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Aula 05 - A Extensão da Expiação de Cristo

Leandro Lima

Objetivo: Entender o aspecto objetivo e eficaz da expiação de Cristo para estabelecer por
quem, objetivamente, ele morreu.

Introdução

Conta-se que há mais de cem anos atrás, um americano foi condenado à morte, mas
recebeu o perdão do governador 1. O homem, entretanto, se negou a aceitar o perdão e
apelou para a corte suprema para garantir o seu direito de morrer. A atitude daquele homem
pode ter sido uma loucura, mas ele de fato tinha o direito de morrer. Ele era o único
culpado por um crime que precisava de reparação. Ele tinha o direito de morrer porque o
perdão do governador não era um ato de dar vida, mas simplesmente um ato de garantir que
não houvesse morte. Porém, em última instância, a escolha era pessoal.
Todos os cristãos ortodoxos crêem que Cristo morreu para redimir as pessoas, mas
nem todos concordam sobre por quais pessoas ele morreu. Arminianos, luteranos e
calvinistas concordam, por exemplo, que a satisfação de Cristo é suficiente para salvar
todos os homens. Também concordam que os benefícios da salvação não são aplicados a
todos os homens, mas apenas sobre os que crêem. Concordam ainda que a oferta do
Evangelho deve ser feita a todos os homens com a real intenção de que se convertam. Por
fim concordam que todos os homens, mesmo os incrédulos, recebem algum benefício da
morte de Cristo. O grande fato divergente é: A morte expiatória de Cristo foi realizada com
a intenção de salvar somente os eleitos ou todas as pessoas sem excessão? Cristo morreu
pelos pecados, mas isto foi apenas num sentido de “provisão” ou foi algo realmente
“eficaz”?
Os arminianos crêem que Cristo não morreu por qualquer pessoa em especial, mas,
por todo o mundo. Assim, ele apenas tornou possível a salvação a todos, mas depende
exclusivamente de cada um fazer uso, ou não, do poder redentor que Cristo conquistou.
Nesse sentido a morte de Cristo teria apenas potencialmente o caráter salvífico, e não
objetivamente. Isso equivale a dizer que a morte de Cristo pode salvar a todos ou a
ninguém, pois depende da resposta de fé que cada pessoa dá. Ela só se torna efetiva quando
alguém a “aceita” demonstrando arrependimento e fé, e então passa a usufruir dos
benefícios salvíficos da morte do Redentor.

A tradição reformada

A partir do desenvolvimento da doutrina da expiação na tradição reformada, que


tem a ver com a obra da redenção realizada por Cristo na cruz, a pergunta “por quem Cristo
morreu?” começou a ter grande importância 2. Devido ao entendimento de que o sacrifício

1
Nos Estados americanos onde a pena de morte existe, somente o governador pode, numa ligação
final, impedir a execução do condenado.
2
No século XVII, a teologia escolástica protestante produziu extensas obras sobre a expiação. Uma
das obras mais conhecidas foi a do puritano John Owen, que tratou extensivamente sobre a questão
da expiação limitada.Ver: John Owen. Por Quem Cristo Morreu? (Publicações Evangélicas
de Cristo não apenas possibilita, mas realmente expia, ou seja, perdoa os pecados, a
teologia reformada sustenta que Cristo morreu exclusivamente pelos pecados de seu povo.
Os teólogos reformados começaram a pensar que a morte de Cristo não poderia de fato se
estender a todos os homens sem exceção. O que a morte de Cristo poderia fazer por um
Judas Iscariotes? Qual teria sido o benefício de Cristo derramar seu sangue por alguém que
já estava no Inferno quando ele morreu? Como diz Louis Berkhof, “a posição reformada é
que Cristo morreu com o propósito de real e seguramente salvar os eleitos, e somente os
eleitos. Isto equivale a dizer que ele morreu com o propósito de salvar somente aqueles a
quem ele de fato aplica os benefícios da Sua obra redentora” 3. Segundo essa interpretação,
Cristo não poderia ter morrido pelos pecados do mundo inteiro, pois, se tivesse feito isso,
teria necessariamente salvo todas as pessoas do mundo inteiro.
A doutrina da expiação Limitada ou Definida 4 é construída sobre a doutrina da
eleição ou predestinação. A doutrina da predestinação diz que Deus, desde toda a
eternidade, tem escolhido para si um número certo e limitado de pessoas, as quais serão
salvas, enquanto que tem preterido o restante que deverá pagar por seus próprios pecados.
O eminente teólogo reformado Charles Hodge diz:
Deus, em sua infinita misericórdia, havendo determinado salvar uma multidão
que ninguém poderia enumerar, deu-a a seu Filho como herança, providenciou
para que ele assumisse a natureza deles e em seu lugar cumprisse toda justiça.
No cumprimento deste plano, Cristo veio ao mundo e obedeceu e sofreu no lugar
daqueles que lhe foram dados e para a salvação deles. Este foi o objetivo
concreto de sua missão, e por isso sua morte teve uma referência a esses que não
pôde ser feita àqueles que Deus decidiu entregar à justa recompensa por seus
pecados (...) Segue-se, pois, da natureza do pacto da redenção, tal como se
apresenta na Bíblia que Cristo não morreu igualmente por toda a raça humana,
senão que se deu a si mesmo por seu povo e pela redenção deles. 5
Essas palavras de Hodge refletem consistentemente o ensino da Confissão de Fé de
Westminster que também identifica a eficácia da morte de Cristo com os eleitos de Deus:
O Senhor Jesus, pela sua perfeita obediência e pelo sacrifício de si mesmo,
sacrifício que, pelo Eterno Espírito, ele ofereceu a Deus uma só vez, satisfez
plenamente à justiça de seu Pai, e, para todos aqueles que o Pai lhe deu, adquiriu
não só a reconciliação, como também uma herança perdurável no Reino dos
céus.6
A posição da Confissão de Fé de Westminster é correlata ao que havia sido
desenvolvido no Sínodo de Dort (1619) na Holanda. Naquele sínodo, formulou-se o

Selecionadas). Essa obra é uma versão simplificada e condensada do clássico “A Morte da Morte na
Morte de Cristo” (1616-1684). Ver: William H. Goold Ed. The Works of John Owen, Vol X.
Livro I.
3
Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 395.
4
Os teólogos reformados usam ambas as expressões para a doutrina. A expressão “definida” parece
melhor pelo fato de que não faz parecer a expiação de Cristo limitada em poder. A idéia é que a
expiação é definida em relação aos eleitos, mas não limitada em poder. Neste trabalho, há uma
preferência pelo termo “expiação definida”, embora não seja descartado o termo “expiação
limitada”.
5
Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 892.
6
Confissão de Fé de Westminster, VIII.V.
sistema que até hoje é conhecido como “Os Cinco Pontos do Calvinismo”. São eles:
Depravação Total, Eleição Incondicional, Expiação Definida, Graça Irresistível e
Perseverança dos Santos. Esses cinco pontos foram oficialmente reconhecidos a partir desse
sínodo, como um esforço no sentido de rebater os cinco pontos do arminianismo que são
anteriores e afirmam exatamente o oposto7. Em relação à expiação definida, os teólogos do
Sínodo de Dort fizeram questão de enfatizar seu caráter ilimitado em termos de poder: “A
morte do Filho de Deus é a oferenda e a satisfação perfeita pelos pecados, e de uma virtude
e dignidade infinitas, e totalmente suficiente como expiação dos pecados do mundo
inteiro”8. Porém, ela não se estende eficazmente aos homens de todo o mundo, conforme o
sínodo explicitou:
Porque este foi o conselho absolutamente livre, a vontade misericordiosa e o
propósito de Deus Pai: que a virtude vivificadora e salvadora da preciosa morte
de seu Filho se estendesse a todos os predestinados, para, unicamente a eles,
dotar da fé justificadora, e por isso mesmo levá-los infalivelmente à salvação; ou
seja: Deus quis que Cristo, pelo sangue de sua cruz (com a qual firmou o Novo
Pacto), salvasse eficazmente, de entre todos os povos, tribos, linhagens e
línguas, a todos aqueles, e unicamente a aqueles, que desde a eternidade foram
escolhidos para salvação, e que lhe foram dados pelo Pai”9.
Portanto, o calvinista insiste que a expiação é limitada não em poder, mas no seu
objetivo. A questão aqui não é o poder da expiação, mas o objetivo dela. Para o calvinista o
poder da expiação de Cristo é ilimitado, mas o objetivo não é. Ela é uma expiação definida,
ou seja, feita com o propósito específico de salvar os eleitos. A seguir veremos se a
expiação definida pode ser comprovada pela Bíblia.

O Ensino de Jesus

Incialmente devemos perceber que Jesus fala em morrer pelas suas ovelhas. Ele
disse: “Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida pelas ovelhas” (Jo 10.11). Nesse texto,
ele está falando do amor do pastor em contraste com os interesses do mercenário. O pastor

7
Os cinco pontos do arminianismo são: depravação parcial, eleição condicional, expiação ilimitada,
graça resistível e possibilidade de perda da salvação.
8
Os Cânones de Dort, II.III.
9
Os Cânones de Dort, II.VIII. Esta linha de argumentação é considerada calvinista. O nome
“calvinista” vem do reformador João Calvino (1509-1564) que foi o grande sistematizador da
Reforma Protestante. Ele produziu uma vasta obra teológica através de comentários da Sagrada
Escritura, tratados teológicos, sermões e cartas. Sua obra magna, as Institutas, é geralmente
considerada a maior obra teológica da Reforma Protestante, e uma das mais importantes da história.
João Calvino, apesar de possivelmente ter baseado boa parte de sua teologia do célebre Agostinho,
é considerado o Pai da Teologia Reformada, e todo o sistema reformado depende essencialmente
dos ensinos do reformador de Genebra. Porém, a questão que se tem levantado nos últimos tempos
é se Calvino concordaria com todos os cinco pontos do calvinismo. Especialmente o que fala da
expiação Limitada. Em minha Dissertação de Mestrado, procuro demonstrar que a doutrina da
expiação limitada tem sua base em Calvino (Ver Leandro Antonio Lima. Uma Apologia da
expiação Definida em Calvino. São Paulo: Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew
Jumper, 2002). Para um artigo com essa exposição resumida ver: Leandro Antonio de Lima.
Calvino Ensinou a expiação Limitada? São Paulo: Revista Fides Reformata, Vol 9, n.1, 2004, p. 77-
99.
dá a vida pelas ovelhas, enquanto o mercenário, na hora do perigo, foge. Jesus está
afirmando que ele, como bom pastor, iria dar a vida pelas ovelhas. Dessas ovelhas ele disse:
“Conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem a mim” (Jo 10.14). Em seguida ele disse:
“Ainda tenho outras ovelhas, não deste aprisco; a mim me convém conduzi-las; elas
ouvirão a minha voz; então, haverá um rebanho e um pastor” (Jo 10.16). Mas certamente
essas ovelhas não eram todas as pessoas do mundo sem exceção. Mais à frente ele disse
para um grupo de incrédulos: “Vós não credes, porque não sois das minhas ovelhas. As
minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem” (Jo 10.26-27). A
conclusão óbvia que podemos chegar dessa afirmação de Jesus é que, se aquelas pessoas
não eram suas ovelhas, portanto, ele não morreria por elas, pois disse que morreria pelas
suas ovelhas. Então, significa que Jesus não morreu por todas as pessoas, mas apenas por
suas ovelhas. Essa afirmação de Jesus limita o alcance da expiação. Ele morreu pelo seu
povo, pelas suas ovelhas.
Em outras passagens, Jesus deixou claro que morreria não por todos, mas por
muitos: “O Filho do Homem, não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em
resgate por muitos” (Mt 20.28). Embora seu sacrifício tenha poder para salvar a todos, ele
mesmo disse que objetivamente daria sua vida em resgate por muitos 10. A mesma
linguagem pode ser encontrada em Hebreus 9.28: “Também Cristo, tendo se oferecido uma
vez para sempre para tirar os pecados de muitos, aparecerá segunda vez, sem pecado, aos
que o aguardam para a salvação”. Segundo esse texto, Cristo se ofereceu objetivamente
para “tirar” os pecados de muitos, e é para esses que ele aparecerá segunda vez. É lógico
que ele não poderia tirar os pecados de todos, senão todos seriam salvos.
Jesus intercedeu apenas por aqueles que considerava seus discípulos. O capítulo 17
de João transcreve a oração que Jesus fez pouco antes de morrer. Nessa oração ele faz
questão de orar por seus discípulos: “Manifestei o teu nome aos homens que me deste do
mundo. Eram teus, tu mos confiaste, e eles têm guardado a tua palavra” (Jo 17.6). Em
seguida Jesus faz questão de delimitar o escopo de sua oração: “É por eles que eu rogo; não
rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus” (Jo 17.9). Ele estava
orando por seus discípulos apenas. Uma pergunta permanece: Por que não oraria pelas
outras pessoas do mundo, se tivesse dado sua vida em resgate delas também? O texto
claramente diz que ele orou apenas pelos crentes: “Não rogo somente por estes, mas
também por aqueles que vierem a crer em mim, por intermédio da sua palavra” (Jo 17.20).
Jesus orou naquele dia em Jerusalém somente por seus discípulos e pelos que ainda viriam
a crer nele e se tornariam seus discípulos. Não orou pelo mundo incrédulo. Sua obra de
intercessão depende de sua obra de expiação, pois é só através de sua morte que pode
conceder benefícios aos homens. Se ele não orou pelas demais pessoas do mundo é porque
não morreria por elas. Se Jesus tinha em mente dar sua vida por todas as pessoas do mundo,
então não haveria razão em orar apenas pelos que já eram ou seriam seus discípulos. Ele
deveria orar para que os demais se tornassem discípulos, mas não foi isso o que ele fez.

10
Quanto a aparente contradição entre o “muitos” de Jesus e o “poucos” que entram pela porta
estreita (Mt 7.13-14), é preciso que se entenda que a soma dos salvos em todos os tempos pela
morte de Jesus forma um “muitos”, mas o número de salvos em cada época, certamente forma o
grupo dos “poucos”, especialmente em comparação com o número de não-salvos.
Objeções à Expiação Limitada

Existem algumas passagens bíblicas que geralmente são apontadas para mostrar que
Cristo morreu por todos os homens. A mais famosa delas é João 3.16: “Porque Deus amou
ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não
pereça, mas tenha a vida eterna” (Ver Jo 1.29; 6.33, 51; Rm 11.12; 2Co 5.19; 1Jo 2.2). Este
texto de fato diz que Deus amou o “mundo” e por causa disso enviou seu filho. Mas o
próprio texto faz uma restrição em relação à salvação: serão salvos apenas os que crêem.
Será que nesse texto, e noutros, a expressão “mundo” se refere a cada pessoa sem exceção?
Se conseguíssemos provar que tenha existido pelo menos uma pessoa que Deus não tenha
amado, então, não teríamos razão para crer que “mundo” em João 3.16, ou mesmo noutras
passagens, diga respeito a cada pessoa sem exceção. O fato é que encontramos tal pessoa:
Esaú. Dele, em contraste com seu irmão Jacó, a Bíblia diz: “Amei Jacó, porém me aborreci
de Esaú” (Rm 9.13). Deus está fazendo uma comparação entre Jacó, pai da nação de Israel
e Esaú pai da nação de Edom. Ele amou Jacó, mas não amou Esaú. Isso é suficiente para
dizermos que quando a Bíblia diz que Deus amou o mundo, não está se referindo a cada
pessoa sem exceção. Ele está falando do mundo como a criação, por quem ele mandou seu
Filho a fim de criar um novo mundo, mas nem todas as pessoas desse mundo serão
renovadas. Quando o Novo Testamento fala do mundo, a quem se oferece a redenção, está
fazendo uma comparação entre o exclusivismo nacional do Antigo Testamento, e a abertura
para todos os povos do Novo Testamento. Nesse sentido devemos entender o amor de Deus
e a morte de Jesus como sendo pelo mundo inteiro. Não significa cada pessoa do mundo
sem exceção, mas o mundo visto de uma perspectiva global. Cristo é o Salvador do Mundo
no sentido de que é o Salvador de toda a Criação. Neste sentido ele carrega o pecado do
mundo, pois no fim, todo o pecado será removido da criação. Cristo por sua morte
assegurou a purificação, não somente de pessoas, mas da criação inteira. Cristo assegurou
por sua morte a redenção de indivíduos (novas criaturas) tanto quanto a redenção da criação
(novos céus e nova terra). O mundo caído em Adão será restaurado em Cristo (Rm 8.19,
21-23).
Existem outras passagens que dizem que Cristo morreu por todos os homens, por
exemplo, Romanos 5.18: “Pois assim como, por uma só ofensa, veio o juízo sobre todos os
homens para condenação, assim também, por um só ato de justiça, veio a graça sobre todos
os homens para a justificação que dá vida”. O mesmo pode ser dito de 1Coríntios 15.22:
“Porque, assim como, em Adão, todos morrem, assim também todos serão vivificados em
Cristo”. E também 2Coríntios 5.14 “Pois o amor de Cristo nos constrange, julgando nós
isto: um morreu por todos; logo, todos morreram”. E ainda 1Timóteo 2.6 “O qual a si
mesmo se deu em resgate por todos: testemunho que se deve prestar em tempos oportunos”.
E ainda Tito 2.11 “Porquanto a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens”.
O mesmo se vê em Hebreus 2.9 “Vemos, todavia, aquele que, por um pouco, tendo sido
feito menor que os anjos, Jesus, por causa do sofrimento da morte, foi coroado de glória e
de honra, para que, pela graça de Deus, provasse a morte por todo homem”. O que se pode
dizer de todas essas passagens é que é evidente que não podemos interpretar a expressão
“todos os homens” como se referindo a todos os homens sem nenhuma exceção. Se
fizéssemos isso estaríamos efetivamente dizendo que todos os homens serão factualmente
salvos. Por causa disso, necessariamente a expressão “todos” desses textos se refere a todos
os salvos. Em Romanos 5.18 e 1Coríntios 15.22 a expressão “todos” inclui somente os que
estão em Cristo em contraste com os que estão em Adão. Nos textos de 2Coríntios 5.14 e
Hebreus 2.9 o mesmo deve ser dito, caso contrário todos os homens acabarão sendo salvos.
A passagem de Tito 2.11 refere-se a todas as classes de homens, mas não a cada homem
sem exceção, senão todos serão salvos por Deus. E por fim 1Timóteo 2.6 fala sobre a
inclusão tanto de judeus quanto de gentios na salvação. É evidente, portanto, que essas
passagens não falam de todos os homens sem exceção, caso contrário, todos os homens
teriam que ser salvos, pois a expiação de Cristo nesses textos é descrita como um ato real
de conceder a vida.
O texto que parece afirmar de forma mais clara que a morte de Cristo foi pelo
mundo inteiro é 1João 2.2: “E ele é a propiciação pelos nossos pecados e não somente pelos
nossos próprios, mas ainda pelos do mundo inteiro”. O argumento em favor da expiação
definida entende a expressão “mundo” nesse texto como uma descrição generalizada,
querendo apontar para um grupo especial, o grupo dos salvos do mundo inteiro. Não
significa cada pessoa do mundo sem exceção, pois caso contrário, essa propiciação
evidentemente salvaria todas as pessoas. É preciso lembrar que propiciação significa
“apaziguar a ira de Deus”. Se Jesus apaziguou a ira de Deus para cada pessoa do mundo,
então, Deus não estaria mais irado com ninguém, e todos poderiam ir para o céu. Devemos
entender a expressão “mundo inteiro” como algo que visa fazer um comparativo com o
“filhinhos” do verso 1: “Filhinhos meus, estas coisas vos escrevo para que não pequeis. Se,
todavia, alguém pecar, temos Advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o Justo” (1Jo 2.1). Os
“filhinhos” de João eram aqueles para quem ele escrevia a carta. Jesus era o Advogado
desses filhinhos, pois fez propiciação por eles, e não somente por eles, mas pelos pecados
do mundo inteiro, ou seja, pelos pecados dos crentes do mundo inteiro (os outros filhinhos).
João liga a propiciação de Jesus com sua obra como Advogado diante de Deus. Jesus não
pode ser o advogado de todos os homens, senão todos os homens terão todos os seus
pecados perdoados.
Outro argumento bastante usado contra a expiação definida é que se Cristo morreu
apenas por um número limitado de pessoas, isso tornaria impossível o oferecimento livre do
Evangelho. O questionamento parece lógico: Se Cristo não morreu por todos, então, por
que o Evangelho é oferecido a todos? Além do mais, há passagens que claramente indicam
que Deus deseja que todos sejam salvos, por exemplo, Ezequiel 33.11: “Tão certo como eu
vivo, diz o SENHOR Deus, não tenho prazer na morte do perverso, mas em que o perverso
se converta do seu caminho e viva. Convertei-vos, convertei-vos dos vossos maus
caminhos; pois por que haveis de morrer, ó casa de Israel?” Também 1Timóteo 2.4 fala
algo semelhante: “O qual deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno
conhecimento da verdade”. E ainda 2Pedro 3.9: “Não retarda o Senhor a sua promessa,
como alguns a julgam demorada; pelo contrário, ele é longânimo para convosco, não
querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento”. Como
encaixar a noção da expiação definida com esses textos e com a livre oferta do Evangelho?
Quanto ao questionamento sobre a impossibilidade de pregar o Evangelho de forma sincera
a todos, uma vez que Cristo não morreu por todos, podemos dizer o seguinte: Nós não
sabemos por quem Cristo morreu! Sabemos que ele morreu pelos eleitos, mas quem são os
eleitos? Precisamos oferecer a salvação igualmente a todos, e quem crer será salvo. Não
temos o direito de excluir ninguém, porque não sabemos quem será salvo ou quem será
condenado. Qualquer atitude preconceituosa de nossa parte será pecaminosa. Quanto aos
textos bíblicos que dizem que Deus deseja que todos sejam salvos, o que podemos dizer é
que isso é a mais pura verdade. Não podemos fugir as evidências bíblicas, nem torcer textos
para que se encaixem na nossa teologia. Mas isso não quer dizer que esses textos não se
encaixem. Precisamos entender que Deus, como criador de todos, não tem prazer em ver
suas criaturas perecendo, antes seu prazer é vê-las se convertendo e sendo salvas. A questão
que precisa ser feita é: Então quer dizer que ele salvará a todas? A resposta é: Não. A
segunda questão é: Por acaso ele não tem poder para salvar a todas? A resposta agora é:
Sim. Poderíamos perguntar então: Se ele deseja que todas sejam salvas e tem poder para
salvar a todas, então, por que não salva a todas? Só há uma resposta: Porque, num sentido,
não quer salvar a todas. Então, ele quer, e, ao mesmo tempo, não quer salvar todas as
pessoas? Como entender isso? Aqui precisamos relembrar a diferença entre a vontade de
desejo e a vontade decretiva de Deus. O primeiro aspecto tem a ver com os desejos íntimos
de Deus. Assim como ele estabeleceu uma lei e é sua vontade que todos obedeçam, mas ele
não obrigará ninguém a fazer isso, do mesmo modo é desejo seu que todos sejam salvos,
mas ele não agirá para que todos sejam de fato salvos. Porém, quando falamos em vontade
decretiva, estamos nos referindo àquela sua vontade que acontece inevitavelmente (Ver Rm
9.19; Is 46.9-11; Dn 4.35). Diz respeito a seus decretos para esse mundo, os quais
invariavelmente acontecerão, pois se não acontecerem, Deus perderá o controle do
Universo. O desejo que todos os homens sejam salvos faz parte de sua vontade de desejo,
mas não faz parte de sua vontade decretiva. Ou seja, Deus deseja que todos sejam salvos,
mas não decretou que todos serão salvos. Portanto, o fato de Deus desejar que todos sejam
salvos não obriga Jesus a morrer por todos os homens, até porque, nem todos serão salvos.

Limitada em alcance ou em poder

Apesar de muitos ficarem surpresos com essa declaração, a verdade é que todo
cristão ortodoxo terá que por limites à obra salvífica de Cristo. Pois se alguém crê que
Cristo morreu por todas as pessoas deste mundo, entretanto, nem todas as pessoas deste
mundo serão realmente salvas, então, a obra de Cristo é limitada em seu poder, pois ela não
salva efetivamente ninguém. Entretanto, se alguém crê que a obra de Cristo, embora
poderosa o suficiente para salvar toda e cada pessoa, foi feita apenas em favor do povo
escolhido, a igreja, então, esta expiação é limitada em seu escopo ou em seu propósito, mas
não em poder. Se Cristo morreu por pessoas que estão no Inferno, então seus esforços não
podem realmente ser chamados de obra salvífica. Muitos afirmam que Cristo ao morrer não
salvou ninguém realmente, ele apenas tornou os homens salváveis, entretanto, se isso é
assim, então não há real “poder no sangue”. Ao contrário, parece que o poder está na
vontade da criatura, como se a criatura conferisse poder ao sangue de Cristo.
Se Cristo de fato tivesse morrido por todos os homens sem exceção, então em
muitos casos, ele teria sido impotente, porque apesar de ter dado a vida por alguma pessoa,
talvez aquela pessoa acabasse no Inferno. Com relação a isso, ainda poderíamos perguntar:
Quando Cristo morreu, pessoas já estavam no Inferno? Sim, todas as pessoas que morreram
sem salvação antes de sua vinda. A questão é: Ele morreu por elas também? Parece ilógico
dizer que sim, pois seria um desperdício de um sangue tão precioso. Teria Cristo morrido
por Judas Iscariotes? A Bíblia chama Judas de “o filho da perdição” (Jo 17.12), e diz que
tudo o que aconteceu através dele aconteceu segundo o que as próprias Escrituras haviam
profetizado (Mt 26.24). De acordo com a Escritura, Judas não tinha chances de ser salvo,
então, por que Jesus morreria por ele?
A Escritura fala da obra de Cristo em termos definitivos em favor do salvo. Se ele
morreu por todos os homens, então todos os homens precisariam de fato ser salvos. Só há
duas opções, ou a redenção é limitada em seu alcance ou é limitada em seu poder. É
preferível pensar que ela seja limitada no alcance, ou seja, que não foi posta para alcançar
todos os homens. Ela não é limitada em poder, pois pode salvar completamente todos
aqueles por quem foi destinada. Se dissermos que Cristo morreu por todos os homens,
então limitamos a expiação em seu poder, pois nesse caso, ela não consegue salvar todos os
homens. A Escritura, entretanto, deixa bem calro o poder e a eficácia da obra de Cristo.
Nesse ponto, é importante rever alguns termos bíblicos que descrevem a expiação de
Cristo, como redenção, propiciação, reconciliação e substituição, os quais descrevem o que
realmente Cristo fez ao morrer na cruz 11.

Redenção
É provavelmente o principal termo bíblico para descrever a expiação. Significa
“comprar de volta”, ou “retornar a possessão de alguém mediante o pagamento de um
preço”. A morte de Cristo foi o resgate dos salvos, não um resgate pago à Satanás, mas um
resgate exigido pela lei de Deus e oferecido ao próprio Deus. Agora imagine: Uma pessoa
foi seqüestrada e feita refém pelo pecado, mas, agora é crente, então, Cristo pagou o resgate
para libertá-la, a fim de que se tornasse possessão dele. Que tipo de redenção seria esta se a
maioria dos cativos permanecesse no cativeiro e nunca fosse libertada? Em Isaías 53.10-11
é dito que Cristo veria o fruto de seu penoso trabalho e ficaria satisfeito. Mas, como ele
poderia estar satisfeito se visse que a maior parte das pessoas por quem morreu, no fim das
contas, permanecerão condenadas? Isso não seria muito mais caso de desapontamento do
que de satisfação?

Propiciação
Refere-se a interromper a inimizade e a hostilidade de Deus em relação ao homem.
Quando propiciação é feita, a ira de Deus é removida. Se Cristo fez propiciação pelo
mundo, então, removeu a Ira de Deus do mundo. Mas, não é isto o que a Escritura ensina,
pois Deus continua irado com o mundo (Rm 1.18). Além disso, se Cristo não “propiciou” a
ira de Deus por mim, mais do que por Judas Iscariotes, então, como eu posso ter certeza
que Deus, no final, não irá me consumir com sua ira? Alguém diria: “Porque você crê?”.
Mas, se é só por isso, então significa que no fim das contas, nós, mais do que Cristo, é que
propiciamos a ira de Deus, e nos tornamos nossos próprios salvadores. Ou no mínimo
colaboramos para a salvação, e aí, já não poderíamos mais dizer que fomos salvos pela
graça.

Reconciliação
Define-se por apaziguar oponentes. As pessoas serão destinadas ao Inferno por toda
a eternidade porque elas estão, e sempre estarão, opostas a Deus. Mas, as pessoas que são
reconciliadas são feitas amigas, e é a morte de Cristo que efetua esta reconciliação. Mas,
então, será que Deus vai mandar seus “amigos” para o Inferno? É claro que não, pois a
reconciliação é apenas para os eleitos, os reconciliados serão efetivamente salvos (Rm
5.10).

Substituição
É o ato de alguém assumir toda a responsabilidade pela falta do outro. Suponha que

11
Estes conceitos são baseados na exposição de Michael Horton. As Doutrinas da Maravilhosa
Graça, p. 130-131.
um criminoso esteja no corredor da morte, esperando a execução. Um estranho se encontra
com o juiz, e o juiz concorda em aceitar a execução do estranho (que é em si mesmo
inocente) no lugar do verdadeiro criminoso. Aquele estranho se tornou o substituto do
criminoso. Então, suponha que, depois de executar o substituto, o juiz executa também o
criminoso. O juiz poderia ser acusado de assassinato em pelo menos uma morte. O ser
humano é o criminoso, mas Cristo morreu em seu lugar, por causa disso Deus não mais
condenará tal pessoa, pois não pode condenar o Redentor e o redimido ao mesmo tempo. Se
Cristo morreu por todas as pessoas, então, todas as pessoas terão que ser salvas.
É preciso que se entenda que as palavras acima são aplicadas objetivamente para a
morte de Cristo. Ele não apenas tornou essas coisas possíveis, ele as realizou na cruz. E se
ele realizou essas coisas por todas as pessoas do mundo, então todas podem se preparar
para passar a eternidade no céu, e o Inferno estará absolutamente vazio. Porém, esse ensino
não pode ser sustentado pela Bíblia, que fala em muitos chamados, mas poucos os
escolhidos. Os escolhidos são todos aqueles por quem Cristo morreu.

Conclusão

Para concluir, de volta à historinha do início, o prisioneiro americano tinha o direito


de morrer, porque ninguém morreu efetivamente em seu lugar. Mas um homem por quem
Cristo morreu não pode ser condenado novamente, porque Deus não pode condenar o
mesmo pecado duas vezes. Se o pecado de alguém foi condenado em Jesus, Deus não o
condenará novamente, por essa razão se Cristo tivesse morrido por todos os homens, Deus
não poderia mais condenar ninguém. Entretanto, Jesus morreu pelas suas ovelhas, e só elas
serão salvas. O perdão que Cristo concede é diferente do perdão que o governador
concedeu ao condenado. O governador apenas possibilitou a chance de salvação, mas
Cristo, ao morrer na cruz, concedeu eficazmente a salvação. Ao contrário disso ser um
problema para nós, deveria ser um motivo de gratidão e louvor, pois se Cristo tornou tão
certa a nossa salvação, então, é porque Deus não está disposto a abrir mão de nós. Além
disso, Deus nos considera individualmente. Quando Cristo orou por seus discípulos, e
quando morreu na cruz, ele sabia exatamente por quem estava morrendo. Ele via o fruto do
seu penoso trabalho, e isso o alegrava, apesar de todo o seu sofrimento.

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