes também era chamada de Sophia.
Tomado de forma isolada, é claro que o uso da palavra Sophia pelos templários, como
a decodificação da palavra 'Baphomet', não revela qualquer reverência especial em relação a
mundo feminino. Eles podiam muito bem estar apenas reverenciando a busca da sab
edoria. Entretanto, existem muitas outras indicações de que isso fazia parte de uma
profunda obsessão em relação ao princípio feminino, que vai muito além de uma mera questão
emântica, a ponto dos templários, e na verdade vários outros grupos esotéricos, estarem
bastante interessados nessa questão.
Como nos diz o pesquisador escocês Niven Sinclair, cujo conhecimento sobre os temp
lários é particularmente extenso: 'Os templários decididamente acreditavam no poder fe
minino'. Niven não tem qualquer dúvida a esse respeito, e não há nada de estranho nisso.
Os templários habitualmente davam um formato circular a suas igrejas, pois acredit
avam que essa era a forma do Templo de Salomão. Por outro lado, isso pode ter simb
olizado a idéia de um universo redondo, mas é mais provável que representasse o Femini
no. Círculos e ciclos sempre estiveram associados às deusas e a tudo o que é feminino,
seja esotérico ou biológico. É um símbolo arquetípico recorrente na história da civilizaçã
sepulturas da era pré-histórica eram montículos arredondados porque representavam o úte
ro da mãe-terra, que tomaria de volta o defunto para que então renascesse entre os e
spíritos. E todos nós estamos familiarizados com o arredondamento de uma barriga grávi
da, e com o símbolo da fase 'Mãe' das deusas, a lua cheia.
Qualquer que seja o significado preciso do formato circular para os templários, não
há nenhuma dúvida de que esses sempre foram eminentemente masculinos. E após a época dos
templários, a construção de igrejas em formato circular foi oficialmente considerada
herética pela Igreja. Porém, como já notamos, a igreja francesa em Londres é redonda, um
a característica que se repete e é reforçada por outros motivos decorativos, tanto int
ernos quanto externos.
Os templários, parece, haviam acumulado conhecimento exótico e herético, mas isso foi
acidental ou proposital? As evidências apontam para esta última hipótese: eles estavam
em busca de certos segredos que, uma vez sob seu poder, lhes permitiriam optar
entre aplicá-los ou retê-los. Uma vez que muitos de seus segredos ainda permaneciam
sob sua guarda, os templários deixaram algumas pistas de alguns deles em forma de
códigos, algumas até mesmo esculpidas em pedra.
Os cavaleiros templários eram a força motriz por trás da construção das grandes catedrais
góticas, especialmente a de Chartres. Sendo os principais, e com freqüência os únicos, '
desenvolvimentistas' nos grandes centros culturais europeus, também estavam por trás
da formação das guildas de construtores, incluindo a de pedreiros, que se tornaram
membros seculares da Ordem dos Templários, com vantagens que incluíam a isenção do pagam
ento de taxas.
Por toda a longa história das grandes catedrais, o estranho simbolismo dos motivos
de decoração e do projeto confundiram peritos das mais diversas disciplinas. Foi ap
enas recentemente que tal simbolismo passou a ser visto como o que realmente era
: a codificação do conhecimento esotérico dos templários. Graham Hancock, ao discutir a
arquitetura sagrada dos antigos egípcios, nota que 'ela só foi igualada na Europa pe
las grandes catedrais góticas da Idade Média, como a de Chartres', e coloca a seguin
te questão: 'Terá sido mero acidente?' Hancock continua:
Já suspeitara há muito tempo que realmente tinha havido uma conexão e que os cavalei
ros templários, através de suas descobertas durante as Cruzadas, poderiam ter formad
o o elo perdido na cadeia de transmissão dos conhecimentos arquitetônicos secretos..
. São Bernardo, o protetor dos templários, havia definido Deus, o que é inacreditável tr
atando-se de um cristão, como 'comprimento, altura, largura e profundidade'. Também
não poderia deixar de lembrar que os próprios templários haviam sido grandes construto
res e grandes arquitetos, ou que a ordem monástica dos cistercienses, a qual São Ber
nardo pertencera, também se superara nesse campo em particular da atividade humana
.
O projeto das catedrais foi especificamente elaborado para levar em conta, para
exemplificar, os princípios da geometria sagrada. É a idéia de que a proporção geométrica t
az dentro de si uma ressonância da harmonia divina, e a de que algumas proporções em p
articular são mais divinas do que outras. É isso que está por trás da rude declaração de Pi
oras de que 'o número é tudo', e reforça o conceito hermético de que as matemáticas são o c
go através do qual os deuses falam com a humanidade. Os artistas e projetistas do
Renascimento eram grandes adeptos dessa arquitetura esotérica em particular, para
quem a 'relação áurea' - para eles a proporção perfeita - era quase que uma panacéia univer
al. Porém, de modo algum se limitaram a essa aplicação, e o conceito da geometria sagr
ada permeou todos os aspectos de suas vidas intelectuais. Os desenhos de Leonard
o, sejam de homens ou de máquinas, o interior das flores ou o formato de uma onda,
comunicava a convicção do artista de que havia significados nos padrões e harmonia na
s proporções, e um de seus desenhos mais famosos, O Homem Vitruviano, literalmente i
ncorpora a relação áurea.
O legendário Templo de Salomão era, para os templários e para os maçons, que vieram depo
is, a jóia da coroa e o melhor exemplar da geometria sagrada. Não apenas era uma sup
rema delícia para os olhos de qualquer um que o observasse ou rezasse dentro dele,
como seu alcance ia muito além dos cinco sentidos. Foi pensado para ressonar, de
um modo transcendental e sem igual, com a própria harmonia celestial; seu comprime
nto e largura, altura e profundidade estão completamente de acordo com as proporções m
ais adoradas pelo universo. O Templo de Salomão era, se você preferir, a própria alma
de Deus escrita na rocha.
Muitos dos atuais visitantes ficam perplexos com os motivos, de clara natureza a
strológica, gravados nas pedras das antigas catedrais. Com certeza, alguém hoje pode
ria chegar a pensar que o inconfundível símbolo de Áries esculpido na entrada principa
l de tão veneráveis edificações deve ser uma aberração, uma excentricidade pessoal de algum
dos pedreiros. No entanto, em muitas catedrais diferentes esses sinais se repete
m, e nunca de forma fortuita.
Todo o grandioso simbolismo encontrado nas catedrais era entendido pelos iniciad
os da época como um reflexo do antigo provérbio hermético: assim em cima, assim embaix
o. Acreditava-se que a frase tivesse vindo da Tábua de Esmeralda, de Hermes Trisme
gistus, o lendário mágico, ou mago, egípcio, embora as palavras que a compõe possam ser
muito mais antigas. Elas querem dizer que tudo o que há na terra tem uma contrapar
tida no céu e vice-versa, conceito que Platão tornou popular com sua noção do Mundo das
Idéias. De acordo com isso, tudo o que existe, de uma colher até um homem, é somente u
ma versão de um modelo ideal que existe em algum tipo de dimensão alternativa, plena
de modelos perfeitos. Os magos, ou magi, foram mais adiante. Acreditavam que to
do pensamento ou ato refletia-se em outro plano, e que ambas as dimensões afetavam
uma à outra de um modo irresistível. Existem ressonâncias desse conceito na moderna i
déia científica de universos paralelos, assim como nas histórias dos deuses antigos, c
om os seus ciúmes insignificantes e, com freqüência, sórdidas obsessões, que eram vistos c
omo sendo os representantes arquetípicos da raça humana. Para nossos ancestrais, não h
avia nenhuma discrepância em prostrar-se humildemente perante o grande deus do Oli
mpo, Zeus, e ao mesmo tempo acreditar que ele, ocasionalmente, tomava a forma de
um animal para seduzir as moças da Terra. Era esperado de um deus que se comporta
sse como um homem, porém, o inverso desse conceito é a idéia, 'herética' para judeus e c
ristãos, de que um homem pudesse se tornar um deus.
Nada disso era novidade para os templários. O projeto das catedrais revela uma com
preensão dos princípios herméticos por parte dos pedreiros, assim como dos cavaleiros
que patrocinavam a construção. Eles, de todos os povos medievais, apreciavam especia
lmente a aplicação prática, onde quer que fosse possível, de todo e qualquer conheciment
o esotérico. Para eles, a codificação das mensagens secretas nas próprias pedras das cat
edrais ia muito além de mera fantasia. Como Baigent e Leigh dizem no seu livro The
Temple and the Lodge: Deus havia ensinado a aplicação prática da geometria sagrada at
ravés da arquitetura'. E novamente nos vimos caminhando em direção ao Templo de Salomão
.
Filho do legendário herói judeu, o Rei Davi, Salomão construiu um Templo de profunda b
eleza, utilizando os melhores e mais caros materiais. Foram usados mármores e pedr
as preciosas, madeiras aromáticas e os tecidos mais raros para criar um lugar que
faria os sentidos dos veneradores flutuar em delícia, onde o próprio Deus se sentiri
a em casa. No centro de tudo ficava o mais sagrado dentre o sagrado, e aí o sacerd
ote poderia receber o Todo Poderoso por meio do mais misterioso dos instrumentos
, a Arca da Aliança. Esse dispositivo notoriamente temperamental era, por um lado,
conhecido por conceder grandes bênçãos àqueles que eram 'virtuosos', mas, por outro lad
o, destruiria os malfeitores ou aqueles a quem não houvesse sido dito como combate
r os efeitos de sua presença maligna. Para os templários isso talvez se parecesse co
mo a arma suprema, e, portanto, saíram em sua busca, conforme alguns têm sugerido.
Talvez existam pistas daquilo que os templários realmente acreditavam ser o signif
icado da 'Arca', presente nos motivos decorativos das catedrais. Por exemplo, a
Catedral de Chartres, fruto da imaginação de sua éminence grise, Bernard de Clairvaux,
contém uma escultura de pedra que parece ser a Virgem Maria, na qual está gravada a
'marca' arcis foederis: Arca da Aliança. Isso por si só não é muito significativo, pois
esse era um símbolo cristão comum no período medieval. Mas como Chartres era um ponto
central para o culto da Madona Negra, estaria a Arca sendo comparada com aquela
outra Maria, a Madalena, ou até mesmo com uma deusa pagã muito mais antiga? Talvez
seja o próprio princípio Feminino que esteja sendo evocado, utilizando-se, para desp
istar, o símbolo de Maria. Isso não pode ser uma referência à própria Virgem, pois os arqu
itetos da catedral gótica tinham uma razão especial para evocar o arquétipo de uma mul
her sexualmente ativa. (É também significativo que as primeiras representações da lenda
da vida de Maria Madalena na França estivessem nos vitrais da Catedral de Chartres
.)
Na verdade, é a difamada e bem pouco compreendida alquimia que, com freqüência, está por
trás dos motivos aparentemente bizarros das construções góticas (e era realmente a alqu
imia que aparentava ser o dado em comum entre a maioria dos Grão-Mestres do Monastér
io de Sion).
Acredita-se que a alquimia tenha sido transmitida pelo Egito antigo através dos árab
es (a própria palavra, aliás, deriva do árabe). A alquimia significava mais do que ciênc
ia: a prática compreendia uma bem concatenada teia de atividades encadeadas e modo
s de pensar, da magia à química, da filosofia e hermetismo à geometria sagrada e à cosmo
logia.Também pesquisava o que hoje chamaríamos de engenharia genética, métodos para reta
rdar o processo de envelhecimento, e a tentativa de conquistar a imortalidade físi
ca. Os alquimistas ansiavam por conhecimento e não tinham tempo a perder com antag
onismos da Igreja contra as experimentações. Eles, então, se ocultaram e continuaram s
uas pesquisas secretamente. Para os alquimistas não existia tal coisa chamada here
sia, enquanto que para a Igreja não existia um alquimista que não fosse herético; cons
eqüentemente, a prática da alquimia tornou-se conhecida como 'Magia Negra'.
A alquimia compreendia diversos níveis: o externo, ou esotérico, que se dirigia à mani
pulação e experimentação dos metais, mas havia outros níveis, muito mais secretos e que in
cluíam a realização da misteriosa 'Grande Obra'. Tal coisa era vista como o momento su
premo da vida de um alquimista, quando então, finalmente, transforma-se metal comu
m em ouro. Nos círculos esotéricos, porém, isso também é visto como o ponto em que a pesso
a se torna espiritualmente iluminada e fisicamente revitalizada, através de um 'tr
abalho' de magia que gira em torno da sexualidade. (Discutiremos esse assunto em
detalhes mais adiante.) Parece que a Grande Obra representava um ato de iniciação s
uprema.
Talvez se acreditasse que esse ritual fosse capaz de proporcionar a longevidade:
existem rumores que afirmam que Nicolas Flamel, supostamente Grão-Mestre do Monas
tério de Sion, realizou a Grande Obra em companhia de sua mulher Perenelle, no dia
17 de janeiro de 1382, e que teria, após tal realização, vivido durante um tempo exce
pcionalmente longo.
Em alquimia, o símbolo para designar a consecução da Grande Obra é o hermafrodita, liter
almente a junção do deus Hermes com a deusa Afrodite. Leonardo era fascinado pelos h
ermafroditas, chegando a ponto de preencher páginas e mais páginas com esboços destes,
de um modo um tanto pornográfico. Um estudo recente sobre o retrato mais famoso d
o mundo, o maliciosamente enigmático sorriso de Mona Lisa, mostrou, de forma persu
asiva, que 'ela' era ninguém mais ninguém menos que o próprio Leonardo. Os pesquisador
es Dr. Digby Quested, do Hospital de Maudsley, em Londres, e Lillian Schwartz, d
os Laboratórios Bell, nos E.U.A, utilizaram as mais sofisticadas técnicas de computação,
independentemente um do outro, para sobrepor a face do retrato com a face do ar
tista, e o resultado foi uma justaposição perfeita.Talvez essa fosse mais uma das in
acreditáveis e inteligentes piadas que ele legou para a posteridade, mas há também a p
ossibilidade de que Leonardo, sendo um alquimista, estivesse sumariando o fato d
e ter realizado a Grande Obra.
Alguns acreditam que tal feito poderia ocasionar uma transformação física tão profunda q
ue o bem-sucedido alquimista poderia até mesmo ter mudado de sexo. Talvez fosse es
se o conceito por trás da Mona Lisa. Mas o símbolo do hermafrodita também representa o
momento do orgasmo, quando tanto o macho quanto a fêmea participantes do ritual são
tomados pela sensação de união de um com o outro, de expansão dos próprios limites em dir
eção a uma consciência mística de si mesmos e do universo.
As catedrais góticas ostentam muitas figuras curiosas, de demônios a Homens Verdes.
Alguns, porém, ultrapassam o estranhamento: uma escultura na Catedral de Nantes mo
stra uma mulher olhando para um espelho, embora o reflexo seja, na verdade, o de
um homem velho . E em Chartres a escultura da 'Rainha de Sabá', de fato, porta um
a barba! Os símbolos alquímicos podem ser encontrados em muitas das catedrais associ
adas aos cavaleiros templários.
Essas correlações são implícitas, mas Charles Bywaters e Nicole Dawe descobriram locais
relacionados com os templários, no Languedoc-Roussillon, que continham um simbolis
mo alquímico explícito:
Nossa pesquisa mostrou, entre outras coisas, que eles estavam de alguma forma ba
stante familiarizados com as propriedades do solo. Em uma área em particular eles
construíram um hospital para os templários que voltavam da Terra Santa, pois ali a t
erra tinha propriedades curativas. Existem símbolos alquímicos nesse local...
Fica bastante claro que estavam familiarizados com a alquimia. É significativo enc
ontrar-se um local que fora especificamente escolhido em virtude da natureza da
terra, onde existem evidentes símbolos alquímicos em sua estrutura e além de muitos el
ementos vinculados aos cátaros e aos muçulmanos. E essa evidência é consistente, documen
tada; é bastante fácil de ser provada.
Durante nossas viagens na França, repetidamente vimos que as cidades que haviam si
do propriedade dos templários, como Utelle, na Provença e Alet-les-Bains, no Langued
oc, subseqüentemente haviam se tornado centros de alquimia. Também é significativo que
os alquimistas, assim como os templários, reverenciassem a figura de João Batista d
e um modo especia1.
Como já vimos, as grandes catedrais e muitas das igrejas mais famosas foram constr
uídas em locais conhecidos por terem sidos consagrados a deusas antigas. Por exemp
lo, Notre-Dame, em Paris, erigiu-se sobre as fundações de um templo dedicado a Diana
, e St Sulpice, em Paris, foi construída sobre as ruínas de um templo dedicado a Ísis.
Tomado isoladamente esse ponto nada tem de incomum, pois por toda a parte na Eu
ropa foram construídas igrejas cristãs sobre antigos locais pagãos, como um movimento
deliberado por parte da Igreja a fim de demonstrar que essa havia triunfado sobr
e os pagãos. Mas, com freqüência, o que na verdade acontecia era que os habitantes loc
ais simplesmente adaptavam seus costumes pagãos ao cristianismo, e, então, viam o lo
cal da nova igreja como sendo complementar e não oposto à antiga Religião. No entanto,
em face dos evidentes interesses mais profundos dos templários, não poderia ser que
no caso das catedrais eles pretendessem dar continuidade à veneração do princípio femin
ino ao invés de suprimi-lo?Talvez as catedrais fossem hinos às deusas esculpidos na
rocha. E 'Notre Dame', a quem tantos deles eram dedicados, era na verdade o própri
o princípio feminino ou, Sophia...
A maioria das pessoas hoje pensa na arquitetura gótica como algo essencialmente 'm
asculino', com seus pináculos desafiando as alturas e naves em forma de cruz, mas
a maior parte da decoração interna é intensamente feminina, especialmente as esplêndidas
janelas em forma de rosa. Barbara G. Walker indica outros significados:
...a Rosa, que os antigos romanos conheciam como Flor de Vênus, [era] o distint
ivo das prostitutas sagradas. As coisas ditas 'debaixo da rosa' (sub rosa) eram
parte dos mistérios sexuais de Vênus, que não seriam revelados aos não iniciados...
Na época áurea da construção das catedrais, quando Maria era venerada como uma Deusa e
m seu 'Palácio da Rainha Celestial', ou Notre-Dame, ela foi com freqüência chamada de
Rosa, Rosa-arbusto, Rosa-guirlanda... Rosa mística... Assim como um templo pagão, a
catedral gótica representava o corpo da Deusa que também era o universo, enquanto co
ntinha a essência de divindade masculina dentro de si mesma...
A rosa, como veremos, também era um símbolo adotado pelos trovadores, esses cantores
de canções de amor do sul da França que estão intimamente ligados com os mistérios erótico
.
Outros símbolos encontrados nas catedrais góticas portam potentes mensagens sublimin
ares sobre o poder Feminino.As teias de aranha esculpidas, uma imagem que se rep
ete na cúpula em forma de clarabóia da igreja de Notre-Dame de France, em Londres, r
epresenta Arachne, a deusa-aranha que rege o destino do Homem, ou Ísis, no papel d
e tecelã dos destinos. Da mesma forma, o grande labirinto pintado no chão da Catedra
l de Chartres refere-se aos mistérios femininos, e através dele o iniciado só consegue
encontrar o caminho se seguir o fio de linha fornecido pela deusa. Esse lugar,
portanto, não foi planejado para ser palco de veneração da Virgem Maria, em particular
porque também abriga uma Madona Negra, Notre Dame de Souterrain (Nossa Senhora do
Subterrâneo). Em Chartres também há um vitral que descreve a chegada de barco de Mada
lena à França, combinando assim uma referência à lenda desta com a de Ísis, para quem os b
arcos também eram um meio de transporte predileto. (Talvez o Nautonnier, o timonei
ro, título do Grão-Mestre do Monastério, decorra de seu papel assumido no Navio de Ísis)
. Esse vitral é a mais antiga representação da lenda de Madalena na França, e, em uma ca
tedral há muitos quilômetros da Provença, foi considerado pelos arquitetos como sendo
de grande significado.
Ao mesmo tempo em que as catedrais estavam sendo construídas, a heresia encontrava
outra porta, desta feita assegurando-se de que sua mensagem seria lembrada pela
história, embora, como na Última Ceia, de Leonardo, as decodificações através das quais e
ssas mensagens encontram expressão sejam, com freqüência, marcadas pela pouca compreen
são em relação ao que está realmente sendo dito. Essa outra tradição herética era a das len
do Graal.
Hoje o termo 'Santo Graal' é freqüentemente utilizado com o significado de uma meta
fugidia, o prêmio resplandecente que irá coroar o trabalho de toda uma vida. A maior
ia das pessoas percebe que isso está relacionado com algo mais antigo e religioso
em sua natureza, e no geral com a taça em que Jesus bebeu na Última Ceia. Uma lenda
conta que José de Arimatéia, o rico amigo de Jesus, nela coletou o sangue derramado
na Crucificação, sangue em que foram encontradas propriedades curativas. A procura d
o Santo Graal é vista como uma busca repleta de perigos físicos e espirituais, em qu
e aquele que procura tem que bater-se com as mais diversas espécies de inimigo, in
cluindo os do reino sobrenatural. Em todas as versões da história a taça é um objeto, li
teral e simbolicamente, da perfeição. Ela representa algo que pertence a duas dimensõe
s, a real e a mítica, e é capaz de cativar a imaginação como nenhuma outra coisa.
O Graal pode ser visto como um objeto misterioso, um tesouro verdadeiro que está e
m algum lugar de alguma caverna, mas que, entretanto, sempre carrega a idéia implíci
ta de que simboliza algo inefável, muito além do mundo cotidiano. Essa aura de busca
espiritual surgiu não só das lendas originais do Graal, como também da cultura onde e
la pela primeira vez apareceu.
Em nossa opinião, dentre as milhões de palavras que foram dedicadas a esse assunto n
o decorrer dos séculos, algumas das mais sábias podem ser encontradas no livro The H
oly Grail de Malcolm Godwin, publicado em 1994. Esse livro é um sumário notável de tod
as as lendas e interpretações disparatadas, com a percepção de chegar diretamente ao cer
ne da matéria através da verbosidade dos estilos. Colocando de lado as habituais visõe
s cristãs e celtas dos romances sobre o Graal dos séculos XII e XIII, Godwin também id
entifica uma outra visão igualmente importante, a alquímica. Ele revela que as versões
mais antigas da história do Graal sem dúvida beberam nas fontes dos mitos celtas qu
e permeiam os contos do grande herói Rei Artur e sua corte, e muitos dos elementos
desses contos focalizavam os aspectos da veneração das divindades pelos celtas.As h
istórias do Graal redefinem as antigas lendas celtas e as estendem a fim de abarca
r as idéias heréticas que estavam em voga no século XIII.
O primeiro dos romances sobre o Graal foi o inacabado Le Conte dei Graal (c.1190
), de Chrétien de Troyes.A cidade de Troyes, de onde Chrétien tirou seu sobrenome, e
ra um centro cabalístico e o local da preceptoria original dos templários, além de ser
a cidade onde o Conde de Champagne estabeleceu sua corte. (Na verdade, a maiori
a dos nove primeiros cavaleiros templários eram vassalos deste.) A igreja mais fam
osa de Troyes é dedicada a Maria Madalena.
Na versão de Chrétien não há nenhuma menção de o Graal ser uma taça, nem há qualquer conexã
ta com a Última Ceia ou com Jesus Cristo. Na realidade, não há qualquer conotação religios
a, e já foi dito que sua ambientação original é claramente pagã. Aqui, no entanto, o Graal
era uma bandeja ou prato, o que, como veremos, é algo bastante significativo. Na
verdade, Chrétien se inspirou em um antigo conto celta no qual o herói Peredur, deve
ria, em sua busca, se deparar com uma procissão horripilante e aparentemente extre
mamente ritualística, em um castelo remoto. Sendo levada nessa procissão havia, entr
e outras coisas, uma lança que gotejava sangue e uma cabeça decapitada em uma bandej
a. Uma característica comum nas histórias do Graal é aquele momento crítico em que o herói
falha ao tentar formular uma pergunta importante, e é esse pecado de omissão que o
coloca em grande perigo. Como diz Malcolm Godwin: 'Aqui, a pergunta que não é feita
está relacionada com a natureza da cabeça. Se Peredur tivesse perguntado de quem era
a cabeça, e que relação tinha com ele, ficaria sabendo como quebrar os encantamentos
da Terra Devastada'. (A terra havia sido amaldiçoada e tornara-se infértil.)
Mesmo não tendo um fim, a história de Chrétien era de uma fuga bem sucedida que deu or
igem a uma série enorme de imitações, a maioria de caráter explicitamente cristão. Mas, co
mo diz Malcolm Godwin, falando dos monges que lhe escreveram:
Eles manobraram a fim de esconder uma obra de profunda heresia dentro desse mistér
io piedoso, de modo que tanto a lenda quanto o autor sobreviveram ao zelo ígneo do
s padres da Igreja. As mentes ortodoxas da Roma papal, embora nunca tivessem rec
onhecido, de fato, a existência do Graal, surpreendentemente se acovardavam em den
unciar tal heresia... E é mais curioso ainda que a lenda sobrevivesse intacta ante
a queda dos cátaros heréticos... e até mesmo a dos Cavaleiros Templários,que estavam cl
aramente caracterizados em vários textos.
Uma dessas versões cristianizadas era Perlesvaus, que foi, segundo alguns, escrito
por um monge na Abadia de Glastonbury, em 1205, enquanto que para outros essa é u
ma obra de um templário anônimo.Esse conto, na verdade, fala sobre duas buscas que e
stão entrelaçadas. O Cavaleiro Gawain procura a espada que decapitou João Batista, a q
ual magicamente sangra diariamente ao meio-dia. Em um episódio o herói encontra uma
carroça que continha 150 cabeças decapitadas de cavaleiros: algumas estavam marcadas
com ouro, algumas com prata e outras com chumbo. E há também uma estranha donzela q
ue carrega em uma das mãos a cabeça de um rei, marcada com prata, e na outra a de um
a rainha, selada com chumbo.
Em Perlesvaus os servos de elite do Graal usavam artigos de vestuário brancos com
seu brasão gravado, uma cruz vermelha, exatamente como os templários.Também há uma cruz
vermelha que estava [meada em uma floresta, e que se tornou um grande tormento p
ara um dos padres, pois esse bateu nela 'em todas as partes' com uma vara, um ep
isódio que tem uma clara conexão com a acusação de que os templários haviam batido e pisot
eado na cruz. E, mais uma vez, há uma cena curiosa que envolve cabeças decapitadas.
Um dos guardiães do Graal diz ao herói, Percival, 'Existem as cabeças marcadas em prat
a, cabeças marcadas em chumbo, e os corpos a quem essas cabeças pertencem: eu digo o
que você tem que fazer, vá lá e pegue as cabeças do Rei e da Rainha'.
O simbolismo alquímico é pródigo: metais preciosos e comuns, reis e rainhas.Tal imaginár
io também é encontrado em abundância em outra grande obra reescrita sobre a lenda do G
raal, como ainda veremos.
Apesar da tácita aversão da Igreja para com o Graal, a versão mais cristianizada foi e
scrita por uma equipe de monges cistercienses. Denominada Queste del san Graal, é
notável pelo fato de utilizar-se do Cântico dos Cânticos para compor seu poderoso simb
olismo místico.
De todas as bastante estranhas histórias do Graal a mais estranha e mais provocant
e de todas foi Parzival, do poeta bávaro Wolfram van Eschenbach (1220). Nela o aut
or declara estar deliberadamente corrigindo a versão de Chrétien de Troyes, que não co
ntém toda a informação disponível. Ele afirma que sua história é a mais precisa porque ele
onseguiu a verdadeira história com um Kyot, da Provença, que foi identificado como G
uiot de Provins, um monge que tanto falava pelos templários como cantava como um t
rovador. Como Wolfram escreve em Parzival: 'O conto autêntico com a conclusão para o
romance foi enviado da Provença para as terras alemãs.
Mas qual era essa conclusão? Em Parzival o Castelo do Graal é um lugar secreto, vigi
ado pelos templários - que Wolfram chama de os 'homens batizados', o que é bastante
significativo -, que são enviados para espalhar sua fé em segredo. O sigilo absoluto
e a aversão da Companhia do Graal em ser interrogada são pontos bastante realçados.
No final da história Repanse de Schoye (a portadora do Graal) e o meio-irmão de Parz
ival, Fierefiz, partem para a Índia e têm um filho chamado João, o famoso Prester João,
que é o primeiro de uma linhagem que sempre recebe o nome de João... Seria essa uma
referência codificada ao Monastério de Sion, cujos Grão-Mestres, supostamente, recebem
esse mesmo nome?
O conceito de linhagem é fundamental para as teorias relativas ao Graal de Baigent
, Leigh e Lincoln. Como o título do primeiro livro deixa claro, para eles o 'Santo
Graal' era de fato o 'Santo Sangue'. Isso se baseia na idéia de que o original fr
ancês sangraal, que é comumente entendido como san graal (Santo Graal), deveria ter
sua leitura corrigida para sang real, o sangue real, que para eles significa uma
linhagem sangüínea hereditária. Baigent, Leigh e Lincoln conectam a ênfase dada à linhage
m nas lendas do Graal com o que eles acreditam ser o grande segredo relacionado
a Jesus e a Madalena, que teriam sido marido e mulher, e propõe sua própria teoria:
o Graal das lendas era uma referência simbólica aos descendentes de Jesus e Maria Ma
dalena. De acordo com essa teoria, os guardiães do Graal eram aqueles que conhecia
m essa linhagem sagrada secreta, como, por exemplo, os templários e o Monastério de
Sion.
Entretanto, existe um problema com essa idéia: nas histórias do Graal a ênfase está na l
inhagem dos guardiães do Graal e na dos descobridores do Graal: o próprio Graal é o qu
e os está separando. Embora fosse bem possível que as lendas se referissem à guarda de
um segredo mantido por certas famílias, e que foi passado de geração para geração, parece
improvável que eles realmente estivessem aludindo a uma linhagem sangüínea. Afinal, q
uando a idéia passou a ser cogitada, ela veio à tona na forma de uma única palavra fra
ncesa sangraal, e, como já vimos, existem sérias dificuldades em uma hipótese que se a
licerça na idéia de continuidade de uma 'linhagem sangüínea pura' através dos tempos.
A ligação entre as histórias do Graal e o legado dos templários parece ser verdadeira o
suficiente. Wolfram von Eschenbach é crível por ter viajado bastante e por conhecer
os centros templários do Oriente Médio, e por seu conto ser, de longe, o mais explic
itamente templário de todos os romances sobre o Graal. Como diz Malcohn Godwin: 'A
o longo de Parzival Wolfram entremeia seu relato com discussões sobre a astrologia
, a alquimia, a cabala e as novas idéias espirituais do Oriente. Ele inclui também u
m óbvio simbolismo que nos remete diretamente ao Tarô.
É nessa versão que os Guardiães do Graal no Castelo Montsalvasch são explicitamente cham
ados de templários. O castelo original foi identificado como sendo o de Montségur, a
última das grandes fortalezas dos cátaros. A narrativa, em um outro poema de Wolfra
m, invoca o Senhor do Graal do Castelo de Perilla. O verdadeiro Senhor de Montségu
r à época do poeta era Ramon de Perella. Mais uma vez encontramos uma ligação entre temp
lários e cátaros, entre si e com um indefinido, porém extremamente valioso tesouro.
Não há qualquer taça dotada de poderes sobrenaturais na versão de Wolfram; aqui o Graal é
uma pedra, lapsit exillis, que provavelmente significa a Pedra da Morte, embora
isso seja mera especulação. Ninguém sabe realmente. Outras explicações afirmam que a pedra
era uma jóia que se soltou da coroa de Lúcifer quando este decaiu do céu para a terra
, ou que é a famosa Pedra Filosofal (lapis elixir) dos alquimistas. Dentro do cont
exto, essa última interpretação é a mais provável: o texto todo é farto em simbolismo alquí
o.
Alguns escritores viram a personagem Cundrie, a 'mensageira do Graal' em Parziva
l, como sendo a representação de Maria Madalena. (Certamente Wagner assim o fez: em
sua ópera Parsifal (1882), sua Kundry possui um frasco de 'bálsamo' e lava os pés do h
erói, e então, como se fosse Madalena, seca-os com os próprios cabelos.) Talvez haja a
lguma ressonância da taça do Graal na jarra de alabastro que Madalena carrega na tra
dicional iconografia cristã.
Em todas as histórias, porém, a busca do Graal é uma alegoria para uma viagem espiritu
al do herói em direção - e para além - da transformação pessoal. E como já vimos, um dos pr
ipais motivos de toda alquimia séria era exatamente esse. Mas foi apenas esse subt
exto alquímico que fez com que todas as lendas de Graal fossem 'heréticas'?
A Igreja, sem dúvida, sentia-se mortalmente ofendida pelo fato de as histórias do Gr
aal ignorarem ou absterem-se de afirmar sua autoridade e a sucessão apostólica. O he
rói age por si só, embora ocasionalmente receba ajuda, em busca de esclarecimento es
piritual e transformação. Assim, em essência, as lendas do Graal são textos gnósticos que
enfatizam a responsabilidade do indivíduo para com o estágio de evolução de sua própria al
ma.
Porém, existem muito mais coisas capazes de ofender a sensibilidade da Igreja que
estão implícitas em todas as histórias do Graal. Pois a busca do Graal é, inevitavelment
e, apresentada como sendo reservada apenas para os iniciados do mais alto grau,
a nata da elite, algo que está muito além até mesmo da transcendência da missa. Além disso
, em todas as histórias do Graal, o próprio objeto, qualquer que seja ele, é guardado
por mulheres. Até mesmo na história celta de Peredur os jovens até podem portar uma la
nça, mas são as damas que levam o que podemos chamar de protótipo do Graal, a bandeja
com a cabeça. Mas como poderiam as mulheres realizar um papel de autoridade em alg
o que era efetivamente uma forma mais sublime de Missa? (Lembremos que os cátaros,
cuja fortaleza de Montségur era quase com certeza o original para o Castelo do Gr
aal de Wolfram, mantinham um sistema de igualdade sexual, de forma que homens e
mulheres poderiam ser chamados de 'padres' .)
No entanto, é a conexão com os templários que é mais difundida nas histórias do Graal. Com
o vários comentadores apontaram, a acusação de que os cavaleiros adoravam uma cabeça dec
apitada, que se acreditava ser a de Baphomet, tem ressonâncias com os romances de
Graal nos quais, como já vimos, as cabeças decapitadas aparecem em toda parte. Os te
mplários foram acusados de atribuir a esse Baphomet poderes semelhantes aos do Gra
al: ele poderia fazer com que as árvores florescessem e a terra se tornasse fértil.
Na verdade, os templários não só foram acusados de idolatrar essa cabeça, como também mant
inham em seu poder um relicário de prata, na forma de um crânio feminino, no qual es
tava gravado simplesmente caput (cabeça).
Hugh Schonfield, ao considerar as implicações relacionadas a essa cabeça feminina, jun
tamente com sua 'interpretação' da palavra Baphomet como significando Sopbia, escrev
e:
Parece haver pouca dúvida de que a bela cabeça feminina dos templários representasse
Sophia em seu aspecto feminino, assim como também Ísis, e ela estava conectada com
Maria Madalena na interpretação cristã.

As relíquias dos templários também têm a reputação de incluírem o (suposto) dedo indicador
João Batista. Isso pode ser bem mais significativo do que parece à primeira vista. C
omo nós vimos no Capítulo I, Leonardo com freqüência retratou alguns personagens em cena
s religiosas que deliberada e ritualisticamente colocavam em riste seu dedo indi
cador, e esse gesto parece estar conectado com João Batista. Por exemplo, vimos co
mo um indivíduo que parecia estar venerando uma alfarrobeira em A Adoração dos Reis Ma
gos estava fazendo esse gesto: tanto a árvore quanto o gesto estão relacionados a João
. A relíquia que afirmam ter pertencido aos templários pode ter sido a razão material
que fez com que Leonardo adotasse tal imagem.
(Jacobus de Voragine em seu livro Golden Legend narra uma tradição que diz que o ded
o de João Batista, a única parte do cadáver sem cabeça que escapou da destruição ordenada p
lo Imperador Juliano, foi trazido para a França por Santa Thecla, e então, talvez po
ssa haver alguma razão para se acreditar que a relíquia dos templários e aquela da len
da sejam a mesma. E de Voragine também registra a lenda que conta que a cabeça do Ba
tista foi enterrada debaixo do Templo de Herodes, em Jerusalém, onde os templários e
scavaram.)
Os templários são constantemente vinculados ao Graal. A escritora viajante britânica N
ina Epton descreve, em seu livro The Valley of Pyrene (1955), como ela escalou a
té as ruínas do castelo de Montréal-de-Sos, dos templários, no Ariège, para ver os murais
que retratam uma lança com três gotas de sangue e um cálice, uma imagem que foi, clara
mente, tomada diretamente das lendas do Graal.
Outra pintura estranha foi encontrada no castelo em Domme, onde muitos templários
foram presos. Ean e Deike Begg descrevem uma estranha cena da Crucificação na qual J
osé de Arimatéia (segurando uma cruz de Lorraine) é mostrado, à direita, colhendo gotas
do sangue de Jesus. À esquerda está uma mulher grávida e nua que segura uma vara ou um
bastão.
Existem outras ligações ainda mais curiosas. Em St-Martin-du-Vésuvie, na Provença, que,
como vimos, é um centro renomado de Madonas Negras e de locais associados aos temp
lários, há uma lenda que incorpora elementos interessantes das histórias do Graal. Afi
rma-se que os templários foram todos decapitados durante sua supressão - algo que, d
ada a falta completa de verificação oficial, parece ser extremamente improvável - e qu
e eles amaldiçoaram a terra com mangra. Os homens ficariam impotentes ou estéreis e
a terra infértil. Qualquer que seja a verdade sobre esse assunto, é um fato histórico
que em 1560 o Duque Emmanuel Filibert de Savoy mandou exorcizar a terra, pois es
sa se encontrava em um estado lastimável. Na verdade, um dos cumes das redondezas
ainda é conhecido como Maledia (que pode ser traduzido como 'doença'). Mas a parte m
ais significativa desse conto pesaroso é a que vincula a decapitação dos templários com
a mangra espalhada na terra, dois dos principais elementos do cânone do Graal. Par
a os escritores de histórias do Graal havia algo sobre as cabeças decapitadas, ou ta
lvez a cabeça decapitada, que havia trazido a destruição da terra, embora também pudesse
representar uma dádiva àqueles a quem ela favorecesse.
As diferentes histórias do Graal e as várias correntes existentes podem parecer algo
confusas, mas em seu monumental estudo sobre as lendas do Santo Graal, Tbe Hidd
en Church of the Holy Grail (1902), o grande erudito do ocultismo, A.E.Waite, de
stacou a presença de uma tradição secreta dentro do cristianismo, que estava por trás de
todo o conceito das lendas. Waite foi um dos primeiros a reconhecer os elemento
s alquímicos, herméticos e gnósticos dessas histórias. Embora estivesse certo de que exi
stem fortes indícios sobre a existência dessa 'igreja oculta' das lendas do Graal, e
le não chega a qualquer conclusão realmente firme sobre sua natureza, mas dá uma posição p
roeminente àquilo que chamou de 'Tradição Joanina' . Ele se refere a uma idéia há muito de
fendida em círculos esotéricos de uma escola mística de cristianismo que fora fundada
por João, o Evangelista, baseado nos ensinamentos secretos que recebera de Jesus.
Esse conhecimento enigmático não aparece no cristianismo externo, ou esotérico, que se
desenvolveu através dos ensinamentos de Pedro. É bastante significativo que Waite a
chasse que essa tradição chegara à Europa através de Gaul, no sul de França, antes de ter
sido filtrada pela recente Igreja Celta da Bretanha.
Apesar dos elementos celtas nas histórias do Graal, Waite entende que a influência j
oanina nelas presente origina-se no Oriente Médio, via templários. Astutamente, ele
não afirma que essa é a única conexão possível, pois não há evidência conclusiva para isso,
acredita que essa é a mais plausível. Porém, ele tem certeza de que os romances do Gra
al baseavam-se em algum tipo de 'igreja oculta' que estava ligada aos templários.
A ênfase de Waite em uma 'tradição joanina' era um tanto tantalizante; ele não elaborou
o suficiente tal assunto, e suas fontes permanecem misteriosas. Mas parece que i
sso poderia propiciar uma potencialmente explosiva ligação entre as histórias do Graal
e um determinado São João que, como veremos no próximo capítulo, daria sentido a grande
parte da aparente confusão que envolve esse assunto.
As histórias do Graal também são uma outra manifestação das idéias nascidas no submundo, qu
estavam circulando na França medieval sob os auspícios dos templários, como o culto d
as Madonas Negras.A conexão entre os dois é impressionante. Ambos baseiam-se em anti
gos temas pagãos: as histórias do Graal em mitos celtas e o culto das Madonas Negras
em santuários dedicados a deusas pagãs.Ambos floresceram nos séculos XII e XIII devid
o ao contato, através dos templários, com a Terra Santa.
Os templários eram um repositório do conhecimento de diversas fontes esotéricas, inclu
indo a alquimia e a sexualidade sagrada. (A conexão entre as Madonas Negras, templár
ios e alquimia é assunto de um estudo do historiador francês Jacques Huynen, chamado
L'enigme des Vierges Noires (O Enigma das Virgens Negras, 1972.) E a 'ponte' en
tre suas idéias exóticas e esotéricas e o mundo cristão de sua época estava personificado
na imagem de uma mulher: Maria Madalena.
Tudo isso aconteceu há muito tempo atrás. Os cátaros já há muito se foram, e a Ordem dos T
emplários se foi logo depois. Mas estará esse conhecimento secreto, essa consciência mís
tica e alquímica do Feminino, também enterrada debaixo do pó de todos esses séculos?
Talvez não. Talvez isso tenha se tornado o mais excitante, e o mais perigoso, segr
edo mantido vivo no submundo da Europa atual.
CAPÍTULO VI
O Legado dos Templários
A maioria dos historiadores enxerga os violentos eventos do início do século XIV com
o o crepúsculo dos templários, e portanto não procuram qualquer sinal de uma possível co
ntinuidade de sua existência. A tradição ocultista, entretanto, sempre falou de descen
dentes espirituais desses cavaleiros templários que continuam a viver em nosso mei
o hoje, e há sociedades modernas que reivindicam ser esses descendentes. Além disso,
um enorme volume de pesquisas recentes demonstrou, de um modo bastante convince
nte, que a Ordem sobreviveu e exerceu grande influência na cultura ocidental.
As implicações relacionadas a isso são profundas e amplas. Pois se eles eram, como nós e
outros pesquisadores acreditamos, colecionadores de conhecimento esotérico e alquím
ico, então a sobrevivência dos templários aponta para algum tipo de continuação de grandes
segredos, através de uma tradição oculta que pode ainda existir em nossos dias. Esses
segredos,incluindo, talvez, conhecimentos científicos dos antigos alquimistas e p
ráticas mágicas das tradições esotéricas orientais, ainda podem subsistir, mesmo em nossa
própria sociedade. Se assim é, então, sendo exemplos primordiais de um antigo sistema
de crença e prática herética, os atuais templários bem que poderiam jogar alguma luz em
nossa própria investigação. Antes porém, temos que nos convencer de que os templários, de
fato, não desapareceram.
O bom senso nos diz ser pouco provável que os muito bem organizados templários humil
demente aguardassem o momento de morrer. Para começar, nem todos os cavaleiros que
estavam na Europa foram simultaneamente reunidos naquela sexta-feira, 13. O cat
aclismo que se abateu sobre a Ordem só aconteceu na França, e mesmo lá alguns cavaleir
os puderam escapar. Em outros países aconteceu, digamos, uma escala variável de pers
eguição e supressão. Na Inglaterra, por exemplo, Eduardo II recusou-se a acreditar que
os templários fossem culpados daquilo que eram acusados, chegando mesmo a debater
, acaloradamente, essa questão com o Papa.E recusou-se, terminantemente, a tortura
r os cavaleiros.
Na Alemanha, aconteceu uma cena profundamente hilariante. Hugo de Gumbach Mestre
Templário da Alemanha,fez uma entrada teatral no conselho convocado pelo Arcebisp
o de Metz. Portando armadura completa e acompanhado de vinte cavaleiros, endurec
idos pelas batalhas e escolhidos a dedo, ele proclamou que o Papa era o mal e de
veria ser deposto; que a Ordem era inocente e, a propósito, seus homens estavam di
spostos a resistir ao julgamento, entrando em combate, se necessário, contra o con
selho reunido... Depois de um silêncio aterrador, entretanto, o assunto foi esquec
ido, e os cavaleiros viveram para afirmar sua inocência em algum outro dia.
Em Aragon e Castela, os bispos conduziram o julgamento dos templários apenas para,
no final, inocentá-los. Contudo, não importando quão suave ou liberal os juízes desejas
sem ser com os cavaleiros, nenhum deles poderia simplesmente ignorar o comando d
o Papa para dissolver a Ordem em 1312. No entanto, mesmo na França, relativamente
poucos foram executados. Muitos foram libertados depois de se retratarem, e em o
utros países eles simplesmente passaram a usar outro nome, ou uniram-se a outras o
rdens já existentes, como a dos Cavaleiros Teutônicos.
Portanto, as evidências históricas de que os Cavaleiros Templários foram efetivamente
exterminados são poucas e frágeis. E é claro que eles teriam, a partir dali, que agir
secretamente se quisessem se reagrupar e formar a irmandade novamente. Na verdad
e, o modo como eles foram destruídos virtualmente garante isso.
Lembremos que os monges-guerreiros de baixa patente eram bem diferentes daqueles
do círculo secreto, cavaleiros de elite que não só dirigiam a organização, como também era
o repositório do conhecimento secreto. É muito provável que cavaleiros de ambos os níve
is resolvessem sumir e fundar seus próprios movimentos secretos, dando início a duas
organizações separadas, cada uma das quais reivindicando ser a verdadeira herdeira
dos templários.
Depois da debandada dos templários, a maior parte de suas terras foi dada a seus r
ivais, os Cavaleiros Hospitalários. Na Escócia e Inglaterra, porém, essa cessão de propr
iedades não aconteceu em larga escala, e há evidências de que as antigas propriedades
dos templários em Londres, até o ano de 1650, ainda estavam em posse das famílias de d
escendentes dos templários. Entretanto, para nós o que realmente interessava não era a
continuidade da propriedade das terras e edificações, mas sim a perpetuação do conhecim
ento esotérico dos templários.
Embora não haja qualquer evidência conclusiva de que os Templários fossem os idealizad
ores que estavam por trás da rede secreta de alquimistas, sabemos que o 'círculo sec
reto' interessava-se por alquimia, bastando observar a proximidade dos centros a
lquímicos, como Alet-les-Bains, em relação às edificações templárias. E, como já vimos, os
mistas, assim como os templários, tinham uma veneração especial por João Batista.
Recentemente vários comentadores apresentaram indicações bastante convincentes de que
a maçonaria originou-se do templarismo: tanto The Temple and the Lodge, de Michael
Baigent e Richard Leigh, como Born in Blood, do escritor-pesquisador histórico am
ericano John J. Robinson, chegaram a essa conclusão, embora abordem a questão sob po
ntos de vista completamente diferentes.
Os primeiros rastreiam a continuidade dos templários pela Escócia, enquanto que o últi
mo procura a trilha partindo do ritual maçônico atual até suas origens, chegando, então,
aos templários. Eles, portanto, na verdade se complementam, proporcionando um qua
dro mais completo da ligação entre essas duas grandes organizações ocultas.
O único ponto importante em que há discordância entre Baigent/Leigh e Robinson, é que os
primeiros acreditam que a maçonaria desenvolveu-se a partir dos templários isolados
na Escócia, e que então seguiram para a Inglaterra, em 1603, com a ascensão do rei es
cocês James VI ao trono inglês e a subseqüente afluência de aristocracia escocesa. Por o
utro lado, Robinson acredita que os templários tornaram-se maçons na Inglaterra. Ele
argumenta, de modo persuasivo, que os templários estavam por trás da Revolta dos Ca
mponeses de 1381, os quais atacaram especificamente propriedades da Igreja e dos
Cavaleiros Hospitalários, os dois maiores inimigos dos templários, enquanto evitava
m a todo custo danificar as construções pertencentes a estes.
Para a maioria das pessoas a maçonaria é um clube de velhos esquisitos, uma rede exc
lusiva que garante para seus sócios influência e contatos lucrativos. Seu lado ritua
lístico é visto como algo ridículo, com irmãos dobrando a barra de suas calças e fazendo j
uramentos arcaicos e sem sentido. Pode ser que as coisas tenham mudado, mas em s
eus primórdios a maçonaria era uma escola de mistério, com iniciações solenes que utilizav
am antigas tradições ocultas especificamente projetadas para levar o iniciado a um e
stado de elevação transcendental, além de aproximá-lo mais de seus irmãos.
Originalmente, era uma organização oculta, cujo interesse explícito era a transmissão de
conhecimentos sagrados. Muito do que hoje chamaríamos de ciência tomou forma naquel
a fraternidade, como podemos reconhecer através da formação da Sociedade Real, na Ingl
aterra, em 1662, cujo objetivo era, e continua a ser, obter e divulgar o conheci
mento científico. A Sociedade foi a institucionalização oficial da Academia Invisível' d
os maçons, que foi formada em 1645. (E da mesma forma que na época de Leonardo, o co
nhecimento oculto e o científico, longe de serem antitéticos, eram vistos como o mes
mo e único.)
Embora não haja dúvida de que muitos dos maçons atuais realizam suas iniciações solenement
e e com alto senso de espiritualidade, o quadro geral é o de uma organização que esque
ceu de seu significado original. Na verdade, a corrente maçônica majoritária atualment
e é a do Grande Oriente, que é relativamente recente, tendo sido instituída no dia de
João Batista (24 junho), em 1717. Antes dessa época, a maçonaria era uma sociedade sec
reta verdadeira, mas o aparecimento do Grande Oriente marcou uma era em que,na v
erdade, ela já havia se tornado um renomado clube para jantares, uma organização semi-
pública, pois já não tinha nenhum segredo para guardar.
Então, quão antiga é a maçonaria? A referência mais antiga conhecida é de 1641, mas se há r
mente uma ligação com os templários, essa data deve remontar bastante no tempo. John J
. Robinson cita evidências da existência de lojas maçônicas em 1380, e um tratado alquímic
o que data de1450 utiliza explicitamente o termo 'Maçonaria'.
Os próprios maçons afirmam terem se originado das guildas de pedreiros da Inglaterra
medieval, que desenvolvera gestos secretos e códigos de reconhecimento porque est
avam em posse do conhecimento da geometria sagrada, que era potencialmente perig
osa. Entretanto, como demonstra a meticulosa e extensa pesquisa de John J. Robin
son, e contra todas as expectativas, essas guildas eram notáveis justamente por su
a inexistência na Inglaterra medieval. Outro mito maçônico é a afirmação de que os pedreir
s herdaram seu conhecimento secreto diretamente dos construtores do fabuloso Tem
plo de Salomão. Nesse caso, por que então eles ignorariam um outro grupo que tinha óbv
ias ligações com aquele templo? Eles parecem estar evitando a ligação mais óbvia de todas:
o grupo cujo nome completo era a Ordem dos Cavaleiros Pobres de Cristo e o Temp
lo de Salomão, em outras palavras, os templários.
Antes mesmo da formação do Grande Oriente os maçons já difundiam o mesmo tipo de informação
sobre geometria sagrada, alquimia e hermetismo, que os templários. Por exemplo, o
s primeiros maçons interessavam-se bastante pela alquimia: um tratado alquímico da m
etade do século XV, refere-se aos maçons como 'os obreiros da alquimia', e um dos pr
imeiros maçons iniciados foi registrado como Elias Ashmole (iniciado em 1646), fun
dador do Ashmolean Museum em Oxford, e que era alquimista, hermético e rosa-cruz .
(Ashmole foi também a primeira pessoa a escrever sobre os templários de maneira pos
itiva desde a supressão destes).
A jóia da coroa da maçonaria é a curiosa e constrangedora construção chamada Capela de Ros
slyn, alguns poucos quilômetros fora de Edimburgo. Vista do exterior parece estar
dilapidada a ponto de sugerir um iminente e completo desmoronamento, mas o inter
ior é extremamente robusto como, realmente, teria que ser, porque a Capela de Ross
lyn é o centro reconhecido para os maçons de hoje e de muitas organizações templárias.
Construída entre 1450 e 1480 por Sir William St Clair, proprietário das terras de Ro
sslyn, originalmente pretendia-se que essa fosse apenas a capela de sua senhora,
de um prédio muito maior que, supostamente, baseava-se no projeto do Templo de Sa
lomão, e que no, entanto, nunca foi construído. Os St Clairs (mais tarde passaram a
se chamar Sinclair) eram os protetores hereditários da maçonaria na Escócia, do século X
V em diante: com certeza, não é coincidência que antes dessa data eles tivessem exerci
do a mesma função para os templários.
Desde seu início, a Ordem dos Templários esteve ligada aos Sinclairs e a Rosslyn: o
fundador, Grão-Mestre Hugues de Payens, se casou com Catherine St Clair. Descenden
tes de vikings, os St Clairs/Sinclairs são uma das famílias mais intrigantes e notávei
s da história, e eram proeminentes na Escócia e França do século XI. (O sobrenome deles
veio do mártir escocês Saint Clair, que fora decapitado.) Hugues e Catherine percorr
eram as propriedades de St Clair, próximas a Rosslyn, e estabeleceram o primeiro c
omando dos templários na Escócia, que se tornou a sede destes.
(Como já vimos,Pierre Plantard adotou o nome 'de St Clair', ligando-se assim, deli
beradamente, ao ramo francês dessa antiga família. Vários comentadores gostariam de sa
ber se ele foi autorizado a usar essa designação, mas há pelo menos uma boa razão para q
ue ele assine seu nome dessa forma).
Os cavaleiros fizeram da Escócia um de seus principais refúgios, após a supressão oficia
l, talvez porque fosse a terra de Robert Bruce, que se auto-excomungou para que
assim o Papa não tivesse nenhum poder sobre a Escócia. E Baigent e Leigh argumentam
de modo bastante persuasivo que a frota perdida dos templários foi parar nas costa
s escocesas.
Um dos eventos históricos mais críticos das ilhas britânicas foi, sem dúvida, a Batalha
de Bannockburn, que aconteceu em 24 de junho (Dia de João Batista), em 1314, quand
o as forças de Robert Bruce bateram as forças inglesas de modo decisivo. Porém, todos
os indícios mostram que eles contaram com uma ajuda formidável na forma de um contin
gente de cavaleiros templários que à última hora lhes salvou a pele. Com certeza, é niss
o que acreditam os atuais cavaleiros templários da Escócia (que afirmam ser descende
ntes dos cavaleiros fugitivos), pois comemoram na Capela de Rosslyn a Batalha de
Bannockburn, no dia de seu aniversário, como sendo a ocasião em que 'o Véu foi tirado
da fronte dos cavaleiros templários'. Um dos cavaleiros que haviam lutado ao lado
de Robert Bruce em Bannockburn foi (outro) Sir William St Clair, que morreu em
1330 e foi enterrado em Rosslyn, em uma típica tumba templária.
A Capela de Rosslyn contém algumas anomalias aparentes em sua decoração. Cada pedaço do
interior da capela está coberto com símbolos esculpidos, e o prédio foi projetado em c
oncordância com os mais altos ideais da geometria sagrada. Grande parte da capela é
inegavelmente maçônica. Ostenta o 'Pilar Aprendiz', um paralelo explícito com o mito m
açônico de Hiram Abiff, e o aprendiz está retratado representando aquele que é conhecido
como 'o Filho da Viúva', um termo maçônico de significado extremo (que é igualmente imp
ortante para essa investigação). O lintel próximo a esse pilar traz a seguinte inscrição:
Vinho é forte, o Rei é mais forte, as mulheres são as mais fortes, mas a VERDA
DE conquista a tudo e a todos.
Embora grande parte do simbolismo de Rosslyn seja claramente maçônico, no mínimo uma m
esma quantidade é definitivamente templária: o desenho do chão da capela baseia-se na
cruz dos templários, e há esculturas que incluem a famosa imagem de dois-homens-em-u
m-cavalo representada em seu selo. E um antigo bosque ali perto foi plantado de
modo a formar o desenho da cruz dos templários.
Tudo isso é muito curioso, pois, de acordo com os clássicos textos históricos, a maçonar
ia data de não antes que 1500, e, após 1312, os templários não eram mais uma força a ser l
evada em consideração. Assim, a imagem na capela, que data de cerca de 1460, deveria
ser muito recente para a primeira e muito tardia para os últimos.
Há, porém, muito simbolismo na Capela de Rosslyn que não é classicamente nem maçônico, nem
emplário. Há uma pletora de imaginário pagão e até mesmo algo pertencente ao islamismo. E
no lado de fora da capela há uma representação esculpida de Hermes, uma clara insinuação a
o hermetismo, enquanto o interior é adornado com mais de cem representações do Homem V
erde, o deus ce1ta pagão da vegetação.Tim Wallace-Murphy, em sua história oficial sobre
a Capela de Rosslyn, associa o Homem Verde com o agonizante-e-ressurrecto deus b
abilônico Tammuz.Todos esses deuses tinham atributos semelhantes e foram descritos
, com freqüência, como tendo as faces verdes, embora o deus descrito com mais freqüência
desse modo seja Osíris, o cônjuge de Ísis.
Quando visitamos Niven Sinclair, um dos membros dessa ilustre família, ficamos com
pletamente atordoados com a evidência de que os Sinclairs não só tinham sido templários,
como também pagãos. Niven, que é um pesquisador apaixonado da história de Rosslyn e dos
Sinclairs, nos passou algumas de suas próprias e bastante esclarecedoras percepções s
obre o que teria acontecido com o conhecimento perdido dos templários. Disse que e
sse estava presente, todo codificado, no prédio da Capela de Rosslyn, para que pud
esse ser passado para as gerações futuras. Em suas palavras, 'o conde William St Cla
ir construiu a capela em uma época em que os livros podiam ser queimados ou proibi
dos. Ele quis deixar uma mensagem para a posteridade' .
Conforme Niven se soltava mais ao falar sobre esse assunto deixava gravada em no
ssas mentes a grande engenhosidade de seu antepassado, Sir William, ao criar ess
e livro escrito na rocha. Nas palavras dele, 'Se você for à Catedral de St Paul, você
pode conhecê-la em uma única visita. Se você for à Capela de Rosslyn, você não pode. Acredi
o que o número de vezes que lá estive chega às centenas, e toda vez que vou encontro a
lgo novo. Essa é a beleza do lugar' .
Rosslyn está longe de ser uma típica capela cristã. Na verdade, Niven chegou a ponto d
e dizer 'que se afirmava que o conde William construiu a Capela de Rosslyn para
a "maior glória de Deus". Se assim foi, é de se notar como são poucos os símbolos cristãos
que você encontra lá dentro'.
Na Idade Média, os Sinclairs patrocinaram várias celebrações pagãs e propiciaram um refúgio
seguro para os ciganos (de quem se dizia estar entre os últimos a manter vivo o cu
lto às Deusas na Europa). E, o que é impressionante, muitas autoridades acreditam qu
e na cripta da Capela de Rosslyn costumava haver uma Madona Negra.
Viríamos a descobrir, um tanto chocados, que os templários não eram de modo algum os e
ducados cavaleiros cristãos da imaginação popular. A imagem que haviam criado para ele
s mesmos, como uma capa, havia sido muito bem construída. Eles, porém, pretendiam de
ixar pistas sobre suas preocupações verdadeiras, obviamente 'para aqueles que têm olho
s que vêem'. A decoração da Capela de Rosslyn era apenas mais um exemplo dessas mensag
ens codificadas porém reveladoras.
O amor que os templários tinham pelo conhecimento e sua preservação pode ser vislumbra
do pelo fato de também encontrarmos na capela Rosslyn o 'Manuscrito Rosslyn-Hay' q
ue é a obra escocesa mais antiga em prosa. Esse manuscrito é uma tradução dos textos de
René d'Anjou sobre o cavalheirismo e a arte de governar, e em sua capa há as seguint
es palavras inscritas: 'JHESUS [sic] - MARIA - JOHANNES (Jesus, Maria, João). Como
Andrew Sinclair coloca em seu livro The Sword and the Grail (1992):
A inclusão do nome de São João junto ao de Jesus e Maria é incomum, mas ele era venera
do pelo gnósticos e templários... Outra notável característica da capa é o uso de Agnus De
i, o Cordeiro de Deus... Na Capela de Rosslyn, também está esculpido o Brasão dosTemplár
ios com o Cordeiro de Deus.
O Conde William e René d' Anjou eram bastante próximos, e ambos eram membros da Orde
m do Velocino de Ouro, um grupo cuja declarada intenção era restabelecer os antigos
ideais de cavalheirismo e fraternidade dos templários.
Está claro que os templários sobreviveram na Escócia e continuaram trabalhando ab
ertamente, não só em Rosslyn como também em vários outros locais. Em 1329, no entanto, s
ua vida encantada estava, uma vez mais, sob ameaça, quando a excomunhão de Robert Br
uce foi retirada e a sombra da autoridade do Papa voltou a assombrá-los. Em um det
erminado momento chegou a haver a possibilidade real de uma cruzada ser lançada co
ntra a Escócia, e embora tal não ocorresse, os templários escoceses acharam mais prude
nte permanecer em segredo, como muitos de seus irmãos europeus; e foi, afirma-se,
a partir daí que a maçonaria deu seus primeiros passos.
Certos ramos da maçonaria sempre afirmaram ser descendentes dos templários e originári
as da Escócia, mas poucos historiadores, mesmo os de dentro da própria maçonaria, os l
evaram a sério. Esses maçons 'templaristas' podem realmente ter herdado segredos gen
uínos dos templários, ao menos em parte. Seu conhecimento, que inclui a sabedoria he
rmética e alquimia, além da geometria sagrada, ainda é considerado uma preciosidade, t
alvez porque nos remetam a assuntos bastante diferentes dos do mundo atual.
Foi um escocês, Andrew Michael Ramsay, quem entregou aos maçons de Paris, em 1737, a
quilo que ficou conhecido como a 'Oração de Ramsay' . Cavaleiro da Ordem de São Lázaro e
tutor do Belo Príncipe Charlie, 'Chevalier' Ramsay fez questão de frisar que a frat
ernidade descendia dos Cavaleiros das Cruzadas, o que era uma referência quase exp
lícita aos templários. Era do seu interesse usar essa terminologia oblíqua, pois os te
mplários ainda eram um anátema para a sociedade francesa. A 'Oração' também afirmava, de u
m modo controverso, que os maçons originaram-se das escolas de mistério das deusas D
iana, Minerva e Ísis.
Durante anos a Oração atraiu apenas desprezo, não apenas em razão da declaração sobre sua o
igem na adoração às Deusas, mas também porque Chevalier Ramsay afirmou que a Ordem não des
cendia dos pedreiros medievais.As autoridades no assunto, referindo-se a essa de
claração, disseram que como isso era obviamente inverídico colocava todo o resto da Or
ação em dúvida. Como já vimos, porém, recentes pesquisas demonstraram que não havia guildas
de pedreiros na Inglaterra medieval, portanto talvez pudéssemos dar ao velho e bom
Chevalier ao menos o benefício da dúvida, nessa e em outras declarações suas.
Pela primeira vez, através da Oração, de 1737, sugeriu-se publicamente que a maçonaria d
escendia dos templários; haveria alguma conexão entre isso e o fato de, pouco mais d
e um ano depois, o Papa ter acusado a toda a fraternidade dos maçons? É espantoso qu
e, mesmo nessa época já recente, a Inquisição tenha prendido e torturado maçons como um re
sultado direto da bula papal.
Depois das quase explícitas insinuações de Ramsay sobre a conexão com os templários, veio à
tona uma declaração ainda mais afirmativa e impositiva. Em um dos episódios mais contr
oversos da história dos maçons, Karl Gotthelf, o Barão von Hund und Alten-Grotkau, afi
rmou que fora iniciado em uma Ordem Maçônica do Templo em Paris, em 1743, que lhe ha
viam transmitido a 'verdadeira' história da maçonaria, e que fora devidamente autori
zado a abrir lojas maçônicas pela linha de autoridade competente, que ele chamou de
'Estrita Observância Templária', conhecida na Alemanha como Os Irmãos de João Batista, o
que é bastante significativo. A verdadeira história que havia sido transmitida a el
e incluía a informação de que alguns dos cavaleiros templários, quando a ordem foi supri
mida, haviam fugido para a Escócia e lá se estabeleceram. O Barão von Hund possuía uma l
ista que ele afirmava ser os nomes dos Grão-Mestres que sucederam Jacques de Molay
no movimento secreto dos templários após sua supressão.
As lojas de Von Hund alcançaram quase que imediatamente um êxito enorme. Infelizment
e, porém, ele não fez nenhum amigo entre os historiadores, que o denunciaram como um
rematado charlatão e classificaram sua versão da 'verdadeira história' como uma compl
eta tolice. Também desdenharam sua lista de supostos Grão-Mestres.A razão principal pa
ra esse desprezo generalizado era que suas afirmações estavam baseadas nas palavras
de fontes anônimas, que ele chamou de 'Superiores Desconhecidos', e portanto, pare
cia que ele, simplesmente, havia forjado tudo. Na verdade, fontes anônimas são ocorrên
cias freqüentes nos grupos ocultos, como podemos testemunhar pessoalmente, e recen
temente alguns nomes bastante críveis foram atribuídos aos Superiores Desconhecidos,
e então pode ser que, afinal de contas, ele tenha dito a verdade sobre seus conta
tos.
É bastante significativo que os historiadores nunca tenham sido capazes de produzi
r uma lista definitiva dos Grão-Mestres dos templários históricos, em virtude da natur
eza incompleta dos arquivos disponíveis. A lista de von Hund, porém, é idêntica à que apar
ece nos Dossiês secretos do Monastério de Sion. A pesquisa de Baigent, Leigh e Linco
ln os convenceu de que a lista do Monastério é a mais precisa das que estão disponíveis.
Essa lista resiste ao escrutínio acadêmico e pode ser que esteja correta, embora, d
evido à falta de registros, não possamos estar totalmente seguros. No entanto, embor
a a lista do Monastério possa, sejamos cínicos, ter sido fabricada na década de 50, é im
provável que von Hund também pudesse ter inventado algo semelhante por volta de 1750
, quando não havia nenhum registro disponível e nenhuma pesquisa histórica sobre os te
mplários. No mínimo, esse elo revela uma tradição compatível entre a Estrita Observância Te
plária e o Monastério.
Embora muitas palavras tenham sido escritas sobre as declarações de von Hund e de su
a organização, há uma curiosa ausência de especulação sobre qual poderia ter sido sua motiv
subjacente. Na verdade, a Estrita Observância era basicamente uma rede a/química, e
ele era primordialmente um alquimista. Estaria Von Hund dando continuidade à tradição
dos templários?
Qualquer que seja a verdade por trás daquela organização e das preocupações de von Hund, a
maçonaria templarista logo se estabeleceu e rapidamente se tornaria um formato maçôni
co majoritário em ambos os lados do Atlântico. (Tem sido colocada a idéia de que os te
mplários efetivamente se 'esconderam' nos altos graus da maçonaria.) A maçonaria templ
arista também teve influência em um outro ramo que se tornaria importante para nossa
própria linha de pesquisa: a Maçonaria Ritual Escocesa, especialmente o formato con
hecido como o Ritual Escocês Purificado, que é particularmente forte na França.
Os maçons franceses têm uma curiosa lenda sobre 'Maitre Jacques', uma figura mítica qu
e era o protetor da guilda dos pedreiros franceses na Idade Média. Ele era, de aco
rdo com a história, um dos mestres-de-obras que trabalharam no Templo de Salomão.Após
a morte de Hiram Abiff, ele deixou a Palestina e, junto com treze artífices, embar
cou para Marselha. Os partidários de seu grande inimigo, o mestre-de-obras Pai Sou
bise, queriam matá-lo. Ele, então, se escondeu na caverna de Sainte-Baume, a mesma q
ue tempos depois seria ocupada por Maria Madalena.Tudo em vão: foi traído e assassin
ado. Os maçons ainda realizam uma peregrinação ao local todo dia 22 de julho.
Outro forte candidato ao papel de herdeiro do conhecimento esotérico dos templários é
o movimento rosa-cruz. Já tendo sido muito ridicularizado pelos historiadores como
uma invenção do início do século XVII, hoje é crescente o reconhecimento de que eles, ver
dadeiramente, têm raízes nas tradições do Renascimento. 'O Rosa-crucianismo' como ideal,
ou atitude, se não mesmo como a própria representação, é reconhecido como uma das forças m
trizes da Renascença, um ideal simbolizado por Leonardo. Como escreveu Dame France
s Yates:
Seria possível que uma pessoa com a personalidade como a de Leonardo fosse capaz
de coordenar seus estudos matemáticos e mecânicos com seu trabalho artístico se sua p
erspectiva não fosse a de um Mago?
Com certeza, Leonardo viveu em um período em que grandes movimentos místicos e intel
ectuais agiam como um ímã para aqueles que estavam famintos por conhecimento e poder
. Devido à hostilidade da Igreja, esses movimentos tiveram que permanecer secretos
, mas os três ramos principais que floresceram em segredo eram a alquimia, o herme
tismo e o gnosticismo. O hermetismo, que forneceu um impulso importante para o i
luminismo Renascentista/Rosa-cruciano, e o gnosticismo, que deu origem aos cátaros
, são dois desdobramentos de uma mesma idéia cosmológica. Em uma hierarquia de 'mundos
' ou 'esferas', para usar uma terminologia que lhes era própria, ou 'planos' e 'di
mensões' como se diz hoje em dia, o mundo da matéria é o mais baixo. E o mais alto é Deu
s. O homem, um ser que já fora divino, foi 'aprisionado' em seu corpo material, ma
s ainda possui uma centelha divina. (Um ditado hermético muito citado era 'Sabias
que não és isso, mas que sois deuses?') É possível, na verdade isso é um dever do Homem, t
entar unir-se com o Divino. Os gnósticos expressaram tal tentativa em termos relig
iosos (vendo a união com o Divino como uma salvação), enquanto os herméticos colocaram i
sso em termos mágicos; a idéia básica, no entanto, é a mesma. É impossível demarcar uma lin
a clara entre o gnosticismo e o hermetismo, da mesma maneira que é impossível separa
r claramente religião e magia.
Além disso, tanto o gnosticismo quanto o hermetismo, se rastreados de volta no tem
po, nos levam à mesma época e ao mesmo lugar: a efervescência de idéias que aconteceu no
Egito, especialmente em Alexandria, nos séculos I e II a.C. Hermetismo e gnostici
smo, um enorme caldo de cultura de idéias religiosas e filosóficas que se utilizaram
das crenças de diversas culturas, como a do antigo Egito, grega, persa, judia, até
mesmo as religiões do Extremo Oriente, com o intuito de criar idéias que sustentem a
nossa cultura como um todo. (A relação íntima entre gnosticismo e hermetismo é demonstr
ada pelo fato de que os 'Evangelhos Gnósticos' encontrados no Hag Hammadi incluíam t
ratados que continham diálogos de Hermes Trismegistus.)
A cosmologia do Pistis Sophia, o Evangelho Gnóstico no qual Maria Madalena tem um
papel fundamental, não difere em sua essência da dos magos do Renascimento, como Mar
silio Ficino, Cornelius Agrippa ou Robert Fludd. As mesmas idéias, e a mesma cultu
ra, época e lugar deram origem à alquimia. Embora também tenha se utilizado de muitos
conceitos mais antigos, a alquimia era, no sentido em que é compreendida hoje em d
ia, um produto do Egito do início da era cristã. As raízes da alquimia, e seus paralel
os com o hermetismo e o gnosticismo, são explorados em The Origins of Alchemy in G
raeco-Roman Egypt (1970), de Jack Lindsay.
Não é difícil de entender o apelo do gnosticismo, embora essa opção não fosse fácil, dada a
se colocada na responsabilidade pessoal pelas próprias ações. E é óbvia a ameaça que isso r
presentava para a Igreja de Roma. Como HermesTrismegistus, supõem-se, escreveu: 'O
h! Que milagre é o Homem!', uma frase que abarca a idéia de que a humanidade possui
a centelha divina. Nem os gnósticos nem os herméticos se prostravam perante Deus. Ao
contrário dos católicos, eles não viam a si mesmos como criaturas humildes e más que es
tavam destinadas a ir para o purgatório, se não mesmo para o próprio inferno. Reconhec
iam automaticamente a centelha divina que lhes fora concedida, o que hoje chamaría
mos de 'auto-estima' ou confiança, o ingrediente mágico do processo para o pleno alc
ance do potencial de cada um. Essa era a senha do Renascimento, e a intrepidez a
que isso induz. pode ser percebido com a súbita expansão do mundo através da circunav
egação e dos descobrimentos. Pior ainda, no que tangia à Igreja, essa noção de potencial i
ndividual para a divindade implicava que as mulheres eram tão boas quanto os homen
s, ao menos espiritualmente. Mulheres gnósticas sempre tiveram voz, e até mesmo ofic
ializaram cerimônias religiosas: essa era um das principais ameaças que o gnosticism
o colocava para a Igreja Católica. Além disso, a idéia do estado essencialmente divino
do ser humano não estava de acordo com a idéia cristã de 'pecado original', a idéia de
que todos os homens e mulheres nascem pecadores em razão da Queda de Adão e Eva (esp
ecialmente da última). Pois todas as crianças são fruto do 'vergonhoso' ato sexual, es
sa idéia que uniu mulheres e crianças, de modo inextricável, em uma espécie de conspiração
erpétua contra os homens puros e um Deus vingativo. Gnósticos e herméticos, em geral,
não tinham nenhuma noção de 'pecado original'.
Cada indivíduo era encorajado a explorar mundos externos e internos por si mesmo,
experienciando a gnoses, o conhecimento do Divino. Essa ênfase na salvação individual
era totalmente antitética à insistência da Igreja de que apenas os padres eram os cana
is através dos quais Deus poderia comunicar-se com a humanidade. A idéia gnóstica, de
uma linha direta com Deus, representava uma ameaça real à própria existência da Igreja.
Sem um sacerdote para guiar o rebanho, que chance a Igreja teria de manter seu c
ontrole? Do mesmo modo que a alquimia, seria prudente manter o gnosticismo e o h
ermetismo escondidos dos olhos da Igreja.
A combinação de ciência proibida e filosofia anatematizada significava que os pratican
tes dessas crenças haviam ultrapassado a linha do aceitável e, portanto, associar-se
em uma rede secreta era algo inevitável. Muitas dessas pessoas (e os alquimistas
do Renascimento incluíam as mulheres) também tinham crenças incomuns sobre assuntos co
mo arquitetura e matemática, além de apreciarem idéias teológicas excepcionalmente pouco
ortodoxas. Essas pessoas eram perigosas, duplamente perigosas em razão do poder d
o segredo, que tem o costume de intensificar a heterodoxia. Uma das principais m
anifestações dessa heresia era o movimento dos rosa-cruzes.
O termo 'rosa-cruz' data do início do século XVII, mas certamente foi instituído para
descrever um movimento que naquela época já estava bem estabelecido. Seu primeiro gr
ande desabrochar, como o de tantos outros movimentos significativos, ocorreu dur
ante o Renascimento. Na verdade não é exagero dizer que o rosa-crucianismo foi o Ren
ascimento.
A segunda metade do século XV viu explodir o interesse pelo hermetismo e pelas ciênc
ias ocultas. Muito pouco da informação envolvida era realmente nova, embora, é claro,h
ouvesse influências e personalidades que eram contemporâneas, e essa época assistiu a
uma vontade sem precedentes de explorar tudo o que estivesse relacionado com o h
ermetismo. E de repente, tornou-se um assunto para debates intelectuais que iam
além dos guetos secretos que, até então, haviam sido seus guardiães. Se dependesse apena
s dos entusiastas renascentistas, o hermetismo teria deixado de ser 'oculto'.
Esse surto de fascinação com tudo que fosse referente ao hermetismo tinha seu foco n
a corte dos Mediei, em Florença (uma influência poderosa para Leonardo da Vinci e pa
ra muitos outros grandes pensadores). Sob o patronato dos Medicis, especialmente
de Cosimo, o Ancião (1389-1464) e de seu neto Lorenzo, o Magnífico (1449-1492), foi
realizada a primeira grande síntese das diversas e discrepantes idéias ocultistas.
Cosimo não só enviou emissários para que procurassem tomos legendários como o Corpus Her
meticum, supostamente escrito pelo próprio Hermes Trismegistus, como também patrocin
ou sua tradução. A corte dos Medici era um salão para os famosos, e quem sabe notórios,
pensadores do ocultismo como Marsilio Ficino (1433-1499), tradutor do Corpus Her
meticum, e Pico della Mirandola (1463-1494). A maior contribuição deste foi introduz
ir a teoria e a prática cabalística nesse cadinho de cultura de idéias ousadas.
Mirandola, talvez em decorrência de um falso senso de segurança dado por seu proteto
r aristocrático, era muito franco ao falar de suas idéias ocultas, e logo seus livro
s foram colocados no Index Papal, enquanto ele mesmo estava sendo ameaçado pelo Pa
pa Inocêncio VIII. Durante um certo tempo parecia que Mirandola iria tomar o mesmo
rumo de todos aqueles que se opunham ao Vaticano, mas algo estranho aconteceu.
O novo papa, Alexandre VI, pertencente à família dos Borgia, retirou, misteriosament
e, todas as acusações e ameaças contra ele, chegando mesmo a escrever-lhe uma carta pe
ssoal de apoio. Mas por quê? Talvez uma pista seja o fato de que esse Papa tenha d
ecorado seu aposento particular no Vaticano com murais que retratavam temas do a
ntigo Egito, incluindo a deusa Ísis.
Historiadores contemporâneos tendem a desprezar o poder e a influência do ocultismo.
Se chegam a discutir o assunto é apenas para sublinhar, através da comparação, o triunf
o do Iluminismo, quando todas essas 'tolas superstições' foram rejeitadas por qualqu
er um que fosse minimamente racional. O ocultismo, porém, manteve-se vivo, e na ve
rdade tornou-se a principal influência do Renascimento. Essa fascinação pelo ocultismo
não era um sintoma da abertura para novas idéias, mas, na verdade, a sua causa.
Dame Frances Yates retratou a história do verdadeiro papel do ocultismo no progres
so do Renascimento em uma série de livros. Como ela demonstra, a nova filosofia oc
ultista se difundiu da Itália para o resto da Europa, culminando com a campanha eu
ropéia do grande pregador hermético, Giordano Bruno (1548-1600).Viajando extensament
e através de países como a Alemanha e Inglaterra, ele pregou o retorno ao que era, e
ssencialmente, a antiga religião egípcia, e era caracteristicamente franco sobre aqu
ilo que considerava como o mal da corrente principal do cristianismo.
O hermetismo, como já vimos, teria sido fundado pelo próprio 'Hermes Três Vezes Grande
' através do fragmento da Tábua de Esmeralda, na qual estão inscritos muitos segredos
profundos. Embora poucos herméticos realmente acreditassem nesse mito, acreditavam
na continuidade do significado do panteão egípcio. Mas enquanto a maioria dos herméti
cos do Renascimento acreditavam que seus segredos teriam vindo do Egito dos Faraós
da época de Moisés, eles na verdade vinham de um período bem mais próximo à época de Jesus
As raízes de suas idéias podem ser localizadas no Egito dos três primeiros séculos: par
a além desse período temos que levar em conta a influência de várias outras culturas. Es
tudos recentes reconheceram, porém, que, considerando que as gerações anteriores tendi
am a acentuar a influência da filosofia grega, as idéias que remontam à antiga religião
dos egípcios tiveram mais influência no desenvolvimento das idéias herméticas do que se
pensava.
Os herméticos reconheceram que, embora a Grécia antiga tivesse muito a oferecer ao h
omem de idéias, era o Egito, acima de tudo, que retinha as chaves do conhecimento
que eles buscavam. Também perceberam que esse conhecimento não estava simplesmente e
sperando para ser colhido: o sistema egípcio havia sido codificado em uma escola d
e mistério, e os segredos exigiam estudo dedicado, a fim de obtê-los através de árduas f
ases de iniciação progressiva.
Giordano Bruno chegou à Inglaterra em 1583 e rapidamente travou contato com lumina
res como Sir Philip Sydney, autor de Arcadia, entre outras obras. Sydney, que er
a um estudioso do grande ocultista inglês Dr. John Dee (1527-1606), era uma das fi
guras principais desse mundo sombrio, e Bruno dedicou-lhe duas de suas obras dur
ante o período em que esteve na Inglaterra. E há a possibilidade de uma outra figura
dos círculos interligados da sociedade elizabetiana e ocultista ter estado presen
te ao encontro de Bruno e Sydney, William Shakespeare. (O teatro de Shakespeare,
Global Theatre, em Londres foi construído segundo os princípios herméticos da geometr
ia sagrada, e talvez sua última peça, A Tempestade, tenha sido sobre Dr. Dee, e inco
rpore uma grande variedade de conceitos rosa-cruzes; pelo menos é o que alguns afi
rmam.)
A figura de Bruno se equipara à de Lutero ou Calvino, mas seu nome raramente é menci
onado na história que é ensinada nas escolas. Assim como esses grandes nomes da refo
rma, Bruno não tinha nenhum compromisso nem poderia se reconciliar com os costumes
de sua época. Mas ao contrário daqueles, Bruno não estava pregando uma versão aceitável d
o cristianismo, e em razão disso seus dias estavam contados. Some-se a isso sua próp
ria natureza bombástica e não é nada difícil predizer qual seria seu destino. Bruno foi
queimado na fogueira em 1600, em Roma, depois de ter sido traído e denunciado à Inqu
isição por um discípulo desencantado.
Bruno fundou sua própria sociedade secreta, a Giordanista, na Alemanha. Pouco se c
onhece sobre ela, mas sabe-se que essa sociedade tornou-se uma das maiores influên
cias para o desenvolvimento do movimento dos rosa-cruzes na Europa. Igual reconh
ecimento deveria ser dado ao Dr.John Dee, um verdadeiro feiticeiro gaulês. Homem d
e muitas faces, ele não só era o astrólogo e conselheiro de Elizabete I, como era também
um mestre da espionagem, além de alquimista e necromante. (E algo que não é muito con
hecido é que o cognome do Dr. Dee como espião era '007'!).
Dessas raízes o rosa-crucianismo cresceu, sendo um dos movimentos mais misteriosos
da história. Sua existência tornou-se pública quando dois tratados anônimos, o Fama Fra
ternitatis, ou Uma Revelação da Fraternidade da Nobre Ordem da Rosa Cruz, e a Confes
sio Fraternitatis, ou O Credo da Louvável Fraternidade da Mais que Honorável Ordem d
a Rosa Cruz, circulou pela Alemanha em 1614 e 1615.39 Essas publicações anunciaram a
existência de uma fraternidade secreta de adeptos da magia, os rosa-cruzes, cujo
nome era uma homenagem a seu fundador mítico Christian Rosenkreutz (Cristiano Rosa
Cruz).
Esse herói supostamente viajou pelo Egito e Terra Santa coletando segredos e conhe
cimento que então transmitiu para uma nova geração de adeptos. Mas se sua vida era inc
omum, sua morte e enterro foram ainda mais estranhos. Dizem que Rosenkreutz tinh
a 106 anos quando morreu, em 1484, sendo enterrado em um local secreto que era m
antido iluminado por um 'Sol interno' . Também dizia-se que seu corpo era 'indestr
utível', tendo permanecido natural, sem se decompor (um fenômeno que parece ocorrer
a um número surpreendente de defuntos, que na maioria dos casos, contudo, são de san
tos católicos).
Esses Manifestos Rosa-cruzes, como logo ficaram conhecidas suas publicações, não repro
duziam nenhum de seus segredos, mas ao anunciarem a existência da fraternidade tam
bém insinuavam que qualquer um que quisesse saber mais deveria entrar em contato c
om eles. Provavelmente, isso era algum tipo de teste de iniciativa pois não era fo
rnecido nenhum endereço para correspondência. Essa abordagem era o suficiente para q
ue os Manifestos sofressem o desprezo de todos os historiadores da corrente prin
cipal de pensamento, que os desdenhavam como algum tipo esquisito de trapaça. Mas,
como mostrou Frances Yates, aqueles que escreviam os Manifestos revelavam ter u
m conhecimento profundo e genuíno da sabedoria hermética e alquímica. Era bastante sig
nificativo que eles considerassem a alquimia como uma disciplina espiritual e não
estivessem interessados na fabricação de ouro, o que consideravam algo 'ímpio e amaldiço
ado' .
Qualquer que seja a verdade sobre as origens dos rosa-cruzes, eles influenciaram
um grande número de renomados pensadores, como Robert Fludd (1574-1637) e Sir Isa
ac Newton.Até mesmo, inesperadamente, o afamado racionalista Francis Bacon era, em
essência, um rosa-cruz. E isso fazia sentido, pois o movimento dos rosa-cruzes er
a uma síntese de todos os conceitos herméticos e ocultistas: a única coisa verdadeiram
ente nova no rosa-crucianismo era o nome. E Frances Yates não teve nenhum temor em
dizer que Leonardo, dentre tantas pessoas, foi um dos 'primeiros rosa-cruz' .
Como já vimos, o nome de Leonardo aparece na lista dos Grão-Mestres do Monastério de S
ion, mas ele não poderia dizer que era um rosa-cruz pois o termo ainda não tinha sid
o cunhado em sua época. Outros daquela lista, porém, não tiveram o mesmo problema, com
o Johann Valentin Andrea (1586-1654), o dramaturgo e poeta alemão que também havia s
ido pastor luterano. Os Dossiês secretos afirmam que ele foi um dos dirigentes do
Monastério, de 1637 a 1654, porém, acredita-se muito mais que ele teria escrito os M
anifestos Rosa-cruzes, ou pelo menos que estava por trás destes.
Andrea, com certeza, escreveu o terceiro Manifesto, O Casamento Alquímico de Chris
tian Rosenkreutz, em 1616, muitos anos antes da época em que dizem que ele se torn
ou chefe supremo do Monastério. Talvez seu papel como líder rosa-cruz é que lhe tenha
assegurado o posto no Monastério. Realmente, parece que o tema rosa-cruz era o traço
comum que ligava todos os (supostos) quatro Grão-Mestres do século XVII. Então, de ce
rto modo, isso aumenta a credibilidade da lista, pois foi apenas nos anos setent
a que Frances Yates confirmou a existência e influência do legado dos rosa-cruzes.
A sucessão de rosa-cruzes entre os Grão-Mestres do Monastério começou, até onde sabemos, c
om Robert Fludd, o alquimista inglês cujo período no cargo durou de 1595 a 1637. Flu
dd afirmou que havia tentado encontrar os rosa-cruzes, com idéias de se unir a ele
s, após ter lido os Manifestos, porém, não os achou. Não obstante, escreveu bastante sob
re o assunto e incorporou idéias dos Manifestos em suas próprias obras, que eram mui
to influentes, como Utriusque cosmi historia (História dos Dois Mundos) (1617). (O
comentador ocultista Lewis Spence notou que Robert Fludd, ao escrever na década d
e 1630, utiliza 'um idioma com fortes traços maçônicos', e que ele também organizou 'sua
sociedade' em graus.) Depois de Fludd veio o próprio Andrea, que foi Grão-Mestre até
sua morte em 1654, e foi sucedido por Robert Boyle, o químico de Oxford.
Até onde pode ser averiguado, Boyle nunca mencionou a palavra 'rosa-cruz' em seus
textos, mas eles denotam bem mais do que uma certa familiaridade com os conteúdos
dos Manifestos. E quando fundou o que viria a se tornar a Sociedade Real, sob o
nome de O Colégio Invisível, essa era uma referência irônica à descrição comum que os rosa-
zes faziam de si mesmos como uma sociedade 'Invisível' .
Chegamos então a Isaac Newton, que afirmam ter sido Grão-Mestre do Monastério de 1691
a 1727. Bastante conhecido como praticante de alquimia, ele também possuía uma cópia d
a tradução inglesa dos Manifestos, embora haja evidências de que via na história de Rose
nkreutz apenas um mito, que era como deveria ser visto. (Comentadores esotéricos,
ao menos, sempre afirmaram que nunca se pretendeu que fossem vistos como uma ver
dade literal.) Apenas recentemente reconheceu-se a total extensão do envolvimento
de Newton com o ocultismo: mais de 10 por cento de seus livros eram tratados alq
uímicos. Talvez ainda mais impressionante, ele também desenhou a planta baixa do Tem
plo de Salomão.
O rosa-crucianismo tinha também uma forte conexão com o florescer da maçonaria. Os doi
s maçons ingleses mais conhecidos, Elias Ashmole e o alquimista Sir Robert Moray,
estavam ligados ao movimento dos rosa-cruzes. Ashmole, em particular, era um ros
a-cruz conhecido, enquanto Moray, de acordo com Frances Yates, 'fez, provavelmen
te, mais do que qualquer outro indivíduo para fomentar a fundação da Sociedade Real'.5
0 Existiam, também, várias referências na antiga literatura maçônica que explicitamente vi
nculavam 'os Irmãos da Rosa Cruz' com os maçons, embora também parecessem indicar que
eles estavam relacionados, mas continuavam a ser sociedades distintas.
A interconexão entre rosa-cruzes, maçonaria, hermetismo e alquimia, prévia e esmeradam
ente reconstituída por historiadores como FrancesYates, tem sido dramaticamente co
nfirmada nos anos recentes pela descoberta de uma coleção de documentos que ilustram
até que ponto tais movimentos e assuntos estavam integrados. Em 1984, Joy Hancox,
professor de música de Manchester, como resultado de suas pesquisas sobre a históri
a da casa onde ela morou, deparou-se com uma coleção de documentos, principalmente d
iagramas e desenhos geométricos, que tinham sido reunidos por John Byrom (1691-176
3) e que haviam sido guardados por seus descendentes que não tinham idéia de seu sig
nificado. Esses documentos, cerca de 500, relacionam-se principalmente com a geo
metria e a arquitetura sagradas, e simbolismo cabalístico, maçônico, hermético e alquímico
.
A importância da 'Coleção Byrom' está na luz que ela joga nas inter-relações desses assunto
, e nos indivíduos, a nata dos círculos intelectual e científico da época, que se ocupav
am deles. Byrom, uma das principais figuras do movimento jacobino que intentava
o restabelecimento dos Stuarts no trono inglês, era membro da Sociedade Real e da
maçonaria. Fazia parte do 'Clube da Cabala', conhecido como o Clube do Sol, que se
reunia em um edifício no Adro de St Paul, que também era a casa de uma das quatro l
ojas do Grande Oriente da Maçonaria Inglesa. Seu diário revela que ele havia entrado
em contato com os principais intelectuais da época.
A obra incorporada em sua coleção foi extraída de todas as sociedades e indivíduos sobre
os quais vimos discutindo, inclusive os rosa-cruzes, John Dee (de quem Byrom er
a aparentado, via casamento), Robert Fludd, Robert Boyle e até mesmo os cavaleiros
templários.
A coleção inclui diagramas que detalham a geometria sagrada de numerosas construções de
diversos períodos, mostrando, então, a continuidade do conhecimento dos princípios sub
jacentes a essas construções. Por exemplo, um dos diagramas mostra que o projeto da
capela de meados do século XV, do Kings College (Faculdade dos Reis), Cambridge, '
uma das últimas grandes estruturas góticas construídas nesse país', baseava-se na cabalíst
ica Árvore da Vida (uma conclusão a que já havia chegado Nigel Pennick, uma autoridade
em simbolismo esotérico). O projeto da capela foi aparentemente derivado da cated
ral de Albi, no Languedoc, datada do século XIV; anteriormente um dos centros cátaro
s. A coleção também inclui um diagrama da Igreja do Templo, em Londres, como também de o
utras construções templárias, mostrando mais uma vez que todas essas construções faziam pa
rte de uma tradição contínua e que os membros das fraternidades rosa-cruz/maçônica do sécul
XVIII estavam conscientes disso. A coleção de Byrom também contém material relativo ao
Templo de Salomão e à Arca da Aliança.
Se, como parece ser o caso, os maçons fossem os descendentes dos templários, seria p
ossível que os rosa-cruzes também pertencessem à mesma linhagem? O próprio nome 'Rosa Cr
uz' alude fortemente a esses cavaleiros, cujo emblema era uma cruz vermelha, ou
roseate. No livro Chemical Wedding de Andrea, a cruz vermelha sobre um fundo bra
nco é um tema recorrente, e sua obra, de um modo geral, tem fortes conotações das histór
ias do Graal e, portanto, dos templários. E a presença de material dos templários nos
documentos predominantemente rosa-cruzes de Byrom indicam que essa fraternidade
e a dos maçons compartilhavam uma origem comum.
Entretanto, enquanto os maçons eram, e ainda são, uma organização definida, com membros
e locais conhecidos onde se reúnem, os rosa-cruzes normalmente eram vistos como se
ndo mais esquivos, a ponto de a palavra 'rosa-cruz' ser usada como o significado
de um ideal ao invés de descrever uma sociedade. Realmente, os próprios Manifestos
se referem aos rosa-cruzes como uma 'sociedade invisível'. No entanto, a primeira
sociedade rosa-cruz 'concreta e visível' foi a Ordem da Dourada e Rósea Cruz, fundad
a na Alemanha, em 1710, por Sigmund Richter, cujo propósito primário era a pesquisa
alquímica. Porém, passados sessenta anos, essa Ordem foi transformada na Loja Maçônica d
a Estrita Observância Templária, embora ainda mantivesse sua natureza alquímica. Sob e
ssa forma teve muitos membros influentes, inclusive Franz Anton Mesmer (1734-181
5), o descobridor do magnetismo animal (embora não seja, como freqüentemente é declara
do, o pioneiro do hipnotismo). O próprio fato de uma sociedade rosa-cruz transform
ar-se tão prontamente em uma Loja de Estrita Observância Templária revela a herança comu
m entre elas.
Após 1750, a história torna-se desesperadamente confusa. Onde antes havia claras dis
tinções entre maçons, rosa-cruzes e as organizações que afirmavam ser originárias dos templ
os, de repente todos esses grupos tornam-se tão intimamente entrelaçados que parecem
ser o mesmo e único. Por exemplo, em alguns tipos de maçonaria, os iniciados usavam
o título de 'Cavaleiro Templário' e de 'Rosa Cruz', e é impossível determinar se isso o
corria porque havia uma linhagem genuína de descendência ou simplesmente porque esse
s títulos lhes soavam grandiosos. Estima-se que foram acrescentados mais de 800 gr
aus e rituais à maçonaria entre 1700 e 1800.
As tentativas de localizar uma linhagem direta de sucessão dos templários na maçonaria
e no rosa-crucianismo logo mostraram-se aflitivas, em razão da enorme proliferação de
ritos e sistemas maçônicos. Isso é particularmente confuso porque em muitos casos é imp
ossível estabelecer quais sistemas eram inovações do século XVIII e quais eram genuiname
nte mais antigos.
Entretanto, é possível encontrar uma linha comum entre certos sistemas maçônicos que não h
aviam sido admitidos ou foram rejeitados pela corrente principal da maçonaria. Ess
as são variações da maçonaria 'ocultista', e todas são originárias da Estrita Observância T
lária, do Barão von Hund. O desenvolvimento dessas aconteceu principalmente na França
(veja Apêndice). A chave para se entender isso é um sistema maçônico conhecido como o Ri
tual Escocês Purificado, que se dedicava especificamente a estudos sobre o ocultis
mo e coloca bastante ênfase em suas origens templárias. Também é essa forma de maçonaria q
ue tem as ligações mais íntimas com as sociedades rosa-cruzes.
O uso da palavra 'Templária' tornara-se um problema para essa escola maçônica. Havia a
trito entre seus membros e a corrente maçônica majoritária, que oficialmente rejeitava
as afirmações de uma origem templária, irritando-se, particularmente, com a declaração de
von Hund de que 'Todo maçom é um templário'. Mais preocupante ainda eram as suspeitas
que eles atraíram das autoridades. Havia um grande número de boatos que diziam que
os templários tinham um plano secreto para se vingar da monarquia francesa e do pa
pado, em razão da supressão de sua Ordem e da execução de Jacques de Molay. Por causa di
sso, realizou-se uma Convenção de Maçons 'Templaristas' em Lyon, em 1778, no qual o Ri
tual Escocês Purificado foi criado, com uma ordem interna chamada Chevalier Bienfa
isant de la Cité Sainte. No entanto, esse era apenas um outro nome para 'Templária'
.
Uma influência importante na Convenção de Lyon, e do subseqüente esoterismo francês,foi o
filósofo ocultista Louis Claude de Saint-Martin (17431804). Embora fosse provavelm
ente celibatário, sua filosofia centrava-se na reverência ao Feminino na forma de So
phia, a quem considerou como 'a forma feminina do Grande Arquiteto'. O 'martinis
mo' era a filosofia ocultista mais influente, não apenas naqueles tipos de maçonaria
ocultista, como também nas sociedades rosa-cruzes da França do século XIX, que serão di
scutidas de forma completa no próximo capítulo.
Alguns anos depois da reunião de Lyon, em 1782, outra grande conferência maçônica, dessa
feita com representantes de todos os grupos maçônicos da Europa, aconteceu em Wilhe
hnsbad, em Hessen, sob a presidência do Duque de Brunswick. Seu propósito era cicatr
izar as profundas divisões internas da maçonaria, resolvendo de uma vez por todas as
querelas entre a maçonaria e os cavaleiros templários. O resultado representou uma
humilhação para o Barão von Hund, que viera para discutir o caso dos templários, e isso
importava efetivamente no fim da Estrita Observância Templária. Entretanto, os templ
aristas ganharam uma batalha: a convenção, concordou em aceitar o Ritual Escocês Purif
icado, que era exatamente a mesma coisa que a Estrita Observância Templária com um o
utro nome.
Também importantes para a maçonaria ocultista eram os sistemas conhecidos como 'Ritu
ais Egípcios', que iriam assumir grande relevância em nossa investigação. Todos eles, co
ntudo, derivavam da Estrita Observância Templária tão amada por von Hund, e estão, porta
nto, muito próximos do Ritual Escocês Purificado. Ao contrário da imagem habitual da m
açonaria, eles davam especial ênfase no Feminino (alguns tipos incluíam lojas feminina
s ativas).Todos os maçons veneravam o misterioso 'filho da viúva'. Nos Rituais Egípcio
s, a 'viúva' era Ísis.
O Monastério de Sion, com sua própria e conhecida ênfase em Ísis, afirma que a origem di
sso foi o círculo interno da Ordem dos Templários, e naturalmente desenvolveu-se ao
longo dos anos, granjeando outras associações esotéricas, algumas delas bastante notávei
s.Uma das principais influências parece ter sido Jacques-Étienne Marconis de Negre (
1795-1865), que fundou um dos Rituais Egípcios da Maçonaria ocultista, em 1838, conh
ecido como o 'Ritual de Memphis' . Essa, afirma-se, também era fruto da tradição 'temp
larista' de von Hund.
Marconis de Negre esboçou um elaborado 'princípio mitológico' para sua organização, fazend
o a habitual declaração grandiosa de que o ritual remontava à Antigüidade, para um grupo
chamado Sociedade dos Irmãos da Rosa-cruz do Leste. Esta, por sua vez, havia sido
fundada por um sacerdote da antiga religião egípcia chamado Ormus, que se converteu
ao cristianismo pelas mãos de São Marcos, e cujos discípulos incluíam vários essênios.
O mito de Ormus é fruto de quatro influências: rosa-cruz, egípcia, esoterismo hebreu,
como a cabala (acredita-se que os essênios eram cabalistas), e cristã, de um tipo he
rético, talvez.
O que realmente nos interessou sobre esse mito foi que, como sabem os leitores d
e The Holy Blood and the Holy Grail, o Monastério de Sion tomou o nome 'Ormus' com
o seu 'subtítulo'. E iríamos aprender que a história de Ormus antes aparecera conectad
a à Ordem do Dourado e Róseo, quando esta se tornou a Loja da Estrita Observância Temp
lária, em 1770. Mas, como veremos, a história por trás disso tem implicações mais amplas,
no que se refere aos tópicos desta investigação.
Talvez não seja surpreendente que existam sociedades que afirmem ser as sucessoras
oficiais dos templários. A maioria pode ser facilmente descartada, embora a Antig
a Ordem Militar do Templo de Jerusalém seja um caso a ser levado em consideração. Está a
tualmente baseada em Portugal, e seus membros declaram se concentrar no trabalho
da caridade e pesquisa histórica, embora haja um pequeno grupo que opera sob o ev
ocativo nome de Sion na Suíça. Suas origens, porém, em sua forma ressurrecta, estavam
na França.
A Antiga Ordem Militar do Templo de Jerusalém foi fundada em 1804, por um doutor c
om o sonoro nome de Bernard Raymond Fabré-Palaprat, que afirmava ter obtido seu po
der através da Tbe Charter of Transmission of Larmenius (A Escritura de Transmissão
de Larmenius), mais conhecida simplesmente como a Escritura de Larmenius. Se iss
o é verdade, teríamos que percorrer um longo caminho até concluir que Fabré-Palaprat rea
lmente pertencia à verdadeira linhagem dos templários, pois essa Escritura deve ter
sido escrita em 1324 por Johannes Mareus Larmenius, que tinha sido designado Grão-
Mestre pelo próprio Jacques de Molay. O manuscrito supostamente porta as assinatur
as de todos os Grão-Mestres subseqüentes da Ordem, o que é significativo porque, depoi
s da execução de Molay, supunha-se que não haveria mais nenhum outro.
Já era de se esperar que os historiadores caracterizassem a Escritura como sendo u
ma falsificação. Até mesmo escritores mais liberais como Baigent e Leigh concordam que
isso foi uma brincadeira. Como de costume, porém, os críticos nunca chegaram realme
nte a vê-la, baseando suas objeções em uma tradução do original, do século XIX. (O document
foi escrito em latim, que foi transcrito em um código baseado na geometria da cru
z dos templários.) Uma das razões de ter sido considerado uma falsificação é que o latim é
uito bom para a época, pois o latim medieval era notoriamente coloquial. O que aco
nteceu na verdade foi que o tradutor corrigiu a gramática. Os mesmos críticos também d
esconsideraram a lista de declarações dos Grão-Mestres porque o formato das palavras e
m cada uma é exatamente o mesmo, algo bastante improvável de acontecer em um lapso d
e tempo tão grande quanto entre 1324 a 1804. Mais uma vez, a razão é simples: o transc
ritor as padronizou, no original elas eram todas diferentes. Assim, as duas objeções
principais à Escritura de Larmenius não tinham qualquer consistência.
Outra razão da Escritura ter sido criticada é a de que contém uma fulminação contra 'os de
sertores templários escoceses' que, Larmenius assevera, deveriam ser 'destruídos pel
a excomunhão' (junto com os Cavaleiros Hospitalários). Pressupondo que esses deserto
res eram os maçons da Estrita Observância, do Barão von Hund, os historiadores tomam i
sso como se fosse a prova de que a Escritura era uma fraude, porque acreditam qu
e o barão tinha inventado a 'transmissão escocesa' por volta de 1750. Mas se ele est
ava contando a verdade sobre as reais origens dos maçons, um quadro radicalmente d
iferente se faz presente.
Na realidade, a Antiga Ordem Militar do Templo afirma que a Escritura já tinha pel
o menos cem anos de existência antes de Fabré-Palaprat torná-la pública, quando Filipe,
Duque de Orléans, e próximo regente da França, usou essa declaração pública como a razão pa
convocar uma assembléia dos membros do Templo, em Versalhes. Se isso é verdadeiro, e
ntão esse evento já torna clara a continuidade da existência dos templários na Europa. (
Foi o mesmo Duque de Orléans quem introduziu Chevalier Ramsay na Ordem de São Lázaro.)
Além da Escritura de Larmenius, Fabré-Palaprat possuía outro documento importante, que
também foi desconsiderado sem ter sido visto pela maioria dos comentadores. Esse
documento era o Levitikon, uma versão do Evangelho de João com ruidosos desdobrament
os gnósticos, e que fora encontrado em um sebo de livros. Mais uma vez, o document
o parece estar bem escrito demais, mas se for autêntico, lança alguma luz sobre as r
azões verdadeiras de se manter grande parte do conhecimento gnóstico em segredo. Poi
s o Levitikon, uma versão do Evangelho de São João datado do século XI, conta uma história
muito diferente da que se encontra no livro de mesmo nome do Novo Testamento.
Fabré-Palaprat usou o Levitikon como base para fundar a Igreja Joanina Neo-Templária
, no ano de 1828, em Paris, onde seus próprios discípulos, no devido tempo, foram in
iciados. Dez anos após sua morte, Sir William Sydney Smith, o alto dirigente da maço
naria e herói das Guerras Napoleônicas, assumiu o poder.
O Levitikon, que havia sido traduzido do latim para o grego, consiste de duas pa
rtes. A primeira contém as doutrinas religiosas ensinadas ao iniciado, inclusive r
ituais relativos aos nove graus da Ordem dos Templários. Descreve a templária 'Igrej
a de João' e explica o fato deles se auto-proclamarem 'joaninos', ou 'cristãos da or
igem'.
A segunda parte é igual ao Evangelho de João, com exceção de algumas significativas omis
sões. Os capítulos 20 e 21, os dois últimos do Evangelho, estão perdidos. Isso elimina t
ambém qualquer idéia de milagre advindo das histórias de água transmudando-se em vinho,
os pães e os peixes, e a ressurreição de Lázaro. E certas referências a São Pedro foram sup
imidas, inclusive a histórica frase de Jesus, 'Sobre essa pedra edificarei minha i
greja'.
Se isso, porém, é um tanto confuso, o Levitikon também contém material surpreendente, ch
ocante até: Jesus é apresentado como tendo sido um iniciado nos mistérios de Osíris, o p
rincipal deus egípcio daquela época.
Osíris era o cônjuge de sua irmã, a bela deusa Ísis, que governava o amor, a cura e a ma
gia, entre muitos outros atributos. (Tal relação incestuosa pode parecer chocante ho
je em dia, mas era parte da tradição faraônica, e teria parecido perfeitamente normal
a qualquer adorador do Egito antigo.) Seu irmão, Set, queria que Ísis fosse dele e t
ramou a morte de Osíris. Ele foi pego de surpresa pelos companheiros de Set, que r
etalhou seu corpo e espalhou seus restos mortais. Terrivelmente angustiada, Ísis v
agou pelo mundo à procura dos restos mortais de Osíris, tendo sido ajudada em sua bu
sca pela deusa Nepthys, esposa de Set, que desaprovou o crime de seu marido. As
duas deusas encontraram todos os pedaços de Osíris, menos o falo. Reagrupando-os, Ísis
utilizou um falo artificial com o qual ela magicamente concebeu a criança Horus.
Em algumas versões da história ela então teve um caso com Set, embora seus motivos não f
iquem muito claros, mas parece que o elemento vingança estava presente nesse relac
ionamento: Horus, então já um rapaz, enfurece-se com essa união, pois a vê como uma traição
memória de seu pai Osíris. Assim, ele trava um duelo com Set. Como resultado do duel
o, Horus perde um olho, mas mata Set. Horus é então curado, e o Olho de Horus torna-
se o talismã mágico favorito do Egito.
O Levitikon, além de fazer a extraordinária afirmação de que Jesus era um iniciado nos m
istérios de Osíris, também declara que ele havia passado esse conhecimento esotérico a s
eu discípulo João, 'o Amado'. Afirma, também, que Paulo e os outros Apóstolos, embora te
nham fundado a Igreja Cristã, o fizeram sem qualquer conhecimento dos verdadeiros
ensinamentos de Jesus. Eles não faziam parte do círculo secreto de Jesus. De acordo
com Fabré-Palaprat, eram os ensinamentos secretos, como o que fora transmitido a J
oão, o Amado, que haviam sido preservados e provavelmente influenciado os cavaleir
os templários.
O Levitikon registra uma tradição que foi supostamente passada de geração para geração de u
a seita, ou Igreja, de joaninos cristãos no Oriente Médio. Eles se julgam os herdeir
os dos 'ensinamentos secretos' e da verdadeira história de Jesus, a quem se refere
m como 'Yeshu, o Ungido'. Na verdade, se existe tal seita, sua versão da história de
Jesus é tão pouco ortodoxa que perguntaríamos como é que eles se auto-intitulavam 'cris
tãos'. Para eles, não só Jesus era um iniciado nos mistérios de Osíris, como também era ape
as um homem, e não o Filho de Deus.Além disso, ele era filho ilegítimo de Maria, e não h
avia nenhuma sugestão de um rebento milagrosamente nascido de uma Virgem. Eles atr
ibuíram todas essas colocações a uma engenhosa, se não ultrajante, história de cobertura q
ue os escritores dos Evangelhos haviam inventado para obscurecer a ilegitimidade
de Jesus, e o fato de sua mãe não ter a menor idéia sobre a identidade de seu pai!
Para a seita joanina o título 'Cristo' não pertencia unicamente a Jesus: a palavra g
rega original Christos significava apenas 'Ungido', um termo que poderia ser apl
icado a muitos, inclusive reis e funcionários romanos. Por conseguinte, os líderes j
oaninos sempre usavam o título de 'Cristo'. (É bastante significativo que o Evangelh
o de Filipe, do Nag Hammadi, aplique o termo 'Cristo' a todos os iniciados no gn
osticismo).
Dizia-se que o grupo era uma seita gnóstica que preservara vários segredos esotéricos,
incluindo o da cabala. E também conceberam um plano a fim de se tornarem uma orga
nização secreta que iria (nas palavras do escritor Éliphas Lévi, do século XIX) 'ser o rep
ositório exclusivo dos grandes segredos religiosos e sociais, que faria Reis e Pon
tífices, sem se expor à corrupção do poder', i.e., uma organização misteriosa que não estar
sujeita aos caprichos e incertezas das mudanças políticas e sociais. Seu instrumento
de ação seriam os cavaleiros templários, e Hugues de Payens e os outros cavaleiros fu
ndadores eram, na realidade, iniciados no joanismo. Os próprios templários, porém, for
am corrompidos pelo amor ao poder e à riqueza, e em conseqüência foram suprimidos. O r
ei francês e o Papa não podiam deixar que a verdadeira natureza do perigo representa
do pelos templários se tornasse conhecida; assim, eles se valeram das acusações de ido
latria, heresia e imoralidade. Antes de sua execução, Jacques de Molay, mais uma vez
nas palavras de Lévi, 'organizou e instituiu a maçonaria ocultista' .
Se isso é verdade, essa afirmação por si só modifica completamente a versão aceita pela hi
stória. Ela fornece uma ligação direta e autorizada entre um determinado tipo de maçonar
ia e os antigos templários. E, portanto, poder-se-ia concluir que esses maçons em pa
rticular tinham algo a nos ensinar sobre os conhecimentos dos templários.
Como já vimos, Éliphas Lévi dedica uma seção do seu History of Magic à tradição joanina, co
e descrita no Levitikon. Lemos esse texto pela primeira vez na tradução para o inglês
de A. E. Waite. Entretanto, encontramos uma outra tradução daquele trecho em particu
lar na obra Morais and Dogma of the Ancient and Accepted Scottish Rite of Freema
nsonry, de Alben Pike, o erudito estudioso da maçonaria e Grão-Mestre do Antigo e Ac
eito Ritual Escocês na América (1871). Essa versão tem muitas diferenças. Qual delas, po
rém, é autêntica?
Comparamos com a edição francesa original da obra de Lévi e descobrimos que Pike tinha
feito certos acréscimos ou correções, presumivelmente baseando-se em seu próprio entend
imento sobre essa tradição. Por exemplo, ele reproduz a última parte daquela do título d
a obra citada acima como 'Maçonaria Oculta, Hermética ou Escocesa'. Ele também emenda
as palavras de Lévi no que se refere a uma ligação entre o joanismo, templário e os rosa
-cruzes. Lévi escreve (na tradução fiel de A.E. Waite):
Os sucessores dos antigos rosa-cruzes modificaram pouco a pouco os métodos auste
ros e hierárquicos de seus precursores na iniciação, tendo se tornado uma seita mística
e abraçado zelosamente as mágicas doutrinas templárias, o que resultou em considerarem
a si mesmos como os exclusivos depositários [sic] dos segredos anunciados no Evan
gelho de acordo com São João.
Pike, de modo inacreditável, substitui a parte grifada por:
...e tendo se unido a muitos dos templários, o dogma dos dois mescla-se...

As mudanças de Pike são significativas porque, considerando que Lévi era um observador
e comentador do mundo oculto e maçônico, e de certa forma um intruso, Pike, ao cont
rário, era alguém de dentro, alguém que fazia parte daquilo. Ele decidiu retificar a v
ersão de Lévi, de modo que, em vez de falar sobre os rosa-cruzes que adotavam 'doutr
inas dos templários', Pike na verdade os está fundindo com o grupo dos templários sobr
eviventes.
Mas a correção mais significativa de Pike é algo completamente novo. Depois da frase s
obre a instigação de Jacques de Molay do 'Maçonaria Ocultista, Hermética ou Escocesa', P
ike acrescenta que essa Ordem:
Adotou São João, o Evangelista, como um de seus protetores, associando-se a
ele, a fim de não despertar as suspeitas de Roma. São João Batista...
Isso é curioso, para dizer o mínimo. Visto que tanto João, o Evangelista, quanto João, o
Batista, são reconhecidos santos católicos, por que a reverência a um seria necessária
para 'encobrir' a reverência outorgada ao outro? Contudo, Pike, o mais erudito dos
estudiosos da maçonaria, não inseriria essa informação nas passagens reproduzidas da ob
ra de uma outra pessoa se não fosse por uma boa razão. Precisávamos, com certeza, nos
aprofundar mais nessa questão do joanismo com a tradição maçônica.
Como vimos no capítulo anterior, A. E. Waite havia se referido a uma 'tradição joanina
', que teria influenciado as lendas do Graal, e que no princípio pareciam ser apen
as mistificação. Agora, porém, as coisas estavam começando a fazer sentido: era óbvio que
a 'tradição joanina' estava de alguma forma conectada ou com João, o Evangelista, ou c
om João, o Batista.
Esses aspectos subjacentes não representavam algo de novo para esta investigação. A 't
radição joanina', claramente ligada a São João, também é um ponto central para o Monastério
Sion. Para eles, como já percebemos, João Batista é superior.
Como já vimos no Capítulo Dois, o Monastério afirma que Godefroi de Bouillon represent
ava uma misteriosa 'Igreja de João', em outras palavras, os Irmãos de Ormus, e como
resultado daquele encontro decidiu formar um 'governo secreto'. Os cavaleiros te
mplários e o Monastério de Sion foram criados como parte desse plano geral. Não poderíam
os enfatizar em demasia que, pelo menos de acordo com essa história, tanto o Monas
tério quanto os templários foram criados em conformidade com os ideais dessa misteri
osa Igreja de João. À parte alguns detalhes secundários, essa história é idêntica àquela do
vitikon, e, no mínimo, isso estabelece que os atuais Monastério e Ordem dos Templários
são parte de uma mesma tradição.
O conceito dos templários como uma organização secreta com autoridade para proclamar e
destronar os reis, se compara àquela dos Cavaleiros Templários do Graal do Parzival
, de Wolfram von Eschenbach; com certeza há evidências de que os templários assim o af
irmavam. O problema é que a maioria dessas exóticas declarações de uma longa genealogia
histórica só remonta no tempo até as organizações neo-templárias do século XIX. No entanto,
as podem ter alguma solidez se puderem ser confirmadas por evidências independente
s que unam seus movimentos com organizações que definitivamente existiam há muitos sécul
os, como a ligação entre rosa-cruzes e maçonaria.
Outra dificuldade é que duas afirmações diferentes estão sendo feitas: uma é a de que cert
as formas de maçonaria descendem diretamente dos templários.A outra é a de que os própri
os templários eram uma continuação de uma tradição herética mais antiga, que era anterior à
a de Jesus. Infelizmente, certificar a primeira não significa automaticamente corr
oborar a segunda.
A ênfase, porém, em uma versão idiossincrática do Evangelho de João é provocante, embora pa
eça haver um pouco de confusão entre João, o Evangelista, e João, o Batista. A declaração d
Albert Pike de que os maçons adotaram o Batista apenas para encobrir sua secreta
veneração a João, o Evangelista é, como vimos, um total absurdo. Por que eles esconderia
m sua reverência a qualquer um dos santos, quando ambos eram perfeitamente aceitos
pela Igreja? Pike realmente conseguiu chamar atenção para os dois Santos João, amealh
ando para ambos uma aura de mistério e intriga. Talvez fosse exatamente essa sua i
ntenção. Em outro lugar A. E. Waite cita textos maçônicos sobre a maçonaria joanina, que a
firma estar conectada com um cristianismo joanino centrado na figura do Batista
e que o considera como 'o único e verdadeiro profeta'.
Como já vimos, João Batista era o santo protetor dos cavaleiros templários e dos maçons.
Realmente, o Grande Oriente da Inglaterra foi fundado no dia 24 junho, dia de J
oão Batista. E o chão de todo templo maçônico contém duas linhas paralelas: uma representa
os discípulos de João, o Evangelista (outro nome para João, o Amado), enquanto a outr
a linha representa os do Batista.Ambos os Joãos são de suma importância para a fratern
idade, embora seja o mais velho quem tem precedência. Além disso, o juramento maçônico é p
ara os 'sagrados Santos João'. Os maçons de hoje, como eles mesmos admitem, não têm nenh
uma idéia do porquê de os dois Joãos serem tão venerados. Existe a possibilidade de que
os dois personagens bíblicos foram, durante anos, confundidos, e que o termo 'joan
ismo' , visto como significando os discípulos do Amado, possa na verdade estar se
referindo aos do Batista. Mas se é o João mais jovem ou mais velho, ou ambos, que er
am reverenciados pelos maçons, há um nome que se distingue por sua ausência nas lojas:
outro senão o próprio Jesus que não aparece em parte alguma. Supostamente isso decorr
e do fato de os maçons não serem uma organização propriamente cristã; basta ser um teísta p
ra poder se juntar a eles. Nesse caso, porém, por que eles deviam submissão aos cris
tãos Santos João?
A idéia de que o Evangelho de João esconde segredos enigmáticos, ou que haja uma outra
versão deste, é recorrente ao longo desta investigação. Afirma-se que os cátaros tinham u
ma alternativa herética, e Sir Isaac Newton era obcecado com isso. (Como Graham Ha
ncock escreve: '...a despeito de sua devoção às suas próprias crenças religiosas, ele pare
cia em alguns períodos ver em Cristo um homem especialmente talentoso... em vez de
o Filho de Deus.
Então, os maçons do Ritual Escocês e a templária 'Transmissão de Larmenius' podem muito be
m ter preservado os segredos originais dos templários, e ambos localizam as origen
s dos templários na 'seita joanina' . Embora não haja nada de abertamente joanino no
s Rituais Egípcios da Maçonaria, todos esses sistemas derivam da Estrita Observância T
emplária, do Barão von Hund. E o próprio Monastério de Sion se conecta com esses três sist
emas
Como já vimos, Pierre Plantard de Saint-Clair descreveu os objetivos da Ordem do T
emplo como sendo 'os soldados da Igreja de João e os proclamadores da primeira din
astia, o exército que obedece ao espírito de Sion'. O objetivo final desse grande pl
ano era o 'renascimento espiritual' que faria com que o 'cristianismo virasse de
cabeça para baixo'. Isso, é óbvio, não aconteceu ainda, embora nossas investigações mostre
que a revelação que poderia conduzir a um motim como esse já está à espreita, pronta a fa
zer seu dramático aparecimento no palco do mundo, talvez na forma do Monastério ou d
e correlatas escolas de mistério como os Ionistas.
Em todo caso, havíamos descoberto uma coisa ainda mais incrível: começamos com a apare
nte obsessão de Leonardo para com João Batista e então seguimos a tênue pista da possibi
lidade de o Monastério de Sion, de alguma forma, também estar envolvido com aquele s
anto. Naquela estágio não havíamos conseguido muita coisa, mas, conforme seguíamos as pi
stas dos templários aos maçons e então para os grupos ocultistas, uma conexão muito mais
persuasiva tomou forma ante nossos olhos. A heresia joanina estava por trás e emb
asava todos os diversos formatos do submundo ocultista, e é a essa tradição que o Mona
stério pertence, como eles mesmos admitem.
Embora várias e importantes perguntas ainda precisem ser respondidas, um quadro co
erente estava começando a emergir, um quadro que, de alguma forma unia João Batista
com uma tradição oculta complexamente sustentada. No entanto, isso era apenas uma pa
rte do que ainda estava por emergir como uma heresia com dois ramos de desenvolv
imento, o outro sendo a devoção secreta a uma deusa, o princípio Feminino.
Claro que este último ramo é difícil de conciliar com os formatos externos de organizações
como a dos maçons, que parecem ter uma orientação essencialmente masculina. No entant
o, os segredos por trás desses dois ramos, o Feminino e os joaninos, são bastante va
liosos, pois foram guardados, defendidos e protegidos contra qualquer ameaça, e pa
recem ter provocado uma especial hostilidade da Igreja de Roma. Isso não é surpreend
ente, pois o segundo ramo de antigos segredos esotéricos, a reverência ao princípio Fe
minino, tomou a forma de um sexo mágico transcendental, com todas as implicações relac
ionadas ao poder feminino.
CAPÍTULO VII
Sexo: O Sumo Sacramento
Antigos textos alquímicos estão, deliberadamente, repletos de um imaginário elaborado
e confuso, pois sua intenção era desencorajar o não-iniciado para que não tentasse desco
brir seus segredos. Como vimos, porém, a alquimia, em seu nível mais profundo, estav
a em busca da transformação pessoal, espiritual e sexual. Seus segredos estavam rela
cionados com as técnicas necessárias para se realizar a 'Grande Obra'. Realmente, re
conhecendo o profundo interesse da alquimia pelo imaterial e pelo sexo, C.G. Jun
g viu nela a precursora da psicanálise.
Como vimos, a 'Grande Obra' dos alquimistas era uma rara experiência capaz de tran
sformar a própria vida, embora ninguém saiba ao certo como se manifesta. No entanto,
Nicholas Flamel (suposto Grão-Mestre do Monastério de Sion), que teria alcançado essa
meta extraordinária em 17 de janeiro de 1382, em Paris, deixou bem claro que o ha
via feito na companhia de sua mulher, Perenelle. Parece que eles eram particular
mente dedicados um ao outro: ela também parece ter sido uma alquimista, muitas mul
heres eram, em segredo. Mas Flamel enfatizou sua presença naquele fatídico dia como
uma indicação da verdadeira natureza da Grande Obra? Será uma sugestão de que se trata d
e uma espécie de rito sexual?
Não há dúvida sobre a existência de pelo menos um componente sexual na prática da alquimia
, como revela o clássico texto alquímico The Crowne of Nature, citado no Alchemy, de
Johannes Fabricius:
Alva senhora, amorosamente unida a seu rubicundo marido, entrelaçados nos braços u
m do outro, no êxtase da união conjugal. Fundir e dissolver quando chegam à meta da pe
rfeição: Eles eram dois, agora tornaram-se um, como um único corpo.
Existem duas disciplinas orientais que enfatizam a transcendência religiosa e espi
ritual da sexualidade: o tantra da Índia e o Taoísmo Chinês. Ambos são antigos, e extrem
amente respeitados em suas culturas. Enfatizam o potencial de certas práticas sexu
ais para o alcance da consciência mística, regeneração física e longevidade, e união com De
s. Grande parte dessas práticas já são bastante conhecidas atualmente, mas o que não se
sabe a não ser nos grupos de iniciados é que, surpreendentemente, existe um ramo alq
uímico, tanto no tantra quanto no taoísmo. Como veremos, isso se encaixa perfeitamen
te com a verdadeira natureza da alquimia ocidental.
Por exemplo, no tantrismo, a terminologia 'química' é entendida como uma demonstração da
s práticas sexuais. Como escritor ocultista Benjamim Wa1ker diz em Man, Myth & Mag
ic:
Embora interessada de um modo ostensivo na transmutação de metais comuns em ouro,
e em recipientes, ferramentas e utensílios, instrumentos para o comércio, e com os m
ovimentos rituais do alquimista em seu local de trabalho, o lugar da verdadeira
alquimia é dentro do próprio corpo.
A ironia está em que os elementos sexuais de alquimia ocidental tem sido costumeir
amente tomados como uma metáfora para processos químicos! Como Brian Innes observa e
m seu artigo para The Unexplained, sobre a alquimia sexual do tantra e do taoísmo:
A íntima semelhança do imaginário - e das substâncias utilizadas - da alquimia em todas
essas culturas é incrível. Mas uma das principais diferenças é que a alquimia européia med
ieval parece não ter qualquer base sexual explícita.
Havia, entretanto, uma enorme diferença entre a imagem pública e os níveis de aceitabi
lidade da alquimia no Ocidente e no Oriente. Na China e na Índia a alquimia não era
uma ciência proibida, e as atitudes em relação ao sexo não eram tão neuróticas e reprimidas
quanto na Europa; então, podia-se ser mais aberto e honesto em relação ao trabalho alq
uímico.
Recentemente, a 'sexualidade sagrada' foi 'descoberta' pelo Ocidente. Em resumo,
sexualidade sagrada é a noção de que a sexualidade é o maior dos sacramentos, proporcio
nando não só alegria como também unicidade com o Divino e com o universo. O sexo é visto
como a ponte entre o céu e a terra, trazendo a liberação de uma enorme energia criati
va, além de revitalizar os amantes de um modo inigualável, até mesmo no nível celular. S
aber sobre a sexualidade sagrada significa que os antigos textos alquímicos podem,
finalmente, ser completamente entendidos no Ocidente, embora (como sempre) seja
m os pesquisadores franceses que estejam mais desejosos de explorar esse aspecto
daqueles textos. Dos poucos escritores anglo-saxãos que não se inibem com o assunto
, A.T. Mann e Jane Lyle dizem em seu livro Sacred Sexuality (1995):
É difícil colocar em dúvida que os ensinamentos alquímicos contenham mágicos segredos se
xuais que estão bem próximos do conhecimento tântrico. Em razão de sua complexidade e di
versidade, a alquimia disfarçou outros mistérios sob o manto de alegorias poéticas que
só a mente do iniciado é capaz de penetrar.
André Nataf, um dos muitos escritores franceses que tocam nesse assunto, diz: ...
o segredo que a maioria dos alquimistas perseguia era erótico... a alquimia é, simpl
esmente, a conquista do amor, a "fusão" entre o erótico e o espiritual'.
O tantrismo e o taoísmo são há muito tempo reconhecidos como os canais da tradição orienta
l para a sexualidade sagrada, mas não existe no Ocidente uma tradição desse tipo que s
eja claramente definida e facilmente determinável, a menos que fosse simplesmente
conhecida como alquimia.
O imaginário sexual dos textos alquímicos só se tornou óbvio em nossa época pós-freudiana:
Lua diz para seu cônjuge, o Sol: 'Oh! Sol, tu nada fazes sozinho se eu não estiver
presente com minha força, como um galo se desespera na ausência de uma galinha'. Exp
eriências químicas tomavam a forma de 'casamentos' ou 'cópulas', exatamente como o tra
tado de Johann Valentin Andrea que se chamava The Chemical Wedding (O Casamento
Químico).
Obviamente poderia ser que tal imaginário simplesmente significasse exatamente o q
ue dizia: uma 'cópula' sendo apenas isso, e que não havia nenhum segredo escondido d
entro do simbolismo alquímico. Porém, as palavras foram cuidadosamente escolhidas a
fim de transmitir complexas instruções, cobrindo um significado tanto sexual quanto
químico. Os textos alquímicos, essencialmente, continham lições que eram ao mesmo tempo
sobre a magia do sexo e sobre química.
Curiosamente talvez, dado o óbvio tom sexual da maior parte da tarefa, o senso his
tórico comum relativo à alquimia sempre foi o de vê-la apenas como um processo químico,
sendo todo o seu simbolismo algo meramente fantasioso. Assim foi, até que os mistéri
os do Oriente se tornassem mais amplamente conhecidos; antes disso nada existia
onde fosse possível encaixar a idéia da alquimia sexual. Hoje, porém, tal problema já não
ocorre, e esse conceito vem, rapidamente, ganhando reconhecimento.
Barbara G. Walker revela, sobre o significado subjacente da alquimia:
Alguns dos segredos se perderam, devido à preponderância do simbolismo sexual na l
iteratura alquímica. 'Cópula de Atenas e Hermes' poderia significar misturar enxofre
[sic] e mercúrio em um frasco; ou poderia significar o 'processo' sexual do alqui
mista e sua amada. As ilustrações presentes em livros alquímicos sugerem com mais freqüênc
ia o misticismo sexual.
Mercúrio ou Hermes era o herói alquímico que fertiliza o Vaso Sagrado, uma esfera em f
orma de útero ou ovo de onde nasceu o filius philosophorum.
Esse vaso pode ter sido real, um frasco de laboratório ou um recipiente; com mais
freqüência, parecia ser um símbolo místico. Dizia-se que o fruto do Diadema Real apareci
a na menstro meretricis, 'no sangue menstrual de uma puta', que poderia ser a Gr
ande Prostituta, um antigo epíteto da Deusa...
(Walker, porém, não capta o essencial ao sugerir que, durante a procura do vas herme
ticum, o Vaso de Hermes, os alquimistas o identificam com o vas spirituale, o va
so espiritual ou o útero, da Virgem Maria. Qual é a outra Maria habitualmente retrat
ada portando um vaso ou jarro? Quem é tradicionalmente mostrada usando um vestido
vermelho-sangue ou encoberta sob o próprio cabelo vermelho? Qual outra Maria está as
sociada com a idéia de prostituição e sexualidade? Mais uma vez vemos a Virgem Maria s
endo usada para disfarçar o culto secreto a Madalena.)
Atualmente com freqüência falamos em 'química sexual'; para o alquimista, entretanto,
isso tinha um significado muito mais profundo do que a idéia de atração imediata. Na r
evista esotérica francesa L'Originel, Denis Labouré, autoridade em ocultismo, discut
e a noção de alquimia 'interna' como oposta à alquimia 'metálica' e seu paralelo com o t
antrismo, mas insiste em que isso era parte de uma 'herança da tradição Ocidental' (itál
ico nosso). Ele afirma:
Se a alquimia interna é bem conhecida pelo taoísmo ou hinduísmo, restrições históricas [i
e. a Igreja] obrigaram os autores ocidentais a serem mais prudentes. Não obstante,
certos textos fazem uma insinuação clara a esse tipo de alquimia.
Ele então cita um tratado de Cesare Della Riviera, de 1605, e acrescenta:
Na Europa, a trilha desses antigos rituais [sexuais] passava pelas escolas gnós
ticas, a corrente alquímica e cabalística da Idade Média e do Renascimento, onde diver
sos textos alquímicos podem ser lidos em dois níveis diferentes, até que os encontremo
s novamente nas organizações ocultistas instituídas e estruturadas, principalmente na
Alemanha, no século XVII.
Na verdade, o uso de simbolismo 'metalúrgico' remonta ao próprio surgimento da alqui
mia em Alexandria, entre os séculos I e III. Foram encontradas, nos feitiços da magi
a egípcia, metáforas metalúrgicas para o sexo: os alquimistas simplesmente adotaram o
imaginário. Esse é um exemplo de um feitiço de amor egípcio atribuído a Hermes Trismegistu
s, datando do século I a.C., no mínimo, que se concentra na manufatura simbólica de um
a espada:
Traga-a [a espada] para mim, temperada com o sangue de Osíris, e coloque-a na mão
de Ísis... e tudo que se forja neste fogão de fogo também é soprado para dentro do coração
do fígado, no ventre e no quadril de [o nome da mulher]. Conduza-a para a casa de
[o nome do homem] e faça com que ela passe para as mãos dele o que nas mãos dela está,
para a boca dele o que na boca dela está, para o corpo dele o que no corpo dela es
tá, para a vara dele o que no útero dela está.
A alquimia praticada na rede oculta e secreta da era medieval tomou forma origin
almente no Egito, muitos séculos antes da era cristã. Ísis tinha um papel importante n
a alquimia daquele tempo. Em um tratado intitulado Isis the Prophetess to her so
n Horus (Ísis, a Profetiza de seu filho Horus), Ísis conta como obteve os segredos d
a alquimia de um 'anjo e profeta', através de sua astúcia feminina. Ela o encorajou
a alimentar a própria luxúria por ela até que não fosse mais possível contê-la; então recus
se a se entregar até que ele lhe revelasse seus segredos, uma clara referência à natur
eza sexual da iniciação alquímica. (Isso lembra a história do Papa Silvestre II e Meridi
ana, examinada no Capítulo Quatro, onde se narra como ele obteve seu conhecimento
alquímico ao ter feito sexo com aquela figura feminina arquetípica.)
Outro tratado antigo, atribuído a uma alquimista chamada Cleópatra, uma iniciada da
escola fundada pela legendária Maria, a Judia, contém um explícito imaginário sexual: 'V
eja a completude da arte na união entre noivo e noiva, tornando-se um único'. Isso é i
ncrivelmente semelhante a um texto gnóstico contemporâneo em que se lê:
Quando o macho atinge o momento supremo e a semente salta adiante, naquele mom
ento a mulher recebe a força do macho e o macho recebe a força da mulher... É em razão d
isso que o mistério da união dos corpos é praticada em segredo, pois assim a conjunção da
natureza não pode ser degradada como aconteceria se fosse vista pela multidão que me
nosprezaria o trabalho.
Os textos alquímicos antigos estão repletos de um simbolismo que indica as técnicas se
cretas da sexualidade sagrada, que, provavelmente, derivam de um equivalente egípc
io para o tantrismo e o taoísmo. A existência de uma tradição como essa é revelada no text
o conhecido como o 'Papiro Erótico de Turim' (onde hoje está guardado), que há muito é c
onsiderado como um exemplo da pornografia egípcia. Uma vez mais estamos diante de
uma típica reação equivocada do mundo ocidental. O que se julga pornográfico é, na verdade
, um ritual religioso. Alguns dos mais antigos rituais sagrados do Egito eram de
natureza sexual. Por exemplo, uma das práticas religiosas diárias do Faraó e sua cônjug
e, provavelmente, envolvia ser ele masturbado por ela. Essa prática era uma reinte
rpretação simbólica da criação do universo pelo deus Ptah, que o fez por meios semelhantes
. As imagens religiosas nos palácios e templos retratam inequivocamente esse ato,
que contudo foi julgado tão ultrajante pelos arqueólogos e historiadores que só recent
emente seu significado foi conhecido, e, mesmo assim, o assunto ainda é discutido
em tons hesitantes e apologéticos. O Ocidente ainda tem um longo caminho a percorr
er antes de conseguir apreender a aceitação total que os egípcios tinham do sexo como
um sacramento.
Essa relutância em aceitar o significado que o sexo tinha para os antigos não é um fenôm
eno novo. Para os eruditos dos séculos I e II, o assunto não representava um problem
a, mas como nota Jack Lindsay, por volta do século VII, o simbolismo sexual presen
te nos tratados alquímicos são discutidos de um modo 'evasivo e oculto' .
Assim, desde o início, a alquimia ocidental tinha um forte aspecto sexual. Devemos
então acreditar que na Idade Média essa profunda e influente tradição teria desaparecid
o completamente?
Algumas das antigas seitas gnósticas, como os carpocranianos de Alexandria, pratic
avam rituais sexuais. Não é de se surpreender que tenham sido condenados como corrom
pidos e repugnantes pelos padres da Igreja, e na ausência de registros menos hosti
s não temos como saber qual era o formato daqueles rituais.
Ao longo da história do cristianismo, as seitas 'heréticas' incorporavam uma atitude
mais libertária em relação ao sexo, mas eram invariavelmente condenadas e suprimidas.
Por exemplo, afirmou-se que os Irmãos e Irmãs de Espírito Livre, também conhecidos como
adamitas, praticavam um 'segredo sexual', desde os séculos XIII ou XIV. A filosof
ia dos adamitas foi uma influência marcante no tratado Schwester Katrei, o qual, c
omo vimos, inclui indícios de familiaridade com a descrição de Maria Madalena nos Evan
gelhos Gnósticos, e a autora parece ter pertencido àquela seita.
Outro grupo envolvido com misticismo erótico, embora não fosse conhecido como uma se
ita religiosa, eram os trovadores do sudoeste da França, os famosos cantores do cu
lto ao amor, cujos equivalentes alemães eram os minnesingers. Minne era uma mulher
idealizada ou uma deusa. O amor do cavaleiro por sua senhora reflete uma devoção a,
e uma reverência para com, o Princípio Feminino. E o conteúdo dos poemas, uma mistura
entre 'o espiritual e o carnal', pode ser visto como uma série de insinuações levemen
te veladas à sexualidade sagrada. Até mesmo a acadêmica Bárbara Newman, ao sumariar essa
tradição, não pôde escapar de utilizar o saboroso idioma da sexualidade sagrada ao desc
revê-la como:
... um jogo erótico com uma desconcertante variedade de opções: a pessoa poderia tor
nar-se a noiva de um Deus ou o amante de uma Deusa, ou fundir-se totalmente com
o Amado e tornar-se ela própria divina...
Muito da tradição do amor cortês envolve a compreensão de técnicas específicas, por exemplo
a da maithuna, a retenção deliberada do orgasmo para induzir sensações de êxtase e consciê
cia mística.
Como diz o autor e poeta britânico Peter Redgrove:
É possível localizar uma tradição inteira de maithuna (sexualidade tântrica visionária) n
literatura romântica.
Os trovadores tinham a rosa como seu símbolo, talvez porque seu nome (tanto em fra
ncês como em inglês) seja um anagrama de Eros, o deus do amor erótico.Também há a possibil
idade de que a onipresente 'senhora', aquela que deve ser seguida, ao menos de u
ma casta distância, devesse ser entendida como tendo um outro significado em uma l
eitura esotérica, como sugere o nome trovador em alemão, minnesinger.
Essa senhora arquetípica não poderia ter sido a Virgem Maria, pois embora tenha se p
ensado que a rosa fosse o seu símbolo na Idade Média, a verdade é que seu culto não prec
isava se esconder atrás de códigos. Além do mais, a flor que descrevia melhor suas qua
lidades não era a rosa erótica, mas o mais evocativo lírio branco: bonito mas austero,
sem qualquer sugestão de carnalidade. Portanto, quem mais as canções dos trovadores c
elebrariam? Quem mais seria a tão amada 'deusa' dos grupos heréticos da época? Quem ma
is senão Maria Madalena?
As grandes janelas em forma de rosa das catedrais góticas sempre estão voltadas para
o oeste, que é, tradicionalmente, a direção consagrada às deidades femininas, e nunca e
stão muito longe de um santuário dedicado à Madona (Minha Senhora) Negra. E, como vimo
s, essas estátuas enigmáticas são deusas pagãs com uma outra roupagem, são a personificação
antiga celebração da sexualidade feminina.
Sem contar a rosa sagrada, as catedrais góticas também continham outros imaginários pa
gãos. Por exemplo, o simbolismo do labirinto/teia de aranha de Chartres e outras c
atedrais é uma referência direta à Grande Deusa em sua manifestação como tecelã e senhora d
s destinos do Homem, mas muitas outras igrejas também têm imagens de anfitriãs feminin
as. Algumas delas são tão explícitas que, uma vez que sejam completamente compreendida
s, os cristãos podem não ter mais o mesmo sentimento em relação a sua igreja. Por exempl
o, as grandes entradas góticas por onde passaram inocentemente gerações de cristãos, são n
a verdade representações da parte mais íntima da deusa. Atraindo o adorador para o esc
uro útero/interior da Mãe Igreja, elas são entalhadas com cumes afunilados, e em sua g
rande maioria têm até mesmo um botão de rosa no topo do arco que lembra um clitóris. Uma
vez dentro, o devoto católico pára defronte da pia de água benta que, freqüentemente, é r
epresentada por uma concha gigantesca, símbolo da natividade da deusa; como Bottic
elli, suposto Grão-Mestre do Monastério de Sion imediatamente antes de Leonardo, ret
ratou de modo atordoante em sua obra O Nascimento de Vênus. (O búzio, que já fora o em
blema dos peregrinos cristãos, é reconhecidamente um símbolo clássico para a vulva). Tod
os esses símbolos foram empregados deliberadamente pelos adeptos do Princípio Femini
no, e embora sejam usados de um modo subliminar, ainda assim provocam um efeito
inquietante no inconsciente. Somando-se a isso uma música sublime, luz de vela e o
aroma de incenso, não admira que freqüentar uma igreja inspire um fervor peculiar!
Para os iniciados nos mistérios, o Feminino era um conceito ao mesmo tempo carnal,
místico e religioso. Sua energia e poder vinham da sua sexualidade e sabedoria, às
vezes conhecida como a 'sabedoria da prostituta', obtida com o conhecimento da '
rosa', eros.
Como diz o ditado, 'Conhecimento é poder' , e segredos dessa natureza propiciavam
um poder sem igual, e, portanto, representavam uma ameaça única para a Igreja de Rom
a, e até mesmo para todos os matizes de opinião cristã. O sexo só era, e em muitos casos
ainda é, julgado aceitável entre aqueles cuja união era realizada com o intuito de pr
ocriar. Por essa razão, não existe um conceito cristão para o sexo como ato de prazer,
e muito menos como algo que possa trazer iluminação espiritual, como acontece no ta
ntrismo ou na alquimia. (E enquanto a Igreja Católica proíbe a contracepção, outros grup
os cristãos vão ainda mais longe: por exemplo, os mórmons desaprovam o sexo após a menop
ausa.)
Entretanto, o que todas essas regras inibitórias objetivam realmente é ter controle
sobre as mulheres. Elas têm que aprender a ver o sexo com apreensão, ou porque ele é d
esagradável, mero dever matrimonial e nada mais, ou porque inevitavelmente conduz à
dor do parto. Isso é fundamental para se entender como as mulheres eram vistas ao
longo dos séculos pela Igreja, e pelos homens em geral: se as mulheres pudessem re
mover o medo da dor do parto, o caos se instalaria, indubitavelmente.
Um dos principais motivos por trás das atrocidades cometidas durante o período de caça
às bruxas era o ódio e o medo às parteiras, cujo conhecimento de como aliviar a dor d
o parto representava uma ameaça para a civilização decente: Kramer e Sprenger, autores
do infame Malleus Maleficarum, o livro de cabeceira dos caçadores de bruxas europ
eus, escolheram especificamente as parteiras para receberem o pior tratamento po
ssível. O terror causado pela sexualidade das mulheres resultou em centenas de mil
hares de mortos, a maior parte mulheres, no decorrer de três séculos de julgamentos
de feitiçaria.
Desde os dias de misoginia dos primórdios da Igreja, quando duvidava-se até mesmo qu
e as mulheres tivessem alma, tudo se fez para que elas se sentissem profundament
e inferiores, em todos os aspectos. Não só eram consideradas como intrinsecamente pe
cadoras, como também eram a maior, às vezes a única, causa dos pecados dos homens. Foi
também ensinado aos homens que, ao terem pensamentos verdadeiramente luxuriantes,
apenas estavam reagindo à astúcia diabólica da mulher, que os enfeitiçava fazendo com q
ue tomassem atitudes que de outra forma sequer considerariam. Um exemplo extremo
dessa atitude pode ser encontrada na idéia da Igreja medieval de que uma mulher q
ue fosse estuprada não só seria responsabilizada por ter provocado o ato, como também
pela perdição da alma do estuprador, a quem ela teria que fazer uma reparação no Dia do
Juízo Final.
Como escreve R.E.L. Masters:
Praticamente toda a culpa pelo horrível pesadelo que foi a caça às bruxas, e grande
parte da culpa pelo envenenamento da vida sexual do Ocidente, deve ser imputada à
Igreja Católica Apostólica Romana.
A Inquisição, que fora especificamente criada para ser usada contra os cátaros, logo e
com extrema facilidade incorporou o novo papel de caçadora de bruxa, torturadora
e assassina, embora os protestantes também a ela se juntassem, com muito gosto. Os
primeiros julgamentos de bruxas aconteceram em Toulouse, sede da Inquisição anti-cáta
ros. Teriam esses julgamentos cruciais acontecido em virtude do ódio a um possível c
atarismo residual, ou era um sintoma do medo que as mulheres do Languedoc instil
aram nos inquisidores obcecados por sexo?
Subjacente ao ódio e medo de mulheres, estava o conhecimento de que elas têm uma cap
acidade sem igual para desfrutar o sexo. Os homens medievais podem não ter tido o
benefício do ensino atual de anatomia, mas investigações pessoais não falhariam em revel
ar a existência desse órgão curiosamente ameaçador, o clitóris.Aquela minúscula protuberânc
tão inteligentemente, se não subliminarmente, celebrada como o botão de rosa no topo
do arco gótico, é o único órgão humano cuja função é somente o de dar prazer. As implicaçõe
, e sempre foram, enormes, sendo a causa, por um lado, de toda repressão patriarca
l, e, por outro lado, do tantrismo e de todo ritual sexual místico. O clitóris, que
mesmo hoje é considerado um assunto pouco conveniente para ser discutido, revela q
ue as mulheres são feitas para o êxtase sexual, talvez ao contrário dos homens, cujo órgão
sexual tem a dupla finalidade de urinar e procriar.
E a tradição misógina do patriarcado judeu-cristão teve um tal êxito que apenas no século X
foi aceita no Ocidente a noção de que as mulheres desfrutem de sua sexualidade, o q
ue até hoje ainda não foi aceito pela Igreja. Embora seja verdade que a desigualdade
sexual e o puritanismo não são um desdobramento exclusivo das três grandes religiões pa
triarcais, o cristianismo, o judaísmo e o islamismo - basta olhar o costume da Índia
de queimar as viúvas juntamente com os esposos mortos -, ainda assim, a idéia de qu
e o sexo é inerentemente sujo e vergonhoso é uma tradição ocidental. E onde quer que tal
atitude prevaleça haverá o desejo reprimido e a culpa que darão origem, inevitavelmen
te, a crimes contra mulheres, talvez até mesmo à caça a bruxas. O puritanismo ocidenta
l e seu medo e ódio ao sexo deixaram um terrível legado para o fim do milênio, na form
a de espancamento de esposas, pedofilia e estupro. Pois onde quer que o sexo sej
a visto como algo suspeito, também o parto e as crianças serão vistas como intrinsecam
ente sujas, e as jovens serão vítimas da mesma violência sofrida por suas mães.
O Jeová do Antigo Testamento, um tanto contraditório e irascível, criou Eva e, é claro,
viveu o suficiente para se lamentar disso. Quase logo depois de ter 'nascido' ,
ela revelou uma capacidade para pensar sobre si mesma que estava muito além da de
Adão. Eva e a 'serpente' formaram uma equipe poderosa: isso dificilmente causaria
surpresa, pois as cobras são símbolos antigos de Sophia, representando sabedoria e não
maldade. Deus, porém, não se mostrou contente quando a mulher que havia criado most
rou iniciativa e autonomia ao comer da Árvore do Conhecimento, querendo aprender.
Após revelar uma curiosa falta de previsão em relação às capacidades de Eva, especialmente
sendo onipotente e onisciente e criador de universos, Deus a condenou a uma vid
a de sofrimento, começando, vale notar, com a maldição de costurar... (pois ela e o in
feliz Adão tiveram que fazer tangas com folhas de parreira para encobrir a nudez.)
Eva e Adão foram assim apresentados ao conceito de vergonha em relação aos próprios cor
pos e, é claro, sobre a própria sexualidade. Grotescamente, somos levados a entender
que o próprio Deus ficara horrorizado pela visão dos corpos nus que ele mesmo criar
a.
Esse mito ingênuo proporcionou uma justificativa em retrospectiva para a degradação da
s mulheres, e desencorajou o possível alívio ginecológico e a agonia do parto. Negou v
oz às mulheres por milhares de anos, e humilhou, degradou e até mesmo demonizou o at
o sexual, que deveria ser mágico e pleno de prazer. Substituiu por vergonha e culp
a o amor e o êxtase, e incutiu um medo neurótico de um Deus masculino que era aparen
temente tão cheio de ódio a si mesmo que detestou sua melhor criação, a humanidade.
Desse mesmo maligno conto surgiu o conceito de pecado original, que condena até me
smo o inocente recém-nascido ao purgatório; até recentemente, esse conceito havia enco
berto o maravilhoso milagre do nascimento com um manto de superstição e estorvo, e r
etirou o poder inigualável da fêmea, para o qual, é claro, ela foi preparada em primei
ro lugar.
Embora ainda haja uma quantidade surpreendente de medo e ignorância em relação ao sexo
em nossa cultura, as coisas estão bem melhores hoje do que há dez anos atrás. Diverso
s livros têm desbravado terras novas, ou talvez redescoberto um solo antigo. Entre
estes está The Art of Sexual Ecstasy, de Margo Anand (1990), e Sacred Sexuality,
de A. T. Mann e Jane Lyle (1995); ambos celebram o sexo como um meio para a ilum
inação e transformação espiritual.
Como já vimos, outras culturas não sofrem desse mesmo problema (a menos que estejam
contaminadas pelo pensamento ocidental). E em certas culturas o sexo foi elevado
até mesmo para além da arte: foi considerado um sacramento, algo que permite aos pa
rticipantes tornarem-se um com o Divino. Essa é a raison d'être do tantrismo, esse s
istema místico de união com o divino através de técnicas sexuais como karezza, ou o atin
gimento do êxtase sem orgasmo. O tantrismo é a 'arte marcial' da prática sexual, neces
sitando uma incrível disciplina e um longo treinamento tanto de homens quanto de m
ulheres, que são considerados como iguais.
A arte tântrica, no entanto, não é exclusiva do exótico mundo oriental. Hoje em dia pode
-se encontrar escolas sobre o tantra pululando em Londres, Paris e Nova York, em
bora o extremo rigor da arte afaste muitos; pode-se, por exemplo, levar meses pa
ra se aprender a respirar da maneira correta. No entanto, a noção do sexo como um sa
cramento não é nova para o mundo ocidental.
Vimos o quão sexual eram as raízes da alquimia, e como o culto à rosa dos trovadores p
ode ser entendido como a veneração a eros. Notamos como os construtores das grandes
catedrais, como a de Chartres, investiram tanto no símbolo da rosa vermelha e cons
truíram santuários para a Madona Negra com suas poderosas associações pagãs.
Também pudemos ver que o Graal, enquanto taça, é um símbolo feminino, de um modo excepci
onalmente descarado, na história de Tristão e Isolda. E como o grande herói do Graal m
uda seu nome de Tristão para Tantris... De fato, o romancista Lindsay Clarke descr
eve a poesia amorosa dos trovadores como sendo' os manuscritos tântricos do Ociden
te'.
Nas lendas do Graal, a mangra jogada na terra está relacionada com a perda da potênc
ia sexual "do rei, com freqüência simbolizada por ele ter sido 'ferido na coxa'. No
Parzival de Wolfram isso está mais explícito; a ferida é nos órgãos genitais. Isso tem sid
o visto como uma resposta à repressão da sexualidade natural pela Igreja. A estagnação e
spiritual resultante só poderia ser eliminada pela busca do Graal que, como já vimos
, sempre esteve especificamente vinculado às mulheres. Em uma pintura italiana do
século XV, de cavaleiros do Graal adorando Vênus (ver primeira ilustração), não há qualquer
razão para se duvidar da natureza da busca.
O que é acentuado tanto nas lendas de Graal quanto na tradição do amor cortês dos trovad
ores é a elevação espiritual das mulheres, e o respeito por elas. Achamos bastante sig
nificativo que ambos os ramos dessa tradição tenham ao menos parte de suas raízes no s
udoeste da França.
A maioria dos pesquisadores contemporâneos acredita que o tantrismo chegou à Europa
através do contato com a seita mística islâmica dos sufis, que incorporou as idéias da s
exualidade sagrada em suas crenças e práticas. Não há realmente como negar a existência de
paralelismos entre as linguagens utilizadas para expressar essas idéias pelos tro
vadores e sufis. Será, entretanto, que o tantrismo sufi tenha criado raízes na Prove
nça e no Languedoc porque já havia uma tradição semelhante naquela região? Já vimos que o L
nguedoc tinha uma tradição em apoiar a igualdade entre os sexos. E quando a caça às brux
as pela primeira vez caiu como uma sombra escura sobre a cidade de Toulouse, o q
ue realmente se esperava que fosse erradicado? E uma vez mais nos deparamos com
a personificação daquele culto ao amor, Maria Madalena.
Outra mulher que tinha uma estimativa do potencial místico do sexo foi Santa Hilde
gard de Bingen (1098-1179), relativamente pouco conhecida, até recentemente.
Segundo Mann e Lyle:
Uma grande visionária, Hildegard falava sobre o feminino, sobre a imagem inconfundív
el de uma deusa, que veio até ela após profunda contemplação: "Então, parecia que eu estav
a vendo uma menina de uma beleza radiante insuperável, com tal brilho irradiando d
e seu rosto que eu mal podia encará-la. Usava um manto mais branco que a neve, mai
s luminoso que as estrelas; seus sapatos eram de puro ouro. Em sua mão direita seg
urava o sol e a lua, acariciando-os amorosamente. Em um de seus seios tinha uma
placa de marfim onde aparecia, em tons de azul safira, a imagem de um homem. E t
oda a criação chamou essa menina de senhora soberana.A menina começou a falar com a im
agem em seu seio: 'Eu estava no princípio com você, no amanhecer de tudo que é sagrado
, eu o atraí para fora do útero antes do dia começar'. E então ouvi uma voz que me dizia
. 'A menina que você vê é o Amor: sua morada é na eternidade'''.
Hildegard, como todos os corteses amantes medievais, acreditava que homens e mul
heres podiam atingir a divindade amando um ao outro, e assim 'toda a terra torna
r-se-ia um único jardim de amor'. E esse amor seria inteiro, uma expressão completa
da união que envolve corpo e alma pois, como ela escreveu, "é o próprio poder da etern
idade que criou a união física e decretou que dois seres humanos deveriam tornar-se
fisicamente um".
Hildegard era uma mulher notável, imensamente instruída, especialmente em assuntos méd
icos. Seu grau de educação não pode ser explicado, ela própria o atribuiu às suas visões. T
lvez essa seja uma referência velada a alguma escola de mistério ou repositório semelh
ante de conhecimento. Muitos de seus textos conhecidos demonstram familiaridade
com a filosofia hermética.
Essa aclamada abadessa também descreveu em detalhes, e com grande precisão, o orgasm
o feminino, as contrações uterinas e tudo o mais. Parece que seu conhecimento era ma
is do que meramente teórico, o que é, dizem, incomum para uma santa. Quaisquer que s
ejam os segredos sobre suas informações particulares, ela exercia grande influência em
São Bernardo de Clairvaux, protetor e inspirador dos templários.
Esses monges-guerreiros aparentemente poderiam representar uma forte objeção à idéia de
continuidade de uma tradição herética e secreta relacionada com o culto ao amor. Osten
sivamente celibatários (embora houvesse rumores persistentes de uma difundida homo
ssexualidade templária), parece bastante improvável que fossem representantes de uma
prática filosófica que celebrava a sexualidade feminina. Mas há claras indicações de tal
uma ligação nas obras de um de seus partidários mais dedicados, o grande poeta florent
ino, Dante Alighieri (1265-1321).
Há muito tempo já se percebera que seus textos continham material gnóstico e hermético.
Por exemplo, um século atrás Éliphas Lévi descreveu o Inferno de Dante como sendo 'joani
no e gnóstico'.
O poeta fora diretamente inspirado pelos trovadores do sul da França, e era membro
de uma sociedade de poetas que se autodenominavam o fidele d'amore, 'os fiéis dev
otos do amor'. Há muito considerado como sendo um círculo estético, estudos recentes c
omeçaram a desvendar outras motivações, mais secretas e esotéricas.
O respeitado acadêmico William Anderson, em seu estudo Dante the Maker, descreve o
fidele d'amore como 'uma fraternidade reclusa dedicada a alcançar a harmonia entr
e o lado sexual e emocional de suas próprias naturezas e as aspirações intelectuais e
místicas. Ele se utiliza da pesquisa de eruditos franceses e italianos que concluíra
m que 'as senhoras que todos esses poetas veneravam não eram mulheres de carne e o
sso, pelo contrário, eram representações de um ideal Feminino, Sapientia ou Sabedoria
Sagrada' e 'que a Senhora desses poetas era... uma alegoria da Divina Sabedoria
que também se buscava'.
Anderson, como Henry Corbin, outro erudito, vê o caminho espiritual de Dante como
a busca da iluminação através do misticismo sexual, como faziam os trovadores. Henry C
orbin afirma:
O fidele d'amore, companheiros de Dante, professam uma religião secreta... a união
que une o intelecto potencial da alma humana com a Inteligência Ativa... Anjo do
Conhecimento, ou Sabedoria-Sophia, é visualizada e experienciada como a união do amo
r.

Entretanto, mais notável é a ligação que Dante e seus místicos companheiros estabelecem co
m os cavaleiros templários. Ele era um de seus partidários mais entusiásticos, mesmo d
epois de sua supressão, quando não era aconselhável ser vinculado a eles. Na Divina Co
média, ele estigmatiza Filipe, o Justo, como 'o novo Pilatos', por suas ações contra o
s cavaleiros. Acredita-se que o próprio Dante fora membro de uma Ordem dos Templário
s terciária chamada La Fede Santa. As conexões são sugestivas o suficiente para serem
simplesmente desconsideradas; talvez Dante não fosse a exceção, mas sim a regra, de um
templário que estava envolvido com um culto ao amor.
Anderson afirma:
Em face disso, os templários, como uma ordem militar celibatária... seriam um cana
l bastante improvável para assuntos dedicados ao elogio de belas senhoras. Por out
ro lado, muitos templários estavam envolvidos com a cultura oriental e alguns dele
s bem que poderiam ter entrado em contato com escolas sufis.
E prossegue falando sobre as conclusões de Henry Corbin:
A ligação entre Sapientia [Sabedoria] e o imaginário do Templo de Salomão, junto com s
uas associações com o Grande Ciclo de peregrinação, leva à suposição de uma conexão entre o
le d'amore e os cavaleiros templários, chegando até mesmo ao ponto de considera-los
como uma confraternidade secular da ordem.
Juntamente com a evidência revolucionária que foi revelada por pesquisadores como Ni
ven Sinclair, Charles Bywaters e Nicole Dawe, isso sugere que pelo menos a ordem
interna dos cavaleiros realmente fazia parte de uma tradição secreta que venerava o
Princípio Feminino.
Da mesma forma, aquele disputado ramo dos templários, o Monastério de Sion, sempre t
eve membros mulheres - e a lista dos Grão-Mestres inclui quatro mulheres -, o que é
particularmente estranho porque seus nomes aparecem no período medieval, quando se
ria de se esperar que o sexismo fosse prevalecente. Como Grãs-Mestra essas mulhere
s teriam exercido um poder real, e esse papel, sem dúvida alguma, exigia padrões par
ticularmente altos de integridade e habilidade para lidar com os diversos níveis d
e interesses e egos contraditórios. Embora possa parecer estranho que mulheres ten
ham estado no topo de uma organização que, supõe-se, era extremamente poderosa, e em u
ma época em que até mesmo a alfabetização feminina não era de forma alguma comum, parece m
enos estranho quando visto dentro do contexto de uma tradição secreta devotada à deusa
.
Apoiando muitas das escolas de mistério citadas estavam os rosa-cruzes, cujo inter
esse pelo misticismo sexual está presente até mesmo em seu nome: a cruz fálica e a col
igada rosa feminina. Esse símbolo de união sexual é remanescente da cruz ansada (ankh)
dos egípcios antigos: a vertical sendo o falo e a volta ovalada a vulva. Os rosa-
cruzes, com sua mistura de sabedoria alquímica e gnóstica, entendiam perfeitamente o
s princípios subjacentes, como o alquimista rosa-cruz Thomas Vaughan, do século XVII
, explicou:' ... a própria vida nada mais é que a união dos princípios masculino e femin
ino, e aquele que perfeitamente sabe esse segredo sabe... como deve usar sua esp
osa...' (Lembre-se da enorme rosa ao pé da cruz no mural de Cocteau em Londres, um
a clara alusão aos rosa-cruzes. E a imagem da rosa-cruz é encontrada na tumba do tem
plário SirWilliam Saint Clair...)
Mesmo que haja, como já vimos, evidências de que os templários, os alquimistas e o Mon
astério sejam devotos de um culto ao amor, parece haver pouca possibilidade de que
a resoluta linhagem masculina de filósofos herméticos tivesse qualquer ligação com uma
organização feminina, ou talvez feminista. Contudo, aqui também a imagem superficial é e
nganadora.
O próprio Leonardo é considerado um homossexual misógino, e é verdade que ele demonstrou
ter pouco amor pelas mulheres, ao menos até onde sabemos. Sua mãe, a misteriosa Cat
erina, parece tê-lo abandonado à sua própria sorte quando ele ainda era criança, embora
possa ter vivido seus últimos dias ao lado dele, muitos anos depois, e é certo que L
eonardo teve uma empregada a quem se referia, ironicamente, como 'La Caterina',
e cujo funeral ele pagou. Ele pode ter sido um homossexual, mas isso nunca repre
sentou qualquer empecilho à devoção dos homens ao Princípio Feminino, muito pelo contrário
. Os ícones dos gays tradicionalmente são mulheres fortes e vivazes que tiveram vida
s traumáticas, exatamente como Madalena e a própria Ísis. Além disso, Leonardo é conhecido
por sua intimidade com Isabella d'Este, uma mulher educada e inteligente. Embor
a talvez seja levar muito longe a especulação sugerir que ela era membro do Monastério
ou de alguma outra escola secreta 'feminista', isso pode significar, pelo menos
, que Leonardo aprovava a alfabetização feminina.
O hermético florentino Pico della Mirandola dedicou muitas palavras ao tema do pod
er feminino. Seu livro La Strega (A Bruxa) relaciona a história de um culto italia
no baseado em orgias sexuais e dirigido por uma deusa. E ainda mais notável, ele e
quiparou essa deusa com a 'Mãe de Deus'.
Até mesmo Giordano Bruno, notoriamente masculino, estava fortemente envolvido com
o feminino. Durante sua estada na Inglaterra, entre 1583-85, publicou várias obras
que esboçavam a filosofia hermética, que pode ser encontrada em qualquer livro didáti
co de história. No entanto, costuma-se ignorar o fato de que ele também havia public
ado um volume de poesia de amor passional chamado De gli eroici furori (No Frene
si Heróico), que foi dedicado a seu amigo e protetor Sir Philip Sydney. Este não era
nenhum hino a uma obsessão passageira, ou mesmo um olhar rápido na, até então, desconhe
cida vida secreta de um sedutor. Embora se reconheça que havia um nível mais profund
o nessa poesia, a maioria das autoridades acredita que isso era apenas uma expre
ssão alegórica da experiência hermética. Na verdade, o amor cantado nessas obras não era a
legórico, mas sim literal.
O furori do título é, citando Frances Yates: 'Uma experiência que faz a alma "divina e
heróica" e pode ser comparada ao êxtase do furor do amor passional'. Em outras pala
vras, estamos mais uma vez olhando para um conhecimento do poder de transmutação do
sexo.
Nesses poemas Bruno estava se referindo a um estado alterado de consciência no qua
l o hermético percebe sua própria divindade potencial. Esta é vista como o êxtase da união
completa com a outra metade. Como Dame Frances afirma: '...Penso que a experiênci
a religiosa do Eroici furori na verdade aponta para a gnosis hermética; essa é a poe
sia do amor místico do Mago, que foi criado divino, com poderes divinos, e está no p
rocesso de se tornar divino novamente, com poderes divinos'.
Mesmo considerando a tradição que Bruno estava seguindo, está claro que tais sentiment
os não eram meramente metafóricos. Essa ênfase na iluminação através do sexo fazia parte da
filosofia e da prática hermética. O conceito de sexualidade sagrada está em total conc
ordância com as palavras do próprio Hermes Trismegistus no seu Corpus Hermeticum: 'S
e você odeia seu corpo, minha criança, você não pode se amar'.
Os herméticos, como Marsilio Ficino, identificavam quatro tipos de estado alterado
no qual a alma se unia com o Divino, cada um dos quais estava associada a uma f
igura mitológica: inspiração poética associada às Musas, entusiasmo religioso associado a
Dioniso, transe profético associado a Apolo e todas as formas de amor intenso asso
ciado a Vênus. O último é o clímax em todos os sentidos, pois é quando a alma realmente co
mpleta sua união com o Divino.
Os historiadores sempre tomaram literalmente o primeiro desses três estados altera
dos, mas escolheram ler o último, o ritual de Vênus, como uma simples alegoria ou co
mo uma espécie de amor impessoal ou espiritual. Se fosse esse o caso, os herméticos
dificilmente o teriam categorizado em associação com Vênus! A aparente timidez dos his
toriadores nesse assunto é devida à ampla ignorância sobre a tradição secreta. Este, no en
tanto, é um outro exemplo de conceitos que se pensou uma vez serem obscuros e que
se tornam cristalinos assim que a idéia da sexualidade sagrada é levada em conta.
O grande mago hermético Henry Cornelius Agrippa (1486-1535) trata a questão de um mo
do bastante explícito. Ele escreveu em sua clássica obra De occulta philosophia: 'Qu
anto ao quarto furor, vindo de Vênus, ele revira e transmuda o espírito do homem em
um deus pelo ardor do amor, e o faz completamente como Deus, como a verdadeira i
magem de Deus'. Observe o uso do termo alquímico transmudar, que é geralmente empreg
ado como referência à preocupação tola e fútil de tentar transformar o chumbo em ouro. Aqu
i, entretanto, busca-se um outro tipo de artigo precioso completamente diferente
. Agrippa também enfatiza que a união sexual é 'plena de mágica doação',
O lugar de Agrippa nessa tradição herética não deveria ser subestimado, Seu tratado De n
obilitate et praecellentia foeminei sexus (Da Nobreza e Superioridade do Sexo Fe
minino), que foi publicado em 1529, mas baseava-se em uma dissertação sua vinte anos
mais antiga, é muito mais do que uma reivindicação incrivelmente moderna pelos direit
os das mulheres, Esse trabalho surpreendente de Agrippa foi bastante negligencia
do até bem recentemente, devido a uma tristemente previsível razão. Em virtude dessa o
bra ter defendido a igualdade sexual, chegando até a argumentar em favor da ordenação
de mulheres, foi interpretada como sendo uma sátira! Que uma obra apaixonada em fa
vor das mulheres tenha sido vista como uma piada, reflete a inflexibilidade de n
ossa cultura. Parece claro, porém, que Agrippa não estava brincando.
Ele não estava apenas discutindo o assunto em virtude do que hoje chamaríamos de dir
eitos da mulher, para a redefinição do estado político da mulher, estava, sim, tentand
o transmitir o princípio que se encontra por trás de tal campanha. Como a professora
Bárbara Newman, da Northwest University, diz, em seu estudo sobre o tratado:
...até mesmo um leitor simpatizante poderia não ter certeza se Agrippa estava rei
vindicando que se passasse por cima da questão do gênero, que houvesse igualdade de
oportunidades na Igreja ou uma espécie de culto de mulheres.
Newman e outros eruditos ao rastrearem as fontes da inspiração de Agrippa chegaram a
várias raízes que incluíam a cabala, a alquimia, o hermetismo, o neoplatonismo e a tr
adição dos trovadores. E, uma vez mais, a busca de Sophia é citada como uma das princi
pais influências.
Seria um engano pensar que Agrippa estivesse apenas reivindicando o respeito e a
igualdade para as mulheres. Ele foi muito além. Sua colocação era a de que as mulhere
s deveriam ser, literalmente, cultuadas:
Qualquer um que não esteja totalmente cego não pode deixar de ver que Deus reuniu
toda a beleza que há no mundo inteiro na figura da mulher, assim toda a criação poderi
a se deslumbrar com ela, amá-la e venerá-la sob diversos nomes.
(E é significativo que Agrippa, como os alquimistas, acreditasse que o sangue mens
trual tivesse uma aplicação prática e mística em particular. Eles acreditavam que esse s
angue continha um tipo de substância química ou elixir única e inigualável, que ao ser i
ngerido de uma certa maneira, utilizando técnicas antigas, garantiria o rejuvenesc
imento físico e proporcionaria sabedoria. Claro que nada poderia estar mais distan
te da posição da Igreja.)
Agrippa não era um mero teórico, e nem um covarde. Não só fora casado três vezes, como tam
bém teve sucesso no que pareceria ter sido impossível: defendeu uma mulher acusada d
e feitiçaria, e ganhou.
Claro que Vaughan, Bruno e Agrippa eram todos homens, e é tentador suspeitar que s
implesmente desfrutaram do êxtase sexual em benefício próprio, mesmo se isso fosse alg
o profundamente espiritual. Porém, embora seja verdade dizer que qualquer mulher q
ue ousasse escrever sobre tais assuntos teria sido presa e acusada de feitiçaria,
também é verdade que o ritual de Vênus só seria considerado como 'realizado' se ambos os
participantes atingissem as mesmas metas. A idéia era fazer com que opostos e igu
ais trabalhassem para alcançar a mesma meta e receber a mesma iluminação enquanto parc
eiros, da mesma forma que na idéia chinesa de que a totalidade é composta de Yin e Y
ang.
Giordano Bruno não era o tipo de pessoa que guarda as próprias crenças para si mesmo.
Em suas últimas obras publicadas, ele empregou um imaginário sexual ainda mais explíci
to, mas até mesmo isso foi colocado de lado pelos historiadores; se e quando essa
questão é mencionada nas obras usuais relacionadas a Giordano, normalmente seu senti
do é explicado como sendo alegórico. Não apenas essa como outras referências explícitas e
relacionadas, colocadas em suas obras, também são habitualmente mal interpretadas. Q
uando Bruno falou de uma 'deusa', referindo-se à senhora anônima para quem escrevia
uma poesia de amor, isso foi compreendido como sendo um epíteto afetuoso. E depois
, quando deu adeus à Alemanha, dizendo de modo abrupto que a deusa Minerva era Sop
hia (sabedoria), isso também foi tomado como sendo outra alegoria. Suas verdadeira
s palavras, no entanto, eram inequivocamente as de quem estava venerando uma deu
sa:
Ela, a quem tenho amado e procurado desde minha mocidade, e desejado para minh
a esposa, e fez-me um enamorado de sua aparência... e rogo para que... ela possa s
er enviada para comigo viver, e comigo trabalhar, para que então eu saiba o que é qu
e me faltava...
Ainda mais interessante, no entanto, é o fato de sua dedicatória do Eroici furori co
mparar essa obra ao Cântico dos Cânticos. Uma vez mais, nos encontramos em face do c
ulto à Madona Negra e, por associação, com o de Madalena. (Claro que aquele outro gran
de escritor hermético/rosa-cruz da época, conhecido como William Shakespeare, dedica
va seus sonetos a uma misteriosa Senhora Escura, cuja identidade tem sido fonte
infinita de combustível para a discussão de gerações de críticos. Embora essa mulher possa
muito bem ter sido de carne e osso, ou quem sabe um homem, é também provável que ela
representasse au fond (no fundo) a Madona Negra, a deusa escura. Realmente, o he
rméticos simbolizaram um particular estado alterado, um tipo de transe específico, c
omo uma senhora de aparência escura.)
Os potentes ataques de Bruno às tradições e crenças cristãs o conduziram a uma morte terrív
l, servindo como aviso a outras almas que pretendessem ser valentes. As atrocida
des cometidas nos julgamentos das bruxas, como já vimos, também reforçaram a necessida
de de circunspeção por parte dos 'hereges'(e devemos lembrar que, embora as fogueira
s há muito já tivessem sido abolidas, o último processo contra uma mulher sob a acusação d
e Ato de Feitiçaria no Reino Unido aconteceu no recente ano de 1944). Contudo, a p
rática do amor transcendental, um segredo específico do mundo ocultista, não se limita
va a indivíduos isolados, e não desapareceu junto com eles.
Há uma certa dificuldade em localizar na Europa uma tradição que seja claramente devot
ada à sexualidade sagrada, em razão do antagonismo da Igreja e a conseqüente necessida
de de segredo entre os guardiães desse conhecimento. No entanto, nos séculos XVII e
XVIII, a Alemanha pareceu ter se tornado o lar dessa tradição, embora pouca pesquisa
sobre essa questão tenha sido feita até recentemente. De acordo com pesquisadores f
ranceses contemporâneos, como Denis Labouré, a prática da 'alquimia interna' na Aleman
ha tornou-se o ponto central de várias sociedades ocultas. Outra pesquisa recente,
incluindo a do Dr. Stephen E. Flores, confirmou que o ocultismo alemão desse períod
o era, em sua natureza, essencialmente sexual.
Um problema para pesquisadores dessa área é que, de modo geral, as evidências da existên
cia de cultos dedicados ao sexo tendem a vir da Igreja, ou pelo menos dos que vêem
satanismo em tudo que esteja conectado ao sexo. Tais movimentos, ao serem perse
guidos, têm seus registros ou destruídos ou censurados, e tudo o que resta é a versão do
s acontecimentos conforme vistos por seus inimigos. Isso aconteceu com os cátaros
e templários, alcançando seu aterrador ápice com o julgamento das bruxas. Vemos esse p
rocesso acontecer sempre que as idéias sobre sexualidade sagrada são expressadas, co
mo aconteceu mais uma vez na França do século XIX.
Naquela época, emergiram vários movimentos inter-relacionados que, embora florescess
em de dentro da própria Igreja católica e fossem centrados em pessoas que se conside
ravam bons católicos, incluía conceitos de sexualidade sagrada e de sublimação do Femini
no (normalmente expressado na figura da Virgem Maria) e estavam conectados com u
ma obscura sociedade 'joanina', dessa feita especificamente ocupada com João Batis
ta.
Essa é uma série de eventos de extrema complexidade a serem desvendados, em grande p
arte porque, a despeito das idéias e conceitos religiosos não ortodoxos e da sexuali
dade que os levou a serem tachados como imorais, também estavam estreitamente liga
dos a causas políticas, o que atraiu a hostilidade das autoridades. Portanto, quas
e que a totalidade dos relatos que temos sobre eles vem de seus inimigos.
Os motivos políticos desses grupos estão fora do escopo desta investigação, embora fosse
m muito importantes para os que na época estavam envolvidos. Basta dizer que apoia
vam as pretensões de um certo Charles Guillaume Naündorff (1785-1845), que alardeava
ser Luís XVII (e que se acredita ter sido assassinado ainda criança junto com seu p
ai, Luís XVI, durante a Revolução Francesa).
Um desses grupos era a Igreja de Carmela, também conhecida como o Oeuvre de la Mis
ericorde (Obra da Misericórdia), estabelecida no início dos 1840 por Eugene Vintras
(1807-1875). Pregador carismático e entusiasmante, Vintras atraiu a nata da socied
ade para seu movimento que, não obstante, logo passou a sofrer acusações de demonismo.
Com certeza, os rituais tinham alguma espécie de conteúdo sexual, no qual (nas pala
vras de Ean Begg) 'o maior sacramento era o ato sexual'.
Para tornar as coisas ainda piores em relação às autoridades, Vintras e Naündorff endoss
avam um ao outro. Assim, inevitavelmente,Vintras colocou-se em uma posição que clara
mente o expunha a ir a julgamento. Acusado de fraude, embora até mesmo as supostas
vítimas negassem ter havido qualquer crime, foi condenado a cinco anos de prisão, e
m 1842. Ao ser libertado seguiu para Londres. Foi nesse momento, então, que um dos
antigos membros de sua Igreja, um padre chamado Gozzoli, escreveu um folheto em
que o acusava de realizar orgias sexuais de todos os tipos. Embora isso pareça te
r sido basicamente fruto de uma imaginação fértil, ao menos em parte pode ter se basea
do em fatos. Em 1848, a seita foi declarada herética pelo Papa e todos os seus mem
bros foram excomungados. A partir de então a seita tornou-se independente, contand
o com padres homens e mulheres, do mesmo modo que os cátaros, embora não se tenha ce
rteza se o culto de Vintras seguia os mais altos princípios destes.
Por trás de Vintras e Naündorff estava uma seita obscura conhecida como 'os Salvador
es de Luís XVII', ou como os joaninos. Esse grupo remonta aos anos de 1770, e pare
ce ter tomado parte na agitação social que precedeu a Revolução.Ao contrário dos joaninos
'maçônicos' examinados anteriormente, não tinham nenhuma dúvida sobre qual São João venerav
m, era o Batista.
Após a Revolução, os joaninos passaram a se ocupar com a restauração da monarquia. Eles, e
m grande parte, eram os responsáveis pelo lançamento de Naündorff como pretendente ao
trono, e também estavam por trás de movimentos 'proféticos' como o de Vintras. Outro a
utodenominado 'guru' da época, Thomas Martin, que tinha meteoricamente passado de
simples camponês para conselheiro de rei, tinha o apoio dos joaninos, e além disso p
arecem ter de algum modo 'fabricado' algumas visões da Virgem, como as de La Salet
te, nos contrafortes dos Alpes ocidentais, em 1846. O que estava exatamente acon
tecendo é difícil dizer, mas é possível identificar as linhas gerais que transpassavam d
eterminados eventos que estavam aparentemente associados.
Primeiro, havia uma tentativa de regenerar o catolicismo de dentro de si mesmo.
Isso significava substituir o dogma popular, baseado na autoridade de Pedro, por
um cristianismo místico e esotérico, na crença de que estava amanhecendo a era na qua
l o Espírito Santo estaria em supremacia. Um aspecto dessa supremacia era a ascensão
do Feminino, cuja representação era a Virgem, que logo assumiu um caráter sexual mais
explícito e começou a tornar-se algo ativamente hostil para a Igreja. A visão de La S
alette, que fora condenada pela Igreja, era um ponto central nesse plano. E de a
lguma maneira o papel de João Batista era crucial nesses desdobramentos.
O movimento também apoiava a tentativa de fazer com que Naündorff fosse reconhecido
como o rei legítimo da França, provavelmente porque, se tivesse tido sucesso, ele te
ria sido favorável a essa nova forma de religião (pois já havia endossado Vintras). Me
lanie Calvet, a menina que teve a visão de La Salette, apoiava Naündorff. E é interess
ante que a Igreja tenha reagido a isso enviando-a para um convento em Darlington
, no nordeste da Inglaterra, onde não poderia causar mais nenhum problema.
As forças combinadas da Igreja e do Estado impediram que o grande plano do movimen
to fosse bem-sucedido, e o que quer que tenha realmente acontecido está agora ente
rrado sob uma avalanche de escândalos e insinuações. Mas é sem dúvida significativo que a
reação da Igreja para essa ameaça fosse fazer da Imaculada Conceição de Maria um artigo de
fé, em 1854. (Essa doutrina seria convenientemente endossada pela própria Virgem Ma
ria quando apareceu para a menina camponesa Bernadette Soubirous, em Lourdes, ce
rca de quatro anos depois, embora esta a princípio tenha descrito sua visão como, si
mplesmente, 'aquela coisa'.)
Profetas como Martin e Vintras parecem ter sido 'manobrados' pelos joaninos, em
vez de realmente terem feito parte da seita. A ligação de Vintras com a seita era a
sua mentora, uma certa Madame Bouche, que morou na Praça de St. Sulpice, em Paris,
e usou o nome, esplendidamente evocativo, de 'Irmã Salomé'. (A Igreja de Carmela, d
e Vintras, ainda funcionava em Paris nos anos quarenta, e houve rumores de um gr
upo operando em Londres nos anos 60).
Havia um outro movimento, os Irmãos da Doutrina Cristã, que se fundiu com a Igreja d
e Carmela, mas na realidade havia sido fundado anteriormente, em 1838, pelos três
irmãos Baillard, todos padres. Eles montaram duas casas religiosas, St. Odile, na
Alsácia, e Sion-Vaudémont, em Lorraine, nas montanhas, continuando a se considerar c
atólicos. Ambos são locais importantes em suas regiões, e é um mistério que os irmãos Baill
rd os pudessem ter adquirido.
Sion-Vaudémont era um local importante para o culto pagão na Antigüidade, consagrado à d
eusa Rosamerta, e, como pode ser inferido de seu nome, já há muito estava ligado ao
Monastério de Sion. Na realidade, uma Ordre de Notre-Dame de Sion, historicamente
reconhecida, foi lá fundada no século XIV por Ferri de Vaudémont, cuja escritura a uni
a à abadia de Monte Sion, em Jerusalém, de onde o Monastério afirma ter tirado seu nom
e. O filho de Ferri casou-se com Iolande Trancam, Grã-Mestra do Monastério entre 148
0 e 1483, e filha de Renê d' Anjou, o Grão-Mestre que a antecedeu. Iolande transform
ou o Sion-Vaudémont em um importante centro para peregrinação, focado em sua Madona Ne
gra. A própria estátua foi destruída durante a Revolução e substituída por uma Virgem medie
al que não era negra, retirada da igreja de Vaudémont, que é consagrada a João Batista.
Assim parece ser significativo que uma das novas igrejas dos irmãos de Baillard es
tivesse baseada naquele lugar. Suas idéias eram semelhantes às de Vintras, inclusive
a ênfase no início iminente da era do Espírito Santo e da sexualidade sagrada, portan
to não é de se surpreender que tivessem saído da mesma fonte. Seu movimento recebeu gr
ande apoio, incluindo o da Casa dos Habsburgos. No entanto, como outros, também fo
i suprimido, em 1852.
Depois da morte de Vintras, em 1875, o movimento foi assumido pelo abade Joseph
Boullan (1824-1893), uma figura ainda mais controversa. Algum tempo antes ele ha
via seduzido uma jovem freira do convento de La Salette, Adèle Chevalier, e os doi
s fundaram a Sociedade para a Reparação das Almas, em 1859. Esta, definitivamente, b
aseava-se em rituais sexuais, sendo sua filosofia geral a de que a humanidade en
contraria a redenção através do sexo, se este fosse visto como um sacramento. Embora i
sso possa parecer puro e alquímico em sua natureza, de modo bastante impróprio Boull
an estendeu os benefícios desse ritual ao reino animal.
Há informações de que Boullan e Adèle Chevalier teriam sacrificado seu próprio filho duran
te um ritual de magia negra, em 1860. Contudo, embora isso seja relatado como fa
to em toda a literatura moderna, é impossível voltar às origens dos acontecimentos e e
ncontrar uma fonte segura. Se Boullan era conhecido por ter cometido um crime, e
ntão, ele parece ter escapado de uma acusação formal. É verdade que foi suspenso de suas
obrigações como padre naquele ano, mas tal suspensão foi retirada após alguns meses. Em
1861, ele e Adèle foram presos por fraude (o modo usual, talvez, das autoridades
lidarem com aqueles a quem tinham aversão mas a quem, no entanto, nada podiam impu
tar). Após ser condenado, Boullan foi novamente suspenso de seus deveres sacerdota
is, mas mais uma vez a decisão foi revertida. Após sair da prisão ele voluntariamente
se apresentou ao Santo Ofício (então o nome oficial da Santa Inquisição) em Roma, que não
lhe imputou nenhuma culpa, liberando-o para que voltasse a Paris.
Enquanto esteve em Roma, Boullan escreveu suas doutrinas em um caderno (conhecid
o como o cahier rose (caderno rosa), basicamente em razão da cor da sua capa) que
foi encontrado pelo escritor J. K. Huysmans entre os documentos de Boullan após su
a morte, em 1893. Os detalhes precisos do conteúdo do caderno são desconhecidos, emb
ora tenha sido descrito como um 'documento chocante'. Atualmente está trancado a s
ete chaves na Biblioteca do Vaticano, que nega todos os pedidos de acesso ao cad
erno.
Existem, com certeza, muito mais coisas nessa história de Boullan. Olhando de modo
superficial, parece ser mais a história de um clube de pervertidos. Contudo, pare
ce que a Igreja, até certo ponto, realmente protegeu Boullan. Por exemplo, a Igrej
a emitiu uma instrução ordenando que não fosse molestado, e há indicações de que ele estava
em posse de algum tipo de segredo que propiciava tal proteção. A história de Boullan e
ncaixa-se no clássico padrão do agente provocador que se infiltra em uma organização com
a intenção deliberada de desacreditá-la, em interesse de um outro grupo. Isso explica
ria as enormes discrepâncias entre sua conduta e as medidas oficiais tomadas contr
a ele.
Após ter voltado de Roma, Boullan ingressou na Igreja de Carmela, de Vintras, torn
ando-se seu líder. Isso provocou um cisma: os membros do culto que o aceitaram o a
companharam até Lyon, onde montaram sua sede. Seguiram-se, então, cenas desenfreadas
de licenciosidade sexual, o que, uma vez mais, parece estar em total conflito c
om as afirmações do próprio Boullan de que ele era a reencarnação de João Batista.
Essa última colocação pode bem ter sido a fonte que inspirou J. K. Huysmans (devoto do
culto da Madona Negra) a escolher o nome de 'Dr. Johannes' para o personagem in
spirado em Boullan, no seu romance sobre o satanismo em Paris, Là-Bas (Lá Embaixo) (
1891). Contudo, seria um engano nos lançarmos a uma conclusão óbvia. Dr. Johannes foi
retratado como um padre que praticava magia para se contrapor ao satanismo e que
foi mal compreendido pela Igreja, que, claro, tachava qualquer tipo de magia co
mo pertencente ao Diabo. Huysmans ajudou Boullan e hospedou-se com ele em Lyon,
enquanto realizava as pesquisas para o seu romance, mas embora ele certamente ti
vesse muito conhecimento sobre magia, sempre foi tido e se via como um verdadeir
o filho da Igreja, ao menos em teoria.
Là-Bas é hoje lembrado principalmente por sua lúgubre descrição de uma missa negra, descriç
que parece ser o depoimento de uma testemunha ocular. Os verdadeiros vilões da his
tória, contudo, são os rosa-cruzes, devido a notória batalha travada no campo da magia
entre Boullan e membros de certas ordens de rosa-cruzes que naquela época floresc
iam na França. Pode parecer incongruente que justamente os rosa-cruzes se opusesse
m de forma tão ferrenha a Boullan e a tudo que por ventura representasse. Claro qu
e o conflito poderia somente ter sido uma dessas brigas de ego que comumente ati
ngem tais movimentos. Por outro lado, talvez alguns rosa-cruzes estivessem alarm
ados com a franqueza de Boullan em relação a seus segredos.
A França havia se tornado o lar de vários centros ocultistas. Muitas ordens rosa-cru
zes eram um desdobramento da mistura dos movimentos templaristas-maçônicos-rosacruci
anos encontrados no sudoeste da França. Embora estas não fossem ordens estritamente
maçônicas, certamente estavam alinhadas com os sistemas maçônicos ocultos, como o Ritual
Escocês Purificado e os Rituais Egípcios. Tanto os grupos maçônicos quanto os de rosa-c
ruzes abraçaram a filosofia dos martinistas, os ensinamentos ocultos de Louis Clau
de de Saint-Martin. Na realidade, a importância do martinismo não deveria ser subest
imada: os maçons do Ritual Escocês Purificado atual são recrutados exclusivamente dent
re os martinistas.
A primeira dessas organizações de rosa-cruzes parece ter sido uma filial de uma loja
maçônica um tanto irregular conhecida como La Sagesse (Sabedoria ou Sophia), em Tou
louse. Por volta de 1850, um de seus membros, o Visconde de Lapasse, (1792-1867)
, um respeitado médico e alquimista, fundou a Ordre de La Rose-Croix, du Temple et
du Graal (Ordem da Rosa-Cruz, do Templo e do Graal). A segunda pessoa mais impo
rtante dessa ordem era Joséphin Péladan (1859-1918), que também era de Toulouse e torn
ou-se uma espécie de padrinho das sociedades de rosa-cruzes francesas daquele temp
o.
Péladan era um grande conhecedor do ocultismo, depois de ter sido inspirado pelo e
scritor francês Éliphas Lévi (cujo nome verdadeiro era Alphonse Louis Constant, 1810-7
5). Péladan desenvolveu um sistema de magia que foi descrito como 'um erótico catoli
cismo-com-magia', e organizou o popular Salon de La Rose + Croix. (Um cartaz de
publicidade mostrava uma dessas reuniões, e nele Dante é retratado como sendo Hugues
de Payens, primeiro Grão-Mestre dos templários, e Leonardo é descrito como o Guardião d
o Graal [ver ilustração].) Péladan acreditava que a Igreja católica era um repositório de
conhecimento do qual ela mesma havia se esquecido, e ele estava particularmente
interessado no Evangelho de João.Também estava à frente de avançados estudos nos quais v
ia o fidele d' amore como uma sociedade esotérica, especificamente vinculada aos r
osa-cruzes do século XVII.
Péladan conheceu um outro ocultista, Stanislas Guaita (1861-1898), e em 1888 os do
is formaram a Ordre Kabbalistique de La Rosa-Croix (Ordem Cabalística da Rosa-Cruz
). Foi Guaita quem se infiltrou na Igreja de Carmela de Boullan e, em conjunto c
om Oswald Wirth, um membro que havia se desencantado com o culto, escreveu o liv
ro The Temple of Satan, que expôs o movimento como sendo diabólico. Isso conduziu à ba
talha mágica na qual Boullan e Guaita acusaram-se de usar os poderes da magia com
a intenção de causar a morte um do outro. Pode ser um tanto desapontador, mas Boulla
n parece ter morrido de causas naturais, mas, como já era de se esperar, a rixa en
tre eles resultou em dois duelos de carne e osso, um entre Guaita e um dos discípu
los de Boullan, Jules Bois, e o outro entre este último e um rosa-cruz, Gérard Encau
sse (mais conhecido como Papus). Ambos os duelos terminaram em empate.
Esse episódio é um dos prediletos entre os escritores do ocultismo, mas nunca é explic
ado de modo satisfatório. Por que Guatta e os rosa-cruzes parisienses empreenderia
m uma vendeta contra Boullan? (Não custa lembrar que temos apenas a versão de Guatta
e Wirth sobre as supostas depravações cometidas por Boullan e seus discípulos.) Em fa
ce disso, não há conexão real, ou base de disputa, entre as lojas maçônicas ocultas e a or
dem essencialmente religiosa de Boullan.
Porém, se cavarmos um pouco mais fundo encontraremos a verdadeira razão: Guatta e um
tribunal de rosa-cruzes haviam condenado Boullan por 'profanar' e revelar 'segr
edos cabalísticos', ou seja, os ensinamentos que se julgava serem exclusivos dos r
osa-cruzes. (E a condenação de Boullan ocorreu no dia 23 de maio de 1887, antes, por
tanto, de Guatta ter se infiltrado no seu grupo.) Essa era a razão verdadeira dele
s sentirem a necessidade de silenciar Boullan.
Outros comentadores parecem não ter notado as implicações decorrentes disso: se os rit
uais de Boullan foram considerados como usurpadores de algo que pertencia aos ro
sa-cruzes, então eles também deveriam praticar rituais de cunho sexual. O erro de Bo
ullan, aos olhos dos rosa-cruzes, foi tê-los tornado público.
A Paris do século XIX abrigou muita filosofia e ocultismo eruditos, refletindo, ta
lvez, a busca do fin de siecle por um significado mais profundo da vida. Tal bus
ca atraía toda sorte de pensadores e artistas, como Oscar Wilde, Debussy e W. B. Y
eats. (Como sempre, a verdadeira união européia era uma fraternidade secreta.) Os sa
lões estavam repletos de rostos famosos, ansiosos tanto para descobrir uma fórmula mág
ica quanto para fabricar fofocas, entre eles Marcel Proust, Maurice Maeterlinck
e a cantora de ópera Emma Calvé (1858-1942). Famosa por sua beleza, ela abria as por
tas de seus próprios saraus a qualquer um que eventualmente tivesse algo de intere
ssante para compartilhar, de preferência algum grande segredo ocultista. Esses círcu
los também incluíam tipos como Joséphin Péladan, Papus e Jules Bois (que era um dos muit
os amantes de Emma Calvé).
Muitos dos que eram a energia propulsora desses círculos vieram do Languedoc, incl
usive a própria Emma Calvé. (Ela não era nenhuma iniciante no misticismo: foi uma pare
nte sua, Melanie Calvet, quem teve a famosa visão de La Salette. E, o que é interess
ante, Adele Chevalier, a freira que fora seduzida por Boullan e tornou-se sua sóci
a, era uma das amigas de Melanie.) Emma Calvé iria representar um importante papel
na confusa história do abade Sauniere, padre de paróquia da aldeia Rennes-le-Château,
no Languedoc, assunto que será examinado mais à frente.
Sugestivamente, em 1894, ela comprou o castelo de Cabrieres (Aveyron), próximo do
local onde nasceu, em Millau, que se dizia ter sido, no século XVII, o lugar onde
fora escondido o Livro de Abraham, o judeu, há muito procurado, e que fora utiliza
do por Flamel para completar a Grande Obra. Em sua autobiografia, Calvé conta que
seu castelo 'fora o refúgio de um certo grupo de cavaleiros templários', mas, para n
ossa frustração, não faz mais nenhum comentário.
Alguns outros grupos ocultistas importantes começaram no Languedoc e haviam se con
ectado com as sociedades rosa-cruzes. Foram influenciados pela Maçonaria da Estrit
a Observância Templária, do Barão von Hund, embora a influência principal tenha vindo de
uma figura bastante difamada, o Conde Cagliostro (1743-1795).
Denunciado como um charlatão, esse ator natural era um genuíno investigador do conhe
cimento oculto. Nascido Giuseppe Balsamo, recebeu o título de Conde Alessandro Cag
liostro de sua madrinha. Foi apresentado ao ocultismo quando tinha vinte e três an
os, durante uma visita a Malta, onde conheceu o Grão-Mestre dos Cavaleiros de Malt
a, que era alquimista e rosa-cruz. O próprio Cagliostro pegou o vírus do ocultismo e
tornou-se alquimista e maçom, sendo fortemente influenciado pela Estrita Observânci
a Templária. Sua entrada na maçonaria se deu na rua Gerrard, no Soho, em Londres, on
de foi iniciado em uma loja da Estrita Observância Templária, em abril de 1777. Viaj
ou bastante pela Europa, mas passou a maior parte do seu tempo na Alemanha, proc
urando especificamente pelo conhecimento perdido dos templários. Também tinha reputação
como curandeiro.
Em 1789, foi a Roma em visita, após ter recebido a permissão do Papa. Quando lá chegou
logo caiu nas garras da Santa Inquisição, a mando do Papa, que o acusou de heresia
e conspiração política, condenando-o à prisão perpétua. Morreu nos calabouços da fortaleza
San Leo, em 1795.
Cagliostro havia estabelecido o sistema da maçonaria 'egípcia' (a loja-mãe foi montada
em Lyon, em 1782), que consistia em lojas masculinas e femininas, estas sendo c
omandadas por sua esposa, Serafina. Lévi disse que isso era uma tentativa de 'ress
uscitar o mistério da devoção a Ísis'.
Os frutos das pesquisas de Cagliostro nas sociedades ocultas da Europa foi um co
rpo de conhecimentos denominado o Arcana Arcanorum (Segredo dos Segredos), ou A.
A.. Esse nome foi tomado do original rosacruciano do século XVII. O texto consiste
de descrições de práticas mágicas que davam ênfase especial à 'alquimia interna'. Como já
os, essas técnicas são essencialmente sexuais, similares às do tantra, embora Cagliost
ro as tenha aprendido na Alemanha, de grupos rosa-cruzes.
Foi sob o comando de Cagliostro que o Ritual de Misraïm (hebreu para 'egípcios') ins
tituiu-se em Veneza, em 1788. Por volta de 1810 os três irmãos Bédarride trouxeram o s
istema para a França, onde foi incorporado ao Ritual Escocês Purificado.
O Ritual de Misraïm era o antecessor direto do Ritual de Memphis, que fora, como já
vimos, fundado por Jacques-Étienne Marconis de Negre e com o qual o próprio Monastério
de Sion estava associado. (Os dois sistemas unificaram-se sob a figura do Ritua
l de Memphis-Misraïm, em 1899, sob o Grão Magistério de Papus, que permaneceu no coman
do até sua morte, em 1918.)
O Ritual de Memphis também estava intimamente ligado a uma sociedade secreta chama
da os Filadelfianos, que fora fundado pelo Marquês de Chefdebien, em 1780, um outr
o ramo da Estrita Observância Templária de von Hund, embora tivesse sido especificam
ente formado para adquirir conhecimento ocultista. Marconis Negre enfatizou os l
aços íntimos com os Filadelfianos e deu este nome a um dos graus de seu movimento.
Nenhum dos rituais, o de Memphis e o Misraïm, eram por si mesmos particularmente i
nfluentes. Tomados em conjunto, como Memphis-Misraïm, no entanto, eram um poder a
ser levado em consideração, e sua influência se espalhou como uma gigantesca onda por
entre o mundo ocultista europeu. Entre seus membros estavam celebridades sombria
s como o ocultista britânico Aleister Crowley e luminares do misticismo como Rudol
f Steiner. E havia também Karl Kellner, que mais tarde iria fundar, com Theodore R
euss, a Ordem dos Templários do Oriente, mais conhecida simplesmente como OTO.
Essa organização estava, e está, explicitamente relacionada com a magia de sexo. E emb
ora fosse bastante difundido que ela era a representante do tantra ocidentalizad
o, também era o desenvolvimento lógico dos segredos ensinados em Memphis-Misraïm, os q
uais, por sua vez, derivavam do conhecimento adquirido por Cagliostro junto aos
grupos rosa cruzes alquímicos da Alemanha e das lojas da Estrita Observância Templária
.
Crowley deixou o Memphis-Misraïm para unir-se à OTO, tornando-se Grão-Mestre. Rudolf S
teiner era outra figura importante que também havia saído do Memphis-Misraïm para ingr
essar na OTO. Ele é famoso principalmente em razão de sua marca mística 'pura', a antr
oposofia, e deliberadamente tratou de diminuir sua associação com a OTO a ponto de m
uitos de seus discípulos contemporâneos mais fervorosos não terem a menor idéia de que e
le fizera parte daquela Ordem. No entanto, quando morreu foi enterrado em seu tr
aje ritual da OTO.
De modo significativo, Theodore Reuss escreveu que a magia de sexo da OTO era: '
a CHAVE que abre todos os segredos maçônicos e herméticos...' E também, de um modo um ta
nto abrupto, que a magia de sexo era o segredo dos cavaleiros templários.
Outro desdobramento do movimento Memphis-Misraïm tomou forma na Inglaterra, no sécul
o XIX. Era a hermética Ordem da Aurora Dourada, cujos membros incluíam Bram Stocker,
o gerente de teatro mais conhecido por ser o autor de Dracula; Aleister Crowley
, o poeta, patriota e místico irlandês, W. B. Yeats, e Constance Wilde, a dama de so
ciedade esposa do condenado Oscar. Fundada em 1888 por Macgregor Mathers e W. Wy
nn Westcott, sua linha direta de descendência remonta à Dourada e Rósea Cruz, à ordem da
Estrita Observância Templária, da Alemanha, examinada no capítulo anterior. A Aurora
Dourada também se utilizou de rituais do Memphis-Misraïm. No final das contas, entre
tanto, a ordem deve seu direito de existir ao Barão von Hund. Tanto as influências f
rancesas como as alemãs no fundo partem dele e de seus rituais templários.
A Aurora Dourada é bem mais conhecida no mundo de língua inglesa que aqueles outros
grupos europeus, bem mais exóticos. Tem a reputação de ser extremamente íntegra e, à prime
ira vista, parece ser uma sociedade de esotéricos que gostavam de vestir trajes ri
tuais e proferir encantamentos, mas que na verdade era pouco mais que um grupo d
e ocultistas de final de semana, com altos ideais. Contudo, entre os estudiosos
franceses do ocultismo, a Aurora Dourada tem uma reputação bem mais sinistra; quando
abriu sua filial em Paris, em 1891, ela aceitou muitos dos duvidosos personagen
s discutidos acima, inclusive o aparentemente onipresente Jules Bois.
Na realidade, até mesmo a Aurora Dourada inglesa tinha um aspecto pouco conhecido,
porém mais profundo. Consistia, na verdade, duas Ordens separadas: de um lado tin
ha uma face pública bem conhecida, respeitável, e, de outro, havia uma ordem interna
chamada a Rosa de Rubi e a Cruz de Ouro, na qual a iniciação só era possível através de c
onvite. A Ordem externa parecia agir como uma base de recrutamento para a Ordem
interna, um círculo secreto cujas práticas incluíam rituais sexuais.
Certamente a Aurora Dourada guardou muito bem seus segredos internos. Durante an
os até mesmo aqueles escritores, como Katan Shu'al, que também faziam parte do mundo
ocultista, poderiam apenas especular sobre os rituais sexuais daquela Ordem. No
entanto, parece que eles realmente existiram, embora as evidências sejam bastante
fragmentadas. Na verdade, parece que os elementos sexuais já estavam presentes na
época da fundação da Ordem. A Aurora Dourada cresceu de dentro de outra sociedade, a
Societas Rosacruciana, em Anglia, que contava entre seus fundadores com Hargrave
Jennings (1817-1890), cujos textos eram tão explícitos quanto um cavalheiro vitoria
no poderia ser quando o assunto era a magia do sexo. Em sua volumosa obra The Ro
sacrucians: Their Rites and Mysteries (1870), Jennings, nas palavras do autor Pe
terTompkins, 'insinuou tão diretamente quanto pôde que esses rituais e mistérios eram
de uma natureza fundamentalmente sexual'. Por exemplo, discutindo o simbolismo
sexual dos triângulos interligados que compõem o Selo de Salomão (ou a Estrela de Davi
), Jennings acrescenta de modo explícito:
...a pirâmide indica o correspondente poder feminino tumefato ou ascendente - não
submisso, mas responsivamente sugestivo, sincronizado no clitóris anatômico... aquel
e excêntrico objeto diminuto que tudo significa na anatomia dos rosa-cruzes.
Em 18 de julho de 1921, Moina Mathers, uma das fundadoras da Aurora Dourada (e i
rmã do filósofo Henri Bergson), escreveu a Paul Foster Case, que era o responsável pel
a filial de Nova York da Ordem, ao ouvir dizer que ele estava ensinando sexo rit
ualístico:
Eu lamento que qualquer coisa relacionada com a Questão Sexual tivesse sido introd
uzida no Templo nesta fase atual, pois apenas agora estamos começando a tratar dir
etamente dos assuntos sexuais, em graus muito mais elevados...
Então, quando a escritora ocultista e membro da Aurora Dourada, Dion Fortune (cujo
nome verdadeiro era Violet Firth) escreveu artigos sobre sexo, Moina a quis exp
ulsar por trair os segredos da Ordem. Mas por fim teve que admitir que Dion Fort
une não poderia realmente tê-los conhecido, pois não havia ainda atingido os graus nec
essários.
Comentadores como Maria K. O Greer hoje aceitam que haja evidências para apoiar a
noção de que a Aurora Dourada realmente praticava o sexo mágico, que era claramente c
onsiderado muito poderoso, e precioso demais para ser desperdiçado com seus recrut
as mais novos e com os graus baixos.
Sugestões sobre os segredos mais íntimos da Aurora Dourada também podem ser encontrada
s nas palavras que descrevem uma visão em comum que Florence Farr e Elaine Simpson
, duas adeptas daquele sistema, tiveram nos anos de 1890. Florence, uma atriz fa
mosa do palco londrino, era também bastante conhecida pelos casos que tinha com vári
os homens, inclusive George Bernard Shaw e o companheiro ocultista W. B. Yeats.
Florence e sua colega de magia, Elaine, empreenderam em conjunto uma viagem astr
al, um tipo de aventura dentro dos Canais Internos ou uma alucinação compartilhada.
Esse fenômeno é algo bastante comum nos treinamentos de magia, e normalmente faz par
te da cabalística 'abertura do caminho', um tipo de projeção mental ou associação de image
ns que são classicamente estruturadas na figura da 'Árvore de Vida'.
Florence e Elaine pretendiam visitar a 'esfera de Vênus' com os olhos da mente. O áp
ice de suas viagens astrais se deu em um encontro com um notável arquétipo feminino,
que alegremente disse:
Eu sou a poderosa Mãe Ísis; a mais poderosa em todo o mundo, eu sou a que não luta,
mas é sempre vitoriosa. Eu sou aquela Bela Adormecida a quem os homens sempre busc
aram. Os caminhos que conduzem a meu castelo estão envoltos em perigos e ilusões. Co
mo não me achará, durma; ou sempre pode apressar-se na procura de Fata Morgana, que
sempre desvia do caminho quem sente aquela influência ilusória. Eu me ergo sobre o a
lto e atraio os homens até mim. Eu sou o desejo do mundo, mas poucos há que me encon
trem. Quando meu segredo é dito, é o segredo do Santo Graal...
Tenho dado meu coração para o mundo, aí está minha força. O Amor é a Mãe do Homem-deus, doa
a quintessência de sua vida para salvar a raça humana da destruição, e mostrar adiante
o caminho para a vida eterna. Amor é a Mãe do Espírito-Cristo, e este Cristo é o mais el
evado amor. Cristo é o coração do amor, o coração da Grande Mãe Ísis, a Ísis da Natureza. E
expressão do poder dela. Ela é o Santo Graal, e Ele é o sangue da vida do Espírito que é e
ncontrado na taça.
Imagens vívidas de uma taça contendo um líquido cor de rubi e uma cruz de três barras ac
ompanhavam essas palavras.
À primeira vista isso parece um arrazoado típico da 'Nova Era', com Jesus e a deusa
egípcia Ísis misturados com a idéia do Santo Graal apenas porque soa enigmático e místico.
Porém, como escreveu recentemente o perito em ocultismo Francis X. King, existem
dois pontos significativos: 'O primeiro é a identificação da Virgem Santíssima, "Mãe do Ho
mem-deus", com Vênus, deusa do amor, ou seja, amor sexual, eros e não agapé. A segunda
é a identificação do Graal... com Vênus, o yoni arquetípico ou órgão feminino da geração.
Os leitores modernos poderiam cinicamente interpretar a visão dessas senhoras como
uma espécie de realização de um desejo, uma fantasia sexual em comum, especialmente s
e considerarmos a reputação da esfuziante Florence Farr, a contraparte britânica de Em
ma Calvé. No entanto, supostamente, a visão havia revelado um segredo que estava de
acordo com a filosofia mágica da Aurora Dourada, e certamente Francis X. King most
rou-se perplexo ao pensar sobre de onde as mulheres poderiam ter tirado esse ima
ginário, considerando que a sociedade não estava, ao menos teoricamente, conectada c
om qualquer tipo de ritual sexual. Essa visão, porém, indica fortemente que estava,
embora, mais uma vez, os rituais implicados parecessem ser exclusivos dos inicia
dos nos graus mais altos, o círculo interno.
É significativo que a visão una Ísis ao Graal e ao sexo, o que não causaria estranheza a
os alquimistas, gnósticos ou trovadores. Que o Graal, visto aqui na forma tradicio
nal de taça, é um símbolo feminino é facilmente compreendido em nosso mundo pós-freudiano,
mas ainda era bastante revelador para os que viveram antes. Mas aqui o líquido ve
rmelho, o sangue que contém, é levado por Ísis...
Bastante interessante também, o tema da Bela Adormecida, que é mencionado no relato
da visão das mulheres, também figura em grande parte do Le serpente ruge, aquele tex
to chave do Monastério de Sion. A procura da Bela Adormecida é um motivo repetido e
está entrelaçado com aquele da busca de uma rainha de um reino perdido. Como já vimos,
aquele documento também revela uma preocupação com Maria Madalena e Ísis, combinando-as
caracteristicamente na mesma figura.
A busca de uma rainha é um imaginário alquímico, e por isso não deveríamos ser pegos de su
rpresa ao encontrar essas personificações da sexualidade, Madalena e Ísis, como seu ob
jeto. Embora mesmo hoje em dia o papel da sexualidade nos movimentos heréticos e o
cultos seja bem pouco reconhecido ou admitido, sua importância dificilmente pode s
er superestimada. Sexo nunca foi um assunto secundário ou um mero passatempo parti
cular, pois sempre esteve no centro da maioria das mais poderosas organizações secre
tas.
A tradição que mais nos interessa e que está por trás desta investigação, na verdade, é dep
ente da idéia da sexualidade sagrada. Como já vimos, essa tradição parece conter duas gr
andes correntes: a que reverencia Madalena e a que reverencia João Batista. Naquel
a altura de nossa pesquisa nos encontrávamos diante da possibilidade de que Madale
na fosse apenas uma figura simbólica que representava o sexo, e que sua imagem não e
stava realmente relacionada a qualquer figura histórica. De qualquer forma, a cone
xão entre Maria Madalena e sexo não é difícil de compreender e parece ser perfeitamente
natural.
Não é bem assim, é claro, se considerarmos a corrente concernente a João Batista, associ
ada à sexualidade sagrada. O relato bíblico e a tradição cristã têm criado uma atraente e d
radoura visão de um homem que era asceta ao extremo, uma espécie de personagem de Jo
hn Knox, de moral inflexível e celibato inabalável. Como poderia justamente ele ter
se tornado tão importante aos cultos baseados em práticas sexuais? Visto da superfície
parece nunca ter havido, e nunca poderia ter acontecido, qualquer espécie de cone
xão, e mais uma vez nossa investigação revelou que gerações após gerações de ocultistas acr
vam, para dizer o mínimo, na existência dessa conexão. E como vimos no caso da Aurora
Dourada, a primeira impressão de qualquer grupo ocultista pode ser bastante engana
dora. A sua verdadeira raison d'être pode causar grandes surpresas.
Florence Farr e seus companheiros da Aurora Dourada pertenciam a um grande círculo
de ocultistas internacionais, que incluía Péladan e Emma Calvé. As sociedades às quais
eles estavam associados eram extremamente influentes, e foi a rede de sociedades
que forneceu a moldura de um dos mistérios franceses mais famosos e que estava in
timamente relacionado com o Monastério de Sion.
O ponto central dos Dossiês secretos e materiais semelhantes que procediam do Mona
stério de Sion é, sem qualquer dúvida, o mistério de Rennes-le-Château. Por exemplo, Le se
rpent rouge repetidamente faz alusão a locais nas proximidades dessa aldeia. Dific
ilmente poderíamos evitar de focar nossa atenção em Rennes-le-Château, e mais uma vez no
s vimos de volta ao Languedoe, o berço da heresia.
CAPÍTULO VIII
"Este é um Lugar Terrível"
Rennes-le-Château já se tornou até agora pelo menos uma espécie de clichê do mundo ocul
ta, quase que do mesmo quilate que o Graal e tão evasivo quanto. No entanto, esse
lugar existe de verdade, e foi aqui que encontramos os esclarecimentos que buscáva
mos. Essa aldeia pode ser comparada com a britânica Glanstonbury, pois os dois lug
ares parecem conter mistérios profundos, embora proporcionem os mitos e as suposições
mais jocosas, e bastante disseminadas.
Rennes-le-Château fica na região do Languedoc conhecida como Aude, próxima à cidade de L
imoux, que dá nome a seu famoso blanquette, ou vinho espumante, na área que nos século
s VIII e IX era conhecida como Razès. Partindo da pequena cidade de Couiza, grande
s placas sinalizam uma pequena estrada onde um cartaz indica 'Domaine de Abbé Saun
iere'. Seguindo essas indicações, os motoristas se vêem em uma curiosa estrada que sob
e como uma escada em caracol até chegar ao topo, onde fica o vilarejo de Rennes-le
-Château.
Para nós, como para muitos hoje em dia, essa rota é excitante. Graças principalmente a
o The Holy Blood and the Holy Grail, mas também à lenda transmitida oralmente, essa
viagem simples às montanhas francesas rapidamente torna-se quase que uma espécie de
iniciação. No entanto, o local onde os visitantes costumeiramente fazem sua parada é b
astante prosaico. O caminho de acesso leva inevitavelmente a um estacionamento,
através de uma estreita 'grand rue' que não tem nem mesmo uma agência de correio ou um
a pequena loja de departamentos, mas que, no entanto, conta com uma livraria esp
ecializada em esoterismo, um bar/restaurante, o arruinado castelo que dá nome à alde
ia, e pequenas ruelas que vão dar na igreja notavelmente pequena e no presbitério.
Esse lugar tem uma história sinistra e, mesmo, uma reputação obscura, ainda que um tan
to vaga. Em resumo, a história é a de que François Berénger Sauniere (1852-1917), um pad
re comum, nascido e criado na aldeia de Montazels, a apenas três quilômetros de Renn
es-le-Château, fez uma descoberta durante uma das intermináveis reformas que realizo
u em sua paróquia do século X, há apenas cem anos atrás. Como resultado de sua descobert
a, ou em virtude de seu valor intrínseco, ou porque isso o levou a algo que poderi
a significar vantagem financeira, tornou-se imensamente rico.
As especulações têm variado ao longo dos anos em relação à verdadeira natureza da descobert
: de modo bastante prosaico tem se sugerido, no mais das vezes, que ele teria en
contrado um enorme tesouro, enquanto outros acreditam que o que ele descobriu fo
i algo bem mais assombroso, algo como a Arca da Aliança, ou o tesouro do Templo de
Jerusalém, o Santo Graal, ou até mesmo a tumba de Cristo, uma idéia que foi recenteme
nte expressa na obra The Tomb of God, de Richard Andrews e Paul Schellenberger (
1996).
Tínhamos que ir a Rennes-le-Château porque, de acordo com os Dossiês secretos e com o
The Holy Blood and the Holy Grail, esse lugar era particularmente significativo
para o Monastério de Sion, embora permaneça obscura a razão para isso. O Monastério afir
ma que Sauniere descobrira alguns pergaminhos que continham a informação da árvore gen
ealógica que prova a continuidade da dinastia merovíngia, e estabelece o direito de
certos indivíduos de reivindicar o trono da França, como Pierre Plantard, de Saint-C
lair. Entretanto, como ninguém que não pertencesse ao Monastério realmente examinou es
ses pergaminhos, e toda a história da continuidade da linhagem da dinastia merovíngi
a é duvidosa, para dizer o mínimo, há poucas razões para realmente nos aprofundarmos nes
sa questão.
Existe ainda um outro problema, uma gritante inconsistência, na história do Monastério
. Se esse realmente tivesse existido, por séculos, unicamente para proteger os des
cendentes merovíngios e estabelecer o direito de determinados indivíduos de reivindi
car o trono da França, é bastante curioso que os membros do Monastério tenham recebido
de bom grado as informações concernentes a quem deveriam ser esses descendentes. Po
is, com certeza, eles mais do que ninguém deveriam saber quem eram os que haviam j
urado defender, do contrário dificilmente teriam essa espécie de zelo fanático, que pe
rdurava por séculos e que, por sua vez, manteve viva a organização por tanto tempo! Co
nfiar no que, aparentemente, é apenas uma raison d'être em retrospectiva é suspeito, p
ara dizer o mínimo.
Não obstante, ficamos intrigados com a importância atribuída à aldeia pelo Monastério. Exi
stem duas possíveis razões para isso: uma é que o vilarejo realmente tem um grande sig
nificado, mas não pelas razões colocadas nos Dossiês; a outra é que a história de Sauniere
não tem nenhuma conexão real com o Monastério e que esse apropriou-se do mistério por o
utras razões. Devemos, então, descobrir qual das duas hipóteses está mais próxima da verda
de.
Ao chegar ao estacionamento da aldeia, o visitante se depara com uma visão estonte
ante do Vale do Aude, com os picos dos Pireneus cobertos de neve. É fácil perceber p
or que, no passado, esse vilarejo aparentemente insignificante era considerado d
e alta importância estratégica, pois com certeza a visão da possível chegada de um inimi
go era algo inigualável. Essa é a razão de Rennes-le-Château ter sido no passado uma for
taleza visigoda: alguns chegam a ponto de identificá-la como a cidade perdida de R
hedae, que era parecida com Carcassonne e Narbonne, embora seja difícil acreditar
que já houve um tempo em que esse agrupamento isolado de casas foi uma barulhenta
metrópole. No entanto, o lugar ainda tem seu magnetismo: embora apenas cerca de ce
m pessoas realmente morem em Rennes-le-Château, o vilarejo recebe cerca de 25.000
visitantes por ano.
A torre de água, que se ergue dentro do estacionamento, contém os símbolos do zodíaco, u
m motivo que é repetido acima das portas de alguns chalés. Para nosso desapontamento
, porém, isso é apenas um costume da região. Contudo, todos os olhos voltam-se para o
extravagante prédio construído na beirada do despenhadeiro, parecendo brotar da face
escarpada da aldeia, quase como uma gota de água que se equilibra na boca da torn
eira antes de cair. Esse prédio é a biblioteca e sala de estudos particular de Sauni
ere, conhecida como Tour Magdala (Torre de Magdala). Faz parte de seu domaine e
foi aberta recentemente ao público. Parece-se com aquelas torres de ataque dos cas
telos medievais, numa versão menor. A torre em um de seus lados nos leva a uma com
prida plataforma, que vai até uma abandonada estufa de plantas. Nas salas que fica
m abaixo da plataforma existe um museu, que é dedicado à vida de Sauniere e ao mistéri
o que o rodeou. Um jardim separa a torre da casa grande, Villa Bethania, que foi
construída com a riqueza inexplicável amealhada por Sauniere, e onde algumas das sa
las estão abertas ao público. Logo em frente, ao redor de um caminho de cascalhos, há
uma pequena gruta construída pelo próprio padre com pedras especialmente escolhidas
e trazidas de um vale nas redondezas, provavelmente com muito esforço. Então, chega-
se ao cemitério e à dilapidada igreja, que é dedicada a Maria Madalena.
Dada a fama da igreja ficamos um tanto surpresos ao verificar como é tão pequena; qu
alquer desapontamento, porém, é mais do que suplantado pela famosa e bizarra decoração f
eita pelo abade Sauniere. Essa, no mínimo, foi feita com a deliberada intenção de caus
ar estupefação.
Sobre o pórtico, com seus quase cômicos pássaros de gesso branco de segunda categoria
e telhas amarelas quebradas, estão gravadas as seguintes palavras: Terribilis est
locus iste ('Este é um lugar terrível'), uma citação do Livro do Gênesis (28:17) que é comp
ementada, em latim, no arco sobre o pórtico: 'Esta é a casa de Deus e o Portão Celesti
al'. Destaca-se uma estátua de Maria Madalena colocada sobre a porta, enquanto o p
ainel é decorado com triângulos equiláteros e rosas esculpidos em cruzes. Muito mais i
nteressante, porém, é a visão de um demônio de gesso, todo contorcido, que aparentemente
guarda a entrada, que está imediatamente após o pórtico. Curvado e careteiro, curva-s
e de um modo significativo, enquanto segura em seus ombros a pia batismal. Esta,
por sua vez, porta quatro anjos, cada um fazendo um dos gestos que envolve o si
nal da cruz, enquanto as palavras Par ce signe tu le vaincras ('Por este sinal vós
o conquistareis') estão inscritas na parte de baixo. Na parede há um quadro mostran
do o batizado de Jesus, que foi retratado em uma posição que é precisamente a imagem d
o demônio no espelho. Tanto o demônio quanto Jesus olham fixamente para uma parte do
chão, que se parece com um tabuleiro de xadrez. No quadro, repete-se o motivo da
pia batismal em forma de concha que é segurada pelo demônio. Há um claro paralelo entr
e as duas imagens, entre o demônio e o batizado de Jesus. (Em abril de 1996, em um
dos muitos atos de vandalismo a que a capela já esteve sujeita, o demônio e sua cab
eça foram serrados e roubados por um desconhecido).
Se nos postarmos sobre o chão xadrez preto-e-branco e olharmos a pequena paróquia de
Santa Madalena, em um primeiro momento parece ser uma típica igreja católica da época
e da região. Exageradamente decorada com santos de gesso extravagantes, como Sant
o Antônio, o Ermitão, e São Rocha, ela contém o costumeiro mobiliário de uma igreja. No en
tanto, ela merece um exame mais profundo, pois há por toda parte um certo toque id
iossincrático. Por exemplo, a Via Sacra, que geralmente é em sentido anti-horário, aqu
i inclui um garoto metido em um kilt e uma pequenina criança negra. E o toldo sobr
e o púlpito tem o formato do Templo de Salomão.
O baixo-relevo defronte ao altar era, pelo menos assim se afirma, o orgulho e a
paixão de Sauniere: ele próprio deu os retoques finais nessa obra. O baixo-relevo re
trata uma Madalena em traje dourado, curvada em atitude de oração, um livro aberto e
m frente a ela e uma caveira a seus pés. Seus dedos estão, curiosamente, cruzados de
um modo conhecido como latté. Uma cruz aparentemente feita de uma árvore delgada, c
om uma folha incompleta, eleva-se em frente a ela, e além da gruta de pedra onde e
la se prostra pode-se ver uma distinta forma de construções recortadas contra a linh
a do horizonte. Curiosamente, embora a caveira e o livro aberto sejam partes ace
itáveis da iconografia de Madalena, a tradicional jarra de óleo de nardo está ausente.
Ela também aparece no vitral sobre o altar, onde parece estar se levantando de uma
mesa para untar os pés de Jesus com o precioso ungüento. Em toda a igreja existem q
uatro imagens de Madalena, o que, mesmo levando-se em conta o fato de ela ser a
santa padroeira da igreja, parece ser algo um tanto excessivo para uma construção tão
pequena. O envolvimento de Sauniere com Madalena é reforçado pelo nome de sua biblio
teca, a Torre de Magdala, e de sua casa, a Villa Betânia. Betânia foi o lar bíblico da
família que incluía Lázaro, Marta e Maria.
Há uma sala secreta por trás do armário da sacristia, mas até mesmo isso raramente é perce
bido pelos visitantes. Sua única janela, que não é claramente visível do lado de fora, p
arece descrever em seu vitral a tradicional cena da crucificação. Contudo, como virt
ualmente qualquer coisa nesse 'lugar terrível' , nada é exatamente o que parece ser.
Somos atraídos para a paisagem ao longe, que pode ser vista por debaixo dos braços
do homem que está na cruz; a paisagem é claramente o foco verdadeiro da pintura. Nes
sa, mais uma vez, está o Templo de Salomão.
Até mesmo a entrada para o cemitério é incomum: o arco da entrada é decorado com uma cav
eira de metal e ossos cruzados, um emblema dos cavaleiros templários, e há ainda um
bizarro sorriso arreganhado mostrando 22 dentes. Entre os túmulos, ornamentados co
m elaborados arranjos florais e fotografias dos que já partiram, comum em vários dos
típicos cemitérios franceses, está o da família dos Bonhommes. Em qualquer outro lugar,
talvez, isso dificilmente poderia ser fonte de qualquer comentário; nesse lugar,
porém, tal nome nos remete aos cátaros - les Bonhommes - e sugere algo particularmen
te pungente. O túmulo de Sauniere, com um baixo-relevo retratando seu perfil, rece
ntemente danificado levemente por vândalos, está colocado no muro que separa o cemitér
io de seu domaine. Marie Dénamaud, sua leal governanta, se não muito mais que isso,
está enterrada a seu lado.
Não é nosso propósito entrar em detalhes sobre o que na verdade é uma história completamen
te banal. Suspeitando, porém, que o mistério de Rennes iria resultar em algumas pist
as sobre a continuidade da tradição secreta, não nos sentíamos nem desapontados nem enga
nados. Como já vimos, encontramos evidências de uma complexa série de conexões que remet
iam para a tradição gnóstica da região, um lugar que sempre fora notório por seus 'hereges
', sejam os cátaros, os templários ou as assim chamadas 'bruxas'. Desde a desgraça da
Cruzada de Albi, o povo local nunca mais acreditou totalmente no Vaticano, e ass
im este passou a ser o berço ideal para idéias não ortodoxas, além daquelas relacionadas
com os interesses políticos das minorias. No Languedoc, com suas longas e amargas
memórias, a heresia e a política sempre andaram de mãos dadas, como talvez ainda o faça
m.
Em Sauniere encontramos um pároco rebelde e apóstata. Dificilmente poderíamos dizer qu
e era um típico clérigo de uma cidadezinha. Conhecia o grego bem como o latim, e era
subscritor regular de um periódico alemão. Tenha encontrado ou não um tesouro ou um s
egredo, é improvável que 'o negócio de Rennes' tenha sido uma completa farsa. Existem,
porém, muitas razões para se pensar que a história do modo como é contada seja uma comp
leta empulhação.
A seqüência exata dos fatos é de difícil reconstrução, já que se baseia muito mais na memór
s habitantes do lugar do que em documentação comprovada. Sauniere assumiu seu posto
como pároco no início de junho de 1885. Em poucos meses ele se viu envolvido em prob
lemas por ter proferido de seu púlpito um inflamado sermão anti-republicano (durante
as eleições do ano), e foi temporariamente afastado de suas obrigações. Reinstalado no
verão de 1886, recebeu como presente 3.000 francos da Condessa de Chambord - viúva d
e um pretendente ao trono francês, Henri de Bourbon, que reivindicava o título de He
nrique V -, em reconhecimento por seus serviços em favor da causa monarquista. Apa
rentemente, usou o dinheiro para reformar a antiga igreja, e em muitos relatos é d
ito que foi nessa época que o pilar visigodo, que suportava o altar, foi removido,
e dentro dele, segundo se diz, ele encontrou certos pergaminhos codificados. Is
so, no entanto, parece improvável, pois seu comportamento excêntrico e seus projetos
ambiciosos não tiveram início senão no ano de 1891. Foi mais ou menos nessa época que o
sineiro, Antoine Captier, encontrou algo importante. Alguns dizem que foi um ci
lindro de madeira, enquanto outros afirmam que foi um frasco de vidro: seja lá o q
ue for, acredita-se que nele estavam contidos pergaminhos enrolados ou documento
s que ele deu a Sauniere. E parece que foi essa descoberta que deu início às ações pecul
iares do pároco.
A versão tradicional diz que Sauniere apresentou os pergaminhos a seu bispo, Félix-A
rsene Billard, em Carcassonne, e que isso precipitou sua viagem a Paris. Costuma
-se dizer que Sauniere fora aconselhado a levar os documentos para que fossem de
codificados por um especialista, um tal de Émile Hoffet, que na época era um jovem s
eminarista, mas que na verdade tinha um profundo conhecimento sobre o ocultismo
e o mundo das sociedades secretas (mais tarde ele ensinou na igreja de Notre-Dam
e de Lumieres, em Goult, local de uma Madona Negra que tem especial importância pa
ra o Monastério de Sion). O tio de Hoffet era diretor do Seminário do Santo Sepulcro
em Paris.
A igreja de St. Sulpice (Santo Sepulcro) distingue-se pelo fato do meridiano de
Paris, que passa bem próximo de Rennes-le-Château, estar demarcado por uma linha de
cobre que cruza o chão. Construída sobre as fundações de um templo dedicado a Ísis, em 164
5, foi fundada por Jean-Jaques Olier, que a projetara de acordo com a Razão Áurea da
geometria sagrada. Seu nome era uma homenagem ao bispo de Bourges na época do rei
merovíngio Dagoberto II, e seu dia comemorativo é 17 de janeiro, uma data que nos t
raz à memória os mistérios do Monastério e de Rennes-le-Château. Grande parte do romance s
atânico de J. K. Huysmans, Là-Bas, ocorre em Saint Sulpice, e o seminário vinculado à ig
reja era notoriamente pouco ortodoxo (para dizer o mínimo), no final do século XIX.
Também serviu como sede de uma misteriosa sociedade secreta chamada Compagnie du S
aint-Sacrement, que - já foi insinuado - servia de testa-de-ferro para o Monastério
de Sion.
Durante a estada de Sauniere em Paris, que ocorreu ou no verão de 1891 ou na prima
vera de 1892, Hoffet o apresentou à crescente sociedade ocultista que estava centr
ada na figura de Emma Calvé, e que incluía alguns personagens como Joséphin Péladan, Sta
nislas de Gualta, Jules Bois e Papus (Gérard Encausse). Existe um persistente boat
o de que Sauniere e Emma foram amantes.
Diz-se que Sauniere visitou a igreja de Saint Sulpice e examinou certas pinturas
que lá havia, e, de acordo com a história que tradicionalmente se conta, comprou re
produções de pinturas específicas do Louvre (o que será examinado mais adiante). Ao reto
rnar para Rennes-le-Château, começou a decorar sua igreja e as construções de seu domain
e.
A visita a Paris é uma parte essencial do mistério de Sauniere, e tem sido objeto de
intenso exame por parte de pesquisadores, desde então. Não existe nenhuma prova dir
eta de que ela realmente tenha acontecido. Uma fotografia de Sauniere em que está
inscrito o nome de um estúdio em Paris, que sempre fora tida como a prova da existên
cia da viagem, recentemente certificou-se ser, na verdade, de seu irmão mais novo,
Alfred (padre também). Afirma-se também que a assinatura de Sauniere aparece no liv
ro de missa de Saint Sulpice, mas isso nunca foi confirmado. O escritor Gérard de
Sède, que possui alguns dos documentos de Hoffet, afirma que eles contêm uma nota do
encontro com Sauniere em Paris (sem data, infelizmente), mas até onde sabemos não e
xiste nenhuma comprovação independente disso, tampouco. Como grande parte dessa histór
ia, baseia-se na memória dos aldeões e de outros. Por exemplo, Claire Captier, nasci
da Corbu, filha de um homem que em 1946 comprou o domaine de Sauniere de Marie Dén
arnaud - que viveu com os Corbus até sua morte em 1953 - afirma enfaticamente que
a viagem a Paris realmente aconteceu.
Seja lá o que for que Sauniere tenha encontrado, aparentemente o tornou rapidament
e muito rico. Quando pela primeira vez ele assumiu sua posição, seus estipêndios eram
de 75 francos por mês. No entanto, entre 1896 e a data de sua morte, em 1917, ele
gastou uma quantia bastante grande, talvez não 23 milhões de francos, como afirmam a
lguns, mas certamente algo como 160 mil francos por mês.Tinha contas em bancos em
Paris, Perpignan, Toulouse e Budapeste, e investiu pesadamente em ações, fundos e apól
ices, de modo algum aplicações financeiras apropriadas ou comuns para um padre do in
terior. Foi dito que ele ganhou seu dinheiro comercializando suas missas (cobran
do para rezar missas que livrariam o pagante de alguns anos no purgatório), mas em
bora com certeza tenha feito isso, como dizem historiadores franceses, como René D
escadeillas, conhecido como o homem que liderou o desmascaramento do mistério de S
auniere, isso não poderia ter 'produzido os fundos necessários para que fosse possível
erguer tantas construções e ao mesmo tempo viver de forma tão folgada. Portanto, devi
a haver algo mais'.' De qualquer forma, seria o caso de se perguntar o porquê de t
antas pessoas quererem assistir a missa de Sauniere, um padre rural insignifican
te de uma paróquia remota.
Ele e Marie Dénarnaud foram criticados por terem um estilo de vida dispendioso: el
a sempre estava vestida conforme os ditames da última moda de Paris (dizem que ess
a é a razão de seu apelido, 'La Madonne', a Madona) e se divertiam de um modo totalm
ente desproporcionado, confrontando-se os rendimentos que oficialmente recebiam,
ou em relação à sua posição social. Além disso, os ricos e famosos faziam a penosa viagem
té Rennes-le-Château apenas para ficarem com eles (em virtude de alguma estranha razão
, contudo, Sauniere só ocupava a Villa Bethania para se divertir, preferindo morar
no presbitério que ficava ao lado da igreja). Seus visitantes incluíam o príncipe Hab
sburgo, que preferia ser chamado pelo evocativo nome de Johann Salvator von Habs
burg, um ministro do governo e Emma Calvé.
Contudo, não era apenas a oferta de uma estadia luxuosa que atraía a hostilidade de
muitos: Sauniere e Marie começaram a cavar no cemitério durante a noite. Embora de m
odo geral possamos apenas especular sobre o que eles estavam procurando, é sabido
que apagaram as inscrições da lápide e da laje que cobria a sepultura de Marie de Negr
e d'Ables - uma mulher da região pertencente à nobreza e que morreu em 17 de janeiro
de 1781 -, provavelmente para destruir a informação que nela estava contida. Eles n
em sequer ficaram sabendo que todo esse esforço foi em vão, pois já havia uma cópia da i
nscrição graças a visitantes que eram membros de sociedade de antiquários da região. Como
veremos, a ansiedade de Sauniere em destruir a inscrição tem um grande significado p
ara nossa investigação.
Mais ou menos na época da suposta viagem a Paris, Sauniere removeu a 'Pedra dos Ca
valeiros', perto do altar, uma placa esculpida datando da época dos visigodos, que
retratava um cavaleiro em seu cavalo com uma criança. Parece que ele encontrou al
go de suma importância embaixo dela, talvez um outro rolo de documentos ou artefat
os, ou a entrada de uma cripta. Ninguém sabe ao certo se Sauniere recolocou o piso
, mas em seu diário está registrado, no dia 21 de setembro de 1891, a seguinte e eni
gmática frase:'Carta de Granes. Descoberta de uma tumba. Choveu.'
As escavações noturnas de Sauniere provocaram escândalo, mas foi o comércio de missas qu
e provocou a fúria das autoridades a ponto dele ter sido proibido de exercer suas
funções como padre. Chegou a ser enviado para uma outra paróquia, mas recusou-se termi
nantemente a obedecer, e resolutamente continuou a morar em Rennes-le-Château, com
Marie. Quando a Igreja enviou um outro padre para a aldeia, Sauniere simplesmen
te celebrou uma missa não-oficial na Villa Bethania para os aldeões, que haviam perm
anecido leais a ele.
De todos os mistérios que cercam Sauniere, talvez um dos mais duradouros seja o qu
e se seguiu a sua morte. Ele adoeceu em 17 de janeiro de 1917: cinco dias depois
estava morto, e seu corpo foi colocado na plataforma do terraço de sua propriedad
e, sentado em uma cadeira, a céu aberto, para que os aldeões, e outros que chegaram
a fazer viagens bem longas para ali estar, fizessem uma fila para arrancar pompo
ms vermelhos de seu manto. Sua última confissão foi ouvida pelo padre do lugarejo vi
zinho de Espéraza, e seja lá o que for que tenha dito, produziu um efeito profundo,
pois como afirma René Descadeillas: . ...daquele dia em diante, o velho padre não fo
i mais o mesmo; ele realmente sofreu um choque'.
Após sua morte, a leal Marie Dénarnaud morou na Villa Bethania. Sauniere, que, como
padre, não tinha o direito de possuir quaisquer bens, havia comprado as terras no
nome dela. Ela tornou-se mais e mais reclusa, terminando por receber a pecha de
irascível, resistindo às muitas tentativas de compra de sua cada vez mais abandonada
propriedade. Contudo, finalmente em 1946, no dia de comemoração à Maria Madalena, ela
a vendeu para Noêl Corbu, um homem de negócios, com a condição de poder passar o resto
de seus dias lá.
A filha de Corbu, Claire Captier, lembrava-se de ter morado lá quando era criança. D
e acordo com ela, Marie visitava a cova de Sauniere todos os dias, e no meio de
todas as noites. Marie falou à jovem Claire sobre um fenômeno extraordinário que ocorr
ia com alguns visitantes. Ela teria dito, 'nessa noite fui seguida por vários fogo
s-fátuos do cemitério'. Perguntada se havia ficado com medo, ela respondeu, 'estou a
costumada com isso... ando devagar, e eles me seguem... quando paro, eles também p
aram, e quando fecho os portões do cemitério, todos eles desaparecem.'
Claire Capter também se lembra de Marie dizer, 'Com o que o Senhor Cura deixou, po
der-se-ia alimentar toda Rennes por uma centena de anos e ainda sobraria.' E qua
ndo perguntada por que, se tanto dinheiro havia sido deixado para ela, vivia com
o se fosse uma pobretona, ela retrucou, 'Não posso tocá-lo'. E em 1949, quando soube
que os negócios de Corbu passavam por dificuldades, ela disse,' Não se preocupe tan
to, meu bom Noêl... um dia lhe direi um segredo que o fará um homem rico... muito ri
co! 'Infelizmente, nos meses que se passaram até sua morte em janeiro de 1953, ela
tornou-se senil, e o segredo foi enterrado com ela.
Mas do que se trata, afinal, a história de Sauniere? Parece que ele estava se
ndo pago por alguma agência secreta para permanecer na aldeia (mesmo quando já era r
ico e não mais o padre de paróquia que havia escolhido ser), embora os pagamentos pu
dessem ser incertos. Sua riqueza não consistia de um único amontoado de dinheiro, co
mo alguns chegaram a sugerir, pois seu fluxo de caixa era variável. Com freqüência viv
ia períodos de vacas magras, para então se recuperar e viver, durante meses, cercado
de grande luxo. Na época de sua morte estava comprometido com grandes projetos, q
ue teriam custado pelo menos 8 milhões de francos: construir uma via decente para
a vila, pela qual pudesse trafegar um carro que pretendia comprar, levar água enca
nada a todas as casas, construir uma piscina batismal e uma torre de 70 metros,
de onde pretendia conclamar seus paroquianos a orar.
Fortes candidatos a serem os pagantes são os monarquistas, e nesse caso existe um
outro, e diferente, mistério. Que tipo de serviço Sauniere poderia prestar a estes q
ue resultasse no pagamento de tão grandes somas? Sua obsessão por Maria Madalena pod
eria de algum modo indicar a razão subjacente para receber gratificações tão estupendas?
Há, com certeza, outras coisas mais nesse enriquecimento do que um envolvimento e
m uma conspiração política. Suas poucas memórias remanescentes revelam, conforme nos diz
Gèrard de Sède:
uma curiosa devoção ao Bona Dea, ao eterno princípio feminino que, nas palavras de Bér
enger [Sauniere], parecem transcender crenças e fé."
Mais uma vez encontramos segredos relacionados com o Princípio Feminino, personifi
cados na figura de Madalena...e com uma clara conexão com o Monastério de Sion, cuja
veneração por Ísis e pela Madona Negra é pública e notória. E, como ainda veremos, os arre
ores de Rennes-le-Château possuem muitas outras pistas relacionadas com a continui
dade do culto a essas deusas.
E em relação aos pergaminhos supostamente encontrados por Sauniere (de acordo com fo
ntes do Monastério de Sion)? Os pergaminhos consistiriam de duas genealogias relat
ivas à sobrevivência da dinastia merovíngia e outras duas relacionadas a excertos dos
Evangelhos, nos quais algumas letras, que estão marcadas, conteriam mensagens codi
ficadas. Os pergaminhos na verdade nunca foram vistos, mas supostas cópias dos tex
tos em código foram fartamente publicadas, sendo sua primeira aparição em 1967, no L'O
r de Rennes, de Gérard de Sède e sua mulher Sophie. Na verdade, embora não seja merece
dor de muito crédito, Pierre Plantard de Saint-Clair afirmou ser co-autor desse li
vro. ..
Esses textos já foram assunto de dezenas de trabalhos e de prolongadas especulações. A
s letras marcadas no pergaminho, no relato do Novo Testamento sobre Jesus e seus
discípulos no campo de trigo no Sabbath, quando lidas simplesmente em seguida, re
sultam em:
A DAGOBERT II ET A SION EST CE TRESOR ET IL EST LA MORT (PARA/POR DAGOBERTO II R
EI E PARA/POR SION É ESSE TESOURO E ELE É A MORTE ou E ELE ESTÁ LÁ MORTO)
O outro texto explicitamente descreve Jesus sendo ungido por Maria de Betânia .A v
ersão decodificada é geralmente esta:
BERGERE PAS DE TENTATION QUE POUSSIN TENIERS GRADENTE LA CLEF PAX 681 PAR LA C
ROIX ET CE CHEVAL DE DIEU J'ACHEVE CE DAEMON DE GARDIEN A MIDI POMMES BLEUE
(PASTORA NÃO CREIAS QUE POUSSIN TENIERS TEM A CHAVE PARA A PAZ 681 PELA CRUZ E E
SSE CAVALO DE DEUS EU COMPLETO [OU MATO] ESSE DEMÔNIO GUARDIÃO DAS MAÇÃS AZUIS DO MEIO-D
IA [OU DO SUL])
Decifrar esse código foi muito mais complexo do que o primeiro. Ao ler as letras m
arcadas nesse caso obtém-se 'REX MUNDI' (expressão latina para 'Rei do Mundo', um te
rmo gnóstico para o deus desta terra, que era utilizado pelos cátaros), mas outras 1
40 palavras estranhas foram acrescentadas, tomando a decodificação um processo extre
mamente tortuoso para se obter a mensagem 'Pastora não creias'''. (O sistema utili
zado foi inventado pelo alquimista francês Blaise de Vignère, que era secretário de Lo
renzo de Medici). A mensagem final é um anagrama perfeito da inscrição da lápide de Mari
e de Nègres (assunto que será discutido no próximo capítulo).
Embora não haja qualquer dúvida de que a decodificação da mensagem está correta, houve por
sua vez muitas tentativas inventivas e imaginativas para explicar ou dar sentid
o a tudo isso. Nenhuma delas, contudo, é completamente satisfatória.
O problema com esses pergaminhos é que aquele Philippe de Chérisey, parceiro de Pier
re Plantard de Saint-Clair (e provavelmente seu sucessor como Grão-Mestre do Monas
tério de Sion, em 1984), mais tarde admitiu que as havia produzido em 1956 (quando
confrontado com isso pelos autores de The Holy Blood and the Holy Grail em 1979
, Plantard de Saint-Clair afirmou que Chérisey apenas as copiara, mas não foi totalm
ente convincente."). De qualquer ângulo que sejam vistos os pergaminhos, temos que
admitir que esse é um plano muito bem-sucedido para fazer com que muita gente gas
te e perca boa parte de seu tempo, e são muito pouco confiáveis para fornecer direci
onamentos para uma investigação acerca da história de Sauniere.
No entanto, se o padre não encontrou nenhum pergaminho, talvez tenha realmente enc
ontrado algum tipo de tesouro, como acreditam muitas pessoas. Com certeza, ele e
ncontrou um esconderijo de moedas antigas e jóias, na igreja, porém, como toda a reg
ião é rica em achados arqueológicos, tal descoberta dificilmente teria atraído tanto int
eresse para a história de Sauniere. Muitas pessoas acreditam que ele encontrou a g
enuína caverna de Aladim com suntuosos tesouros, tão valiosos que ele e seus amigos
não conseguiram consumi-los totalmente, e haveria ainda um bocado dele esperando q
ue algum aventureiro intrépido o encontre. Foi sugerido que o elaborado simbolismo
presente na igreja, em conjunto com várias outras mensagens codificadas, como 'Maçãs
Azuis' do pergaminho, pretendem dar ao aventureiro pistas de onde possa estar o
restante do tesouro encontrado por Sauniere.
Embora seja uma idéia muito romântica, é um total e completo absurdo. Primeiro, é pouco
provável que essa hipótese seja capaz de explicar seus constantes problemas de caixa
; segundo, ele inventou os assim chamados mapas do tesouro (o simbolismo da sua
igreja), o que não é uma coisa lá muito inteligente se acaso ele tencionasse guardar o
dinheiro para si mesmo. Por último, se a igreja é essencialmente um grande mapa do
tesouro aberto ao público em geral (não importa o quão antigo), e se ele queria que ap
enas determinadas pessoas o encontrassem, então por que ele simplesmente não contou
a elas? E seu achado dificilmente explicaria a razão da riqueza e influência das pes
soas que queriam visitá-lo em sua remota paróquia no alto da montanha.
Dadas todas essas evidências, parece que Sauniere estava sendo pago por alguém ou al
go, algum tipo de serviço que envolvia sua permanência em Rennes-le-Château, onde ele
insistia em morar mesmo quando lhe ordenavam que se mudasse. Suas atividades rev
elam que ele definitivamente buscava alguma coisa: suas escavações noturnas no cemitér
io, suas longas caminhadas pelas redondezas, e mesmo as viagens para locais dist
antes, que duravam vários dias. No entanto, era de suma importância que se pensasse
que ele ainda estava em Rennes-le-Château, a ponto de fazer com que durante suas a
usências Marie Dénarnaud regularmente respondesse às cartas que lhe eram enviadas, diz
endo que ele estava muito ocupado para poder responder pessoalmente daquela vez
(alguns desses estoques de respostas foram encontrados nos documentos dele após su
a morte).
Um novo ângulo apareceu na história de Sauniere em 1995, quando o esoterista André Dou
zet construiu uma maquete com uma paisagem em relevo, que Sauniere supostamente
encomendou pouco antes de sua morte'. A maquete mostra vales e colinas e o que p
arecem ser estradas ou rios atravessando-a. Existe um único prédio, um quadrado em u
ma das colinas. Ostensivamente, ela retrata a região ao redor de Jerusalém, e locais
bíblicos como o Jardim de Gethsemane e o Gólgota são indicados. Entretanto, a paisage
m da maquete de forma alguma bate com aquela de Jerusalém: talvez porque na verdad
e ela retrate a região ao redor de Rennes-le-Château. Teria Sauniere tentado transfo
rmar sua propriedade em uma Nova Jerusalém?"
É possível passar toda uma vida estudando as possibilidades relacionadas ao mistério d
e Rennes-le-Château: realmente talvez seja essa sua função, ser glorificado e encobrir
os assuntos reais. Não obstante, esse assunto sem dúvida é significativo, e desviou t
oda a atenção de um outro envolvimento igualmente sugestivo na região ao redor.
Outros padres das paróquias vizinhas estavam implicados no caso, incluindo o super
ior de Sauniere, Félix-Arsene Billard, Bispo de Carcassonne. Ele supostamente envi
ou Sauniere a Paris e colocou uma venda nos olhos para não enxergar o comportament
o excêntrico e escandaloso deste (foi apenas após a morte de Billard, em 1902, e com
a nomeação de seu sucessor, que Sauniere foi processado). E o próprio Billard estava
envolvido em algum tipo de jogo financeiro duvidoso.'.
O mais conhecido do círculo de amigos em torno de Sauniere era o abade Henri Boude
t (1837-1915), que tinha sido padre em Rennes-le-Château desde 1872. Homem sábio, er
udito e reservado - em termos de temperamento o oposto de Sauniere -, também estav
a engajado em atividades estranhas. Em 1886 publicou um livro esquisito, Le vrai
e langue celtique et le cromleck de Rennes-les-Bains (A Verdadeira Linguagem dos
Celtas e o Cromlech de Rennes-le-Balis), que deixou os pesquisadores perplexos
desde sua publicação. O livro trata, primordialmente, de dois assuntos: uma teoria p
erversa que afirma que línguas antigas, como o celta, o hebreu e outras, derivam d
o anglo-saxão, e inclui vários exemplos hilariantes de como nomes de lugares da região
de Rennes-les-Bains tinham raízes inglesas, e a descrição de vários documentos megalítico
s da região. Boudet era um historiador e antiquário local bastante respeitado, e as
teorias propostas são de tal forma improváveis que muitos chegaram à conclusão de que el
as deveriam esconder uma mensagem profunda e secreta, a contra parte literária da
decoração da igreja de Sauniere. Alguns chegaram a sugerir que as duas se complement
avam, e que ao serem colocadas uma ao lado da outra dariam as direções para se chega
r ao 'tesouro'. Se é assim, ninguém apresentou um sistema que decifrasse tal mensage
m de modo satisfatório, e o livro de Boudet continua tão confuso quanto era na época e
m que foi publicado. Suas outras atividades, entretanto, também se desenvolvem em
paralelo com as de Sauniere, e, como este, também é conhecido por ter alterado as in
scrições nas lápides do cemitério e mudado de lugar vários pontos de referência.
Alguns vêem em Boudet a mente por trás da obra de Sauniere, e chegam a sugerir, assi
m como Pierre Plantard de Saint-Clair, sem qualquer consistência, porém, que Boudet
era quem pagava Sauniere. No entanto, Boudet também é parte importante em um outro m
istério bastante complexo: Plantard Saint-Clair escreveu ele próprio o prefácio da edição
de Le vrai langue celtique... de 1978, e adquiriu terras nas redondezas de Renne
s-les-Bains. Pode-se ver na lápide de Boudet, na velha igreja, a marcação do local res
ervado pelo próprio Plantard Saint-Clair.
Um outro contemporâneo de Sauniere pertencente ao clero era o abade Antoine Gélis, pár
oco da aldeia de Coustassa, que fica do outro lado do vale do Rio Sais, vindo de
Rennes-le-Château. Em 1° de novembro de 1897, o mais velho dos Gélis (então com 70 anos
) foi encontrado morto, vítima de um brutal assassinato, tendo morrido em virtude
de repetidas e violentas pancadas na cabeça, aparentemente desferidas por um assal
tante que ele havia deixado entrar no presbitério e com quem estava conversando. S
auniere era amigo de Gélis, e registra um encontro com ele e muitos outros na página
de 29 de setembro de 1891 de seu diário, apenas oito dias depois do registro da '
descoberta de uma tumba' .No período anterior a sua morte, Gélis vivia aparentemente
com medo, mantendo sua porta trancada e vendo apenas seu sobrinho, que lhe leva
va mantimentos. E havia recebido há pouco tempo uma grande soma de dinheiro, cerca
de 14 mil francos, que ninguém conseguiu esclarecer de onde provinha. Escondeu es
sa soma em sua própria casa e igreja, e documentos foram encontrados que revelavam
os locais dos esconderijos. No entanto, virtualmente todo o dinheiro ainda perm
anecia nesses locais após sua morte. O assassino, que nunca foi encontrado, reviro
u a casa, mas não pegou sequer os cerca de 800 francos que estavam bem à mão. Mais est
ranho ainda, o assassino posicionou o corpo de Gélis ritualisticamente, com os braço
s cruzados sobre o peito e deixou uma mensagem em um pedaço de papel com as palavr
as 'viva Angelina'. Não foi possível encontrar qualquer motivo para a ocorrência do cr
ime.
Existe uma dupla de acontecimentos particularmente estranhos relacionados com o
assassinato de Gélis. Sua lápide no cemitério da igreja em Coustassa, foi posicionada,
a única entre todas as outras lápides, de modo a ficar direcionada para Rennes-le-C
hâteau, que está bem visível no alto da colina oposta. A sepultura também tem uma insígnia
de rosa-cruz. E embora esse crime brutal de um senhor velho e frágil chocasse a p
opulação local, a diocese parece que quis que todo o assunto fosse esquecido tão rapid
amente quanto possível. Quando Gérard de Sède tentou investigar essa questão, no início do
s anos 60, não pôde encontrar nenhum registro sobre o assassinato nos arquivos da di
ocese em Carcassonne.Apenas em 1975 dois advogados reconstruíram a história através do
s registros da polícia e do poder judiciário locais}'
Chegou-se mesmo a sugerir que Sauniere foi o responsável pelo assassinato de Gélis,
mas isso é pura especulação. Parece, entretanto, que alguma coisa sinistra estava acon
tecendo e que envolvia os padres locais além dos limites de Rennes-le-Château.
Sem sombra de dúvida, o vilarejo de Rennes-le-Château é importante por si mesmo, mas t
alvez tenha se colocado muita ênfase sobre isso, pois toda a região vizinha também foi
envolvida no mistério.A maioria dos pesquisadores reconhece o fato de que existem
outros lugares igualmente estranhos e atrativos nas redondezas, mas a tendência é vê-
los apenas como pano de fundo para a história de Sauniere. Contudo, se ele fez uma
descoberta, existem diversos lugares onde o poderia ter feito. Sem contar suas
ausências do vilarejo, que algumas vezes chegavam a levar semanas ou meses, ele ta
mbém era conhecido por dar longas caminhadas nas vizinhanças (e seu entusiasmo pela
caça e pesca bem poderia ser um meio de encobrir alguma outra atividade).
Os Dossiês secretos afirmam que Sauniere estava trabalhando para o Monastério de Sio
n, mas existe alguma prova de sua influência na região? Vimos que Pierre Plantard de
Saint-Clair possuía terras próximas a Rennes-les-Bains, e comprou uma cova para si
no cemitério da cidade, mas será que as aparentes preocupações da organização realmente têm
u reflexo nessa região?
Dada a extraordinária mistura de culturas das sociedades secretas no Languedoc ser
ia surpreendente se assim não fosse. De fato, um estudo sobre a região próxima a Renne
s-le-Château resultou em muitas pistas, não apenas em relação ao Monastério como também sob
e uma tradição secreta muito mais ampla, uma tradição que já suspeitávamos que existisse. E
távamos a ponto de descobrir aquilo que podemos chamar de a Grande Heresia da Euro
pa, a extrema veneração, mesmo que oculta, a Maria Madalena e João Batista.
Existe uma incrível proliferação de igrejas dedicadas ao Batista nessa região. No geral
elas são fundadas em enclaves; por exemplo, existem três igrejas de 'João' na pequena
região de Belveze-du-Razes (grande parte dessa região chama-se La Magdalene).
É bastante interessante também que a atual igreja de 'Madalena' em Rennes-le-Château a
ntes fosse somente a capela de um castelo, enquanto uma outra igreja abençoava o v
ilarejo, e era dedicada a João Batista." Esta foi destruída no século XIV quando Renne
s-le-Château foi capturada por tropas da nobreza espanhola, aparentemente tendo si
do demolida pedra por pedra na crença de que algum tesouro ali se escondia."
Uma inexplicada reviravolta aconteceu no vilarejo vizinho de Arques, quando a ig
reja original de João Batista passou a ser dedicada a Santa Ana. Esse evento é algo
particularmente singular porque ela ainda mantém uma relíquia do Batista.
Arques e Couiza, onde há uma outra igreja de 'João', pertencera à família de Joyeuse até 1
646, quando Henriette-Catherine de Joyeuse vendeu todas as terras que possuía no L
anguedoc à monarquia francesa. Ela era a viúva de Charles, Duque de Guise, que fora
torturado por Robert Fludd, trazido especialmente da Inglaterra para realizar a
tarefa.
Havia em Couiza ou em Arques uma Madona Negra, conhecida como Notre-Dame de la P
aix, que foi levada para Paris pelos de Joyeuse em 1576, onde ainda pode ser vis
ta na igreja das Irmãs do Sagrado Coração (na décima-segunda circunscrição).'. Estranhament
, Sauniere correspondia-se com o superior dessa Ordem, para quem era alguém claram
ente especial. Em uma carta enviada a ele, a Irmã Augustine Marie, Secretária da Ord
em, em 5 de fevereiro de 1903," pediu-lhe que rezasse missas especificamente em
honra de suas Madonas Negras, oferecendo vender-lhe uma estátua do Petit Jésus de Pr
ague (que ainda pode ser visto na Villa Bethania), e, de um modo um tanto mister
ioso, agradeceu 'pela devoção que você demonstrou ao nosso amado Rei'. Isso poderia se
r uma referência a algum pretendente ao trono francês ou a Jesus, embora, como verem
os, houvesse um outro 'Rei' que era venerado por grupos heterodoxos. Há, no entant
o, uma sugestão de um significado diferente,ou talvez codificado, nas palavras da
Irmã Augustine Marie, e a curiosa implicação de que era algo especial relacionado com
o pároco (e os paroquianos) de Rennes-le-Château.
A família de Joyeuse também comprou o João Batista da igreja de Arques, que foi constr
uída sobre as ruínas de um antigo castelo que fora destruído pelos homens de Simon de
Monfort. A atual torre do sino e a parede principal faziam parte do castelo orig
inal. Como já vimos, a igreja fora uma vez dedicada a João Batista, mas agora era de
dicada a Santa Ana, embora nem mesmo o prefeito de Arques pudesse nos explicar a
razão da mudança.
Seu predecessor nos anos 30 e 40 foi Déodat Roché, um grande estudioso da história eso
térica da região e que estava por trás de uma das mais honestas tentativas de restabel
ecer uma Igreja Cátara na região. Um dos tios de Roché era o médico de Sauniere, e um ou
tro era seu tabelião.
No meio do caminho entre Rennes-le-Château e Limoux fica o balneário de Alet-les-Bai
ns. Antigamente' sede do bispado (antes desse mudar-se para Carcassonne), Alet e
ra na Idade Média um centro alquímico de renome. A família de Nostradamus veio dessa c
idade, e é possível que o famoso profeta tivesse vivido ali durante algum tempo. A c
idade tinha conexões templárias, que remontavam aos primórdios da Ordem - muitas leis
que lhes garantiram a doação de terras foram lá assinadas na década de 1330 -, e símbolos
templários podem ser vistos gravados na madeira de algumas das pitorescas casas me
dievais da cidade; realmente, a cota de armas da cidade porta uma cruz templária.
A imponente igreja, de Santo André, tem uma curiosa ligação com a Ordem. O escritor e
pesquisador Franck Marie' demonstrou que (como a capela de Rosslyn) esta foi pro
jetada com base na geometria da cruz dos templários, embora a igreja tenha sido co
nstruída no século XIV, após a supressão da Ordem. O prédio também é notável por suas janel
e portam o símbolo da estrela de seis pontas, a Estrela de Davi. Sem contar a óbvia
associação com os judeus (o que é, para dizer o mínimo, bastante estranho em uma igreja
cristã medieval), O símbolo também tem conotações com a magia tradicional, simbolizando a
união dos princípios masculino e feminino.
A rua principal de Alet-les-Bains é a avenida Nicolas Pavillon, em homenagem a seu
bispo mais famoso (cujo bispado durou de 1637 até 1677). É uma figura significativa
, que esteve envolvida nos eventos relacionados com o Monastério de Sion. Pavillon
, junto com dois outros clérigos, o famoso São Vicente de Paulo e Jean-Jacques Olier
(o construtor de St Sulpice), eram a força motriz por trás da Compagnie du Sant-Sac
rament, que também era conhecida entre seus membros como 'a Conspiração dos Devotos'.
Publicamente uma instituição dedicada à caridade, hoje é reconhecida pelos historiadores
como sendo a sociedade secreta político-religiosa que manipulou líderes proeminente
s da época, chegando mesmo a influenciar o próprio monarca. A Compagnie ocultou tão be
m suas reais intenções que os historiadores ainda não concordam totalmente sobre a sua
verdadeira natureza; algumas vezes parece que segue a corrente principal da Igr
eja Católica,outras,porém,parece ser totalmente herética. Argumentou-se que ela era, n
a verdade, testa-de-ferro do Monastério de Sion.'. Como já vimos, sua sede ficava no
Seminário de St Sulpice, em Paris.
Um desses conspiradores, o misterioso São Vicente de Paulo (15801660), que estranh
amente afirmava ter estudado alquimia, é venerado em outro local que figura entre
um dos mais enigmáticos do Languedoc.Trata-se da basílica de Notre-Dame de Marceille
, que fica ao norte de Limoux, logo na saída da cidade. Em seu terreno há uma estátua
de São Vicente, para marcar O fato de que ele fundou a Ordem dos Padres Lazaristas
, que, desde 1876, esteve encarregada da basílica (significativamente, os padres l
azaristas de Notre-Dame de Marceille eram proeminentes entre aqueles convidados
para as cerimônias que Sauniere realizava ao inaugurar as diversas partes de seu d
omaine).
Esse lugar tem muitas ligações provocantes com as 'heresias' que estávamos invest
igando." Para começar, apesar de ser escrito de forma diferente, 'Marceille' (cuja
derivação é desconhecida) evoca a Madalena através da conexão com 'Marseilles'. A basílica
foi construída no local de um antigo santuário pagão, ao redor de uma fonte que tem a
reputação de ter propriedades curativas, em particular para os olhos. A igreja tomou
seu nome de uma Madona Negra do século XI, que ainda está à mostra nessa igreja, e co
m a qual muitos milagres estão relacionados. Talvez, com esse passado, não devesse c
ausar nenhuma surpresa descobrir que o lugar pertencera aos templários. Durante sécu
los esse local foi um centro de peregrinações.
Ao longo dos anos, por alguma razão, sempre ocorreram disputas entre várias ordens r
eligiosas para deter algum tipo de controle sobre esse local. Originalmente pert
encia à abadia beneditina de St. Hilaire, que durante a Cruzada de Albi foi fonte
de comentários hostis devido à sua política de neutralidade em relação aos cátaros (toda a
opulação de Limoux foi excomungada em determinado momento por abrigar os cátaros). No
século XIII a disputa se dava entre o arcebispo de Narbonne, a Ordem Beneditina e
os dominicanos. O rei mais tarde teve que intervir em uma disputa em torno da po
sse sobre o lugar, entre o arcebispo, o Lorde de Limoux e Guillaume de Voisins,
Lorde de Rennes-le-Château. Em 14 de março de 1344 (o centésimo aniversário da misterios
a cerimônia cátara em Montségur, na noite anterior àquela em que alguns voluntariamente
se atiraram na fogueira) o Papa Clemente VI deu a igreja para o Colégio de Narbonn
e em Paris, em cuja posse ficou até a metade do século XVII, quando passou para o bi
spo de Alet-les-Bains (a principal fonte de renda para o Colégio de Narbonne eram
os rendimentos da igreja de Maria Madalena em Azille, no Aude"). Durante a revol
ução, a igreja e as terras foram vendidas, mas a Madona Negra foi escondida pelo Mon
astério da Ordem dos Penitentes Azuis, um curioso grupo que tinha ligações com os maçons
do Ritual Escocês Purificado e com a família Chefdebien, que, como ainda veremos, t
em um papel significativo nessa trama." A igreja foi restaurada como um local de
culto em 1795.
Uma outra disputa aconteceu durante a época de Sauniere, envolvendo seu superior,
Montseigneur Billard, bispo de Carcassonne. O lugar foi então comprado e dividido
entre vários proprietários, mas através de uma série de movimentos bastante inteligentes
, e nem sempre éticos, ele contratou os serviços de um banqueiro como 'testa-de-ferr
o' a fim de comprar todas as partes. A venda foi realizada em 17 de janeiro de 1
893 (embora Billard, de algum modo, tenha tomado posse da Madona Negra, que foi
mantida em Limoux por algum tempo).Após um período de quatro meses, entretanto, o no
vo dono a vendeu de volta para o bispado e Billard então teve o total controle: qu
e tanto queria.
Em 1912, o Papa Pio X decretou que a igreja deveria receber a condição de basílica, um
a honra rara e totalmente inexplicável para um lugar até certo ponto bastante humild
e. O status de basílica é tradicionalmente outorgado a igrejas que tenham um signifi
cado especial, como é o caso de St. Maximin na Provença, que supostamente guarda os
restos mortais de Maria Madalena.
A região ao redor de Notre-Dame de Marceille também é notável por ter sido, até bem recent
emente, um lugar de interesse particular para os ciganos, que costumavam acampar
entre a igreja e o Rio Aude, que está a algumas centenas de metros na direção oeste.
Notre-Dame de Marceille é especialmente mencionada no livro enigmático do abade Boud
et, Le vraie langue celtique...e foi isso que trouxe o pesquisador Jos Berthaule
t para o local." Ele fez uma interessante descoberta nas antigas terras da igrej
a, agora em mãos particulares: no aterro de Aude há uma galeria subterrânea. Essa gale
ria consiste de duas grandes câmaras que datam ou do último período de dominação de Roma o
u do início do período de dominação dos visigodos (século III ou IV). Com cerca de seis me
tros de altura, a primeira dessas câmaras tem uma clarabóia no teto abobadado, mas a
única entrada é bastante estreita, um túnel de um metro de altura, que aparentemente
foi construído posteriormente e que estava escondido dentro de uma pequena e hoje
arruinada casa (que parece ter sido construída especialmente para esse propósito).A
função da galeria é desconhecida. Alguns especulam afirmando que servia como uma câmara
funerária para os visigodos, embora esteja vazia, ou como um local de iniciação para a
lguma escola de mistério. Qualquer que seja sua função, há alguma evidência de que ela est
eve em uso até o início do século XX, embora sua existência fosse tão secreta que, como irí
mos descobrir sob circunstâncias traumáticas, mesmo os padres da basílica a desconheci
am. Talvez fosse essa curiosa câmara subterrânea que Billard estava tão ansioso para t
er em mãos.
Durante uma viagem de pesquisa para a França, no verão de 1995, Clive Prince visitou
a região com seu irmão Keith. Recebemos a informação relativa à galeria, incluindo as ind
icações de como chegar até ela - cujo valor é inestimável, pois a entrada estava coberta p
or um formidável emaranhado de relva - do pesquisador belga Filip Coppens. Jos Ber
taulet havia coberto parcialmente a clarabóia, construída para permitir a entrada de
luz na primeira câmara, com pedras, a fim de prevenir acidentes. Havia ainda, o q
ue iríamos descobrir de um modo bastante doloroso, um buraco de cerca de seis metr
os de profundidade.
Keith, tendo descido até a primeira câmara com uma corda (pois as escadas de madeira
já há muito haviam apodrecido), escorregou em um cascalho coberto de húmus e caiu pes
adamente no chão. Deitado no escuro entre escombros e ruínas, à primeira vista Kelth h
avia quebrado a perna, e embora mais tarde ficássemos sabendo que ele tivera apena
s um ligamento rompido, não estava em condições de manter-se de pé, e assim escalar de v
olta para fora da câmara. Clive não tinha outra opção a não ser buscar por socorro (que ch
egou em um número tão grande que parecia que o apuro de Kelth era a coisa mais excit
ante que acontecia em muito tempo em Limoux). Após quatro horas uma equipe de resg
ate finalmente o retirou através da abertura no teto. E o levaram ao hospital de C
arcassonne (uma coisa surgida desse episódio foi que, quando Clive foi pedir socor
ro na basílica, os funcionários demonstraram que não tinham o menor conhecimento da ex
istência da galeria).
Infelizmente, em virtude desse acidente, as investigações posteriores no subterrâneo d
a câmara tornaram-se impossíveis. Talvez uma conseqüência mais séria fosse a ameaça das aut
ridades em selar a entrada para impedir que outros sofressem qualquer acidente.
Foi um alívio quando soubemos que tal não acontecera, embora as entradas estivessem
cobertas na época em que lá voltamos em companhia de Charles Bywaters, na primavera
de 1996. Nessa ocasião, embora não fizéssemos nenhuma tentativa de explorar a câmara pri
ncipal, investigamos o túnel que levava até ela e fizemos uma descoberta muito signi
ficativa.
O túnel parece se direcionar para uma parede, mas, seguindo a sugestão de Filip Copp
ens, examinamos essa parede e descobrimos que ela antes era uma porta.Foi delibe
radamente selada - recentemente, ao que parece -, e as barras de ferro que foram
colocadas na pedra poderiam ter sido maçanetas.A julgar pelo desconhecimento das
autoridades locais sobre a existência da galeria, não poderiam ter sido eles a selar
a porta. Então quem o fez, e, em qualquer caso, por que selar justo uma das câmara
dessa forma?
Pelas condições das barras de ferro estimamos que a porta deveria ter cerca de cem a
nos, época em que Billard havia obtido o controle da propriedade. Teria ele escond
ido alguma coisa atrás dessa porta emparedada? Talvez o tenha feito, embora suas ações
revelassem um desespero total em possuir essa propriedade, o que sugere que ele
não estava escondendo, mas sim procurando por algo. E seja lá o que for, no mínimo de
ve existir pelo menos alguma pista naquele lugar úmido e secreto sobre o de que se
tratava, senão não teria sido selado com tanto esmero.
Pouco antes de ser vitima de câncer,em 1995, Jos Bertaulet afirmou ter decodificad
o a estranha obra de Boudet, Le vraie langue Celtique... e concluiu que falava d
e um relicário que continha a cabeça de 'um Rei sagrado' e fora escondida naquela ga
leria subterrânea. Depois declarou que Boudet vinculou a câmara com as lendas do San
to Graal. Como já vimos, o tema de reis sagrados decapitados faz parte dessas histór
ias (e Saunière foi agraciado pela devoção que demonstrou ao 'nosso amável Rei' pelas Ir
mãs do Sagrado Coração em Paris). E, significativamente, Notre-Dame de Marceille foi u
ma propriedade dos templários.
Pesquisas mais aprofundadas estão na dependência de se atravessar a porta selada, e
parecia improvável, ao menos na época em que escrevemos, que a permissão para tanto pu
desse ser obtida. No entanto, muitos temas que são centrais a essa investigação parece
m estar reunidos nesse local: as Madonas Negras, os templários, Madalena e as lend
as do Graal. E a história da cabeça decapitada, na região tão repleta de igrejas dedicad
as a ele, certamente evoca a figura de João Batista. Claramente, a região de um modo
geral, e o local de Notre-Dame de Marceille em particular, ainda guardam um gra
nde segredo.
É difícil ver como exatamente Sauniere se encaixa nesse quadro geral, mas ao mesmo t
empo realmente parece que ele tomou parte nisso tudo. É bastante provável que tenha
encontrado algo de suma importância, mas é impossível dizer o que foi, com alguma cert
eza. Entretanto, nossa investigação angariou muitas pistas surpreendentes do tipo de
companhia que ele mantinha e os contatos que deliberadamente buscava. De fato,
as provas que com cuidado juntamos, relacionadas às verdadeiras associações de Saunier
e mudaram radicalmente e para sempre o padrão da imagem de humilde pároco do interio
r que sem querer encontrou um tesouro- Qualquer que seja a verdade sobre ele, su
a importância se estende bem além dos limites desse curioso vilarejo de Rennes-le-Chât
eau.

CAPÍTULO IX
Um Tesouro Curioso
Os cépticos alegam não existir mistério algum relacionado com Rennes-le-Château. Para es
ses, Sauniere simplesmente ficou rico comercializando sua missa, ou talvez através
de outros negócios duvidosos, e a história do tesouro foi cinicamente construída unic
amente para servir como atração turística. Em relação à ênfase dada nos Dossiês secretos ao
rejo e aos mitos com ele relacionados, afirmam que o Monastério criou uma aura de
mistério para proveito próprio. Além disso, a história conforme a conhecemos só pode ser r
astreada até o ano de 1956, época em que Noêl Corbu gravou um relato próprio com o qual
entretinha seus convidados em Villa Bethania, que ele transformou em um hotel-re
staurante.
Entretanto, investigações demonstram que existe um mistério: realmente, o vilarejo era
um óbvio centro para pesquisadores esotéricos já antes daquela data. Por exemplo, em
1950 alguém foi até lá especificamente para realizar pesquisas sobre a lenda do tesour
o dos cátaros, o qual, acreditava-se, fora levado de Montségur para Rennes.' Talvez
isso também explique a curiosa presença de oficiais alemães na Villa Bethania, onde fi
caram aquartelados durante a II Guerra Mundial. Como muitos hoje sabem, os nazis
tas tinham uma verdadeira obsessão por artefatos religiosos e ocultistas e gastara
m muito tempo, meses, durante a guerra escavando Montségur. Dizem que estavam à proc
ura do Santo Graal: sabe-se que Ütto Rahn, o arqueólogo nazista, concentrou seus esf
orços, nos anos 3D, em procurar o Graal naquela região.
Noêl Corbu tem uma participação especial nos eventos relacionados ao mistério de Rennes-
le-Château. Seu papel vai além do de simples hoteleiro e contador de histórias, como p
ode ser inferido de sua participação na publicação dos incríveis pergaminhos codificados.
Como já vimos, eles apareceram pela primeira vez em um livro de Gérard de Sède, em 196
7; mais tarde, porém, um colega de Pierre Plantard de Saint-Clair e membro do Mona
stério de Sion, Phillippe de Chérisey, confessou ter armado tudo.
Em seu livro mais recente sobre o caso Rennes-le-Château, de 1988, Gérard de Sède decl
arou que publicara os textos de boa-fé, tendo-os recebido de alguém ligado a Rennes-
le-Château que afirmava serem esses cópias daqueles que Sauniere havia dado ao prefe
ito do vilarejo, antes de ter enviado os originais a Paris. No entanto, de Sede
toma o cuidado de manter esse 'alguém' anônimo.
Entretanto, sua identidade é revelada na obra de Jean Robin: era Noel Corbu.' Isso
é significativo porque se de Chérisey forjou os pergaminhos, então Corbu só os poderia
ter tido em mãos através de um contato com o Monastério de Sion.
Quanto mais investigamos as circunstâncias relacionadas à compra da propriedade de S
auniere por Corbu, mais intrigante isso se toma. A história que geralmente é contada
afirma que Corbu chegou até ao vilarejo por pura sorte, durante a II Guerra Mundi
al, tornando-se amigo de Marie Dénarnaud, e então achou que a Vila seria um bom luga
r para se morar.A história verdadeira, porém, parece ser a de que ele já estava intere
ssado na figura de Sauniere há algum tempo, e no Início dos anos 40 desviou-se de se
u caminho natural para estabelecer relações com Marie e tentar descobrir mais coisas
.'
A coisa toda então se complica ainda mais: a Igreja sempre esteve, por alguma razão,
ansiosa em ter a propriedade de Sauniere sob seu poder, e ao mesmo tempo fazia
de tudo para que assim não parecesse. De fato, ela fez várias tentativas de persuadi
r Marie a vender, mas ela recusou-se. Ao que parece, através da mediação de um padre c
hamado Gau, a igreja convenceu Corbu a agir em seu nome, provavelmente com a con
cordância de que, assim que Marie vendesse a propriedade para ele, esse a revender
ia. Alguma coisa, porém, parece ter dado errado: talvez Corbu tenha se recusado a
cumprir o acordo com a Igreja.'
Tempos depois ele foi diretamente ao Vaticano com o Intuito de requisitar uma ve
rba, assunto para o qual foi dada uma importância que não era a de costume, pois o V
aticano despachou o embaixador papal, em pessoa, a Carcassonne, especialmente pa
ra que fizesse perguntas à diocese. E esse embaixador era ninguém mais, ninguém menos
do que O cardeal Roncalli, mais tarde Papa João XXIII (que, de acordo com o The Ho
ly Blood and the Holy Grail, também fazia parte do Monastério). O relato da diocese
aparentemente foi desfavorável, e recomendou que a verba fosse recusada. No entant
o, mesmo assim o Vaticano a autorizou.
A conexão de Corbu é um ponto importante para se compreender a história de Rennes-le-C
hâteau: o mistério não termina com a morte de Sauniere. E como Corbu morou com Marle Dén
arnaud por cerca de sete anos, parece que ele estava em boa posição para descobrir o
tal segredo. O que quer que esse seja, ele não o inventou (foi dito que Corbu, ju
nto com Pierre Plantard de Saint-Clair, era um dos responsáveis pelo surgimento do
Monastério aos olhos do público nos anos 50; esses boatos, entretanto, nunca se pro
varam consistentes.).
No capítulo anterior vimos que Sauniere era apenas uma pessoa envolvida em um mistér
io muito maior relacionado com aquela região, em eventos que envolviam altas soma
s de dinheiro e que levaram alguém a recorrer ao assassinato.
Sem dúvida o mistério envolvia os grupos com os quais Sauniere mantinha contato em P
aris. Mas é interessante que as figuras principais nos círculos de Emma Calvé, como a
própria Emma, fossem de origem do Languedoc. Argumenta-se, com bastante propriedad
e, que não havia a necessidade de Sauniere ir a Paris a fim de encontrar-se com es
sas figuras, pois elas com freqüência visitavam Toulouse, o 'berço do seu circulo'. M
ais uma vez a trilha nos leva de volta para as pessoas e grupos cujos nomes e as
sociações já são familiares a esta investigação.
Essas conexões são excepcionalmente significativas: elas não apenas lançam alguma, e mui
to necessária, luz sobre o próprio Sauniere, como também mostram que a história de Renne
s-le-Château realmente é parte integrante de nossa investigação. Voltar no tempo, através
de Sauniere, até chegarmos à elaborada 'árvore genealógica' dos grupos ocultistas que di
scutimos anteriormente foi um ato que nos muniu com percepções e revelações completament
e inesperadas sobre a verdadeira natureza do grande mistério do Languedoc, que, se
gundo saibamos, nunca fora antes publicado em língua inglesa.
No entanto, é estranho que, dado todo o tempo e trabalho que tem sido investido na
tentativa de desvendar o mistério, algumas das respostas estejam literalmente bem
na cara do investigador. Pistas relacionadas com as associações particulares de Sau
niere podem ser encontradas dentro da própria igreja de Rennes. Enquanto os cépticos
sugerem que toda a decoração peculiar e espalhafatosa poderia ser atribuída ao mau go
sto de Sauniere ou a alguma aberração mental, outros pesquisadores têm afirmado que ex
iste bem mais, ao invés de menos, mistérios naquele lugar 'terrível'.
Suspeitamos que a igreja e suas circunvizinhanças imediatas tenham sido projetadas
e construídas em acordo com um plano enigmático bastante específico. Seus temas princ
ipais parecem estar invertidos, a imagem de um espelho e o equilíbrio dos opostos:
por exemplo, a contraparte da Torre de Magdala é a estufa na outra ponta da plata
forma. Embora a primeira tenha sido construída com rocha sólida e tenha vinte e dois
degraus até o topo da pequena torre, a última foi feita com material pouco resisten
te e seus vinte e dois degraus descem para uma sala subterrânea. E o desenho do ja
rdim de Sauniere e o Calvário do lado de fora da igreja claramente se conformam a
um padrão geométrico pré-concebido, e provavelmente pleno de significado.
Essas observações foram confirmadas por Alain Féral, um artista bem conhecido que mora
no vilarejo, e que é um pupilo de Jean Cocteau. Féral, que mora em Rennes desde o i
nício dos anos 80, fez as mensurações mais detalhadas dos planos da igreja e dos prédios
vizinhos e concluiu que eles revelam temas recorrentes (pode ser, é claro, que Sa
uniere não tenha sido o responsável por isso, talvez tenha sido Henri Boudet, ou o a
rquiteto que este trouxe para realizar a obra, ou mesmo um dos superiores do gru
po de que Sauniere fizesse parte, e que estivesse envolvido com essa questão).
Reforçando nossa idéia de um tema invertido como a imagem do espelho, Féral indica que
o pilar dos visigodos (que antes apoiava o altar), portava uma cruz esculpida,
que Sauniere colocou de cabeça para baixo. Ele também aponta para o significado do núm
ero vinte e dois: sem contar os degraus da torre e da estufa, esse número aparece
em todos os lugares do domaine. Dois segmentos de calçadas nos levam do jardim ao
terraço, ambos contendo onze passos cada. As duas inscrições na igreja, que tem atraído
muita atenção, Terribillis est locus iste, sobre o pórtico, e Par ce signe tu le vainc
ras, sobre a pia de água benta, são ambas constituídas de vinte e duas letras (a frase
em latim, que é mais conhecida na forma Terribilis est hic locus, e o estranho le
da frase em francês, parecem ter sido enxertado para que a soma desse vinte e dua
s letras). Há uma boa razão para se dar tanta ênfase ao onze e ao vinte e dois: esses
são 'números Mestres' no ocultismo. São particularmente significativos nos estudos cab
alísticos.
E então há o curioso padrão heterodoxo criado por quatro objetos, dois do lado de dent
ro e dois do lado de fora da igreja: o confessionário, que está diretamente em frent
e ao altar; o próprio altar; a estátua de Notre-Dame de Lourdes (com a inscrição 'Penitênc
ia! Penitência!'), que está do lado de fora da igreja no pilar visigodo invertido, e
o 'Calvário' no pequeno jardim de Sauniere, construído com todo esmero por ele mesm
o. Esses quatro objetos não só formam um quadrado perfeito como também portam uma mens
agem simbólica. O confessionário e a inscrição de 'penitência' referem-se ao arrependiment
o e estão de frente, respectivamente, para o altar e para o Calvário, que são o símbolo
da salvação. Os dois pares parecem simbolizar uma jornada espiritual, caminho ou ini
ciação, do arrependimento ao perdão e então à salvação.- Isso foi tão cuidadosamente planej
ue deve conter algum tipo de mensagem. Estaria Sauniere tentando dizer que o per
dão e a salvação também podem ser encontradas fora da Igreja? E há algo mais sendo indicad
o aqui, alguma coisa conectada com as figuras que representam arrependimento e p
enitência, João Batista e Maria Madalena?
A frase 'Penitência! Penitência!' é aquela que fora supostamente proferida pela Virgem
Maria durante a aparição em La Salette. Das duas jovens que tiveram a visão, uma era
a pastora chamada Melaine Calvet, que era aparentada de Emma Calvé (Emma mudou a g
rafia de seu sobrenome ao tornar-se cantora de ópera). Por algum tempo a visão de La
Salette chegou a rivalizar com a de Lourdes, mas a Igreja Católica decidiu que se
tratava apenas de um embuste. A visão de La Salette, entretanto, foi defendida pe
lo movimento dos joaninos/Naündorff/Vintras (ver Capítulo Sete). Sauniere também escre
veu em defesa da visão de La Salette.'
Como já vimos, é pouco provável que a célebre decoração da igreja represente um mapa para e
contrar algum grande tesouro. Se Sauniere encontrou alguma coisa que o tornara r
ico, ele dificilmente decoraria sua igreja com indicações codificadas do local onde
o tesouro fora encontrado. É mais provável que a decoração seja uma tentativa de esconde
r algo, ou pela menos fazer uma declaração que só seria óbvia para um outro iniciado.A m
elhor analogia, e nas circunstâncias provavelmente a mais conveniente, é a de uma lo
ja maçônica. Para um não-iniciado os várias símbolos empregadas em tal templo, como por ex
emplo o compasso, os quadrados e outros emblemas, simplesmente não são passíveis de se
r 'decodificados' e assim fornecer um quadra coerente do verdadeira significado
da maçonaria. Deve-se conhecer a filosofia subjacente, a história e o segreda que el
es simbolizam para compreender o que estão fazendo ali.
Muitos discerniram na decoração da igreja símbolos de várias sociedades ocultistas e sec
retas, os rosa-cruzes, os cavaleiros templários, os maçons.As rosas e Cruzes no tímpan
o são uma clara referência aos rosa-cruzes. Uma das anomalias mais freqüentemente cita
das em relação à Via Crucis é a da Oitava Estação, na qual Jesus (carregando, já sem forças
cruz) encontra uma mulher que está vestindo o que parece ser um traje de viúva, e q
ue tem em seus braças um menina que está envolto na que parece ser um tecido xadrez.
Isso é tido como uma referência aos maçons, que chamam a si mesmos de 'Os Filhos da V
iúva' (e talvez seja significativa que a oitava casa da astrologia governe os mistér
ios do sexo, morte e renascimento, e o oculta). O piso branco e preto enxadrezad
o da igreja e o azul do teto com suas estrelas douradas em cima da altar nas rem
etem à ornamentação padrão de uma loja maçônica.
Em nossa opinião, um dos elementos mais importantes de toda a igreja é a primeira co
isa que o visitante vê quando nela entra. O demônio na entrada, recentemente vandali
zado, sempre foi chamada de 'Asmodeus', aquele que tradicionalmente guarda o tes
ouro enterrado, embora nada haja que ligue essa estátua de modo explícito ao demônio d
esse nome. Na entanto, discutimos isso com Robert Howells, que, como administrad
or de uma das mais famosas livrarias especializadas em assuntos esotéricos, tem um
extraordinário e largo conhecimento sobre o simbolismo do ocultismo, e cujas pesq
uisas sobre o mistério de Rennes-le-Château são exemplares, sensatas e exaustivas. Ele
mostrou haver uma antiga lenda judia sobre a construção da Templo de Salomão na qual
o rei previne vários demônios de interferirem na obra através de quaisquer de suas div
ersas habilidades. Um dos demônios, Asmodeus, era mantido dentro dos limites sob a
ameaça de ter que carregar água, o único elemento capaz de controlá-lo." Tais lendas fo
ram incorporadas à tradição maçônica, e certamente não é coincidência encontrar um quadro n
eja de Sauniere onde Asmodeus é controlado ao se jogar água sobre ele, e na qual estão
inscritas essas palavras, 'Por esse sinal você o conquistará'. E os ornamentos da p
ia batismal, anjos, salamandras, pia batismal e demônio, representam os quatro cláss
icos elementos da ar, fogo, água e terra, que são essenciais em qualquer trabalho es
otérico.
Se a ligação com o Asmodeus estiver correta, então é bastante curioso, pois o quadro do
demônio e aquele do batismo de Jesus têm, como já vimos, a clara intenção de serem conside
rados em conjunto. Assim como o demônio está sendo amansado pela água, estará ocorrendo
o mesmo quando João verte água sobre Jesus? E há então a inversão peculiar da ordem tradic
ional das duas letras gregas alfa e ômega, a primeira e a última, que estão associadas
a Jesus. Poder-se-ia esperar que alfa fosse mostrada sob João, o suposto precurso
r, e ômega sob Jesus, a culminação. Acontece, porém, o inverso.
A prevalência das imagens sugere que o Templo de Salomão, tanto no lado de dentro qu
anto no de fora da igreja, poderia se referir ou aos maçons ou aos cavaleiros temp
lários. O fato de que as letras anômalas colocadas na frase Par ce signe tu le vainc
ras, grafada erroneamente (o le é totalmente supérfluo e muda o significado da sentença)
, que se encontra entre os quatro anjos e o demônio, são a décima terceira e a décima qu
arta, alguns pensam que isso evoca o ano de 1314, quando Jacques de Molay, chefe
dos templários, foi queimado na fogueira.
Todos esses simbolismos foram exaustivamente pesquisados por dezenas de investig
adores competentes durante anos, e os resultados têm sido quase sempre tão diversos
quanto as interpretações. No entanto, as respostas podem ser muito simples e talvez
desapontadoramente óbvias. De fato, o simbolismo da Igreja de Rennes-le-Château nunc
a foi um mistério para aqueles versados na tradição maçônica. Esse simbolismo é simplesment
uma indicação da condição particular de Sauniere, que era maçom. Isso é confirmado pela es
olha de Sauniere para o escultor da Via Crucis e das outras estátuas, um certo Gis
card, que vivia em Toulouse, e cuja bizarra decoração de sua casa e estúdio ainda pode
m ser vistos na Avenue de la Colonne, naquela cidade. Giscard era um maçom conheci
do, embora tenha se especializado em decoração de Igrejas, e outros exemplos de seu
trabalho podem ser vistos por todo o Languedoc. Curiosamente, na igreja de João Ba
tista em Couiza, que fica no sopé da colina abaixo de Rennes, pode-se encontrar Vi
a Crucis idêntica àquela feita por Giscard, mas é uma versão monocromática, e as anomalias
tão notáveis na igreja de Sauniere estão ausentes. É quase como se as duas Igrejas, que
estão a apenas uns poucos quilômetros uma da outra, tivessem a clara intenção de serem
comparadas a fim de realçar as excentricidades da versão de Sauniere.
Jean Robin, em seu livro sobre Rennes-le-Château, declara que as ligações de Sauniere
com a maçonaria são confirmadas por registros nos arquivos da diocese". Como já vimos,
entretanto, a maçonaria consiste de uma variedade de tradições distintas. A qual dela
s pertencia Sauniere? Aqui novamente, os bem informados pesquisadores franceses
estão de acordo; sua filiação era com o Ritual Escocês Purificado, o braço da maçonaria 'oc
ltista', que especificamente afirmava ser descendente direto dos templários.
Antoine Captier, o neto do sineiro de Sauniere, que foi uma fonte para a pesquis
a em Rennes-le-Château e no caso Sauniere, nos disse: 'Sabemos que ele pertenceu
a uma loja maçônica. Ele foi enviado para um lugar onde havia algo [significativo].
Ele encontrou algumas coisas. Mais uma vez, no entanto, não estava sozinho. Ele não
trabalhava sozinho:" Mais tarde, ao longo de nossas conversas, foi mais preciso:
as ligações de Sauniere eram com o Ritual Escocês Purificado; acrescentou, entretanto
, 'Isso não é segredo'. Foi a essa conclusão que também chegou Gerard de Sede, que tem p
esquisado o caso por cerca de trinta anos. De fato, de Sede acredita que algo do
simbolismo na Nona Estação da Via Crucis evoca diretamente o grau de Chevalier Bien
faisant de la Cité Sainte, um eufemismo para designar 'templário'."
Há uma outra indicação da possível afiliação de Sauniere. Sua escolha das estátuas de santo
a igreja, Madalena à parte, tem sido extremamente debatida pelos pesquisadores: São
Germano, São Pedro e os dois Antônios, o de Pádua e o Ermitão,e,acima do púlpito,São Lucas.
lain Féral mostrou que, se esses forem colocados em conjunto com o formato de "M"
do piso da igreja, suas iniciais formam a palavra Graal."
Com o símbolo da rosa-cruz no tímpano e a prevalência de imagens do Templo de Saio mão,
esses pontos convergem em direção à Ordre dela Rose-Croix, du Temple et du Graal, uma
ordem fundada em Toulouse por volta de 1850, e algum tempo depois liderada por n
inguém menos que Joséphin Péladan, o patrono de grupos ocultistas eróticos.

No início de nossa investigação, pensávamos que a tendência de muitos outros pesquisadores


em acreditar que todos os caminhos levavam a Rennes-le-Château era um engano.No e
ntanto, de certo modo eles estão certos, embora na maior parte das vezes pelos mot
ivos errados. Certamente, foi atordoante destrinchar a intricada rede de grupos
ocultistas e maçônicos que discutimos previamente e que traçamos de volta no tempo até S
auniere e sua aldeia. Não é mera coincidência: isso fazia parte de um elaborado e meti
culoso plano que estava muito bem estabelecido já antes dele ter nascido e que con
tinua até os dias de hoje.
Já vimos que Sauniere demonstrou grande interesse pela tumba de Marie de Negre d'A
bles, Dama d'Hautpoul de Balanchfort, que foi erigida por Antoine Bigou, pároco de
Rennes-le-Château, em 1791. Ela era a última descendente em linha direta dos que ha
viam dado o título a Rennes-le-Château, embora outros ramos da família continuassem. M
arie de Negre d'Ables casou-se com o último Marquês de Blanchefort, em 1732. O nome
vinha do 'castelo' nos arredores (embora pareça, na verdade, que foi apenas uma es
pécie de torre) de Blanchefort, cujas ruínas ainda podem ser vistas. A família de Mari
e, entretanto, tinha algumas conexões bem interessantes. Já discutimos a influência do
Ritual de Menphis. que mais tarde iria se fundir com o de Misraïn. Este foi funda
do em 1838 por Jacques-Étienne Marconis de Negre, que realmente era da mesma família
da Marie da história de Rennes-le-Château,' E foi um dos Hautpouls, Jean-Marie Alex
andré, que participou da criação do grau, do Ritual Escocês Purificado, de Chevalier Bie
nfaisant de la Cité Sainte, o eufemismo para templário, em 1778. Membros da mesma fa
mília eram proeminentes na loja maçônica La Sagesse, de onde surgiu a Ordre dela Rose-
Croix, du Temple et du Graal. O sobrinho e herdeiro de Marie de Negre,Armand d'H
autpoul, estava com certeza conectado com indivíduos ligados ao Monastério, incluind
o Charles Nodiere, que foi Grão-Mestre de 1801 até 1844." Armand d'Hautpoul era também
o tutor do Conde de Chambord, cuja viúva foi tão generosa para com Sauniere. ,.
O Ritual de Menphis de Marconis de Negre estava proximamente conectado com a soc
iedade conhecida como os Filadelfianos, que foi criada pelo Marques de Chefdebie
n, um maçom do Ritual Escocês Purificado, em Narbonne, em 1780" Essa é uma outra socie
dade templarista maçônica influenciada pelas idéias do Barão von Hund: Chefdebien havia
estado no famoso Convento de Wilhelmsbad, de 1782, o qual tentara resolver de um
a vez por todas as querelas relacionadas com as origens dos templaristas maçônicos,
e declarou estar do lado de von Hund. Os Filadelfianos, como o Ritual de Menphis
, estavam primordialmente interessados na aquisição de conhecimento ocultista; ambos
tinham graus exclusivamente dedicados a essa tarefa. Os Filadelfianos, além disso
, almejavam destrinchar a complicada história da maçonaria, com sua proliferação de hier
arquias, graus e rituais concorrentes, em uma tentativa de descobrir seus propósit
os e segredos originais. Eles tornaram-se um repositório de informações sobre a maçonari
a e sociedades similares, as quais lhes eram dadas de boa-fé ou chegavam como resu
ltado de operações de infiltração em outras organizações. Portanto, é significativo que o i
de Sauniere, Alfred (também um padre) fosse o tutor da família de Chefdebien, e que
fosse demitido por ter roubado parte dos arquivos da família.
Sem dúvida Alfred Sauniere é uma figura-chave nos estranhos acontecimentos nos quais
seu irmão mais velho, e mais famoso,se envolveu, e mereceria uma pesquisa mais pr
ofunda. Entretanto, é difícil encontrar muitas coisas relativas a ele, embora seja s
abido que era amante da ocultista Marquesa du Bourg de Bozas, uma das visitas qu
e se divertiam na Villa Bethania. Alfred morreu alcoólatra em 1905, após ter sido ex
comungado.
Após a morte de Alfred, Sauniere, em uma carta para seu bispo, referiu-se ao senti
mento de que 'deveria-se esperar que eu reparasse os erros de meu irmão, o abade,
que morreu tão cedo'."
Uma vez que tenhamos entendido as conexões de Sauniere com o Ritual Escocês Purifica
do, grande parte do quadro geral passa a fazer sentido. E longe de ser uma obses
são pessoal, a reverência de Sauniere por Madalena na verdade surgiu como sendo part
e da Grande Heresia Européia. O ponto-chave para se entender suas associações está nas p
essoas que ele conhecia.
De fato, é possível se chegar ao ponto de estabelecer uma conexão entre Sauniere e Pie
rre Plantard de Saint-Clair através de um único homem: Georges Monti." Também conhecid
o pelos cognomes Conde Israel Monti e Marcus Vella, ele é uma das figuras mais pod
erosas e implacáveis das sociedades secretas do século XX, embora de forma alguma se
ja a mais conhecida. Esse venerável mago preferia exercer sua influência a partir da
s sombras, ao invés de sair em busca de publicidade, como fez seu companheiro Alei
ster Crowley. Por toda a sua vida, ele ascendeu através dos escalões de muitas socie
dades ocultistas, mágicas e maçônicas, muitas vezes com o intuito de infiltrar-se nela
s em benefício de outros.Também era um agente-duplo dos serviços secretos da França e da
Alemanha; como no caso de John Dee, e possivelmente no de Leonardo, os dois mun
dos da espionagem e o ocultismo com freqüência andam lado a lado. Sua vida era de ta
l forma complexa que é impossível dizer ao certo para que lado pendia sua lealdade.
Provavelmente pendia para seu lado e seu amor pela intriga e pelo poder pessoal.
Quaisquer que sejam os verdadeiros motivos de Monti, ele foi assombrosamente bem
-sucedido em sua vida secreta, constantemente alcançando altos postos em sociedade
s secretas hostis e opostas, ou sem que tivessem conhecimento uma da outra, ou c
om cada uma crendo que ele estava infiltrado no outro grupo para favorecer o pri
meiro. Por exemplo, embora alguns dos grupos fossem, como o próprio Monti, marcada
mente anti-semitas, ele também foi bem-sucedido em se infiltrar na B'nai B'rith, u
ma sociedade judia semi-maçônica fundada nos Estados Unidos, chegando mesmo a conver
ter-se ao judaísmo para consegui-lo.
Monti nasceu em Toulouse em 1880, foi abandonado por seus pais italianos e criad
o pelos jesuítas. Desde cedo se interessava pelo mundo sombrio das sociedades ocul
tistas.Viajou por toda a Europa, e passou bastante tempo no Egito e na Argélia. En
tre as muitas sociedades a que se juntou, estava a Holy Vehm, uma organização alemã es
pecializada em assassinatos políticos. Também afirmava ter 'as chaves que abrem' as
portas da maçonaria italiana. Entre seus muitos conhecidos estava Aleister Crowley
- na verdade, ele era descrito como o 'representante de Crowley na França'" -, e
fazia parte da OTO quando aquele extravagante inglês era o Grão-Mestre. Como já era de
se esperar, a vida dupla de Monti foi descoberta, e por isso foi envenenado em
Paris, em outubro de 1936.
Ele foi incluído na presente investigação por ter sido secretário de Josephin Péladan, no
início de sua vivência no mundo ocultista parisiense, e a partir daí passou a fazer pa
rte do círculo de Emma Calvé. Como já vimos, Sauniere era conhecido por ter conexões com
Péladan e seu grupo, e por ter conhecido Emma Calvé, e portanto deve ter se encontr
ado com Monti. Além disso, Monti era do Languedoc, e freqüentemente residia em Toulo
use ou em alguma parte do Midi.
Em 1934, Monti fundou a Ordre Alpha-Galates, da qual Pierre Plantard de Saint-Cl
air tornou-se Grão-Mestre em 1942, com a pouca, embora significativa, idade de vin
te e dois anos. E mesmo que Plantard tivesse apenas dezesseis quando Monti morre
u, ele o conhecia: a ex-mulher de Plantard de Saint-Clair, Anne Léa Hisler, escrev
eu em um artigo de 1960 que Plantard inequivocamente 'conhecia o Conde George Mo
nti muito bem'.'" Monti pode muito bem ter sido seu professor e mestre no mundo
ocultista.
Portanto, parece haver uma clara ligação entre Sauniere e Plantard de Saint-Clair, a
través de Georges Monti, talvez representando uma continuação de uma determinada tradição
esotérica.
. . .
Então, o que podemos deduzir da história de Sauniere? Conseguir adentrar por entre t
udo o que é obscuro, todos os mitos e suposições superpostas, não é uma tarefa pequena, ma
s realmente parece que o padre estava procurando alguma coisa, e que ele não estav
a trabalhando sozinho. As evidências apontam para a existência de um patrocinador se
creto, possivelmente ligado às influentes sociedades secretas de Paris e do Langue
doc. Essa explicação não é somente a mais lógica, como é também a única que Sauniere fornec
uando o sucessor de Billard como bispo de Carcassonne ordenou que Sauniere fizes
se um relatório sobre o seu extravagante estilo de vida, o padre espirituosamente
respondeu:
eu não sou obrigado... a divulgar os nomes de meus doadores...Torná-los públicos sem
a devida permissão traria o risco de levar a discórdia para o selo de certas famílias
e lares... cujos membros doaram sem o conhecimento de seus marido, filhos ou he
rdeiros.

Tempos depois, entretanto, ele disse que daria ao bispo os nomes dos doadores, m
as apenas no segredo da confissão. O fraseado de uma carta de apoio a Sauniere esc
rita por um amigo íntimo, em 1910, emprega uma linguagem mais sugestiva:
Você deve ter recebido o dinheiro. Esse é para que ninguém penetre no segredo que vo
cê guarda... Se alguém deu-lhe o dinheiro sob a condição natural de que o segredo fosse
mantido, você é obrigado a fazê-lo, e nada pode demovê-lo disso...'"
Alfred, irmão de Sauniere, também tinha, ao que parece, conhecimento do segredo. Em
resposta às perguntas das autoridades sobre suas extravagâncias, Sauniere disse:
Meu Irmão, sendo um padre, tem inúmeros contatos. Ele serviu como intermediário para
essas almas generosas."
Porém, embora Rennes-le-Château possa ter sido o começo da busca misteriosa de Saunier
e, a qual, aparentemente, foi empreendida em favor de outros, parece que o objet
o da busca ficava em outro local.
Recentemente muitos pesquisadores encontraram várias pistas intrigantes espalhadas
em seu domaine sobre os reais interesses e motivações de Sauniere. Durante uma das
nossas viagens à região, em 1995, levamos conosco Lucien Morgan, um apresentador de
televisão e uma autoridade no tantra, que estava estupefato com a descoberta de qu
e a Torre de Magdala e as plataformas foram construídas de acordo com antigos prin
cípios de um certo tipo de rito sexual. Ele acreditava que Sauniere e seu círculo se
creto praticavam rituais sexuais esotéricos que eram propostos com o intuito de fa
cilitar a clarividência, estabelecer contato com os deuses - indo de encontro, na
verdade, aos antigos alquimistas da Grande Tarefa - e assegurar algum poder mate
rial e influência. Outros viram indicações de sexo mágico: os autores britânicos Lionel e
Patrícia Fanthorpe citam o perito em ocultismo Bremma Agostini, que disse que Saun
iere estava realizando um ritual de magia sexual conhecido como a 'Convocação de Vênus
', do qual Marie Dénarnaud e Emma Calvé participavam.'.
Até os limites dessa investigação, o que é realmente significativo em toda a construção de
auniere em Rennes-le-Château é a ênfase dada a Maria Madalena. A Igreja da aldeia já era
a ela dedicada muito antes dele sequer ter nascido, mas mesmo isso não era mera c
oincidência, pois essa costumava ser a capela da família dominante local, a de Marie
de Nègre. E dada a sua íntima relação com o Ritual Escocês Purificado, a dedicação poderia
r significativa. Sauniere também nomeou a sua torre-biblioteca e sua casa em homen
agem àquela que, de acordo com a interpretação do Novo Testamento, havia vivido com se
u irmão Lázaro e sua irmã Marta. E de toda a decoração da igreja é o baixo-relevo defronte
o altar, retratando Madalena, que escolheu para pintar com sua próprias mãos.
Descobrimos que ele também tinha feito uma pequena estátua de bronze de Madalena, a
qual colocou no lado de fora da caverna. Ela tinha apenas um metro de altura e p
esava cerca de 85 quilos, e era a imagem invertida no espelho, ou por outro lado
idêntica à do baixo-relevo. Essa estátua há muito desapareceu, mas André Galaup, um jorna
lista aposentado de Limoux, tem fotografias dela."
A legenda 'Terribilis est locus iste' está bem visível sobre a porta da igreja. Como
Keith Prince nos mostrou, a frase vem do Gênesis 29:17 e conta como Jacó sonhou com
uma escada na qual anjos subiam e desciam.Ao acordar, sussurrou aquelas palavra
s. Ele chamou o lugar de Bethel, que significa Casa de Deus. Mas, no Antigo Test
amento, Bethel se torna um poderoso centro rival a Jerusalém, o que lhe dá a conotação d
e local alternativo ou rival ao centro religioso 'oficial'. Na França, entretanto,
a implicação é mais óbvia: um dicionário francês define 'Bethel' como um 'templo de uma se
ta dissidente'." Seria isso o que Sauniere estava querendo transmitir? Os Dossiês
secretos afirmam que Sauniere, nos últimos anos, planejava iniciar 'uma nova relig
ião' e enviar uma cruzada por toda a região. As últimas construções planejadas para seu do
maine, a torre alta e a piscina batismal, faziam parte dessa ambição. "
Decidimos nos concentrar naquilo que Sauniere havia encontrado em sua chegada a
Rennes-le-Château, e que poderia tê-lo inspirado em sua busca. Deixando de lado a te
ntativa de desvio do assunto que eram os pergaminhos, ficamos chocados com a apa
rente contradição do comportamento de Sauniere. Muitas pessoas pensam que ele estava
tentando deixar pistas na decoração de sua igreja, mesmo que se saiba que ele cuida
dosamente destruíra certas coisas encontradas lá, especificamente as inscrições nas duas
pedras que haviam marcado a sepultura de Marie de Nègre. Ele também as retirou do túm
ulo, o que sugere que queria dificultar sua exata localização.
Como já vimos, essas pedras, uma lápide e uma laje de pedra, foram colocadas na sepu
ltura de Marie de Negre por Antoine Bigou, cerca de cem anos antes de Sauniere c
hegar. Já havia, então, algo extravagante: Bigou colocou as pedras em 1791, dez anos
depois da morte da mulher supostamente enterrada, ao mesmo tempo em que colocou
a 'Pedra do Cavaleiro' na igreja virada do lado contrário (a descoberta dessa ped
ra, à primeira vista, foi um passo importante para a busca de Sauniere). Há ainda um
outro indicador de que Sauniere estava de algum modo seguindo os passos de Bigo
u: antes de se tornar pároco de Rennes-le-Château, Bigou serviu no pequeno vilarejo
de Le Clat, nas montanhas, a cerca de vinte quilômetros dali. Sauniere também havia
sido padre em Le Clat, imediatamente antes de ir para Rennes-le-Château. Estaria S
auniere procurando por algo que estivesse ligado a Bigou e, portanto, aos d'Haut
poul ou aos de Nègre?
A obra de Bigou na sepultura pode ter sido acelerada pelos eventos na França que t
iveram lugar entre a morte de Marie, em 1791, e o início do terror da Revolução France
sa. Os revolucionários eram hostis à Igreja Católica, e muitas relíquias, ícones e ornamen
tos foram destruídos ou pilhados
nessa época. Logo após terminar seu trabalho em Rennes-le-Château, Bigou, que se opunh
a à república, fugiu em direção à fronteira com a Espanha, onde morreu em 1793.
Houve um outro acontecimento estranho relacionado com o sepultamento de Marie. O
s senhores de Rennes, a família d'Hatoupoul, habitualmente eram enterrados no jazi
go pertencente à família, que dizem ser debaixo da igreja. Então, por que o enterro de
Marie não foi realizado conforme o costume? Sabemos que a cripta existia, pois há u
ma referência a ela nos registros da paróquia, que cobre os anos de 1694 a 1726, e q
ue estão expostos no museu. De acordo com estes a entrada da cripta é dentro da igre
ja. Contudo, a entrada não existe mais, embora pareça certo que Sauniere a tenha des
coberto; talvez os documentos que encontrou indicassem o local onde deveria proc
urar.
O relato da história de Sauniere registrado pelos irmãos Antoine e Marcel Captier, e
baseado nas memórias de sua família, dizia que o padre havia descoberto a entrada da
cripta embaixo da Pedra do Cavaleiro, e que realmente havia entrado nela. Mas e
ntão ele escondeu a entrada novamente, agora sob o novo piso da igreja, provavelme
nte não querendo que tal segredo fosse descoberto.Antoine Bigou deve ter tido a me
sma preocupação, porque foi ele quem colocou a Pedra do Cavaleiro virada ao contrário,
em 1791, encobrindo a entrada. Por que ambos os padres, com cem anos de distância
, estariam tão preocupados em garantir que ninguém mais entrasse na cripta dos senho
res de Rennes-le-Château?
Há uma resposta simples. Se Sauniere tivesse entrado no jazigo e encontrado o túmulo
de Marie de Negre, no lugar onde ele deveria estar em primeiro lugar, teria des
coberto imediatamente que alguma coisa estranha estava acontecendo: a mulher ter
ia dois túmulos. O segundo, porém, que ficava no cemitério, foi colocado lá por Bigou de
z anos após sua morte. Obviamente, Marie não foi enterrada no cemitério; nesse caso, q
uem ou o que foi?
Uma hipótese razoável é a de que Bigou, provavelmente em virtude dos distúrbios decorren
tes da Revolução de 1789, que o ameaçaram pessoalmente, tivesse escondido algo no cemi
tério de Rennes-le-Château antes de fugir para a Espanha. Mas o que poderia ter sido
? Um outro corpo, um objeto ou documentos de algum tipo? Talvez fosse algo muito
difícil para Bigou levar consigo até a Espanha, ou talvez fosse algo que realmente
pertencesse a Rennes-le-Château. Talvez nunca fiquemos sabendo, mas parece que Sau
niere sabia, pois ele abriu a sepultura para olhar dentro. E estava ansioso para
que a mensagem dos túmulos se perdesse, ao menos a da laje horizontal, na qual ra
surou a inscrição. Poderia a mensagem render alguma pista sobre o que a sepultura re
almente continha?
A inscrição da lápide do túmulo de Marie de Nègre continha um grande erro, que não poderia
penas ter sido resultado de um trabalho malfeito." Palavras soletradas erroneame
nte. letras perdidas, espaços ou omitidos ou acrescentados onde não são necessários. Das
vinte e duas palavras na inscrição, não menos do que cinco contêm erros. Alguns parecem
ser totalmente inócuos, mas uma palavra em particular estava tão malfeita que dever
ia ter causado grande ofensa para a família. As palavras finais deveriam ser lidas
como o convencional RESQUIESCAT IN PACE, 'descanse em paz', mas elas aparecem c
omo REQUIES CATIN PACE. A palavra francesa catin é a gíria para 'puta'. Isso é reforçado
pelo erro no nome da família: d'Hautpoul aparece como DHAUPOUL. Esse erro específic
o pode não ter mudado o significado da frase mas com certeza atrai nossa atenção para
a palavra. E poule (galinha) é uma outra gíria para prostituta; de fato, hautpoul po
deria significar 'prostituta de alta classe ...
Do mesmo modo o nome na tumba ecoa temas que são importantes para esta pesquisa. C
hega a ser tentador pensar que Marie de Nègre existiu apenas como um nome. um código
para alguma coisa realmente atordoante.
Pois Blanchefort, embora seja um nome de um marco local, também significa ou 'torr
e branca' ou 'branco poderoso', um termo alquímico. E 'Marie de Nègre' evoca as Mado
nas Negras e sua associação com Maria Madalena, O que é reforçado pela referência de hautp
oul a 'prostituta de alta classe', sabedoria da puta. Mais uma vez, encontramos
conexões aparentes que evocam a sexualidade sagrada, e talvez, no contexto dos boa
tos sobre o 'tesouro', aspectos sexuais da Grande Obra alquímica. E talvez ainda m
ais significativo, há um outro erro de grafia na tumba: D'ABLES está escrito como D'
ARLES. Se isso é, como suspeitamos, uma referência à cidade de Arles na Provença, pode e
vocar o fato de que essa era um antigo centro para o culto a Ísis. De qualquer for
ma, Arles está muito próximo de Santes-Maries-de-la-Mer.
O desenho na segunda pedra no túmulo de Marie de Nègre, a laje horizontal, é mais cont
roverso, já que existem algumas discrepâncias nos vários relatos publicados sobre o as
sunto." Em muitas versões há duas inscrições principais: a frase, em latim escrita, curi
osamente, com caracteres gregos, Et in Arcadia ego; e as quatro palavras em lati
m Reddis Regis Cellis Arcis que cruzam a pedra. O significado desta última não está cl
aro, e tem sido fonte das mais diferentes interpretações, mas ao que parece refere-s
e a um jazigo ou tumba pertencente à nobreza, talvez conectada com Rhedae e/ou o v
ilarejo de Arques (a palavra Arcis tem muitos significados possíveis, de palavras
conectadas com o 'arc', (arco) da língua inglesa, até palavras que significam 'inclu
so' ou 'dentro', ou apenas uma alusão a Arques, ou de seu nome antigo Archis, ou d
a pronúncia fonética moderna de seu nome).
O lema Etin Arcadia ego também é encontrado na tumba inserida na pintura Os Pastores
de Arcádia, de Nicolas Poussin (1593-1665), que de modo inacreditável lembra uma ou
tra que parece sempre ter estado, de um modo ou de outro, às margens da estrada de
Rennes-le-Château e Couiza à Arques (a versão mais recente foi dinamitada em 1988 por
que o fazendeiro, em cuja terra foi construída, não estava nem um pouco disposto a t
olerar centenas de turistas passando de lá para cá em sua propriedade. Infelizmente,
essa medida drástica de nada adiantou: agora os turistas vão até lá para tirar fotograf
ias do local onde a tumba costumava estar).
Dizem que Sauniere ao voltar de sua viagem a Paris trouxe consigo cópias de determ
inadas pinturas, uma das quais era o Os Pastores de Arcadia, de Poussin.'" Esse
quadro, datado de cerca de 1640, mostra um grupo de três pastores examinando uma t
umba, observados por uma mulher que geralmente é tomada como sendo uma pastora. Na
tumba está a inscrição em latim Et in Arcadia ego, uma frase cuja gramática está completa
mente errada e que chegou a ser interpretada das mais variadas formas, mas é geral
mente considerada como a representação de um memento mori, uma meditação sobre a morte:
mesmo em uma terra paradisíaca como Arcadia a morte está presente. O lema tem uma fo
rte conexão com a história do Monastério de Sion, e está presente no brasão de Pierre Plan
tard de Saint-Clair. Também, como já vimos, se diz que foi incorporado na ornamentação d
a laje do túmulo de Marie de Nègre. O tema da pintura não foi uma criação de Poussin: o ma
is antigo exemplar conhecido sobre esse motivo pertence a Giovanni Francesco Gue
rcino, realizado cerca de vinte anos antes. Entretanto, O homem que encomendou a
versão de Poussin, Cardeal Rospigliosi, parece que também havia sugerido o mesmo te
ma a Guercino. E a mais antiga aparição da frase Et in Arcadia ego no mundo das arte
s foi no século XVI, em uma gravura de um alemão intitulada O Rei do Novo Sion é destr
onado após inaugurar a Era de Ouro..."
Analisando Poussin é interessante notar uma carta que o abade Louis Fouquet escrev
eu de Roma para seu irmão Nicolas, Superintendente Financeiro de Louis XIV; em 165
6:

[Poussin] e eu planejamos certas coisas das quais falarei a você em detalhes br


evemente, [e que trará a você, através de M. Poussin, vantagens que os reis teriam gra
nde trabalho para dele obter, e que, no que depender dele, talvez ninguém nos século
s que virão poderá retomar; e mais, isso só seria possível com uma grande despesa ainda
que produzisse lucro, e essas coisas são tão difíceis de encontrar que nada nem ninguém
na terra agora poderia ter algo melhor, nem, quem sabe, fortuna igual.
Bastante significativo, foi Charles Fouquet, irmão de Louis e Nicolas, quem, na co
ndição de bispo de Narbonne, mais tarde obteve o controle total de Notre-Dame de Mar
ceille por um período de quatorze anos."
A razão do quadro de Poussin ser de interesse para os pesquisadores de Rennes é que
a paisagem como é vista na pintura parece bastante similar àquela da região ao redor d
os locais da tumba de Arques, e mesmo a própria Rennes-le-Château pode ser vista à dis
tância. Contudo, a paisagem, mesmo que similar, não é idêntica e isso tem sido tomado co
mo prova de que a semelhança é mera coincidência. Em nossa opinião, porém, a paisagem está
astante próxima do original, o que implica na possibilidade de que Poussin estava
realmente tentando retratar os arredores de Rennes.
Contudo, a coisa toda torna-se ainda mais complicada. A data conhecida da tumba
de Arques é do início do século XX. Ela foi construída em 1903 por um fabricante local,
Jean Galibert, e subseqüentemente vendida para um americano chamado Lawrence. Exis
tem, entretanto, rumores de que essa tumba seria simplesmente a réplica de uma ant
erior. Nosso amigo John Stephenson, que morou na região por muitos anos, confirmou
que os moradores locais diziam que 'sempre houve uma tumba naquele local'. Port
anto, é bem possível que Poussin realmente tivesse apenas pintado o que estava vendo
. John Stephenson também nos disse que a conexão com a obra de Poussin já era conhecid
a há um bom tempo na região, o que certamente é um contra-argumento para a idéia dos cépti
cos de que ela era uma invenção dos anos 50 e 60. O lugar sempre foi significativo.
Também é dito que o lema de Arcadia foi adotado por Plantard de Saint-Clair e o Mona
stério de Sion apenas no século XX, bem como a suposta ligação com a pintura de Poussin
e a tumba de Marie de Negre.A frase, porém, já estava conectada com a região muito ant
es da chegada de Sauniere. Em 1832, um certo Auguste de Laboulse-Rochefort escre
veu um livro intitulado Voyage à Rennes-le-Bains, que inclui referências a um tesour
o escondido ligado a Rennes-le-Château e Blanchefort. Laboulse-Rochefort escreveu
um outro livro, Les Amants, à Éléonore (Os Amantes, para Eleonor), que incluía a frase n
a primeira página.
A tumba é localmente conhecida como a 'Tumba de Arques', o que, embora mais acurad
a do que a frase "tumba de Poussin', ainda não é precisamente verdadeira, pois o vil
arejo de Arques está a três quilômetros mais a oeste da rodovia principal. Embora a tu
mba esteja muito mais perto do vilarejo de Serres, a palavra Arques tem uma relação
muito próxima com a palavra Arcadia, e portanto é de se esperar que seja explorada.
De acordo com Deloux e Brétigny, no seu livro Rennes-le-Château: capitale secrète de l
'histoire de France, a laje do túmulo de Marie de Nègre foi na verdade trazida até sua
sepultura pelo abade Bigou, de uma versão mais antiga da tumba de Arques." Se iss
o for verdade, levanta-se uma possibilidade intrigante. Poderia Poussin ter simp
lesmente pintado algo que ele realmente vira, ou seja, a tumba com essas palavra
s inscritas, Et in Arcadia ego?
John Stephenson nos contou uma lenda local relativa à tumba de Arques: a de que es
sa era ou o lugar do repouso final de Maria Madalena ou servia como um marcador
ou indicador de algum modo, e a inscrição na laje da tumba de Marie de Nègre realmente
tinha uma flecha apontando para o centro. Porém, a laje foi movida, e portanto não
podemos mais saber qual a direção que a flecha originalmente apontava.
A evidência indica que Sauniere acreditava que o corpo de Maria Madalena seria enc
ontrado em algum lugar; ou estava nas vizinhanças de Rennes-le-Château, ou o vilarej
o possuía algum tipo de pista de onde deveria estar. O que fora escondido no segun
do túmulo de Marie de Nègre? Será que a inscrição codificada que aparentemente fazia referê
cia a uma 'prostituta de alta classe' realmente significava Madalena? (Talvez o
termo pudesse ser lido como 'Alta Sacerdotisa', assim ligando um conceito de sex
ualidade sagrada com uma antiga, ao invés de moderna, prática ocultista.)
Sauniere parecia estar procurando por alguma coisa em especial e poderosa, algo
que fosse precioso e que estava conectado com sua amada Maria Madalena. E o que
poderia ser mais precioso que seus ossos? É claro que isso poderia ser apenas uma
obsessão particular de sua parte e ele poderia ter imaginado que os restos dela es
tavam lá para serem encontrados. Por outro lado, como já vimos, Sauniere estava trab
alhando para, e provavelmente era financiado por, uma grande e obscura organização.
Estaria ele também sendo iludido?Talvez não.As evidências sugerem que o padre estava a
gindo por meio de informações fidedignas acerca da existência real de um objeto.
Enquanto nossa investigação prosseguia, nos tomamos mais e mais convencidos dessa hi
pótese relacionada com Madalena, mas logo descobrimos que, pelo menos entre os pes
quisadores britânicos desse assunto, estávamos sozinhos. E, portanto, foi reconforta
nte termos encontrado pesquisadores franceses que estavam trabalhando na mesma l
inha de pesquisa que nós. Para eles, assim como para nós, não era algo inconcebível que
Sauniere e seus misteriosos financiadores estivessem procurando pela própria Maria
Madalena.
Durante uma de nossas viagens à região, na primavera de 1995, Nicole Dadwe bondosame
nte nos ofereceu um jantar para que pudéssemos encontrar Antoine e Claire Captier,
além de Charles Bywaters. Antoine, neto do sineiro que encontrou o cilindro de ma
deira que continha os documentos que ele deu a Sauniere, viveu com o mistério toda
a sua vida, assim como Claire, que era filha de Noël Corbu.
Antoine era franco: ele não tinha o menor interesse em remexer nesse mistério. 'Não vo
u dizer-lhes o que não sei', adiantou." Disse que achava bastante difícil que pudéssem
os perguntar algo que fosse novidade para ele, mas se surpreendeu quando pergunt
amos sobre a possível conexão de Sauniere com o culto de Madalena, porque esse era u
m ângulo que havia sido ignorado até recentemente, mas nosso interesse nisso era est
ranhamente paralelo com o de certos pesquisadores franceses.
Antoine nos disse que Sauniere tinha pesquisado a lenda de Madalena, isso havia
aparecido em um jornal chamado Cep d'Or de Pyla, que é produzido por André Douzet, o
homem que encontrou a maquete discutida no capitulo anterior, e que mora em Nar
bonne. Douzet e seu círculo são entusiastas e conhecidos pesquisadores da história eso
térica da França. Antoine disse que a próxima edição do jornal 'seria interessante para nós
.. porque vocês encontrarão algo profundo, relacionado com a Madalena'.
Mais uma vez graças a Nicole, nos encontramos mais tarde com André Douzet, que nos d
isse que ele e alguns outros, principalmente Antoine Bruzeau, haviam empreendido
uma pesquisa específica relacionada com o interesse de Sauniere em Madalena, mas
isso fazia parecer com que a chave para o mistério estivesse a alguma distância de R
ennes-le-Château. André não havia, de início, sido atraído para o mistério de Sauniere, mas
chegara a esse por uma via indireta: alguns lugares de interesse para ele em sua
cidade natal de Lyon o levaram até lá.
A conexão remonta a Gérard de Roussilon, que, no século IX, havia fundado a abadia em
Vézelau, em Burgundy, onde, como mais tarde foi declarado, ele havia encontrado o
corpo de Maria Madalena. Lembramos que (ver Capítulo Três) essa afirmação foi depois des
autorizada por St. Maximim, na Provença, quando os monges de Vézelau não puderam apres
entar as relíquias.Também podemos relembrar que esses acontecimentos colocaram Charl
es d'Anjou II a postos para realizar uma busca febril a fim de encontrá-los, conve
ncido que estava de que os ossos ainda estavam em algum lugar na Provença.
Gérard de Roussillon era conde de Barcelona, Narbonne e Provença, uma grande e vasta
área. Sua família também era proprietária de terras na região de Le Pilat, hoje o Parque
Nacional de Le Pilat, no sul de Lyon. Eles eram devotos passionais de Madalena,
e a região era um centro para o seu culto (uma Capela de Sainte-Madalene na região d
e Le Pilat possuía o que era tido como os restos de Lázaro).
No século XIII, o conde reinante, Guillaume de Roussillon, morreu nas cruzadas e s
ua pesarosa viúva, Béatrix, refugiou-se nas colinas de Le Pilat, onde encontrou um c
onvento cartesiano, Saint-Croix-en-Jarez, passando lá o resto de sua vida. Contudo
, a partir de então o convento pareceu adquirir uma estranha associação com Maria Mada
lena.
Antoine Bruzeau argumenta que a família possuía os verdadeiros restos mortais de Mar
ia Madalena, e que Béatrix os havia levado para Sainte-Croix (ou talvez ele simple
smente confiou o segredo da localização desses ao abade local). Ele também sugeriu que
o lugar verdadeiro da chegada de Madalena na França não foi Camargue, mas a costa d
e Roussillon, em um lugar que é ainda chamado de Mas de la Madeleine. De acordo co
m sua teoria, ela viveu o resto de sua vida não na Provença, mas no Languedoc, na re
gião circunvizinha a Rennes-le-Château."
Por alguma razão a família Roussillon sentiu que era seu dever não apenas manter os re
stos mortais, mas também fazê-lo em absoluto segredo. Isso é bastante estranho em uma ép
oca em que as relíquias representavam um negócio lucrativo, e sugerem que eles dever
iam ter outros motivos do que apenas a simples veneração à santa do Novo Testamento. T
alvez fosse algo conectado com o verdadeiro papel da Madalena.
No século XIV um mural curioso foi acrescido à abadia de Sainte-Croix, que mostrava
Jesus sendo crucificado em uma árvore viva. Mais tarde o mural foi coberto, mas em
1896 foi descoberto, pouco antes de Sauniere pessoalmente pintar o baixo-relevo
de seu altar, mostrando a Madalena contemplando a cruz feita de madeira ainda v
iva.
Mais tarde, no século XVII, um dos frades de Sainte-Croix, Dom Polycarpe de la Riv
iere, erudito renomado, empreendeu algumas reformas no mosteiro, chegando a esca
var em alguns lugares. Estava particularmente interessado na Madalena, sobre que
m escreveu um livro que, infelizmente, agora está perdido, além de um outro sobre a
região de Aix-en-Provence, St. Maximin e Sainte Baume, que o Vaticano suprimiu. De
la Riviere também estava conectado com Nicolas Poussin, e a pesquisa de Bruzeau s
ugere que os dois faziam parte de uma sociedade secreta conhecida com Société Angéliqu
e."
Nas colinas de Le Pilat uma antiga estrada sobe o Mont Pilat em direção a uma capela
dedicada a Maria Madalena. A estrada começa no vilarejo de Malleval, cuja Igreja
contém estátuas de Antônio de Pádua e de São Germano que são Idênticas àquelas de Rennes-le
u.A trilha passa por uma capela dedicada a Santo Antônio, o Ermitão, um outro santo
venerado na Igreja de Sauniere (e cujo dia comemorativo é 17 de janeiro). E na cap
ela de Madalena há um quadro do santo em sua caverna que é, espantosamente, semelhan
te àquela em Rennes-le-Château. Bruzeau aponta para o fato de que nos fundos da obra
no altar de Sauniere há um arco e uma coluna: em celta o primeiro é pyla, em latim
a segunda é pila; foneticamente, ambas nos remetem à região de Le Pilat. E os picos mo
strados no horizonte parecem os mesmos da região de Le Pilat.
Sempre nos intrigou que, em seu baixo relevo, Sauniere deixara fora a principal
característica iconográfica de Maria Madalena, sua jarra de bálsamo,ou sainte baume...
Seria essa a forma que encontrara para dizer que os verdadeiros restos mortais
dela não estavam em St-Maximim-la-Sainte-Baume, na Provença, afinal de contas?
Com certeza, a julgar pelas notas fiscais da contratação de cocheiros e cavalos na r
egião de Lyon, entre 1898 e 1899.'. parece que Sauniere vasculhou a região de Le Pil
at, talvez procurando por aquilo que fora deixado por sua amada Maria Madalena.
A pergunta nunca feita é por que alguém se daria tanto trabalho para encontrar o que
afinal de contas não passa de um saco de ossos. Pois embora os católicos sempre ten
ham tido uma predileção por restos mortais, deve ser lembrado que muitos daqueles qu
e aparentemente buscavam os ossos de Madalena ou eram ocultistas ou católicos rebe
ldes. De qualquer forma, eles não pareciam ser pessoas sentimentais e a era de comér
cio de relíquias já passara há muito tempo; então, por que devotaram tanto tempo e tiver
am tanto trabalho para procurá-los?
Talvez não fosse simplesmente um esqueleto o que estavam procurando: acreditava-se
que o caixão ou o túmulo continha um segredo, ou algo relacionado com o próprio corpo
ou algo que estava dentro dele. Henry Lincoln, provavelmente sendo irônico, suger
iu à imprensa francesa que esse 'algo' poderia ser um certificado de casamento de
Jesus e Madalena. Falando seriamente, o segredo deve ser algo parecido, algo que
prove isso inequivocamente, e que, se tornado público, provocaria uma grande exal
tação.
Face aos interesses específicos de grupos que haviam investigado, isso deve ser al
go essencialmente herético, cuja natureza poderia provocar uma profunda desestabil
ização da Igreja. Mas o que poderia representar tamanha ameaça? Por que algo que, prov
avelmente, já tem 2000 anos de idade, teria qualquer significado em nossa sociedad
e moderna?
CAPÍTULO X
Decifrando os Caminhos Secretos
A esta altura de nossa investigação nos deparamos novamente mente com a evidente imp
ortância de Maria Madalena para a rede herética e secreta. Voltamos para onde começamo
s, para o simbolismo inteligente e subliminar da "Senhora M" de Leonardo em sua
obra A Última Ceia. Contudo, nos anos que se passaram desde que fomos pela primeir
a vez atraídos pelo mundo obscuro da heresia européia, cobrimos um enorme espaço de chão
, em todos os sentidos. Chegara a hora de fazer um balanço: o que havíamos descobert
o?
A "Senhora M", que acreditávamos ser Maria Madalena, era obviamente de enorme impo
rtância para Leonardo, que, assim se dizia, fora Grão-Mestre do Monastério de Sion. No
ssos próprios encontros com os membros do atual Monastério haviam reforçado nossas sus
peitas de que ela também representava algo de grande valor para eles. E o mesmo se
aplica a João Batista, uma figura que dominou o trabalho de Leonardo e a quem o M
onastério parecia venerar com especial devoção.
As muitas viagens que fizemos ao sul da França revelaram que havia certo fundament
o para se levar a sério a lenda de que Maria Madalena ali vivera, mas suas ligações co
m o culto da Madona Negra sugerem uma conexão pagã. Tudo o que se relaciona com a ve
neração a Madalena está fortemente impregnado de sexualidade, o que é particularmente ev
idente na associação entre ela e o poema de amor erótico do Antigo Testamento, o Cântico
dos Cânticos.
Mas há aqui um claro paradoxo. Pois se de um lado existem indícios de que Madalena e
ra a mulher de Jesus, ou pelo menos sua amante, por outro lado ela é persistenteme
nte associada com as deusas do mundo pagão. Isso nos parece totalmente irracional
- por que diabos a esposa do Cântico dos Cânticos estaria vinculada dessa forma com
personagens como Diana, a Caçadora, e com a deusa egípcia do amor e da magia, Ísis? Es
sa era uma pergunta recorrente em nossas pesquisas.
Durante toda a nossa investigação, indivíduos e grupos, como os templários, São Bernardo d
e Clairvaux e o abade Sauniere, eram freqüentemente encontrados girando em torno d
o tema central do Feminino. Embora para alguns deles isso não passasse talvez de u
m mero ideal filosófico, o próprio fato de se ter atribuído ao tema um rosto distintam
ente feminino indica uma devoção mais específica. Ela era, se não Madalena, então Ísis, a a
tiga Rainha dos Céus e consorte do deus morto-ressurrecto Osíris. Com certeza, essa
cadeia de associações, Madalena/Madona Negra/Ísis, sempre envolvera os assuntos do Mon
astério. Para esses a Madona Negra representava tanto Madalena quanto Ísis, simultan
eamente. Isso, contudo, é muito estranho, pois a primeira é uma santa do cristianism
o e a segunda é uma deusa pagã: qual seria a possível conexão entre elas?
Como já vimos, os cátaros tinham, ao que parece, visões inaceitáveis e heterodoxas sobre
Madalena: na verdade, toda a cidade de Béziers foi trespassada pela lâmina das espa
das em razão dessa heresia. Para eles, ela havia sido a concubina de Jesus, uma idéi
a que curiosamente encontra eco nos Evangelhos Gnósticos, que a descrevem como a m
ulher a quem Jesus freqüentemente beijava na boca e a quem amava acima de todos. O
s cátaros realmente acreditavam nisso, embora com a maior relutância, pois a sua própr
ia versão do gnosticismo considerava o sexo e a procriação como sendo, na melhor das h
ipóteses, um mal necessário. Essa idéia do relacionamento de Madalena com Jesus não lhes
foi passada pelos Bogomils, seus precursores, sendo na verdade uma visão comum no
sul da França naquela época, em uma cultura que buscava exaltar o Feminino de todas
as formas, como demonstra o florescer da tradição trovadoresca. E, como já vimos, o t
ratado "Irmã Catarina' revela que as idéias sobre Maria Madalena encontradas nos Eva
ngelhos Gnósticos foram, de algum modo, transmitidas ao século XIV.
Curiosamente, descobrimos que aqueles epítomes da masculinidade, os cavaleiros tem
plários, ou pelo menos seu círculo interno, estavam totalmente comprometidos com a i
déia da exaltação do Feminino.A intensidade de sua veneração às Madonas Negras não tinha ri
, e sua busca cavalheiresca pelo amor transcendental estava por trás das grandes l
endas do Santo Graal.
Os templários tinham uma paixão insaciável por conhecimento, e a busca por tal tesouro
era sua principal motivação. Pilhavam conhecimento onde quer que o encontrassem: do
s árabes, tomaram os princípios da geometria sagrada, e seus aparentemente íntimos con
tatos com os cátaros acrescentaram um verniz extra de gnosticismo às suas já heterodox
as idéias religiosas. Já nos seus primórdios os interesses dessa ordem de cavaleiros e
ram essencialmente ocultistas: a pouco convincente história de suas origens como p
rotetores dos peregrinos cristãos à Terra Santa pelo menos chama nossa atenção para os f
atos estranhos que circundavam a Ordem.
A maior concentração de propriedades templárias na Europa encontrava-se no Languedoc,
essa estranha região do sudoeste da França que parece ter funcionado como ímã para muito
s grupos heréticos. O catarismo, no seu apogeu, praticamente se tornara a religião o
ficial da região, e foi lá que o movimento dos trovadores nasceu e prosperou. Pesqui
sas recentes demonstraram que os templários praticavam alquimia. As construções de vária
s cidades no Languedoc, como a de Alet-les-Bains, ainda portam símbolos alquímicos c
omplexos e têm também fortes ligações com os templários.
Após os sinistros eventos relacionados com a supressão oficial dos templários, a Ordem
passou a fazer parte do mundo oculto e continuou a exercer influência sobre muita
s outras organizações. Como os templários fizeram isso, e quem realmente herdou seu co
nhecimento, nunca se soube ao certo, até os últimos dez anos. Gradualmente veio à tona
que os templários continuaram a existir como rosa-cruzes e maçons, e que o conhecim
ento adquirido por eles fora passado a essas sociedades.
Um exame cuidadoso desses grupos revelou suas recorrentes preocupações subjacentes.
Uma delas é a grande, talvez excessiva, veneração por um ou ambos os Santos João; João Eva
ngelista (ou O Amado) e João Batista. Isso causa certa perplexidade, pois os grupo
s que parecem considerá-los tão sagrados dificilmente são cristãos ortodoxos, chegando m
esmo a considerar Jesus com certa frieza. Um desses grupos é o Monastério de Sion. M
ais desconcertante, porém, nesse contexto, é o fato de que embora o Monastério dê a seus
sucessivos Grão-Mestres o nome de João, Pierre Plantard de Saint-Clair afirma que o
título do primeiro dessa linhagem, "João I", é "simbolicamente reservado a Cristo".' É
o caso de perguntar por que seria uma honra para Cristo ser chamado de João.
Talvez a resposta esteja na idéia, compartilhada por essas sociedades, de que Jesu
s passou seus ensinamentos secretos para o jovem São João, e essa é a tradição mantida de
forma tão zelosa pelos templários, rosa cruzes e maçons. E, ao que parece, João Evangeli
sta foi confundido, aparentemente de modo deliberado, com João Batista.
A própria idéia de existir um Evangelho secreto de João era comum entre os "heréticos",
dos cátaros do século XII ao Levitikon. É curioso que esse veio joanita permeie, de mo
do tão consistente e difundido, esses grupos, porque é também um dos menos conhecidos.
Talvez assim seja simplesmente porque o manto do segredo foi particularmente be
m-sucedido em ocultá-lo dos olhos do mundo durante tanto tempo.
O outro tema principal que percorre os diversos afluentes dos "caminhos secretos
" da heresia é o da exaltação do Princípio Feminino, especificamente o reconhecimento do
sexo como um sacramento. Os alquimistas da Grande Obra, por exemplo, têm evidente
s paralelos com os rituais sexuais do tantra, embora só recentemente essas conotações
tenham sido compreendidas. Ironicamente, foi só quando nossa cultura tomou conheci
mento do tantra que as práticas de muitas tradições ocidentais antigas finalmente pass
aram a fazer sentido.
Desde há muito tempo se busca a sabedoria feminina, tanto no sentido filosófico como
naquele segundo o qual ela era conferida magicamente, através do ato sexual. Essa
busca pela sabedoria feminina, Sophia, é o fio que une todos os grupos que invest
igamos: por exemplo, os primeiros gnósticos, os grupos herméticos, os templários e seu
s sucessores da Maçonaria do Ritual Escocês Purificado. O texto gnóstico Pistis Sophia
liga Sofia a Maria Madalena, e Sofia também estava intimamente associada com Ísis -
talvez isso ajude a explicar a aparente mistura que o Monastério de Sion faz da s
anta com a deusa. Contudo, isso é apenas uma pista, não a resposta.
A persistente importância de Madalena não está sendo posta em dúvida. Contudo, seus rest
os mortais foram procurados, e possivelmente ainda o são, com um fervor inexplicável
. No século XIII, Charles II d'Anjou empreendeu essa busca com um zelo fanático, emb
ora seu fracasso tenha sido notório, pois dois séculos depois um descendente seu, o
mais famoso René d'Anjou, ainda estava à procura deles. Já no final do século XIX, o mes
mo desejo ardente de encontrar os restos físicos de sua amada Madalena parece ter
consumido o abade Sauniere de Rennes-le-Château.
De um jeito ou de outro, a Madalena guarda a chave de um grande mistério, um mistéri
o que se tem mantido zelosa e cruelmente em segredo através dos séculos. E parte des
se segredo envolve intimamente João Batista (e/ou talvez João Evangelista). Quando,
finalmente, percebemos que tal segredo existia, começamos rapidamente a retirar o
pó e as teias de aranha da história oficial, na tentativa de assim lançar-lhe alguma l
uz. Essa tarefa, porém, não era nada fácil; os grupos e organizações que ao longo dos anos
haviam guardado esse conhecimento desenvolveram meios de manter os forasteiros
bem longe da verdade. Embora alguns poucos nos tenham dado pistas e indicações, ning
uém estava disposto a nos entregar o segredo central. Tudo o que sabíamos era que to
dos os indícios sugeriam que o mistério fora erigido sobre um alicerce que essencial
mente incluía Sophia e João. Esses temas eram fundamentais, mas não tínhamos nenhuma idéia
do porquê, embora uma das pistas esteja no fato de que esse segredo, qualquer que
seja ele, com certeza não iria reforçar a autoridade da Igreja. Com efeito, essa gr
ande e desconhecida heresia pareceria encerrar a maior de todas as ameaças, não apen
as ao catolicismo mas ao cristianismo tal como o conhecemos. Os grupos que guard
aram o segredo realmente acreditavam estar de posse de algum conhecimento sobre
as verdadeiras origens do cristianismo e mesmo sobre o próprio Jesus.
Qualquer que seja a natureza desse segredo, é algo de óbvia relevância e significado p
ara os séculos XIX e XX. Em Rennes-le-Château, Sauniere entretinha não apenas represen
tantes da alta sociedade parisiense, como Emma Calvé, como também políticos e membros
das famílias imperiais. Em nossa época, Pierre Plantard de Saint-Clair e o Monastério
de Sion estiveram associados a figuras como Charles de Gaulle e Alain Poher, pro
eminente estadista francês que por duas vezes foi presidente provisório.' Boatos rec
entes estabeleceram um elo entre o ex-presidente francês François Mitterand e Pierre
Plantard de Saint-Clair. 'Mitterand visitou Rennes-le-Château em 1981, quando foi
fotografado junto à torre Magdala e próximo à estátua de Asmodeus, na igreja.' Talvez s
eja significativo que ele tenha nascido em Jarnac, onde foi enterrado em uma cer
imônia privada, enquanto líderes mundiais assistiam aos serviços religiosos na igreja
de Notre-Dame, em Paris. De acordo com os estatutos do Monastério de Sion da década
de 1950, Jarnac há muito era uma de suas sedes.'
É muito difundida a crença de que o Monastério de Sion exerce uma influência real na polít
ica européia e mesmo mundial. Mas por que o assunto que estamos investigando inter
essaria ao mosteiro, por mais interessante que seja do ponto de vista histórico e
filosófico? Estaria isso ligado com a promessa de "virar o cristianismo de cabeça pa
ra baixo" anunciada pela união do Monastério de Sion com a "Igreja de João" que discut
imos anteriormente?
A única coisa que Maria Madalena e João Batista tinham em comum era o fato de ambos
serem santos e personagens históricos encontrados no Novo Testamento. A única rota lóg
ica para pesquisas mais profundas seria investigar suas vidas e ações, na esperança de
que isso pudesse revelar a razão de seu persistente apelo para o mundo das tradições
heréticas ocultas. Se tivéssemos alguma esperança de chegar a compreender a suprema im
portância conferida a eles pelos iniciados da maioria dos grupos esotéricos sérios e e
sclarecidos, então teríamos que começar por ler a Bíblia atentamente.
Parte Dois
As Teias da Verdade
CAPÍTULO XI
As Inverdades do Evangelho
Na Páscoa de 1996, a mídia britânica dedicou grande atenção ao que parecia ser uma descobe
rta surpreendente - um ossário, encontrado em Jerusalém, que continha os ossos de um
pequeno grupo de pessoas, entre as quais estava "Jesus filho de José". As outras
ossadas eram de duas Marias (uma das quais trazia uma inscrição em grego) - dentro d
esse contexto, possivelmente a Virgem e a Madalena -, um José, um Mateus e um "Jud
as, filho de Jesus". Obviamente, esses nomes, encontrados assim juntos, provocar
am certo alvoroço entre os cristãos, embora as implicações de tal descoberta não fossem, n
ecessariamente, do seu agrado, afinal; o cristianismo foi fundado sobre a crença d
e que Jesus retornara dos mortos e ascendera em carne e osso aos céus. Encontrar s
eus ossos seria devastador. Contudo, seriam realmente seus ossos e, os outros, o
s de sua família?
Deve-se admitir que muito provavelmente não eram. É bem possível que não passe de mera c
oincidência, pois apesar da repercussão especial que os nomes têm entre os cristãos eram
nomes comuns na Palestina, do primeiro século. A razão, porém, pela qual essa descobe
rta ganhou importância foi a intensidade do crescente debate que causou. Os progra
mas de televisão e a imprensa escrita de qualidade se confinavam a uma única questão:
se pudesse ser comprovada a suposta origem daqueles ossos, o que isso significar
ia para o cristianismo? E para nós um dos aspectos mais reveladores sobre o assunt
o é que muitos cristãos sentiram-se atordoados e afrontados diante da idéia de que Jes
us pudesse ter sido um homem comum. Para muitos, chega mesmo a ser surpresa o fa
to de que o nome Jesus fosse comum naquela época.
Embora seja compreensível que os cristãos devotados desejem manter intocada sua visão
de Jesus como o Filho de Deus, e talvez decidam simplesmente ignorar o que os não-
cristãos possam dizer sobre ele, ainda assim é estranho que tantos cristãos ignorem a
quantidade de imprecisões contidas nos relatos dos Evangelhos. Nunca houve tanta i
nformação disponível sobre o assunto; ao longo dos últimos cinqüenta anos, escreveram-se l
ivros que apresentam uma enorme diversidade de opiniões relativas a Jesus e seu mo
vimento e que oferecem as mais variadas (e algumas até divertidas) teorias. Entre
as hipóteses divertidas existem idéias como as de que Jesus era um pai divorciado co
m três filhos, um maçom, um budista, um feiticeiro, um hipnotizador, o iniciador de
uma linhagem de reis franceses, um filósofo cínico, um cogumelo alucinógeno e até mesmo
uma mulher! Essa explosão de idéias bizarras e fantásticas resultam em parte da pronti
dão da civilização moderna para questionar, mas a razão que possibilitou o surgimento de
tais idéias é que os estudos mais recentes revelaram que a história tradicional de Je
sus é cheia de falhas e portanto bastante frágil. Contudo, embora essas idéias possam
florescer em virtude do vácuo existente, todas se apóiam no fato de os Evangelhos te
rem sido não apenas reinterpretados, mas praticamente reescritos.
Esse vácuo só pôde ser percebido quando as pesquisas dos fatos forneceram um contexto
histórico. Descobertas arqueológicas, tais como os textos Nag Hammadi e os Manuscrit
os do Mar Morto, têm revelado muito mais informações sobre a época e a cultura em que Je
sus viveu, e de repente parece que muitos aspectos do cristianismo que sempre fo
ram considerados exclusivos, não o eram. Mesmo os conceitos cristãos mais batidos e
familiares agora podem ser vistos como imbuídos de um significado completamente di
ferente dentro do contexto da Palestina do primeiro século.
Por exemplo, um lema que os cristãos evangélicos particularmente gostam de exibir na
fachada de suas igrejas é "Jesus Cristo é o Senhor". Para eles essa frase incorpora
a idéia de que Jesus era literalmente divino, o Senhor, Deus encarnado. A frase f
oi extraída dos Evangelhos na crença de que se tratava de um título dado a Jesus por s
eus discípulos, em reconhecimento de sua condição única. Porém, como nos diz o respeitado
estudioso da Bíblia, Geza Vermes, era apenas um termo comum utilizado para demonst
rar respeito, como o que as crianças usavam quando se dirigiam aos pais ou uma esp
osa ao falar com o marido, o equivalente a "senhor". " Não passa de um costume com
um, que certamente não tem nada de espiritual ou divino. Ao longo dos séculos, porém,
a frase ganhou vida própria e é aceita quase como uma prova de que Jesus é o Senhor Ab
soluto.
Um outro exemplo de como a tradição cristã tornou-se fato histórico é o das comemorações da
oa e do Natal, as mais importantes do cristianismo. Todo ano milhões de cristãos em
todo o mundo celebram o nascimento do menino Jesus no dia 25 de dezembro. A histór
ia da natividade é amplamente conhecida: Maria era uma virgem que concebeu através d
a intervenção do Espírito Santo; não havia nenhum quarto na hospedaria para ela e seu ma
rido José, então a criança nasceu em uma estrebaria (ou numa caverna, segundo algumas
versões), e os três reis magos e os pastores vieram adorar o recém-nascido Salvador. E
sse relato pode não ser o favorito dos cristãos e teólogos mais sofisticados, mas é uma
das primeiras histórias que se contam às crianças, tornando-se um "Evangelho" desde te
nra idade.
Quando o papa considerou prudente explicar que Jesus não nascera realmente em 25 d
e dezembro, mas que a data fora escolhida porque já era um festival do solstício do
inverno para os antigos pagãos, a declaração causou um certo alvoroço. Para a maioria do
s cristãos comuns até isso representou uma grande revelação. É quase inacreditável que tal
eclaração tenha sido feita apenas em 1994. No entanto, é apenas a ponta do iceberg, po
is os teólogos já sabiam há muito tempo que toda a história do Natal é apenas um mito.
A extensão do quanto os cristãos são mantidos deliberadamente na ignorância, por aqueles
que sabem mais, vai muito, muito longe: a data natalina de 25 de dezembro não é só a
suposta data de nascimento de Jesus; é também a de muitos deuses pagãos como Osíris, Att
is, Tammuz, Adonis, Dioniso e muitos outros.
Eles também nasceram em condições humildes, tais como cavernas, e seu nascimento também
foi testemunhado por pastores e precedido por sinais e prodígios, inclusive a visão
de uma nova estrela. E entre os seus muitos títulos estava o de "Bom Pastor" e "Re
dentor da Humanidade". Se confrontado com os indícios de Jesus ter sido apenas mai
s um, em uma longa fila de tradições de "deuses-mortos-ressurrectos", o clero tende
a refugiar-se no conceito pouco satisfatório de que os pagãos antigos de algum modo
tinham uma vaga idéia de que algum dia haveria um verdadeiro deus salvador, mas ti
veram de se contentar com uma grotesca paródia do cristianismo que estava por vir.
Embora abordemos detalhadamente as verdadeiras origens do cristianismo mais à fren
te, é suficiente por ora dizer que a data comum de 25 de dezembro não é a única semelhança
entre a história de Jesus e a dos deuses pagãos. Osíris, por exemplo, consorte de Ísis,
morreu pelas mãos dos ímpios em uma sexta-feira e magicamente "ressuscitou', após ter
estado entre os mortos por três dias. E os mistérios de Dioniso eram celebrados pel
a ingestão do deus através de uma refeição mágica composta de pão e vinho, simbolizando seu
sangue e sua carne. Esses "deuses-mortos-ressurrectos' já foram reconhecidos há muit
os anos pelos teólogos, historiadores e estudiosos da Bíblia, embora ainda pareça have
r uma conspiração tácita para manter tal conhecimento apartado do "rebanho' da Igreja.
Com toda a recente enxurrada de novos materiais relacionados com as origens do c
ristianismo, é simplesmente muito fácil ser tomado de entusiasmo e abraçar uma certa i
déia sem a precaução e o discernimento necessários. Se as fontes são mal interpretadas, en
tão as conclusões obtidas podem estar muito longe da verdade. Por exemplo, uma vasta
quantidade de palavras foram dedicadas aos Manuscritos do Mar Morto, descoberto
s em 1947: alguns deles parecem lançar nova luz sobre os primórdios do cristianismo.
Certas passagens dos manuscritos convenceram muitos de que Jesus e João Batista f
aziam parte dos essênios, uma seita com sede em Qumran, nas proximidades do Mar Mo
rto. Não é exagero dizer que tal é considerado por muitas pessoas como incontestavelme
nte comprovado.
De fato, não existe nenhuma prova de que os manuscritos sejam de origem essênia - es
sa foi apenas a suposição imediata ao terem sido encontrados. Há uma outra suposição: de q
ue os documentos eram textos pertencentes a uma única seita, os essênios ou alguma d
as muitas outras que se refugiaram naquela região. Contudo, o proeminente professo
r de história judaica Norman Golb, que acompanhou bem de perto a descoberta dos Ma
nuscritos do Mar Morto e o desdobramento dos estudos a eles relacionados, recent
emente desafiou tal suposição. Ele demonstrou que a alegação de serem provenientes de um
a única comunidade, ou mesmo de que algum dia houve uma comunidade religiosa em Qu
mran, não encontra apoio nem nos achados arqueológicos, nem nos próprios manuscritos.
Golb acredita que os manuscritos são de fato parte da biblioteca do Templo, e que
foram escondidos ali durante a revolta judia em 70 d.C.
Se Golb estiver certo, e tudo indica que sim, então praticamente todos os livros e
scritos sobre os Manuscritos do Mar Morto são supérfluos. Basicamente o que muitos a
utores fizeram foi tentar reconstruir as crenças de uma suposta seita a partir de
uma coleção de documentos que na verdade provêm de uma variedade de grupos diferentes.
É como deduzir as crenças de alguém observando o que ele guarda na sua estante: nossa
própria biblioteca particular, por exemplo, revela abertamente nosso interesse em
assuntos religiosos e esotéricos, mas como nossos livros cobrem uma extensa gama
de pontos de vista -céticos, racionais e crédulos -, obviamente não podem representar
aquilo em que realmente acreditamos. (A título de comparação, os textos do Nag Hammadi
nunca foram considerados como produto de uma única seita.)
Embora a conexão dos manuscritos do Mar Morto com os "essênios" seja uma falácia, apes
ar de seu status de mito moderno, eles continuam a ter uma importância histórica pro
funda para a compreensão do judaísmo daquela época. Porém, como é improvável que sejam de g
ande utilidade para qualquer estudo sobre as origens do cristianismo, os manuscr
itos não ocupam muito espaço nessa nossa investigação.
O perigo de basear conclusões de alcance tão amplo em premissas insuficientes é exempl
ificado pelo livro The Hiram Key, de Knight e Lomas. Eles argumentam que, como a
lguns dos Manuscritos do Mar Morto contêm idéias similares às da maçonaria, e como afirm
am que "não há dúvidas hoje de que os autores dos Manuscritos do Mar Morto (...) foram
os essênios" então seria de deduzir que os essênios foram os precursores da maçonaria.
Junte-se a isso sua convicção de que Jesus era essênio e a conclusão é óbvia: Jesus era maç
Entretanto, como já vimos, os Manuscritos não foram escritos pelos essênios e não está pro
vado que Jesus pertenceu a essa seita, de modo que o argumento todo cai por terr
a. No mínimo, isso serve de alerta aos pesquisadores excessivamente entusiasmados.
Percebemos então, no ponto em que estávamos de nossa investigação, que há muito tempo se p
edia uma reavaliação radical do status de João Batista e de Maria Madalena. Afinal, pa
recia que essas duas figuras históricas haviam conquistado um persuasivo direito d
e serem levadas a sério, pelo menos no que diz respeito a um tenaz movimento secre
to europeu, que incluíra algumas das mentes mais brilhantes de cada época.
O tema principal daquilo que chamamos de Grande Heresia Européia era a veneração inexp
licável, chegando em muitos casos à própria adoração, a Maria Madalena e João Batista. No e
tanto, isso representava mais do que algum tipo de não ortodoxia deliberada, uma r
ebeldia persistente contra a Igreja apenas e tão somente pelo gosto de ser rebelde
? Haveria alguma substância por trás dessas heresias? Para descobrirmos se havia alg
uma base factual para tais crenças, nos voltamos para o Novo Testamento, em partic
ular para os quatro Evangelhos canônicos de Mateus, Marcos, Lucas e João.
Confessamos que de início ficamos um tanto espantados com a conexão "herética" entre o
Batista e a Madalena. Não só nada havia na versão oficial do cristianismo que os liga
sse, apesar da clara devoção de ambos a Jesus, como também uma investigação superficial da
s próprias heresias foi infrutífera no sentido de propiciar uma base comum plausível.
Suas imagens representavam pólos opostos. João Batista figura como um asceta que mor
reu em virtude de seus inflexíveis padrões morais, embora, o que é interessante, não ten
ha morrido como um mártir do cristianismo. (De fato, não há nenhuma indicação de que ele t
enha invocado os ensinamentos ou a moral de Jesus quando de seu encontro fatídico
com Herodes Antipas.) E, por outro lado, acredita-se que Madalena era uma prosti
tuta, embora, de acordo com o relato tradicional, tenha se arrependido e passado
o restante de sua longa vida em penitência. De algum modo João e Maria não parecem se
r parceiros naturais: pelo menos não de acordo com os Evangelhos, nos quais não há qua
lquer menção de que eles sequer tenham se conhecido.
Contudo, existem indicações de que eles pelo menos sabiam um do outro. Os estudiosos
reconhecem que o Batista era bastante afamado, em sua época e lugar, como um preg
ador virtuoso - que saiu do deserto para conclamar os homens a se arrependerem -
, enquanto Maria era uma das seguidoras ou discípulas de Jesus, e tinha um papel i
mportante no grupo. E acredita-se que João e Jesus eram primos, ou pelo menos pare
ntes sangüíneos. Lendo nas entrelinhas podemos imaginar que talvez João conhecesse Mad
alena como a mulher que lavava os pés dos homens, trazia-lhes toalhas limpas e par
a eles cozinhava. Talvez conhecesse vagamente sua reputação passada e desaprovasse s
ua presença como sendo "impura'" - a menos, é claro, que ele próprio a tivesse batizad
o. Não existe registro de que isso tenha acontecido, mas não há também nenhum registro d
e que algum dos apóstolos, nem mesmo São Pedro, tenha sido batizado.
Contudo, investigações mais aprofundadas dos acontecimentos relacionados com as histór
ias contadas na Bíblia dão algumas pistas sobre a ligação entre a Madalena e o Batista.
A primeira grande ligação é a de seus papéis complementares na carreira de Jesus como pr
egador. É João quem representa seu início e Maria quem simboliza seu final.
João é quem inicia o ministério de Jesus através do ritual do batismo. Maria é o personage
m central nos acontecimentos relativos a sua morte e ressurreição.A conexão principal é
a de que ambos realizaram uma espécie de unção. O batismo de João com água é claramente aná
o à unção com óleo de nardo de Maria de Betânia, que muitos consideram ser a mesma pessoa
que Maria Madalena. E foi esta última quem ungiu o corpo de Jesus com mirra e babo
sa para que fosse enterrado.
A única grande semelhança entre esses dois personagens curiosamente atraentes, contu
do, é a de que, embora ambos obviamente cumprissem uma função ritual fundamental na vi
da de Jesus, somente foram incluídos nos relatos evangélicos por condescendência. Eles
entram e saem das páginas da Bíblia de modo tão repentino como se fosse apenas para c
riar um peculiar efeito de dissonância. Se por um lado lê-se a execução de João pelas mãos
os homens de Herodes, por outro lado, porém, não há qualquer menção de Jesus ter sofrido p
or isso, ou de ter exortado seus seguidores a mostrar reverência pela memória de João.
Madalena subitamente aparece na história na hora da crucificação, em um papel que dem
onstra claramente ser íntima de Jesus, e é a primeira a presenciar a Ressurreição - então
por que ela não é especificamente mencionada antes? Talvez porque os autores dos Eva
ngelhos não tinham como negar que João e Madalena desempenharam papéis tão fundamentais
na história de Jesus que não podiam ser totalmente excluídos; do contrário, porém, talvez
nunca tivessem sido mencionados. Então o que havia em João Batista e Maria Madalena
que era tão ofensivo para os autores dos Evangelhos e para os primeiros padres da
Igreja?
Facilmente se percebe essa marginalização deliberada no caso de Madalena. Se por um
lado sua importância é óbvia na história de Jesus, por outro não há praticamente qualquer i
formação sobre ela nos Evangelhos. Afora uma menção encontrada no Evangelho de Lucas, po
r exemplo, ela faz sua primeira aparição real como testemunha da crucificação. Não nos diz
em como ela se tornara uma seguidora, exceto pela insinuação, no relato da "expulsão d
os sete demônios , de que ela fora curada por Jesus. Tampouco nos dizem qual foi pre
cisamente o papel que ela exerceu, em especial no sepultamento de Jesus.
De início supomos ingenuamente que qualquer mulher que fosse seguidora de Jesus te
ria recebido esse tratamento pouco respeitoso pelo simples fato de ser mulher e,
portanto, um cidadão de segunda-classe para os judeus do primeiro século. Mesmo ass
im, as coisas devem ter mudado desde os tempos de Rute e Naomi, cujas vidas são mu
ito bem narradas no Antigo Testamento. E há a curiosa ênfase no sobrenome ou título de
Maria, Madalena. Pois, embora discutamos sua derivação mais adiante, ainda é possível r
econhecer - no próprio fato de ter sido utilizado pelos autores dos Evangelhos uma
indicação de que ela era uma mulher financeiramente independente. Todas as outras m
ulheres nos Evangelhos são definidas por sua condição de esposa, mãe ou irmã de algum home
m importante. Mas aqui temos apenas Maria Madalena. É como se os autores dos Evang
elhos esperassem que seus leitores soubessem quem ela era.
Os Evangelhos falam que as mulheres seguidoras de Jesus lhe assistiam com suas po
sses , indicando que elas tinham algumas posses para a ele assistir. Faria ela par
te de um grupo de mulheres independentes e de recursos que essencialmente mantin
ham o grupo de Jesus? Muitos estudiosos assim o acreditam. Porém, qualquer que fos
se sua condição financeira, Maria Madalena, quando mencionada com o nome inteiro, se
mpre está no topo da lista das mulheres discípulas, antes mesmo de Maria, a Mãe - exce
to quando há uma razão específica para se colocar a Virgem em primeiro lugar.
O Monastério de Sion acredita que Maria Madalena é a mesma Maria de Betânia, irmã de Lázar
o, e a que untou os pés de Jesus. Se assim é, então o tratamento rude que lhe dispensa
m os autores dos Evangelhos chama ainda mais a atenção. Parece que eles deliberadame
nte tornaram sua identidade e papel ainda mais difíceis de determinar. Os Evangelh
os Sinópticos chegam ao ponto de deixar anônima a mulher que unge os pés de Jesus, emb
ora seja muito provável que os autores soubessem quem ela era e a razão de sua impor
tância.
Esse processo de marginalização também parece ter sido aplicado a João Batista. Estudios
os contemporâneos do Novo Testamento reconhecem que o relacionamento entre João e Je
sus não pode ser precisamente definido. Muitos deles assinalam a demasiada ênfase da
da ao papel de João como mero precursor de Jesus, sugerindo que ele protesta demais .
É significativo que o Evangelho de Marcos - provavelmente o mais antigo e no qual
Mateus e Lucas se basearam - seja menos insistente que esses dois outros textos
no que tange ao papel secundário de João. Isso levou muitos estudiosos a concluir q
ue a subserviência de João a Jesus, que é repetida ad nauseam, na verdade era uma form
a de encobrir uma rivalidade entre os dois e entre seus respectivos grupos de di
scípulos.
Um exame escrupuloso dos Evangelhos dá pistas dessa rivalidade. Para começar, uma le
itura sem vieses revela que muitos dos primeiros discípulos de Jesus, e os mais fa
mosos, saíram na verdade das fileiras dos seguidores de João. Por exemplo, muitos ad
mitem que o jovem João, "o Amado" (que, como vimos, era figura central em muitas c
renças "heréticas"), fora um dos acólitos do Batista, de quem inclusive adotara o nome
em sinal de respeito. Os discípulos de João continuaram após a decapitação de seu líder co
o um grupo separado: dizem-nos que alguns deles foram buscar o corpo de João, e ex
istem passagens no Novo Testamento nas quais os seguidores de Jesus debatem com
os de João sobre seus respectivos estilos de vida.
Ainda mais revelador, no entanto, é o registro de que João teria dúvidas sobre Jesus s
er realmente o Messias - em uma passagem sobre a qual a Igreja pouco se manifest
a -, o que não chega a surpreender. Quando João é encarcerado na prisão de Herodes, envi
a dois de seus discípulos para perguntar a Jesus: "És tu o que hás de vir, ou devemos
esperar por outro?"' Esse episódio é particularmente embaraçoso para os teólogos. Por um
lado, vêm João Batista como aquele que fora designado por Deus para preparar o cami
nho para o Messias e mostrá-lo como tal aos povos, reconhecendo assim nele alguma
orientação divina - porém, o "precursor" então questiona se fez ou não a escolha certa!
Existem alguns outros sinais menos óbvios, mas igualmente reveladores, da rivalida
de entre os dois homens até mesmo nas palavras registradas de Jesus. O primeiro es
tá na bem conhecida passagem na qual Jesus parece glorificar João perante a multidão,
dizendo que "entre os nascidos das mulheres, não veio ao mundo outro maior que João
Batista." Entretanto, ele em seguida acrescenta a confusa ressalva de que "o qu
e é menor no reino dos céus, é maior do que ele" . O significado exato dessa passagem
tem sido objeto de intenso debate. O eminente estudioso do Novo Testamento, Geza
Vermes, comparou esse uso da frase "menor no reino dos céus" com outros exemplos
e concluiu que se tratava de um circunlóquio - uma frase impessoal e formal - que
também se referia ao próprio orador." Em outras palavras, Jesus estava dizendo à multi
dão que "João pode ter sido um grande homem, mas eu sou maior."
Entretanto, há uma outra interpretação muito mais óbvia que nunca vimos ser discutida po
r nenhum estudioso da Bíblia. É o reconhecimento de que a frase "nascidos das mulher
es" pode ser tomada como um insulto, pois sugeria fraqueza," - nesse caso, toda
a passagem ganha um matiz completamente diferente. Talvez a declaração de Jesus "ent
re os nascidos das mulheres, não veio ao mundo outro maior que João Batista" possa s
er tomada como um insulto direto. Esse insulto parece ser reforçado pelo comentário
seguinte "o que é o menor no reino dos céus, é maior do que ele." Se Geza Vermes estiv
er correto, ou seja, que Jesus estava dizendo que ele era maior, então dificilment
e isso poderia ser um elogio a João. No entanto, pode ter sido um tremendo insulto
, significando que "mesmo o menor dos meus seguidores é maior do que ele."
Foi sugerido que há também uma outra desfeita levemente velada a João - que teria sido
óbvia para os judeus do primeiro século - nos comentários de Jesus durante a discussão
entre seus discípulos e os de João: Ninguém deita vinho novo em odre velho". Naquela époc
a e lugar o vinho era muitas vezes carregado em "garrafas" feitas com pele de an
imais, e João vestia peles de animais... No contexto dessa discussão em particular, é
muito provável que esse comentário fosse uma referência a João.
Está claro que essa rivalidade era bem conhecida pelos autores dos Evangelhos mesm
o cinqüenta anos após a crucificação (que é mais ou menos a época em que os textos foram es
ritos). Talvez os quatro Evangelhos tenham sido escritos com a intenção oculta de mi
nimizar a infame rivalidade e assegurar que Jesus se sobressaísse como alguém em pos
ição superior. De fato, não há dúvida de que os evangelistas teriam ficado muito mais feli
zes se tivessem podido ignorar João completamente.
Portanto, é claro que o Batista e a Madalena - aquele que batizou Jesus e a que fo
i a primeira testemunha de um aspecto fundamental do cristianismo, a Ressurreição -
estão unidos pelo fato de que os autores dos Evangelhos se sentiam, para dizer o mín
imo, desconfortáveis com eles. Seria possível, entretanto, descobrir o porquê, reconst
ruir seus verdadeiros papéis e restabelecer sua importância original?
O problema principal é que os livros que compõem o Novo Testamento são pouco confiáveis
como fonte de informação. Como todos os textos antigos, é claro, foram submetidos a um
inflexível processo de edição, seleção, tradução e interpretação. Ao longo dos séculos, vá
foram acrescentadas às obras originais, algumas das quais não chegam a ter relevância
, ao passo que outras são extremamente significativas. Por exemplo, na primeira Epís
tola de João, sabe-se que a frase Porque são três os que dão testemunho no céu, o Pai, o V
rbo e o Espírito Santo, e estes três são uma só coisa" foi acrescentada tempos depois. A
lém disso, a história da "mulher pega em adultério" aparece somente no Evangelho de João
, e suas primeiras versões conhecidas não falam desse episódio". Sua autenticidade é ass
unto de grande debate.
Um bom exemplo da confusão gerada pelas extravagâncias da tradução é a equivocada e genera
lizada idéia de que Jesus era um humilde carpinteiro. A palavra utilizada no origi
nal em aramaico era naggar, que pode significar um artífice da madeira ou um erudi
to ou homem instruído. No contexto, o último significado é o que parece fazer mais sen
tido, pois não há nenhuma outra indicação em qualquer outro lugar de que Jesus fosse uma
espécie de artesão, e seus conhecimentos causavam comentários especiais daqueles que
o ouviam: a palavra naggar somente é utilizada quando as pessoas estão discutindo es
pecificamente sua erudição. Contudo, a idéia de que Jesus era carpinteiro está agora tão i
ndelevelmente gravada na história do cristianismo quanto o "fato de que ele nasceu
em 25 de dezembro.
As datas em que os Evangelhos canônicos foram escritos têm sido objeto de intenso de
bate e controvérsia. Como A. N. Wilson escreve:
Uma das mais curiosas características do estudo do Novo Testamento é o fato de que
, embora homens instruídos tenham passado séculos debruçados sobre documentos, nunca p
uderam responder, para além de qualquer dúvida, a questões simples como onde foram esc
ritos os Evangelhos, ou quando foram escritos ou, ainda menos, por quem foram es
critos.
Os manuscritos completos mais antigos de que se tem notícia datam do século IV; mas
são claramente cópias de textos mais antigos. Assim, os estudiosos tentaram estabele
cer sua procedência analisando a linguagem dos fragmentos remanescentes. Embora a
questão não esteja conclusivamente resolvida, o consenso atual é de que o Evangelho de
Marcos é o mais antigo, tendo sido escrito talvez no começo dos anos 70 d.C. Concor
da-se também que os de Mateus e Lucas basearam-se em grande parte no de Marcos e,
portanto, devem ter sido escritos mais tarde, embora também incorporem materiais d
e outras fontes. Acredita-se que o Evangelho de João seja o mais recente de todos,
escrito provavelmente entre 90 e 120 d.C.
O quarto Evangelho,o de João, sempre foi considerado uma espécie de enigma. Mateus,
Marcos e Lucas, conhecidos coletivamente como Evangelhos Sinópticos, contam mais o
u menos a mesma história, colocando os acontecimentos praticamente na mesma seqüência
e descrevendo Jesus de modo semelhante, embora ainda haja muitas discrepâncias e i
ncongruências em episódios isolados. Um bom exemplo disso são os números e nomes diferen
tes, entre os três autores, das mulheres que foram visitar o túmulo de Jesus. O Evan
gelho de João, entretanto, conta a história de Jesus em uma ordem muito diferente e
também inclui acontecimentos que os outros não mencionam.
Dois exemplos são as bodas em Caná, onde Jesus realiza seu primeiro milagre - transf
ormando a água em vinho -, e a ressurreição de Lázaro, que se torna, em João, um dos acont
ecimentos centrais. Que os outros cronistas não tivessem ciência desses importantes
episódios sempre foi motivo de perplexidade para os historiadores bíblicos.
Entretanto, o Evangelho de João também difere na imagem que apresenta de Jesus. Enqu
anto os Evangelhos Sinópticos contam a história de um professor de religião e realizad
or de milagres que se encaixa perfeitamente dentro do panorama judaico, o Evange
lho de João é muito mais místico e mais gnóstico em seu estilo, dando muito mais ênfase à d
vindade de Jesus. Também busca explicar o significado por trás da história à medida que
ela se desenrola.
A visão comum hoje é a de que Jesus era um líder religioso judeu que foi rejeitado por
seu povo. Muitos comentadores contemporâneos nem sequer chegam a levar em conside
ração a hipótese de que ele queria fundar uma nova religião, e que o cristianismo tenha
sido quase acidental, pois os ensinamentos de Jesus prosperaram em todo o restan
te do Império Romano. Isso explica, dizem eles, idéias como a da deificação de Jesus: el
e tornou-se conhecido como o Filho de Deus, literalmente o Deus encarnado, para
atrair a simpatia do mundo romanizado, que estava acostumado com a idéia de que se
us governantes e heróis tornavam-se deuses. Em razão do Evangelho de João discorrer so
bre esses temas, presume-se que tenha sido escrito em um estágio posterior do dese
nvolvimento do cristianismo, quando este estava se firmando no contexto mais amp
lo do Império Romano.
O problema é que o Evangelho de João é o único que realmente afirma estar baseado no tes
temunho ocular de alguém que presenciara a maioria dos acontecimentos da vida de J
esus: o discípulo amado , tradicionalmente considerado como sendo o jovem João - daí atri
buir-se a ele a autoria do Evangelho.
O Evangelho de João com certeza contém os detalhes mais circunstanciais, como os nom
es dos indivíduos que aparecem anonimamente nas outras versões. Por isso, alguns est
udiosos" argumentam que João é o primeiro dos Evangelhos, embora haja várias outras in
terpretações, desde a idéia de que João simplesmente tinha uma imaginação melhor até a hipó
de ter usado o testemunho em primeira mão, porém acrescentando-lhe mais tarde sua próp
ria interpretação.
O Evangelho de João, sob qualquer ponto de vista, é muito estranho. Há muito ele tem d
esnorteado até mesmo os estudiosos mais eruditos em virtude de suas mensagens conf
usas: de fato, seu tom inconfundível é frontalmente contradito pelos fatos que ele t
em o cuidado de colocar perante o leitor. Em razão das informações detalhadas que forn
ece, o Evangelho de João é reconhecido como o mais valioso historicamente, ainda que
seja considerado como o mais distante no tempo em relação à vida de Jesus. Demonstra
um conhecimento mais preciso sobre as práticas religiosas judaicas, embora seja o
menos judaico e o mais helenista de modo geral. É de longe o mais hostil aos judeu
s - suas violentas críticas a eles revelam verdadeiro ódio -, embora deixe mais clar
o do que os outros Evangelhos que foram os romanos, não os judeus, os responsáveis p
ela execução de Jesus. E é também o mais estridente na sua marginalização de João Batista,
otando muitas palavras a sua suposta inferioridade e ignorando completamente o d
estino subseqüente do Batista - ainda que, ao contrário dos Evangelhos Sinópticos, nos
conte que Jesus recrutou dentre o grupo de João seus primeiros discípulos e que os
seguidores de ambos os líderes continuaram a ser rivais, revelando assim que João ti
nha sua importância.
Essa evidente confusão, entretanto, é facilmente explicada pelas muitas fontes que f
oram utilizadas a fim de compilar o Evangelho de João, inclusive os relatos das te
stemunhas da missão de Jesus. E, como veremos, algumas dessas fontes são particularm
ente reveladoras.
Muitos cristãos modernos acreditam que o Novo Testamento foi uma espécie de inspiração d
ivina. Contudo, os fatos dizem o contrário: foi apenas em 325 que o Concílio de Nicéia
reuniu-se para debater quais dos muitos livros seriam incluídos no que iria se to
rnar o Novo Testamento. Não existem dúvidas de que os homens presentes no Concílio col
ocaram nessa tarefa seus próprios preconceitos e interesses, e ainda, infelizmente
, que estamos colhendo o que eles plantaram. Por fim, o Concílio estabeleceu que a
penas os quatro Evangelhos seriam incluídos no Novo Testamento, rejeitando assim o
s cinqüenta e tantos outros livros que tinham mais ou menos o mesmo direito de ser
considerados autênticos."
Com um único golpe, as visões expressas, implícita ou explicitamente, no material reje
itado tornaram-se sinônimo de heresia. (De fato, a palavra heresia originalmente s
ignificava apenas escolha.) De certa forma o mesmo tipo de processo de seleção empre
gado pelo Concilio de Nicéia no século IV ainda continua a ser utilizado nos dias de
hoje. Não é permitido ao público, de maneira geral, tirar suas próprias conclusões sobre
os textos remanescentes. Por exemplo, o Evangelho de Tomé, cuja existência é conhecida
há muito tempo, somente foi descoberto totalmente quando os textos do Nag Hammadi
foram revelados ao mundo em 1945. Porém, qualquer regozijo relacionado com sua de
scoberta deve ser moderado pelo reconhecimento da verdadeira razão de sua aceitação pe
los teólogos: o texto estava de acordo com os quatro Evangelhos existentes, e foi
por essa razão que se permitiu que eles passassem pelo cânon não oficial (embora a Igr
eja Católica o declarasse herético). Outros textos, datando mais ou menos da mesma épo
ca, foram descartados porque a ótica religiosa inserida neles não estava de acordo c
om a do Novo Testamento. Trata-se geralmente dos textos que têm uma base gnóstica.
Os cristãos são criados com a noção de que a 'verdade dos Evangelhos' significa fatos de
inspiração divina, inequívocos, literais e sem qualquer ambigüidade. Muito poucos estud
iosos contemporâneos, entretanto, aceitam que o Novo Testamento seja a palavra de
Deus, pois sabem que as palavras contidas no Novo Testamento não são mais ou menos vál
idas do que qualquer outro relato que as pessoas fazem cinqüenta anos ou mais depo
is da ocorrência dos acontecimentos que descrevem.
Será coincidência que os Evangelhos tenham sido escritos apenas após o primeiro missio
nário, Paulo, ter evangelizado muitos países a leste do Mediterrâneo? Em suas cartas,
Paulo não faz nenhuma menção de que conhecia algo mais da vida e da obra de Jesus além d
o fato de que ele morrera e retornara dentre os mortos. Será então que os Evangelhos
foram criados para reforçar sua versão do cristianismo ou para contradizê-la? Os auto
res dificilmente não teriam conhecimento do ministério de Paulo.
Os relatos dos Evangelhos, como vimos, foram escritos pelo menos quatro décadas após
a crucificação, e as coisas tinham se modificado desde então - entre outras coisas, p
orque a chegada do reino de Deus , conforme prometido por Jesus, não se havia materia
lizado. Até mesmo esse lapso de tempo, é claro, constitui enorme problema ao se aval
iar a autenticidade dos Evangelhos, pois não há como saber quais passagens foram bas
eadas em acontecimentos históricos reais, em boatos, em extrapolações de boatos ou em
completa e deliberada invenção. Muitas das palavras que hoje pensamos ter saído direta
mente da boca de Jesus podem não ter sido registradas de modo literal, ou mesmo não
terem sido ditas nunca, por ninguém. Algumas delas podem ter sido lembradas incorr
etamente mesmo por seus seguidores (embora os povos de tradição oral, como os judeus
, possivelmente mantivessem as narrações muito mais puras , e por um período mais longo,
do que faríamos hoje), e as palavras de alguma outra pessoa podem ter sido atribuída
s a Jesus. Ironicamente, entretanto, uma das únicas maneiras de averiguar a autent
icidade de um dito é o princípio da dessemelhança": ou seja, verificar se ele contradiz
a mensagem dos Evangelhos de um modo gera1.Afinal, se contraria o espírito da mai
or parte do texto, então é improvável que o autor o tenha formulado."
Ao longo de grande parte destes últimos dois mil anos, os Evangelhos foram conside
rados como sendo de inspiração divina e contendo a mais absoluta verdade sobre Jesus
, seus ensinamentos e sua mensagem para a humanidade. Acredita-se que ele era o
Filho de Deus, enviado para redimir o Homem de seus pecados por um supremo ato d
e sacrifício e para estabelecer uma nova Igreja que suplantasse a religião do Antigo
Testamento - e, por conseqüência, a religião de todos os pagãos do mundo greco-romano.
Foi somente nos últimos duzentos anos que a Bíblia passou a ser objeto do mesmo tipo
de análise crítica que recebem outros documentos históricos, e que se buscou ajustar
os ensinamentos e a vida de Jesus ao contexto de sua época.
Seria de esperar que tal processo esclarecesse vários aspectos sobre o caráter e as
motivações de Jesus. Na verdade, tem acontecido o oposto. Embora essa abordagem tenh
a revelado que muitos pressupostos estavam errados - por exemplo, Jesus não foi ex
ecutado por iniciativa dos líderes religiosos judeus, mas em razão de acusações de intri
ga política pelos romanos -, de nada serviu para responder a algumas das questões ma
is fundamentais sobre ele. Podemos dizer o que Jesus não era, mas ainda é difícil afir
mar o que ele era."
O resultado disso é que, hoje em dia, o estudo do Novo Testamento está em crise. Não é p
ossível entrar em acordo sobre questões fundamentais como: Jesus afirmou ser o Messi
as? Afirmou ser o Filho de Deus? Declarou ser o Rei dos Judeus? E é completamente
impossível explicar o significado de muitas coisas que ele fez. Não se pode nem mesm
o propor uma explicação convincente para sua crucificação, porque não há nada que Jesus ten
a dito ou feito - nos moldes do que é relatado nos Evangelhos - que pudesse ter of
endido tanto os líderes religiosos judeus ou os regentes romanos a ponto de os lev
ar a querer seu sangue. Muitas de suas ações simbólicas, como quando derruba as mesas
dos banqueiros no templo, ou mesmo o evento crucial da instituição da eucaristia na Úl
tima Ceia, não têm qualquer relação com o judaísmo.
Mais surpreendente de tudo, entretanto, é o fato de que os estudiosos do Novo Test
amento têm grande dificuldade em explicar por que a religião deveria ter sido fundad
a em nome de Jesus em primeiro lugar. Se Jesus realmente era o tão esperado Messia
s do povo judeu, então ele fracassou nesse papel, pois foi humilhado, torturado e
morto. Contudo, seus seguidores não só continuaram a venerá-lo como também, levados pela
devoção a ele, apartaram-se dos outros judeus.
Um bom exemplo dessa confusão acadêmica pode ser vista nas obras de dois proeminente
s estudiosos do Novo Testamento, Hugh Schonfield e Geza Vermes. Os paralelos ent
re os dois professores são notáveis. Ambos eram judeus e desde cedo demonstraram gra
nde interesse pelas origens do cristianismo, devotando a maior parte de suas ilu
stres carreiras a esse assunto. Ambos perceberam que a maioria dos estudiosos do
cristianismo não conseguira enquadrar a busca pelo Jesus histórico no contexto mais
amplo da cultura judaica de sua época e lugar. Ambos esperavam encontrar as respo
stas através de uma comparação cuidadosa dos relatos evangélicos com o judaísmo dos tempos
de Jesus, e ambos, além de muitos trabalhos acadêmicos, publicaram livros extremame
nte bem-sucedidos nos quais apresentavam o resultado final do trabalho de suas v
idas - Schonfield com The Passover Plot (1965) e Vermes com Jesus the Jew (1973)
. As conclusões a que eles chegaram, entretanto, não poderiam ser mais diferentes.
Vermes apresenta Jesus como um Hasid, espécie de herdeiros dos profetas do Antigo
Testamento semelhantes a xamãs, conhecidos por sua independência em relação ao judaísmo in
stitucional e também por seus milagres.
Ele argumenta que não há nada no Novo Testamento que indique que Jesus alguma vez te
nha declarado ser o Messias, muito menos o Filho de Deus - esses títulos foram atr
ibuídos a ele posteriormente, por seus seguidores. Schonfield, por outro lado, vê Je
sus primordialmente como uma figura política que trabalhava pela independência da Pa
lestina do domínio romano e que, conscientemente, moldou suas ações para que correspon
dessem às do Messias esperado, chegando mesmo ao ponto de voluntariamente arquitet
ar sua própria morte na cruz.
Foi o The Passover Plot de Schonfield que revelou muitas outras razões ainda para
sermos cautelosos quanto a aceitar a verdade dos Evangelhos". Sua obra mostra que
por trás de Jesus e de seus seguidores conhecidos havia um outro grupo, secreto,
com uma agenda própria e interesse em manipular sua história. Embora o argumento de
Schonfield seja conhecido, vale a pena resumi-lo aqui.
Em todas as histórias dos Evangelhos, Jesus repetidamente depara com certas pessoa
s que não são nem seus discípulos mais próximos, nem parte da multidão de seus seguidores,
e que geralmente são bastante prósperas como José de Arimatéia, que aparece de repente,
vindo de lugar nenhum, para monopolizar os preparativos do sepultamento de Jesu
s. Os personagens centrais dessa organização eram o grupo de Betânia, que Schonfield c
hama de a "base de operação"" de Jesus.
Esse grupo parece ter se assegurado de que Jesus cumpriria o papel do esperado M
essias, especialmente na entrada em Jerusalém. O jumento no qual Jesus veio montad
o, cumprindo assim a profecia de Zacarias (9:9), foi algo pré-arranjado e executad
o com uma senha a fim de que o animal lhe fosse cedido no momento devido - embor
a os discípulos de Jesus nada soubessem sobre isso. Depois, a sala da Última Ceia es
tá pronta e à espera, embora fosse a época mais agitada do ano e Jerusalém estivesse tra
nsbordando de gente. Jesus diz a seus discípulos para irem até a cidade e procurar p
or um homem carregando um jarro de água (o que seria fácil identificar, pois apenas
mulheres realizavam essas tarefas servis); novamente, senhas deveriam ser trocad
as, e ele em seguida os levaria para o local da ceia."
Isso indica que os discípulos não tinham conhecimento de grande parte do que estava
acontecendo, e que Jesus executava algum tipo de plano pré-preparado, no qual os m
embros da família de Betânia eram os principais participantes. Esse é um outro exemplo
de que os Evangelhos não fornecem um quadro completo da história de Jesus.
A maioria das pessoas hoje tem consciência de que se atribuem motivações políticas a Jes
us. Sabe-se que entre os discípulos havia membros de diferentes facções, algumas delas
tão extremadas que poderíamos hoje chamá-las de terroristas. O segundo nome de Judas,
que usualmente é "Iscariotes", é hoje considerado pela maioria dos estudiosos como
sendo uma derivação de sicaril, o nome de um desses grupos. Simão, o Zelote, é outro exe
mplo da estreita proximidade de Jesus com homens violentos."
As obras de Schonfield e Vermes são relativamente bem conhecidas e fáceis de encontr
ar. A obra de um outro pesquisador da Bíblia, entretanto, embora merecedora de um
público bem maior, recebeu na verdade muito pouca atenção.
Uma descoberta bastante significativa foi realizada em 1958 pelo Dr. Morton Smit
h (subseqüentemente catedrático de História Antiga da Universidade de Colúmbia, Nova Yor
k) na biblioteca de Mar Saba, uma comunidade isolada e fechada da Igreja Ortodox
a Oriental, a cerca de dezoito quilômetros de Jerusalém. Smith fora até o mosteiro pel
a primeira vez durante a II Guerra Mundial quando, como estudante, viu-se em dif
iculdades financeiras na Palestina. Percebendo a importância potencial dos documen
tos que haviam sido reunidos naquela biblioteca durante séculos, voltou lá em 1958.
Sua descoberta mais significativa em Mar Saba foram alguns fragmentos de um "Eva
ngelho Secreto" que se dizia ter sido escrito por Marcos. O que ele realmente en
controu foi a cópia de uma carta do chefe da Igreja no século II, Clemente de Alexan
dria. A cópia, datada do início da segunda metade do século XVII, fora escrita nas págin
as finais de um livro de 1646 (uma prática comum quando documentos antigos começavam
a deteriorar). Porém, a partir da análise do estilo, que contém muitas das conhecidas
idiossincrasias de Clemente, os paleógrafos chegaram à conclusão de que o original ha
via sido escrito por ele. Também existem peculiaridades, nos trechos retirados do
"Evangelho Secreto" e citados na carta, que tornam bastante provável sua autentici
dade. (Por exemplo, descrevem Jesus ficando furioso. Dos Evangelhos canônicos apen
as o de Marcos atribui a Jesus emoções humanas comuns; os outros extirparam de seus
relatos esses elementos, e dificilmente os patriarcas da Igreja, como Clemente,
teriam inventado tal coisa.)
A carta de Clemente é uma resposta a alguém chamado Theodore, que aparentemente escr
evera a ele pedindo conselhos sobre como lidar com uma seita herética conhecida co
mo carpocratianos (em razão de seu fundador, Carpócrates).Tratava-se de um culto gnóst
ico cujas práticas incluíam ritos sexuais, que eram, previsivelmente, condenados por
Clemente e outros patriarcas da Igreja. As doutrinas da seita aparentemente bas
eavam-se em um outro Evangelho de Marcos. Em sua carta Clemente admitia que tal
Evangelho existia e era autêntico - embora acusasse os carpocratianos de fazerem i
nterpretações errôneas e falsificar algumas delas - e que continha ensinamentos esotéric
os de Jesus que não eram para ser revelados aos cristãos comuns. Esse "Evangelho Sec
reto de Marcos" era muito semelhante à bem conhecida versão canônica, exceto que conti
nha ao menos duas passagens que desta haviam sido deliberadamente extirpadas par
a que fossem mantidas longe dos olhos dos "não iniciados".
A descoberta é significativa por três razões. Primeiro, pelo discernimento que nos ofe
rece sobre os anos de formação da Igreja cristã e sobre os métodos utilizados pelos patr
iarcas da Igreja para estabelecer o cânon do dogma cristão. Isso demonstra que os te
xtos estavam sendo editados e censurados, e que mesmo as obras reconhecidas como
sendo de mesmo valor que os Evangelhos canônicos estavam sendo ocultadas aos devo
tos comuns. Mais ainda, revela que mesmo uma augusta figura como Clemente estava
disposto a mentir a fim de evitar que tal material se tornasse mais conhecido:
embora admita a Theodore que o Evangelho Secreto de Marcos realmente exista, aco
nselha-o a negar tal existência a qualquer outra pessoa.
O segundo aspecto significativo é que a descoberta confirma que os Evangelhos canôni
cos, e os outros livros do Novo Testamento não fornecem um quadro completo dos ens
inamentos e das motivações de Jesus, e que (como é sugerido por alguns relatos das pal
avras de Jesus nos Evangelhos canônicos) havia pelo menos dois níveis de ensinamento
s. Um era exotérico, para os seguidores comuns, e o outro era esotérico, para os dis
cípulos especiais - ou o verdadeiro círculo interno de iniciados.
O terceiro ponto significativo sobre a descoberta do Evangelho Secreto de Marcos
, e que é de especial relevância para a nossa pesquisa, é a natureza das duas passagen
s que Clemente cita em sua carta.
A primeira é um relato sobre a ressurreição de Lázaro, embora nessa versão seu nome não sej
citado, sendo descrito simplesmente como o "jovem" de Betânia. O relato é muito sem
elhante àquele que se encontra no Evangelho de João, exceto que nessa versão há uma cont
inuação: seis dias depois o jovem veio a Jesus "usando uma veste de linho sobre o co
rpo nu" e ficou com ele por uma noite, durante a qual lhe foi "ensinado... o mis
tério do reino de Deus"." Mais do que uma miraculosa ressurreição, portanto, o despert
ar de Lázaro parece ter sido parte de uma espécie de rito de iniciação no qual o iniciad
o passa por uma morte simbólica e renasce antes de serem ministrados os ensinament
os secretos.Tal ritual é uma parte comum dos mistérios religiosos que eram amplament
e praticados no mundo greco-romano - mas isso incluiria também, como podem deduzir
alguns leitores, uma iniciação homossexual?
Morton Smith especula que isso pode ter sido possível, a julgar pela alusão específica
a uma única peça de roupa cobrindo a nudez do jovem e o fato de ele passar uma noit
e a sós com seu professor, Jesus. Em nossa opinião, entretanto, essa é uma interpretação p
or demais moderna, e muito superficial, pois as escolas de mistério comumente envo
lviam tanto a nudez quanto longas horas de reclusão com o Iniciador, sem que isso
necessariamente incluísse alguma atividade sexual.
O fato de que o relato seja sobre o despertar de Lázaro também é importante. Como já vim
os, esse é um dos episódios no Evangelho de João que não aparece em nenhum dos outros, e
é citado pelos críticos como prova de que o Evangelho não é autêntico. O fato de que o ac
ontecimento tenha sido citado em pelo menos um dos outros Evangelhos, embora dep
ois deliberadamente removido, dá apoio à autenticidade do Evangelho de João e explica
por que eventos tão importantes foram censurados, pois dão pistas de um ensinamento
secreto que estava reservado para o círculo íntimo de Jesus.
A outra passagem menor, citada por Clemente, também é interessante porque preenche u
ma notória lacuna histórica que já havia sido apontada pelos estudiosos. No Evangelho
canônico de Marcos (11:46) há essa curiosa declaração: "E chegaram (Jesus e seus discípulo
s) a Jericó. E, ao sair de Jericó, ele e os seus discípulos e uma grande multidão, o ceg
o Bartimeu, o filho de Timeu, estava sentado junto ao caminho pedindo esmola." C
omo não há nenhum sentido em contar que Jesus chegou a Jericó e imediatamente saiu, é óbvi
o que está faltando algo no relato. A carta de Clemente confirma isso ao fornecer
a passagem censurada:
E a irmã do jovem que Jesus amava e a mãe dele e Salomé estavam lá, e Jesus não os recebeu
.
Esse verso que foi omitido parece bastante inócuo, e não atraiu o mesmo interesse da
passagem de "Lázaro", mas é, na verdade, consideravelmente mais significativo do qu
e parece à primeira vista. O "jovem que Jesus amava" é Lázaro, e é com esta frase que João
se refere a ele no seu Evangelho. (E como a frase também é usada para designar o di
scípulo em cujo testemunho o Evangelho se baseia, ou seja, "João", há no mínimo uma boa
razão para supor que o "Discípulo Amado" e Lázaro são a mesma pessoa.) As irmãs de Lázaro s
Maria e Marta de Betânia, e se é aceito que essa Maria seja a própria Maria Madalena,
então ela seria uma das três mulheres que Jesus evitou em Jericó.
Em virtude de sua brevidade, essa passagem não contém as implicações teológicas do longo r
elato sobre Lázaro acima citado. O que é significativo, contudo, é que, por alguma razão
, essa frase aparentemente inofensiva teve que ser suprimida muito cedo. Que razão
teria tido a Igreja para negar a seus seguidores o conhecimento de que teria ha
vido algum tipo de situação envolvendo Jesus e a irmã de Lázaro, possivelmente Maria Mad
alena, sua mãe e a mulher chamada Salomé?
Os estudiosos reagiram à descoberta de Smith ignorando as implicações e declarando-a m
uito pouco substancial para ser analisada de maneira apropriada. Em nossa opinião,
contudo, essa passagem suscita algumas questões interessantes.
Clemente acreditava que Marcos escrevera o "Evangelho Secreto" quando vivia no E
gito, na cidade de Alexandria. Tendo em mente que o "mito da fundação" do Monastério d
e Sion e do Ritual de Mênfis vincula o sacerdote egípcio Ormuz com São Marcos, poderia
ser essa uma referência velada relativa a essa tradição secreta?
O achado do Evangelho Secreto de Marcos confirma que os livros do Novo Testament
o, conforme os conhecemos hoje, não são relatos fiéis e desapaixonados sobre Jesus e s
eu ministério.Até certo ponto, são obras para propaganda. Poderia parecer impossível ter
alguma esperança de reconstruir um quadro preciso daqueles primeiros dias do cris
tianismo por meio de suas páginas. A situação, porém, não é totalmente sem esperança. A pro
anda pode ser usada para extrair conclusões razoáveis desde que seja reconhecida por
aquilo que realmente é. Pode ser utilizada para revelar aquilo que tenciona escon
der, se for analisada cuidadosamente. Por exemplo, as passagens suspeitas são aque
las em que o obscurecimento é óbvio ou os nomes são omitidos sem uma razão aparente.
No entanto, é encorajador saber que grande parte do material "proibido", que foi r
etirado dos textos originais do Novo Testamento ou que apareceu nos outros Evang
elhos suprimidos do Novo Testamento pelo Concílio de Nicéia, foram mantidos em segre
do pelos "heréticos", cuja heresia em muitos casos era devida ao simples fato de c
onhecerem a verdade sobre as passagens censuradas. O que poderia conter esse mat
erial editado que fosse tão potencialmente danoso para a Igreja, a ponto de fazê-la
perseguir implacavelmente, capturar e mandar para a fogueira aqueles que o conhe
ciam?
Partindo das pistas obtidas com nossas investigações entre os movimentos secretos eu
ropeus, começamos a reavaliar a história de Jesus e de seus ensinamentos. Por anos t
emos lutado com a enorme massa de informações diversificadas que coletamos das mais
variadas fontes, desde textos teológicos padrão até entrevistas com os próprios 'hereges
', desde páginas do Novo Testamento e dos textos gnósticos e apócrifos às obras dos alqu
imistas e hermetistas. Um padrão finalmente começou a surgir, e foi tão surpreendente,
tão diferente da versão dos acontecimentos conforme ensinada nas igrejas, que à prime
ira vista duvidamos de nossas próprias conclusões.
E se muitos dos chamados 'hereges', com seus conhecimentos secretos da verdadeir
a história de Jesus, fossem realmente os verdadeiros cristãos? O que uma análise verda
deiramente imparcial da história pode nos dizer sobre aqueles eventos momentosos d
a Palestina do primeiro século? Era chegada a hora de deixar cair as vendas do pre
conceito e ver para além do mito.
CAPÍTULO XII
A Mulher que Jesus Beijava
A mulher conhecida como Maria Madalena tem uma enorme e evidente importância para
os antigos movimentos secretos "herético da Europa - ainda que, à primeira vista, iss
o cause certa perplexidade. Suas ligações com o culto da Madona Negra, com os trovad
ores medievais e com as catedrais góticas, com o mistério que ronda o abade Sauniere
de Rennes-le-Château, e com o Monastério de Sion, indicam haver algo sobre ela que
sempre foi considerado perigoso pela Igreja.
Como já vimos, muitas lendas nasceram ao redor dessa enigmática e poderosa mulher. M
as quem era ela, e qual seu segredo?
Existem, como já vimos, poucas referências explícitas a "Maria Madalena. nos Evangelho
s do Novo Testamento. No entanto, fica claro, pela forma como ela é mencionada, qu
e Madalena era, entre as mulheres, a discípula mais importante de Jesus. Na verdad
e, todas as mulheres que seguiam Jesus são ainda quase que totalmente ignoradas pe
la Igreja. As menções a elas geralmente subentendem que a palavra "discípulo tem mais p
eso quando aplicada aos homens. De fato, o papel das discípulas foi deploravelment
e minimizado pelos comentadores que vieram muito depois dos autores dos Evangelh
os. Pois embora os judeus do primeiro século pudessem ter problemas sociológicos e r
eligiosos com relação ao conceito da importância da mulher, em razão simplesmente de sua
cultura, críticos de época mais recente não têm tal desculpa. No entanto, o debate sobr
e mulheres sacerdotes na igreja anglicana, para citar apenas um exemplo, mostra
que pouco mudou em dois mil anos. Para aqueles que freqüentam a igreja, em qualque
r lugar, "os discípulos são automaticamente e exclusivamente proeminentes personagens
masculinos, como Pedro, Tiago, Lucas e assim por diante, e não "Maria Madalena, J
oana, Salomé... , apesar do fato de que essas mulheres são listadas até mesmo pelos auto
res dos Evangelhos.
Durante as infindáveis discussões sobre as mulheres sacerdotes (mesmo as mulheres di
retamente envolvidas tinham escrúpulos suficientes para não utilizar o termo "pagão sac
erdotisa), distorções inacreditáveis dos seguidores de Jesus foram apresentadas como pr
ovas" de que as mulheres não deveriam fazer parte do clero. Por exemplo, diz-se qu
e Jesus escolheu seus discípulos apenas entre os homens, embora, como já vimos, haja
mulheres que são nominalmente citadas como parte do seu séquito, ainda que a tradição j
udaica da época tivesse permitido aos autores dos Evangelhos a opção de ignorá-las total
mente, se assim fosse possível. O fato de terem sido citadas indica que tiveram um
papel significativo e inegável no ministério papel que, com certeza, perdurou nas g
erações cristãs seguintes. Pois como demonstraram conclusivamente Giorgio Otranto, pro
fessor italiano de história da Igreja, e outros estudiosos, por muitas centenas de
anos as mulheres não só foram membros da congregação como realmente foram sacerdotes e
mesmo bispos.
Como afirma Karen Jo Torjesen, especialista em estudos sobre as mulheres dos pri
mórdios do cristianismo, em seu livro When Women Were Priests (1993):
Sob um alto arco da basílica de Roma, dedicado a duas santas mulheres, Prudentia
na e Praxedis, está um mosaico retratando quatro figuras femininas: as duas santas
, Maria, e uma quarta mulher cujos cabelos estão encobertos e cuja cabeça está encimad
a por um halo quadrado - uma técnica artística que indicava que a pessoa ainda estav
a viva à época da realização da obra. As quatro faces, sobre um fundo dourado reluzente,
lançam olhares serenos. As faces de Maria e das duas santas são facilmente reconhecív
eis A identidade da quarta, porém, é menos evidente. Uma inscrição cuidadosamente gravad
a identifica o rosto da esquerda como sendo de Theodora Episcopa, o que signific
a Bispa Theodora. A forma masculina para bispo em latim é episcopus; a forma femin
ina é episcopa. A evidência visual do mosaico e a evidência gramatical da inscrição indica
m, sem margem para enganos, que a Bispa Theodora era uma mulher. O a de Theodora
, porém, foi parcialmente apagado por raspagens feitas sobre a cerâmica do mosaico,
levando à atordoante conclusão de que houve tentativas de eliminar a terminação feminina
do nome, talvez já na Antigüidade.
Sacerdotes homens talvez tenham se enrodilhado em nós lógicos na tentativa de explic
ar essas representações de mulheres sacerdotes - alguns até tentaram descrever Theodor
a como a mãe de um bispo -, mas os fatos falam por si mesmos.As mulheres não eram ap
enas úteis para as tarefas equivalentes, no primeiro século, a preparar o café e fazer
sanduíches; elas oficiavam a eucaristia e lideravam a congregação nos cultos. Não há indi
cações, naqueles primeiros dias, de que uma mulher sacerdote menstruada poderia de a
lgum modo corromper o simbolismo do vinho e do pão, como acontece em tempos recent
es.
Foi somente em novembro de 1992 que a Igreja da Inglaterra finalmente votou a es
pinhosa questão das mulheres sacerdotes e, por uma margem de apenas dois votos, de
cidiu permitir que elas fossem ordenadas. Embora não seja nossa intenção estender-nos
sobre a controvérsia das mulheres sacerdotes, queremos expressar nossa simpatia pa
ra com as muitas mulheres que têm lutado contra tudo e contra todos para explicar
a seus superiores" homens que tudo o que estão pedindo é o retorno ao que ocorria nos
primórdios da era cristã, e não um tipo de reinterpretação radical do século XX. Ao reclam
rem permissão para serem ordenadas, essas mulheres pediam apenas que lhes fossem d
evolvidos os direitos que já tinham tido séculos atrás. (Surpreendentemente, o status
real das mulheres no início da Igreja parece ter sido conhecido no século XVI: um tr
atado de Agripa sobre a superioridade das mulheres, discutido no capítulo 7, inclu
i as palavras "[nós não] ignoramos que muitas de nossas santas abadessas e freiras e
ram na Antigüidade, sem escárnio, chamadas de sacerdotes.)
Havia, entretanto, razões muito boas para as mulheres serem tão proeminentes no cult
o de Jesus, o que, infelizmente, tornou inevitável que certos tipos de homens proc
urassem suprimi-las e denegri-las. Embora tratemos dessa questão mais à frente, adia
ntaremos por agora que não há dúvida de que as mulheres desempenhavam as funções típicas de
um sacerdote, nos primeiros anos da Igreja cristã, funções que eram pelo menos iguais às
dos homens.
Uma das maiores defesas em favor do pressuposto de que somente os homens eram sa
cerdotes é a de que as mulheres citadas nas Epístolas e nos Atos apenas ofereciam ho
spitalidade aos apóstolos homens, enquanto estes seguiam pregando e batizando. Mul
heres como Luculla e Filipa são reconhecidas por seu patronato, e é claro que muitas
dessas mulheres eram ricas e talvez surpreendentemente independentes para sua épo
ca e cultura. Embora desafiemos a visão de que essa era sua única função, fica claro, a
partir do modo como Maria Madalena é descrita, que ela foi uma das primeiras mulhe
res patronas.
Ela e outras mulheres "assistiam-lhes (Jesus e seus discípulos homens] com suas po
sses", indicando que elas os apoiavam financeiramente. Em todos os lugares as mu
lheres são descritas como seguidoras dele", e as palavras originais realmente suger
iam total participação nas atividades e práticas do grupo.
Como já vimos, Maria Madalena é a única mulher nos Evangelhos não identificada por sua r
elação com um homem - como irmã, mãe, filha ou esposa. Simplesmente é mencionada por seu n
ome. Embora isso possa indicar que os cronistas da época ignoravam sua identidade,
é mais provável que ela fosse tão conhecida que seria inconcebível que algum cristão não s
ubesse imediatamente de quem se tratava.
Embora, porém, suas relações com os outros sejam discutíveis, uma coisa claramente se de
preende dos relatos dos Evangelhos: Maria Madalena era uma mulher independente.
E, como assinala Susan Haskins, isso encerra a evidente sugestão de que ela "tinha
algumas posses".
É significativo que muito poucos personagens dos Evangelhos sejam denominados como
Maria (a) Madalena, e desses os dois que nos saltam à vista são Jesus (o) Nazareno
e João (o) Batista (ou Batizador, que está se tornando o epíteto preferido).
Qual o significado do nome dela? "Madalena" parece significar "de Magdala" - seg
undo se diz, uma referência à cidade pesqueira de el Mejdel, na Galiléia. Não existe, po
rém, nenhuma prova de que seja isso, ou de que a cidade fosse conhecida como Magda
la na época de Jesus. (De fato, el Mejdel era chamada de Tarichea por Josefo.) Hav
ia, entretanto, uma cidade de Magdolum no nordeste do Egito, próxima da fronteira
com a Judéia - provavelmente a Migdol mencionada em Ezequiel.
O significado de Magdala, por si só, abre-se a muitas interpretações possíveis, como "o
local da pomba", "o local da torre" e "a torre-templo"."
Pode ser até mesmo que o nome de Maria seja tanto uma referência a um lugar como a u
m título, pois no Antigo Testamento há uma espantosa profecia (Miquéias 4:8):
E tu, torre do rebanho, fortaleza da filha de Sião, sobre ti cairá o primeiro pode
r; o reino da filha de Jerusalém virá.
Pois, como cita Margaret Starbird em seu estudo sobre o culto a Madalena, de 199
3, The Woman with the Alabaster Jar, as palavras traduzidas como "torre do reban
ho" são Magdal-eder, e acrescenta:
Em hebreu, o epíteto Magdala significa literalmente "torre" ou "elevado, grande,
magnificente".
Seria a associação de Madalena com a torre e, mais significativamente, com a restaur
ação de Sion, conhecida enquanto ela estava viva? É também muito interessante que Magdal
-eder signifique "torre do rebanho", o que sugere uma torre de vigia ou guardiã do
s pequenos seres - talvez até mesmo o "Bom Pastor" .
Maria Madalena já causou comoção em nossa época, quando se afirmou em The Holy Blood and
the Holy Grail que ela fora mulher de Jesus. Embora essa sugestão não fosse de fato
inédita, foi a primeira vez que a maioria das pessoas ouviu falar nisso, e, como
era de esperar, a afirmação causou enorme alvoroço. A culpa associada com o sexo está tão
profundamente arraigada em nossa cultura que qualquer indicação de que Jesus tenha t
ido uma parceira sexual - mesmo no contexto de um casamento monogâmico e amoroso -
é vista por muitos como algo sacrílego e abominável. A idéia de um Jesus casado continu
a a ser considerada, de modo geral, muito improvável, na melhor das hipóteses, e obr
a do demônio, na pior. Contudo, existem razões suficientes para acreditar que Jesus
realmente tinha uma relação íntima - e muito provavelmente com Maria Madalena.
Muitos comentadores observam que é muito estranho o silêncio total por parte do Novo
Testamento sobre o estado civil de Jesus. Os cronistas daquela época e lugar cost
umavam descrever as pessoas em termos daquilo que as diferenciava das outras, e
um homem com mais de trinta anos que ainda não fosse casado com certeza seria cons
iderado algo muito peculiar. É preciso lembrar que nos baseamos na imagem de Jesus
que nos foi pintada pelos autores dos Evangelhos e suas fontes, e que a perspec
tiva destes era essencialmente judaica. Os judeus consideravam o celibato como i
mpróprio, pois sugeria uma relutância em procriar uma nova geração do povo escolhido pel
o Senhor, e era alvo de reprovação por parte dos anciãos da sinagoga. Alguns rabinos d
o século II, de acordo com Geza Vermes, "comparam a abstenção deliberada em procriar c
om assassinato". As genealogias contidas na Bíblia, com freqüência sem qualquer base,
provam que os judeus eram uma raça orgulhosamente dinástica, e, na verdade, eles ain
da prezam fortemente os laços familiares. O casamento sempre foi fundamental para
o modo de vida dos judeus, ainda mais quando a nação estava sob ameaça, como no período
em que esteve sob o jugo romano. Um pregador carismático e famoso que não fosse mari
do e pai seria motivo de escândalo, e somente por milagre seu grupo duraria muito
tempo, ainda mais depois da morte de seu fundador. .
De acordo com o Novo Testamento, Jesus e seus seguidores tinham muitos inimigos.
No entanto, não existem acusações, pelo menos que tenham chegado até nós, de que fossem h
omossexuais - como certamente haveria se tivessem sido um grupo de homens celiba
tários. Se tal escândalo tivesse ocorrido, com certeza teria chegado até Roma e saberíam
os disso hoje. Insultos desse tipo não são propriedade exclusiva dos tablóides moderno
s; Pilatos e sua corte eram romanos sofisticados e cosmopolitas, e os judeus rec
onheciam a existência do homossexualismo, ainda que apenas como algo que condenava
m. Se Jesus e seus discípulos fossem celibatários e pregassem o celibato, isso por s
i só teria causado grande tumulto entre as autoridades.
Os eruditos costumam evitar a questão do celibato, aceitando como fato a postura t
radicional da Igreja de que Jesus não era casado. Quando o assunto é discutido, porém,
as dificuldades em provar seu estado civil emergem de modo muito claro. Por exe
mplo, como já vimos, Geza Vermes, em sua tentativa de definir o Jesus histórico, che
gou à conclusão de que ele se encaixa melhor na figura de um Hasidim, os herdeiros d
os profetas do Antigo Testamento. Vermes tentou relacionar - algumas vezes com s
ucesso, outras nem tanto - as ações e os ensinamentos de Jesus segundo esse papel, c
omparando-os com os de um conhecido Hasidim daquela época e lugar. Entretanto, qua
ndo chega à questão do celibato de Jesus (que ele aceita), vê-se metido em dificuldade
s. Termina por admitir que a maioria dos indivíduos Hasidim que serviram de compar
ação eram casados e tinham filhos. Na verdade, ele apenas consegue trazer à baila uma
outra figura daquela cultura que glorificava o celibato, Pinhas ben Yair, que vi
veu um século depois de Jesus e nem sequer era realmente um Hasid! E isso, por mai
s incrível que possa parecer, foi suficiente para Vermes concluir que Jesus tinha
um estilo de vida semelhante. Mas há outros que não se convencem tão facilmente. De fa
to, o celibato de Pinhas era tão incomum que por si só lhe angariou notoriedade. Não há
qualquer indicação de que o estilo de vida ou a mensagem de Jesus enfatizasse ou pro
movesse o celibato: se assim fosse, com certeza saberíamos.
É verdade que havia algumas seitas judaicas, como a dos essênios, que eram celibatária
s, embora, mais uma vez, saibamos disso porque tal fato era incomum o bastante p
ara merecer um comentário específico. Alguns utilizaram isso em favor do argumento d
e que Jesus era essênio. Entretanto, a seita não é mencionada uma única vez sequer em to
do o Novo Testamento, o que dificilmente seria o caso se Jesus fosse seu membro
mais famoso.
A hipótese de que Jesus fosse casado já foi citada muitas vezes por comentadores mod
ernos, mas o silêncio dos Evangelhos sobre o assunto pode gerar uma outra interpre
tação. Pode ser que ele tivesse uma parceira sexual que não fosse sua esposa, ou com a
qual vivesse uma forma de casamento que não era reconhecida pelos judeus.
(Devemos lembrar que a tradição herética enfatiza que Jesus e Madalena eram parceiros
sexuais, não marido e mulher. Como vimos, os Evangelhos Gnósticos, os cátaros e outros
pertencentes à rede secreta, quando não se referem a ela especificamente como "conc
ubina" ou "consorte" de Jesus, são cuidadosos ao utilizar tais termos ambíguos para
referir-se à "união" deles.)
Como prova positiva do estado civil de Jesus, argumenta-se que as bodas em Canã, q
uando Jesus transformou água em vinho, foram de fato as suas próprias. No relato, su
a condição parece ser a de recém-casado. É esperado, por razões de outro modo inexplicáveis
que ele forneça o vinho para a festa de casamento. Novamente, é interessante que es
se acontecimento importante, no qual Jesus realiza seu primeiro milagre público, a
pareça apenas no Evangelho de João e não seja mencionado nos outros três. Pode haver, en
tretanto, uma outra interpretação para esse acontecimento, que será discutida mais à fre
nte.
Para contrabalançar esses argumentos há as seguintes questões: se Jesus era casado, en
tão por que não há menção específica a sua mulher ou família nos Evangelhos? Se foi casado,
em era sua esposa? Por que seus seguidores desejariam apagar qualquer vestígio rel
acionado a ela? Talvez eles a evitassem porque seu relacionamento com Jesus os o
fendesse e poderia criar embaraços para suas missões. Se eles não eram casados, mas ti
nham um íntimo relacionamento sexual e espiritual, então os discípulos homens teriam p
referido esquecê-lo.
Essa é precisamente a situação descrita de modo tão vívido nos Evangelhos Gnósticos, nos qu
is a identidade da parceira de Jesus é esclarecida. Maria Madalena era a parceira
sexual de Jesus, e os discípulos homens ressentiam-se da influência dela sobre seu líd
er.
Quanto ao motivo para se encobrir o relacionamento de Jesus com Madalena, o que
hoje pode parecer óbvio não se encaixa no contexto do primeiro século. Podemos pensar
que a razão para ocultá-lo foi que a Igreja cristã sempre atribuiu à mulher, aparentemen
te, uma posição de subordinação e considerou a procriação como um mal necessário. No entant
tudo indica que essa atitude contrária ao casamento é o resultado, não a causa, desse
ocultamento. De fato, a Igreja nos seus primórdios, antes de ter se tornado uma in
stituição e estabelecido uma hierarquia, não tinha qualquer preconceito contra as mulh
eres, como já pudemos ver.
Que houve um ocultamento deliberado do relacionamento de Jesus e Madalena é eviden
te, mas a misoginia não serve de explicação. Um outro fator deve ter inspirado essa ca
mpanha contra Madalena. Provavelmente isso está vinculado, de algum modo, com seu
caráter ou identidade, e/ou com a natureza de sua relação com Jesus. Em outras palavra
s, o problema não era o fato de que Jesus fosse casado, mas sim com quem ele se ca
sara.
Várias vezes, no decurso de nossa investigação, deparamos com indícios de que Madalena e
ra de algum modo considerada indecente. Agora temos que descobrir o que teria cr
iado essa aura de perigo, que fatores outros, além da mera misoginia, estariam por
trás do curioso e antigo temor a essa influente amiga de Jesus.

A verdadeira identidade de Maria Madalena, de Maria de Betânia (irmã de Lázaro) e da "


pecadora sem nome" que ungiu Jesus no Evangelho de Lucas, sempre foi motivo de i
ntensos debates. A Igreja Católica decidiu logo no início de sua existência que essas
três personagens eram uma só, embora tenha mudado de opinião em 1969. A Igreja Ortodox
a do Oriente sempre tratou Maria Madalena e Maria de Betânia como figuras distinta
s.
Com certeza, discrepâncias e contradições obscurecem a questão, mas tal confusão é signific
tiva por si só, já que os Evangelhos, como alguém que se sente culpado, tendem a se to
rnar obviamente evasivos quando tentam encobrir algo. O fato de que tais evasiva
s rodeiem todas as descrições relativas à Betânia, à família que vivia lá - Lázaro, Maria e
a - e aos acontecimentos que lá tiveram lugar, torna tudo ainda mais sugestivo.
Como vimos, as descobertas de Morton Smith provam que a ausência do episódio da ress
urreição de Lázaro no Evangelho de Marcos foi um ato deliberado de censura. Contudo, e
m sua única versão canônica sobrevivente, no Evangelho de João, esse é um dos aconteciment
os mais importantes de todo o relato. Por que então os primeiros cristãos, que se de
ram ao trabalho de removê-lo de pelo menos um dos Evangelhos, sentiam-se tão desconf
ortáveis com ele? Seria, mais uma vez, porque a história incluía Marta? Ou era o lugar
, Betânia, também um tanto corrupto?
O Evangelho de Lucas (10:38) descreve um episódio no qual Jesus visita a casa das
duas irmãs Maria e Marta, mas não há qualquer menção a um irmão, nem o local é claramente d
minado - o que é significativo. É simplesmente chamado de "uma certa aldeia" de modo
tão indiferente que chega a levantar suspeitas.Afinal, o nome do local não era tota
lmente desconhecido para os outros cronistas. Lázaro, também, é deliberadamente omitid
o em Lucas. O que havia com respeito àquele lugar e à família que lá vivia? (Talvez haja
uma pista no fato de João Batista ter começado seu ministério em um lugar chamado Betân
ia.)
É também o Evangelho de Lucas (7:36-50) que apresenta o relato mais obscuro sobre a
unção dos pés de Jesus. Ele é o único entre os autores dos Evangelhos a situar os aconteci
mentos em Cafarnaum, no início do ministério de Jesus, e não nomeia a mulher que apare
ntemente interrompera a refeição de Jesus para ungir-lhe a cabeça e os pés com o precios
o óleo de nardo, secando-o depois com o próprio cabelo.
O Evangelho de João (12:1-8), entretanto, é explícito nessa questão. A unção se dá na casa
Lázaro, Maria e Marta, na Betânia, e é Maria quem o unge. O relato de João (11:2) sobre
a ressurreição de Lázaro também enfatiza que a última das irmãs, Maria, é quem mais tarde u
u Jesus.
Nem Marcos (14:3-9) nem Mateus (26:6-13) denominam a mulher em questão, mas concor
dam que isso aconteceu em Betânia, dois dias (não os seis de João) antes da Última Ceia.
Mesmo assim, de acordo com eles a unção se deu na casa de um certo Simão, o Leproso.
Parece que tudo o que estava relacionado a Betânia e àquela família causava grande inq
uietação entre os cronistas sinópticos, a ponto de "camuflarem" o assunto, embora tenh
am sido obrigados a incluir a passagem. A história de Betânia os incomodava, talvez
pela mesma razão que levou outros a torná-la de grande importância para o mundo herético
.
Betânia também é significativa porque foi de lá que Jesus partiu para sua jornada fatal
em direção a Jerusalém - para a Última Ceia e subseqüente prisão e crucificação. E embora o
cípulos parecessem nada saber sobre a tragédia que se avizinhava, existem indícios de
que a família de Betânia não estava de todo despreparada, e, como vimos, talvez até tenh
am feito alguns arranjos, como fornecer o jumento que Jesus montava quando entro
u na capital.
Maria de Betânia e a mulher sem nome que ungiu Jesus eram obviamente a mesma pesso
a, mas seria ela Maria Madalena? Muitos estudiosos contemporâneos acreditam que Ma
ria Madalena e Maria de Betânia eram duas mulheres distintas. A questão, porém, perman
ece: por que, afinal de contas, os autores dos Evangelhos iriam querer "camuflar
" o assunto?
Alguns eruditos certamente defendem a opinião de que Madalena e Maria de Betânia era
m a mesma pessoa.William E. Phipps, por exemplo, acha estranho que Maria de Betâni
a - que com certeza era amiga íntima de Jesus não tenha sido citada especificamente
como estando presente no momento da crucificação, e que Maria Madalena de repente ap
areça aos pés da cruz sem nunca antes ter sido mencionada." Phipps também observa ser
possível que dois epítetos distintos, "de Betânia" e "de Magdala", sejam aplicados a u
ma mesma pessoa, dependendo do contexto. Isso se tornaria ainda mais provável se o
s autores estivessem deliberadamente tentando obscurecer a questão.
Entretanto, os eruditos, de modo geral, não chegam nem mesmo a considerar a possib
ilidade de que os censores dos autores dos Evangelhos deliberadamente deturparam
certos aspectos da história que escolheram contar. (Alguns, principalmente Hugh S
chonfield, admitem existir algo sobre o grupo de Betânia que os autores dos Evange
lhos propositadamente nos negaram, ou algo sobre o assunto que os autores simple
smente não entendiam ou não sabiam.) Uma vez admitida essa "camuflagem", passa a ser
possível que Maria de Betânia e Maria Madalena fossem a mesma pessoa.
Esta investigação começou com o exame da tradição secreta, exemplificada por Leonardo da V
inci e sua suposta irmandade, o Monastério de Sion. Como vimos, a primeira vez que
os leitores de língua inglesa ouviram falar sobre o Monastério foi no The Holy Bloo
d and The Holy Grail, e esse livro inequivocamente argumenta que Maria Madalena
e Maria de Betânia eram a mesma pessoa. É significativo que a versão revisada de 1996
apresente um material novo, incluindo o "documento Montgomery" que, como vimos,
parece reforçar as bases em que se firma o livro. Especificamente, nesse contexto,
o documento declara que Jesus era casado com "Miriam de Betânia", que foi para a
França e teve uma filha. Supõe-se claramente que se tratava de Maria Madalena, embor
a o ponto importante aqui seja que os defensores do Monastério acreditam que isso é
verdade. E deve-se lembrar que todos os relatos tradicionais da ida de Maria Mad
alena para a França - como o The Golden Legend - partem do pressuposto de que ela
e Maria de Betânia são a mesma pessoa. Existe, porém, alguma evidência que apóie essa afir
mação?
Há uma pista em Lucas, que, após descrever a unção de Jesus pela "pecadora sem nome", im
ediatamente apresenta Madalena pela primeira vez (8:1-3). Parece que, ao menos i
nconscientemente, para Lucas a associação era por demais forte para ser ignorada.
Significativamente, o próprio Jesus vincula não só o ato da unção como também a pessoa que
unge ao seu sepultamento que se avizinha, como, por exemplo, em Marcos (14:8):
"Ela fez o que podia: embalsamou com antecipação o meu corpo para a sepultura." É uma
ligação implícita entre a mulher de Betânia e Maria Madalena, pois é esta última que vai à
ba para ungir O corpo de Jesus para o enterro alguns dias depois. Tanto a unção de J
esus vivo como a futura unção de seu defunto são atos rituais de grande significado, q
ue no mínimo vinculam as duas mulheres. Em todo caso, é de extrema importância que a p
essoa que unge Jesus - preparando-o para enfrentar seu verdadeiro destino - seja
uma mulher.
Embora não seja impossível que elas fossem a mesma, é melhor manter a mente aberta com
respeito a essa questão, enquanto pesquisamos mais profundamente o relato bíblico s
obre o papel e as ações de Madalena e Maria de Betânia.
Significativamente, a idéia persistente de que Maria Madalena era uma prostituta v
em da associação (ou confusão) tradicional de sua figura com Maria de Betânia, que é descr
ita como "uma pecadora". É claro, se Maria de Betânia era uma prostituta e também a me
sma pessoa que Maria Madalena, então isso contribuiria muito para explicar a extre
ma cautela dos autores dos Evangelhos - e a deliberada obscuridade - em relação à última
. Precisamos examinar o caráter de Maria de Betânia para ver que luz pode ser lançada
sobre o assunto.
Nos Evangelhos Sinópticos a mulher que unge Jesus não é denominada, embora seja assina
lado que ela é uma pecadora; no Evangelho de João, porém, ela é explicitamente identific
ada como Maria de Betânia e sua condição moral não é mencionada. Isso por si só parece um t
nto suspeito.
Em Lucas, a mulher que unge Jesus é descrita como "uma mulher que era pecadora na
cidade", embora o original grego para "pecadora" harmartolos, que significa alguém
que violou a lei e se tomou um transgressor - não necessariamente implique prosti
tuição nesse contexto. A outra referência a ela associada, de usar os cabelos soltos -
coisa que as mulheres de respeito não faziam -, sugere algum tipo de pecado sexua
l, pelo menos aos olhos dos autores dos Evangelhos."
No contexto da cultura judaica da época, havia algo desabonador em Maria de Betânia,
o que não significa necessariamente que ela era uma prostituta comum exercendo se
u oficio nas ruas. (O óleo de nardo, que vem de uma rara e apreciada planta da índia
, era tão proibitivamente caro que estaria totalmente fora dos recursos de uma pro
stituta de rua. Segundo William E. Phipps, o óleo de nardo custaria a ela o equiva
lente ao salário obtido em um ano de trabalho na agricultura.) E mesmo que Maria f
osse uma rica "madame" dona de bordel, parece improvável que ela morasse com seus
irmãos Lázaro e Marta - nenhum dos quais, aparentemente, tinha má reputação, sendo clarame
nte grandes amigos de Jesus, que se hospedava em sua casa. Então qual seria a verd
adeira natureza de seu "pecado"?
Harmartolos era um termo emprestado da arte do arco e flecha, significando errar
o alvo: nesse contexto significa simplesmente alguém que não segue a lei judaica ou
não observa os rituais, ou porque não manteve as práticas descritas, ou porque não é de m
odo algum judeu. Se a mulher não era, de fato, judia, então isso pode explicar a ati
tude dos autores dos Evangelhos. Entretanto, é o detalhe de seus cabelos soltos e
a atitude dos discípulos com respeito a ela que dão margem para que se suspeite de a
lguma transgressão relacionada ao sexo.
É essa impressão de repugnância que, intencionalmente ou não, depreciou o verdadeiro sig
nificado da unção de Jesus. Há um outro ponto importante sobre esse ato que tem atraído
muito pouca atenção, mas no qual o cristianismo realmente se baseia. É de conhecimento
geral que o termo "Cristo vem do grego Christos, que por sua vez é a tradução do hebre
u "Messias . Porém, ao contrário do que amplamente se acredita, o termo não encerra nenh
uma conotação de divindade: Christos significa simplesmente O Ungido . (Com base nessa
interpretação, qualquer funcionário oficial que fosse ungido seria um Cristo , desde Pônci
Pilatos até a rainha da Inglaterra.) A idéia de um Cristo divino foi uma interpretação
posterior dos cristãos: esperava-se que o Messias judeu fosse simplesmente um gran
de líder político e militar, embora escolhido por Deus. Naquela época, o termo Messias o
u Cristo , quando aplicado a Jesus, significaria apenas ungido .
Há, é claro, apenas uma única unção de Jesus mencionada nos Evangelhos. Embora alguns argu
mentem que sua unção foi de fato o batismo pelas mãos de João, se assim fosse toda a mult
dão que se banhou no Jordão também seria chamada de "Cristo . Permanece embaraçoso o fato
de que a pessoa que "cristianizou Jesus foi uma mulher.
Ironicamente, está registrado que Jesus fez o seguinte comentário em sua unção (Marcos 1
4:9):
Em verdade vos digo, onde quer que for pregado este evangelho por todo o mundo
, será também contado para sua memória o que ela fez.
É curioso que a Igreja, que tradicionalmente afirma que a mulher que fez a unção foi a
Santa Maria Madalena, tenha ignorado essa injunção. Considerando o pouco caso com q
ue Madalena geralmente é tratada nos púlpitos de todo o mundo, parece que as palavra
s de Jesus são, como tudo o mais no Novo Testamento, objeto de um inexorável process
o de seletividade. Nesse caso as palavras de Jesus são quase totalmente ignoradas.
E mesmo nas raras ocasiões em que se dá a elas a importância que merecem por esse epi
sódio, nada se diz sobre o significado dele.
Apenas duas pessoas são citadas no Novo Testamento como tendo oficiado rituais imp
ortantes na vida de Jesus: João, que o batizou no início de seu ministério, e Maria de
Betânia, que o ungiu em seu final. Contudo, como vimos, ambos foram marginalizado
s pelos autores evangélicos - é como se somente tivessem sido incluídos porque aquilo
que fizeram era importante demais para ser completamente ignorado. E há uma outra
grande razão para isso: o batismo e a unção implicam autoridade por parte daquele que
oficia. Pois uma vez que um batizador e um ungidor conferem autoridade a alguém -
do mesmo modo que o arcebispo de Canterbury conferiu condição real à rainha Elizabeth
II, em 1953 -, eles próprios devem ter autoridade para fazê-lo.
Examinaremos a questão da autoridade de João mais tarde, mas considere o fato curios
o de que o episódio da unção foi efetivamente registrado, o que não teria acontecido se
tivesse sido um episódio frívolo ou insignificante. Contudo, segundo nos contam, os
discípulos, especialmente Judas, condenaram Maria por usar o raro e caríssimo óleo de
nardo para ungir Jesus, alegando que o óleo poderia ter sido vendido para levantar
dinheiro para os pobres. Jesus responde que sempre existirão pobres, mas ele não es
tará ali para sempre (a fim de ser honrado). Essa reprovação de Jesus - além de depor co
ntra a idéia de que ele era uma espécie de proto-marxista - não apenas justifica a ação de
Maria, como também sugere fortemente que apenas ele e ela realmente compreendiam
seu significado. Os discípulos, como sempre, pareciam ter dificuldades para entend
er os aspectos mais sutis desse ritual extremamente significativo, e eram franca
mente hostis às ações de Maria, embora o próprio Jesus tivesse o cuidado de reforçar a aut
oridade dela. Esse episódio teve um outro significado importante: marcou o momento
em que Judas se tornou o traidor - imediatamente depois ele vende Jesus aos sac
erdotes.
Maria de Betânia "cristianizou" Jesus com o óleo de nardo, um ungüento que, muito prov
avelmente, tinha sido guardado para essa ocasião especifica e estava associado com
os rituais de sepultamento. O próprio Jesus diz, ao comentar sobre a unção (Marcos 14
:8): "...[ela] embalsamou com antecipação o meu corpo para a sepultura." Para ele, p
elo menos, a intenção da unção era servir de ritual.
É evidente que a unção teve um significado profundo, mas qual foi exatamente o seu pro
pósito? E por que, naquela sociedade e naquele tempo, foi realizada por uma mulher
? Dado o gênero e a reputação (mesmo que imerecida) da mulher que o ungiu, a cerimônia d
ificilmente seria típica da prática judaica. Talvez haja uma pista para a verdadeira
natureza da unção nos "documentos Montgomery".
Como vimos, esse relato fala do casamento de Jesus com Miriam de Betânia, que é desc
rita como a "sacerdotisa de um culto feminino" - uma tradição de veneração às deusas. Se f
or verdadeiro, isso pode explicar por que a unção parecia tão estranha aos outros discíp
ulos, embora a tolerância de Jesus permaneça inexplicada. E se ela era realmente uma
sacerdotisa pagã, isso explicaria por que os discípulos homens achavam que ela tinh
a uma moral e um caráter duvidosos.
Se Maria de Betânia foi realmente uma sacerdotisa pagã, por que ungiu Jesus? Indo ma
is direto ao ponto, por que ele lhe permitiu fazer isso? Existe algum paralelo e
ntre esse ritual e aqueles comumente associados com o paganismo da época? De fato,
há um antigo ritual que é de extrema importância: a unção do rei sagrado. A idéia por trás
sso era a de que o verdadeiro rei ou sacerdote só poderia receber todo o seu poder
divino através da autoridade da suprema sacerdotisa. Isso tradicionalmente tomou
a forma do hieros gamos, ou casamento sagrado: o rei-sacerdote unindo-se com a r
ainhasacerdotisa. Era através da união sexual com ela que ele verdadeiramente se tor
nava o rei reconhecido. Sem ela, ele não era nada.
Nada há na vida moderna do Ocidente algo que se aproxime de tal conceito ou prática,
e é difícil para as pessoas de hoje entender a noção do hieros gamos. Fora do universo ín
timo dos casais, individualmente considerados, não temos nenhum conceito de sexual
idade sagrada. Contudo, não se trata meramente de sexo ou erotismo, por mais eleva
dos que supostamente sejam: no matrimônio sagrado, o homem e a mulher realmente to
rnam-se deuses. A suprema sacerdotisa torna-se a própria deusa, que então concede a
benção maior da regeneração - assim como na alquimia - ao homem, que corporifica o deus.
Acreditava-se que a união dos dois impregnava ambos e o mundo ao redor com um bálsa
mo regenerativo, evocando o impulso criativo do nascimento do planeta. "
O hieros gamos era a expressão final daquilo que se denomina "prostituição no templo",
onde o homem visitava uma sacerdotisa para receber a gnose - para experimentar
o divino por si mesmo através do ato de amor carnal. Significativamente, a palavra
original para sacerdotisa é hierodule, que significa "serva sagrada"; a palavra "
prostituta", com todo o juízo moral que ela encerra, foi impingida por uma tradução da
era vitoriana. Mais ainda, a serva desse templo, ao contrário da prostituta secul
ar, tem total controle da situação e do homem que a visita, e ambos são beneficiados c
om poderes físicos, espirituais e mágicos. O corpo da sacerdotisa torna-se, literal
e metaforicamente, um portal para se chegar até os deuses - o que é praticamente inc
oncebível para os amantes ocidentais de hoje.
Claro que nada poderia estar mais longe da atitude da Igreja, mesmo da Igreja mo
derna, no que tange ao sexo e à mulher. Pois não só a chamada prostituição no templo propo
rcionava iluminação espiritual - um processo conhecido como horasis -, como sem o "c
onhecimento" carnal da hierodule o homem permaneceria espiritualmente insatisfei
to. Por si mesmo ele tinha pouca esperança de alcançar o êxtase proporcionado pelo con
tato com Deus ou deuses, mas as mulheres não necessitavam de nenhuma cerimônia; para
os pagãos, as mulheres estavam naturalmente em contato com o Divino.
É possível que a "unção" realizada em Jesus simbolizasse a penetração sexual. Embora não se
necessário pensar nesses termos para compreender a solenidade do ritual, existem a
ssociações inevitáveis com os rituais antigos nos quais as sacerdotisas, que represent
avam as deusas, eram fisicamente preparadas para "receber" o homem que fora esco
lhido para simbolizar o rei sagrado, ou deus salvador. Todas as escolas de mistéri
o de Osíris, Tamus, Dioniso, Atis etc. incluem um ritual - desempenhado por substi
tutos humanos no qual o deus era ungido pela deusa antes de sua morte simbólica ou
verdadeira, o que tornaria a terra fértil mais uma vez. Segundo a tradição, três dias a
pós, graças à mágica intervenção da sacerdotisa/deusa, ele renascia e a nação podia então r
aliviada até o próximo ano. (A deusa na encenação do mistério dizia: "Eles levaram meu Se
nhor e não sei onde encontrá-lo," praticamente as mesmas palavras atribuídas a Maria M
adalena no jardim. Discutiremos isso em detalhes mais à frente.)
Pistas relacionadas com o real significado da unção de Jesus podem ser encontradas n
o Antigo Testamento, no Cântico dos Cânticos (1: 12), onde o "Amado" diz: "Estando o
rei sentado à sua mesa, o meu nardo exalou o seu aroma por tudo." Devemos lembrar
que o próprio Jesus associa sua unção com seu sepultamento, assim o verso que se segu
e assume um outro significado:"O meu amado é para mim como um ramalhete de mirra:
ele irá repousar toda a noite entre os meus seios."
Isso é uma óbvia ligação entre a unção de Jesus e o Cântico dos Cânticos. Muitas autoridade
editam que, na verdade, o Cântico dos Cânticos era a liturgia do ritual sagrado do c
asamento, assinalando suas muitas semelhanças com liturgias do Egito e de outros p
aíses do Oriente Médio.
Há uma em particular que tem uma ressonância impressionante, como nos diz Margaret S
tarbird:

Versos idênticos e equivalentes àqueles do Cântico dos Cânticos são encontrados no poema l
itúrgico do culto à deusa egípcia Ísis, irmã-noiva do mutilado... Osíris.
A deusa/sacerdotisa une-se com o deus/sacerdote no sagrado matrimônio por razões com
plexas. Superficialmente é um ritual da fertilidade, para assegurar a fecundidade
pessoal e nacional, para garantir o futuro do povo e de sua terra. Mas é também atra
vés do êxtase e da intimidade do rito sexual que a deusa/sacerdotisa confere sabedor
ia a seu parceiro. A analista junguiana Nancy Qualls-Corbett, no seu livro The S
acred Prostitute (1988), coloca grande ênfase na ligação entre a puta sagrada e o Prin
cípio Feminino simbolizado por Sofia (Sabedoria). Como vimos, Sofia repete-se reco
rrentemente em nossas investigações - ela era particularmente venerada pelos templário
s - e está fortemente associada a Madalena e Ísis.
A unção de Jesus foi um ritual pagão: a mulher que o executou, Maria de Betânia, era uma
sacerdotisa. Levando-se em conta esse novo cenário, é bem mais do que provável que se
u papel no círculo íntimo de Jesus fosse o de iniciadora sexual. Recordemos, porém, qu
e tanto os hereges como a Igreja Católica há muito acreditam que Maria de Betânia e Ma
ria Madalena eram a mesma pessoa: nessa figura da iniciadora sexual finalmente e
ncontramos a razão que faltava para a confusão acerca do verdadeiro papel e signific
ado de Madalena na vida de Jesus. Se ela realmente era uma hierodule operando no
mundo patriarcal do judaísmo, seria inevitavelmente considerada como pária moral. N
o entanto, enquanto esteve junto a Jesus ela era protegida, se não de outras coisa
s, pelo menos dos efeitos do ultraje à sua virtude, como os vários entreveros com Si
mão Pedro (conforme os Evangelhos Gnósticos) claramente o demonstram.
O Monastério de Sion, como já observamos, é devotado à deusa - na forma de Madona Negra,
de Maria Madalena ou da própria Isis. Eles claramente associam Maria Madalena com
Isis - associação que é fundamental à sua própria raison d'être, embora à primeira vista i
cause certa perplexidade. Entretanto, está claro que vêem Maria Madalena como uma s
acerdotisa pagã - o que, no mínimo, é um outro paralelo entre ela e Maria de Betânia.
O papel de Maria Madalena como sacerdotisa pagã é reconhecido por Baigent, Leigh e L
incoln; porém, eles não parecem considerar que as implicações disso cheguem a merecer ma
ior atenção. Por exemplo, enquanto discutem se a Madalena estava associada ao culto às
deusas, concluem que "anteriormente à sua associação com Jesus, a Madalena poderia mu
ito bem ter estado ligada a tal culto". E então mudam de assunto. No entanto, a fr
ase crucial aqui é "anteriormente à sua associação com Jesus", pressupondo que ele a con
vertera e reproduzindo a visão tradicional de que ela se regenerou através de sua re
lação com ele. Essa visão, todavia, é um tanto ingênua, embora desafiá-la signifique evocar
um outro cenário profundamente inquietante.
Qualls-Corbett também cita a conexão entre a Puta Sagrada, Sofia e a Madona Negra, r
ealçando assim os vínculos que descrevemos na Parte I". Essa personificação multifacetad
a do Princípio Feminino lança alguma luz sobre o grande, e zelosamente guardado, seg
redo erótico da tradição oculta ocidental. Pois Sofia é a Puta, que também é a "Ternamente
mada" do casamento sagrado, e que é Maria Madalena, Madona Negra e Isis. A sexuali
dade sagrada implícita na Grande Obra dos alquimistas é uma continuação direta dessa ant
iga tradição, na qual o rito sexual confere iluminação espiritual e mesmo transformação fís
. É após essa suprema experiência com a deusa/sacerdotisa que o deus/sacerdote modific
a-se a tal ponto que não pode mais ser reconhecido e "ressuscita" para uma nova vi
da.
Significativamente, como assinalam Nancy Qualls-Cobertt e outros comentadores re
centes, a descrição de Maria Madalena nos Evangelhos Gnósticos é a de uma iluminatrix e
iluminadora - Maria Lúcifer, a que traz luz, a que concede iluminação através do sexo sa
grado. E, tomado em conjunto com nossas conclusões sobre Maria de Betânia, parece qu
e ela e Maria Madalena realmente eram a mesma mulher.
Esse cenário também reforça a idéia de que Maria era a mulher de Jesus, embora isso esse
ncialmente dê um novo sentido à palavra. Ela era sua parceira num casamento sagrado,
que não era necessariamente um encontro amoroso. Como já vimos, o Cântico dos Cânticos é
uma liturgia do casamento sagrado, e isso sempre esteve relacionado com Maria Ma
dalena.
A sexualidade sagrada - um anátema para a Igreja de Roma - encontra expressão no con
ceito de casamento sagrado e "prostituição sagrada' nos antigos sistemas orientais d
o taoísmo e do tantrismo e na alquimia.
Como Marvin H. Pope diz em seu exaustivo estudo sobre o Cântico dos Cânticos (1977):
Os hinos tântricos às Deusas fornecem uns dos paralelos mais instigantes com o Cânti
cos dos Cânticos.
E conforme expõe Peter Redgrove no seu livro The Black Goddess (1989), ao discutir
as artes sexuais do taoísmo:
É interessante comparar isso com as práticas religiosas sexuais do Oriente Médio e
com a imagem delas que nos foi legada. Mari-Ishtar, a Grande Meretriz, unge seu
consorte Tamus (com quem Jesus era identificado), fazendo dele um Cristo. E o fa
z para prepará-lo para sua descida ao mundo inferior, do qual ele retornaria por o
rdem dela. Ela, ou sua sacerdotisa, era chamada de Grande Meretriz porque esse e
ra um rito sexual de horasis, do orgasmo de corpo inteiro que levaria o consorte
ao continuum visionário cognoscível. Era um rito de passagem, do qual ele retornari
a transformado. No mesmo sentido Jesus diz que Maria Madalena o ungiu para seu s
epultamento. Somente mulheres podiam desempenhar tais rituais em nome da deusa,
e é por essa razão que nenhum homem compareceu à sua tumba, apenas Maria Madalena e as
outras mulheres. Um símbolo fundamental de Madalena na arte cristã era o frasco de ól
eo sagrado - o sinal exterior do batismo interior experimentado pelo taoísta..."
Existe ainda um outro aspecto de grande importância acerca do frasco de óleo com que
Madalena ungiu Jesus. Como já vimos, os Evangelhos nos dizem que o óleo era de nard
o, um ungüento excepcionalmente caro. A razão de seu alto preço era o fato de ser traz
ido da índia, lar da antiga arte sexual do tantra. E na tradição do tantra, perfumes e
óleos diferentes são designados para regiões especificas do corpo: óleo de nardo era pa
ra os cabelos e os pés...
No Épico de Gilgamesh, diz-se dos reis sacrificados: "A meretriz que vos ungiu com
o fragrante óleo, por vós agora chora". Uma frase semelhante era utilizada nos mistér
ios da morte do deus Tamus, cujo culto predominava em Jerusalém na época de Jesus."
E, significativamente, os "sete demônios" que Jesus supostamente expulsou de Madal
ena podem ser vistos como os sete espíritos Maskim, dos sumérios e acadianos, que go
vernavam as sete esferas sagradas e que haviam nascido da deusa Mari.
Na tradição do matrimônio sagrado, era a noiva do rei sacrificial - a Alta Sacerdotisa
- quem escolhia o momento de sua morte, quem realizava seu funeral e com sua ma
gia o trazia de volta do mundo inferior para gozar uma nova vida. Na maioria dos
casos, é claro, essa "ressurreição" era puramente simbólica, sendo vista como o renovar
da vida representado pela primavera - ou, no caso de Osíris, pela cheia anual do
vale do Nilo que renovava a fertilidade da terra.
Podemos, portanto, ver a unção de Maria Madalena como um anúncio de que o momento do s
acrifício de Jesus havia chegado e, também, como um ritual reservado ao rei sagrado,
que ela, como sacerdotisa, tinha autoridade para realizar. Que esse papel é diame
tralmente em oposição ao que a Igreja tradicionalmente atribuiu a ela já não deveria mai
s ser motivo de surpresa.
Em nossa opinião, a Igreja Católica jamais quis que seus membros realmente soubessem
da verdadeira relação entre Jesus e Maria, razão pela qual os Evangelhos Gnósticos não fo
ram incluídos no Novo Testamento e os cristão nem sequer tomaram conhecimento da exi
stência deles. O Concílio de Nicéia, ao rejeitar grande parte dos Evangelhos Gnósticos e
votar pela inclusão apenas de Mateus, Marcos, Lucas e João no Novo Testamento, não ti
nha qualquer mandado divino para exercer tal ato de censura. Agiram assim por au
to-preservação, pois naquela época, século IV, o poder de Madalena e de seus seguidores
já havia se espalhado a tal ponto que os patriarcas da Igreja não tinham como detê-lo.
De acordo com esse material censurado - que foi deliberadamente suprimido para e
vitar que os fatos verdadeiros fossem conhecidos - Jesus deu a Madalena o título d
e "Apóstolo dos Apóstolos" e "Mulher que Conhecia o Todo". Ele disse que ela seria e
levada acima de todos os outros discípulos e governaria o Reino da Luz que estava
por vir. Como já vimos, ele também a chamava de Maria Lúcifer, "Maria, aquela que traz
a luz" - e afirma-se que ele trouxera Lázaro de volta dentre os mortos em razão do
amor que por ela sentia, não havendo nada que não fizesse por ela, nada que lhe recu
sasse. O Evangelho Gnóstico de Felipe relata que os outros discípulos não gostavam del
a, e que Pedro, em particular, tentava argumentar sobre a condição dela com Jesus, c
hegando mesmo a perguntar-lhe, ingenuamente, por que ele preferia ela aos outros
discípulos e por que sempre a beijava na boca! No Evangelho Gnóstico de Maria, a Ma
dalena diz que Pedro odiava não só a ela como "toda a raça das mulheres", e, no Evange
lho de Tomé, Pedro diz: "Deixe que Maria se vá, pois as mulheres não merecem viver" -
preliminares da severa batalha entre a Igreja de Roma, que foi fundada por Pedro
, e o movimento herético que pertencia a Maria. (É instrutivo relembrar que isso com
eçou como um rusga pessoal entre dois indivíduos, e um deles era a consorte de Jesus
.)
Significativamente, o Evangelho Gnóstico de Felipe (que se refere especificamente à
Madalena como parceira sexual de Jesus) está repleto de alusões a uniões entre homens
e mulheres, entre noivo e noiva. A iluminação final é simbolizada pelos frutos da união
do noivo com a noiva: aqui Jesus é o noivo, e sua noiva é Sofia, e Jesus engravidand
o-a é o ápice da gnose. (É interessante notar que mesmo nos Evangelhos canônicos Jesus f
reqüentemente refere-se a si mesmo como "o Noivo .) O Evangelho de Felipe também estab
elece uma clara associação entre Maria Madalena e Sofia."
Esse Evangelho Gnóstico lista cinco rituais iniciatórios ou sacramentos: batismo, cr
isma (unção), eucaristia, redenção e, o mais elevado de todos, "a câmara nupcial":
A crisma é superior ao batismo... e Cristo é (assim) chamado por causa da crisma..
. Ele que é ungido possui o Todo. Ele possui a ressurreição, a luz, a Cruz, o Espírito S
anto. O Pai deu-lhe este na câmara nupcial.
Se o ritual do sacramento da crisma era superior ao do batismo, então isso sugere
que a autoridade de Maria era realmente maior que a de João Batista. Ainda mais si
gnificativo, entretanto, o Evangelho de Felipe deixa claro que todos os gnósticos
que seguiam aquele sistema, e não apenas Jesus, tornavam-se "Cristos" ao serem ung
idos. E o maior dos sacramentos era o da "câmara nupcial", que nunca é explicado e p
ermanece um mistério para os historiadores. Porém, sob a luz de nossas investigações, po
de-se fazer uma suposição astuta: certamente as palavras da passagem contêm uma pista
sobre a verdadeira natureza da relação entre Jesus e Maria. Como já vimos, a última também
era conhecida nos Evangelhos Gnósticos como "a mulher que conhecia o Todo", e aqu
i nos dizem que "ele que é ungido possui o Todo". E o Evangelho Gnóstico de Felipe d
eclara de modo abrupto: "Compreenda o grande poder que possui o intercurso imacu
lado".
A escritura gnóstica do século III conhecida como Pistis Sophia apresenta o que se a
firmou serem os ensinamentos de Jesus, doze anos após sua ressurreição. Madalena é retra
tada no papel arquetípico da catequista, questionando-o a evocar sua sabedoria - e
xatamente como a Shakti ou deusa oriental ritualmente questiona seu consorte div
ino. É digno de nota que no Pistis Sophia Jesus utilize com Maria os mesmos termos
que se utilizavam para aquelas deusas, 'Ternamente Amada". Essas são também as pala
vras que os parceiros usam entre si no matrimônio sagrado.
A intimidade de Jesus e Maria encerra outra implicação profunda. A comparação entre o re
lacionamento de ambos com o de Jesus e seus discípulos deixa pouca dúvida quanto a q
uem privava realmente de suas idéias, pensamentos e segredos. Os discípulos homens são
com freqüência retratados
como um tanto "lerdos". Muitas vezes "não entendiam o que ele queria dizer" - uma
qualidade nada inspiradora nos homens que um dia, aparentemente, iriam fundar a
Igreja de seu líder. Na verdade, os Atos dos Apóstolos falam do fogo celeste do Pent
ecostes que conferiu certa sabedoria e poder aos discípulos, mas os Evangelhos Gnóst
icos falam de um discípulo que não necessitava dessa intervenção divina. De acordo com o
material censurado, foi Madalena quem reuniu os desolados discípulos após a crucifi
cação e, graças apenas à força de suas palavras inspiradoras, estimulou-os a levar a causa
adiante quando já pareciam prestes a desistir. Está certo que ela vira Jesus ressus
citado com seus próprios olhos, porém, mais uma vez, deparamos com a curiosa sensação de
que faltavam a eles a motivação, a fé e a coragem de Madalena.
Poderia ser que os Doze, na verdade, não fizessem parte do círculo interno dos segui
dores de Jesus, que simplesmente, na melhor das hipóteses, fossem os mais leais de
seus devotos não iniciados? Olhando em retrospecto, a ignorância deles era chocante
. Por exemplo, embora a morte e a ressurreição de Jesus fossem a quintessência de sua
missão, os homens não esperavam que acontecessem: "Ainda não entendiam a escritura, se
gundo a qual ele devia ressuscitar dos mortos".
Foi Maria Madalena e suas seguidoras femininas que foram até a tumba. Talvez suas
palavras ao "guardião" - na realidade Jesus ressurrecto -, de que seu "Senhor" for
a levado e que ela "não sabia onde o haviam colocado", poderiam significar que ela
também ignorava, assim como os homens, o que estava acontecendo. Mas existem razões
que nos compelem a ver suas palavras no contexto de que ela partilhava dos mistér
ios secretos - talvez até como sacerdotisa. Maria Madalena foi com toda probabilid
ade consorte de Jesus e a primeira Apóstola, e parece provável que seu papel abrange
sse outro significado ritual, mais pagão e mais antigo.
Pressupõem-se que os homens não acorreram à tumba de Jesus porque isso não era o tipo de
coisa que os homens fariam naqueles dias. Porém, a julgar pelos relatos gnósticos s
obre a estarrecedora apatia dos discípulos após a crucificação, o costume por si só não pod
ria explicar sua ausência. Na tradição dos mistérios, apenas as sacerdotisas proclamavam
o clímax do sacrifício do rei - sua miraculosa ressurreição.
Mesmo que as aparentes semelhanças entre a unção, morte e ressurreição de Jesus com as tra
dições pagãs da época sejam aceitas, ainda resta saber por que um pregador judeu teria s
e envolvido em tais ocorrências. Pois embora Maria Madalena de fato pareça ter perte
ncido a algum tipo de culto às prostitutas sagradas, e sua influência sobre seu cons
orte fosse, sem sombra de dúvida, grande, que possível razão teria tido Jesus para vol
tar as costas a séculos da arraigada tradição judaica? Como poderia, dentre todas as p
essoas, ter participado de um ritual pagão?
Essa questão confronta-nos com uma possibilidade até aqui inimaginável. Como já vimos, a
realidade sobre Jesus e sua missão pode ser muito diferente daquela ensinada pela
Igreja. Se por um momento suspendermos a descrença e considerarmos a hipótese dada
acima como verdadeira, isso significaria criar um cenário completamente novo. E se
Jesus fosse o parceiro de um casamento sagrado e, portanto, participasse de boa
vontade de ritos sexuais pagãos; e se Maria Madalena fosse realmente a suprema sa
cerdotisa de um culto às deusas e no mínimo igual a Jesus, espiritualmente falando;
e se Pedro e outros discípulos não fossem, de fato, parte do círculo interno do movime
nto? E isso leva a uma outra questão: tendo em vista esse quadro totalmente difere
nte, mesmo que hipotético, que tipo de homem estaria realmente no centro de tudo i
sso? Quem era realmente Jesus?
CAPÍTULO XIII
Filho da Deusa
Como vimos, os estudos históricos modernos ofereceram uma série de novas descobertas
sobre as origens do cristianismo que chamam à reflexão. No entanto, o abismo entre
o que os estudiosos da Bíblia sabem sobre a religião e o que os cristãos conhecem, con
tinua a crescer. Burton L. Mack, catedrático de Estudos do Novo Testamento da Esco
la de Teologia de Claremont, Califórnia, recentemente lamentou a "espantosa falta
de conhecimentos básicos, entre grande parte dos cristãos, sobre a origem do Novo Te
stamento .
O fato de que a análise do Novo Testamento, tal como a conhecemos, só tenha começado n
o século XIX, reflete a quase supersticiosa relutância em examinar os textos origina
is, em decorrência da longa proibição da Igreja de que a Bíblia fosse lida pelo o público
em geral. Durante séculos, somente os padres liam as Escrituras - de fato, na maio
ria dos casos, somente eles podiam aprender a ler e escrever. A ascensão do protes
tantismo quebrou parcialmente essa exclusividade, propiciando que um número maior
de pessoas tivesse acesso aos textos considerados sagrados. Entretanto, todas as
formas extremas do movimento protestante - desde o puritanismo ao que é hoje conh
ecido como fundamentalismo - enfatizaram a inspiração divina por trás das palavras do
Novo Testamento, proibindo assim qualquer insinuação de que talvez não fossem a verdad
e literal. Nos dias de hoje, milhões de cristãos ignoram as evidências que sugerem ser
o Novo Testamento uma mistura de mito, pura invenção, versões deturpadas de relatos d
e testemunhas e material tomado de outras tradições. No entanto, ao evitar tais evidên
cias, eles não apenas deixam de entender, como também mantêm um sistema de crença que es
tá cada vez mais vulnerável à crítica.
Quando os estudiosos do século XIX começaram a empregar os mesmos critérios comumente
utilizados para analisar outros textos históricos, os resultados foram extremament
e reveladores. Um dos primeiros desdobramentos a surgir foi a assertiva de que J
esus na verdade nunca existiu, e que os Evangelhos eram simplesmente uma coletânea
de material mitológico e metafórico. Atualmente, poucos estudiosos do Novo Testamen
to concordam com essa visão, embora, como veremos, ela ainda tenha seus defensores
. O argumento a favor da existência de um Jesus histórico é bastante sólido, mas será inst
rutivo examinar as razões daqueles que duvidam disso, afirmando que Jesus foi uma
total invenção dos primeiros cristãos.
Aqueles que advogam essa visão dizem que, fora os próprios Evangelhos, não existe nenh
uma evidência independente de que Jesus tenha realmente existido. (Isso por si só é um
choque para muitos cristãos, pois supõem que, sendo ele tão fundamental ao seu próprio
mundo, deve ter sido muito famoso na época: na verdade, ele não é mencionado em nenhum
texto seu contemporâneo.) Os outros livros do Novo Testamento - por exemplo, as E
pístolas de Paulo - partem do pressuposto da existência de Jesus mas não oferecem nenh
uma prova sólida disso. Paulo, cujas cartas são os mais antigos textos cristãos de que
se tem notícia, não fornece nenhum detalhe biográfico sobre Jesus a não ser aqueles que
se relacionam com a crucificação - nada fala sobre seus pais, seu nascimento ou o p
assado de sua vida. Mas Paulo, assim como os outros autores do Novo Testamento,
está mais preocupado com a teologia, em manter vivo o movimento de Jesus e explica
r seus ensinamentos, do que com a biografia de seu fundador.
Muitos historiadores do século XIX preocupavam-se com a falta de registros contemp
orâneos sobre Jesus. Como vimos, nenhum cronista do primeiro século faz qualquer menção
a ele. E como escreveu Bamber Gascoigne: "Durante os primeiros cinqüenta anos do q
ue hoje chamamos de era cristã, não há uma única palavra sobre Jesus ou seus seguidores.
"'
O escritor romano Tácito (em sua obra Anais, c. 115) registra o crescimento do cri
stianismo - que ele chama de uma "superstição perigosa" em Jerusalém e em Roma e menci
ona de passagem a execução de seu fundador, mas não dá nenhum detalhe e se refere a ele
simplesmente pelo título de "Cristo".
Suetônio, em sua obra As vidas de César (c.120), refere-se a agitações entre os judeus,
no ano de 49, instigadas por"Chrestus". Isso com freqüência é citado como evidência de u
ma ramificação romana do cristianismo, mas não é necessariamente assim. Muitos se procla
maram Messias entre os judeus daquela época, e todos poderiam ser chamados, em gre
go, de "Cristo"; Suetônio escreve como se aquele, em particular, estivesse pessoal
mente e ativamente incitando a rebelião judia em Roma na época.
Outro romano notável que teve contato com os cristãos nos primeiros anos do século I f
oi Plínio, o Jovem, que não dá nenhuma informação sobre eles, além de dizer que seu movimen
o foi fundado por "Cristo". O que é particularmente interessante nesse relato, porém
, é o fato de mostrar que esse Cristo já era considerado como um deus.
Esses autores eram romanos, e, como a Palestina era para o império um lugar atrasa
do, não é de surpreender que negligenciassem Jesus e os primeiros dias da Igreja Cri
stã. (Além disso, rebeldes e criminosos não recebiam a atenção que hoje recebem em nossa ép
ca de celebridades. Mesmo a rebelião do ex-escravo Espártaco recebeu pouco espaço dos
cronistas da época.) Entretanto, seria de imaginar que a vida e o ministério de Jesu
s tivessem sido citados nas obras de Flávio Josefo (38-c.100), um judeu que trocou
de lado na revolta dos judeus e escreveu dois livros contando a história do período
. Sua obra Antigüidades dos judeus (escrita por volta do ano de 93) menciona, de f
ato, outros personagens da história dos Evangelhos, principalmente João Batista e Pônc
io Pilatos. Há uma referência a Jesus, mas infelizmente já há muito se reconheceu que es
ta foi acrescentada à obra por um autor cristão muito tempo depois - provavelmente n
o início do século IV - precisamente a fim de preencher o silêncio constrangedor em to
rno desse assunto. Na verdade, a referência a Jesus é por demais reverente, a ponto
de comentadores terem perguntado por que o autor nunca se converteu ao cristiani
smo, já que falava de Jesus em termos tão glorificantes! A questão verdadeira, contudo
, era saber se essa inserção apenas cobria a ausência de uma referência, ou se substituía
uma outra que era menos lisonjeira sobre Jesus e seu movimento. Não podemos estar
certos sobre nenhuma das hipóteses, embora o peso da evidência indique que se trata
de completa invenção; a passagem nem mesmo está escrita no estilo de Josefo e se encai
xa muito mal no fluxo da história. E mais, o escritor cristão Orígenes, do final do sécu
lo III, não parece estar ciente de nenhuma referência a Jesus na obra de Josefo (Emb
ora Eusébio cite a referência quando escreve no século seguinte.) Entretanto, a referênc
ia de Josefo ao pregador João Batista e à sua execução por Herodes Antipas não se question
a.
É claro que a falta de referências a Jesus fora dos Evangelhos não significa que ele n
unca tenha existido. Pode significar apenas que seu impacto na época não foi grande
o suficiente. Afinal, houve muitos outros pretensos Messias naquele tempo que não
mereceram nossa atenção.
Além disso, se tal personagem não existiu, por que alguém o teria inventado? E por que
tantas pessoas teriam acreditado na história a ponto de a religião que leva seu nom
e ter florescido tão rapidamente? Como indica Geoffrey Ashe, o conceito de persona
gens fictícios, que está tão intricado em nossa cultura, não era de forma alguma comum a
os autores da época. Mesmo que o que estivessem escrevendo fosse essencialmente fi
cção, era sempre baseado em um personagem real, como Alexandre, o Grande. Só por essa
razão parece bastante improvável que Jesus fosse uma completa invenção - e mesmo que hou
vesse alguma grande demanda cultural e espiritual por um "Deus Mortal", já existia
m muitos na época que poderiam ser escolhidos, como veremos. Não havia necessidade d
e inventar um outro.
Também é significativo que os autores dos Evangelhos tenham inserido Jesus no contex
to de personagens históricos conhecidos, como João Batista e Pilatos. Isso também cont
a a favor de sua existência, e, além disso, nenhum dos primeiros críticos do cristiani
smo contestou a existência de seu fundador, o que certamente teriam feito se houve
sse alguma razão para dúvida.
E o modo como Jesus é retratado indica que ele era um homem real. Nenhum escritor
se daria ao trabalho de criar um Messias fictício e, ainda assim, descrevê-lo como s
endo tão ambíguo, até mesmo evasivo, com respeito ao seu papel; nem tampouco lhe atrib
uiria ensinamentos, frases e alusões tão impenetráveis. A ambigüidade, as evidentes cont
radições e os modos de expressão às vezes absolutamente ininteligíveis caracterizam os Eva
ngelhos como relatos - um tanto confusos - das palavras e feitos de um personage
m histórico genuíno.
A falta de qualquer detalhe biográfico sobre Jesus em Paulo tem sido tomada pelos
céticos como prova de que Cristo nunca existiu. Ninguém, porém, afirma que Paulo era u
ma invenção, e ele definitivamente conhecia as pessoas que haviam conhecido Jesus. P
or exemplo, Paulo não só conheceu Pedro como brigou com ele (e esse comportamento po
uco honroso é evidência de que eles eram reais - nenhum escritor naqueles dias teria
colocado tal fraqueza em seus heróis). Portanto, parece provável que Jesus tenha re
almente existido, o que não significa, porém, que tudo o que está nos Evangelhos seja
verdadeiro.
Havia, porém, uma outra razão para que muitos estudiosos do século XIX duvidassem da e
xistência de Jesus. À medida que o conhecimento histórico crescia e o Novo Testamento
tornava-se objeto de crescente análise crítica, ficou evidente que a história de Jesus
tinha paralelos estranhos e bastante próximos com o de famosas figuras da mitolog
ia - especialmente com os deuses mortos-ressurrectos do antigo Oriente Médio, vene
rados em cultos misteriosos que floresceram à mesma época do cristianismo e eram mai
s antigos do que este.
Uma das argumentações mais eruditas e persuasivas sobre esse tema está na obra Pagan C
hristis, de J. M. Robertson, publicada em 1903. Em sua introdução a uma recente sino
pse, Hector Hawton resumiu o parecer de Robertson na seguinte questão:
...ninguém afirma seriamente que Adônis, Atis e Osíris eram personagens históricos...
por que, então, se faz uma exceção no caso do suposto fundador do cristianismo?'.
Esses paralelos estão relacionados com o cristianismo de dois modos. Primeiro, nos
relatos dos acontecimentos da vida de Jesus, como sua morte, ressurreição e a insti
tuição da eucaristia na Última Ceia; segundo, no significado atribuído a esses acontecim
entos pelos primeiros cristãos. Um breve resumo dos pontos mais relevantes, feito
por Robertson e outros comentadores importantes, sublinham o fato de que muitas
das partes mais sagradas da história de Jesus são idênticas às de outras religiões antigas
.
Robertson diz:
Como Cristo, Adônis e Atis, Osíris e Dioniso também padeceram e ressuscitaram. Unir-se
a eles é a paixão mística de seus adoradores. Eles todos se assemelham no fato de que
seus mistérios conferem imortalidade. Do mitraísmo, Cristo toma as chaves simbólicas
do céu e assume a função de Saoshayant, o destruidor do Mal, nascido da Virgem.. ."
Em seus fundamentos, portanto, o cristianismo é paganismo com outra roupagem.
O mito cristão cresceu absorvendo detalhes de cultos pagãos... Como a imagem do deus
-menino no culto de Dioniso, foi retratado como um bebê enfaixado em um manjedoura
. Nasceu em uma estrebaria como Hórus - o templo-estábulo da deusa virgem Ísis, rainha
dos céus. Novamente como Dioniso, transformou água em vinho; como Esculápio, devolveu
a vida a homens mortos e deu visão aos cegos; como Atis e Adônis, foi pranteado e e
xaltado pelas mulheres. Sua ressurreição, como a de Mitra, aconteceu em uma tumba de
pedra...
Não há concepção associada a Cristo que não seja comum a algum ou todos os cultos de Salva
dores da Antigüidade."
Se é surpreendente que os pontos levantados por Robertson e outros tenham produzid
o tão pouco impacto na época, é ainda mais impressionante que ainda sejam tão pouco conh
ecidos hoje em dia. Uma voz mais recente sobre o assunto é a de Burton L. Mack, qu
e escreveu em 1994:
Sucessivos estudos têm demonstrado que desde o início o cristianismo não era uma relig
ião singular mas que, na realidade, fora "influenciado pelas religiões da Antigüidade..
. perturbadora foi a descoberta de que em seus primórdios o cristianismo ostentava
uma clara semelhança com os cultos de mistério do helenismo, particularmente nos as
pectos mais significativos, ou seja, nos mitos de deuses que morrem e renascem e
em seus rituais de batismo e refeições sagradas. "
Hugh Schonfield diz em seu livro The Passover Plot:
Os cristãos hoje continuam a se inquietar com as contradições das doutrinas da Igreja,
que nasceram da tentativa infeliz de misturar os ideais incompatíveis do paganism
o e do judaísmo.'"
Estudiosos como Robertson achavam inconcebível que fosse apenas coincidência que tan
tos elementos dos cultos dos deuses mortais pudessem ser encontrados na história d
e Jesus. Concluíram que os Evangelhos haviam tomado emprestados os acontecimentos
principais das histórias de Osíris, Atis e outros, enxertando-os em um herói "doméstico"
, que nunca existiu.
Um defensor recente dessa idéia é Ahmed Osman, que, em sua obra House of the Messiah
, propõe a teoria de que os relatos dos Evangelhos na verdade registram uma peça de
mistério que data de muitos séculos atrás, do tempo do antigo Egito. Como seus predece
ssores, Osman baseia seus argumentos nos incríveis paralelos entre o mito de Jesus
e as histórias da antiga religião do Egito, e nas dúvidas relativas à existência histórica
de Jesus."
Mas por que alguém roubaria parte do mistério de outra tradição e introduziria nela pess
oas reais como João Batista? Osman acha que as narrativas dos Evangelhos foram uma
invenção dos seguidores de João Batista. De acordo com sua tese, eles inventaram Jesu
s a fim de cumprir a profecia de seu mestre sobre aquele que viria depois dele,
e cujo advento previsto foi, provavelmente, notável pela sua ausência. Entretanto, i
sso é implausível por muitas razões: os seguidores de João dificilmente forjariam uma hi
stória na qual seu próprio e amado mestre fosse tão marginalizado, sendo incluído apenas
para servir de cenário à glorificação de outro. E, como veremos, nem mesmo é certo que Joã
tenha feito a famosa profecia sobre um maior que viria depois dele.
De acordo com Osman, ninguém sabia da missão de Jesus como Redentor até sua morte, e,
portanto, ele não deve ter tido um grande número de seguidores enquanto estava vivo.
Osman acredita que os judeus estavam esperando um Messias que iria morrer por e
les. Mas isso não é verdadeiro - os judeus nunca esperaram que seu rei-herói fosse sac
rificado ou humilhado daquela forma. A idéia toda da morte redentora, conforme a c
onhecemos, é uma interpretação cristã posterior.
Poucos estudiosos duvidam hoje da existência de Jesus, embora a maioria deles aind
a tenha problemas com os evidentes exemplos de referências a escolas de mistérios pr
esentes nos Evangelhos. Acreditando ser impossível reconciliá-los com o mais óbvio mat
erial judaico, eles tendem a rejeitar as insinuações de paganismo. Afirmam que estas
foram acrescentadas quando os primeiros cristãos tomaram contato com outros ponto
s do grande Império Romano, particularmente como resultado das viagens de Paulo. A
visão aceita é a de que a igreja de Jerusalém, liderada pelo irmão de Jesus, Tiago, o J
usto, representava a forma "pura" original do cristianismo. Infelizmente, em vir
tude de acidentes históricos, a igreja de Tiago desapareceu durante a Revolta dos
Judeus, de modo que a natureza de suas crenças continua sendo objeto de especulação. S
abemos, entretanto, que seus seguidores oravam no Templo de Jerusalém; portanto, é r
azoável supor que suas crenças se baseavam em práticas judaicas. Após o colapso da Igrej
a de Jerusalém, o palco ficou livre e Paulo pôde então ocupá-lo. Tal fato parece fornece
r uma solução elegante para o problema de explicar por que se encontra tanto materia
l de escolas de mistério nos Evangelhos, conforme os conhecemos.
Pode haver uma outra explicação, se invertermos o argumento. E se a versão de Paulo do
cristianismo estivesse mais próxima dos ensinamentos de Jesus e fosse a Igreja de
Jerusalém que tivesse caminhado pela trilha errada? Irmãos não necessariamente compre
endem um ao outro, e com certeza havia uma marcante frieza entre Jesus e sua famíl
ia; assim, não há razão para supor que o cristianismo de Tiago estivesse mais próximo qu
e o de Paulo dos ensinamentos originais de Jesus.
A opinião corrente acerca do desenvolvimento dos primórdios do cristianismo não conseg
ue explicar por que Paulo, que também era judeu, teria sentido necessidade de preg
ar uma forma paganizada da religião que acabava de se instalar. Sua famosa conversão
na estrada de Damasco provavelmente aconteceu, no máximo, cinco anos após a crucifi
cação - e como, antes disso, ele tinha a função de perseguir os cristãos, é de presumir que
ele tivesse uma boa idéia da razão por que os perseguia.
Nossas descobertas sobre a Madalena ser uma iniciadora de uma escola de mistério s
ugerem que o próprio Jesus foi também um iniciado - talvez porque ela o tenha inicia
do. Mas por que ele teria se envolvido tanto com um culto pagão quando todo mundo
sabia que era judeu?
Descobrimos que nada poderia ser dado como certo nessa história. Pensamos, então, qu
e valeria a pena desafiar os pressupostos costumeiros sobre os antecedentes reli
giosos de Jesus. Como Morton Smith diz ironicamente em sua obra Jesus the Magici
an (que discutiremos em detalhes mais à frente):
É claro que Jesus era judeu, e também todos os discípulos - supostamente. A suposição não
egura.
Para começar, vale a pena perguntar como "sabemos essas coisas sobre Jesus.
A visão corrente entre os acadêmicos, discutida acima, baseia-se em dois pressuposto
s que tentam explicar a evidente contradição entre os elementos pagãos e judeus da his
tória de Jesus. .
O primeiro pressuposto é o de que Jesus era judeu, embora não se saiba ao certo a qu
e seita ele pertencia. Como vimos, o segundo pressuposto é de que os aspectos clar
amente pagãos, relacionados a cultos de mistério, presentes nos relatos dos Evangelh
os, são resultado de invenções posteriores. O argumento é que, como o cristianismo começou
a se disseminar entre as comunidades não judaicas do mundo romano, as afinidades
com os mistérios tornaram-se visíveis e foram elaboradas, sobretudo porque podiam aj
udar a explicar o insuficiente desempenho de Jesus no papel de Messias dos judeu
s.
Foi um choque para nós descobrir que tudo era mera suposição, e não fatos comprovados. N
enhuma dessas afinidades baseia-se na qualidade de evidência normalmente exigida p
elos historiadores. Não há provas concretas de que os elementos pagãos foram incorpora
dos por Paulo. Podem muito bem ter sido introduzidos por seus companheiros missi
onários - a propagação do cristianismo, apesar da bem-sucedida publicidade de Paulo, não
se deve inteiramente a ele. Quando ele chegou a Roma, por exemplo, descobriu qu
e já havia cristãos ali.
Ao que parece, mesmo no século XX, com todo o seu ceticismo, é tão disseminada a aceit
ação tácita da história do cristianismo que até os críticos acadêmicos normalmente não cons
reconhecer suas próprias pré-concepções como tal. Por exemplo, A. N. Wilson, geralmente
um comentador perspicaz e analítico, escreveu as duas frases seguintes sem aparen
temente notar a contradição entre elas:
... antes de começar [tentar responder às questões sobre o Jesus histórico], é necessári
esvaziar a mente e não tomar nada por certo. O centro dos ensinamentos de Jesus e
ra sua crença em Deus e sua crença no judaísmo.
Decidimos ver o que aconteceria se de fato questionássemos esses pressupostos.
A versão comum do desenvolvimento dos primórdios do cristianismo sempre repousa na p
remissa básica de que Jesus era de religião judaica, O que significa que muitos outr
os aspectos do relato evangélico, que de outra forma seriam intrigantes,ficam auto
maticamente rejeitados. Pesquisamos mais a fundo o pressuposto judaísmo de Jesus -
o que implica, sem dúvida, um substrato tanto étnico quanto religioso - e logo nos
vimos contestando essa suposição. (Ele pode ter sido etnicamente um judeu, mas não de
religião judaica: para os propósitos desse argumento iremos utilizar o termo "judeu"
quando nos referirmos a Jesus apenas no último sentido, a menos que esteja dito q
ue o sentido é outro.)
Claro que nosso desafio a essa suposição nos provocou certo temor: estávamos, afinal,
batendo de frente com cerca de um século de estudos do Novo Testamento. Ficamos, e
ntão, mais do que aliviados ao descobrir que a última tendência nos estudos do Novo Te
stamento baseava-se exatamente na mesma questão: Jesus era realmente judeu?
A primeira obra relacionada com essa questão a alcançar repercussão popular foi The Lo
st Gospel, de Burton L. Mack, de 1994, embora muitos outros estudiosos tenham pu
blicado os resultados de pesquisas que fizeram sobre o mesmo tema em periódicos es
pecializados já no final dos anos 80.
Mack abordou o problema do ponto de vista dos ensinamentos de Jesus, não da história
de vida dele. Baseou seu argumento na fonte perdida dos Evangelhos Sinópticos, co
nhecida como Q (da palavra alemã Quelle, que significa "fonte"), ou pelo menos no
que pode ser reconstruído a partir da comparação desses Evangelhos. Ele conclui que os
ensinamentos de Jesus não provinham do judaísmo, estando mais proximamente relacion
ados com os conceitos, e mesmo com o estilo, de certas escolas filosóficas gregas,
especialmente a dos cínicos.
Acredita-se seguramente que Q tenha sido uma coletânea de ditos e ensinamentos de
Jesus, encaixando-se de modo perfeito no gênero específico dos textos contemporâneos c
onhecidos como "literatura da sabedoria", que se sabia existir entre os antigos
hebreus, mas que não era de forma alguma exclusiva da religião ou cultura judaica. T
ambém era popular por todo o mundo helenístico, no Oriente Próximo e no antigo Egito.
Kloppenborg, uma autoridade no assunto, afirma que Q se aproxima mais do modelo
dos "livros de instrução" helenísticos. Q difere desses livros por incluir material pr
ofético e apocalíptico, mas Mack acredita que somente os "ensinamentos de sabedoria"
constituíam o Q original, e que o outro material foi acrescentado depois.
Mack e os outros estudiosos que trabalhavam na mesma linha baseiam suas conclusões
nos ensinamentos e ditos de Jesus. Ainda rejeitam os acontecimentos tal como re
latados nos Evangelhos porque não se encaixam nas tradições dos judeus nem dos cínicos,
e sugerem que o deus morto e ressurrecto e os temas das escolas de mistério são inve
nções posteriores dos primeiros cristãos.
Fizemos a nós mesmos as seguintes perguntas: há alguma evidência que demonstre que Jes
us não era judeu? Por outro lado, havia alguma evidência que demonstrasse conclusiva
mente que era? Os elementos das escolas de mistérios tornam mais fácil ou mais difícil
encontrar uma explicação?
É certo que o ministério de Jesus tem lugar dentro de um contexto judeu - na Judéia do
primeiro século -, e muitos daqueles que o seguiam também eram judeus. Seus discípulo
s mais próximos e aqueles que escreveram os Evangelhos parecem ter acreditado que
ele era judeu. Entretanto, seus seguidores aparentemente o consideravam uma espéci
e de enigma - por exemplo, não estavam certos de que ele era o Messias -, e os aut
ores dos Evangelhos claramente fizeram um enorme esforço para conciliar os element
os contraditórios de sua vida e ensinamento. Parece que não tinham certeza sobre com
o falar dele.
À primeira vista parece haver uma razão bastante boa para acreditar que Jesus era ju
deu. Ele falava com freqüência nas figuras religiosas do Antigo Testamento, tais com
o Abraão e Moisés, e muitas vezes engajava-se em debates com fariseus sobre pontos d
a lei judaica - se ele não fosse judeu certamente não haveria qualquer razão para que
fizesse isso de modo tão obsessivo.
Muitos estudiosos concordam, porém, que essas passagens são as menos prováveis de cont
er palavras genuínas de Jesus. Foram acrescentadas depois porque os Apóstolos viram-
se obrigados a debater pontos da lei judaica e sentiram necessidade de criar uma
justificativa anterior para seus argumentos, utilizando o próprio Jesus. A prova
disso é que os antagonistas nas histórias do Novo Testamento geralmente são os fariseu
s, que na verdade não tinham nenhuma função ou autoridade especial, ainda mais na Gali
léia, no tempo de Jesus, enquanto que na época em que os Evangelhos estavam sendo co
mpilados eles gozavam de influência." Como diz Morton Smith:
Pode-se demonstrar que quase a totalidade das referências dos Evangelhos aos far
iseus são derivadas dos anos 70, 80 e 90, os últimos anos nos quais os Evangelhos es
tavam sendo editados.
A única maneira de entender as verdadeiras origens de Jesus é colocá-lo no contexto de
sua época e lugar. Embora haja um debate contínuo sobre onde nasceu e cresceu, como
veremos, os Evangelhos concordam que ele deu início a sua missão a partir da Galiléia
. É improvável, porém, que fosse de lá, porque embora os Evangelhos façam referência ao car
cterístico sotaque galileu dos discípulos - que era considerado comicamente rústico pe
los nascidos na Judéia -, não se diz a mesma coisa sobre Jesus."
Portanto, o que é que sabemos sobre a Galiléia da época de Jesus? Mack assim resume a
visão acadêmica corrente sobre aquele lugar naquela época:
No mundo da imaginação cristã, a Galiléia pertencia à Palestina, a religião da Palestina
ra o judaísmo e, portanto, todos na Galiléia deveriam ser judeus. Uma vez que essa i
magem está errada... o leitor precisa ter em mente uma imagem mais verdadeira."
Aquilo que pensamos ser o judaísmo na época de Jesus - a partir da imagem que nos of
erecem os Evangelhos - na verdade era apenas o judaísmo de templo da Judéia, cujo ce
ntro de oração era o Templo de Jerusalém. Foi fundado pelos judeus após sua traumática pas
sagem pelo cativeiro na Babilônia e estava em constante estado de mudança. Nem todos
os judeus, porém, foram exilados, e sua versão do judaísmo desenvolveu-se separadamen
te e era muito diferente daquela dos ex-cativos que retornaram. A religião dos não-e
xilados era especialmente praticada na Samaria e na Galiléia, ao norte, e na Iduméia
, ao sul da Judéia.
A Galiléia, entretanto, dificilmente seria um lugar apropriado para o judaísmo fervo
roso, de qualquer tipo. Fizera parte, é verdade, do reino de Israel, mas por um br
eve período e muitos séculos antes de Jesus aparecer, e desde então estivera sob influên
cia de diversas culturas diferentes. Não sem razão a Galiléia era conhecida como "a pátr
ia dos gentios"." Chegava a ser mais cosmopolita do que Samaria, que ficava entr
e a Judéia e a Galiléia. Como diz Mack: "Seria errado imaginar que a Galiléia repentin
amente foi convertida à lealdade e à cultura judaicas."
A Galiléia, com seu clima bom para a agricultura e pesca lucrativa no lago da Gali
léia, era uma região rica e fértil.Tinha amplas ligações comerciais com outras culturas do
mundo helenístico e ficava no centro de uma rede de rotas de comércio que levavam a
o restante da Síria, Babilônia e Egito. Abrigava povos de muitas terras e culturas e
mesmo os homens das tribos beduínas eram visitantes comuns. Como assinala Morton
Smith, as influências principais na religião da Galiléia naquela época eram os "nativos,
os palestinos, o paganismo semítico, os gregos, persas, fenícios e egípcios".
A Galiléia era conhecida por sua bravia Independência. Porém, nas palavras de Mack, a
região não tinha "uma capital, nem templo e nem hierarquia de sacerdotes". Significa
tivamente, a sinagoga mais antiga conhecida na Galiléia data apenas do século III da
era cristã.
A região fora anexada a Israel no ano 100 a.C. e logo depois, em 63 a.C., os roman
os conquistaram toda a Palestina e fizeram dela uma província de seu Império. Na época
do nascimento de Jesus, toda a Israel era governada por Herodes, o Grande - um
rei-títere controlado pelos romanos -, que era na verdade um indumiano politeísta. Q
uando Jesus iniciou seu ministério, porém, a terra estava dividida entre os três filho
s de Herodes. Herodes Antipas governava a Galiléia, e (após seu irmão Arquelau ter sid
o forçado a se refugiar na propriedade da família de Herodes no sul da França) a Judéia
era governada diretamente por Roma, através de seu governador Pôncio Pilatos.
Na época de Jesus, a Galiléia era uma região próspera e cosmopolita não o lugar remoto e rú
tico da imaginação popular - e não era nem mesmo predominantemente judia; para os gali
leus, as autoridades em Jerusalém não prevaleciam mais do que seus senhores romanos.
Uma vez que se compreenda que a Galiléia era muito diferente da imagem tradicional
que se tem do lugar, imediatamente começam a brotar questões sobre as reais intenções e
motivações de Cristo. Se a Galiléia tinha realmente uma cultura sofisticada sem qualq
uer fanatismo contra os romanos ou a favor dos judeus, então estaria realmente Jes
us tentando sublevar a população para uma rebelião contra os romanos, como sugerem alg
uns comentadores modernos? E seria a Galiléia o melhor lugar para iniciar algum ti
po de campanha de reforma do judaísmo, como acreditam outros?
Embora houvesse judeus na Galiléia, havia também muitas outras religiões que coexistia
m em uma invejável atmosfera de tolerância. Havia até mesmo algumas formas "heréticas" d
e judaísmo que lá floresceram, o que torna ainda mais implausível a idéia de que aquele
solo era promissor para se implantar qualquer tipo de reforma judaica. Em uma re
gião onde, aparentemente, várias formas religiosas conviviam pacificamente, uma tent
ativa de redefinir a corrente principal do judaísmo estaria fadada ao fracasso. E
isso explicaria ainda menos a culminação da missão de Jesus em Jerusalém.
Como diz Schonfield em The Passover Plot:
...os judeus consideravam o norte da Palestina como a terra natural da heresia
... Não sabemos muito sobre a antiga religião israelita, mas parece que ela havia ab
sorvido uma boa parte dos cultos sírios e fenícios, que não estavam nem mesmo perto de
ser erradicados, como acontecera no sul, pelo zelo reformista de Ezra e seus su
cessores.
Um outro território do norte que viria a ser importante para Jesus era a Samaria,
celebrizada pela história do Bom Samaritano. Devido a inúmeros sermões sobre o assunto
, os freqüentadores de igreja entendem que os samaritanos eram injuriados pelos ou
tros judeus, e que a história do samaritano que cruzou a estrada para socorrer uma
vítima de assalto é um exemplo perfeito da necessidade de reconhecer o potencial pa
ra o bem em qualquer pessoa.
Entretanto, há uma outra razão para se levar a Samaria seriamente em conta no contex
to de nossa investigação. Os samaritanos tinham suas próprias expectativas com respeit
o à chegada de um Messias, que eles chamavam de Ta'eb e que era consideravelmente
diferente daquele da versão judaica. No Evangelho de João (4:6-10) lemos que Jesus e
ncontrou num poço uma mulher samaritana que o reconheceu como o Messias, provavelm
ente como Ta'eb, o que indica que seu judaísmo era, no mínimo, heterodoxo. Talvez Je
sus tenha inventado a parábola do Bom Samaritano como uma forma de "agradecimento
aos samaritanos por seu apoio.
Um outro engano sobre Jesus está na idéia de que ele era "Jesus de Nazaré. - ou seja,
que ele viera da cidade desse nome, que existe hoje na moderna Israel. Não existe,
porém, nenhum registro desse lugar até o século III.A palavra deve ser nazoreano, que
identifica Jesus como membro de uma das muitas seitas que coletivamente utiliza
vam esse nome, mas não como seu fundador. Os nazorenos eram um grupo de seitas cor
relatas sobre as quais pouco se conhece. Entretanto, a palavra por si só é interessa
nte, já que deriva do hebreu notsrim, que significa "Guardiães ou Preservadores... o
s que guardam o verdadeiro ensinamento e tradição, ou que cuidam de determinados seg
redos que não divulgavam para outros "
Isso por si só vai contra um dos maiores princípios do cristianismo, que é o de que a
religião é para todos e não tem segredos - o extremo oposto das escolas de mistérios, qu
e ofereciam diferentes graus de conhecimento ou iluminação àqueles que galgavam os deg
raus cada vez mais íngremes da iniciação. Para esses cultos, a sabedoria é oferecida som
ente se conquistada, e o pupilo obtém maiores percepções apenas quando seus mestres es
pirituais consideram que ele está pronto. Essa era uma noção bastante comum na época de
Jesus: as escolas de mistério gregas, romanas, babilônias e egípcias costumavam empreg
ar essa estrutura de ensino e guardavam seus segredos zelosamente. Hoje em dia e
ssa abordagem das escolas de mistério é empregada em muitas escolas religiosas e fil
osóficas do Oriente (incluindo o budismo zen), bem como por grupos como os maçons e
templários. O próprio conceito da iniciação é também o que dá nome ao ocultismo, pois, como
mos, a palavra significa apenas "escondido. - os mistérios permanecem secretos até q
ue tenha chegado o momento certo e o aluno esteja pronto. Se os ensinamentos de
Jesus não se destinavam às massas, então por sua própria natureza eram elitistas e hierárq
uicos - e ocultos. E, como vimos quando reavaliamos o verdadeiro status de Maria
Madalena, as semelhanças entre as escolas de mistérios e o movimento de Jesus são num
erosas demais para ser ignoradas.
Há muitos outros equívocos sobre Jesus. Por exemplo, a história do natal é basicamente u
m conto de fadas - relacionado com os mitos de natividade de outros deuses morta
is -, e há dúvidas inclusive de que Jesus tenha realmente nascido em Belém. De fato, o
Evangelho de João (7:42) declara explicitamente que ele não nasceu lá.
Embora muitos dos elementos da Natividade tenham derivado claramente dos mitos d
e nascimento de outros deuses mortos e ressurrectos, a visita dos sábios vindos do
Oriente baseia-se num relato da época sobre a vida do imperador Nero. Algumas vez
es essas figuras são conhecidas como magos, que é exatamente o título dado a uma tradição
dos magos, ou feiticeiros, persas. Parece ser muito estranho ter o equivalente d
e três Aleister Crowley visitando o menino Jesus para dar-lhe presentes, sem uma p
alavra sequer de crítica ou censura por parte dos autores dos Evangelhos. E a julg
ar pelo fato de que afirmavam ter seguido a estrela de Belém, eram também astrólogos (
a astronomia enquanto disciplina separada era desconhecida naqueles dias). A his
tória de feiticeiros dando a Jesus ouro, incenso e mirra definitivamente é algo que
deveria nos impressionar. (Como vimos, porém, Leonardo em sua Adoração dos reis magos
omitiu o ouro, símbolo de realeza e de perfeição.)
Vimos também que Jesus é mencionado como um naggar, que significa tanto carpinteiro
como erudito ou homem instruído - no caso dele, provavelmente o último. Tampouco seu
s discípulos mais famosos eram os humildes pescadores da lenda: A. N. Wilson obser
va que na verdade eram donos de um comércio de peixes no lago da Galiléia." (Além diss
o, como reforça Morton Marks, alguns dos discípulos obviamente não eram judeus: Felipe
é um nome grego, por exemplo.")
Muitos comentadores têm usado as parábolas como prova de que Jesus era de origem hum
ilde: suas analogias freqüentemente giravam em torno da vida rural cotidiana e de
situações domésticas, e isso é tomado como prova de que ele tinha experiência pessoal ness
as coisas. Outros assinalam, entretanto, que seu imaginário realmente revela apena
s um conhecimento superficial das realidades mundanas da vida - é como se ele foss
e na verdade uma pessoa de classe social bem mais alta, que deliberadamente tent
ava falar a linguagem das massas, como um aristocrata do partido conservador ing
lês dirigindo-se a eleitores da classe trabalhadora com termos que ele espera sere
m familiares a estes.
Mesmo que o casamento em Canã não fosse, como acreditam alguns, a ocasião de seu próprio
casamento com Madalena, ainda assim demonstra que ele se movimentava entre os vár
ios círculos da sociedade", a julgar pelas celebrações. E o episódio dos soldados romanos
jogando dados aos pés da cruz para ver quem ficava com as roupas de Jesus, sugere
que valia a pena disputá-las. Ninguém aposta para ganhar trapos.
Portanto, o quadro que surge sobre os antecedentes de Jesus é significativamente d
iferente daquele que a maioria de nós cresceu ouvindo. A próxima questão é saber se há alg
um pressuposto sobre Jesus que seja plenamente justificado? Por exemplo, há alguma
evidência positiva nos Evangelhos para a noção de que Jesus não era judeu?
Após o batismo, Jesus se retirou no deserto onde foi testado pelo Demônio, que tento
u seduzi-lo a revelar sua divindade. Mais uma vez, entretanto, isso de forma alg
uma é claro. Alguns sugerem que a tentação revela apenas a implícita rejeição de Jesus ao p
rio Jeová. Isso pode ser discutível, mas um episódio reflete definitivamente sua atitu
de para com o Deus judeu.
Uma das passagens mais famosas do Novo Testamento é quando Jesus, irado ao ver os
comerciantes de dinheiro no Templo, derruba suas bancas. Embora esse pareça ser um
episódio simples, na verdade coloca um outro grande problema, há muito reconhecido
por teólogos e estudiosos do Novo Testamento.
Embora as ações de Jesus sejam geralmente explicadas pelo horror que ele sentiu ao v
er um local sagrado ser contaminado por transações financeiras, essa é uma atitude mui
to ocidental e bastante recente na verdade. Pois a troca de dinheiro a fim de co
mprar animais para o sacrifício no Templo de Jerusalém não era algo nem corrupto nem a
busivo. Era uma parte fundamental da veneração. Como enfatiza John Dominic Crossa, c
atedrático de Estudos Bíblicos da Universidade de Chicago: "Não há nenhum indício de que a
lguém estivesse fazendo alguma coisa imprópria, nem em termos financeiros nem de sac
rifícios . E segue dizendo que isso foi "um ataque direcionado à própria existência do Tem
plo... uma negação simbólica de tudo... o que representava o Templo".
Alguns tentaram explicar esse gesto - que foi central no ministério de Jesus - arg
umentando que ele expressava sua insatisfação com o regime que então vigorava no Templ
o. Porém, no contexto da época e do lugar, tal reação teria sido exagerada, a ponto de i
ndicar desequilíbrio mental. Para fazer uma analogia atual, seria como um anglican
o que, para protestar contra a ordenação de mulheres, fosse à abadia de Westminster e
pisoteasse a cruz sobre o altar. Isso simplesmente não aconteceria, porque os devo
tos sabem traçar o limite entre uma ação que é apropriada - por mais simbólica que seja -
e o tipo de protesto que se constitui na verdade em um sacrilégio. E o que Jesus f
ez foi um sacrilégio.
Assim, o judaísmo de Jesus era, para dizer o mínimo, heterodoxo. Isso abre caminho p
ara novas hipóteses sobre o que ele realmente era. E há claras indicações de que fazia p
arte de uma escola de mistério. Existem, porém, episódios nos Evangelhos que indiquem
ser esse o caso?
Foi quase um choque descobrir, logo no início de nossas investigações, que somente uns
poucos pesquisadores pareciam ter feito a pergunta que para nós era fundamental:
"Onde será que João Batista foi buscar o ritual do batismo?" Investigações posteriores r
evelaram não haver qualquer precedente desse ritual no judaísmo, embora sejam encont
radas referências de rituais de lavagem - imersões repetidas simbolizando a purificação
- nos Manuscritos do Mar Morto, Entretanto, não é correto descrever esses rituais co
mo "batismos": o que João propunha, na verdade, era um ato único de iniciação, de mudança
de vida, que era precedido pela confissão e arrependimento dos pecados. O fato de
que esse ritual não tinha precedente no judaísmo é indicado pelo título ou apelido de João
- o Batista, o único e não um entre muitos. Realmente, o batismo sempre foi tido co
mo uma inovação introduzida por João, embora haja de fato muitos precedentes e paralel
os exatos fora do mundo judaico.
O batismo como um símbolo externo e visível de uma renovação espiritual interna fazia pa
rte de muitos cultos de mistério que existiam por todo o mundo helenístico naquela épo
ca.Tinha uma tradição particularmente longa no culto à Isis do antigo Egito; e, signif
icativamente, o batismo em seus templos, às margens do Nilo, era precedido pelo ar
rependimento público e a confissão dos pecados ao sacerdote. (Isso será discutido mais
de perto no próximo capítulo,)
Além disso, aquele foi o único período na longa história da religião de Isis durante o qua
l foram enviados missionários a países além das fronteiras do Egito; assim, parece pro
vável que João tenha sido particularmente influenciado pelo ritual de batismo dos egíp
cios. Como veremos, pode ser que ele tenha tido uma experiência pessoal da religião
de Isis no próprio Egito, pois, segundo antigas tradições cristãs, a família de João teria
ugido para o Egito a fim de escapar da fúria de Herodes - tradições que encontraram ex
pressão na Virgem dos rochedos de Leonardo da Vinci.
O batismo de Jesus apresenta diversos problemas. Primeiro, e de modo algum o men
or deles, é a idéia de que um Filho de Deus, e portanto sem pecados, realmente neces
sitasse purificar-se de seus pecados. Dizer que Jesus estava dando um bom exempl
o a seus seguidores - como muitos tentaram argumentar - não serve, de modo algum,
de explicação, pois em nenhum lugar nos Evangelhos é possível encontrar algo que corrobo
re tal noção.Também há, por outro lado, significativas anomalias no próprio imaginário que
s relatos evangélicos empregam ao descrever o batismo de Jesus por João. Enquanto Mo
rton Smith diz que a aparição da pomba não tem paralelo ou precedente na tradição judaica,
Desmond Stewart vai mais além e encontra claras ligações com o simbolismo e as práticas
do Egito. Diz ele:
Embora Jeová supostamente tenha enviado corvos para alimentar um profeta, ele
normalmente não se manifestava na forma de pássaros descendo dos céus, As pombas, de
qualquer modo, eram sagradas para as deusas pagãs do amor, então conhecidas como Afr
odite ou Astarte...
Para o que Jesus pensou ter visto, os egípcios têm uma explicação melhor... Quando Re [o
u Ra,o sol-deus dos egípcios] abraçou seu amado, o faraó, acolhendo-o em seu peito, el
e o fez na aparência de Horus, cujo símbolo mais comum era o falcão...
A adoção, em um ritual de batismo, de um mortal por uma deidade não representava um pr
oblema para os egípcios.
A principal deidade egípcia geralmente associada com o símbolo de uma pomba é, entreta
nto, mais uma vez, Ísis, conhecida como a "Rainha dos Céus", "Estrela do Mar" (Stell
a Maris) e "Mãe de Deus" muito antes de que a "Virgem" Maria nascesse. Ísis era freqüe
ntemente retratada amamentando Horus, o mágico rebento de sua união com o morto Osíris
. No festival anual que marcava a morte e ressurreição de Osíris três dias depois, dizia
-se que o sol tornara-se negro no instante de sua morte, quando ele adentrou o S
ubmundo. (E é um sol negro que brilha sobre a cena da crucificação no mural de Jean Co
cteau em Londres.)
Dado o zelo missionário incomum de alguns grupos devotos de Ísis na época, e a proximi
dade geográfica do Egito - para não mencionar a natureza cosmopolita da Galiléia -, não é
de surpreender que João, Jesus e aqueles que os seguiam tivessem sido influenciado
s pelo culto a Ísis.
O que causa admiração é que a maioria dos cristãos ainda é encorajada a pensar que sua cre
nça é única, em todos e cada um de seus aspectos, incontaminada por nenhuma outra filo
sofia ou religião, quando isso claramente não é verdade. Considere, por exemplo, a Últim
a Ceia, na qual Jesus teria dado início ao sacramento da refeição sagrada do pão e vinho
, que representava o sacrifício de seu corpo e de seu sangue.
A. N. Wilson escreve: "Isso apresenta fortes indícios dos cultos de mistério do Medi
terrâneo e pouco tem em comum com o judaísmo". Ele então utiliza esse paralelo como ev
idência para sua idéia de que a Última Ceia foi uma invenção dos autores dos Evangelhos; m
as e se ela realmente aconteceu como um ritual pagão?
Desmond Stewart reforça o paralelo dizendo:
(Jesus) pegou o pão e o vinho, elementos do cotidiano da sociedade e que consti
tuem no entanto, o ápice do simbolismo de Osíris, e os transformou, não em sacrifício, m
as em um elo entre dois estados de ser.
Os cristãos vêem o sacramento do pão e vinho - o clímax da comunhão protestante e da missa
católica - como uma exclusividade de Jesus. De fato, isso já era uma prática comum de
todos os principais Deuses Mortais das escolas de mistério, incluindo as de Dioni
so, Tamus e Osíris. Acreditava-se que tal ritual era um meio de se tornar um com o
deus em questão e alcançar elevação espiritual (embora os romanos expressassem horror d
iante do antropofagismo aí implícito). Todos os outros cultos estavam bem representa
dos na Palestina da época da Última Ceia, portanto sua influência é compreensível.
De todos os quatro Evangelhos, talvez seja significativo que o de João fale da Cei
a mas omita qualquer menção à cerimônia do pão e vinho - talvez porque não tenha sido nessa
ocasião que ela realmente teve início. No Evangelho de João (6:54) está implícito que o sa
cramento do pão e vinho foi promovido desde os primeiros dias da trajetória de Jesus
na Galiléia.
O próprio conceito de comer e beber o deus - o ritual da missa - é abominável aos olho
s dos judeus. Como observa Desmond Stewart:
A noção de que o milho fosse o próprio Osíris era comum aos egípcios, e uma idéia semelha
te estava vinculada a Deméter e Perséfone [deusas] na própria Hélade [Grécia].
Um outro paralelo com as escolas de mistério - e que não encontra equivalente na cre
nça ou prática judaica - é a história da ressurreição de Lázaro. Trata-se claramente de um
de iniciação: Lázaro é "despertado" pela morte e renascimento simbólicos, um elemento com
um das escolas de mistério da época e que se repete em certos rituais da maçonaria atu
al. O único Evangelho canônico a registrar esse episódio, o de João, faz dele um milagre
, uma ressurreição literal dentre os mortos. O Evangelho Secreto de Marcos, porém, dei
xa claro que é apenas um ato simbólico, frisando a "morte" do antigo ser de Lázaro e s
eu renascimento como um ser mais espiritualizado. Provavelmente o episódio foi cor
tado dos outros Evangelhos porque era uma alusão por demais óbvia às atividades das es
colas de mistério. Porém, no que diz respeito a esta investigação, o aspecto mais signif
icativo sobre esse ritual é sua correspondência mais direta com as cerimônias de "rena
scimento" do culto de Ísis no Egito. Como diz Desmond Stewart (referindo-se ao mis
ticismo do primeiro século, ligado a Ísis):
...a evidência de Betânia indica que Jesus praticava um tipo semelhante de mistério
ao que Lúcio Apuleio experimentou no culto de Ísis.
Mesmo a crucificação reforça a negação do povo judeu de que Jesus fosse o Messias esperado
, pois morrer em circunstâncias tão desonrosas seria a última coisa que se poderia esp
erar de um Messias que a todos se imporia. No entanto, isso não causa qualquer des
conforto entre os cristãos, pois sustentam que o messiado de Jesus foi muito além, e
m termos espirituais, do que os judeus esperavam. Entretanto, existem outros pro
blemas com o relato do Novo Testamento sobre a morte de Jesus. Parece que a inte
rpretação cristã de que sua morte constitui o supremo sacrifício místico foi inventada, na
verdade, posteriormente, a fim de explicar a discrepância entre o que esperavam o
s judeus de seu Messias e o que realmente aconteceu a Jesus.
Chegou-se a sugerir que Jesus e aqueles que pertenciam a seu círculo desenvolveram
seu próprio conceito do Messias, incorporando-lhe o ideal do Justo Sofredor, deri
vado da figura de José nos textos apócrifos judeus. Significativamente, porém, no nort
e herético da Palestina, o José "sofredor" absorvera algumas das características do cu
lto sírio a Adônis-Tamus. Os estudiosos observaram também a influência do deus pastor Ta
mus no Cântico dos Cânticos, que é, como vimos, de suma importância para o culto da Mado
na Negra. É provável que Jesus chamasse a si mesmo de Bom Pastor em referência a Tamus
, e que seus seguidores na época estivessem familiarizados com o termo; Belém era um
dos principais centros do culto a Adônis-Tamus. (É interessante que cristãos, como São
Jerônimo, tenham se exasperado com a existência de um templo a Tamus no suposto loca
l de nascimento de Jesus em Belém.)
É digno de nota, entretanto, que embora muitos comentadores atuais reconheçam a pres
ença de uma forte influência pagã na vida e nos ensinamentos de Jesus, não se animem a e
xplorá-la além da superficialidade. Por exemplo, como diz Hugh Schonfield:
Deve-se a um nazoreano da Galiléia a percepção de que a morte e ressurreição era uma pon
te entre duas fases [do Justo Sofredor e do Rei Messiânico]. A própria tradição de uma t
erra onde Adônis anualmente morria e renascia parecia clamar por isso.
Geoffrey Ashe admite: "Cristo tornou-se um Salvador visivelmente semelhante aos
deus mortos-ressurrectos dos Mistérios, Osíris, Adônis e os demais."
Entretanto, o arquétipo que mais se aproxima da vida e história de Jesus, tal como e
la nos chegou, é a do deus egípcio Osíris, consorte de Ísis. Tradicionalmente ele morria
em uma sexta-feira e renascia após três dias. E existem pistas de que nos primórdios
do cristianismo o título Christos era confundido com outra palavra grega, Chrestos
, que significa gentil ou bondoso. Alguns dos primeiros manuscritos gregos dos E
vangelhos utilizam essas palavras no lugar de Christos. Porém, Chrestos era um dos
epítetos tradicionalmente dirigidos a Osíris -,e, o que é significativo, há também uma in
scrição em Delos para Chreste Isis.
A súplica de Jesus na cruz também abre espaço para uma interpretação dentro dos moldes do
paganismo. Tanto a versão de Marcos, "eloi eloi!" quanto a de Mateus, "eli eli!",
são traduzidas como "Meu Deus! Meu Deus! [por que me abandonaste?]", embora se reg
istre que alguns dos circunstantes entenderam mal o que ele dissera e pensaram q
ue estivesse chamando pelo profeta Elias, a quem o próprio Jesus especificamente a
ssociara a João Batista. Porém, em aramaico "Meu Deus" deveria ser ilahi. Desmond St
ewart sugere que a palavra era, na verdade , Helios, o nome do deus-sol - o que é
particularmente interessante porque a súplica está ligada ao anômalo período da escuridão
em plena tarde. De fato, um dos primeiros manuscritos conhecidos do Novo Testame
nto diz que os circunstantes pensaram que Jesus estava chamando por Helios, cujo
culto - bastante difundido na Síria até o século IV - foi cristianizado com a substit
uição do nome por Elias. E obviamente um deus sol é a quintessência do ciclo de morte e
renascimento.
Podemos ver, portanto, que Jesus se enquadra facilmente na tradição do deus mortal,
mas esse arquétipo não constitui o quadro integral dos antigos mistérios. O deus - Osír
is, Tamus, Atis, Dioniso ou qualquer outro - era inevitavelmente associado com s
ua consorte, a deusa, que geralmente desempenhava o papel principal no drama da
ressurreição. Como coloca Geoffrey Ashe:
O deus companheiro era sempre o amante condenado e trágico da Deusa, que morria an
ualmente com o verde da natureza e renascia na primavera. ..
Se Jesus de fato estava cumprindo uma tradição de "Deus Mortal", é evidente que algo e
stava faltando. Ashe acrescenta:
Em seu papel de Salvador morto e renascido ele não poderia ser alguém solitário. Tai
s deuses normalmente nunca faziam tal coisa... Não haveria Osíris sem Ísis, nem Atis s
em Cibele.
Os críticos podem dizer que, como Jesus não tinha uma deusa-companheira, ele não poder
ia estar representando o papel de um deus mortal. Ele era dizem - único em sua ver
dadeira divindade e não precisava de mulher alguma para compartilhar isso com ele.
Mas, e se ele realmente tivesse uma companheira? E com certeza tinha - é esse con
hecimento que tem sido acalentado em segredo por gerações de "hereges". A "Ísis" de Je
sus era Maria Madalena.
Os egípcios se dirigiam a sua rainha Ísis como "Soberana dos deuses... Tu, senhora,
de vestes vermelhas... soberana e senhora do sepulcro..." Madalena tradicionalme
nte é retratada com vestes vermelhas, o que tem sido considerado como uma referência
a ela ter sido uma "mulher escarlate" (expressão pejorativa que designa uma mulhe
r promíscua, uma prostituta). E foi Madalena quem presidiu as cerimônias na tumba de
Jesus.
Se aceitamos isso, grande parte do que foi perdido, deliberadamente obscurecido
e distorcido finalmente se encaixa, incluindo a própria natureza do que pode ser c
hamado de verdadeiro cristianismo.
Apesar das primeiras impressões, o Princípio Feminino não está ausente dos Evangelhos -
pelo menos não dos textos originais. As famosas palavras iniciais do Quarto Evange
lho são "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus". Em
bora o conceito do Verbo (Logos) seja derivado das idéias do filósofo judeu neo-platôn
ico Filo de Alexandria, contemporâneo de Jesus, nessa versão de João ele parece ser ex
plicitamente Feminino. Logos é um substantivo masculino mas, paradoxalmente, o con
ceito que ele descreve parece ser feminino. É evidente que alguma confusão se fez qu
ando o Evangelho foi extraído de sua fonte original, e posteriormente viemos a per
ceber o significado das origens verdadeiras dessa passagem.
A frase "e o Verbo estava em Deus" é uma péssima tradução, que modifica completamente o
sentido verdadeiro, mas, convenientemente, remove algumas implicações muito embaraços
as. Pois as palavras gregas originais são pros ton theon, que literalmente signifi
cam "indo em direção a Deus" e expressam o significado de um homem buscando unidade
com uma mulher. Como nos diz George Witterschein:
... podemos até mesmo utilizar a palavra erótico para descrever o anseio de que a
unidade sobrepuje a separação.
A chave de tudo isso... era a atração entre homem e mulher, que equivale... à atração entr
e o Verbo e Deus.
Em outras palavras, o Verbo é feminino. E, significativamente, a tradução mais exata d
as linhas iniciais do Evangelho de João é:
No princípio era o Verbo, e o Verbo foi ao encontro de Deus, e Deus era o que o
Verbo era. E estava com Deus no princípio.
Portanto o Verbo era uma força distintamente separada de Deus. É significativo que g
eralmente se entenda o Verbo e o Espírito Santo como uma só coisa, embora o termo or
iginal para o último fosse inequivocamente feminino. Era Sophia.
Os conceitos evocados nessas linhas são claramente não-judaicos. Mas tampouco são orig
inários dos primórdios da "nova" religião emergente do cristianismo. O antropólogo norte
-americano Karl Luckert, que é também professor de História da Religião e realizou um im
portante estudo da religião egípcia e sua influência sobre os conceitos teológicos e fil
osóficos posteriores, não tem qualquer dúvida sobre sua verdadeira origem. Ele escreve
:
...em toda a literatura religiosa do chamado período helenístico,não há um resumo melh
or da antiga teologia ortodoxa egípcia do que o prólogo ao Evangelho de João.
Desmond Stewart, em sua obra The Foreigner, argumenta que Jesus foi criado no Eg
ito, se é que não nasceu lá. Mesmo assim poderia ser judeu, pois havia grandes e prósper
as comunidades judaicas no Egito naquela época. Stewart assinala que muitas coisas
sobre Jesus, desde a ausência de sotaque galileu até a ênfase e a essência implícita de s
uas parábolas, sugerem uma formação egípcia. E, é claro, o Novo Testamento nos diz que Mar
ia, José e o menino Jesus fugiram para o Egito a fim de escapar da fúria de Herodes.
Afora o episódio de Jesus discutindo com os anciãos no Templo de Jerusalém quando tin
ha doze anos, não há qualquer outra menção aos anos de sua juventude. Entretanto, mesmo
esse episódio é certamente uma invenção, pois nele Maria e José expressam sua ignorância so
re a divindade de Jesus - imediatamente depois da história de seu miraculoso nasci
mento, que eles com certeza deveriam conhecer! Então nada há de autêntico sobre Jesus
nos Evangelhos canônicos desde sua infância até sua maturidade. Por onde ele andou? Po
r que há esse silêncio sobre sua infância e adolescência? Porém, se ele esteve fora do país
vivendo numa outra cultura, os autores podem ter achado que seria impróprio - ou,
mais provavelmente, que não tinham talento para forjar toda uma série de eventos pa
ra preencher a lacuna.
Outras fontes confirmam essa visão. O Talmude, livro sagrado judeu, afirma dogmati
camente que Jesus viera do Egito, não da Galiléia ou de Nazaré. Além disso, e talvez ain
da mais revelador, o Talmude afirma sem qualquer dúvida que Jesus foi preso sob a
acusação de feitiçaria, e que ele era iniciado na magia egípcia. Esse conceito foi também
o ponto fundamental do livro de Morton Smith, Jesus the Magician (1978), no qual
sugere que tais milagres, como transformar a água em vinho e andar sobre a água, são
apenas parte do repertório tradicional dos feiticeiros egípcios, assim como o truque
da corda dos faquires orientais.
Smith dá muitos exemplos da semelhança entre os milagres de Jesus e os conjuros e en
cantamentos encontrados nos textos dos papiros egípcios da mesma época, bem como par
alelos com a vida e a obra do famoso mago Apolônio de Tiana (um contemporâneo mais j
ovem de Jesus) e de Simão Mago. A esses dois homens se creditavam habilidades quas
e idênticas às de Jesus.
Os cristãos podem dizer que isso não passou de um mal-entendido, por parte das massa
s crédulas, que deu margem ao surgimento de um Jesus ocultista: seus milagres eram
na verdade uma dádiva do Espírito Santo. Entretanto, trata-se de uma interpretação tão su
bjetiva quanto a outra e, na verdade, tem poucos argumentos a seu favor. Morton
Smith chama a atenção para um outro grande paradoxo do cristianismo:
...temos de levar em conta não apenas a tradição que tentou livrar Jesus da ac
usação de magia, mas também aquela que o reverenciou como um grande mago.
Existiam muitos magos itinerantes - feiticeiros - mais ou menos célebres, no mundo
greco-romano da época de Jesus, e um lugar-comum de seu repertório era a cura e o e
xorcismo - como acontece hoje em dia entre os homens santos indianos e os sacerd
otes do vodu, entre outros. (É discutível se as supostas curas são mesmo genuínas, mas o
assombro das multidões é bastante real, e a propaganda boca a boca contribui muito
para criar a reputação do fazedor de milagres.)
Smith sugere que o termo "Filho de Deus" - que sempre intrigou os teólogos e estud
iosos do Novo Testamento, pois não existe precedente judaico e não era um conceito a
ssociado ao Messias - é ele próprio derivado da tradição egípcio-greco-romana. O mago bem-
sucedido conquistava suas habilidades ao se permitir converter em um conduto de
deus, como os xamãs tribais. Portanto, sugere Smith, Jesus tornou-se o Filho de De
us ao ser magicamente possuído pela deidade.
O milagre da "água transformada em vinho" nas bodas de Canã revela suspeita semelhança
com um relato de uma cerimônia dionisíaca realizada em Sidon, até mesmo nas palavras
utilizadas. E, no mundo helenístico, Dioniso estava explicitamente associado a Osíri
s. Smith também extrai de dois textos mágicos egípcios o paralelo com a eucaristia, o
ritual de repartir o pão e o vinho - que é tão sagrado para os cristãos porque acreditam
que era praticado unicamente por Jesus. Diz Smith:
Estes são os paralelos mais próximos com o texto da eucaristia. Neles um deus-mago
dá seu próprio corpo e sangue para o receptor que, ao comê-lo, unir-se-á a ele em amor.
Até mesmo as palavras proferidas por Jesus são similares às dos textos de magia.
Existem outras pistas - na verdade nos próprios Evangelhos - de que muitos achavam
que Jesus era um mago. No Evangelho de João, os que entregam Jesus a Pilatos refe
rem-se a ele como um "malfeitor". No direito romano, esse era o termo utilizado
para designar um feiticeiro.
Nesse contexto, o aspecto mais significativo da pesquisa de Morton Smith é que, em
bora baseiem-se inteiramente na comparação entre os Evangelhos e os papiros sobre ma
gia, suas conclusões se encaixam exatamente no modo como Jesus é retratado no Talmud
e judeu e nos primeiros textos rabínicos. Estes nunca descreveram Jesus como um ju
deu que inventou uma forma herética de judaísmo, como muitos cristãos de hoje em dia a
creditam. Consideram-no ou como um judeu convertido a outra religião, ou como alguém
que nunca fora na verdade judeu. De fato, eles o denunciam especificamente como
um praticante da magia egípcia. O próprio Talmude declara, inequivocamente, que Jes
us passou seus anos de juventude no Egito e que lá ele aprendeu magia.
Em um conto da literatura rabínica, Jesus é comparado a um personagem anterior chama
do Ben Stada. Este era um judeu que tentara introduzir o culto de outras deidade
s pagãs, paralelamente ao de Jeová, e que tinha trazido as práticas da magia do Egito.
O conto enfatiza que, de modo similar, Jesus trouxera as práticas mágicas do Egito
para os judeus. Outros textos rabínicos são igualmente explícitos nesse ponto: Jesus "
praticava magia e ludibriou e desencaminhou o povo de Israel".
Fica claro que os judeus contemporâneos de Jesus viam-no como um adepto da magia e
gípcia. Seu crime, aos olhos destes, foi ter tentado introduzir idéias pagãs e deuses
pagãos no território judeu.
O Talmude e outras coletâneas de textos rabínicos podem ser rastreados somente até o séc
ulo III, dando margem a acusações de difamação deliberada por parte dos inimigos de Jesu
s, os judeus. Entretanto, essas acusações, que na essência são de feitiçaria, podem não ter
nascido apenas da malícia, como à primeira vista poderia parecer. São acusações incomuns p
ara serem forjadas, e existem indícios de que tais idéias sobre Jesus já eram corrente
s antes.
Justino Mártir, escrevendo por volta de 160 d.C., relata uma discussão com um judeu,
Trifo, que chama Jesus de "mago galileu". O filósofo platônico Celso, escrevendo po
r volta de 175 d.C., afirma que, embora Jesus tenha crescido na Galiléia, trabalho
u por algum tempo no Egito, onde aprendeu as técnicas da magia.
Como vimos, os autores dos Evangelhos não consideram vergonhoso nem chocante regis
trar que os magos prestaram homenagem a Jesus com seu ouro, incenso e mirra. Est
es com certeza não eram apenas sábios ou reis, mas membros de uma fraternidade ocult
a específica que se originou na Pérsia. E embora alguns comentadores tentem explicar
isso como o reconhecimento simbólico dos feiticeiros da superioridade do jovem Fi
lho de Deus, não há nenhuma indicação de tal interpretação nos próprios Evangelhos, onde a
ita dos magos tem a clara intenção de despertar respeito e admiração.
Morton Smith salienta que, embora a história tenha procurado minimizar o significa
do disso, os primeiros cristãos, especialmente os que viviam no Egito, praticavam
magia. Alguns dos primeiros artefatos cristãos conhecidos são amuletos mágicos, portan
do imagens de Jesus e palavras mágicas. A sugestão é óbvia: a primeira geração de seguidore
de Jesus o reconhecia como mago, ou porque sabiam que ele o era ou simplesmente
porque ele se encaixava perfeitamente na descrição de um.
Há, entretanto, um boato muito mais obscuro, corrente na época de Jesus, sobre seu e
nvolvimento com a feitiçaria - boato que não apenas reforça o que está escrito nos texto
s rabínicos como, se verdadeiro, pode resolver um persistente problema bíblico. Essa
acusação bizarra e chocante, que será discutida mais adiante, pode bem conter a chave
para grande parte do mistério que envolve o relacionamento entre Jesus e o Batist
a, e para a possível razão da importância do Batista para os grupos ocultos através dos
séculos.
Como já vimos, existem paralelos notáveis entre a vida de Jesus e a história de Osíris.
Porém, talvez ainda mais notável é que muitas das palavras de Jesus parecem ter sido r
etiradas na íntegra da religião egípcia. Por exemplo, Jesus disse (João 12:24): "Se o grão
de trigo que cai na terra não morrer, fica infecundo; mas, se morrer, produz muit
o fruto." Esse conceito e imaginário indiscutivelmente originam-se no culto de Osíri
s. E as palavras de Jesus "Na casa de meu Pai há muitas moradas" (João 14:2), que têm
intrigado gerações de cristãos, são explicitamente de Osíris e vêm diretamente do Livro dos
Mortos egípcio.
Mais apropriadamente chamado de Surgindo à luz do Dia, essa obra contém uma série de fór
mulas mágicas com as quais a alma podia vencer os terrores da vida após a morte, e e
ra lida para os agonizantes por um sacerdote ou sacerdotisa. O fato de Jesus con
hecer o livro sugere que ele estava familiarizado não apenas com os textos religio
sos do culto de Ísis/Osíris como também com sua magia - e como vimos, religião e magia e
ram a mesma coisa para os egípcios.
Osíris foi assassinado em uma sexta-feira e seu corpo, esquartejado, foi espalhado
por diferentes lugares. Após três dias, ele renasceu, graças à intervenção mágica de Ísis,
o havia pranteado por toda a terra. Na cerimônia anual do mistério de Osíris no Egito,
a alta sacerdotisa que representava Ísis lamentava-se: "Homens maus mataram meu a
mado, e não sei onde seu corpo está". Quando finalmente ela consegue juntar todas as
partes do corpo, diz: "Vê, encontrei-te... ó!, Osíris, vive, levanta-te, ó infeliz que
aqui jazes! Eu sou Ísis". O sacerdote que representava Osíris então se levantava e se
mostrava a seus seguidores, que expressavam dúvida e assombro ante a milagrosa res
surreição.
Compare a primeira frase com as palavras de Maria Madalena ao "jardineiro" (que
vem a ser Jesus): "Eles levaram meu senhor e não sei onde o puseram". ("Meu Senhor
" eram palavras comuns utilizadas por uma esposa para se referir a seu marido na
quela cultura.70) Talvez tenha havido um ritual na tumba no qual Madalena pronun
ciou as palavras da deusa egípcia, antes de curá-lo de suas feridas. Nos mistérios do
Deus Mortal é a deusa quem, com suas ajudantes femininas, vai ao mundo dos mortos
para trazer de volta o deus ressurrecto, e o escuro Hades geralmente era represe
ntado como uma tumba.
Como, em nossa opinião, Jesus e Madalena estavam vivendo a história da morte e ressu
rreição de Osíris, a escolha da crucificação fazia total sentido - pois a cruz era na verd
ade um antigo símbolo de Osíris.
Foram Maria Madalena e suas companheiras que compareceram ao sepultamento de Jes
us, não apenas porque, como se sugere, essa era uma tarefa das mulheres naqueles d
ias, mas porque estavam conscientemente representando sua própria parte na história
de Osíris. Jesus fazia o papel do Deus Mortal que ressuscitava graças à intervenção, mágica
ou de outro tipo, de sua "deusa", sua parceira sexual e espiritual, Maria Madale
na. Foi ela quem lhe concedeu o messiado ao ungi-lo ritualmente com óleo de nardo,
e se a idéia de que ela era rica for correta, então talvez sua influência tenha torna
do possível o rito iniciatório e mágico da crucificação.
Com sua confiança no imaginário de Osíris e seu suposto passado egípcio, Jesus pode muit
o bem ter se submetido voluntariamente ao horror da crucificação, mas por razões um ta
nto irônicas levando em consideração o modo como ele é visto pelos cristãos. Para estes, J
esus é Deus encarnado, mas ele talvez acreditasse que, por meio da morte e do rena
scimento simbólicos, poderia tornar-se um deus. A crucificação pode muito bem ter sido
deliberadamente organizada e preparada, com a ajuda de uma certa quantia de sub
orno, para que assim Jesus, como Lázaro, pudesse renascer segundo os moldes da esc
ola de mistério de Osíris, ressuscitando na própria figura de Osíris. Tudo isso seria ai
nda mais provável caso Jesus realmente se considerasse pertencente à realeza, descen
dente de Davi, pois um faraó morto automaticamente tornava-se um Osíris, senhor dos
céus e o terror do inferno, através da mágica intervenção de Ísis. Esperava Jesus emergir d
tumba imbuído de poder divino? Talvez a idéia explique um dos mais duradouros mistéri
os da cristandade - teria ou não Jesus morrido na cruz?
Muitas pessoas acreditam que não. Certos Evangelhos Gnósticos, o Alcorão e alguns dos
primeiros cristãos hereges, e talvez o Monastério de Sion, abraçaram a idéia de que um s
ubstituto (possivelmente Simão de Cirene) tomou seu lugar, enquanto outros acredit
am que ele sofreu na cruz mas de lá foi retirado com vida e que sua "ressurreição" sim
plesmente é uma referência ao fato de ter sido curado de suas feridas. Leonardo com
certeza acreditava que ele fora retirado com vida da cruz: o sangue ainda corre
na imagem do homem de seu falso "Santo" Sudário de Turim, e sangue não escorre de um
defunto. (Mesmo que nossa tese esteja errada, e Leonardo não tenha falsificado o
Sudário, quem quer que o tenha feito também acreditava que Jesus não morrera na cruz -
e se, contra todas as evidências, trata-se realmente do sudário de Jesus, então isso
claramente prova que ele estava vivo na tumba.)
É claro que Jesus pode ter sido acidentalmente retirado da cruz com vida, e que a
versão oficial de sua prisão e crucificação seja a que mais se aproxima da verdade. Há, po
rém, muitos obstáculos lógicos. As tropas de ocupação romanas eram compostas de homens prát
cos, que tinham muita experiência em torturar e executar. Contudo, afirma-se que e
les terminaram as execuções apressadamente naquela sexta-feira - quebrando as pernas
dos ladrões crucificados, por exemplo, para que pudessem ser enterrados antes do
início do Sabá. Devemos seriamente acreditar que os romanos se preocupavam a tal pon
to com os costumes judeus, ou que, se assim fosse, de algum modo esqueceram que
o anoitecer da sexta-feira marcaria o final da tortura e crucificação, mesmo que est
a tivesse começado apenas algumas horas antes?
A morte pela crucificação era a pior que se poderia imaginar porque, de costume, lev
ava dias para que a vítima morresse. Aí é que está. Sendo assim, por que alguém seria colo
cado na cruz na sexta-feira, na Palestina, dia em que ao pôr-do-sol o crucificado
deveria dela ser retirado, vivo ou morto?
Com certeza houve um julgamento e uma crucificação. No entanto, parece que Jesus e s
eu círculo íntimo - que incluía a "Família de Betânia" deliberadamente manobraram os event
os para que pudessem levar a cabo algum plano que haviam armado. Em The Passover
Plot, Hugh Schonfield explica, de maneira elegante e persuasiva, como isso acon
teceu, mas fracassa ao tentar explicar por que, se Jesus estava tramando para se
r o Messias, escolheria a crucificação, já que tal morte humilhante nunca seria o dest
ino do tão esperado herói judeu.
No entanto, a direção de palco vai além da prisão e crucificação de Jesus. Existem anomalia
nos relatos dos Evangelhos que levantam graves suspeitas. O tempo de duração da cru
cificação de Jesus, como vimos, foi notavelmente curto, e também nos dizem que, embora
os ladrões tenham recebido o golpe de misericórdia dos soldados romanos para que mo
rressem antes do Sabá, Jesus simplesmente lhes prestou o favor de morrer antes de
o sol se pôr. Muitas pessoas chegaram a sugerir que algum tipo de droga, um podero
so narcótico, pode ter sido dado a Jesus na esponja enquanto ele estava na cruz, c
onferindo-lhe uma aparência de morte. Nesse caso, deve-se presumir que os conspira
dores subornaram os guardas para que olhassem para o outro lado. Essas pistas su
gerem que a conspiração essencialmente significou a montagem de uma representação muito
cínica: a crucificação era o modo mais público de anunciar uma morte, e, tendo esta ocor
rido, qualquer aparente retorno à vida seria considerado miraculoso.
A própria natureza desses arranjos revela por que deviam ser os romanos, não os jude
us, a prender e sentenciar Jesus. Se os judeus o achassem culpado, ele seria ape
drejado, e então seria impossível forjar sua morte.
Mas o que os conspiradores esperavam obter por meio desse elaborado, e arriscado
, subterfúgio? Afinal, como vimos, um criminoso crucificado nunca seria aceito com
o o Messias: os judeus não esperavam que seu Messias fosse crucificado, nem que el
e retornasse dentre os mortos. Essa interpretação de suas expectativas simplesmente
não existia.
O plano, portanto, não se encaixava nos moldes da tradição judaica. No entanto, confor
mava com um conceito não-judaico - o do deus morto-ressurrecto, que era o fundamen
to dos grandes cultos das escolas de mistério. Os judeus não tinham nada disso: para
eles havia apenas um deus e era inconcebível que ele fizesse parte de um culto sa
nguinolento, pois consideravam qualquer coisa relacionada com sangue e sepultura
como impura e abominável. Contudo, o Oriente Médio e os países do Mediterrâneo estavam
repletos de cultos de adoração a tais deidades.
Deixemos claro mais uma vez que a história da morte e ressurreição de Jesus não era um c
aso isolado e único. No contexto da proliferação dos cultos aos deuses mortais da época,
ele estava obviamente tentando vincular-se a um deles. Qual seria? E o que ele
esperava ganhar com esse doloroso e perigoso plano?
Conforme vimos, a súplica de Jesus na cruz pode ser interpretada como sendo Helios
! Helios! (Ó, Sol! Ó, Sol!). A morte de Osíris é tradicionalmente representada como um s
ol negro, em outras palavras, o desamparo da Luz, que também poderia ser deduzido
da frase de Jesus na cruz "Ó, Sol! Ó, Sol! Por que me abandonaste?"
Parece que Jesus estava de algum modo vivenciando toda a história de Osíris naquela
remota sexta-feira.
Existem muitas perguntas sem resposta em torno da ressurreição, admitindo que a idéia
cristã de morte e ressurreição literais de Jesus esteja errada. Por exemplo, em que es
tado ele se encontrava quando foi retirado da cruz estaria em coma na tumba, ou
simplesmente machucado, porém consciente? O que então aconteceu a ele? Teria, como s
ugerem alguns, deixado a Palestina e viajado para lugares longínquos, como a Índia?
E o que aconteceu com seu relacionamento com Madalena, já que ela aparentemente ru
mou para a Gália sem ele? Qualquer que seja a verdade sobre esse assunto, o Jesus
dos Evangelhos desaparece da história após sua suposta ressurreição.
Essencialmente, os Evangelhos desintegram-se após a descoberta da tumba vazia. Os
relatos do Novo Testamento da aparição de Jesus aos seus discípulos e a suposta ascensão
aos céus são desesperadamente confusos, inconsistentes até mesmo como mitos. É claro qu
e os não cristãos lançam mão dessas intricadas histórias para provar que foram forjadas, e
certamente concordaríamos com eles. No entanto, apesar da confusão, como observa Hu
gh Schonfield, uma das fontes pode ser claramente identificada: o encontro de Je
sus ressuscitado com dois discípulos no caminho para Emaús foi extraído da obra de Lúcio
Apuleio inspirada em Ísis, The Golden Ass.
Embora o conceito de uma futura ressurreição do corpo faça parte da crença judaica, o qu
e aconteceu quando Jesus supostamente renasceu não se conforma decerto com o pensa
mento judaico.A visão tradicional é a de que todos os justos ressurgirão juntos no fin
al dos tempos: Jesus aparentemente desafiou esse plano, sendo trazido de volta à v
ida enquanto seus colegas ainda se decompunham nos túmulos. Em seguida, ele ascend
eu aos céus, sem deixar nenhum vestígio de seu corpo, embora tivesse prometido que s
eu ser espiritual estaria prontamente disponível aos seus seguidores - na verdade,
essa presença espiritual contínua foi uma das principais razões pelas quais a floresc
ente religião cristã mostrou-se tão atrativa para o mundo romano e tem ainda hoje tal
influência sobre milhões de corações e mentes.
Como assinala Karl Luckert, os comentadores contemporâneos, embora reconheçam que es
se conceito da contínua presença espiritual de Jesus não seja judaico, não fornecem nenh
uma idéia sobre seu verdadeiro contexto e origem. Então de onde terá vindo tal conceit
o?
A análise erudita de Luckert mostra conclusivamente que os conceitos gêmeos da ressu
rreição de Jesus e de sua presença espiritual contínua remontam sem qualquer sombra de dúv
ida à teologia egípcia. Ele esclarece que a antiga teologia egípcia:
...tornou possível acreditar que o Filho de Deus ressuscitou dos mortos... e ass
im retornou ao Pai. E explica também por que, antes que ele ascendesse aos céus, apa
rições de Cristo foram vistas... Também em consonância com a lógica egípcia era a noção de
mesmo tendo Cristo Jesus retornado ao Pai, ele não obstante permanece eternamente
entre seus seguidores.
Mais uma vez, vemos que conceitos fundamentais para a religião cristã - e que há muito
tempo vêm sendo acalentados como prova da singularidade e divindade de Jesus - não
brotaram totalmente de sua vida e ensinamentos. Nem eram fruto do tipo de judaísmo
herético a que freqüentemente se recorre para explicar sua gênese.
O conceito de ressurreição individual e de vida eterna do espírito no mundo do além veio
do Egito, onde era aceito como um fato consumado. E a noção da presença contínua e reco
nfortante do espírito após a morte foi diretamente tirada das crenças que envolviam a
morte dos faraós, os quais, segundo se acreditava, guiavam as pessoas desde o mund
o invisível.

Vimos que os eventos cruciais da vida de Jesus parecem se amoldar à história de Osíris
, e que o papel de sua companheira, Maria Madalena, era extremamente semelhante
ao de Ísis. No entanto, há um outro ponto importante a ser observado nesse contexto.
Embora o arquétipo de Osíris claramente se encaixe no papel conscientemente desempen
hado por Jesus - ao "morrer" na sexta-feira, ser pranteado por "Ísis" e voltar à vid
a três dias depois -, é a magia da deusa que torna a ressurreição possível. Que o papel de
la não era secundário é mais do que óbvio.
Ísis era vista como o Criador, conforme relatam as escrituras egípcias: "No início hav
ia Ísis, a mais Antiga entre os Antigos". Ela era a deusa "da qual tudo nasceu", e
a tradição invoca: "...tu és a criadora de todas as coisas boas". E, ainda mais do qu
e isso, Ísis, não Osíris, era o salvador original, sendo descrita por Aristides, um in
iciado nos mistérios da deusa, como "uma Luz, e outras coisas impronunciáveis, condu
zindo à salvação", enquanto Lúcio Apuleio se dirige a ela nestes termos: "Ó Santa e eterna
Salvadora da raça humana... tu dás luz ao Sol.Tu esmagas a morte sob teus pés".
Os estudiosos aceitam que os primeiros cristãos absorveram em seu movimento certos
aspectos do culto de Ísis, tais como o conceito de que a crença na deusa levava à vid
a eterna. Também se apropriaram de muitos templos dedicados a ela. Um deles ficava
em Sais, uma antiga capital do Egito, que se tornou uma igreja da Virgem Maria
no século III. Mil anos antes, quando ainda era um templo da grande deusa Ísis, tinh
a a seguinte inscrição "Eu sou tudo o que era, o que é, e o que há de vir" - palavras qu
e muito tempo depois apareceram nas páginas do Livro da Revelação (1:8) como sendo de
Jeová.
A influência do culto de Ísis pode ser facilmente encontrada até mesmo nos Evangelhos
canônicos. Por exemplo, um dos ditos mais famosos de Jesus é "Vinde a mim os que sof
rem, que eu os consolarei" . Em razão da oferta de consolo e amor em meio à luta pel
a vida, com freqüência encontramos essas palavras em cartazes colocados no lado de f
ora das igrejas, antecedidas pela frase: "Jesus disse". De fato, essa frase, pal
avra por palavra, foi extraída inteiramente dos ditos de Ísis, podendo ser vista na
inscrição sobre a porta de um tempo dedicado a ela em Dendera. De qualquer modo, o s
ocorro oferecido na sentença é, com certeza, o de uma mãe.
Se, como acreditamos, Jesus e Maria Madalena eram iniciados nos mistérios de Ísis e
Osíris, então o "cristianismo" deve ter sido muito diferente da religião patriarcal, t
emente a Deus, em que logo se converteu. E seu passado essencialmente pagão finalm
ente lança alguma luz sobre alguns dos enigmas mais persistentes do Novo Testament
o.
O dilema básico sempre foi tentar conciliar a existência de um Jesus histórico com os
evidentes elementos da escola de mistério egípcia presentes nas histórias a ele relaci
onadas. Como resultado direto dessa questão, os comentadores tomaram um desses doi
s caminhos: ou, como Ahmed Osman, chegaram à conclusão de que Jesus não existiu, ou, c
omo A. N.Wilson, sustentam que as referências à escola de mistério nunca fizeram parte
da história original, tendo sido acrescentadas posteriormente.
Entretanto, esses dois elementos aparentemente irreconciliáveis podem, como temos
demonstrado, fazer sentido quando tomados em conjunto. O pressuposto de que Jesu
s era de religião judaica é o que tem impedido que se reconheça uma solução clara e simple
s para essa questão. Se, por outro lado, sua religião não pertencesse à tradição judaica, t
do se encaixaria em seu devido lugar.
Não significa dizer que os discípulos de Jesus não eram judeus, ou que ele não estava de
liberadamente se dirigindo ao povo judeu em sua campanha. No entanto, como vimos
, é evidente que havia um grupo de "manipuladores" por trás do movimento, parte dos
quais era quase com certeza a "família de Betânia".
O movimento de Jesus compreendia um círculo interno e um círculo externo, as versões e
sotérica e exotérica do culto. Ironicamente, a maioria dos discípulos e as fontes que
deram origem aos Evangelhos faziam parte do último, o grupo que Jesus deliberadame
nte manteve na ignorância sobre sua verdadeira agenda e mensagem. Por mais radical
e estranho que possa parecer, é essa precisamente a situação retratada repetidas veze
s nos Evangelhos - nos quais discípulos como Pedro com freqüência confessam estar tota
lmente perplexos sobre os ensinamentos e as intenções de Jesus. Ainda mais crucial,
o círculo externo de discípulos não tinha certeza sobre as ambições de Jesus e mesmo sobre
seu verdadeiro papel.
Os estudiosos confessam-se aturdidos com respeito a uma questão que é básica: por que,
dentre todos os cultos messiânicos daquela época e lugar, foi o cristianismo que so
breviveu e prosperou. Como vimos, a razão que levou o movimento de Jesus a ter sid
o praticamente o único grupo a conquistar terreno duradouro fora da Judéia, foi o fa
to de já ser reconhecido como um culto de mistério. O segredo de seu apelo era sua c
aracterística essencialmente híbrida, uma mistura de certos aspectos do judaísmo e de
elementos pagãos das escolas de mistério. O cristianismo era singular por ser reconf
ortantemente familiar para muitos judeus e também para os gentios, ao mesmo tempo
ser excitantemente diferente.
O cristianismo, como uma nova religião, foi fruto da dinâmica que lhe imprimiram os
conversos de várias etnias e religiões, com freqüência contraditórios, em seu esforço para
ar sentido a seus próprios elementos individuais dentro do novo híbrido. Os seguidor
es constantemente enfrentavam o desafio de tentar encaixar o arquétipo do deus mor
to-ressurrecto no molde clássico do Messias e vice-versa, e foi essa mistura impos
sível que se tornou a Igreja Cristã.
É claro que muitos podem contestar o passado egípcio do cristianismo, visto o tom pr
edominantemente judaico dos Evangelhos. Podem alegar, com razão, que essa é a única ev
idência que temos acerca da natureza dos primórdios da religião - evidência que certamen
te indica sua origem judaica. Entretanto, o Novo Testamento não contém a única evidência
disponível, embora os textos sejam exatamente aqueles que a Igreja escolheu torna
r públicos. Como já vimos, a maior parte da obra conhecida coletivamente como Evange
lhos Gnósticos foi deliberadamente negada aos cristãos por muitos séculos - e o quadro
que pintam do início do cristianismo não é, com certeza, o de uma seita resultante de
um cisma do judaísmo. O que os Evangelhos Gnósticos descrevem é uma escola de mistério
egípcia.
Estudiosos como Jean Doresse - em seu estudo sobre os textos do Nag Hammadi - re
conhecem a ampla influência da teologia egípcia nos Evangelhos Gnósticos. Várias vezes e
ncontramos, nesses Evangelhos por tanto tempo ignorados, conceitos que são obviame
nte egípcios. Isso é mais notável no Pistis Sophia, cuja cosmologia corresponde à do Liv
ro dos Mortos egípcio. Os Evangelhos Gnósticos empregam inclusive a mesma terminolog
ia: por exemplo, utilizam a palavra egípcia para "inferno", Amente.
Por séculos, os cristãos aceitaram que os Evangelhos do Novo Testamento estão "certos"
- tanto do ponto de vista histórico quanto espiritual enquanto os livros Gnósticos
estão " errados". Acreditam que Mateus, Marcos, Lucas e João foram divinamente inspi
rados, ao passo que os outros (se chegam a ser conhecidos) são considerados absurd
os. No entanto, como temos esperança de demonstrar, existem razões que nos impelem a
pensar que as obras gnósticas merecem, no mínimo, a mesma atenção.
Os Evangelhos Gnósticos foram rejeitados pelos patriarcas da Igreja por razões de au
to-preservação, pois esses textos apresentavam uma imagem muito diferente do cristia
nismo, imagem que não lhes interessava apoiar. Não apenas os livros suprimidos tende
m a enfatizar a importância de Maria Madalena (e de outras mulheres discípulas), com
o também apresentam uma religião que tinha raízes, ao contrário daquela do Novo Testamen
to, na teologia egípcia. O cristianismo não pretendia ser nem um patriarcado nem um
desdobramento, ainda que herético, do judaísmo. Não se nega que os Evangelhos do Novo
Testamento foram escritos pelos seguidores judeus de Jesus, mas, ironicamente, e
stes parecem ser os que menos entenderam o que ele representava, os que tentaram
explicá-lo a partir de seu próprio contexto cultural e religioso. Por outro lado, p
arece que os Evangelhos Gnósticos apresentam um quadro mais autêntico das origens de
sua religião e mesmo do próprio passado e das crenças de Jesus.
Permanece porém a questão: o que Jesus e seu círculo interno esperavam ganhar ao disse
minar uma mensagem essencialmente pagã no berço do judaísmo?
A religião original dos hebreus, como a de outras culturas antigas, era politeísta,
venerando tanto deuses quanto deusas. Apenas mais tarde Jeová surge como uma deida
de preeminente, e os sacerdotes efetivamente reescreveram sua história para elimin
ar, de modo não muito compreensível, a antiga adoração às deusas. (E, como resultado, a co
ndição das mulheres declinou abruptamente, assim como no início do cristianismo e pela
mesma razão.)
Raphael Patai, antropólogo húngaro e estudioso da Bíblia, em seu principal trabalho Th
e Hebrew Goddess, demonstrou conclusivamente que os judeus outrora adoravam deid
ades femininas. Dentre os muitos exemplos que cita dos cultos hebreus a deusas,
está aquele relacionado com o Templo de Salomão: apesar da tradição, este não foi construíd
para honrar apenas e tão somente Jeová, mas também para celebrar a deusa Asherah. Pat
ai diz:
...a adoração de Asherah como consorte de Jeová... era um elemento integrante da vid
a religiosa da antiga Israel, anterior às reformas introduzidas pelo rei Josias em
621 a.C.
O Templo de Salomão foi construído nos moldes dos templos dos fenícios, que por sua ve
z tiveram como modelo os templos do antigo Egito. E muitos estudiosos acreditam
que as imagens gravadas na Arca da Aliança na verdade retratam Jeová e uma deidade f
eminina. Os querubins que aparecem na Arca também eram imagens da deusa - os ental
hes de dois "querubins" encontrados no palácio do rei Ahab, na Samaria, são idênticos às
clássicas representações de Ísis.
Os cultos heréticos judaicos de adoração a deusas continuaram a prosperar em muitas re
giões, sobretudo no Egito.Mesmo na corrente principal do judaísmo a deusa sobreviveu
"disfarçada" de dois modos. Uma é a personificação de Israel como uma mulher; a outra,
a figura da Sabedoria Chokmah, em hebreu, ou Sophia, em grego. Embora geralmente
descrita como uma alegoria para a sabedoria divina de Deus, é claro que Chokmah t
em um outro significado: a sabedoria é retratada como se fosse feminina e coexisti
sse com Jeová desde o início.
Admite-se hoje que essa imagem tem origem nas deusas de culturas vizinhas. Em pa
rticular, Burton L. Mack revelou a influência das deusas egípcias Ma'at e Ísis.
Na época de Jesus o judaísmo ainda não havia perdido completamente suas origens pagãs: d
e qualquer modo, os judeus se converteram para religiões estrangeiras durante os p
eríodos da dominação greco-romana - por exemplo, a Revolta dos Macabeus na metade do séc
ulo II a. C. foi causada, em grande parte, pela ruptura dos judeus apóstatas que v
eneravam, entre outros deuses, Dioniso.
O elemento pagão de veneração às deusas do judaísmo herético pode explicar muita coisa em r
lação a Jesus, seus motivos e sua missão. Sem o levar em conta, o que existe é uma evide
nte contradição: embora praticamente tudo o que Jesus disse, se tomado isoladamente,
remonte a uma escola de mistério - a de Ísis e/ou Osíris, como é mais provável -, há no en
anto evidências de que ele conscientemente representou o papel de Messias dos jude
us e de que a maioria das pessoas que o seguia acreditava que ele fosse seu rei.
Mesmo os mais respeitados eruditos na matéria rejeitaram por completo o material
messiânico quando este deixou de se encaixar em suas hipóteses: se eles estão corretos
em fazer isso, então Jesus era certamente iniciado em alguma escola de mistério. Pa
ra nós, porém, rejeitar esse material é insatisfatório, pois significaria que muitos dos
episódios dos Evangelhos tais como a entrada de Jesus em Jerusalém em um jumento -
foram pura invenção. Embora haja alguma ficção demonstrável nos Evangelhos (principalmente
no que se refere à infância de Jesus), há uma evidência persuasiva de que esses episódios
em particular são autênticos. Como vimos no Capítulo Onze, os eventos que culminaram
com a chegada triunfal de Jesus em Jerusalém parecem ter sido pré-arranjados - como,
por exemplo, o jumento no qual Jesus montaria a fim de cumprir as profecias sob
re o Messias. A evidência desses preparativos encontra-se nos próprios relatos evangél
icos, embora esteja claro que os autores não compreendem seu significado. Se eles
tivessem inventado esse episódio, com certeza não teriam plantado tal evidência.
Então, quais eram os reais motivos e metas de Jesus? Pode ser que ele estivesse ut
ilizando a mania de messianismo corrente na época a fim de reintroduzir o culto às d
eusas - afinal, mesmo que ele pertencesse, como se afirmava, à linhagem real de Da
vi, isso dificilmente seria um obstáculo, pois o próprio rei Davi venerava deusas, a
ssim como o rei Salomão. Talvez Jesus fosse um sacerdote de Ísis tentando apresentar
uma versão aceitável da religião de Ísis/Osíris aos judeus, ou usar o anseio por um Messi
as para planos mais secretos e de longo prazo, que envolviam iniciações esotéricas e c
ulminavam talvez com a crucificação. E, como "Jesus Nazoreano" , ele era parte de um
a primitiva "família" de seitas heréticas judaicas que, segundo se acredita, foram t
ransmitidas na forma original da religião. Podemos apenas especular sobre a nature
za das crença nazoreanas, mas, no que diz respeito a Jesus, elas claramente corres
pondiam a suas convicções esotéricas. Qualquer que seja a verdade sobre a questão, Jesus
não só era Filho de Deus mas também um devotado Filho da Deusa.
A idéia de que Jesus estava tentando reintroduzir o culto às deusas entre o povo de
Israel se encaixa de forma admirável no caso. Essa é precisamente a idéia atribuída a Je
sus no Levitikon, o texto chave do movimento joanita. Segundo ele, Jesus é um inic
iado em Osíris que percebe que a religião original de Moisés e das tribos de Israel er
a a do Egito e que os judeus tinham esquecido que havia também uma deusa. É claro qu
e nada disso constitui prova definitiva, mas há, como veremos no próximo capítulo, um
forte apoio a essa hipótese por parte de alguns setores surpreendentes.
Por mais chocante que possa parecer hoje em dia, as similaridades entre o cristi
anismo primitivo e o culto de Ísis e Osíris eram na verdade reconhecidas pela Igreja
dos primeiros tempos. De fato, as duas religiões competiam abertamente pelos corações
e espíritos do mesmo povo; exceto pela insistência dos cristãos em que seu fundador h
avia sido um homem de carne e osso, suas doutrinas eram praticamente idênticas.
O culto de Ísis que existia na época de Jesus não era exatamente o mesmo que florescer
a no Egito antes da ascensão do império helenístico os atributos da deusa mudaram quan
do ela absorveu características de outras deusas. No século IV a. C., durante o domíni
o dos gregos no Egito, surgiu um novo culto a Ísis e Serápis (a forma grega de Osíris)
, que era essencialmente uma mistura das diferentes escolas de mistério. Esse cult
o chegou a Roma antes de 200 a. C., depois de cruzar todo o império. O principal c
entro de culto, entretanto, permanecia no Egito, no Serapeum em Alexandria, embo
ra houvesse outro centro em Delos.
As classes mais baixas de Roma acolheram o culto de Ísis com todo o entusiasmo. Ta
is movimentos de massa eram sempre tratados com suspeita pelas autoridades, que
viam neles o potencial para uma subversão em larga escala; assim, os seguidores de
culto em Roma sofriam freqüentes perseguições. Finalmente, o senado ordenou a destruição
dos templos de Ísis e Serápis; porém, apesar de estarem plenamente cientes das conseqüênci
as, não foi possível encontrar quem quisesse realizar o trabalho. O culto foi oficia
lmente abolido por Júlio César.
Entretanto, no ano de 43 a. C., o triunvirato inesperadamente ordenou a construção d
e um novo templo de Ísis-Serápis. Tal ordem pode ter sido resultado direto da notória
ligação entre Marco Antônio e Cleópatra, que muitas vezes era retratada como a própria Ísis
e seu amante como Osíris ou Dioniso. O próprio Marco Antônio gostava de ser conhecido
como o Novo Dioniso. Durante seu reinado, Cleópatra manteve o culto de Ísis como a
religião nacional do Egito.
A perseguição mais severa aos seguidores de Ísis em Roma aconteceu no império de Tibério,
em 19 a.C., quando seus sacerdotes foram crucificados e 4.000 devotos exilados.
Essa perseguição coincidiu com a dos judeus. A razão para essa exagerada reação dupla, con
tudo, é pouco clara.Josefo registra o episódio e o atribui a um escândalo envolvendo u
m dos sacerdotes de Ísis, que teria ajudado um nobre romano a seduzir a mulher de
outro homem no templo da deusa; porém, pelos tradicionais padrões morais da alta soc
iedade romana, tal fato dificilmente provocaria sequer um bocejo. Parece que Jos
efo estava tentando marcar uma distinção entre a perseguição dos seguidores de Ísis e a do
s judeus, mas a verdadeira razão, ao que parece, é que aqueles se envolveram em agit
ações civis.
Algo incomum estava acontecendo com a religião de Ísis na época. Como diz R. Merkelbac
h, em Man, Myth & Magic:
Está claro que a "igreja" de Ísis tinha uma "missão" durante o período imperial... Não há
portanto, qualquer dúvida de que a propaganda estava se espalhando.
No primeiro século da era cristã, o culto teve a boa sorte de obter algum apoio entr
e as classes mais altas e mesmo entre os imperadores. Calígula - que dificilmente,
no entanto, poderia ser tido como um bom exemplo promoveu a construção de templos e
instituiu o festival de Ísis. Cláudio e Nero eram ambos atraídos pelos cultos de mistér
io de modo geral e expressaram particular interesse pelo de Ísis. Muitos dos últimos
imperadores romanos eram devotos.
A veneração a Ísis continuou pública até o final do século IV, mas seu grande rival foi o c
istianismo. Em 391 os cristãos destruíram o Serapeum de Alexandria e tomaram medidas
para suprimir o culto onde quer que ele fosse encontrado. O último festival ofici
al de Ísis dos velhos tempos foi celebrado em Roma em 394.
Por que o culto de Ísis era tão popular? O que ele tinha a oferecer aos seus seguido
res?
Como já vimos, estava relacionado com a salvação e redenção individual e fornecia aos seus
devotos as bênçãos de uma vida eterna após a morte. Como diz Sharon Kelly Heryob em sua
obra The Cult of Isis among Women in the Graeco-Roman World (1975):
Ísis finalmente tornou-se uma deusa salvadora no sentido preciso da palavra: a r
edenção individual podia ser alcançada pela participação em seus mistérios. A crença de que
podia obter imortalidade foi a mais persistente de suas doutrinas.
Enquanto Merkelbach diz, do culto de Ísis:
Era popular porque apelava ao desejo de salvação individual (como o cristianismo),
e as idéias da filosofia platônica tornaram-se associadas com ele [também com o crist
ianismo].
Os pecados eram confessados e perdoados pela imersão na água...
S.G.F. Brandon enfatiza que os dois conceitos - imersão para simbolizar a purificação
espiritual e a conseqüente regeneração - foram reunidos no Egito nos rituais da escola
de mistério de Osíris, e que:
Esse processo duplo para se alcançar a bênção da imortalidade não é encontrado novamente
té a emergência do cristianismo.
Realmente, existem paralelos próximos entre a descrição do batismo que Paulo oferece e
o das escolas de mistério de Osíris.
Como no cristianismo, a salvação pessoal do devoto estava vinculada ao seu arrependi
mento. De fato, no mundo romano, apenas essas duas religiões compartilhavam tal ênfa
se no arrependimento.
Há uma outra semelhança notável - e singular - entre as práticas do culto de Ísis e o post
erior cristianismo católico. Era o conceito de confissão: o devoto admitia ter comet
ido erros ao sacerdote, que então rogava a Ísis em seu favor para que fosse perdoado
.
Um outro costume que a igreja em seus primórdios compartilhava com os seguidores d
e Ísis - apesar da errônea concepção atual - era o papel ativo da mulher, embora algumas
estimativas sugiram que em ambos os casos havia mais sacerdotes que sacerdotisa
s. Mesmo assim, em termos de participação e status espiritual os sexos eram consider
ados em igualdade.
O culto de Ísis geralmente enfatizava o aspecto maternal da deusa, celebrando seus
atributos como esposa e mãe, embora não negligenciasse os outros aspectos da nature
za feminina. Conseqüentemente, como vimos, a trindade familiar de Ísis, Osíris e Hórus e
xercia uma poderosa influência na vida familiar dos devotos: homens, mulheres e cr
ianças sentiam-se compreendidos por seus deuses. Os leigos em geral representavam
um papel muito ativo na religião - ao contrário do controle total exercido pelos sac
erdotes de Roma -, e havia muitas associações "laicas" ligadas aos templos.
Sexualmente, os seguidores de Ísis eram encorajados à monogamia e a preservar a sant
idade da família. E embora muitos autores romanos os acusassem de comportamento im
oral, eles próprios se queixavam dos períodos regulares de abstenção sexual a que tinham
de se submeter as mulheres devotas de Ísis.
No apogeu da religião egípcia, a maior celebração de Ísis acontecia em 25 de dezembro, qua
ndo se comemorava o nascimento de seu filho Hórus e então, doze dias depois, em 6 de
janeiro, o de seu outro filho, Aion. As duas datas foram tomadas pelos cristãos -
a Igreja Ortodoxa celebra o Natal em 6 de janeiro. No Egito, os cristãos do século
IV celebravam a epifania de Jesus nesse dia, adotando também elementos do festival
de Aion, entre eles o ritual do batismo utilizando a água do rio Nilo. Em Man, My
th & Magic, S.G.F. Brandon comenta a "evidente influência do festival de Ísis nos co
stumes populares do cristianismo associados com a Epifania".
Entretanto, muitos cultos de mistério da época de Jesus envolviam práticas semelhantes
. Por exemplo, eles comumente declaravam que seus iniciados haviam "nascido de n
ovo", e, como diz Marvin W. Meyer em sua obra The Ancient Mysteries:
Geralmente, os mystai [iniciados] partilhavam a comida e a bebida nas celebrações
rituais e, algumas vezes, tornavam-se um com o divino pela participação numa refeição s
acramental análoga à da Eucaristia cristã. As loucas mênades de Dioniso, por exemplo, se
gundo diziam, tinham que devorar carne crua de algum animal em sua omophagia, ou
banquete da carne... as descrições do banquete de carne crua sugerem que os partici
pantes acreditavam estar consumindo o próprio deus... Nos mistérios de Mitra, os ini
ciados partilhavam de uma cerimônia que lembrava a "Última Ceia" dos cristãos, o que p
rovocou certo embaraço no apologista cristão Justino Mártir. De acordo com Justino, os
mystai do mitraísmo comiam pão e bebiam água (talvez uma mistura de água e vinho) na re
feição iniciatória - uma diabólica imitação, ele se apressa em dizer, da eucaristia cristã.
Contudo, não importa o grau de semelhança que outros cultos de mistério parecem ter co
m os primórdios do cristianismo e com os ensinamentos de Jesus; é o de Osíris, como vi
mos, que na verdade constitui sua inspiração mais direta. S.G.F. Brandon descreve Osír
is como um "protótipo de Cristo".
A história do início da Igreja no Egito é muito sugestiva no que diz respeito às semelha
nças entre o cristianismo e a escola de mistério de Ísis/Osíris. Os historiadores reconh
ecem que há um grande mistério sobre as origens e o desenvolvimento do cristianismo
no Egito: a única coisa de que eles têm certeza é que havia ali um ramo muito precoce
do movimento. De fato, para uma metrópole tão grande e influente, Alexandria é pratica
mente ignorada pelos autores do Novo Testamento, sendo mencionada apenas uma vez
. (A referência, porém, como veremos, tem um significado especial para essa investig
ação.) Há também uma completa ausência de registros escritos sobre a Igreja até o século II
os estudiosos dizem que isso se deve a uma destruição total dos arquivos pela facção cri
stã dominante. Com certeza, havia algo abominável sobre o ramo egípcio do movimento. T
alvez uma pista sobre sua natureza esteja implícita no fato de que quando o Serape
um foi destruído, em 391, muitos devotos se bandearam para a Igreja Cristã Copta (egíp
cia).
A Igreja Copta permaneceu uma entidade distinta, independente da Igreja de Roma
ou da Igreja Ortodoxa Oriental. Significativamente, suas doutrinas são uma óbvia mis
tura das crenças egípcias tradicionais e cristãs, e as duas foram assimiladas com extr
aordinária facilidade. Após 391 a Igreja Copta adotou como símbolo o ankh - a cruz laçad
a egípcia -, e ainda o utiliza hoje em dia. Mircea Eliade afirma claramente: "Os c
optas consideravam-se os verdadeiros descendentes dos antigos egípcios".
Isto aconteceu na mesma época e no mesmo lugar em que tantas partes essenciais de
nosso quebra-cabeça foram criados. A Alexandria daquela época foi o cadinho no qual
se operou a síntese de grande parte do conhecimento e de muitas das idéias que viria
m a formar o hermetismo, o gnosticismo dos textos de Nag Hammadi e a alquimia em
seu formato "moderno". Estes eram, em essência, expressões da mesma ênfase no poder t
ranscendental do Feminino e na mágica fusão da deusa com seu deus.
O lado triste disso é que, embora todas as ligações entre o cristianismo e a religião de
Ísis/Osíris sejam muito bem conhecidas pelos eruditos, já há pelo menos sessenta anos,
poucos cristãos sabem delas. É claro que podem não dar a menor importância ao fato de Je
sus pertencer a uma longa linhagem de salvadores, de deuses mortos-ressurrectos,
pois para eles a fé é mais importante do que um fato histórico. Por outro lado, muito
s cristãos de hoje sentiram-se completamente enganados pela Igreja quando descobri
ram essas coisas por si mesmos.
O cristianismo não era a religião fundada pelo único Filho de Deus que morrera para ex
piar todos nossos os pecados: era o culto a Ísis e Osíris com outra roupagem. Entret
anto, logo se tornou um culto à personalidade, centrado em Jesus.
Porém, se ele era essencialmente um missionário egípcio, estaria apenas trabalhando em
benefício de seus deuses? Seria suficiente para Jesus chegar aos corações e almas das
multidões? Está faltando algo nesse quadro, algo que é fundamental para nosso entendi
mento tanto do homem quanto de sua missão. Jesus claramente também visava um objetiv
o terreno: havia uma agenda política que corria em paralelo com suas ambições de conve
rter as pessoas ao culto de Ísis/Osíris. Não por acaso ele foi um líder proeminente que
levou sua mensagem a muitas regiões da Palestina, alcançando tantas pessoas quanto f
oi possível. Naquela época e lugar a política e a religião eram inseparáveis. Se você fosse
um grande líder religioso automaticamente era também uma influência política nada despre
zível.
Entretanto, toda campanha com interesses tão altos inevitavelmente apresenta grand
es desafios para sua liderança; surgem as vozes dissidentes. Nesse caso a voz era
de alguém que havia chegado antes, que era ouvida clamando no deserto. E é para essa
voz, para João Batista, que nos voltamos agora.
Na Parte Um identificamos as duas correntes principais, centradas em Maria Madal
ena e João Batista, que corriam, como riachos subterrâneos, por todas as heresias qu
e investigamos. E ambas as correntes escondiam certo conhecimento poderoso e per
igoso, algo que ameaçaria as próprias fundações da Igreja se fosse tornado público. No cas
o de Maria Madalena, nossa investigação demonstrou com certeza que isto é verdadeiro.
E ela agora é a chave-mestra para revelar os próprios segredos de Jesus, há tanto temp
o escondidos. Através dela finalmente podemos ver que ele era um sacerdote da reli
gião egípcia, um adepto da magia que ela iniciara pelo ritual do sexo sagrado. É isto
que o culto herético da Madalena realmente significa e o que ele efetivamente repr
esentou para várias gerações de hereges. Madalena não era apenas a representante da trad
ição pagã à qual ela e Jesus pertenciam; para a maioria dos movimentos heréticos secretos,
Maria Madalena era a deusa Ísis.
Mas os hereges também mantinham uma outra corrente secreta próxima de seus corações, e e
sta era incorporada e codificada na figura de João Batista. E assim como Madalena,
ele foi um personagem real que conheceu e interagiu com Jesus. Então, que revelações
ele tem a nos oferecer?
CAPÍTULO XIV
João Cristo
Ao pesquisar o papel desempenhado por Leonardo da Vinci na falsificação que é o Sudário
de Turim, ficamos surpresos ao descobrir com que freqüência João Batista aparece na vi
da do artista. Não apenas Leonardo era um grande admirador do santo, como muitos d
os lugares ligados ao Mestre eram, talvez coincidentemente, dedicados a João. A ma
ior parte ficava em Florença, a amada cidade de Leonardo, que abriga em seu coração o
extraordinário Batistério. Em 1995, quando fazíamos um documentário para televisão sobre o
Sudário, visitamos o local com uma pequena equipe de filmagem, o que nos asseguro
u ter o local somente para nós durante algum tempo - o mágico acrônimo BBC é praticament
e um "abre-te sésamo" -, antes que suas portas fossem abertas ao público. O Batistério
é uma estranha construção octogonal que data do período da Primeira Cruzada e cujo form
ato incomum possivelmente se deve aos templários, que (assim como suas característic
as igrejas redondas) também promoviam a forma octogonal, com base na crença de que a
ssim era o Templo de Salomão em Jerusalém. Nosso principal interesse em visitá-lo era
que uma das paredes laterais da construção abrigava a única escultura remanescente de
Leonardo (um trabalho em conjunto com Giovanni Francesco Rustici). Tratava-se, é c
laro, de uma estátua de João Batista. E, como em todas as imagens de João feitas por L
eonardo, ele é retratado com o dedo indicador em riste.
Como vimos, a Heresia Européia está parcialmente centrada na figura do Batista, embo
ra as verdadeiras razões disso permaneçam deliberadamente obscuras: de fato, desde q
ue começamos nossa pesquisa sobre o assunto, alguns anos atrás, logo tornou-se evide
nte que isso constituía um segredo interno de organizações como as dos Cavaleiros Temp
lários e a da Maçonaria. No entanto, por que ainda se considera prudente manter esse
segredo tão zelosamente guardado?
A visão tradicional que os cristãos têm de João Batista é bastante conhecida. Acredita-se
que o ministério de Jesus tem início com seu batismo por João - de fato, dois dos Evan
gelhos canônicos começam com João pregando às margens do rio Jordão. A imagem que os autor
es criam de João é a de um evangelista severo e asceta que deixa a vida de ermitão no
deserto para conclamar o povo de Israel a arrepender-se de seus pecados e ser ba
tizado. Desde o início, há algo tão inflexível e frio em João que faz com que os leitores
atuais sintam-se desconfortáveis; na verdade, não há nada nos Evangelhos que justifiqu
e a extrema veneração que lhe dedicaram várias gerações de hereges - com certeza nada da r
everência que lhe demonstraram homens de intelecto privilegiado como Leonardo da V
inci.
Os relatos dos Evangelhos, de fato, pouco revelam sobre João Batista. Eles nos diz
em que o batismo por ele ministrado era um sinal público de arrependimento, e que
muitos responderam ao seu chamado e foram ritualmente imersos nas águas do rio Jor
dão, inclusive Jesus. De acordo com Mateus, Marcos, Lucas e João, o Batista proclama
va-se um mero precursor do Messias profetizado, que ele reconhecia ser Jesus. Te
ndo cumprido seu papel, praticamente desapareceu de cena, embora existam indicações
de que continuou a batizar durante algum tempo.
O Evangelho de Lucas conta-nos que Jesus e João eram primos, e, junto com o relato
da concepção e do nascimento de Jesus, oferece uma descrição da concepção e do nascimento
e João - que acontecem paralelamente aos de Jesus mas são claramente menos miraculos
os. Os pais de João, o sacerdote Zacarias e Isabel, não têm filhos e estão em idade avança
da, mas são informados pelo anjo Gabriel de que foram escolhidos para ter um filho
; pouco tempo depois Isabel, já na menopausa, concebe. É ao encontro de Isabel que v
ai Maria quando se descobre grávida de Jesus. Isabel está então com seis meses de grav
idez, e na presença de Maria seu filho ainda não nascido "saltou no seu ventre"; é ass
im que ela fica sabendo que a criança de Maria é o tão aguardado Messias. Isabel então l
ouva Maria, o que a inspira a proclamar o "cântico" que hoje é conhecido como Magnif
icat.
Lemos nos Evangelhos que, logo após ter batizado Jesus, João foi preso a mando de He
rodes Antipas. A razão alegada é que João havia publicamente condenado o recente casam
ento de Herodes com Herodíades, ex-mulher de seu meio-irmão Filipe - casamento que,
sendo ela divorciada de Filipe, contrariava as leis judaicas. Após um período incert
o dentro da prisão, João é executado. Na história conhecida, Salomé, filha de Herodíades co
o ex-marido, dança para o padrasto na comemoração do aniversário deste, deixando-o tão em
bevecido que ele promete dar a Salomé tudo o que ela desejar, até mesmo "metade de s
eu reino". Induzida por Herodíades, ela pede a cabeça de João Batista em uma bandeja.
Sem poder voltar atrás em sua palavra, Herodes, que a essa altura já começara a admira
r o Batista, relutantemente concorda e manda decapitar João. Os discípulos de João obtêm
permissão para levar seu corpo e sepultá-lo, embora não se saiba ao certo se levaram
também a cabeça.
A história tem todos os elementos - um rei tirânico, uma mãe madrasta, uma dançarina púber
e e a morte horrível de um famoso homem santo -, e por isso forneceu um fértil mater
ial para várias gerações de artistas, poetas, músicos e dramaturgos. Seu fascínio parece nã
ter fim, o que talvez seja curioso para um episódio que consiste em apenas alguns
versos dos Evangelhos. Duas adaptações em particular escandalizaram o público no início
do século XX. Uma delas é a ópera Salomé, de Richard Strauss, que retrata uma garota pr
omíscua tentando seduzir João na prisão e, tendo sido repudiada, pede sua cabeça em ving
ança, beijando então seus lábios já sem vida de modo triunfante. A peça de mesmo nome de O
scar Wilde teve uma única apresentação devido ao terror causado pela pré-publicidade, qu
e se centrou basicamente no fato de que ele próprio representava o papel-título. Ent
retanto, o famoso cartaz de Aubrey Beardsley para a peça ainda permanece como uma
descrição gráfica da interpretação de Wilde da história bíblica e, mais uma vez, centra-se
suposta luxúria necrófila de Salomé.
Esse inebriante coquetel de imaginação erótica tem pouca ligação com o seco relato do Novo
Testamento, cujo único propósito parece ser o de estabelecer, sem sombra de dúvida, q
ue João era o precursor de Jesus e espiritualmente inferior a este - e também preenc
her o papel profetizado do Elias reencarnado, que deveria preceder a chegada do
Messias.
Entretanto, há uma outra fonte facilmente acessível de informação acerca de João: o livro
Antiquities of the Jews, de Josefo. Ao contrário de sua suposta referência a Jesus,
a autenticidade da referência a João não está em debate porque se encaixa naturalmente d
entro da narrativa, e é um relato impessoal que não faz elogios a João - e difere dos
relatos dos Evangelhos de modo significativo.
Josefo registra a pregação e o batismo ministrado por João, e o fato de que sua popula
ridade e influência sobre as massas alarmavam Herodes Antipas, que então o mandou pr
ender e executar em uma espécie de "manobra preventiva". Josefo não fornece detalhes
de sua prisão ou das circunstâncias ou forma da sua execução, e não faz qualquer menção à
ta crítica de João ao casamento de Herodes. Ele enfatiza o enorme apoio popular a João
e acrescenta que, não muito tempo após sua execução, Herodes sofreu uma séria derrota em
batalha, o que o povo tomou como sinal de punição pelo crime que ele cometera contra
o Batista.
O que podemos concluir sobre João a partir dos relatos dos Evangelhos e de Josefo?
Para começar, a história de que ele batizou Jesus deve ser autêntica, pois sua inclusão
sugere que esse fato era por demais conhecido para ser excluído - mesmo considera
ndo a tendência dos autores dos Evangelhos em marginalizar João sempre que possível.
João pregava em Peréia, a leste do Jordão, um território que Herodes também governava, além
da Galiléia. A descrição em Mateus é contraditória; o Evangelho de João é mais específico e
duas pequenas cidades onde João batizava: "Betânia, do outro lado do Jordão" (1:28) -
um vilarejo próximo à principal rota comercial - e Enon, no norte do vale do Jordão (
3:23). Os dois lugares são bastante distantes um do outro, portanto parece que João
viajou muito durante sua missão.
A impressão do ermitão asceta fomentada pelas traduções inglesas dos Evangelhos pode, de
fato, representar um erro de conceito. A palavra grega eremos, traduzida como "
deserto" ou "local despovoado", pode significar qualquer lugar isolado. É signific
ativo que a mesma palavra seja utilizada para designar o local onde Jesus alimen
tou os cinco mil. Carl Kraeling, em seu estudo sobre João, considerado o texto aca
dêmico de referência sobre o assunto, também argumenta que a dieta de "gafanhoto e mel
" que João supostamente consumia, não implica especificamente um estilo de vida ascéti
co.
É provável também que a missão de João não se limitasse apenas aos judeus. O relato de Jose
o, embora de início apresente João exortando "os judeus" à piedade e a uma vida virtuo
sa, acrescenta que "outros se juntavam [i.e. ao redor dele] (pois também ficavam e
xtremamente entusiasmados ao ouvir seus ensinamentos)". Alguns estudiosos acredi
tam que esses "outros" só podem ser não-judeus, e de acordo com o britânico Robert L.W
ebb, estudioso da Bíblia,
...não há nada no conteúdo a sugerir que não poderiam ser gentios. A localização do mini
tério de João sugere que ele poderia estar em contato com os gentios que viajavam pe
las rotas de comércio vindos do Oriente, bem como com os gentios que viviam na reg
ião da Transjordânia.
Uma outra concepção errônea é a da idade de João, que se considera ser mais ou menos a mes
ma de Jesus. Entretanto, a conclusão a que se chega a partir dos quatro Evangelhos
é de que João pregava já há muitos anos quando batizou Jesus e que era, talvez por uma
grande margem de diferença, o mais velho dos dois. (A história do nascimento de João n
o Evangelho de Lucas é, como veremos, em grande parte inventada e inverossímil.)
Como a de Jesus, a mensagem de João era um ataque implícito ao culto que se praticav
a no Templo de Jerusalém, não apenas no que dizia respeito à possível corrupção de seus ofi
iantes, mas a tudo o que ele representava. A convocação de João ao batismo pode ter ir
ritado as autoridades do Templo, não somente porque ele afirmava que o batismo era
espiritualmente superior aos seus ritos, como também porque era gratuito.
E há também as irregularidades presentes nas descrições sobre sua morte, especialmente q
uando comparadas com o relato de Josefo. Os motivos imputados a Herodes - medo d
a influência política de João (Josefo) e raiva por sua crítica ao casamento do governant
e (Evangelhos), não são mutuamente excludentes. Os arranjos conjugais de Herodes Ant
ipas tiveram, realmente, implicações políticas, mas não por causa da mulher com quem ele
se casara. A questão era a mulher de quem ele teve que se divorciar para se casar
novamente. Sua primeira esposa era uma princesa do reino árabe de Nabatéia, e o ins
ulto que a separação representou para essa família real deflagrara uma guerra entre os
dois reinos. Nabatéia fazia fronteira com o território de Peréia, governado por Herod
es e onde João fazia suas pregações. Portanto, a censura de João ao casamento de Herodes
efetivamente o colocou do lado do rei inimigo, Aretas, com a ameaça implícita de qu
e, se a população concordasse com João, poderia acabar apoiando Aretas contra Antipas.
Talvez isso pareça por demais acadêmico, mas intriga o fato de que os Evangelhos ten
ham "suavizado" os verdadeiros motivos que levaram Herodes a executar João. Se rec
onhecemos que esses livros são essencialmente material de propaganda e que quando
obscurecem algum acontecimento o fazem de modo deliberado, a outra possibilidade
levanta a questão de por que os autores dos Evangelhos se incomodariam com esse e
pisódio.
É compreensível que os autores dos Evangelhos quisessem censurar qualquer sugestão de
que João gozava de grande popularidade - isto é compatível com o tratamento geral que
dedicam a ele -, mas se tivessem que inventar alguma coisa, seria de esperar que
tramassem uma história que apoiasse Jesus de algum modo. Por exemplo, poderiam te
r dito que João fora preso por proclamar que Jesus era o Messias.
Os relatos dos Evangelhos também cometem um engano. Dizem que João criticava Herodes
Antipas porque este se casara com a ex-mulher de seu meio-irmão Felipe. No entant
o, embora as circunstâncias do casamento sejam historicamente precisas, o meio-irmão
em questão era na verdade um outro Herodes, não Felipe. Este segundo Herodes era o
pai de Salomé.
Apesar do fato de João, como Madalena, ter sido deliberadamente marginalizado pelo
s autores dos Evangelhos, podem-se ainda encontrar pistas acerca de sua influência
sobre os contemporâneos de Jesus. Em um episódio cujas implicações parecem não ter ocorri
do à maioria dos cristãos, os discípulos de Jesus dizem a ele: "Senhor, ensina-nos a o
rar, assim como também João ensinou aos seus discípulos". Lemos então que Jesus ensinou-
lhes a oração que viria ser conhecida como Pai Nosso ("Pai nosso que estais no céu, sa
ntificado seja o vosso nome...").
Já no século XIX o grande egiptólogo Sir E. A. Wallis observou que as palavras iniciai
s do "Pai Nosso" se originavam de uma antiga oração egípcia para Osíris-Amon, que assim
começa: "Amon, Amon que estais no céu...". É claro que isso data de séculos antes de João
e Jesus, e que o "Pai" invocado na oração não é nem Jeová nem seu suposto filho, Jesus. De
qualquer modo, o "Pai Nosso" não foi criado por Jesus.
Diz-se que João prostrou-se em sinal de reverência ante a figura de Jesus ao batizá-lo
. Ficamos com a impressão de que toda a sua missão, talvez sua vida inteira, foi dir
igida para esse único evento. Na verdade, porém, existem claras indicações de que João e J
esus, embora estreitamente associados no início da trajetória deste último, eram rivai
s irreconciliáveis. Isso não escapou à atenção da maioria dos mais respeitados estudiosos
da Bíblia. Como escreve Geza Vermes:
O objetivo dos autores dos Evangelhos era, sem dúvida, dar a impressão de amizade
e estima mútua, mas suas tentativas são superficiais, e um exame mais cuidadoso das
fragmentárias evidências sugere que, pelo menos no que diz respeito aos seus respect
ivos discípulos, os sentimentos de rivalidade não estavam ausentes.
Vermes também descreve a insistência de Mateus e Lucas na precedência de Jesus sobre J
oão como algo "forçado". Realmente, para leitores objetivos, existe algo profundamen
te suspeito na repetida ênfase, um tanto enjoativa, na superioridade "daquele que
veio depois". Aqui temos um João Batista que efetivamente rasteja perante Jesus.
Entretanto, como diz Hugh Schonfield:
Temos conhecimento, através de fontes do próprio cristianismo, de que havia uma im
portante seita judaica que rivalizava com os seguidores de Jesus e afirmava que
João Batista é que era o verdadeiro Messias...
Schonfield também comenta "a rivalidade irreconciliável" entre seus respectivos segu
idores, mas acrescenta que, devido à influência de João sobre Jesus ser bastante conhe
cida, "eles não podiam desprezar o Batista, e tiveram que inventar, em vez de enfa
tizar, seu lugar secundário" .
(Sem entender essa rivalidade, não se pode compreender plenamente o verdadeiro pap
el nem de João nem de Jesus. Deixando de lado as amplas implicações para a própria teolo
gia cristã, a recusa em reconhecer a hostilidade entre Jesus e João torna a mais rad
ical das novas teorias totalmente insatisfatória. Por exemplo, como vimos, Ahmed O
sman argumenta que Jesus foi inventado pelos seguidores de João Batista a fim de q
ue se cumprisse sua profecia sobre aquele que estava por vir. De modo semelhante
, Knight e Lomas, no livro The Hiram Key, chegam ao ponto de afirmar que Jesus
e João eram coMessias trabalhando em conjunto, uma teoria que implica uma íntima rel
ação entre os dois pregadores; nada poderia estar mais longe da verdade.)
A conclusão mais lógica é a de que Jesus começou como discípulo de João e se separou dele m
is tarde para formar seu próprio grupo. (É bastante provável que tenha sido batizado p
or João, mas como um acólito, não como o Filho de Deus!) Os Evangelhos registram que J
esus recrutou seus primeiros discípulos entre os seguidores de João.
De fato, o grande estudioso inglês da Bíblia C. H. Dodds traduz a frase do Evangelho
de João, "aquele que vem depois de mim" (ho opiso mou erchomenos), como "aquele q
ue me segue". Isso poderia significar "discípulo", dado que a ambigüidade é a mesma do
inglês. Dodds achava que era exatamente isso.
A crítica mais recente à Bíblia assinala que João jamais fez sua famosa proclamação sobre a
superioridade de Jesus, nem mesmo insinuou que este era o Messias. Essa idéia é corr
oborada por vários fatos.
Os Evangelhos (de modo bastante ingênuo) registram que João, quando estava encarcera
do, questionou a autenticidade do messiado de Jesus. A sugestão é de que ele duvidav
a de sua própria afirmação anterior de que Jesus era o Messias, mas isso poderia também
ser um outro exemplo em que os autores dos Evangelhos precisaram adaptar um episód
io para seus próprios propósitos.Teria João inequivocamente negado que Jesus era o Mes
sias talvez chegando mesmo a denunciá-lo?
Do ponto de vista da mensagem cristã as implicações relativas ao episódio são, ou deveriam
ser, extremamente perturbadoras. Pois se por um lado os cristãos aceitam que João f
ora divinamente inspirado para reconhecer Jesus como o Messias, por outro o ques
tionamento de João na prisão indica, no mínimo, que ele estava em dúvida. O cárcere certam
ente lhe dera muito tempo para pensar, ou talvez a divina inspiração o tivesse aband
onado.
Como veremos, os últimos seguidores de João, que Paulo encontrou em Éfeso e Corinto qu
ando fazia seu trabalho missionário, nada sabiam sobre a suposta declaração de João proc
lamando que alguém maior viria depois dele.
Uma das evidências mais fortes a indicar que o Batista nunca declarou que Jesus er
a o Messias esperado é a de que os próprios discípulos de Jesus não o reconheciam como t
al, pelo menos no começo de seu ministério. Ele era seu líder e professor, mas não há qual
quer sugestão de que o seguiram de início porque acreditavam que ele era o tão esperad
o Messias dos judeus. A identificação de Jesus como o Messias parece ter se espalhad
o pouco a pouco entre os discípulos, à medida que seu ministério se desenvolvia. No en
tanto, Jesus deu início à sua missão após ter sido batizado por João: então por que, se Joã
ealmente havia anunciado Jesus como o Messias, ninguém mais na época sabia disso? (E
os próprios Evangelhos deixam claro que as pessoas o seguiam não porque ele fosse o
Messias, mas por alguma outra razão.)
E há uma outra consideração que nos faz pensar bastante. Quando o movimento de Jesus c
omeçou a causar impacto, Herodes Antipas ficou temeroso e, aparentemente, começou a
pensar que Jesus era João ressurrecto ou reencarnado (Marcos 6:14):
Ora, o rei Herodes ouviu falar dele (pois seu nome era ouvido em toda a parte) e
dizia: João Batista ressuscitou dentre os mortos, e por isso os prodígios operam-se
nele.
Essas palavras sempre foram motivo de confusão. O que Herodes quis dizer com elas:
que Jesus era de algum modo João reencarnado? No entanto, dificilmente poderia se
r isso, pois João e Jesus viveram na mesma época. Antes de examinarmos essa história c
om mais profundidade, assinalemos algumas implicações de relativa importância das pala
vras de Herodes.
A primeira é que ele não sabia que João vaticinara que "um maior do que ele" viria dep
ois, senão teria chegado à óbvia conclusão de que Jesus era essa pessoa. Se a vinda do M
essias fosse uma parte evidente dos ensinamentos de João, como afirmam os Evangelh
os, então Herodes deveria estar ciente disso.
A segunda é que Herodes disse que "João... ressuscitou... e por isso os prodígios oper
am-se nele Jesus]..." Isso sugere que João gozava de uma reputação própria como fazedor
de milagres, o que, entretanto, é absolutamente negado nos Evangelhos - de fato, o
Evangelho de João (10:4) é tão enfático a esse respeito que se chega a suspeitar de um
encobrimento. Teria João transformado água em vinho, alimentado milhares com um punh
ado de comida, curado doentes, até mesmo ressuscitado mortos? Talvez sim. Mas uma
coisa é certa: o Novo Testamento, sendo a propaganda do movimento de Jesus, não é o lu
gar onde podemos esperar encontrar tais afirmações.
Uma explicação possível das confusas palavras de Herodes sobre João Batista ter renascid
o através de Jesus é, ao menos superficialmente, impensável, tanto literal quanto meta
foricamente. Contudo, lembremos que estamos lidando com uma cultura e uma época tão
diferentes da nossa que, em muitos aspectos, parecia tratar-se de um outro mundo
. Como observa Carl Kraeling, em 1940, as palavras de Herodes só podem fazer senti
do se entendidas como refletindo idéias ocultas que eram correntes no mundo greco-
romano da época de Jesus. Essa sugestão foi acatada e ampliada por Morton Smith em s
eu livro Jesus the Magician, de 1978. Como vimos, Smith concluiu que a resposta
para o enigma da popularidade de Jesus reside em suas demonstrações de magia egípcia.
Naquela época acreditava-se que, para realizar magia, um feiticeiro necessitava te
r poder sobre um demônio ou espírito. Os Evangelhos aludem a isso em uma passagem em
que Jesus faz referência à acusação feita contra João de que "ele tinha um demônio". Não é
o à primeira vista parece, uma referência à possessão por um espírito maligno, mas sim que
João tinha um demônio sob seu poder.
A hipótese de Kraeling, dentro desse contexto, era de que as palavras de Herodes A
ntipas podiam ser entendidas como uma referência a esse conceito, porque não eram ap
enas os demônios que podiam ser "escravizados" dessa maneira, mas também o espírito de
um ser humano, especialmente um que fora assassinado. Um espírito ou alma assim e
scravizado poderia, acreditava-se, realizar as tarefas que seu mestre comandasse
. (Tal acusação foi algum tempo depois lançada contra Simão Mago, que, segundo diziam, "
escravizara o espírito de um menino assassinado.)
Kraeling escreve:
Os detratores de João utilizaram-se da ocasião de sua morte para espalhar a
idéia de que seu espírito desencarnado estava a serviço de Jesus, como instrumento par
a a realização de trabalhos de magia negra - um reconhecimento nada pequeno do poder
de João.
Com essa explicação em mente, Morton Smith assim traduziu as palavras de Herodes:
João Batista ressuscitara dentre os mortos [através da necromancia de Jesus;
Jesus agora o tinha em seu poder]. E por isso [posto que Jesus-João pode controlá-l
os] prodígios [inferiores] são realizados [seus milagres] por ele [i.e. sob suas ord
ens].
Em apoio a essa idéia, Smith cita um texto de magia presente num papiro que hoje s
e encontra em Paris. A invocação - significativamente, talvez - é dirigida ao deus Hélio
s:
Dê-me autoridade sobre o espírito desse homem assassinado, de cujo corpo possuo um
a parte...
De especial interesse nesse contexto são os dons que essa operação mágica pretende confe
rir ao mago: a habilidade de curar e predizer se uma pessoa doente viverá ou morre
rá, e a promessa de que "você será venerado como um deus..."
Um outro episódio serve para ressaltar o fato de que a popularidade de João era, par
a dizer o mínimo, maior do que a de Jesus. Tal episódio ocorre próximo do final do min
istério de Jesus, quando este está pregando para as multidões no Templo de Jerusalém. Os
"príncipes dos sacerdotes e os anciãos" confrontam-no abertamente, propondo questões
traiçoeiras na esperança de pegá-lo em contradição - questões que Jesus contorna com a pres
nça de espírito típica de um político experiente. Eles exigem que Jesus lhes diga quem l
he deu autoridade para falar como fala. Jesus responde com outra pergunta: "Dond
e era o batismo de João? Do céu ou dos homens?"
A pergunta faz seus oponentes ponderarem:
E eles refletiam consigo, dizendo: Se lhe dissermos, do céu, ele dirá: Por que razão,
pois, não crestes nele?
E se lhe dissermos, dos homens, tememos o povo. Porque todos tinham João como um p
rofeta.
Em face desse beco sem saída, declinaram de responder.
O que é significativo nessa disputa é que Jesus usou o temor dos sacerdotes à populari
dade de João contra eles mesmos, em vez de se apoiar na sua própria. Como vimos, Jos
efo destacou a influência e o apoio que João tinha entre as pessoas: o Batista não era
um pregador itinerante como outro qualquer, mas um líder de grande carisma e pode
r que, por alguma razão, arrebanhou um grande número de seguidores. De fato, de acor
do com Josefo, tanto os judeus quanto os gentios "ficavam extremamente entusiasm
ados ao ouvir seus ensinamentos".
Um curioso episódio, relatado no Evangelho apócrifo chamado Livro de Tiago ou Proto-
evangelho, indica que João era importante por si só. Esse Evangelho foi compilado mu
ito tempo depois e inclui vários relatos da infância de Jesus que ninguém hoje em dia
leva a sério, mas que incorpora materiais de diversas fontes e, portanto, pode con
ter pelo menos algumas pistas sobre tradições bem conhecidas. É com certeza difícil ente
nder como alguém familiarizado com os Evangelhos canônicos poderia tê-lo inventado.
No relato da infância de Jesus e João - após a conhecida história do nascimento de Jesus
e da visita dos Sábios - Herodes ordena o Massacre dos Inocentes. À primeira vista
isso é idêntico à versão presente no Novo Testamento. Entretanto, logo toma um rumo radi
calmente diferente.
A reação de Maria, ao ficar sabendo do massacre, é simplesmente enrolar o bebê com panos
e colocá-lo em uma manjedoura, provavelmente para escondê-lo dos soldados. No entan
to, parece que João é que é o objeto da busca. Lemos ali que Herodes envia seus homens
para interrogar Zacarias, pai de João, e eles voltam dizendo que ele não sabe onde
estão sua mulher e filho:
Herodes ficou irado e disse: o filho dele será o rei de Israel.
Nessa versão, é Isabel que foge com João para o interior do país. Existem claros indícios
aqui de uma outra "Sagrada Família", talvez até mesmo rival.
Como vimos, João era muito popular e contava com grande número de seguidores, os qua
is, como no movimento de Jesus, consistiam em um círculo de discípulos que o acompan
havam onde quer que ele fosse e de pessoas que se aproximavam para ouvi-lo falar
. Também como no caso de Jesus, após a morte de João seus discípulos começaram a escrever
relatos sobre sua vida e seus ensinamentos no que seriam efetivamente as escritu
ras de João.
Os estudiosos reconhecem que tal corpo de "literatura sobre João" outrora existiu,
mas não sabemos onde está. Possivelmente foi destruído ou mantido em segredo pelos "h
ereges". No entanto, parece que de fato continha material que não correspondia aos
relatos do Novo Testamento - do contrário, de alguma forma teria sido conservado
em domínio público.
A descrição de Lucas das concepções "conjuntas" de João e Jesus é extremamente interessante
.Analisando o relato, os estudiosos estabeleceram, para além de qualquer dúvida, que
na verdade se trata de uma combinação de duas histórias separadas, uma contando a con
cepção de Jesus e a outra a de João, que são (de acordo com Kraeling) "unificadas por ma
teriais que basicamente não tinham qualquer relação entre si". Em outras palavras, Luc
as (ou a fonte que ele utilizou) pegou duas histórias distintas e tentou juntá-las u
tilizando o recurso literário do encontro das duas mulheres grávidas, Maria e Isabel
. A conclusão lógica é que a história da infância de João era originariamente independente
os Evangelhos e provavelmente anterior ao nascimento de Jesus. Isso contém importa
ntes implicações. Uma é que já havia histórias falando de João. A outra é que a versão de L
para a Natividade foi evocada especificamente para se "sobrepor" à de João, que já era
conhecida. Afinal, o "milagre" do nascimento de João reside no simples fato de se
us pais serem idosos, enquanto Lucas faz de Jesus o rebento de uma mãe virgem. E o
único motivo que Lucas teria tido para narrar tal história era que os seguidores de
João ainda existiam e rivalizavam com os de Jesus.
Essa hipótese se apóia em um fato que foi estabelecido pelos estudiosos, mas permane
ce desconhecido para a maioria dos cristãos. O adorado "cântico" de Maria, o Magnifi
cat, era de fato de Isabel e referia-se ao filho desta. As palavras associam a m
ulher com a personagem Ana do Antigo Testamento, que gerou pela primeira vez em
idade já avançada, e portanto está mais de acordo com a condição de Isabel. De fato, algun
s dos primeiros manuscritos do Novo Testamento declaram que o cântico era de Isabe
l, e o patriarca da Igreja Irineu (escrevendo por volta de 170) também afirma que
ela, e não Maria, proferiu as palavras.
Da mesma forma, na cerimônia da circuncisão de João, Zacarias declamou uma "profecia",
ou hino, conhecida como Benedictus, em louvor a seu filho recém-nascido. Obviamen
te isso deve ter sido parte da história original do nascimento de "João Batista". Ta
nto o Magnificat quanto o Benedictus parecem ter sido hinos dedicados a João e que
foram incorporados ao "Evangelho de João" , adulterado então por Lucas a fim de tor
ná-lo mais aceitável para os seguidores de Jesus. Isso indica que as pessoas estavam
não só escrevendo relatos da vida de João como também fazendo elegias a ele em versos e
canções. Contudo, teriam essas tradições relativas a João realmente fornecido aos autores
dos Evangelhos o material no qual basearam seus relatos sobre Jesus? Como diz S
chonfield em seu livro Essene Odyssey:
O contato com os seguidores de João Batista... familiarizaram os cristãos com as h
istórias da natividade de João, nas quais ele figura como o jovem Messias das tradições
sacerdotais, nascido em Belém.
Além disso, os antigos textos da Igreja conhecidos como Considerações Clementinas afir
mam que alguns dos discípulos de João acreditavam que ele era o Messias. E Geza Verm
es acha que alguns episódios contidos nos Evangelhos e nos Atos dão indicações de que os
seguidores de João acreditavam que ele era o Messias.
O conhecimento de que existiu essa "literatura sobre João" responde a muitas questõe
s sobre o Quarto Evangelho, que se atribui ao discípulo João. Como vimos, existem mu
itas contradições internas nesse Evangelho. Embora seja o único que se baseia no relat
o de uma testemunha ocular - afirmação corroborada pelos detalhes circunstanciais en
contrados no próprio texto -, ele contém evidentes elementos gnósticos que não condizem
nem com os outros Evangelhos, nem com o tom prosaico geral do restante do próprio
livro. Isso é particularmente perceptível no "prólogo" relativo a Deus e ao Verbo. O E
vangelho de João é o mais anti-Batista de todos quatro e, no entanto, é o único que nos
diz explicitamente que os primeiros discípulos de Jesus vieram das fileiras do Bat
ista, incluindo o suposto autor e testemunha, o próprio "discípulo amado".
Essas contradições, entretanto, não invalidam necessariamente os Evangelhos. Está claro
que o autor compilou os textos de diversas fontes, as quais ele reuniu e interpr
etou de acordo com suas próprias crenças sobre Jesus, reescrevendo o material onde a
chou que era necessário. Quem quer que seja o autor, o Evangelho parece conter o t
estemunho em primeira mão do "discípulo amado". No entanto, muitos dos mais influent
es estudiosos do Novo Testamento pensam que o autor também utilizou alguns dos tex
tos escritos por seguidores do Batista, os quais, de acordo com a autoridade em
estudos sobre o Oriente Médio, Edwin Yamauchi, "o Quarto Evangelista... desmistifi
cou e cristianizou".
O material do Batista consiste principalmente no prólogo e no que se denominam "di
scursos da revelação" entre Jesus e seus discípulos. O alemão Rudolf Bultmann, grande es
tudioso da Bíblia, argumenta que estes
...se originaram, segundo se acreditava, de documentos dos seguidores de João Ba
tista que exaltavam João e lhe atribuíam o papel de Redentor enviado do mundo da Luz
. Portanto, uma parte considerável do Evangelho de João não é originariamente cristã, mas
resultado da transformação da tradição do Batista.
Esses elementos do Evangelho de João são os mais gnósticos e, portanto, foram os que m
ais causaram problemas aos historiadores que o estudaram. Supõe-se com freqüência que,
já que esses elementos não se coadunam com os outros Evangelhos e o resto do Novo T
estamento, o livro deve ter sido escrito muito tempo depois que os outros. Entre
tanto, reconhecer que vieram de outra fonte que não os seguidores de Jesus modific
a totalmente o quadro, e muitos comentadores associam o Quarto Evangelho a uma "
fonte gnóstica pré-cristã", que foi adaptada pelo autor. Essa fonte parece ser João Bati
sta e seus seguidores, que, ao que tudo indica, eram gnósticos.
(Essas descobertas podem fornecer uma solução para a controvérsia sobre a data do Eva
ngelho de João. Como vimos, a visão comum é a de que, dado o material não judaico e gnósti
co do Evangelho, ele tenha sido escrito após os Evangelhos Sinópticos. Entretanto, s
e Jesus não era judeu, e grande parte do material deriva dos seguidores de João Bati
sta - que, como veremos, eram gnósticos -, então é bastante possível que esse Evangelho
seja contemporâneo, ou até mesmo anterior, aos outros.)
Não só João reuniu um grande número de devotados seguidores durante seu tempo de vida, c
omo eles continuaram a crescer após sua morte de um modo que é curiosamente paralelo
ao crescimento do cristianismo. Existem evidências de que o movimento de João inici
ara uma Igreja própria que não se confinou à Palestina. Em seu livro Jesus, de 1992, A
. N. Wilson escreve:
Se a religião de João Batista (e sabemos que houve uma) tivesse se tornado dominan
te no Mediterrâneo, em vez da religião de Jesus, provavelmente saberíamos mais do que
sabemos sobre essa cativante figura. Seu culto sobreviveu até pelo menos meados do
s anos 50, como o autor dos Atos deixa escapar. . . Em Éfeso, pensavam que "O Cami
nho" (como era conhecida a religião desses primeiros crentes) significava seguir o
"batismo de João". Tivesse Paulo tido uma personalidade mais fraca... ou se nunca
tivesse escrito as epístolas, o "batismo de João" bem poderia ter sido a religião que
atrairia a imaginação do mundo antigo, em lugar do batismo de Cristo... O culto pod
eria até mesmo ter se desenvolvido a ponto de os então joanitas, ou batistas, acredi
tarem que... João era Divino...
Esse acidente da história, entretanto, não aconteceu.
Portanto, até mesmo o Novo Testamento descreve a existência da Igreja de João além das f
ronteiras de Israel. Bamber Gascoigne escreve:
Um grupo de pessoas que Paulo encontrou em Éfeso oferece um intrigante vislumbre
do potencial de desenvolvimento da religião - que Paulo rapidamente cortou pela r
aiz.
Esse grupo de pessoas era, é claro, a Igreja de João. Sua própria existência como entida
de distinta após a morte de Jesus é um argumento de que João jamais pregou a vinda de
"um maior" depois dele, ou de que, se o tivesse feito, essa pessoa não poderia ser
Jesus. Parece que quando os joanitas encontraram Paulo não tinham a menor idéia de
tal profecia. E eles não eram um culto insignificante. Foram descritos como "um séqu
ito internacional" que se estendia da Ásia Menor até Alexandria. Os Atos registram q
ue a religião de João fora levada até Éfeso por um alexandrino chamando Apolo - aliás é a ú
a referência a Alexandria em todo o Novo Testamento.
Então João Batista tinha um outro grupo forte de seguidores, que o perpetuaram como
uma verdadeira igreja. Entretanto, supõe-se - como nos comentários acima de A. N. Wi
lson - que esta foi absorvida pela Igreja Cristã logo cedo. Com certeza, algumas d
e suas comunidades, como aquelas encontradas por Paulo, foram suplantadas pela p
rópria versão deste do movimento de Jesus. Mas há uma forte evidência de que a Igreja de
João realmente sobreviveu.
Esse corpo de evidências, entretanto, enfatiza o papel de um personagem que, à prime
ira vista, pode parecer completamente deslocado nessa história, alguém que foi ultra
jado ao longo da história cristã como o "pai de todas as heresias" e adepto da magia
negra do pior tipo. Seu nome passou até a denominar um pecado, o de tentar compra
r o Espírito Santo: simonia. Estamos falando, é claro, de Simão Mago.
Ao contrário das duas outras figuras principais que estivemos discutindo - Maria M
adalena e João Batista -, Simão Mago não foi marginalizado pelos cronistas do cristian
ismo; na verdade foi-lhe atribuído um papel quase proeminente nos primeiros textos
do cristianismo. Entretanto, ainda é tachado de maléfico, como o homem que tentou i
mitar Jesus e que, em determinado momento, chegou a se infiltrar na embrionária Ig
reja a fim de conhecer seus segredos - até, é claro, ser desmascarado pelos Apóstolos.
Algumas vezes conhecido como "o primeiro herege", Simão Mago é considerado alguém irre
dimível. Uma indicação dos motivos disso está no fato de que os primeiros padres da igre
ja consideravam a palavra gnóstico como sinônimo de "herege", e Simão era gnóstico (embo
ra não tenha sido, como acreditavam, o fundador do Gnosticismo).
Simão faz apenas uma breve aparição no Novo Testamento, nos Atos dos Apóstolos (8:9-24).
Significativamente, ele era um samaritano que, de acordo com os Atos, utilizava
a magia para "enfeitiçar" o povo de Samaria. Quando o apóstolo Felipe lá pregou, Simão
ficou tão impressionado que pediu para ser batizado. No entanto, esse ato foi cons
iderado como apenas um artifício para que pudesse obter para si o poder do Espírito
Santo. Ele então ofereceu dinheiro a Pedro e João, para conseguir aquele poder, e fo
i severamente repreendido. Temendo por sua alma, Simão se arrependeu e pediu-lhes
que orassem por ele.
Entretanto, os primeiros padres da igreja sabiam muito mais sobre esse personage
m, e seus relatos contradizem o simples conto moralista do livro dos Atos. Ele n
ascera na vila de Gita e era reputado por suas habilidades de mago (daí seu codino
me Mago). Durante o reinado de Cláudio (41-54, isto é, dez anos depois da crucificação)
ele partiu para Roma, onde foi honrado como um deus e até mesmo se erigiu uma estátu
a em sua homenagem. Os samaritanos já o haviam reconhecido como um deus.
Simão Mago viajava com uma mulher chamada Helena, uma ex-prostituta da cidade feníci
a de Tiro, a quem ele chamava de Primeiro Pensamento (Ennoia), a Mãe de Tudo. Isso
tinha origem em suas crenças gnósticas: ele ensinava o "primeiro pensamento" de Deu
s - exatamente como a idéia judaica da Sabedoria/Sofia discutida anteriormente - h
avia sido feminino, e que fora ela quem criara os anjos e outros semi-deuses, qu
e são os deuses deste mundo. Eles criaram a Terra sob as instruções dela, mas se rebel
aram e a aprisionaram na matéria, no mundo material. Ela ficou presa em uma série de
corpos femininos (incluindo o de Helena de Tróia), cada um dos quais sofrendo ins
uportáveis humilhações, terminando por fim como uma prostituta em um porto de Tiro. Ma
s nem tudo estava perdido, porque Deus também estava encarnado, na forma de Simão. E
le a procurou e a resgatou.
O conceito de um sistema cosmológico que compreendia uma série de mundos e planos su
periores e inferiores é bastante conhecido hoje em dia. Embora os detalhes preciso
s variem, é uma crença gnóstica comum que chegou até os cátaros no período medieval e perme
a a cosmologia hermética, que é a base do ocultismo ocidental, passando pela alquimi
a até o hermetismo da Renascença. Existem também espantosos e exatos paralelos com out
ros sistemas que já discutimos. O mais significativo é a semelhança com o gnosticismo
copta do Pistis Sophia, no qual Jesus sai em busca da aprisionada Sofia, uma fig
ura explicitamente vinculada nesse texto a Maria Madalena. (Simão também chamava Hel
ena de sua "ovelha desgarrada".)
A personificação da Sabedoria como uma mulher - e uma meretriz - já é algo com que estam
os familiarizados nesta investigação e que a atravessa por inteiro. No caso de Simão,
essa incorporação era literal, na pessoa de Helena.
Como escreve Hugh Schonfield:
...os simonianos veneravam Helena como Atenas (Deusa da Sabedoria), que por su
a vez era identificada no Egito com Ísis.
Scholfield também associa Helena e Sofia com Astarte.
Karl Luckert também remonta até Ísis o conceito de Simão, da Ennoia encarnada em Helena.
Geoffrey Ashe concorda, acrescentando: "[Helena] é colocada de volta no caminho d
a glória como Kyria ou rainha celestial".
Uma outra fonte apócrifa, datando de cerca de 185, diz que Helena é "negra como uma
etíope" e dança com correntes, acrescentando: "Todo o poder de Simão e de seu Deus está
nesta mulher que dança".
Irineu escreve que os sacerdotes iniciados por Simão "viviam na imoralidade", embo
ra, infelizmente, ele não se aprofunde muito nisso. Mas eles com certeza praticava
m rituais ligados ao sexo, como revela Epifânio em sua obra monumental Against Her
esy:
E ele prescrevia os mistérios da obscenidade e... as emissões dos corpos, emissionum
vironum, feminarum menstruorum, e que eles deveriam colher os mistérios na mais a
squerosa das coletas.
(G.R.S. Mead, como bom vitoriano, deixou essa pudica tradução com as frases em latim
, mas parece que a seita de Simão utilizava a magia sexual, envolvendo sêmen e sangu
e menstrual.)
Os padres da igreja ficaram profundamente temerosos de Simão Mago e sua influência.
Parece que ele representou uma séria ameaça para os primórdios da Igreja - o que é um ta
nto estranho, até que se perceba o quanto Simão tinha em comum com Jesus.
Os padres fizeram muito esforço para mostrar que, embora Simão e Jesus dissessem e f
izessem muitas coisas semelhantes, incluindo milagres, a fonte de seu poder era
muito diferente. Simão agia através de feitiçaria, enquanto Jesus agia pelo poder do E
spírito Santo. Com efeito, Simão era uma paródia satânica de Jesus. Encontramos, por exe
mplo, Hipólito afirmando asperamente sobre Simão: "Ele não era Cristo"
Epifânio revela mais ao escrever:
Desde a época de Cristo até a nossa, a primeira heresia foi a de Simão, o mago, e em
bora não fosse corretamente e distintivamente uma heresia de nome cristão, no entant
o provocou grande devastação pela corrupção que gerou entre os cristãos.
Além disso, de acordo com Hipólito:
... ao comprar a liberdade de Helena, ele assim ofereceu salvação aos homens através
do conhecimento peculiar de si mesmo.
Um outro relato credita a Simão a capacidade de realizar milagres, inclusive trans
formar pedras em pão. (Isto nos remete à Tentação de Jesus, quando é oferecido a ele o mes
mo poder, mas ele recusa. Entretanto, nos é dito mais tarde que Jesus alimentou ci
nco mil pessoas com apenas cinco pães e dois peixes, o que é praticamente a mesma co
isa.)
Jerônimo extrai a seguinte citação de uma das obras de Simão:
Eu sou a palavra de Deus, eu sou o glorioso, eu sou o Consolador, o Todo-Poder
oso. Eu sou o próprio Deus.
Em outras palavras, Simão se auto-proclamava divino e prometia a salvação a seus segui
dores.
Nos Atos Apócrifos de Pedro e Paulo, Simão Mago e Pedro se engajam em uma disputa pa
ra ver quem conseguiria trazer um defunto de volta à vida. Simão apenas consegue rea
nimar a cabeça, enquanto Pedro realiza o truque perfeitamente. Existem muitos outr
os relatos nos textos apócrifos sobre batalhas mágicas entre Simão Mago e Simão Pedro, t
odas terminando com o triunfo do cristão. O que elas demonstram, entretanto, é que o
primeiro era tão influente que histórias tinham de ser inventadas com o intuito de
conter seu poder sobre as massas.
O mago não era um simples feiticeiro itinerante, mas um filósofo que escrevia suas p
róprias idéias. Desnecessário dizer que os originais se perderam, mas os padres da Igr
eja incluíram em suas obras algumas extensas citações retiradas desses textos, com o p
ropósito de cabalmente condená-las. Esses fragmentos, contudo, revelam claramente o
gnosticismo de Simão e a ênfase na existência de duas forças opostas porém complementares
- uma masculina e outra feminina. Por exemplo, esta é uma citação da sua obra Great Re
velation:
Dos Eões universais saem dois ramos... um manifesta-se de cima, é o Grande Poder,
a Mente Universal dirigindo todas as coisas, o masculino, e outra vinda de baixo
, o Grande Pensamento, feminino, produzindo todas as coisas. Acasalando-se um co
m o outro, eles se unem e manifestam na Distância Média... aí está o Pai...
É Ele quem manteve, mantém e manterá o poder feminino-masculino no preexistente Pode
r Ilimitado...
Aqui podemos ver reminiscências do hermafrodita alquímico, do andrógino simbólico que ta
nto fascinava Leonardo. Mas de onde vinham as idéias de Simão Mago?
Karl Luckert remonta as "raízes ideológicas" dos ensinamentos de Simão às religiões do ant
igo Egito, e, ao que parece, eles refletem, e talvez ainda perpetuem em forma ad
aptada, aqueles cultos. Embora, como vimos, as escolas de Ísis/Osíris enfatizassem a
natureza oposta e igual das duas deidades, a feminina e a masculina, algumas ve
zes se considerava que ambas se haviam mesclado no caráter e no corpo de Ísis. Esta
ocasionalmente é retratada com barba, e atribui-se a ela a seguinte frase: "Embora
seja mulher, tornei-me homem..."
Simão Mago e Jesus eram, no que tange aos primórdios da Igreja, perigosamente pareci
dos em seus ensinamentos, razão por que Simão foi acusado de ter tentado roubar o co
nhecimento dos cristãos. Essa é uma admissão tácita de que seus próprios ensinamentos eram
, de fato, compatíveis com os de Jesus, talvez até mesmo parte do mesmo movimento. A
s implicações relacionadas a isso são perturbadoras. Seriam os rituais sexuais pratica
dos por Simão e Helena, por exemplo, também praticados por Jesus e Madalena? De acor
do com Epifânio, os gnósticos tinham um livro chamado As Grandes Questões de Maria, qu
e pretendia conter os ensinamentos secretos do movimento de Jesus, os quais toma
vam a forma de cerimônias "obscenas".
Pode-se ficar tentado a descartar tais rumores como sendo apenas fofocas escanda
losas e grosseiras, mas, como vimos, existem evidências de que Madalena era uma in
iciadora sexual na tradição da prostituta do templo, cuja função era conceder aos homens
a dádiva da horasis: iluminação espiritual através do ato sexual.
John Romer, em seu livro Testament, explicita o paralelo:
Helena, a Meretriz, como os cristãos a chamavam, era a Maria Madalena de Simão Mag
o.
Então, novamente, há uma outra ligação: a da provável origem egípcia. Karl Luckert fala de
imão:
Como "pai de todas as heresias" ele deve agora ser estudado não apenas como um o
ponente, mas também como um notável concorrente de Cristo no início da igreja cristã, po
ssivelmente até como um aliado potencial.. .
A partir do fato de terem uma herança egípcia comum, pode-se deduzir a força da ameaça d
e Simão Mago. O perigo aumentava com a possibilidade de que ele pudesse ser confun
dido com o próprio Cristo...
E Luckert vê um estreito paralelo no que ele acredita ser a real missão desses dois
homens. Ele reconhece a evidente dicotomia na pregação de Jesus como uma mensagem es
sencialmente egípcia para um público judeu, mas percebe a bastante próxima conexão entre
a teologia hebraica original e a do Egito. Ele diz, de Simão:
[ele]... via como sua missão consertar... o que devia estar errado; mais precis
amente, a alienação da dimensão feminina de Tefnut-Mahet-Nut-Ísis da divindade masculina
.
Esse, é claro, é precisamente o motivo hipotético que apresentamos para a missão de Jesu
s na Judéia e que é atribuído a ele no Levitikon. Luckert conclui que Jesus se sobrepôs
a Simão Mago apenas por ter chegado ao extremo de incluir sua própria morte no quadr
o geral. A ênfase modifica-se radicalmente, entretanto, quando se leva em consider
ação a idéia de que a crucificação pode não ter terminado com a morte de Jesus.
Além dos paralelos com Jesus, há um outro fato inquietante, e para nós revelador, sobr
e Simão: ele era discípulo de João Batista. E não só isso, ele fora indicado por João para
er seu sucessor (embora, pelas razões dadas abaixo, não devesse ser uma sucessão diret
a).
As implicações disso são estarrecedoras, pois Simão já era conhecido como feiticeiro e mag
o desde antes da morte de João. Dificilmente se pode dizer que o discípulo pôs suas ma
nguinhas de fora depois que o guru puritano foi tirado de cena. João deve ter conh
ecido e aprovado os ensinamentos de Simão. E se Simão era membro do círculo interno de
João, ele aprendeu sua magia com o próprio Batista, bem como outros discípulos em pos
ição similar. Assim como Jesus...
O que se segue foi extraído das Considerações Clementinas, século III:
Foi em Alexandria que Simão aperfeiçoou seus estudos sobre magia, sendo adepto de
João, um Hemerobatista ["Dia-Batista": pouco se sabe sobre esse termo], através de q
uem ele veio a envolver-se com doutrinas religiosas. João era o precursor de Jesus
...
...De todos os discípulos de João, Simão era o favorito, mas quando da morte de seu
mestre ele estava ausente, em Alexandria, e então Dositheus, um condiscípulo, foi es
colhido como chefe da escola.
Esse relato também adentra em razões numerológicas confusas para explicar por que João t
inha trinta discípulos - provavelmente apenas no círculo interno -, embora fossem na
verdade vinte e nove e meio porque um deles era uma mulher que não contava como p
essoa inteira. Seu nome era Helena... Isso é interessante porque sugere, nesse con
texto, que se tratava da Helena de Simão Mago, e que ela, também, fora discípula de João
. Tudo isso nos deixa com a inquietante sensação de que o Batista, que sempre fora t
ido como um asceta puritano, um tipo de monge, era de fato completamente diferen
te.
Quando Simão retornou de Alexandria, Dositheus entregou-lhe a liderança da Igreja de
João, não sem lutar porém. Mais uma vez, a cidade egípcia de Alexandria é importante ness
a história, provavelmente porque foi lá que os principais protagonistas aprenderam s
ua magia.
Dositheus também tinha uma seita com seu nome, que sobreviveu até o século VI. Orígenes
registra:
...um certo Dositheus dos samaritanos chegou dizendo que era o Cristo profetiz
ado: desde aquele dia até hoje existem dositeanos, que escreveram as palavras de D
ositheus e também alguns relatos sobre ele, de modo que ele não conheceu a morte, ma
s ainda vive.
Os seguidores de Simão continuaram a existir até o século III. Seu sucessor imediato f
oi um certo Menandro.
Os dositeanos "veneravam João Batista" como o "mais justo dos professores... dos Últ
imos Dias". Contudo, tanto a seita de Dositheus quanto a de Simão foram erradicada
s pela Igreja.
A implicação óbvia é de que João Batista não era o pregador ocasional de uma plebe ignara:
le era o cabeça de uma organização, sediada em Alexandria. Como vimos, os primeiros pr
osélitos do movimento de Jesus surpreenderam-se ao descobrir uma "Igreja de João" em
Éfeso, lá erigida por Apolo de Alexandria. Essa metrópole foi também a base de Simão Mago
- o sucessor oficial de João e um conhecido rival de Jesus -, que também era samari
tano. Curiosamente, os cristãos veneraram a suposta tumba do Batista em Samaria até
que fosse destruída no século IV pelo imperador Juliano, o que no mínimo sugere uma an
tiga tradição ligando João Batista a essa terra. (Talvez a parábola do Bom Samaritano fo
sse na verdade uma astuta tentativa de apaziguar os discípulos de João ou de Simão Mag
o.)
Entretanto, não há qualquer indicação de que Simão era judeu, nem mesmo originário da Samar
a. Mesmo nos mais virulentos ataques a ele dirigidos, os padres da Igreja nunca
o atacaram por ser judeu, e dada a violência com que os judeus foram acusados pelo
assassinato do Filho de Deus, através dos séculos, isso é particularmente interessant
e. Como vimos, João pregou a não-judeus e atacou o culto do Templo de Jerusalém, a própr
ia fundação da religião judaica. Ele tinha, com toda a probabilidade, fortes ligações com
Alexandria, e, o que é ainda mais significativo, seu sucessor também era um gentio.
Tudo isso sugere que o próprio João não era judeu e que estava familiarizado com a cul
tura egípcia.
É particularmente estranho que os primeiros padres da Igreja, entre eles Irineu, t
enham rastreado as origens das seitas "heréticas" justamente até João Batista. Afinal,
os Evangelhos o têm como alguém que inventou o batismo e que viveu, a bem dizer, ap
enas para preparar o caminho para Jesus. Mas saberiam eles a verdade sobre João? T
eriam percebido que ele não era o precursor mas um encarniçado rival, venerado ele p
róprio como o Messias? Teriam reconhecido o fato aterrador de que João não era, de mod
o algum, um cristão?
Os autores dos Evangelhos com efeito tiveram sua vingança contra João. Eles o reescr
everam e, no processo, "o subjugaram" e reposicionaram, de modo que aquele que u
m dia fora rival - talvez até inimigo - de Jesus agora é visto como alguém que se pros
trou em reverência à sua divindade. Eles eliminaram os verdadeiros motivos, palavras
e ações de João e os substituíram por outros que se encaixavam na imagem que deliberada
mente criaram de Jesus e seu movimento.
Como propaganda, esse artifício foi extremamente bem-sucedido, embora parte do suc
esso se deva à tendência inicial da Igreja em responder a qualquer questão" herética" co
m torturas e fogueiras. A história cristã que em confiança aceitamos hoje é resultado do
antigo reinado de terror da Igreja, bem como da propaganda dos Evangelhos.
No entanto, longe da maligna influência da Igreja estabelecida, alguns dos seguido
res de João fielmente o mantiveram em sua memória como o "verdadeiro Messias" vivo.
E eles existem até hoje.
CAPÍTULO XV
Os Devotos do Senhor da Luz
No século XVII, os missionários jesuítas que retornaram das regiões ao sul dos rios Tigr
e e Eufrates, no atual Iraque, trouxeram consigo relatos sobre uma gente que ele
s diziam ser "cristãos de São João". Embora esse grupo vivesse no mundo muçulmano e esti
vesse rodeado de árabes, ainda praticava uma forma de cristianismo no qual João Bati
sta era proeminente. Seus rituais religiosos centravam-se, todos eles, no batism
o, que não era uma cerimônia que acontecia uma única vez, como modo de iniciar e acolh
er novos membros à congregação, mas tinha um importante papel em todos os seus rituais
e sacramentos.
Desde aqueles primeiros contatos, entretanto, ficou evidente que o termo "cristãos
de São João" era uma designação completamente imprópria. A seita em questão venerava espec
almente João Batista, e seus membros não poderiam ser chamados de "cristãos" no sentid
o usual do termo. Pois eles consideravam Jesus um falso profeta, um mentiroso qu
e deliberadamente desencaminhou seu próprio povo, além de outros. Porém, tendo vivido
sob constante ameaça de perseguição por parte de judeus, muçulmanos e cristãos, por séculos
adotaram a estratégia de se apresentarem aos visitantes utilizando uma aparência me
nos ofensiva. Foi por essa razão que adotaram o nome "cristãos de São João". Sua estratégi
a está implícita nestas palavras extraídas do seu livro sagrado, o Ginza:
Quando Jesus os oprimir, então digam: Pertencemos a ti. Mas não o professem em seu
s corações, nem neguem a voz de seu Mestre, o alto Senhor da Luz, pois para o Messia
s mentiroso o oculto não se revela.
Essa seita, que ainda sobrevive nos pântanos do sul do Iraque e, em menor número, no
sudoeste do Irã - é hoje conhecida como madianitas. São um povo profundamente religio
so e pacífico, cujas leis proíbem a guerra e o derramamento de sangue. A maior parte
deles vive em seus próprios vilarejos e comunidades, embora alguns tenham se muda
do para as cidades, onde tradicionalmente trabalham como ourives, em ouro e prat
a, trabalho no qual alcançam a excelência. Mantêm sua língua e escrita próprias, ambas der
ivadas do aramaico, a língua falada por Jesus e João. Em 1978 somavam pouco menos de
15.000, mas a perseguição aos árabes dos pântanos por Saddam Hussein, após a Guerra do Go
lfo, pode tê-los levados quase à extinção - a situação política no Iraque impede que se obt
am dados precisos a esse respeito.
O nome madianitas literalmente significa gnóstico (de manda, gnose) e na verdade r
efere-se apenas aos leigos, embora seja com freqüência aplicado à comunidade como um t
odo. Seus sacerdotes chamam-se nazoreanos. Os árabes referem-se a eles como subbas
, e aparecem no Alcorão com o nome de sabeítas.
Nenhum trabalho acadêmico sério foi realizado sobre os madianitas até à década de 1880. Os
estudos mais completos até hoje continuam sendo os de Ethel Stevens (mais tarde L
ady Drower), realizados logo antes do início da II Guerra Mundial. Os acadêmicos ain
da se baseiam em grande parte no material que ela coletou, que inclui fotografia
s dos rituais e cópias dos livros sagrados madianitas. Embora recebam bem os estra
ngeiros, eles naturalmente são, e com toda razão, um povo fechado e reservado, e Lad
y Drower levou muito tempo para merecer sua confiança a ponto de revelarem suas cr
enças, doutrinas e história, e lhe permitirem acesso aos pergaminhos secretos que co
ntêm seus textos sagrados. (No século XIX, estudiosos franceses e alemães tentaram, se
m sucesso, abrir uma porta nesse muro de sigilo e segredo.) Porém, sem dúvida ainda
existem mistérios que não são compartilhados com forasteiros.
Os madianitas têm vários textos sagrados - toda a sua literatura é religiosa -, sendo
o mais importante deles o Ginza (Tesouro), também conhecido como Livro de Adão; o Si
dra d'Yabya, ou Livro de João (também conhecido como Livro dos Reis), e o Haran Gawa
ita, que relata a história da seita. O Ginza data com certeza do século VII, ou ante
s, enquanto o Livro de João foi compilado, segundo se acredita, algum tempo depois
. O João do livro é o Batista, que no texto madianita tem dois nomes, Yohanna (que é m
adianita) e Yahya, que é o nome árabe com que é citado no Alcorão. O último é utilizado com
mais freqüência, indicando que o livro foi escrito após os muçulmanos terem conquistado
a região na metade do século VII, embora o material contido nele seja muito mais ant
igo. A questão importante é: quanto tempo mais antigo?
Acredita-se em geral que os madianitas criaram o Livro de João e elevaram o Batist
a à condição de seu profeta como uma manobra inteligente para evitar a perseguição pelos m
uçulmanos, que toleravam apenas aqueles a que chamavam de "povos do Livro", ou sej
a, povos com uma religião que tinha um livro sagrado e um profeta; se assim não foss
e, eram considerados pagãos. Entretanto, os madianitas aparecem no próprio Alcorão, co
m o nome de sabeítas, como um "povo do Livro", o que demonstra que eram conhecidos
muito tempo antes de estarem sob a ameaça do domínio muçulmano. De qualquer forma, el
es foram perseguidos, particularmente no século XIV; quando os dominadores islâmicos
quase os eliminaram por completo.
Em constante fuga de seu perseguidores, os madianitas finalmente chegaram ao lug
ar onde estão até hoje. Suas próprias lendas, e estudos modernos, mostram que eles ori
ginam-se da Palestina, de onde foram expulsos no primeiro século da era cristã.Ao lo
ngo dos séculos rumaram para todos os lados, mudando-se cada vez que deparavam com
perseguidores. O que temos hoje é o remanescente de uma religião muito mais difundi
da.
A religião dos madianitas é uma completa e retumbante mixórdia: diversos fragmentos do
judaísmo do Antigo Testamento, formas gnósticas heréticas do cristianismo e crenças dua
listas iranianas estão todas misturadas em sua teologia e cosmologia. O problema e
stá em separar o que era sua crença original do que foi incorporado posteriormente.
Parece que os próprios madianitas esqueceram grande parte do significado inicial d
e sua religião. No entanto, é possível fazer algumas generalizações a respeito, e uma análi
e apurada permitiu que os estudiosos chegassem a certas conclusões sobre suas crença
s remotas. Foi essa análise que nos forneceu algumas pistas interessantes sobre a
importância de João Batista e seu verdadeiro relacionamento com Jesus.
Os madianitas representam a única religião gnóstica sobrevivente em todo o mundo: suas
idéias relativas ao universo, ao ato da criação e aos deuses são crenças gnósticas conheci
as. Acreditam numa hierarquia de deuses e semi-deuses, tanto femininos quanto ma
sculinos, com uma divisão fundamental entre os da luz e os das trevas.
Seu ser supremo, que criou o universo e as deidades menores, aparece sob vários no
mes que podem ser traduzidos como "Vida" , Mente" , "Senhor da Luz" . Eles criar
am cinco "seres da luz" , que automaticamente originaram cinco entidades iguais
mas opostas nas trevas. (Essa ênfase na associação da luz com o bem supremo é uma caract
erística gnóstica: quase todas as páginas do Pistis Sophia, por exemplo, utilizam essa
metáfora. Para os gnósticos ser iluminado significa literal e figurativamente entra
r em um mundo de luz.) Como em outros sistemas gnósticos, foram esses semi-deuses
que criaram e governam o universo material e a Terra. A humanidade também foi cria
da por um desses seres, chamado (dependendo da versão do mito) Hiwel Ziwa ou Ptahi
l. Os primeiros humanos são o Adão e a Eva físicos - Adão Paghia e Hawa Paghia - e suas
contrapartes "ocultas", Adão Kasya e Hawa Kasya. Os madianitas acreditam ser desce
ndentes de genitores dos dois mundos, o material e o espiritual, Adão Paghia e Haw
a Kasya.
Seu equivalente mais próximo do Demônio é a deusa Ruha, que governa o reino das trevas
, mas que também é considerada como o Espírito Santo. Essa ênfase em forças iguais e opost
as do bem e do mal, masculino e feminino, é caracteristicamente gnóstica e está exempl
ificada nestas palavras:
...a terra é como uma mulher e o céu como um homem, pois eles tornam a terra fecun
da.
Uma deusa importante, para qual muitas preces podem ser encontradas nos livros d
os madianitas, é Libat, que é identificada com Ishtar.
Para os madianitas, o celibato é um pecado; homens que morrem sem se casar são conde
nados a reencarnar. Por outro lado, porém, os madianitas não acreditam no ciclo de r
enascimento. Ao morrer, a alma retorna para o mundo da luz, de onde os madianita
s outrora vieram, e é auxiliada em seu caminho por muitas preces e cerimônias, muita
s das quais claramente se originam dos rituais de sepultamento dos antigos egípcio
s.
A religião permeia todos os aspectos da vida diária dos madianitas, mas seu principa
l sacramento é o batismo, celebrado no casamento e mesmo nos serviços funerários. O ba
tismo madianita consiste em imersão total em lagos especialmente criados e ligados
a um rio, que é conhecido como Jordão. Parte de todo ritual é uma série complexa de ape
rtos de mão entre o sacerdote e aquele que está sendo batizado.
O dia sagrado dos madianitas é o domingo. As comunidades são dirigidas pelos sacerdo
tes, que recebem também o título de "rei" (malka), embora alguns deveres religiosos
possam ser realizados pelos leigos. O sacerdócio é hereditário e consiste em três níveis:
os sacerdotes comuns, chamados de "discípulos" (tarmide), os bispos e, acima de to
dos, o "cabeça do povo" embora ninguém tenha sido considerado digno de assumir esse
papel ao longo do século.
Os madianitas afirmam que já existiam muito tempo antes do Batista, a quem vêem como
um grande líder de sua seita, mas nada além disso. Dizem ter deixado a Palestina no
primeiro século da era cristã, sendo originários de uma região montanhosa que chamam de
Tura d'Madai, até hoje não identificada pelos estudiosos.
Quando os jesuítas os encontraram pela primeira vez, no século XVII, pensou-se que e
ram descendentes dos judeus batizados por João. Hoje, no entanto, os estudiosos es
tão levando a sério suas afirmações de que já existiam muito antes da época de João. Contud
ainda preservam traços de sua estada na Palestina do primeiro século: sua escrita é se
melhante à de Nabatéia, o reino árabe que fazia fronteira com Peréia, onde João Batista fe
z sua primeira aparição. Indicações no Hawan Gawaita sugerem que eles deixaram a Palesti
na em 37, mais ou menos na época da crucificação, mas se isso foi mera coincidência é impo
ssível dizer. Teriam sido expulsos pelos seus rivais, os seguidores de Jesus?
Até recentemente os acadêmicos pensavam que a negação dos madianitas de serem uma seita
judaica distinta era mentira, mas agora se reconhece que eles não têm raízes judaicas.
Pois embora seus textos incluam nomes de alguns personagens do Antigo Testament
o, eles realmente ignoram os costumes e as práticas rituais dos judeus - por exemp
lo, os homens não são circuncidados e seu Sabá não é no sábado. Tudo isso indica que eles v
veram outrora próximos dos judeus, mas nunca realmente fizeram parte desse povo.
Uma coisa sobre os madianitas que sempre intrigou os estudiosos é sua insistência em
que suas origens remontam ao Egito. De fato, nas palavras de Lady Drower, eles
se consideram, de alguma forma, "correligionários" dos antigos egípcios, pois um de
seus textos sagrados diz que "o povo do Egito era da nossa religião". A misterios
a região montanhosa de Tura d'Madai, que afirmam ser sua terra natal, foi onde a r
eligião surgiu - entre as pessoas, dizem eles, que vieram do Egito. O nome de seu
semi-deus, que governa mundo, Ptahil, tem uma semelhança incrivelmente próxima com o
deus Ptah dos egípcios e, como vimos, suas cerimônias fúnebres parecem dever muito às d
os antigos egípcios.
Após terem fugido da Palestina, os madianitas viveram nas terras dos partos e na Pér
sia sob o domínio dos sassânidas, mas também se fixaram na cidade de Harran, que, como
veremos, tem alguma importância para esta investigação.
Os madianitas nunca afirmaram que João Batista foi seu fundador ou que inventou o
batismo, e o consideram não mais do que um grande - de fato, o maior - líder de sua
seita, um Nasurai (adepto). Dizem que Jesus também era um Nasurai, mas tornou-se "
um rebelde, um herege, que desencaminhou os homens [e] traiu as doutrinas secret
as...".
O Livro de João conta a história de João e Jesus. O nascimento de João é profetizado em um
sonho e uma estrela aparece sobre Enishbai (Isabel). Seu pai é Zakhria (Zacarias)
, e os dois genitores, como na história dos Evangelhos, são idosos e sem filhos. Após
o nascimento, os judeus conspiram contra o menino, que é levado por Anosh (Enoch)
para sua proteção e escondido em uma montanha sagrada, da qual retorna com a idade d
e 22 anos. Ele então torna-se o líder dos madianitas, e, o que é interessante, é represe
ntado como alguém que tem o dom da cura.
João é chamado de Pescador de Almas e Bom Pastor. O primeiro termo era utilizado em
referência a Ísis e Maria Madalena e também - "Pescador de Homens" - a Simão Pedro e aos
últimos dos vários deuses do Mediterrâneo, incluindo Tamus e Osíris - além, é claro, de Je
us. O Livro de João inclui a lamentação do Batista por uma ovelha perdida que se atolo
u na lama por ter ele reverenciado Jesus.
Na lenda dos madianitas, João tinha uma esposa, Anhar, mas ela não tem um papel prep
onderante na história. Um elemento estranho na lenda é que os madianitas parecem des
conhecer totalmente o episódio da morte de João, que é uma parte muito dramática do Novo
Testamento. Há uma sugestão no Livro de João de que o Batista morreu pacificamente e
sua alma foi levada pelo deus Manda-t-Haiy na forma de uma criança, mas isso parec
e ser uma imagem poética daquilo que eles pensam que deve ter acontecido ao Batist
a. Muitos de seus textos sobre João nunca tiveram a intenção de ser um relato biográfico
factual, mas ainda assim é intrigante que eles ignorem o que teria sido, essencia
lmente, a morte de um mártir. Por outro lado, pode ser que o episódio seja central p
ara seus mistérios mais ocultos.
E o que faz Jesus no Livro de João? Ele aparece com os nomes de Yeshu Messiah e Me
ssiah Paulis (acredita-se que este último derive de uma palavra persa que signific
a "impostor") e, algumas vezes, como "Cristo, o Romano". Ele aparece pela primei
ra vez na história se apresentando para tornar-se um discípulo de João; o texto é pouco
claro, mas sugere que Jesus não era membro da seita, mas um forasteiro. Quando ele
pela primeira vez vai até o Jordão e pede para ser batizado, João mostra-se céptico qua
nto a seus reais motivos e merecimento e recusa, mas Jesus finalmente o persuade
. Ao ser batizado, Ruha, a deusa das trevas, aparece na forma de uma pomba e lança
uma cruz de luz sobre o Jordão.
Após se tornar discípulo de João - em um incrível paralelo com as histórias contadas pelos
cristãos sobre Simão Mago -, Jesus (nas palavras de Kurt Rudolph) "começa a perverter
a palavra de João e muda o batismo do Jordão, e torna-se sábio através da sabedoria de
João" .
O Hawan Gawaita acusa Jesus com estas palavras:
Ele perverteu as palavras da luz e transformou-as em trevas e converteu aquele
s que eram meus e perverteu todos os cultos.
O Ginza diz: "Não acredite nele (Jesus) porque ele pratica feitiçaria e traição.
Os madianitas, com sua confusa cronologia, aguardam a chegada de um personagem c
hamado Anosh-Uthra (Enoch) que irá "acusar Cristo, o Romano, o mentiroso, filho de
uma mulher, que não vem da luz" e irá "desmascarar Cristo, o Romano, como um mentir
oso, e ele será amarrado pelas mãos dos judeus, seus devotos irão amarrá-lo, e seu corpo
será assassinado".
A seita tinha uma lenda sobre uma mulher chamada Miriai (Miriam ou Maria), que f
oge com seu amante e cuja família a procura desesperadamente para trazê-la de volta
(mas não sem antes lhe passar uma descompostura, expressa em linguagem bastante fo
rte, chamando-a de "puta no cio" e "alguidar libertino"). Filha dos "governantes
de Jerusalém", ela vai viver com seu marido madianita na foz do Eufrates, onde se
torna uma espécie de profetiza, sentada em um trono e lendo o Livro da Verdade". S
e, como parece ser, a história é uma alegoria das viagens e perseguições da própria seita,
indicaria então que, numa época passada, uma facção judaica juntara forças com um grupo nã
-judeu e que, como resultado dessa fusão, surgiram os madianitas. Entretanto, o no
me Miriai e sua descrição como uma "puta" incompreendida e perseguida também é sugestiva
da tradição de Madalena, assim como os detalhes sobre ela ter deixado sua terra nat
al e se tornado uma pregadora ou profetiza. De qualquer modo, é interessante que o
s madianitas tenham adotado como seu próprio símbolo a figura de uma mulher.
Os madianitas parecem ser uma simples curiosidade antropológica, um povo perdido e
confuso que foi congelado no tempo e absorveu algumas crenças bizarras ao longo d
os anos. Entretanto, um estudo cuidadoso de seus textos sagrados revelou alguns
paralelos impressionantes com outra literatura antiga que tem relação com nossa inve
stigação.
Seus manuscritos sagrados são ilustrados com representações de deuses que portam incríve
is semelhanças com aquelas dos papiros sobre magia dos gregos e egípcios - do tipo u
tilizado por Morton Smith em sua pesquisa.
Foram feitas comparações entre as doutrinas dos madianitas e a dos maniqueus, os seg
uidores do professor gnóstico Mani (cerca de 216-76); de fato, existe um consenso
de que a seita batismal de Mughtasilah, à qual o pai de Mani pertencia e dentro da
qual o próprio Mani foi criado, eram os madianitas (ou durante seu longo êxodo em d
ireção ao sul do Iraque ou em uma comunidade hoje extinta). As doutrinas de Mani for
am, sem dúvida, influenciadas pelos madianitas - e foram as doutrinas deles, por s
ua vez, que exerceram enorme influência sobre as seitas gnósticas da Europa, incluin
do a dos cátaros.
Alguns estudiosos, como G. R. S. Mead, assinalaram notáveis semelhanças entre os tex
tos sagrados dos madianitas e o Pistis Sophia. De fato, uma seção do Livro de João cha
mada Tesouro do Amor é considerada por ele como "reminiscências de uma fase anterior
" daquela obra. Também existem fortes paralelos com muitos documentos do Nag Hamma
di que foram associados com os "movimentos batismais" que existiam naquela época.
E notam-se grandes semelhanças entre a teologia dos madianitas e a de alguns dos M
anuscritos do Mar Morto.
Há uma outra conexão intrigante. Sabe-se que os madianitas se fixaram em Harran, na
Mesopotâmia, que, até o século X, foi a sede de uma seita ou escola conhecida como sab
eíta. Os sabeítas foram muito importantes para a história do esoterismo. Eram filósofos
herméticos e herdeiros do hermetismo egípcio, e foram extremamente influentes em sei
tas místicas muçulmanas como a dos Sufis, cuja influência por sua vez estendeu-se até a
cultura do sul da França na Idade Média - como ilustram, por exemplo, os cavaleiros
templários. Como Jack Lindsay diz em seu livro The Origins of Alchemy in Graeco-Ro
man Egypt:
Um estranho pacote de crenças herméticas, incluindo várias ligadas proximamente à alqu
imia, persistiu entre os sabeítas de Harran, na Mesopotâmia. Eles sobreviveram com u
ma seita pagã inserida no Islã... por pelo menos duzentos anos.
Os madianitas, como vimos, são ainda chamados de "sabeítas" (ou subbas) pelos muçulman
os de hoje, e portanto está claro que sua filosofia é que era bastante influente em
Harran. Além do seu hermetismo, que outro legado deixaram para os templários? Teriam
transmitido a eles sua reverência por João Batista e talvez até mesmo o conhecimento
secreto do Batista?
As ligações mais interessantes, entretanto, são com o enigmático quarto Evangelho. Kurt
Rudolph, que é provavelmente o principal perito em madianitas hoje em dia, escreve
:
Os elementos mais antigos da literatura madianita preservaram para nós um testem
unho do ambiente Oriental do início do cristianismo, que pode ser utilizado na int
erpretação de certos textos do Novo Testamento (em particular os joaninos).
Vimos que muitos dos mais respeitados e influentes estudiosos do Novo Testamento
do século XX consideram partes do Evangelho de João - principalmente o prólogo "No iníc
io era o Verbo..." e algumas das discussões teológicas - como tendo sido "pinçadas" do
s textos escritos pelos seguidores de João Batista. Muitos desses mesmos acadêmicos
concordam em que esses textos compartilham uma origem comum: os livros sagrados
dos madianitas. Já em 1926, H. H. Schaeder sugeriu que o prólogo do Evangelho de João
- com a palavra Verbo no feminino, era "um hino dos madianitas extraído dos círculos
do Batista". Outro estudioso, E. Schweizer, mostrou os paralelos entre o discur
so sobre o Bom Pastor no Evangelho de João do Novo Testamento e o trecho sobre o B
om Pastor do Livro de João dos madianitas, concluindo que vieram da mesma fonte. É c
laro que essa fonte original não aplica a analogia do Bom Pastor a Jesus, mas a João
Batista: o Evangelho de João do Novo Testamento efetivamente roubou-a dos madiani
tas/joanitas.
Alguns comentadores, como Rudolf Bultmann,concluíram que os madianitas atuais são, n
a verdade, descendentes dos seguidores do Batista - eles são a esquiva Igreja de J
oão, que discutimos anteriormente. Embora existam razões suficientes para pensar que
os madianitas atuais são apenas um ramo da igreja joanita sobrevivente, ainda ass
im é elucidativo prestar atenção ao sumário de W. Schmithals sobre as conclusões de Bultma
nn:
Por um lado [o Evangelho de] João manifesta grande proximidade com a concepção de mu
ndo dos gnósticos. A fonte dos discursos, de que João se apodera ou na qual se apóia,
tem, de modo geral, uma aparência gnóstica. Ela apresenta paralelos bastante próximos
com os textos dos madianitas, sendo que os mais antigos estratos de suas tradições r
emontam ao tempo do cristianismo primitivo.
Já se argumentou, de maneira ainda mais abrangente, que o material apocalíptico em Q
, a fonte dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, veio da mesma fonte do Ginza
dos madianitas, e chegou-se inclusive a sugerir que o batismo cristão se desenvol
veu a partir dos rituais dos madianitas.
As implicações desse plágio das escrituras são enormes. Seria possível que grande parte de
sse material tão estimado por gerações de cristãos - por conter ou representar as verdad
eiras palavras de Jesus - estivesse totalmente relacionado a outro homem? E que
esse outro fosse seu ferrenho rival, o profeta que não profetizou a vinda de Jesus
, mas que era reverenciado como o próprio Messias - João Batista?
Investigações contínuas revelam mais e mais evidências de que os madianitas representam
uma linha direta que remonta aos seguidores originais de João. De fato, a mais ant
iga referência aos madianitas data de 792, quando o teólogo sírio Theodore bar Konai,
citando o Ginza, explicitamente afirma que eles derivavam dos dositeanos. E, com
o já vimos, os dositeanos eram uma seita herética formada por um dos primeiros discípu
los de João, paralelamente ao grupo de Simão Mago.
E há mais. Vimos que Jesus era chamado de "nazoreano" ou "nazareno", que era também
um título aplicado aos primeiros cristãos, embora não tivesse sido cunhado com a intenção
de descrevê-los. Esse termo já existia e era utilizado por um grupo de seitas correl
atas das regiões heréticas da Samaria e da Galiléia, cujos membros se consideravam os
guardiões da verdadeira religião de Israel. Quando usado para designar Jesus, o term
o "nazoreano" identifica-o como um membro regular de um culto que, a partir de o
utra evidência, parece ter existido desde pelo menos 200 anos antes de seu nascime
nto.
Mas lembre que os madianitas também chamavam seus adeptos de "Nasurai": isso não é coi
ncidência. Hugh Schonfield, ao discutir os nazoreanos pré-cristãos, afirma:
Há uma boa razão para acreditar que os herdeiros desses nazarenos... são os atuais n
azoreanos (também conhecidos como madianitas) do baixo Eufrates.
O grande estudioso da Bíblia C. H. Dodds concluiu que os nazoreanos eram a seita à q
ual João pertencia - ou , mais corretamente, que ele liderava -, e que Jesus começou
sua carreira como discípulo de João, mas deu início a seu próprio culto e levou o nome
consigo.
É possível que os madianitas não estejam confinados ao Iraque e ao Irã de nossos dias (s
e é que conseguiram sobreviver às depredações de Saddam), podendo também estar representad
os por uma outra seita altamente secreta que ainda existe na Síria atual. São os Nus
airiyeh ou Nosairi (algumas vezes também conhecidos como Alawites em virtude da ca
deia de montanhas onde vivem.) O nome é obviamente próximo à "nazoreano". Mais uma vez
aparentemente islâmicos, sabe-se que adotaram os ornamentos dessa religião para se
protegerem da perseguição. Embora seja sabido que sua "verdadeira" religião é mantida em
segredo, os detalhes dela, por razões óbvias, são difíceis de descobrir. Acredita-se, e
ntretanto, que se trata de alguma forma de cristianismo.
Um dos poucos europeus que conseguiu chegar perto dos ensinamentos internos dos
Nosairis foi Walter Birks, que escreveu um relato sobre eles em The Treasure of
Montségur (em colaboração com R.A. Gilbert). Birks passou algum tempo na região durante
a II Guerra Mundial e fez amizade com alguns dos sacerdotes. Seu relato é muito ci
rcunspecto, pois ele sempre honrou o pedido de segredo que lhe fizeram, mas pelo
que diz parece ser muito provável que se trata de uma seita gnóstica muito semelhan
te à dos madianitas. Particularmente interessante é uma conversa entre Birks e um do
sacerdotes Nosairi após terem discutido a questão dos cátaros e a possível natureza do
Santo Graal. (Ele notou que alguns dos rituais centravam-se no uso de um cálice sa
grado.) O sacerdote disse-lhe qual era o "o grande segredo" de sua religião: "Este
graal de que você fala é um símbolo que representa a doutrina que Cristo ensinou a João
, o Amado. Nós ainda o temos".
Recordemos a tradição" joanita" de algumas formas da maçonaria oculta européia e do Mona
stério de Sion - que os cavaleiros templários adotaram a religião dos "joanitas do Ori
ente", a qual consistia nos ensinamentos secretos que Jesus transmitiu a João, o d
iscípulo amado. Estando claro que o Evangelho de João era, originalmente, material s
obre o batista, então explica-se a evidente confusão que assinalamos anteriormente e
ntre João, o Amado, e João Batista.
A tradição dos madianitas sobre João Batista e Jesus encaixam-se espantosamente bem co
m as conclusões que delineamos no último capítulo: Jesus a princípio era um discípulo do B
atista, mas se separou dele e, no processo, levou consigo alguns dos seus discípul
os. As duas escolas eram rivais, bem como seus respectivos líderes.
Tomados em conjunto, esses elementos formam um quadro bastante consistente. Sabe
mos que João Batista era uma figura altamente respeitada, com um grande número de se
guidores - uma verdadeira igreja - que, entretanto, desaparece dos registros "of
iciais", após uma breve menção nos Atos. Esse movimento, porém, tinha uma literatura própr
ia, que foi suprimida, embora alguns de seus elementos tenham sido "tomados de e
mpréstimo" pelos Evangelhos cristãos - especificamente o nascimento de João, em Lucas
(ou sua fonte), e o Magnificat, o cântico a Maria. Mais surpreendente é a evidência, d
ada acima, de que o mito do massacre dos inocentes ordenado por Herodes, mesmo s
endo fictício, estava anteriormente ligado ao nascimento de João, que Herodes temia
ser o verdadeiro "rei de Israel".
Dois outros movimentos que representavam uma grande ameaça ao cristianismo emergen
te foram fundados por outros discípulos de João: Simão Mago e Dositheus; ambas eram se
itas gnósticas influentes na Alexandria. Significativamente, o material "batista"
que foi incorporado no Evangelho de João do Novo Testamento também é gnóstico, e os madi
anitas são gnósticos. A conclusão óbvia é de que João Batista era gnóstico.
Existem também impressionantes paralelos entre os textos dos madianitas, Simão Mago,
do Evangelho de João e dos coptas, principalmente o Pistis Sophia, que tem um pap
el importante em nossa investigação sobre Maria Madalena.
Nenhuma das seitas - madianitas, simonianos e dositeanos - associadas com João Bat
ista faz parte da religião judaica, embora todas tenham se originado na Palestina,
duas delas no norte, na herética Samaria. E se esses grupos não eram de religião juda
ica, a conclusão clara é que João também não era judeu. Pois embora o desenvolvimento dess
as idéias gnósticas possa remontar a outros lugares e culturas, principalmente o Irã,
há uma clara linha de influência que nos remete à religião do antigo Egito. Foi lá que enc
ontramos os paralelos mais próximos com as idéias e ações de Jesus, e significativamente
, os madianitas afirmam descenderem dos antigos egípcios.
Apesar da confusão presente nos seus textos, muito do que os madianitas dizem sobr
e si mesmos foi confirmado pelos estudiosos modernos que eram, para dizer o mínimo
, inicialmente cépticos sobre suas afirmações.
Os madianitas afirmam que os precursores de sua seita vieram do antigo Egito, em
bora a seita seja originária da Palestina. Eles não eram judeus, mas viviam lado a l
ado com estes. Sua seita, conhecida então como nazoreanos, era liderada por João Bat
ista, mas já existia desde muito tempo antes. Eles o veneram, mas não o consideram n
ada além de um grande líder e profeta. Sofreram perseguições, primeiro por parte dos jud
eus, depois dos cristãos, e foram expulsos da Palestina, cada vez mais para leste,
até chegarem a sua terra atual.
Os madianitas viam em Jesus um mentiroso, um embusteiro, um feiticeiro do mal, o
que corresponde com a visão dos judeus expressa no Talmude, onde se diz que Crist
o foi acusado de "desencaminhar" os judeus e que sua sentença de morte lhe foi imp
utada por ter sido condenado como ocultista.
Todas as seitas vinculadas a João Batista, embora individualmente sejam relativame
nte pequenas, se tomadas em conjunto representavam um enorme movimento. Os madia
nitas, simonianos, dositeanos e os próprios cavaleiros templários (existem argumento
s favoráveis para que sejam incluídos) foram brutalmente perseguidos e suprimidos pe
la Igreja Católica em virtude de seu conhecimento sobre o Batista e sua reverência a
ele, permanecendo apenas o pequeno grupo de madianitas no Iraque. Nos outros lu
gares, particularmente na Europa, os joanitas passaram talvez a se mover pelo su
bmundo, mas ainda existem.
Nos círculos ocultistas da Europa, dizia-se que os cavaleiros templários tinham obti
do seu conhecimento dos "joanitas do Oriente". Outros movimentos secretos e esotér
icos, como os maçons - especialmente as ordens que afirmam descender diretamente d
os templários e também dos rituais egípcios - e o Monastério de Sion, sempre tiveram uma
veneração especial por João Batista.
Resumindo os pontos principais da tradição joanita:
1. Ela dá ênfase especial ao Evangelho de João, pois afirma que este contém ensinam
entos secretos transmitidos a João Evangelista ("o discípulo Amado") por "Cristo".
2. Há uma confusão evidente entre João Evangelista (o suposto autor do quarto Eva
ngelho) e João Batista. Essa confusão permanece como característica da corrente princi
pal da maçonaria.
3. As "tradições secretas" referidas são especificamente gnósticas.
4. Embora afirme representar uma forma esotérica de cristianismo, que gua
rda os "ensinamentos secretos" de Jesus, a tradição demonstra uma patente falta de r
espeito pelo próprio Jesus. Na melhor das hipóteses, parece considerá-lo um mero morta
l, ilegítimo, talvez mesmo alguém que sofresse de delírios de grandeza. Para ao joanit
as, o termo "Cristo" não significa divindade, sendo apenas um termo para designar
respeito - de fato, qualquer um de seus líderes é conhecido como "Cristo". Por essa
razão, quando um membro de tal grupo se diz "cristão", isto pode não significar exatam
ente o que parece.
5. A tradição também considera Jesus como um adepto da escola de mistério de Osíris,
assim como os segredos que ele ensinou também pertenciam ao círculo interno osiriano
.
Em seu formato original, o Evangelho de João do Novo Testamento não era uma escritur
a do movimento de Jesus, mas um documento que pertencera originariamente aos seg
uidores de João Batista. Isso explica não só a alta consideração que os joanitas demonstra
ram a esse Evangelho, como também a confusão entre João Evangelista e João Batista. Entr
etanto, no que diz respeito à tradição joanita, essa confusão era deliberada.
Não existe qualquer evidência de um movimento "joanita" oriental que tenha formado u
ma igreja esotérica a partir da figura de João Evangelista. Existem, entretanto, evi
dências consideráveis da existência de uma tal igreja inspirada em João Batista. Esta ai
nda é representada pelos madianitas e talvez pelos Nosairi. Sem dúvida, os madianita
s eram encontrados em vários lugares do Oriente Médio, embora as localizações sejam desc
onhecidas, mas hoje estão confinados a pequenas comunidades no Iraque e no Irã. É mais
do que possível que já existissem na época das cruzadas, e portanto poderiam ter entr
ado em contato com os templários; e é também provável que a igreja oriental de João tenha
se tornado um movimento secreto ainda no início da era cristã.
Mesmo levando-se em consideração o tratamento atroz que receberam dos cristãos, é difícil
explicar por que os madianitas continuam a expressar um ódio mortal por Jesus. É ver
dade que o consideram um falso messias que roubou os segredos do seu Mestre João e
os usou para levar ao erro aqueles de suas próprias fileiras, mas após todo esse te
mpo a veemência de sua hostilidade parece inexplicável. Nem a perseguição que sofreram e
xplica totalmente por que ainda dirigem um ódio tão fulminante a Jesus pessoalmente.
O que poderia ele ter feito para merecer tal depreciação contínua, por séculos e séculos?
CAPÍTULO XVI
A Grande Heresia
Temos consciência de que grande parte do que colocamos nos últimos capítulos deve ter
sido um choque para muitos dos leitores, particularmente se não estão familiarizados
com os estudos recentes sobre a Bíblia. Afirmar que o Novo Testamento está errado a
o apresentar o Batista como alguém subserviente a Jesus, e que o sucessor oficial
de João era o mago do sexo e gnóstico Simão Mago, é tão contrário à história "tradicional"
hega a sugerir uma rematada invenção. Como vimos, porém, muitos estudiosos altamente r
espeitados do Novo Testamento realizaram tais descobertas de forma totalmente in
dependente: nós apenas as coletamos e comentamos.
A maioria dos estudiosos contemporâneos da Bíblia concorda que João Batista era um líder
político proeminente, cuja mensagem religiosa de algum modo ameaçava desestabilizar
o status quo da Palestina naquela época, e já há muito se reconhece que Jesus era uma
figura do mesmo tipo. Porém, de que modo a dimensão política de sua missão se relaciona
com o que revelamos sobre sua formação nas escolas de mistério egípcias?
Devemos lembrar que a religião e a política eram uma única coisa no mundo antigo, e qu
e qualquer pessoa com carisma para arrastar multidões era automaticamente consider
ada uma ameaça política pelos poderes instituídos. E a própria multidão buscaria direção no
r, o que provocaria, no mínimo, uma enorme dor de cabeça nas autoridades.A mistura d
e religião e política era exemplificada no conceito do Rei Divino, ou de César visto c
omo um deus. Os egípcios acreditavam que os faraós eram deidades a partir do momento
da sucessão: começavam como Hórus encarnado, o mágico rebento de Ísis e Osíris, e ao se co
cluírem os rituais sagrados da morte eles se tornavam Osíris. Mesmo durante o Império
Romano, a família governante do Egito, a dinastia grega dos Ptolomeus - da qual Cl
eópatra é a figura mais conhecida -, teve o cuidado de manter a tradição do faraó-deus. A
Rainha do Nilo identificava-se com a figura de Ísis, e com freqüência era retratada co
mo a deusa.
Um dos conceitos mais duradouros relacionado a Jesus é o de sua realeza. "Cristo R
ei" é uma expressão usada com freqüência por cristãos, alternadamente com o termo "Cristo
Senhor", e embora ambos sejam utilizados simbolicamente, passam ainda a idéia de q
ue ele pertencia à realeza - e a Bíblia concorda.
O Novo Testamento é inequívoco nesse ponto: Jesus era descendente direto do rei Davi
, embora a exatidão dessa declaração não possa ser verificada. A questão crucial é que ou o
próprio Jesus acreditava pertencer a uma linhagem real, ou queria que seus seguido
res nisso acreditassem. De qualquer forma, não há dúvida de que Jesus afirmava ser o v
erdadeiro rei de toda Israel.
Isso pareceria estar em oposição à nossa idéia de que Jesus era de religião egípcia; afinal
por que os judeus dariam ouvidos a um pregador não judeu e, mais do que isso, o a
ceitariam como seu rei legítimo? Como vimos no Capítulo Treze, muitos seguidores de
Jesus achavam que ele era judeu: provavelmente isso era uma parte essencial de s
eu plano. Entretanto, a questão permanece - por que ele desejaria ser o rei dos ju
deus? Se estivermos certos, e ele queria restaurar o que acreditava ser a religião
original do povo de Israel, trazer de volta ao rígido patriarcado judaico as deus
as perdidas do Templo de Salomão, nada melhor do que fincar sua própria imagem nos c
orações e mentes das massas como seu legítimo governante.
Jesus queria o poder político; talvez isso explique o que ele esperava alcançar ao r
ealizar o ritual de iniciação da crucificação e a subseqüente "ressurreição", através da in
nção de sua sacerdotisa e parceira no casamento sagrado, Maria Madalena. Talvez ele
realmente acreditasse que, com sua "morte" e renascimento, tornar-se-ia, assim c
omo os faraós, Osíris, o próprio deus-rei. Como um imortal deificado, Jesus teria então
poderes terrenos ilimitados. Porém, algo com certeza deu muito errado.
Como um exercício de aumento de poder, a crucificação foi algo próximo de um fiasco, e p
rovavelmente o esperado afluxo de energia mágica não se materializou. Como vimos, es
tudiosos como Hugh Schonfield sugerem que Jesus muito provavelmente não morreu na
cruz, nem como resultado direto de seus tormentos. Contudo, ele parece ter ficad
o prostrado, ou de algum modo incapacitado, pois não só a grande arrancada para o po
der político não se concretizou como também a Madalena deixou o país, indo para a França.
Pode-se especular que sem Jesus, seu protetor, ela repentinamente viu-se ameaçada
pelos velhos oponentes, Simão Pedro e seus aliados.
A idéia de que algum judeu teria sido receptivo a um líder não judeu parece à primeira v
ista muito improvável. Entretanto, esse cenário não é impossível, pois isso de fato aconte
ceu.
Em sua obra A guerra judaica, Josefo registra que, cerca de vinte anos após a cruc
ificação, uma figura conhecida na história apenas como "o Egípcio" entrou na Judéia e reun
iu um considerável exército de judeus a fim de derrotar os romanos. Referindo-se a e
le como "um falso profeta", Josefo diz:
Chegando esse homem ao país, uma fraude portando-se como um profeta, reuniu cerc
a de 30.000 simplórios, conduziu-os por todo o deserto até o Monte das Oliveiras, e
dali se preparou para entrar à força em Jerusalém, subjugar o exército romano, e tomar o
poder supremo tendo seus companheiros de luta como guardiães.

Esse exército foi massacrado pelos romanos sob o comando de Félix (sucessor de Pilat
os no governo), embora o Egípcio tenha escapado e sumido para sempre dos registros
históricos.
Embora houvesse colônias judias no Egito e portanto esse estrangeiro surgido do na
da pudesse afinal de contas ser um judeu, o episódio é ainda assim instrutivo porque
alguém que pelo menos era tido como um egípcio foi capaz de reunir um número substanc
ial de judeus em seu próprio país. Outra evidência, entretanto, sugere que esse líder não
era judeu: o mesmo personagem é mencionado nos Atos dos Apóstolos (21:38). Paulo aca
bara de ser resgatado da turba no Templo em Jerusalém e fora colocado sob a "custódi
a de proteção" dos romanos, que estavam claramente em dúvida quanto à sua verdadeira ide
ntidade. O capitão da guarda lhe pergunta:
Porventura não és tu aquele egípcio que, nos dias passados, levantaste um tumulto e
levaste ao deserto quatro mil sicários?
Ao que Paulo responde: "Sou um judeu, natural de Tarso..."
Esse episódio coloca algumas questões importantes: por que um egípcio se daria ao trab
alho de liderar uma revolta palestina contra os romanos? E, talvez ainda mais pe
rtinente, por que os romanos associariam Paulo, um pregador cristão, com aquele ag
itador egípcio? O que poderiam ter eles em comum? Há então um outro ponto significativ
o: a palavra, traduzida como "assassino" na versão do rei James, é na verdade sicari
i , que era o nome dos judeus nacionalistas mais militantes, notórios por suas tátic
as terroristas. O fato de terem se reunido em torno da figura de um estrangeiro
naquela ocasião, demonstra ser possível que tivessem feito o mesmo no caso de Jesus.
Nossa investigação sobre Maria Madalena e João Batista lançou nova luz sobre Jesus. Agor
a o vemos de modo radicalmente diferente do Cristo tradicional. Parece haver dua
s correntes principais de informações sobre ele: uma que o vincula a um passado não ju
deu - mais especificamente, egípcio e outra na qual ele é visto como rival de João. Qu
e quadro surgiria se combinássemos as duas correntes?
Os Evangelhos são muito cuidadosos ao apresentar um Jesus literalmente divino; por
tanto, qualquer um, incluindo João, era espiritualmente inferior a ele. Mas quando
se vê isso como mero artifício de propaganda, a história finalmente começa a fazer sent
ido. A primeira grande diferença com relação à história de Jesus comumente aceita é que, su
osições à parte, ele de início não foi intitulado Filho de Deus, nem seu nascimento presen
ciado por anjos celestiais. De fato, a história de seu miraculoso nascimento era e
m parte um mito completo e em parte "pinçada" do (igualmente mítico) conto do nascim
ento de João.
Os Evangelhos dizem que a carreira de Jesus começa quando João o batiza, e seus prim
eiros discípulos são recrutados dentre os seguidores do Batista. E é como um discípulo d
e João que Jesus aparece nos textos madianitas.
Entretanto, é bastante provável que Jesus fosse membro do círculo íntimo do Batista, e,
embora João nunca o tenha proclamado como o Messias aguardado, o relato deixa tran
sparecer que houve um certo elogio a ele. Há até a possibilidade de que, durante cer
to tempo, Jesus tenha sido o herdeiro do Batista, mas algo muito sério aconteceu q
ue levou João a pensar duas vezes e nomear, em vez de Jesus, Simão Mago.
Parece ter havido algum movimento de ruptura no grupo de João: presumivelmente foi
Jesus quem liderou o cisma. Os Evangelhos registram o antagonismo entre os dois
grupos de discípulos, e sabemos que o movimento de João continuou após sua morte, ind
ependente do culto de Jesus. Com certeza houve algum tipo de disputa ou briga de
poder entre os dois líderes e seus seguidores: assim indicam as dúvidas de João, na p
risão, com respeito a Jesus.
Existem dois enredos possíveis. O cisma pode ter acontecido antes de João ser preso,
e foi uma separação súbita e total. Isso é sugerido no Evangelho de João (3:22-36), mas nã
nos outros (que se concentram apenas em Jesus após o batismo). A outra hipótese é que
, após a prisão de João, Jesus pode ter tentado assumir a liderança - ou por iniciativa
própria, ou como legítimo lugar-tenente de João. Porém, por alguma razão, ele não foi aceit
pelos seguidores do Batista.
Como vimos, as motivações de Jesus eram aparentemente complexas, mas parece inegável q
ue ele conscientemente representou dois dramas político-religiosos, um esotérico e o
utro exotérico - respectivamente a história de Osíris e o profetizado papel do messias
judeu. Seu ministério sugere uma estratégia definida, que foi levada adiante em três
estágios principais: primeiro, atrair as massas com milagres e curas; segundo, ass
im que começassem a segui-lo, fazer discursos prometendo uma Era de Ouro (o "Reino
dos Céus") e uma vida melhor; e finalmente leva-los a reconhecê-lo como o Messias.
Em razão da hipersensibilidade das autoridades no que se refere a potenciais subve
rsivos, não resta dúvida de que ele deveria reivindicar o messiado de maneira implícit
a, em vez de afirmá-lo aberta e ousadamente.
Muitas pessoas hoje aceitam que Jesus tinha uma agenda política, mas isso ainda é co
nsiderado secundário em seus ensinamentos. Percebemos que precisávamos contrapor nos
sa hipótese sobre seu caráter e ambições ao contexto daquilo que ele pregava. A crença de
que ele advogava um sistema ético coerente baseado na compaixão e no amor está tão disse
minada que é tida como certa. Para quase todo mundo, das mais diferentes religiões,
Jesus é o epítome da gentileza e da bondade. Mesmo que hoje não mais seja visto como o
Filho de Deus, ainda é visto como um pacifista, um defensor dos excluídos e amante
das crianças. Para os cristãos, e também para uma vasta parcela de não cristãos, Jesus é a
essoa que praticamente inventou a compaixão, o amor e o altruísmo. Claro está, entreta
nto, que não é assim: obviamente sempre existiram pessoas boas em qualquer cultura e
religião, mas a religião ligada ao culto de Ísis, especificamente, colocava naquela épo
ca grande ênfase na responsabilidade pessoal e na moralidade, na preservação dos valor
es familiares e no respeito por todas as pessoas.
Um exame objetivo das histórias dos Evangelhos revela algo completamente diferente
do coerente professor moral que se acreditava ser Jesus. Mesmo que os Evangelho
s sejam efetivamente uma propaganda pró-Jesus, o quadro que eles pintam do homem e
seus ensinamentos é inconsistente e evasivo.
Em resumo, os ensinamentos de Jesus conforme apresentados no Novo Testamento são c
ontraditórios. Por exemplo, se por um lado ele diz a seus seguidores para "dar a o
utra face" e perdoar seus inimigos, e dar todas suas posses para o ladrão que lhes
rouba algo, por outro lado declara: "Não vim trazer a paz, mas a espada". Ele apóia
o mandamento "honra teu pai e tua mãe mas depois diz:
Se algum vem a mim, e não aborrece seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e i
rmãs, e até a sua vida, não pode ser meu discípulo.
Seus seguidores eram encorajados a odiar suas próprias vidas, mas ao mesmo tempo l
hes era dito para amar seus semelhantes como a si mesmos.
Teólogos tentam explicar essas discrepâncias afirmando que alguns ditados devem ser
tomados de forma literal, outros, porém, de modo metafórico. O problema nisso, entre
tanto, é que a teologia foi inventada para lidar com essas contradições. Os teólogos cri
stãos partem do pressuposto de que Jesus era Deus. Esse é um exemplo primário de racio
cínio circular: para eles, tudo o que Jesus diz deve estar correto porque ele o di
sse, e ele o disse por que era correto. Entretanto, a teoria cai por terra se Je
sus não for o Deus encarnado, e a patente contradição das palavras atribuídas a ele pode
ser vista sob uma ótica mais racional.
Os cristãos hoje tendem a pensar que a imagem de Jesus permaneceu inalterada por 2
000 anos. Na verdade, hoje ele é visto de modo muito diferente do que há dois séculos
atrás, quando se destacava como um juiz severo. Essa visão modifica-se de uma época pa
ra outra e de lugar para lugar. Jesus enquanto juiz era a fonte da doutrina que
dava apoio a atrocidades como a cruzada contra os cátaros e os julgamentos das bru
xas, mas desde a época vitoriana ele tornou-se cada vez mais "o gentil Jesus, bran
do e humilde". Essas imagens contraditórias só são possíveis porque seus ensinamentos, c
onforme transmitidos nos Evangelhos, podem significar praticamente qualquer cois
a para qualquer homem.
Curiosamente, é essa mesma nebulosa qualidade que pode conter a chave para compree
nder as palavras de Jesus. Os teólogos tendem a esquecer que ele estava se dirigin
do a pessoas de carne e osso e que vivia em um ambiente político real. Por exemplo
, seus discursos pacifistas podem ter sido uma tentativa de dissipar as suspeita
s das autoridades sobre seu potencial subversivo. Em razão das agitações daquela época,
suas assembléias provavelmente incluíam informantes, e ele precisava tomar cuidado c
om o que dizia. (Afinal, João fora preso em virtude das suspeitas de que poderia l
iderar uma rebelião.) Jesus devia então ser bastante cuidadoso: se por um lado preci
sava conquistar o apoio popular, por outro deveria aparentar que não representava
qualquer ameaça ao status quo - pelo menos até que estivesse pronto.
Sempre é importante compreender o contexto de cada coisa que Jesus dizia. Por exem
plo, a frase "deixai vir a mim as criancinhas" é quase universalmente considerada
como um belo exemplo de sua gentileza, acessibilidade e amor pelos inocentes. De
ixando de lado o fato de que políticos astutos sempre beijaram bebês, deve ser lembr
ado que Jesus gostava de escarnecer das convenções - ele vivia na companhia de uma m
ulher de moral duvidosa e até mesmo de coletores de impostos. Quando os discípulos t
entaram manter as mulheres e crianças atrás, Jesus imediatamente interveio e disse-l
hes que passassem à frente. Isso pode ser um outro exemplo de seu prazer em quebra
r as convenções ou, simplesmente, em deixar claro para os discípulos que ele era o che
fe.
De modo semelhante, quando Jesus diz das crianças:
E quem escandalizar um destes pequeninos que crêem em mim, melhor lhe fora que l
he atassem à roda do pescoço a mó que um asno faz girar, e que o lançassem ao mar.
A maioria das pessoas interpreta isso como uma declaração de seu amor/do amor de Deu
s pelas crianças. Porém, poucas pessoas notam a qualificação "que crêem em mim". Nem todas
as crianças estavam qualificadas para compartilhar de seu amor, apenas aquelas qu
e estavam entre seus seguidores. De fato, ele está falando da insignificância das cr
ianças, dizendo com efeito que "até uma criança que me segue é importante" . A ênfase não e
tá nos pequeninos, mas na importância dele.
Como vimos no Pai Nosso, as mais conhecidas e apreciadas palavras de Jesus são tam
bém, ironicamente, as mais propícias a ser questionadas. "Pai nosso que estais no Céu"
não foram palavras inventadas por Jesus: parece que João Batista também as usava na m
esma época e, de qualquer modo, sua origem está nas preces a Osíris-Amon. O mesmo se dá
com o Sermão da Montanha; Bamber Gascoigne diz em seu livro The Christians: "Não há na
da no Sermão da Montanha que seja originalmente exclusivo de Cristo". Mais uma vez
, descobrimos que Jesus fala palavras que foram atribuídas primeiro a João Batista.
Por exemplo, no Evangelho de Mateus (3:10) João diz: "... toda árvore, pois, que não dá
bom fruto, será cortada e lançada no fogo". Mais adiante, no mesmo Evangelho, Jesus
repete essa metáfora palavra por palavra, acrescentando: "Vós os conhecereis, pois,
pelos seus frutos".
Embora seja improvável que Jesus alguma vez tenha feito o discurso que hoje conhec
emos como Sermão da Montanha, é provável que este realmente represente os pontos princ
ipais de seus ensinamentos - tal como compreendidos pelos autores dos Evangelhos
. Embora pelo menos um trecho seja já amplamente reconhecido como parte da mensage
m de João, o Sermão é sem dúvida complexo: inclui afirmações de cunho ético, espiritual e m
o político, e portanto merece um exame mais cuidadoso.
A evidência de Jesus ter tido uma agenda política é excepcionalmente forte. Admitindo
isso, muitos de seus ditos mais evasivos passam a fazer sentido. O Sermão da Monta
nha parece consistir numa série de declarações de uma única linha, que são particularmente
reconfortantes pela autoridade com que são proferidos, tais como "Bem-aventurados
os limpos de coração porque verão a Deus". Entretanto, os cínicos talvez as considerem
como uma mera seqüência de chavões ou de absurdas promessas ("Bem-aventurados os humil
des porque herdarão a terra"). Afinal, todos os revolucionários históricos tentaram to
rnar-se populares entre as pessoas comuns, especialmente dirigindo-se aos desass
istidos e despossuídos, exatamente como hoje os políticos fazem suas promessas aos d
esempregados. Isso se encaixa em sua agenda de um modo geral: seus repetidos ata
ques aos ricos são uma parte essencial de seu apelo junto ao povo, já que os ricos s
empre foram o foco para os descontentes.
Permanece o fato de que as palavras de Jesus - "ame seus inimigos/ bem-aventurad
os os mansos/bem-aventurados os misericordiosos" - parecem ser as de um homem ch
eio de compaixão, amor e carinho. Fosse ou não o Filho de Deus, ele parece ter incor
porado um espírito maravilhoso. Se demonstramos um certo cinismo sobre o homem e s
uas motivações, é somente porque acreditamos que as evidências sugerem que tal se justif
ica. Para começar, como vimos, as palavras de Jesus, ao menos como registradas nos
Evangelhos, são com freqüência ambíguas e patentemente contraditórias, e às vezes revelam
er sido originalmente proferidas por João Batista.
Mesmo assim, pode-se pensar que nossas próprias hipóteses são contraditórias: se por um
lado questionamos as motivações de Jesus e mesmo sua integridade, por outro lado o v
inculamos fortemente ao culto de Ísis, pleno de amor e compaixão. No entanto, não há qua
lquer contradição nisso: ao longo da história, homens e mulheres foram atraídos pelos ma
is diferentes sistemas políticos e religiosos, dos quais se tornaram fervorosos ad
eptos, apenas para utilizá-los, tempos depois, para alavancar suas próprias causas,
talvez até mesmo persuadindo a si próprios de que seus corações visavam apenas os melhor
es interesses da organização. Assim como a história tem demonstrado que o cristianismo
- que se auto-proclama a religião do amor e da compaixão - produziu filhos e filhas
que viveram vidas bem menos do que exemplares, também a religião de Ísis muitas vezes
aviltou a natureza humana ao longo dos anos.
Portanto, Jesus era um mago que operava prodígios e que arrebanhou as multidões porq
ue as entretinha. Expulsar demônios devia ser um espetáculo sensacional e assegurava
que o exorcismo fosse fonte de comentário durante meses após ele ter deixado o luga
rejo. Tendo conquistado a atenção das multidões, Jesus começou a pregar, a fim de se est
abelecer como o Messias aguardado.
Porém, como vimos, Jesus começou como discípulo de João, o que coloca a seguinte questão:
teria o Batista as mesmas ambições? Infelizmente, em virtude da escassa informação dispo
nível, só podemos especular. E embora a imagem que temos de João dificilmente seja a d
e um arrivista político, nosso conceito sobre essa figura fria e severa vem das pági
nas da propaganda do movimento de Jesus - os Evangelhos do Novo Testamento. De u
m lado, Herodes Antipas mandou prender João (de acordo com o relato mais confiável d
e Josefo) porque o considerava um potencial subversivo, mas pode ter sido mais u
ma manobra preventiva do que uma reação a algo que ele realmente disse ou fez. De ou
tro lado, os seguidores de João, incluindo os madianitas, não pareciam perceber nenh
uma ambição política em seu líder, mas isso talvez porque ele foi preso antes de poder m
ostrar sua verdadeira face ou simplesmente porque nada sabiam de suas motivações sec
retas.
O acontecimento que marcou o início da atuação de Jesus parece ter sido a Multiplicação do
s Pães. Os Evangelhos o descrevem como uma espécie de piquenique miraculoso, em que
o anfitrião assombra as pessoas ao multiplicar o magro suprimento de cinco pães de c
evada e dois pequeninos peixes para poder alimentar a todos. Na época, porém, a histór
ia tinha um significado profundo que se perdeu: primeiro, o milagre é totalmente d
iferente de qualquer outro atribuído a Jesus - os outros dirigidos ao grande público
eram todos relacionados com a cura de um modo ou de outro. Segundo, os próprios E
vangelhos sugerem que há algo significativo sobre o acontecimento que nem mesmo el
es conseguem entender. O próprio Jesus reforça isso ao dizer misteriosamente: "Vós bus
cais-me, não porque vistes os milagres, mas porque comestes dos pães." Pelo menos no
Evangelho de Marcos, ninguém fica maravilhado com o evento. Como diz A. N. Wilson
:
O milagre ou sinal se concentrava na alimentação, não na multiplicação do pão. Realmente,
notável que no relato de Marcos ninguém expresse o menor assombro perante esse episódi
o. Quando Jesus limpa um leproso, ou cura um cego, o acontecimento geralmente de
ixa todos "assombrados" ou "maravilhados". Não há qualquer assombro em Marcos.
A importância da alimentação da multidão não estava em sua natureza para-normal. É possível
e os autores dos Evangelhos tenham inventado a parte miraculosa da história porque
sabiam que tinham de fazê-la sobressair-se por alguma razão, mas não sabiam exatament
e por quê.
O ponto central é que havia, de acordo com os Evangelhos, cinco mil homens - deve
ter havido também um número não especificado de mulheres e crianças, mas estas são irrelev
antes para essa história em particular. O relato de início fala em cinco mil pessoas
, mas especifica mais tarde que era uma multidão de homens. Há um significado especi
al nisso: enfatiza-se que Jesus os fez sentar-se todos juntos. Como nos diz A. N
.Wilson:
Fazer os homem se sentarem! Fazer os essênios se sentarem! Fazer os fariseus se
sentarem! Fazer Iscariotes se sentar... e fazer Simão, o Zelote, se sentar, com se
u bando patriótico de guerrilheiros terroristas! Sentai-vos, ó homens de Israel!
Com efeito, Jesus estava fazendo com que facções até então em guerra se sentassem pacifi
camente para uma refeição ritual em conjunto. Segundo argumenta A. N. Wilson, parece
que houve literalmente uma reunião de clãs, uma maciça assembléia de antigos inimigos,
que temporariamente pelo menos se uniram a Jesus, o ex-discípulo de João Batista.
A própria linguagem que Marcos (6:39-40) utiliza é extremamente indicativa de um aco
ntecimento militar:
E então mandou-lhes [os discípulos] que os fizesse recostar a todos, em ranchos, s
obre a relva verde. E recostaram-se em fileiras de cem e de cinqüenta.
De acordo com o Evangelho de João (6:15) foi como resultado direto da multiplicação do
s "pães" que o povo passou a querer Jesus como rei. Foi claramente um grande event
o, mas parece ter mais do que o significado óbvio, porque ocorreu imediatamente após
a decapitação de João. Como a história é contada em Mateus (14:13):
E, tendo Jesus ouvido isto [a morte de João], retirou-se dali numa barca a um lu
gar solitário afastado; e, tendo sabido isto as turbas, seguiram-no a pé das cidades
.
Jesus talvez tenha ficado tão pesaroso com a notícia da morte de João que sentiu neces
sidade de buscar a paz do deserto, a qual infelizmente foi logo quebrada pela ch
egada de uma horda de pessoas que queriam ouvi-lo pregar. Talvez precisassem ass
egurar-se de que os ideais de João não tinham morrido com ele e que sua continuidade
estava garantida através de Jesus.
De qualquer forma, a morte de João foi muito significativa para Jesus. Preparou o
caminho para que ele se tornasse líder do grupo e, possivelmente, de todo o povo. É
provável que Jesus já tivesse assumido o movimento de João após a prisão deste, e quando a
s pessoas ficaram sabendo da subseqüente execução do Batista, acorreram para seguir se
u lugar-tenente, Jesus.
Existem muitas perguntas sem resposta no episódio do encarceramento de João; mais um
a vez, parece que os Evangelhos estão escondendo algo de nós. Dizem que João foi preso
por ter censurado o casamento ilegal de Herodíades e Herodes, embora o relato de
Josefo afirme que João era visto como uma ameaça potencial ou real ao seu governo. J
osefo não fornece detalhes em seu relato das circunstâncias da morte do Batista ou d
a maneira como ele foi executado. E depois há a abrupta mudança de sentimento de João
com respeito ao messiado de Jesus: talvez ele tenha ouvido algo sobre Jesus na c
adeia que o fez duvidar. E, como vimos, há algo obviamente insatisfatório sobre as r
azões dadas para a morte de João: de acordo com os Evangelhos, Herodes caiu em uma a
rmadilha montada por Herodíades para matar João, usando Salomé como intermediária.
Existem muitos problemas com o relato dos Evangelhos sobre a morte de João. Contam
-nos que Salomé, agindo sob as instruções de sua mãe Herodíades, pede a Herodes a cabeça de
João Batista - e ele concorda, embora com relutância. Esse enredo é extremamente impro
vável: pelo que hoje se sabe sobre a extensão da popularidade de João, Herodes dificil
mente seria tolo o bastante para matá-lo apenas por um capricho perverso. João Batis
ta pode ter sido uma ameaça enquanto vivo, mas seria de supor que ele se tornaria
ainda mais perigoso como um mártir. Herodes, é claro, pode ter considerado que valia
a pena correr o risco e exerceu sua autoridade, sem se importar com a quantidad
e de seguidores do Batista. Nesse caso, ele teria ordenado diretamente a execução de
João e com certeza não teria tomado tal atitude, sobre uma questão tão séria, apenas para
satisfazer sua sádica enteada. Dadas as circunstâncias, parece estranho que não tenha
ocorrido uma agitação civil em grande escala, ou mesmo um levante. Como vimos, Jose
fo registra que o povo atribuiu a esmagadora derrota do exército de Herodes, pouco
tempo depois, à retaliação divina pela morte de João, o que no mínimo revela que a tragédi
teve um grande e poderoso impacto.
Entretanto, não ouve nenhum levante. Em vez disso, toda a tensão foi distendida por
Jesus, que, como vimos, imediatamente reuniu os cinco mil e os alimentou. Teria
ele acalmado o povo? Teria conseguido confortá-los da morte de seu amado Batista? É
bem possível, mas não há qualquer menção sobre isso nos Evangelhos. Com certeza, entretant
o, muitos dos discípulos de João passaram a ver em Jesus o sucessor de seu líder morto
.
Então a versão dos autores dos Evangelhos da morte de João faz pouco sentido. Por que
teriam precisado inventar uma história tão enrolada? Afinal, se fosse simplesmente p
ara diminuir o número de seguidores de João, poderiam ter feito da morte dele o prim
eiro martírio do cristianismo.Em vez disso, a descreveram como uma sórdida intriga p
alaciana - Herodes se dá por satisfeito em ter João como prisioneiro, por isso é preci
so ludibriá-lo para que execute João. Mas por que razão teriam os autores se esforçado t
anto em apresentar Herodes como um homem decente, trapaceado pela artimanha de d
uas mulheres a tomar uma medida tão terrível? Parece, portanto, que houve uma intrig
a palaciana ao redor da morte de João, bastante conhecida para que os autores dos
Evangelhos a ignorassem. Porém, ao reescrever a história para adaptá-la a seus próprios
fins, eles sem querer criaram um absurdo.
Herodes Antipas não obteve nenhum benefício com a morte de João a censura do Batista a
o seu casamento estava provavelmente bastante difundida e o estrago já havia sido
feito. Na verdade, deu-se o inverso: a morte de João tornou as coisas ainda mais d
ifíceis para ele.
Então, quem se beneficiou com a morte de João? De acordo com a teóloga australiana Bar
bara Thiering, circularam rumores na época de que a facção de Jesus foi a culpada. Por
mais chocante que tal hipótese pareça à primeira vista, nenhum outro grupo se benefic
iou mais com a eliminação de João Batista. Só por essa razão os partidários de Jesus não de
iam ser negligenciados, se, como suspeitamos, a morte de João foi na verdade um as
sassinato muito bem tramado. Afinal, sabemos que ele duvidou da identidade do se
u rival na prisão, no que foi, possivelmente, o seu último pronunciamento público.
Entretanto, alimentar suspeitas é uma coisa; encontrar evidências corroborativas é out
ra completamente diferente. Passados dois mil anos, é impossível, certamente, encont
rar pistas claras e diretas sobre o que de fato aconteceu, mas é ainda possível desc
obrir evidências circunstanciais que, sem dúvida, nos fazem parar para refletir. Afi
nal, como vimos, deve ter havido razões específicas para o tratamento frio que a tra
dição joanina, os hereges, dispensam a Jesus, e, no ponto mais extremo, para a ativa
hostilidade dos mandianitas contra ele. As razões recaem nas circunstâncias da mort
e de João.
Curiosamente, embora esse deva ser um dos episódios mais conhecidos do Novo Testam
ento, só sabemos que a filha de Herodíades se chamava Salomé graças a Josefo. Os autores
dos Evangelhos cuidadosamente evitam mencioná-lo, embora registrem os nomes de to
dos os outros principais envolvidos. Estariam escondendo deliberadamente o nome
dela?
Jesus tinha uma discípula chamada Salomé. Entretanto, embora ela seja citada como um
a das mulheres que estava aos pés da cruz e acompanhou Madalena até a tumba no Evang
elho de Marcos, em Mateus e Lucas - que usaram Marcos como fonte - ela desaparec
e misteriosamente. Mais ainda, vimos antes a curiosa omissão do aparentemente inócuo
episódio no Evangelho de Marcos, revelado na obra de Morton Smith, The Secret Gos
pel:
Ele então chegou a Jericó. E a irmã do jovem que Jesus amava estava lá com sua mãe e Sal
omé, mas Jesus não os recebeu.
Ao contrário do episódio da ressurreição de Lázaro, não há aqui uma razão óbvia para se omi
a passagem. Assim, parece que os autores dos Evangelhos tinham motivos para não no
s apresentar Salomé. (Entretanto, ela aparece no Evangelho de Tomé - um dos textos d
o Nag Hammadi -, onde dorme em um sofá com Jesus, no perdido Evangelho dos Egípcios,
e no Pistis Sophia, onde é descrita como discípula e catequista de Jesus.) Admitimo
s que Salomé era um nome comum, mas o fato de que era importante o suficiente para
ser removido tão cuidadosamente pelos autores dos Evangelhos tem o efeito de atra
ir mais nossa atenção para a Salomé que seguia Jesus.
Com certeza João Batista se tornara uma espécie de empecilho para o dissidente movim
ento de Jesus. Mesmo encarcerado ele conseguiu que suas dúvidas sobre o ex-discípulo
se tornassem públicas - e eram dúvidas tão preocupantes que, como vimos, João indicou S
imão Mago como seu sucessor oficial, não Jesus. Então esse carismático profeta, com seu
considerável número de seguidores, é morto por um capricho da família de Herodes, que não
poderia ser tão ingênua a ponto de subestimar a possível reação do povo.
Como vimos, Hugh Schonfleld e outros estudiosos argumentam de modo convincente s
obre a existência de um grupo obscuro que parece ter facilitado a missão de Jesus, e
eles podem ter considerado prudente remover o Batista de uma vez por todas. A h
istória está repleta de exemplos de mortes convenientes, como as de Dagoberto II e T
homas à Becket, que de uma tacada só removeram tanto os dissidentes quanto o obstáculo
final à ambição do novo regime. Talvez a execução de João entre nessa categoria. Poderia e
se grupo ter decidido que era hora de remover de cena o grande rival de Jesus? É c
laro que o próprio Jesus poderia nada saber sobre o crime cometido em seu próprio be
neficio, assim como Henrique II nunca teve a intenção de que seus cavaleiros assassi
nassem o arcebispo Thomas à Becket.
O grupo por trás de Jesus parece ter sido influente e rico, de modo que bem poderi
am ter tido contatos dentro do palácio de Herodes. Sabemos que isso não é impossível por
que até mesmo os seguidores imediatos de Jesus tinham pelo menos um contato conhec
ido no palácio: os Evangelhos citam sua discípula Joana como a mulher de Cusa, procu
rador de Herodes.
Qualquer que seja a verdade, o fato é que havia alguma coisa de errado na relação entr
e Jesus e o Batista, algo que os hereges sustentaram por séculos e que os estudios
os finalmente começaram a reconhecer no mínimo que eles eram rivais. A antipatia dos
hereges por Jesus pode estar baseada na idéia de que ele não passava de um inescrup
uloso oportunista, que explorou a morte de João em seu próprio beneficio ao tomar as
rédeas do movimento com uma pressa indecente - especialmente se o sucessor legítimo
de João era de fato Simão Mago.Talvez o mistério em volta da morte de João forneça a chav
e para a inexplicável ênfase na veneração do Batista, em detrimento de Jesus, entre os g
rupos que vimos discutindo ao longo de nossa investigação.
Como vimos, os madianitas se referem a João como o "Senhor da Luz", enquanto difam
am Jesus como um falso profeta que desviou seu povo do verdadeiro caminho - tal
como ele é retratado no Talmude, onde também é descrito como feiticeiro. Outros grupos
, como o dos templários, parecem ter tido uma visão um pouco menos radical, embora t
ambém venerassem João em vez de Jesus. Tal fato encontra suprema expressão no quadro A
Virgem dos rochedos, de Leonardo, e é reforçado pelos elementos encontrados nas out
ras obras que discutimos no Capítulo Um.
Quando percebemos pela primeira vez a obsessão de Leonardo com a supremacia de João
Batista, nos perguntamos se isso seria apenas um capricho. Entretanto, após invest
igar exaustivamente o volume de evidências indicando a existência de um culto difund
ido a João, chegamos à conclusão de que tal culto não apenas existia, como existira desd
e sempre paralelamente à Igreja e mantendo seu segredo bem guardado. A Igreja de J
oão teve muitas faces ao longo dos séculos, como a dos antigos monges guerreiros e s
eu braço político, o Monastério de Sion. Muitos veneram secretamente João quando se ajoe
lham perante "Cristo" - como vimos, o Monastério, que dá aos Grão-Mestres de sua Ordem
o título de "João", começou essa tradição com "João II". Pierre Plantard de Saint-Clair ex
lica isso com o que parece ser um non sequitur: "João I" está reservado para Cristo.
É claro que fornecer argumentos sólidos para a existência de grupos que acreditavam se
r Jesus um falso profeta, ou mesmo que ele tivera alguma participação na morte de João
Batista, não é o mesmo que provar que as coisas foram realmente assim. O certo é que
as duas Igrejas existiram lado a lado por duzentos anos: a Igreja de Pedro que d
eclara Jesus não só como o homem perfeito mas como o próprio Deus encarnado, e a Igrej
a de João que vê em Jesus exatamente o oposto. Pode ser que nenhuma das duas tenha o
monopólio da verdade, e que aquilo que vemos refletido nessas facções opostas é apenas
a continuação da velha rixa entre os discípulos dos dois mestres.
No entanto, o próprio fato de existir uma tradição como a Igreja de João sugere fortemen
te que já é mais que tempo de fazer uma reavaliação radical do caráter, do papel e do lega
do de João Batista e Jesus "Cristo". Aqui, porém, há muito mais do que isso em jogo.
Se a Igreja de Jesus foi erigida sobre a verdade absoluta, então a Igreja de João fo
i erigida sobre a mentira. Se a situação, porém, for inversa, então estamos frente à possi
bilidade de uma das mais terríveis injustiças históricas. Não estamos dizendo que nossa
cultura tem venerado o Cristo errado, pois não há qualquer evidência de que João pretend
eu exercer esse papel, ou que tal papel tenha mesmo existido, nos termos em que
hoje o entendemos, até Paulo o ter inventado especialmente para Jesus. De qualquer
modo, João foi assassinado por seus princípios, e estes, segundo acreditamos, provi
nham diretamente da tradição da qual ele tomou o ritual do batismo. Era a antiga rel
igião da gnose individual, da iluminação, da transformação espiritual do indivíduo - os mis
ios do culto de Ísis e Osíris.
Jesus, João Batista e Maria Madalena pregavam essencialmente a mesma mensagem, mas
, ironicamente, essa não era o que a maioria das pessoas supõe ser. Esse grupo do pr
imeiro século levou para a Palestina sua forma de intensa consciência gnóstica do Divi
no, batizando aqueles que buscavam esse conhecimento místico para si mesmos, inici
ando-os na antiga tradição oculta. Também eram parte desse movimento Simão Mago e sua co
nsorte Helena, cuja magia e milagres eram, como aqueles associados a Jesus, uma
parte intrínseca de suas práticas religiosas. O ritual era uma parte fundamental des
se movimento, desde o batismo inicial até a representação dos mistérios egípcios. A iniciaç
suprema, porém, vinha através do êxtase sexual.
Entretanto, nenhuma religião, não importa o que ela professe, garante superioridade
moral ou ética. A natureza humana sempre se intromete, criando seus próprios sistema
s híbridos, ou, em alguns casos, a religião se torna um culto à personalidade. Esse mo
vimento pode ter sido essencialmente ligado a Ísis, com toda ênfase no amor e na tol
erância que a religião busca inspirar, mas mesmo em sua terra natal, no Egito, havia
muitos casos registrados de corrupção entre os sacerdotes e sacerdotisas. E nos dia
s turbulentos da Palestina do primeiro século, quando os homens febrilmente buscav
am um messias, a mensagem confundiu-se com a ambição pessoal. Como sempre, quanto ma
is elevados os interesses, maior a probabilidade de se abusar do poder.
As conclusões e implicações desta investigação serão novidade para a maioria dos leitores e
sem dúvida, chocarão a muitos. No entanto, como esperamos ter mostrado, esses achad
os surgiram passo a passo enquanto procurávamos as evidências. Na maior parte dos ca
sos, baseamo-nos em estudos contemporâneos - que muitas pessoas jamais pensaram se
r tão numerosos. E no final, pelo menos, o quadro que surge é muito diferente daquel
e que conhecemos.
Esse novo quadro das origens do cristianismo e do homem em cujo nome a religião fo
i fundada, encerra as mais espantosas e amplas implicações. E embora tais implicações po
ssam ser novidade para a maioria das pessoas, são reconhecidas há séculos por uma cama
da particularmente tenaz da sociedade ocidental. É estranhamente perturbador consi
derar, mesmo por um momento, a possibilidade de que os hereges estavam certos.

CAPÍTULO XVII
De Dentro do Egito
Dois mil anos depois de Jesus, João e Maria terem passado suas vidas peculiarmente
significativas em um lugar remoto do Império Romano, milhões de pessoas ainda acred
itam na história que é contada nos Evangelhos. Para elas, Jesus era o Filho de Deus
e de uma virgem, e por acaso encarnou como judeu; João Batista foi seu precursor e
era espiritualmente inferior a ele; e Maria Madalena era uma mulher de reputação du
vidosa a quem Jesus curou e converteu.
Entretanto, nossa investigação revelou um quadro muito diferente. Jesus não era o Filh
o de Deus, nem de religião judaica, embora etnicamente possa ter sido judeu. As ev
idências indicam que sua pregação continha uma mensagem que não era originária do territóri
onde montou sua campanha e deu início à sua missão. Com certeza seus contemporâneos ach
avam que ele era um adepto da magia egípcia, uma visão que também está expressa no Talmu
de.
Pode ser que isso não passe de um boato malicioso, mas muitos estudiosos, principa
lmente Morton Smith, concordam em que os milagres de Jesus faziam parte do reper
tório típico da magia egípcia. Além disso, ele foi entregue a Pilatos sob a acusação de ser
um "malfeitor" - o que, na lei romana, significava especificamente ser um feitic
eiro.
João não reconheceu Jesus como o Messias. É provável que o tenha batizado, porque Jesus
era um dos seus discípulos e talvez até mesmo tenha chegado a ser seu lugar-tenente.
Alguma coisa deu errado, entretanto: João mudou de idéia e nomeou Simão Mago como seu
sucessor. Pouco tempo depois João foi executado.
Maria Madalena era uma sacerdotisa e foi a parceira de Jesus em um casamento sag
rado, exatamente como era Helena para Simão Mago.A natureza sexual de sua relação é ates
tada em muitos dos textos gnósticos que a Igreja proibiu de serem incluídos no Novo
Testamento. Ela era também a "Apóstola dos Apóstolos" e uma pregadora de renome, chega
ndo mesmo a reunir o grupo dos desalentados discípulos após a crucificação. Simão Pedro a
odiava, assim como a todas as mulheres, e é provável que ela tenha ido para a França a
pós a crucificação, porque temia o que ele lhe poderia fazer. E embora seja impossível s
aber exatamente qual era a sua mensagem, é certo que devia ter pouca relação com o que
hoje se conhece como cristianismo. Maria Madalena pode ter sido qualquer coisa
mas com certeza não era uma pregadora cristã.
A influência egípcia na história dos Evangelhos é inegável: Jesus pode muito bem ter consc
ientemente desempenhado o papel do Messias judeu a fim de obter apoio popular, m
as ele e Maria parecem também ter encenado o mito de Osíris e Ísis, provavelmente com
propósitos iniciatórios.
A magia egípcia e os segredos esotéricos estavam por trás de sua missão, e seu mestre fo
i João Batista. Dois dos discípulos de João - seu sucessor Simão Mago e a ex-prostituta
Helena - faziam um paralelo exato com Jesus e a Madalena. Provavelmente era assi
m que deveria ser. O conhecimento subjacente era sexual - aquele do horasis, da
iluminação através do sexo transcendental com uma sacerdotisa, que era um conceito dif
undido no Oriente e também no Egito.
Apesar das afirmações da Igreja, não era Pedro o aliado mais próximo de Jesus, nem, a ju
lgar por suas repetidas dificuldades em compreender as palavras de seu mestre, f
azia ele parte do círculo íntimo de Jesus. Se houve um sucessor de Jesus, foi Madale
na. (Devemos lembrar que eles estavam ativamente disseminando os ensinamentos e
práticas do já bastante antigo culto de Ísis/Osíris, e não uma espécie de heresia judaica,
omo freqüentemente se acredita.) Maria Madalena e Simão Pedro empreenderam jornadas
diferentes; um fundou a Igreja de Roma, e a outra confiou seus mistérios para gerações
daqueles que entenderam o valor do Princípio Feminino: os "hereges" .
João, Jesus e Maria estavam inextricavelmente ligados por sua religião (a do antigo
Egito), que eles adaptaram à cultura judaica - assim como Simão Mago e Helena, que e
scolheram a Samaria como alvo para sua mensagem. Simão Pedro e o restante do grupo
dos Doze definitivamente não faziam parte desse íntimo círculo de missionários egípcios.
Maria Madalena foi reverenciada pelo movimento ocultista europeu porque fundou s
ua própria "Igreja" - não um culto cristão no sentido geral do termo, mas baseado na r
eligião de Ísis/Osíris. Algo muito próximo disso fora ensinado tanto por Jesus como por
João.
João foi venerado pela mesma tradição de "hereges" porque estes eram os descendentes e
spirituais diretos daqueles que o consideravam seu "rei sacrificado", o mártir de
sua causa, que havia sido eliminado em seu apogeu. O choque e a atrocidade de su
a morte foram ressaltados pelas circunstâncias dúbias que a envolveram, e pelo que f
oi percebido como uma insensível manipulação dos seguidores de João por parte de seu vel
ho rival.
Há, entretanto, um outro lado nessa história. Como já vimos, circulava o boato de que
Jesus praticara magia negra com o Batista morto. A obra de Carl Kraeling e Morto
n Smith demonstrou que Herodes Antipas acreditava que Jesus escravizara a alma (
ou consciência) de João a fim de obter poderes mágicos, pois acreditava-se entre os ma
gos egípcios e gregos que o espírito de um homem assassinado era uma presa fácil para
os feiticeiros, especialmente se possuíssem uma parte do corpo da vítima. Se Jesus r
ealizou ou não alguma cerimônia mágica de tal tipo, um boato de que a alma de João estav
a sob o controle de seu antigo rival não teria causado qualquer prejuízo ao moviment
o de Jesus. Numa época como aquela, de mentalidade voltada para a magia, seria pra
ticamente garantido que os discípulos de João passariam para o lado de Jesus, sobret
udo porque este parecia ter poderes miraculosos. E como Jesus já dissera a seus se
guidores que João era o profeta Elias reencarnado, todos provavelmente atribuíam a e
le uma autoridade maior.
Contudo, apesar da noção peculiar de um Jesus que, segundo se acreditava, tinha o co
ntrole sobre as almas de pelo menos dois outros profetas, o segredo da tradição secr
eta não tem qualquer relação com ele. De fato, mesmo que venerem João e Madalena como in
divíduos históricos reais, os hereges sempre os viram como representantes de um anti
go sistema de crença. O mais importante era aquilo que eles representavam - a Supr
ema Sacerdotisa e o Supremo Sacerdote do Reino da Luz.
As duas tradições - uma centrada no Batista e a outra na Madalena - só se tornaram rea
lmente discerníveis ao redor do século XII, quando, por exemplo, os cátaros surgiram n
o Languedoc e os templários estavam no auge de seu poder. Há uma lacuna evidente na
transmissão das tradições: é como se elas desaparecessem em um buraco negro mais ou meno
s entre os séculos IV e XII. Foi por volta do ano 400 que os textos de Nag Hammadi
- que enfatizavam o papel de Maria Madalena - foram enterrados no Egito; como v
imos na Parte Um, idéias notavelmente semelhantes sobre a importância de Madalena pe
rsistiram na França, tendo alguma influência sobre os cátaros. E embora a Igreja de João
tenha aparentemente desaparecido a partir de 50 d.C., mais ou menos, a continui
dade da sua existência pode ser deduzida dos ataques fulminantes que a Igreja lançou
contra os sucessores de João - Simão Mago e Dositheus - por mais duzentos anos. Então
, novamente no século XII, essa tradição emergiu mais uma vez na veneração mística dos temp
ios por João.
É impossível dizer com certeza o que exatamente aconteceu com ambas as tradições durante
os anos em que estiveram ausentes, mas no final de nossa própria investigação sentimo
s que podemos arriscar um palpite. A "linhagem" de Madalena teve continuidade no
sul da França, mas se houve algum registro confirmando isso, foi destruído durante
a sistemática devastação da cultura do Languedoc que acompanhou a cruzada contra os cáta
ros. Ecos da tradição, porém, chegaram até nós através das crenças dos cátaros relativas ao
cionamento de Madalena com Jesus e do tratado Schwester Katrei de influência cátara,
do qual algumas idéias foram claramente tomadas dos textos do Nag Hammadi.
É provável que a tradição de João tenha sobrevivido independentemente no Oriente Médio atra
dos ancestrais dos madianitas e dos nosairis, embora saibamos que ela surge na
Europa séculos depois. Mas como a tradição chegou à Europa? Quem percebeu seu valor e em
segredo decidiu apoiar suas crenças? Mais uma vez encontramos a resposta nos mong
es-guerreiros, cujas operações militares no Oriente Médio escondiam sua meta de buscar
conhecimento esotérico. Os cavaleiros templários trouxeram a tradição de João à Europa par
juntá-la com a de Madalena, dando assim sentido àquilo que pareciam ser mistérios mas
culinos e femininos separados. Devemos lembrar que os nove cavaleiros templários o
riginais eram fruto da cultura do Languedoc, o berço e a alma do culto a Madalena,
e que a tradição oculta afirma ter aprendido seus segredos com os "joaninos do Orie
nte".
Em nossa opinião é bastante improvável que a união dessas duas tradições pelos templários f
e mera coincidência. Afinal, sua meta primária era buscar e fazer uso do conheciment
o mais antigo. Hugues de Payens e seus oito irmãos cavaleiros foram à Terra Santa co
m um propósito em mente: procuravam o poder do conhecimento e talvez buscassem tam
bém um certo artefato de grande valor - valor que, muito provavelmente, não era apen
as monetário. Os templários pareciam saber da existência da tradição joanina antes de enco
ntrá-la, mas como souberam dela ninguém pode dizer.
É evidente que o que estava em jogo era muito mais do que algum vago ideal religio
so: os templários eram, essencialmente, homens práticos, interessados sobretudo na a
quisição de poder material, e a pena por sustentar suas crenças secretas foi de um hor
ror inimaginável. Sempre é bom enfatizar que tais crenças não consistiam apenas em noções e
pirituais que eles decidiram abraçar para o bem de suas almas. Eram segredos mágicos
e alquímicos que, no mínimo, podem ter-lhes conferido vantagem naquilo que hoje cha
maríamos de ciência. Certamente a superioridade de seu conhecimento em matérias como g
eometria sagrada e arquitetura encontrou expressão nas catedrais góticas, esses secr
etos livros de pedra que ainda hoje estão conosco e que contêm os frutos de suas ave
nturas no reino esotérico. Em sua busca incessante pelo conhecimento terreno, os t
emplários buscaram expandir sua compreensão sobre astronomia, química, cosmologia, nav
egação, medicina e matemática, cujos benefícios são evidentes por si mesmos.
Os templários, porém, eram ainda mais ambiciosos em sua busca pelo conhecimento ocul
to: eles procuravam respostas para as questões eternas. E na alquimia podem ter en
contrado pelo menos algumas delas. Essa misteriosa ciência que abraçaram continha, s
egundo se acreditava, os segredos da longevidade, talvez até mesmo da imortalidade
física. Muito mais do que apenas aumentar seus horizontes filosóficos e religiosos,
os templários buscavam o maior dos poderes: ter domínio sobre o tempo, sobre a tira
nia do nascer e morrer.
E após os templários vieram gerações e gerações de "hereges" que aceitaram o desafio e leva
am adiante a tradição com igual fervor. Esses segredos obviamente tinham um forte ap
elo, que inspirou um número incalculável de pessoas a arriscar tudo para buscá-los - m
as qual seria? O que havia nas tradições de Madalena e de João que provocava tal fervo
r e devoção?
Não há uma resposta única para essas questões, mas existem três possibilidades.
A primeira é que as histórias de Madalena e João Batista trazem em si o segredo daquil
o que supostamente foi o "cristianismo" - sua missão original -, em total contrast
e com aquilo que realmente se tornou.
Enquanto à sua volta as mulheres eram aviltadas e o sexo degradado, e os sacerdote
s guardavam as chaves do céu e do inferno, os hereges buscavam os segredos do Bati
sta e da Madalena para obter conforto e iluminação. Através desses dois "santos", pude
ram reencontrar a trilha perdida dos veneradores gnósticos e pagãos que ruma diretam
ente para o antigo Egito (e mais além, possivelmente): como Giordano Bruno ensinav
a, a religião egípcia era muito superior ao cristianismo em cada aspecto; e, como vi
mos, pelo menos um templário rejeitou o símbolo primordial do cristianismo, a cruz,
por ser "recente demais".
Em vez do patriarcado rígido do Pai, do Filho e do Espírito Santo (hoje masculino),
os adeptos dessa tradição secreta encontraram o equilíbrio natural da antiga trindade
do Pai, da Mãe e do Filho. Em vez do sentimento de culpa relacionado ao sexo, sabi
am por experiência própria que este na verdade era a porta de entrada para se chegar
a Deus. Em vez de sacerdotes para lhes dizer da condição de suas almas, encontravam
sua própria salvação pela gnose direta ou conhecimento do divino. Tudo isso foi punid
o com a morte durante grande parte dos últimos dois mil anos, e era o que pregavam
as tradições secretas do Batista e da Madalena. Não admira que tivessem de ser mantid
as em segredo.
A segunda razão para o apelo contínuo dessas tradições está em que os hereges também mantiv
ram o conhecimento vivo. É muito fácil para nós hoje em dia subestimar o imenso poder
que, em épocas passadas, o saber propiciava àqueles que o possuíam: a invenção da imprensa
causou furor, e mesmo a capacidade de ler e escrever - especialmente entre as m
ulheres era rara e freqüentemente considerada com grande suspeita pela Igreja. Con
tudo, essa tradição secreta encorajou ativamente a sede de conhecimento mesmo entre
as mulheres: homens e mulheres alquimistas trabalhavam longas horas atrás de porta
s fechadas para descobrir os grandes segredos que cruzavam as fronteiras da magi
a, do sexo e da ciência - e, ao que parece, muitas vezes os alcançaram.
A linhagem ininterrupta dessa tradição secreta inclui os construtores das pirâmides, t
alvez até aqueles que levantaram a Esfinge, aqueles que construíram de acordo com os
princípios da geometria sagrada e cujos segredos encontraram expressão na arrojada
beleza das grandes catedrais góticas. Estes foram os criadores da civilização, a qual
preservaram através da tradição secreta. (Com certeza não é coincidência a crença de que Os
dera à humanidade o conhecimento necessário para o desenvolvimento da cultura e da c
ivilização.) E, como revelam as obras recentes de Robert Bauval e Graham Hancock, os
antigos egípcios possuíam um conhecimento científico que estava além até mesmo de nossa p
rópria época. Uma parte inextricável dessa linhagem de cientistas hereges foram os her
metistas da Renascença; sua exaltação de Sofia, a busca do conhecimento e a crença na di
vina natureza do homem se desenvolveram originalmente das mesmas raízes que o gnos
ticismo.
Alquimia, hermetismo e gnosticismo, todos inevitavelmente remontavam à Alexandria
da época de Jesus, onde havia fermentado uma extraordinária mistura de idéias. Assim,
descobrimos que as mesmas idéias permeiam o Pistis Sophia, o Corpus Hermeticum de
Hermes Trismegisto, o que resta das obras de Simão Mago e os textos sagrados dos m
andianitas.
Como vimos, Jesus estava explicitamente vinculado com a magia do Egito, e o Bati
sta e seus sucessores, Simão Mago e Dositheus, também foram citados como "graduados"
nas escolas de ocultismo de Alexandria. E todas as tradições esotéricas do Ocidente têm
a mesma origem.
Seria um erro, entretanto, pensar que o conhecimento que os templários ou os herme
tistas buscavam era simplesmente o que hoje chamaríamos de filosofia, ou mesmo ciênc
ia. É verdade que essas disciplinas faziam parte do que eles buscavam, mas há uma ou
tra dimensão de suas tradições secretas, uma dimensão que seria errado omitir. Subjacent
e a todos os empreendimentos arquitetônicos, científicos e culturais dos heréticos est
ava a busca apaixonada pelo poder da magia. A importância que isso tinha para eles
estaria de alguma forma relacionada com os boatos de que Jesus "aprisionara a a
lma" de João utilizando magia? Talvez seja significativo que os templários, cuja rev
erência pelo Batista não era superada por nenhuma outra, fossem acusados de adorar u
ma cabeça decapitada em seus rituais mais secretos.
A questão da validade e efetividade (ou não) do cerimonial da magia está fora do âmbito
deste livro: o que importa é aquilo em que outros acreditaram durante séculos, e que
papel teve isso em suas motivações, suas conspirações e nos planos que colocavam em ação.
O ocultismo foi a verdadeira força motriz por trás de muitos pensadores que pareciam
ser "racionalistas" - como Leonardo da Vinci e Sir Isaac Newton - e por trás do cír
culo íntimo de organizações como a dos templários, de algumas facções da maçonaria e do Mon
io de Sion. E essa longa linhagem de magos secretos, os magi, pode muito bem inc
luir o Batista e Jesus. .
Uma das menos conhecidas histórias do Graal tem, como objeto da busca, a cabeça deca
pitada de um homem barbudo em uma bandeja. Seria uma referência à cabeça de João, ao est
ranho poder mágico que ela supostamente possuía e concederia a quem a encontrasse? M
ais uma vez, é muito fácil entregar-se ao ceticismo característico do final do século XX
. O importante é que, de algum modo, a cabeça de João era considerada não apenas sagrada
como também mágica.
Os celtas também tinham uma tradição de cabeças enfeitiçadas, e o templo de Abydos, dedica
do a Osíris, guardava uma cabeça decapitada que, segundo se acreditava, tinha o pode
r de fazer profecias. Em um outro mito relacionado, a cabeça de outro deus morto-e
-ressurrecto, Orfeu, foi arrastada pelo mar até Lesbos, onde começou a predizer o fu
turo. (E será apenas coincidência que um dos filmes mais enigmáticos e surreais de Jea
n Cocteau tenha sido Orpheé?)
Leonardo retratou um "Jesus" decapitado em seu Sudário de Turim. Em um primeiro mo
mento pensamos que não passava de um artifício visual para transmitir a idéia de que,
na opinião do herético Leonardo, devoto de João, aquele que fora decapitado era (moral
e espiritualmente) "superior" àquele que fora crucificado. Com certeza a linha de
marcatória entre a cabeça e o corpo do "homem do sudário" é proposital, mas Leonardo pod
eria estar sugerindo alguma outra coisa. Talvez fosse uma referência à idéia de que Je
sus possuía a cabeça de João, e que de algum modo a tinha absorvido, tornando-se, nas
palavras de Morton Smith, "Jesus-João". Lembremos que, no cartaz do século XIX do Sa
lon de la Rose + Croix, Leonardo é retratado como o Guardião do Graal.
Vimos que, na obra de Leonardo, o dedo em riste simboliza o Batista: João está fazen
do esse gesto na última pintura do mestre, e em sua escultura de João em Florença. Iss
o não é tão incomum, pois outros artistas o retrataram dessa forma, mas nas obras de L
eonardo tal gesto só é usado, mesmo em outras figuras, além de João, quando se trata cla
ramente de um modo de marcar a figura do Batista.A figura em A adoração dos reis mag
os que está de pé ao lado das raízes da alfarrobeira (que tradicionalmente simboliza J
oão) aponta seu dedo indicador na direção da Virgem e da criança; Isabel, mãe de João, faz
sse gesto bem na frente do rosto da Virgem no afresco A Virgem e o menino com Sa
nta Ana, e o discípulo que de modo tão rude encara Jesus na Última Ceia perfura o ar c
om seu indicador, sem deixar a menor dúvida do que estava querendo dizer. E embora
possa estar dizendo, com efeito, "Os seguidores de João não se esquecem", esse moti
vo repetido também pode ser uma referência a uma relíquia real - o dedo de João, que se
acreditava ser uma das mais preciosas relíquias dos templários.
(No quadro La Peste d'Azoth, de Nicolas Poussin, uma estátua gigante de um homem p
erdeu a mão e sua cabeça foi decapitada. Mas o dedo indicador da mão cortada é mostrado
especificamente fazendo o gesto de "João".)
Durante esta investigação ouvimos um suposto templário afirmar: "aquele que possui a c
abeça de João Batista governa o mundo". A princípio consideramos tal afirmação uma grande
tolice ou no máximo uma espécie de metáfora. Não se deve esquecer, contudo, que determin
ados objetos, ao mesmo tempo míticos e reais, sempre exerceram um tremendo poder s
obre os corações e as mentes dos homens - entre eles a "Cruz Verdadeira", o Santo Su
dário, o Graal e, é claro, a Arca da Aliança. Todos esses legendários objetos estão imbuído
de uma mística curiosa, como se eles próprios fossem portas onde os mundos humano e
divino se encontram, objetos sólidos e reais que existem em duas realidades ao me
smo tempo. Mas se artefatos como o Graal têm poder mágico, como acreditam alguns, im
agine então quanto poder não terão os restos corporais de alguém que, supostamente, inco
rporava a energia sobrenatural e possuía conhecimentos ocultos.
Vimos que os restos de Madalena são de suprema importância para os da tradição secreta,
e pode ser que também se atribua a eles algum poder mágico verdadeiro. De qualquer f
orma, a ossada de Maria parece ser objeto de grande veneração e, assim como a cabeça d
e João, não resta dúvida de que funcionavam como um totem por trás do qual os hereges se
reuniam. Aceitando-se ou não o conceito do poder mágico, estar diante da cabeça de João
e da ossada de Madalena provocaria um forte impacto nas pessoas ligadas à tradição se
creta: seria um momento de intensa carga emocional, inclusive pela idéia de que al
i, juntos, estariam os restos mortais de dois seres humanos que foram tratados c
om impiedosa e calculada injustiça por vários séculos, e em nome dos quais padeceram "
hereges" sem conta.
A terceira razão para o apelo duradouro da tradição secreta é a certeza moral que ela próp
ria gera em si mesma: os "hereges" acreditam estar certos e que a Igreja estabel
ecida está errada. Mas não estão apenas mantendo viva uma outra religião em uma cultura
"estrangeira". Mantêm viva o que acreditam ser a chama sagrada das origens e propósi
tos verdadeiros do "cristianismo". Entretanto, esse senso de retidão, quando estão d
iante do que para eles é a "heresia" da Igreja cristã, só serve para explicar por que
a tradição teve tanta influência no passado. Em nossa época, na qual há uma tolerância reli
iosa muito maior, por que essa tradição deveria manter-se secreta?
Começamos esta investigação examinando o atual Monastério de Sion e suas atividades corr
entes. Qualquer que seja realmente o propósito dessa organização, Pierre Plantard de S
aint-Clair indicou que ela tem um programa definido, cuja intenção é operar determinad
as mudanças concretas no mundo todo, embora sua natureza precisa seja apenas objet
o de especulação.
Qualquer que seja o grande plano do Monastério, parece estar relacionado com a her
esia que revelamos. Na verdade, ocultas nos Dossiês secretos encontram-se certas d
eclarações inequívocas com respeito ao Monastério ter sido responsável, ao longo da históri
, por liderar a tradição secreta. Essas declarações, que aludem direta ou indiretamente
ao Monastério, incluem:" [Eles são] os patrocinadores de todas as heresias...", "[e
stão] por trás de todas as heresias, passando pelos cátaros e templários até a maçonaria...
, "agitadores secretos contra a Igreja...". Em outro documento do Monastério, Le
cercle d'Ulysse (O círculo de Ulisses), publicado em 1977, sob autoria de Jean Del
aude, lêem-se as agourentas palavras:
Qual é o plano do Monastério de Sion? Não sei, mas ele representa um poder capaz de
se sobrepor ao Vaticano nos dias que virão.
E, como já vimos anteriormente, a obra inspirada no Monastério, Rennes-le-Château: cap
itale secrete de l'histoire de France, ao discutir as conexões do Monastério com a "
Igreja de João", refere-se a acontecimentos que irão "virar a cristandade de cabeça pa
ra baixo".
No início desta investigação consideramos a possibilidade de que o Monastério sofria de
uma espécie de ilusão coletiva de grandeza, e, como muitos outros, achávamos difícil acr
editar na existência de um segredo zelosamente guardado que teria o poder de ameaçar
uma grande e bem estabelecida organização como é a Igreja de Roma. Agora, após todas as
nossas pesquisas, chegamos à conclusão de que a agenda do Monastério - qualquer que s
eja ela - deve no mínimo ser levada a sério.
De fato, a idéia de um corpo organizado que jurou derrubar a Igreja não é nova. Por ex
emplo, no século XVIII, quando começam a aparecer sociedades secretas que afirmavam
ser descendentes dos templários, a paranóia instalou-se tanto na Igreja como em muit
os estados europeus. A França em particular passou por momentos difíceis sob a sombr
a da vingança de Jacques de Molay - estariam os templários voltando, literalmente, p
ara se vingar? Houve até mesmo boatos de que os cavaleiros estavam por trás da Revol
ução Francesa.
Entretanto, existem problemas nesse enredo da vingança dos templários. Nenhuma organ
ização inteligente alimentaria a chama do ódio ao longo dos séculos apenas para matar um
futuro monarca da França e um papa que nada tiveram a ver com a supressão dos templár
ios ocorrida séculos antes. Essa idéia afirma que a supressão dos templários é a razão de s
u ódio à Igreja - mas e se eles a odiassem desde o início? (E de acordo com o Levitiko
n os templários eram contra a Igreja de Roma desde seu princípio, e pelo modo como f
oram suprimidos.)
Nossa pesquisa demonstrou que os templários não apenas acreditavam estar de posse do
conhecimento secreto sobre o cristianismo, como também se consideravam seus verda
deiros guardiães. E é preciso lembrar que os templários e o Monastério de Sion sempre es
tiveram inextricavelmente entrelaçados; é muito provável que os programas ou planos de
um também fossem os do outro. E no Monastério de Sion encontramos uma organização na qu
al se unem as duas correntes heréticas - a da Madalena e a do Batista.
Pode ser que o Monastério e os templários estejam planejando apresentar a uma crista
ndade perplexa algum tipo de prova de suas antigas crenças, um fundamento tangível p
ara sua tradição joanina e de veneração às deusas.
Mesmo levando em conta sua evidente obsessão com a busca de relíquias, é difícil imagina
r o que poderia ser essa prova concreta, ou como algum objeto poderia representa
r uma ameaça para a Igreja.
Entretanto, como já vimos no caso do suposto Santo Sudário, relíquias religiosas de fa
to têm uma extraordinária e poderosa influência sobre corações e mentes. Na verdade, qualq
uer coisa supostamente ligada aos personagens centrais do drama cristão ganha uma
ressonância singularmente mágica mesmo as " anti-relíquias " , aquelas ossadas encontr
adas em Jerusalém, imediatamente tornaram-se foco de intenso debate e de uma gener
alizada indagação entre os cristãos. É instrutivo imaginar como teria crescido o interes
se público se as ossadas tivessem sido mais assertivamente vinculadas a Jesus e su
a família. Isso com certeza teria provocado uma histeria coletiva entre os cristãos,
que teriam se sentido traídos, desolados e espiritualmente desestabilizados.
As pessoas adoram uma busca - procurar por algo que seja esquivo, mas que esteja
quase ao alcance das mãos. Buscar um Santo Graal ou uma Arca da Aliança sempre fugi
dios parece ser algo programado dentro de nós, como o entusiasmo revelado por Grah
am Hancock em The Sign and the Seal. Contudo, bem no fundo sabemos que esses obj
etos, embora possam realmente existir em algum lugar - o que é uma idéia empolgante
-, são apenas símbolos, foco ou incorporação de alguns segredos antigos. Embora o Monastér
io de Sion e seus aliados possam estar prestes a revelar alguma justificativa co
ncreta para suas crenças, a história por si só, como esperamos ter demonstrado, dá pista
s sobre a força dessa justificativa.
Claro que tais planos são do maior interesse, mas já não são mais necessários para que se
entenda a suposta ameaça à Igreja - e, por conseqüência, às raízes de toda a cultura ociden
al.Tanta coisa baseia-se nos pressupostos sobre a história cristã, e tanta e intensa
emoção pessoal é investida em conceitos como o de um Jesus Cristo que era o Filho de
Deus e da Virgem Maria, o humilde carpinteiro que morreu por nossos pecados e de
pois ressuscitou. Sua vida de humildade, tolerância e sofrimento tornaram-se a ima
gem da perfeição humana e modelo espiritual para milhões de pessoas. Jesus Cristo, sen
tado à direita do Pai, olha pelos pobres e oprimidos e dá-lhes conforto - pois ele não
disse "Vinde a mim os que sofrem, e eu os consolarei"?
De fato, embora seja bastante provável que Jesus tenha dito tais palavras, simples
mente não é verdade que fossem originalmente suas. Pois, como vimos, essas, e provav
elmente muitas outras do mesmo tipo, eram palavras atribuídas à Chreste Isis: Bondos
a Ísis, a suprema deusa mãe dos egípcios. Para Jesus, assim como para qualquer outro s
acerdote de Ísis, essas palavras deviam ser bem conhecidas.
Como vimos, muitos cristãos contemporâneos estão inacreditavelmente desinformados sobr
e os desenvolvimentos alcançados nos estudos da Bíblia. Para muitos, idéias como a de
Jesus ser um mago egípcio, ou a rivalidade entre Jesus e João Batista, parecem pouco
menos do que blasfêmia - ainda que não sejam invencionices de escritores de ficção ou d
e inimigos de sua religião, mas conclusões de respeitados estudiosos, alguns deles c
ristãos. E foi há cerca de um século que os elementos pagãos da história de Jesus foram re
conhecidos pela primeira vez.
Quando começamos a estudar o assunto, ficamos impressionados com a quantidade de q
uestões que os pesquisadores levantaram sobre a tradicional história cristã, apresenta
ndo argumentos detalhados e meticulosamente arrazoados em favor de uma versão prat
icamente irreconhecível de Jesus e seu movimento. Ficamos particularmente espantad
os ao descobrir que já havia inúmeras evidências sugerindo que Jesus não era judeu e que
, na verdade, era de religião egípcia. No entanto, é tão forte nossa suposição cultural de
ue Jesus era judeu, que mesmo aqueles que recolheram tais evidências não foram capaz
es de dar o passo lógico final e concluir que o peso desse material realmente reve
la que Jesus não era de religião judaica, mas sim egípcia.
Muitos estudiosos contribuíram fortemente para a criação de uma imagem nova e radicalm
ente diferente de Jesus e seu movimento. Desmond Stewart argumentou de modo sobe
rbo em seu livro The Foreigner que Jesus fora influenciado pelas escolas de mistér
io egípcias; novamente, porém, Stewart vê a conexão egípcia apenas como uma modificação do
aísmo essencial de Jesus. E o professor Burton L. Mack, embora argumente que Jesus
não era de religião judaica, também rejeita o material das escolas de mistério presente
nos Evangelhos com base em que este fora acrescentado posteriormente uma suposição
que não encontra qualquer apoio nas pesquisas realizadas.
Mesmo o professor Karl W Luckert diz:
Esse nascimento angustiado [do cristianismo]... foi contudo verdadeiro trabalh
o de parto da mãe do cristianismo, a antiga religião egípcia que expirava. Nossa velha
mãe egípcia morreu nos séculos durante os quais seu vigoroso rebento surgiu e começou a
prosperar no mundo mediterrâneo. Suas dores de parto foram sua agonia da morte.
Ao longo de sua vida de quase dois mil anos, essa filha cristã nascida da Mãe Egito
tem permanecido relativamente bem informada sobre sua antiga tradição paterna... [ma
s] até hoje nada se falou sobre a identidade de sua falecida mãe religiosa...
Mesmo tendo defendido de modo magnífico o argumento em favor das raízes egípcias do cr
istianismo, Luckert ainda se desvia da questão. Para ele a influência do Egito foi i
ndireta, um eco distante das próprias origens do judaísmo no Egito. Se Jesus, porém, e
nsinava material das escolas de mistério egípcias, com certeza faz mais sentido que
ele o tivesse aprendido em primeira mão, necessitando apenas cruzar a fronteira, e
m vez de pinçá-lo nas fragmentadas e imprecisas alusões do Antigo Testamento.
De todas essas autoridades, somente uma efetivamente dá o último e ousado passo lógico
. Morton Smith, em sua obra Jesus the Magician, declara inequivocamente que as p
róprias crenças e ações de Jesus eram de fonte egípcia - e, significativamente, ele baseou
sua assertiva no material extraído de certos textos de magia do Egito.
A obra de Morton Smith, embora completamente ignorada por muitos comentadores da
Bíblia, foi acolhida com cautelosa aprovação por alguns. Contudo, a visão acadêmica não fo
ma, conforme averiguamos durante nossa investigação, de modo algum um quadro complet
o. Ao longo dos séculos, muitos grupos compartilharam uma crença secreta no passado
egípcio de Jesus e de outros personagens do drama do primeiro século, e esses "hereg
es" também nos forneceram muitas outras percepções sobre as origens do cristianismo. É i
nteressante que essas idéias estejam agora sendo corroboradas pelos estudos modern
os do Novo Testamento.
Se o cristianismo foi realmente um produto da religião egípcia, e não a missão pessoal d
o Filho de Deus, ou mesmo um desenvolvimento radical de uma forma de judaísmo, então
as implicações para nossa cultura são tão básicas e de alcance tão amplo que aqui só podem
r esboçadas.
Por exemplo, ao voltar as costas para suas raízes egípcias a Igreja perdeu a noção funda
mental da igualdade arquetípica entre os sexos, pois Ísis sempre foi contrabalançada p
or seu consorte Osíris, e vice-versa. Em princípio, esse conceito no mínimo encorajava
a que se tratasse homens e mulheres com o igual e devido respeito, pois Osíris re
presentava todos os homens e Ísis, todas as mulheres. Mesmo em nossa era secular a
inda sofremos as conseqüências dessa negação do ideal egípcio: pois embora o sexismo não se
a um fenômeno exclusivo do Ocidente, suas manifestações diretas em nossa cultura devem
muito aos ensinamentos da Igreja sobre o lugar da mulher.
Além disso, ao negar seu passado egípcio, a Igreja também rejeitou, com freqüência de form
a especialmente virulenta, todo o conceito do sexo como sacramento. Ao colocar u
m celibatário Filho de Deus à frente de um patriarcado misógino, ela perverteu a mensa
gem "cristã" original. Pois os deuses que o próprio Jesus venerava eram parceiros se
xuais, e essa sexualidade era objeto de celebração e emulação entre seus adoradores - ai
nda mais significativo, os egípcios não eram tidos como um povo particularmente lice
ncioso, mas eram sim notáveis por sua espiritualidade. As conseqüências para nossa cul
tura da atitude da Igreja em relação ao sexo e ao amor sexual para nossa cultura for
am terríveis: tal repressão tem sido responsável não apenas pelo tormento individual e p
or uma desnecessária busca de salvação da própria alma, como também por crimes sem conta c
ontra mulheres e crianças, muitos dos quais as autoridades preferiram ignorar.
Existem outras colheitas amargas desse grande erro, de uma Igreja cristã que negou
suas verdadeiras raízes.Por séculos a Igreja perpetrou atrocidades contra os judeus
, com base na crença de que o cristianismo e o judaísmo eram rivais. A Igreja consid
erava os judeus blasfemos por negarem o messiado de Jesus, mas se Jesus não era ju
deu, então há ainda menos razões para os horrores cometidos contra milhões de judeus ino
centes. (A outra acusação principal utilizada para justificar os ataques aos judeus
- a de que eles mataram Jesus - já há muito foi reconhecida como uma falácia, simplesm
ente porque foram os romanos que o executaram.)
Há ainda um outro grupo que atraiu a hostilidade da Igreja ao longo dos anos. Em s
eu fervor de estabelecer-se como a única religião, o cristianismo pôs-se em permanente
estado de guerra contra os pagãos. Templos foram destruídos e pessoas torturadas e
mortas, da Islândia à América do Sul, da Irlanda ao Egito, em nome de Jesus Cristo. Co
ntudo, se estivermos certos, se o pr6prio Jesus era pagão, então esse fervor cristão não
apenas negou a humanidade comum, mas também os princípios de seu próprio fundador. Es
sa questão ainda é relevante, pois os pagãos contemporâneos continuam a ser atormentados
pelos cristãos em nossa sociedade atual.
Toda a nossa cultura é inquestionavelmente judaico-cristã, mas, e se estivermos cert
os e ela devesse ser, de fato, egípcio-cristã? Claro que isso pode ser apenas uma hi
pótese, mas talvez fosse mais interessante basear nosso ideal religioso na magia e
nos mistérios das pirâmides do que no irado Jeová. Com certeza, a religião que tem como
trindade o Pai, a Mãe e o Filho exerceria uma poderosa atração e um profundo sentimen
to de conforto.
Seguimos o curso contínuo da crença "herética" da Europa, a corrente secreta do mistério
da deusa, da alquimia sexual e dos segredos que envolvem João Batista. Os hereges
, assim acreditamos, guardam as chaves da verdade sobre a histórica Igreja de Roma
. Apresentamos suas razões nestas páginas, passo a passo, à medida que nós mesmos fazíamos
as descobertas e víamos o quadro geral surgindo do caos de informações - e, na verdad
e, de desinformações.
Acreditamos que, no geral, os hereges têm reivindicações que merecem ser ouvidas. Com
certeza, as figuras históricas de João Batista e Maria Madalena sofreram uma grave i
njustiça, e o momento de acertar as contas já passou há muito tempo. Se o mundo ociden
tal ainda tem esperança de adentrar o novo milênio livre da repressão e da culpa, então
precisamos respeitar o Princípio Feminino e procurar compreender o amplo conceito
da alquimia sexual.
Contudo, se apenas uma única lição puder ser absorvida de toda a jornada que empreende
mos nesta investigação e das descobertas que realizamos, não é a de que os hereges estão c
ertos e a Igreja errada. É de que há a necessidade, não de mais segredos zelosamente g
uardados e guerras santas, mas de tolerância e abertura para novas idéias, livres de
preconceitos. Sem limites para a imaginação, para o intelecto, ou para o espírito, ta
lvez possamos empunhar e levar adiante a tocha que foi acesa por luminares como
Giordano Bruno, Henrique Cornélio Agripa e Leonardo da Vinci. E talvez até mesmo che
guemos a apreender totalmente este antigo adágio herético: Não sabeis que sois deuses?
APÊNDICE
Maçônicos Ocultistas da Europa Continental
Rastrear a difusão da maçonaria desde as Ilhas Britânicas até a Europa Continental, e se
u desenvolvimento na Europa, é um processo complicado, que é dificultado tanto pelo
desejo da "corrente principal" da maçonaria contemporânea de dissociar-se de suas or
igens esotéricas como pela má vontade dos historiadores de levar o assunto a sério.
A primeira loja maçônica oficialmente reconhecida na França estabeleceu-se na década de
1720, sob o controle da Grande Loja da Inglaterra. Entretanto, nessa época já havia
lojas na França, cujas origens remontavam aos partidários (predominantemente) escoce
ses de Charles I, que fugiu para a França por volta de 1650. A história da maçonaria n
a França, portanto, seguiu duas correntes distintas: a que descendia das lojas ing
lesas (que formaram sua própria Grande Loja em Paris, em 1735) e a que descendia d
as lojas escocesas, com períodos de mútua hostilidade alternados com tentativas de r
econciliação. A fundação da Grande Loja da França, em 1735, representou uma ruptura com a
Grande Loja inglesa; a razão do atrito foram precisamente as objeções de Londres a que
"suas" lojas tivessem boas relações com as lojas escocesas.
A maçonaria escocesa parece ter estado mais próxima do caráter original da maçonaria com
o uma sociedade secreta ocultista, embora na Inglaterra ela tenha se transformad
o em uma associação de ajuda mútua e para o progresso, ou, na melhor das hipóteses, em u
ma sociedade filosófica. Com certeza, a maçonaria escocesa sempre teve um caráter marc
adamente ocultista.
A criação da Estrita Observância Templária, pelo barão von Hund, no final dos anos 1740, r
epresentou um novo desenvolvimento dentro da maçonaria escocesa. Von Hund afirmava
que sua autoridade derivava dos partidários do Stuart exilado em Paris, um círculo
centrado em Charles Edward Stuart (1720-1788), o "Jovem Pretendente" . Se é verdad
e, e uma pesquisa recente tende a apoiar tais afirmações, seu sistema teria derivado
dos mesmos círculos do já existente sistema escocês.
Embora von Hund tenha sido iniciado em Paris e começado a promover seu novo sistem
a na França, a Estrita Observância Templária teve seu maior sucesso inicial na terra n
atal do barão, a Alemanha, onde era originalmente conhecida como Irmandade de São João
Batista. (O título "Estrita Observância Templária" só foi adotado em 1764; o sistema an
terior era chamado simplesmente de "Maçonaria Purificada".) Von Hund criou a prime
ira loja na Alemanha, "A Loja dos Três Pilares", em Kittlitz, em 24 de junho (dia
de João Batista) de 1751. As lojas alemãs tinham estreitas ligações com as sociedades ro
sa-cruzes, particularmente com a Ordem da Dourada e Rosa Cruz (ver Capítulo Seis).
Na França, uma entidade rival da Grande Loja, a Grande Oriente, foi criada em 1773
. O ponto principal do desacordo entre os dois sistemas era o envolvimento das m
ulheres na maçonaria - a Grande Oriente incluía lojas constituídas só por mulheres. Entr
etanto, a Grande Oriente mergulhou em grande desordem por causa do que se consid
erou como uma tentativa da Estrita Observância Templária de assumir o controle. A re
sistência devia-se, em parte, ao nacionalismo, pois se tratava de um sistema alemão,
estrangeiro. Em conseqüência, um novo sistema "escocês", o Antigo e Aceito Ritual Esc
ocês (que mais tarde tornar-se-ia muito popular nos EUA), foi criado, em 1804. (pa
ra confundir as coisas ainda mais, há hoje uma Grande Loja Nacional da França, separ
ada da Grande Loja da França, que, embora represente uma minoria de lojas, é aliada
da Grande Loja inglesa.)
Martines de Pasqually (1727-1779) fundou outra forma de maçonaria oculta, a Ordem
dos Eleitos Cohen, em 1761. Muito pouco se sabe sobre o passado de Pasqually, em
bora ele fosse provavelmente espanhol Alguns pesquisadores acreditam que Pasqual
ly tinha ligações com a Ordem Dominicana - a antiga Inquisição - e que tinha acesso ao m
aterial mágico e herético existente nos arquivos da Ordem. Ele obteve para a Grande
Loja da França uma licença concedida a seu pai por Charles Edward Stuart, o que o li
ga à maçonaria escocesa, que estava por trás de von Hund.
O secretário de Pasqually era Louis Claude de Saint-Martin, um influente e importa
nte filósofo do ocultismo, que ficou conhecido como o "Filósofo Desconhecido". Saint
-Martin formou um novo sistema da maçonaria escocesa, o Ritual Escocês Reformado, e
este uniu-se com o ramo francês da Estrita Observância Templária em 1778, na Convenção de
Lyon, uma reunião dos maçons do ritual escocês que também incluiu representantes da maçona
ria suíça. A principal força motriz por trás do encontro de Lyon foi Jean-Baptiste Wille
rmoz (1730-1824), que também era membro dos Eleitos Cohen. No encontro, a Estrita
Observância Templária de von Hund e o Ritual Escocês Reformado de
Saint-Martin uniram-se sob o nome de Ritual Escocês Purificado. (A filosofia de Sa
int-Martin - o martinismo - foi de grande influência no ressurgimento do ocultismo
na França no final do século XIX, especialmente nos grupos dos "rosa-cruzes" discut
idos no Capítulo Sete.As ligações entre as ordens martinistas e o Ritual Escocês Purific
ado permanecem estreitas até hoje.)
A Estrita Observância Templária foi abolida na Convenção de Wt1helmsbad, em 1782, embora
o sistema do Ritual Escocês Purificado (que era essencialmente a Estrita Observânci
a sob outro nome, com a adição de certas crenças martinistas) fosse reconhecido como l
egítimo.
A Estrita Observância Templária também sobreviveu através de sua influência sobre outra fo
rma de maçonaria "oculta", os Rituais Egípcios, que foram criados pelo conde Caglios
tro (ver Capítulo Sete).Após sua iniciação em uma loja da Estrita Observância (Esperance 3
69) em Londres, em 1777, Cagliostro desenvolveu seu próprio sistema, que incorpora
va a alquimia e outras idéias que ele aprendera dos grupos ocultistas alemães. Ele c
riou a "loja mãe" do Ritual Egípcio em Lyon, em 1782. O traço distintivo de seu sistem
a, afora o uso do antigo simbolismo egípcio, era a igualdade concedida às mulheres.
A data da fundação desse sistema também é significativa. Os céticos atribuem a fundação da
aria do Ritual Egípcio à moda européia pelas coisas do Egito que se seguiu à campanha de
Napoleão nesse país (durante a qual a famosa Pedra da Roseta foi descoberta). Entre
tanto, isso se deu nos anos de 1798-99, após a instituição do sistema maçônico.
O Ritual de Misraim foi criado em Veneza em 1788, sob licença dada por Cagliostro.
Foi levado para a França em 1810 por três irmãos da Provença Michael, Joseph e Marcus B
edarride.
Eles estabeleceram uma Grande Seção em Paris e negociaram a união com a Grande Oriente
. Também estabeleceram ligações com o Ritual Escocês Purificado, um reconhecimento à orige
m comum dos dois sistemas na Estrita Observância Templária. Os quatro grandes graus
do Ritual de Misra'im eram chamados de Arcana Arcanorum.
Outro importante ritual egípcio era o de Mênfis, criado em Montauban, em 1838, por J
acques-Étienne Marconis de Negre (1795-1865), um antigo membro do Ritual de Misra im
. Esse sistema também tinha estreitos laços com o Ritual Escocês Purificado.
Em 1899,os rituais de Mênfis e Misra im foram unidos por Gérard Encausse (Papus), que
anteriormente fundara e liderara a Ordem Martinista (ver Capítulo Sete).
Assim, o Ritual Escocês Purificado, os rituais egípcios e as ordens martinistas form
am um grupo interligado de sociedades, todas com origem na Estrita Observância Tem
plária do barão von Hund - que por sua vez deriva dos cavaleiros templários da Escócia -
e nas lojas rosa-cruzes da Alemanha.

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