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Milão, Teatro Dal Verme, 2 de maio de 2023 e por videoconferência da Itália e do mundo
O SENSO RELIGIOSO:
O FATO MAIS IMPONENTE
DA HISTÓRIA HUMANA
Notas da apresentação de O senso religioso
com Irene Elisei, Javier Prades e Davide Prosperi
Milão, Teatro Dal Verme, 2 de maio de 2023
e por videoconferência da Itália e do mundo
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O SENSO RELIGIOSO: O FATO MAIS IMPONENTE DA HISTÓRIA HUMANA
Voltando ao livro, sua nova publicação nos deu a agradeço à jornalista Irene Elisei, à qual pedimos
oportunidade de enriquecê-lo com um novo prefá- que conduzisse o diálogo desta noite.
cio. Trata-se de uma fala que o então arcebispo de Obrigado, e deixo a palavra a vocês.
Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio, fez em 1998,
num encontro de apresentação de O senso religioso
em língua espanhola. Agradeço mais uma vez ao Irene Elisei
Santo Padre por nos ter dado sua anuência para re- Boa noite a todos. Agradeço ao Davide Prosperi, pre-
propormos essa sua reflexão. sidente da Fraternidade de Comunhão e Libertação.
É realmente impressionante a atualidade de suas “O critério objetivo […] daquela experiência ele-
palavras. Com efeito, ele disse: “O senso religioso mentar com que todas as mães dotam, do mesmo
não é um livro de uso exclusivo daqueles que fazem modo, os seus filhos. […] A exigência da bondade,
parte do Movimento; também não é só para cris- da justiça, da verdade, da felicidade, constitui o rosto
tãos ou crentes. É um livro para todos os homens último, a energia profunda com a qual os homens de
que levam a sério a sua humanidade. Ouso dizer todos os tempos e de todas as raças se aproximam de
que hoje a questão que mais devemos enfrentar não tudo […]. Por que isto é possível? Porque tal expe-
é tanto o problema de Deus – a existência de Deus, riência elementar […] é substancialmente igual em
o conhecimento de Deus –, mas o problema do ho- todos, mesmo que depois seja determinada, tradu-
mem, o conhecimento do homem e o encontrar no zida e realizada de modos muito diversos, aparente-
próprio homem a marca que Deus lhe deixou para mente até opostos” (O senso religioso, Jundiaí: Paco,
que possa encontrar-se com Ele” (clonline.org). 2017, pp. 27-28).
Foi também reagindo a esse texto do futuro Papa Eu quis começar por essas linhas que Dom Gius-
Francisco que pensamos em organizar o evento sani escreveu nas primeiras páginas de O senso re-
desta noite: uma apresentação pública, então aberta ligioso, embora não sejam, muito provavelmente, as
a todos, de um livro que consideramos ser uma pro- mais conhecidas ou as mais citadas, pois nos permi-
vocação atual e fascinante para o homem de hoje. tem a todos partir do mesmo tempo, pois apontam
Para aprofundar e tornar concreto essa intenção, para algo que todos nós podemos ter vivido, ainda
convidamos o Pe. Javier Prades, reitor da Universi- que tenha sido uma única vez durante os anos es-
dade Eclesiástica San Dámaso de Madri e professor colares, quando ficamos especialmente tocados pelo
ordinário de Teologia Dogmática. A ele, nosso mais verso de um poema, pelo título de um livro, ao ou-
sincero obrigado por sua disponibilidade. Também vir uma peça de música clássica ou a estrofe de uma
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Notas da apresentação de O senso religioso
canção. Não à toa, O senso religioso de Dom Gius- fatores” (O eu, o poder, as obras. 2. ed. Rio de Janeiro:
sani é riquíssimo de citações. Um dos autores que Sociedade Litterae Communionis, 2021. E-book).
ele cita com mais frequência é Giacomo Leopardi, Tomemos estas palavras: sede de verdade, sede de
e me marcou muitíssimo (marca todas as vezes que felicidade. Já podemos reconhecê-las: elas indicam
a lemos) um poema seu a que se refere, escrita há a orientação para um significado total, que excede
quase duzentos anos, o Canto noturno de um pastor minha imaginação e minha capacidade de definição.
errante da Ásia. Giussani retoma essas linhas do pas- Mas que é a razão do meu agir. Isso, então, lembra
tor, que se questiona: “E quando olho a amplidão, de sua conhecida definição de razão como “consciência
estrelas cheia, / Penso e digo comigo: / Por que tanta da realidade segundo a totalidade dos seus fatores”.
candeia? / Por que estes ares infinitos, este / infini- Senso religioso como sede de verdade, sede de feli-
to profundo, sereno, esta / imensa solidão? e eu, que cidade que não consigo imaginar, que não consigo
sou eu?” (“Canto noturno…” XXIII, vv. 84-89). Estas definir e que, mesmo assim, move e orienta todo o
são as perguntas existenciais, esta é a marca do senso meu agir. Eis a sua preocupação. E acrescenta que,
religioso. Porém – nós o ouvimos há poucos instan- por isso, o senso religioso é “a posição exata como
tes na sua própria voz – Dom Giussani fala do senso consciência e, quanto possível, como postura prática
religioso como de “um fato”, sendo que comumente do homem diante do seu destino” (Por que a Igreja,
o entendemos como uma questão de sensibilidade São Paulo: Cia. Ilimitada, 2015, p. 232).
(sou mais ou menos sensível e mais ou menos me Por que fala de um fato imponente? Porque nesta
faço determinadas perguntas). posição exata como consciência e, quanto possível,
Pode ajudar-nos a entender o que Dom Giussani como postura reside todo o viver humano, de cada
entende por “um fato” quando fala de senso religioso? um de nós individualmente e das sociedades, dos
povos, da humanidade inteira. Por isso é uma reali-
dade imponente.
Javier Prades
Boa noite, Irene, primeiramente, e boa noite a to- Elisei. Vamos aprofundar mais, porém antes eu
dos. Queria começar agradecendo ao Davide Pros- tenho uma pergunta simples mas essencial: por que
peri pelo convite que me fez para o diálogo de hoje é útil abordar hoje o senso religioso? Em Milão a
sobre este livro excepcional de Dom Giussani. gente corre muito, não sei em Madri, mas aqui esta-
Nós acabamos de ouvir: o senso religioso é um fe- mos sempre atarefados e sempre parece uma ques-
nômeno objetivo, é um fato real, é uma realidade, tão que pode ser adiada, de alguma forma. É preci-
não é uma ideia, não é um sentimento. Depois acres- so ter boas razões para propor a alguém a leitura de
centa: “É o fato mais imponente da história humana”. um livro que se concentra nas perguntas, enquanto
Por quê? A resposta completa nós vamos encontrar o mundo ao nosso redor se agita por fornecer res-
conforme formos lendo o livro juntos. Mas desde postas o mais rápido possível.
já podemos chamar a atenção para outro trecho de
Dom Giussani: “Chamamos ‘senso religioso’ o co- Prades. Qual é o contexto de hoje? Digo-o com
ração do homem: a sede de verdade e de felicidade uma fórmula que o Papa Francisco popularizou:
dirige-se ao bem último, ao significado total, que estamos numa “mudança de época” (Discurso no
excede nossa possibilidade de imaginação e de defi- encontro com os representantes do V Congresso Na-
nição. Ela é também a razão de todo o agir: o senso cional da Igreja Italiana, Florença, 10 de novembro
religioso é o vértice da razão, porque a razão é cons- de 2015). Podemos reduzir a um slogan que citamos
ciência da realidade segundo a totalidade dos seus e depois seguimos em frente, mas se levarmos a sé-
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Notas da apresentação de O senso religioso
cho, meio morto], o fato de falar de Deus com ele forte, pois há várias alternativas por aí sobre a relação
acaba sendo um discurso abstrato, esotérico ou com o real que não partem precisamente da razão, de
um impulso à devoção sem qualquer relação com um sentido integral de razão, mas do sentimento ou
a vida” (clonline.org). Resgatar o humano é a via da irracionalidade pura, de modo que não há razões,
para reabrir humanamente a pergunta sobre Deus. há apenas o vaivém do instinto ou a emotividade, e
Se não houver a pergunta nem houver a resposta sabe Deus quantas coisas mais. Mas Giussani diz: “A
sobre Deus, todos os riscos de que falamos antes razão é o que nos define como homens. Por isso de-
levarão, muito provavelmente, àquele uso do poder vemos ter paixão pela razoabilidade: esta paixão é o
dos homens contra os homens. fio condutor do nosso discurso. Exatamente por isso
Portanto, hoje voltamos a esse “fato” que é o senso o primeiro volume do PerCurso, O senso religioso,
religioso, entendendo-o com Dom Giussani como abre-se com uma tríplice premissa de método, que
“um convite e um estímulo a recuperar a simplicida- possa ajudar a penetrar no modo com que a cons-
de, a autenticidade da nossa natureza” (L’io rinasce in ciência de um homem, por natureza, raciocina” (O
un incontro. 1986-1987, Milão: Bur, 2010, p. 162), o senso religioso, op. cit., p. 15).
fascínio de sermos homens. Será preciso alguém que Aqui é muito bonito e muito interessante perceber,
nos restitua o fascínio de sermos homens! por um lado, a originalidade de Dom Giussani, os
traços originais, originalíssimos, na minha opinião,
Elisei. Você acabou de falar do convite a sermos da sua proposta educativa para fazer-nos entrar na
homens. O senso religioso, que decerto é o texto mais totalidade do real. E, por outro lado, em última análi-
traduzido e mais conhecido de Dom Giussani, é a pri- se, reconhecer que, ao fazer assim, ele segue a melhor
meira parte de um percurso que Giussani começou a tradição católica. Porque de Agostinho e Tomás até
fazer com os jovens que encontrou na escola, no li- Newman, não há nenhum “grande” na história da fé
ceu Berchet, em meados dos anos cinquenta, jovens e da Igreja que, ao tentar transmitir a fé, não se tenha
nos quais ele enxergava uma fé muito ligada à tradi- posto a questão sobre a razão e não tenha combatido
ção, mas destituída de bases sólidas (ele as chamava a favor da razão. Por isso podemos dizer que estamos
de “razões adequadas”). Com eles começou, então, diante de uma figura que prolonga esta sensibilida-
um percurso educativo, a partir de O senso religioso, de para os nossos tempos, esta forma de abordar o
que depois foi sendo enriquecido com outros livros e real como sugestão educativa. E assim, despertando
que está no centro da novidade de Giussani. Diante a razão (as perguntas, como você disse), o caminho
de alunos que tinham uma fé ligada à tradição, mas que Giussani propõe também pode vir ao encontro
destituída de razões adequadas, para ajudá-los a en- de uma objeção que Joseph Ratzinger havia vislum-
tender por que valia a pena crer, ele começou pela ra- brado, muitos anos atrás, na Alemanha da época (no
zoabilidade das perguntas primordiais. Uma inversão, início dos anos setenta): num livro seu muito conhe-
não? Em vez de analisar o problema em si, eu parto cido, perguntava-se o porquê do fracasso na trans-
da estaca zero, e isso me parece revolucionário, por missão da fé. Por que ela não consegue mais criar ra-
si só. A quem Giussani nunca conheceu (eu nunca o ízes? Ele respondeu: “A crise da pregação cristã, que
conheci!), no livro é reproposta continuamente uma há um século experimentamos em crescente medi-
pergunta, eu a senti feita a mim: um homem, prin-
cipalmente um homem moderno, pode fazer-se essas
perguntas razoavelmente?
Pergunto-lhe se este uso da razão e o senso religioso O fato de se ter negligenciado
são a grande novidade de Giussani ao abordar o tema. o drama humano, as
Prades. Na apresentação às edições sucessivas de perguntas, a paixão
O senso religioso, ele explica o propósito de sua ten- pela razoabilidade do viver,
tativa, o que se propõe fazer; diz assim: “O homem
enfrenta a realidade [a realidade de todos, daquela é um dos elementos
época e de hoje, de nós e de todos; para entender a
vida, para entender a si mesmo, aos demais, a tudo,
da situação
ao homem] com a razão”. E esta já é uma opção muito em que estamos
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da, depende em muito do fato das respostas cristãs setenta. Estou fazendo algumas comparações meio ar-
negligenciarem as interrogações do homem. Elas riscadas, mas acho que podem ser úteis. Há um modo
eram corretas e continuavam a permanecer como de propor os conteúdos verdadeiros, as respostas cor-
tais, mas não tiveram influência na medida em que retas que provêm do Mistério revelado, que traz em si
não partiram do problema e não foram desenvolvi- a interlocução viva com nós mesmos e com o outro.
das no interior dele” (Dogma e predicazione, Bréscia: E é isso o que permite entender o conteúdo do que é
Queriniana, 2005, p. 75). Não faltou a clareza das proposto como pertinente, como adequado e, portan-
nossas respostas cristãs (ele falava da Alemanha dos to, como conveniente para mim e para todos. Ratzin-
anos setenta, da qual sabia alguma coisa), e sim ca- ger levantou a questão sobre a situação e respondeu
pacidade de apresentar as respostas em relação com que o que estava faltando era o Mit-fragen, ou seja, o
as perguntas humanas. interrogar-se junto com todos: “Portanto, é uma com-
Com sua proposta, Giussani incidia bem nesta di- ponente essencial da própria pregação tomar parte na
ficuldade que o fazia pensar como que em dois mun- busca do homem, pois só assim a palavra (Wort) pode
dos paralelos, pelo que as respostas até podiam ser tornar-se resposta (Ant-wort)” (Ibidem).
corretas (eram corretas, podiam ser corretas), mas, Portanto, recuperamos nossas perguntas como
por não encontrarem o outro, ou passavam batido ou expressão da abertura da razão para aquilo que ela
se colocavam à parte na vida. Assim, o fato de se ter não consegue imaginar nem consegue definir. Esta
negligenciado o drama humano, as perguntas, a pai- me parece ser uma das características mais origi-
xão pela razoabilidade do viver, na minha opinião, é nais e fortes da proposta de Giussani.
um dos elementos da situação em que estamos, para a
qual normalmente não sabemos bem como encontrar Elisei. Acredito que isso também tem um valor
a explicação. O livro inicia com três premissas de mé- do ponto de vista do diálogo: é um método graças
todo: a primeira premissa é o “realismo”, a segunda a ao qual você pode falar de verdade com todos, dado
“razoabilidade” e a terceira a “incidência da moralida- que você não propõe apenas, como disse, um crité-
de sobre a dinâmica do conhecimento”. Vamos come- rio justo, uma razão justa, que por si só não basta
çar nossa busca com estas premissas. Mas que tipo de para fazer com que você encontre o outro.
busca queremos empreender? Pois bem, vamos seguir
os passos. Realismo: o objeto dita o método. Qual é o Prades. Você corre o risco de não encontrar a si
objeto? O objeto é a pessoa. Não a definição de pes- mesmo. E isso é muito pior. É verdade, porque você
soa, mas a pessoa que eu sou, que você é, que cada um pode pensar: “Mas eu disse a verdade, por que então
de nós é. E então, qual é a maneira de proceder com este aqui não está vindo atrás de mim?” Pode haver
uma investigação realista, quando se trata de conhecer muitas razões, pelo amor de Deus, mas o fato de não
o que é uma pessoa? Quem sou eu? (Leopardi disse: estar presente a dimensão de envolvimento no dra-
“e eu, que sou eu?”) Assim, na minha opinião, na Itá- ma humano oblitera e tira a força de anúncio que é
lia dos anos cinquenta, em Giussani já estava, avant característica da proposta de Dom Giussani. Na mi-
la lettre, a resposta à pergunta de Ratzinger dos anos nha vida, eu vi que lançar-se com esta hipótese abre
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também é útil para o que acabei de dizer sobre os do metrô, qualquer um de nós (aliás, eu também
critérios que constituem o coração humano: Gius- sou um do metrô!), e começar a se perguntar: “En-
sani diz que cada um de nós possui esses critérios tão, o que é a vida?”, a vida-vida, como Agostinho
com os quais podemos comparar todas as coisas; diria. O que é a vida-vida? Comecem a listar os in-
eles são dados pela natureza, são dados em nossa gredientes e tentem entender onde vocês param,
condição, estabelecidos pela condição humana ou onde poderiam dizer: “Aqui, esta é a vida!” Muito
(usando uma expressão muito própria) são crité- interessante. Quando alguém vê isso, pergunta-se:
rios imanentes à estrutura original da pessoa. “Será que existe alguém no mundo que se concebe
Vou me deter por um momento nesta primeira como escravo, que trabalha como um escravo e não
dimensão dos critérios (sem os quais não se faz ex- perceberia essa diferença com uma vida que não
periência, não se cresce) em relação à vida, ao sen- seria apenas a vida de um escravo?” São coisas que
tido da vida: eles são objetivos, iguais para todos, devem ser surpreendidas. Essa é, digamos, uma ob-
estão dentro de nós, mas são dados; são imanentes servação geral sobre o sentido da vida, que emerge
à nossa estrutura humana, mas não estão disponí- em muitos episódios, talvez até mais simples.
veis, no sentido mais profundo, não são manipu- Vou contar-lhes outra história muito banal. Sou
láveis por nós mesmos. Mas não devemos prestar professor, ensino teologia há muito tempo e alguns
atenção a Giussani apenas porque ele diz isso, mui- anos atrás tive um aluno que se sentava na última
to menos a mim porque eu digo isso, porque é pre- fileira, visivelmente desinteressado no que eu estava
ciso vê-lo, isso sim! É preciso vê-lo como a criança dizendo (pelo menos eu pensava assim). Quando
que pode confirmar a verdade da frase sobre a mãe. um docente vê alguém assim, sinceramente começa
Vou tentar dizer como e onde eu o vejo. a pensar não muito bem daquela pessoa. Um dia,
Há alguns anos, ao ler um poeta espanhol con- deve ter sido primavera, mais ou menos, eu estava
temporâneo, Karmelo C. Iribarren, fui impactado no meu escritório para receber os alunos. A cam-
por um poema de duas linhas (duas linhas!) inti- painha toca. É aquele aluno: “Olha, eu geralmente
tulado Madri, metropolitana, noite: “Gente exausta nunca falo com os professores. Além disso, acho o
com olhos fixos no chão, / questionando a vida, a senhor um pouco antipático.” “Tudo bem.” “Além
vida verdadeira… / porque não pode ser apenas disso, eu não gosto desse Comunhão e Libertação.”
isso”. Os olhos fixos no chão, questionando a vida, “Então você deve ter errado de sala, o que posso
a vida verdadeira, porque não pode ser apenas isso. dizer? Por que você está aqui?” “Desde antes do
Gente comum, que trabalha como louco, que vol- Natal, estou passando por muitas dificuldades e te-
ta para casa exausta à noite no metrô, esgotada, nho pensado em desistir de tudo. Pedi ajuda, recebi
olhando para o chão e pensando: “Mas o que é a alguns conselhos, talvez até sábios e bons, mas eu
vida?” O poeta está certo em captar, em ler assim não me movo, vejo que nada me ajuda. Mas per-
o coração dessas pessoas. A coisa mais imponente cebi que ouvir o senhor na aula está me ajudando.”
que me surpreende é esta: como essas pessoas sa- Caramba! Naquele momento, veio-me a vontade
bem que a vida não pode ser apenas isso? Quem de dizer: “Olha, agradeça a Deus pelo que aconte-
disse? Ninguém disse! Ou sim? Não é porque você ceu com você, porque você percebeu algo que é tão
teve uma vida rica antes e depois perdeu tudo que, verdadeiro que atravessou e superou todos os seus
então, volta para casa no metrô à noite e diz: “Ca- preconceitos. Você foi amarrado pela luz e – como
ramba, se eu tivesse um motorista e um carro, eu dizia Dom Giussani – pelo caráter vinculante da
sentiria falta dessa vida…”, não! Você pode nunca verdade, que não te liga a mim, meu caro (eu fui
ter tido, nunca ter visto outra vida. No entanto, sabe apenas um intermediário), mas te liga à experiência
que a vida não pode ser apenas isso. Mas então, do verdadeiro que você acabou de ter, da qual eu fui
de onde vem essa certeza? Quem grita dentro de o meio. Se eu não sou simpático para você, vire-se,
mim? Que voz grita dentro de mim essa exigência mas durante toda a sua vida você não se livrará do
de vida verdadeira? Se você então gira isso para o fato de ter percebido a diferença entre as coisas que
lado positivo, diz: “Tudo bem, a vida não pode ser passam e o surgimento de uma verdade pertinen-
apenas isso. Você está lá, destroçado, em pedaços, te, convincente, transparente, que suscita sua res-
no metrô. Então me diga qual seria a vida verda- ponsabilidade. Agora, dê um jeito! Eu estou aqui,
deira”. Se vocês tentarem fazer isso como a pessoa quando você quiser”. Ele foi embora. Voltou uma
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Notas da apresentação de O senso religioso
vez, voltou muitas outras vezes, nos tornamos bons em casa com os filhos, não digo que você não queira
amigos, agora eu penso que ele é muito inteligente, fazer justiça. Todos nós sabemos bem quando não
é claro, ele segue nossa bela companhia do Movi- queremos fazer justiça, mas pensemos no caso em
mento. Não sei se o ajudei, mas esse episódio me que queremos fazê-la. Você diz: “Tenho dois filhos,
ajudou muito, porque a verdade é poderosa. Numa três filhos, tenho funcionários e quero fazer justiça.
sociedade como a nossa, que nega até mesmo a per- Com minhas próprias mãos, nunca conseguirei fazer
gunta sobre a verdade, posso insistir em dizer o que justiça? O que significa fazer justiça?” É uma evidên-
quero, mas quando a verdade reconhecida e julgada cia: sem justiça, não posso viver, porque não suporto
vem à tona, renascemos como sujeitos para tudo! viver na injustiça (e as feridas que carregamos por in-
Esse aluno agora é um padre muito bom. justiças sofridas são terríveis). Você diz: “Entendido.
Então, já que a justiça é uma exigência do coração,
Elisei. Entendemos o método com que Giussani todos os meus movimentos são justos?” Depende!
aborda o senso religioso, o ponto de partida que ele Sempre haverá a possibilidade de descobrir que o
indica para olhar para o próprio senso religioso. Mas, que eu considerava justo pode ser comparado a um
você diz, há muitas camadas de preconceitos que a critério de justiça mais “justo”, que me faz mudar e
pessoa tem sobre si mesma. Então, por onde começo? me faz dizer: “Eu achei que tinha sido justo até onde
pude; mas meu coração, com sua exigência de justi-
Prades. Antes de responder, há uma coisa que eu ça, continuará a me corrigir, sempre poderei desco-
absolutamente gostaria de dizer. Porque a outra face brir que o critério imanente, dado, não estabelecido
da moeda desses critérios – que, como critérios, são por mim, pode corrigir minhas aplicações dele”.
objetivos, imanentes e dados – é que sua aplicação Chego à questão que você me perguntou: por onde
pode estar errada, e de fato ocorrem erros. Giussa- começamos? Começamos… vamos ver por onde
ni sempre usava (eu me lembro) o exemplo do chefe Dom Giussani começa.
de escritório que se apaixona pela secretária. Ele é
casado, tem três filhos e diz que vai sair de casa; em Elisei. Um pouco de suspense…
nome de quê? Trai em nome de quê? Ninguém trai
em nome da traição! Ninguém. Trai-se em nome de Prades. Para uma investigação existencial como a
uma ideia de felicidade, de uma ideia de amor; sim, que estamos buscando, a proposta é começar por si
de felicidade ou de amor. Mas a aplicação pode estar mesmo. Ele o diz claramente, e é um critério mui-
errada, muito errada: negativamente, infelizmente to, muito forte. Quantas apostas, quantas escolhas
todos nós temos exemplos muito próximos. Pen- Giussani faz, muito poderosas, ao longo do per-
sem também na exigência de justiça. Não acredito curso do livro. Portanto, precisamos entender cla-
que haja uma exigência mais forte do que essa. Basta ramente em que sentido ele nos convida a “partir
você sentir-se tratado injustamente e o caos se ins- de si mesmo [e] partir da própria pessoa” (O senso
tala! Agora, ponha-se do outro lado, ponhamo-nos religioso, op. cit., p. 60). Num contexto como o de
do outro lado: você quer fazer justiça, por exemplo, hoje, no qual narcisismo e individualismo podem
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O SENSO RELIGIOSO: O FATO MAIS IMPONENTE DA HISTÓRIA HUMANA
ser ainda mais fortes do que há cinquenta anos, ele mãe com a idade que temos neste momento, no sen-
diz: “Partir de si é realista quando a própria pes- tido de termos desenvolvimento e consciência como
soa é olhada em ação, isto é, observada na expe- os que possuímos agora. Qual seria o primeiro senti-
riência cotidiana” (Ibidem). Aqui, Giussani sugere mento em sentido absoluto, isto é, o fator primeiro da
um critério de método muito interessante. Como nossa reação perante o real? Se eu abrisse pela primei-
posso me dar conta? Por onde começar? É neces- ra vez os olhos neste instante, saindo do seio de minha
sário identificar a estrutura da reação que cada um mãe, ficaria dominado pela maravilha e fascínio das
de nós tem diante da realidade. Não a introspecção, coisas, como de uma ‘presença’” (Ibidem, p. 155). Se
não o isolamento, mas ver-me em ação, acusar o pudéssemos nascer com a consciência de um adulto,
golpe. Por isso, o real é salutar, porque, se não exis- a estrutura da reação diante do real seria o maravilha-
tisse, todos nós ficaríamos loucos! A realidade é um mento. As “coisas”, a “coisa”, o real.
princípio de saúde mental. Você se vê em ação, se vê O exemplo não é artificial, parece-me muito pers-
em relação ao real, nas ações, nas emoções que vi- picaz, muito profundo. Certamente porque todos po-
vencia, no trabalho, no amor, no compromisso cul- demos reconhecer-nos, como pessoas normais, nessa
tural, público, político. O envolvimento com todos primeira descrição da estrutura de uma reação co-
os aspectos da vida sempre te proporciona um fee- movida, de um maravilhamento diante das coisas co-
dback que – observado de acordo com os critérios muns. Lembrei-me de um livro publicado há muitos
mencionados anteriormente – é uma fonte inesgo- anos, com depoimentos de astronautas americanos e
tável de tensão para a compreensão integral da vida. cosmonautas russos que haviam retornado à Terra.
Não precisamos de mais nada. Não nos falta vida e, Ao reler alguns deles, a primeira coisa que se destaca é
não faltando a realidade que nos provoca todos os uma surpresa cheia de alegria. Por exemplo, um deles
dias, todo o dinamismo que nos permite crescer se- dizia: “Ao sair da nave espacial, uma sensação estra-
guindo critérios vividos corretamente é despertado. nha de felicidade me tomou. A Terra tinha um cheiro
indescritivelmente doce e profundo. Que prazer sentir
Elisei. A próxima pergunta está relacionada a o vento após longos dias no espaço”. Outro declarou:
isso. Às vezes, temos em nós ou vemos em alguém “Depois de descer da nave espacial, fiquei muito feliz
que encontramos um coração que parece um pouco em ver o solo já coberto pela primeira camada fina de
adormecido. Como se desperta um coração ador- neve do outono. Eu queria me jogar no chão, abraçá-lo
mecido? No prefácio, Bergoglio diz: “Não podemos e pressionar minhas bochechas contra ele” (K. Kelley
fazer um discurso sobre Deus se não tivermos so- (Ed.), The Home Planet, Reading-Ma: Addison-Wes-
prado as cinzas que estão cobrindo as brasas dessas ley, 1988). Quantos russos em suas vidas não terão vis-
perguntas” (clonline.org). Tenho em mente um cole- to um dedo de neve na terra no outono? Todos (exceto
ga insatisfeito com sua vida sentimental, profissio- alguns na região do Mar Negro!). Não há nada mais
nal, enfim, em muitos aspectos; no entanto, parece banal, mais óbvio do que a neve na Rússia. Mas basta
quase que ele se contenta, que escolhe contentar-se.
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Notas da apresentação de O senso religioso
recuperar o olhar original, que você sente vontade de villanas del Adios: “Algo morre na alma, quando um
se jogar no chão cheio de felicidade! amigo se vai… […] O barco fica pequeno, quando se
No entanto, Dom Giussani não dá o exemplo ape- afasta no mar…” Giussani diz que esta é a experiên-
nas para estimular os sentimentos, no sentido de di- cia humana mais nobre. Esse ponto de fuga se perde
zer: “O chão me deixa de bom humor”, mas lê essa no horizonte: “As Sevillanas, dizia, são um símbolo:
experiência, que pode ser multiplicada em muitos o barco, o navio que se afasta, vai-se tornando cada
outros exemplos, como um indício, nada menos, da vez menor, à medida que entra no mar, vai-se tor-
própria profundidade do real. Ou seja, o maravilha- nando cada vez menor, até que desaparece”. E então
mento não é apenas um sentimento, mas o caminho ele acrescenta: “Mas, enquanto que para o homem
que leva a um “além” que é da mesma natureza do comum essa linha do horizonte constitui o ponto
maravilhamento. Aquilo que não posso definir e não onde tudo se afunda, até desaparecer – o barquiño da
posso imaginar me aparece de forma tão correspon- canção desapareceu, era um ponto, apenas um pon-
dente a ponto de suscitar maravilhamento, comoção. to, e depois desapareceu –, para o cristão essa linha
Será falso? Será uma aparência? Dom Giussani par- do horizonte é como um enigma, o mistério do qual
te do maravilhamento como uma porta, uma jane- deve surgir diante dele, do qual tem que chegar algu-
la, um ponto de fuga para indicar a única coisa que ma coisa até ele: é uma terra desconhecida, da qual
pode tranquilizar-nos: a realidade é boa. Não ape- vai chegar até ele alguém que traz uma riqueza ini-
nas “aparece”, mas se doa a mim exatamente como maginável. […] E, efetivamente, num dado momen-
aparece, como algo bom. Aí está a certeza, aí está a to aparece um ponto no horizonte, sobre a linha do
consistência. horizonte: é o barco. Esse barquiño, que ao princípio
O seu colega, eu e todos nós podemos estar apaga- é um ponto, torna-se cada vez maior. Ante os olhos
dos, até termos, por graça, a oportunidade de um en- do homem atento, que fixa nele o olhar, vai-se fazen-
contro que desperta o maravilhamento, que reacende do cada vez maior, maior, até que se perfila também
o dinamismo humano e nos põe em ação novamen- o que está a bordo dele e vê-se então um homem, o
te. Isso é decisivo, como você no início. Giussani des- barqueiro, sentado dentro dele. O barco aproxima-se
taca o quanto é profunda a experiência descrita com da margem, atraca, e o homem que esperava abraça
o exemplo. Você vai, vai, vai, vai mais além, aden- o outro que chega” (Realidade e juventude. O desafio,
tra essa experiência e, no final, percebe nada menos Lisboa: Diel, 2003, pp. 101-104). Mas quem poderá
que na origem da sua pessoa há algo misterioso ao compreender até estremecer a frase: o Mistério se fez
qual não você pode chamar outra coisa senão “Tu”. homem, se dizer “Mistério” não desperta a experiên-
Não pode dizer menos do que “Tu” a essa misteriosa cia da misteriosidade de um bem incognoscível que
origem no fundo de você (cf. O senso religioso, op. perpassa todas as camadas do viver e cujo nome é
cit., pp. 162-164). Assim, o caminho até Deus será desconhecido? Você não sabe dizer o Seu nome e Ele
compreendido de forma muito mais realista, existen- não diz o seu nome, mas o homem que desce à ter-
cialmente vinculante, quando qualquer pessoa ouvir ra e te abraça (o Mistério feito homem), Ele tem um
o anúncio cristão. Dom Giussani comentou a Se- nome e Ele conhece o meu nome.
Portanto, se não percorremos o caminho integral-
mente, as palavras mais sacrossantas da nossa fé po-
Você vai, vai, vai, dem passar batidas sem afetar sequer um milímetro
as pessoas. No entanto, elas são verdadeiramente a
vai mais além, adentra porta da salvação para aqueles que se perguntam: “O
essa experiência e, no final, que estou fazendo aqui sem entender nada da minha
vida?” Posso estar apagado, mas desperto porque al-
percebe nada menos que guém passa perto de mim com essa capacidade de
na origem da sua pessoa há me abraçar.
algo misterioso ao qual não Elisei. Algo pode surpreender, e isso pode nos
despertar. Justamente porque estamos falando de
você pode chamar maravilhamento, vou lhe fazer rapidamente a pró-
outra coisa senão “Tu” xima pergunta, partindo do que outro colega me
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O SENSO RELIGIOSO: O FATO MAIS IMPONENTE DA HISTÓRIA HUMANA
perguntou (tenho quantos colegas você quiser para Elisei. Eu gostaria de entender qual interesse pode
mais perguntas!). Nos últimos dias, enquanto pre- haver em refletir sobre a religiosidade, sobre o sen-
parava o encontro desta noite, eu carregava o livro so religioso, para quem talvez acredite ter encon-
na minha bolsa. Evidentemente, ele estava à vista e trado uma resposta a essas perguntas, para quem já
um colega curioso o tirou para fora; depois de ler o está num caminho de fé. Em suma, por que não é
título, ele olhou a quarta capa e leu: “Viver intensa- um passo atrás ou uma repetição?
mente o real”. Ele se aproximou de mim e pergun-
tou: “Mas o que alguém que vive intensamente o Prades. Não é apenas para “quem acredita ter en-
real faz?” Eu disse a ele: “Venha ouvir o Prades e ele contrado uma resposta”, mas também para “quem a
vai responder”. Giussani diz: “Qual é a fórmula do encontrou” – porque a resposta cristã é muito ver-
itinerário rumo ao significado último da realidade? dadeira –. Giussani certa vez teve esta tirada: “Nós
Viver intensamente o real”. O que isso significa? escrevemos o senso religioso” – nós… ele! –, “nós
cristãos, nós católicos”, ou seja, nós que encontra-
Prades. Ótimo! Então, deixo essa pergunta aberta mos Jesus Cristo, que a partir do encontro feito pu-
para todos. De verdade! Não é que no palco estejam demos recuperar o humano conforme a profundi-
os atores e na plateia os espectadores, sinto muito! dade, a riqueza, a precisão, a plenitude descrita em
Aqui não há espectadores, hoje não há. Vocês vie- O senso religioso. Giussani disse isso, mas aqui eu
ram por acaso? Não sei por que vieram, mas estão lembro a expressão que Julián Carrón usava muitas
aqui. E não são espectadores. Portanto, deixemos a vezes: “O senso religioso é a verificação da fé” (Pas-
pergunta em aberto: “O que significa viver intensa- sos, n. 124, mar. 2011, pp. 7-18). Fazer o percurso
mente o real?” De quem posso dizer, conhecendo do senso religioso como verificação da fé cristã,
seu nome e sobrenome, que corresponde às pa- é isso que queremos fazer agora. Caso contrário,
lavras do texto, ou seja, vive intensamente o real? como poderemos, como poderei eu comunicar a
Levemos em conta que Charles Taylor disse: “Esta intensidade, o gosto, a paixão pela fé, se quando
é a era da autenticidade” (C. Taylor, The ethics of au- digo “Encarnação do Verbo feito homem” faltar
thenticity, Harvard University Press, 2003). De fato, tudo o que eu disse antes? E, ao contrário, como
ouvindo muitas músicas, por exemplo: I want it all, é diferente poder dizer a alguém: “Venha comigo,
parece uma vivência intensa, muito autêntica. Ou fiquemos juntos, eu vou até você”, quando minha fé
não? And I want it now (Queen, “I want it all”, do ál- é retroalimentada, mantida e movida por essa in-
bum The miracle, 1989 Emi). É essa a maneira de vi- teligência do humano que surge da fé! Eu acredito
ver intensamente o real? Seria talvez um “vamos lá que uma proposta como essa permite (não é me-
fazer”? É muito mais bonito encontrar alguém cuja cânico, nada é mecânico) escapar do formalismo,
vida desperte em mim a experiência de correspon- do formalismo em nós cristãos vivermos a fé. Até
dência, de intensidade do real como itinerário para perceber a ligação profunda, existencial, entre cada
o significado último. Porque esta é a segunda parte uma das propostas que o cristianismo nos faz, que
da frase, que não deve ser perdida. “Viver inten- o Senhor que encontramos nos faz, e o humano que
samente” pode ser entendido de muitas maneiras: O busca. Por outro lado, se o senso religioso não
Dom Giussani diz que é para alcançar o “significa- consegue encontrar aquilo pelo qual se move, ge-
do último”. Estou curioso, daqui a algumas sema- ralmente cai (foi um pouco a história de sempre)
nas, para ter muitas indicações de pessoas, lugares, em particularidades que roubam o lugar da totali-
gestos onde se vive intensamente o real, de modo a dade, porque não se vive sem significado. Se eu não
estar em caminho rumo ao destino. consigo encontrar o significado feito próximo, feito
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Notas da apresentação de O senso religioso
carne, vou traduzi-lo de acordo com minha própria corretamente todos os desafios de que falamos antes,
imagem ou definição. O único que não deixa o cír- os enormes e os cotidianos, e que Francisco chama de
culo do senso religioso fechar-se é Cristo. “Remoto “mudança de época”. Nesse sentido, na minha opinião,
Christo”, como dizia a antiga teologia; sem Cristo, este livro é um recurso de valor educativo, cultural e
a tentação de fechar o problema numa imagem ou missionário excepcional a ser proposto a todos, por-
definição é muito forte. que realmente nos convém.
Elisei. Gostaria de concluir apenas lembrando que Elisei. Vamos chamar Davide Prosperi para as
esta foi a apresentação do livro, mas também é uma conclusões. Agradecemos a todos pela atenção.
proposta de um trabalho sobre O senso religioso,
como possibilidade de aprofundamento para todos. Prosperi. Gostaria de concluir este encontro dan-
do continuidade ao que Javier Prades acabou de
Prades. Muito bonito. Davide mencionou isso e dizer. Não é apenas (certamente o é, mas não ape-
você também lembrou; vou repetir rapidamente. No nas) a apresentação de um livro, a de hoje à noite,
prefácio, o arcebispo Bergoglio diz que este livro “é mas a proposta do início de um trabalho, que nós
um livro para todos”. É um livro para todos! de Comunhão e Libertação costumamos chamar
Por si só, é uma obra-prima, mas, na minha opi- de “Escola de Comunidade”. A Escola de Comuni-
nião, não é suficiente, porque não nasceu assim! dade é um gesto semanal ou quinzenal, geralmente
Justamente por como nasceu, a coisa mais fascinan- conduzido por um dos responsáveis locais do Mo-
te deste livro é que ele representa uma dimensão de vimento, que pretende aprofundar os conteúdos
um caminho educativo integral, para um aprofunda- propostos por meio do confronto estreito entre
mento da experiência cristã e humana integral que o texto de Dom Giussani e a própria experiência,
cada um encontrou e graças à qual chegou também como ouvimos. Tem uma forma dialogada e, como
ao livro. Não é um “faça você mesmo”, não é um ma- já dissemos no início, está aberto a todos. Não são
nual de autoajuda (não sei como dizer), não é isso! É necessárias condições prévias de pertencimento,
a expressão de uma proposta educativa que faz parte crença religiosa ou competências culturais: basta ter
de um percurso, de um caminho que não pode des- abertura para ouvir, interesse e comprometimento
pertar interesse se não te alcançar através de alguma com a própria humanidade. Na verdade, esse gesto
realidade que desperte em você o maravilhamento e nasceu da paixão educativa de Dom Giussani, que,
te ponha em movimento. Por isso, e dessa maneira, o como ouvimos, dedicou toda a sua vida à educação,
livro ganha todo o seu peso. formando jovens e adultos, para um olhar livre e
O Papa Francisco nos disse em outubro passado sério sobre si mesmos e sobre a realidade.
que “a Igreja, e eu mesmo, espera mais, muito mais” Permitam-me ler alguns trechos de diferentes
(“Arda no vosso coração esta santa inquietude pro- textos nos quais Dom Giussani mesmo introduz o
fética e missionária”, Passos, n. 252, nov. 2022, p. 28). significado e o propósito da Escola de Comunida-
Humildemente, acredito que uma das coisas abso- de. “A Escola de Comunidade é, antes de tudo, um
lutamente mais bonitas do caminho educativa que trabalho. É o trabalho que constrói, é o fenômeno
compartilhamos e ao qual podemos convidar todos é humano pelo qual, plasmando a realidade criada, a
justamente essa experiência integral, esse fazer parte realidade que nos cerca, algo se ergue de forma or-
de um lugar vivo que olha para o humano dessa ma- gânica, acolhedora, útil, pacífica, humana. […] Mas
neira. Esta vida, esta realidade, permite-nos enfrentar me perguntei agora: por que a Escola de Comunida-
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O SENSO RELIGIOSO: O FATO MAIS IMPONENTE DA HISTÓRIA HUMANA
de? Por que criamos a Escola de Comunidade tan- so religioso é o primeiro passo, assumiu em Dom
tos anos atrás? A vida tem um propósito, e o fato de Giussani – com um jogo de palavras – a definição
termos tantos problemas urgentes em nossos dias é de “PerCurso”: um curso que oferece, justamente, a
justamente a confirmação de que a vida tem um pro- possibilidade de percorrer um caminho. Em várias
pósito, pois se não tivesse um propósito não haveria ocasiões, o próprio Dom Giussani fez referência ao
problemas. Isto é o que quisemos estabelecer com a valor desta Escola de Comunidade sobre O senso
Escola de Comunidade: que não haja problema hu- religioso: “Eu havia dito, antes de começarmos a
mano sentido em nossa vida para o qual não haja Escola de Comunidade sobre O senso religioso, que
resposta, resposta adequada; a resposta adequada a eu me permitia desejar que uma coisa acontecesse
um problema são as razões constitutivas desse pro- no final do trabalho: que tivéssemos percebido pelo
blema. Isso dá à vida curiosidade e gosto. Resolver menos um pouco que tudo e tudo de nós depen-
um problema da vida, da própria vida, dá curiosida- de de algo maior do que nós; maior não no sentido
de e gosto. Mas essa foi a descoberta das primeiras de mais volumoso em relação à nossa imaginação,
aulas de religião que dei; tive de perceber que a fé mas ainda da mesma natureza daquilo que conse-
tem mais razões do que a inteligência humana como guimos imaginar, e sim no sentido de outro, ‘com-
tal é capaz de encontrar. A fé é mais capaz de respon- pletamente outro’, como uma vez lembrou o Papa
der aos problemas humanos do que a própria razão, citando um grande teólogo protestante; nossa razão
em sua capacidade. É por isso que amamos essa fé, não alcança: nada pode ser comparado a Deus, nós
porque ela se mostrou diante de nossos olhos como somos nada diante de Ti. Ora, este Mistério – é o
uma grandeza mais fascinante do que a grandeza segundo passo: o primeiro é que o Deus de quem
de nosso pensamento como seres humanos e mais Cristo nos falou, que Cristo nos revelou, porque
acolhedora do que pode ser acolhedor um coração ninguém jamais O viu, exceto Aquele que desceu
generoso humano” (In cammino. 1992-1998, Milão: do céu, é Mistério – é um Mistério que entra na his-
Bur, 2014, pp. 240-241). tória: o Deus é um Deus histórico. Isso é insuportá-
Por que, então, fazer Escola de Comunidade so- vel para a cultura humana de todos os tempos. Até
bre o livro que apresentamos esta noite? O senso re- a ideia, a intuição de que a realidade depende de
ligioso é o primeiro de uma trilogia de textos com algo além, muitos chegaram, até mesmo Voltaire,
os quais Dom Giussani completou o percurso de mesmo os homens mais hostis à Igreja e ao cristia-
catequese para as pessoas que o encontravam ou à nismo. Mas que este Mistério tenha tido a ver com
experiência de fé nascida do encontro com ele. a história, que Deus tenha se tornado um Deus his-
Os outros dois textos são intitulados Na origem tórico, isso não é facilmente suportável, porque não
da pretensão cristã e Por que a Igreja, e tratam, res- é concebível. Precisamente porque o Mistério não
pectivamente, da experiência do encontro com a é concebível por nós, muito menos podemos con-
figura de Cristo, histórica e existencialmente, e de ceber como o Mistério pode estar com e dentro da
como esse fato perdura na história através da com- miséria do tempo e do espaço, aquela miséria que
panhia humana da Igreja. A trilogia, da qual O sen- sentimos sobre nós e que nos leva da manhã incer-
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Notas da apresentação de O senso religioso
ta à noite cansada, que nos faz atravessar a maioria Hoje vemos claramente que os ritmos da vida, na
dos momentos de forma distraída e banal, que nos sucessão frenética dos dias, frequentemente nos le-
leva a envolver-nos em atitudes normalmente tão vam a agir de forma reativa, numa busca por resul-
mesquinhas. Deus entra nessas coisas, o mistério tados que correspondam prontamente a estímulos
entrou na história, é um Deus histórico” (La verità externos à nossa pessoa. No entanto, é justamente
nasce dalla carne, Milão: Bur, 2019, pp. 190-191). por isso que sentimos cada vez mais a necessidade
Em outra ocasião, ele disse: “O homem de hoje, de ter momentos para nós mesmos, a fim de parar-
que tem essa pretensão, nunca imaginou uma escra- mos para olhar com paixão a consistência do nos-
vidão, até mental e no coração, como a atual, muito so “eu” – como ouvimos esta noite –, pois sem isso
mais terrível quanto mais ele pretende fazer-se por si toda essa agitação nos levaria a uma progressiva falta
mesmo, quanto mais esquece sua total e original de- de sentido na vida. Acredito que iniciar um traba-
pendência: ‘Eu te amei com um amor eterno, te atraí lho como este seja uma oportunidade para colocar o
para o ser, te trouxe até mim, tendo piedade do teu nosso verdadeiro “eu” no centro do nosso interesse e
nada’. Uma frase que corresponde àquela que Cris- recuperar continuamente um relacionamento verda-
to disse antes de ir morrer: ‘Sem mim, nada podeis deiramente livre com a realidade: trabalho, família,
fazer’. É necessário ter essa consciência e esse senti- filhos, amores, paixões, doenças e solidão, alegrias e
mento, que são dados pela coisa mais desconcertan- dores. Tudo pode ter um significado para quem não
temente evidente: nós poderíamos não existir; não se conforma com viver renunciando a buscar um
estamos aqui porque tivemos direito a isso, porque sentido para a existência.
tivemos a força ou a capacidade de nos dar a vida. Concluo com uma breve citação de Giussani: “Meu
Portanto, o sentimento de nossa criaturalidade deve desejo, portanto, é que vocês possam experimentar
dominar, do fato de termos sido escolhidos para vi- que todo problema pode ser abordado com razões que
ver, escolhidos para ser: não havia razão alguma para pré-sentem ou indicam a solução, e que a fé corrige e
eu existir e não outros, infinitamente outros. A Bíblia conclui todas essas indicações. É como quando você
surge, nasce, desenvolve-se inteiramente neste senti- se levanta ao amanhecer, quando ainda há um crepús-
mento profundo, nesta verdade última e primordial, culo e não se vê nada claramente, exceto as últimas
nesta verdade que penetra por todos os poros da pele estrelas; você distingue a forma das coisas, das casas,
e todos os cabelos da cabeça, ‘pois até os cabelos da das árvores, das colinas. Em certo momento, ocorre
vossa cabeça estão todos contados’, e você não pode um fenômeno que parece normal e é estranho. Não
aumentar nem mesmo um milímetro – querendo – deriva do crepúsculo, mas depois você percebe que o
da sua estatura. A Bíblia parte da consciência e do crepúsculo vem dele: é o fenômeno do sol nascendo.
sentimento primordial, profundo e último dessa de- Então as casas, as árvores e as colinas se definem de
pendência total” (Ibidem, pp. 104-105). Aqui está o acordo com sua verdadeira natureza, sua verdadeira
conteúdo fundamental da Escola de Comunidade forma, e tudo se harmoniza numa tranquilidade na
sobre O senso religioso. qual o ser humano se sente seguro, começa a agir com
confiança. Desejo que a Escola de Comunidade seja
para vocês esse sol que surge da confusão crepuscu-
lar das intuições naturais, da inteligência natural” (L.
É uma oportunidade Giussani, In cammino. 1992-1998, op. cit., p. 241).
para colocar o nosso Por isso, convidamos todos vocês a fazerem junto
verdadeiro “eu” no centro conosco esse trabalho, sem a pretensão de mudar o
mundo, mas com a esperança de começar a nos mu-
do nosso interesse dar. Operacionalmente, vocês podem obter informa-
e recuperar um ções sobre os locais e horários das várias Escolas de
Comunidade com as pessoas que os convidaram esta
relacionamento noite, ou escrevendo para o seguinte endereço de
verdadeiramente e-mail da secretaria de CL: info@clonline.org.
Obrigado de novo a todos, especialmente a Pe.
livre com a realidade Prades e a Irene Elisei. E boa noite.
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Notas da apresentação de O senso religioso
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