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Medidas de “combate” aos Paraísos Fiscais numa economia globalizada

subordinada ao dogma liberal – um paradoxo incurável?*


Maria Leonor Machado Esteves
Professora Coordenadora na Escola Superior de Tecnologia e Gestão do IPV

Abstract
Correspondendo à ideia de criar uma “ordem global” que possibilite a regulação da economia, assiste-se à
criação de medidas “de combate” aos denominados “paraísos fiscais”, aos quais se imputa boa parte da
responsabilidade pelas crises económicas do dealbar do século. Destacam-se, no plano internacional, as
iniciativas levadas a cabo pela OCDE, pelo GAFI/FATF e pelo FMI e, no plano interno, a legislação anti-
abuso. Não obstante, encontrando-se a génese e a evolução dos “paraísos fiscais” ligada irrefragavelmente
à globalização da economia suportada no paradigma que assenta, ainda nas leis da entidade mítica
mercado, onde o capital exige liberalização máxima, inexistência de controlo e de regulação com vista à
maximização do lucro, afigura-se incuravelmente paradoxal a proclamada tentativa de proibir os
“paraísos fiscais” ou, mesmo, a decisão de controlar tal realidade que, no seu núcleo essencial, identitário,
e, na sua teleologia é, exasperadamente, contrária a regras e disciplina.

Introdução
Vem-se assistindo, desde a última década do século XX, a um requisitório, no
plano interno, como no plano internacional, contra o que se convencionou chamar
“paraísos fiscais”, designadamente, contra determinadas características, pode dizer-se,
identitárias, dessas realidades, que conduziu à tomada de medidas normativas e práticas
tendentes ao seu controlo e, muito recentemente, a consensuais Declarações
Programáticas no âmbito de conferências internacionais, de que é exemplo a Cimeira do
G201 do mês de Abril, que assentam na necessidade de combater o que se tornou numa
espécie de “flagelo” e a que se imputa, não sem fundadas razões, boa parte da
responsabilidade pelas sucessivas crises económicas do dealbar do século.
As denominadas medidas de combate aos paraísos fiscais, na sua dimensão
jurídico-normativa, inserem-se numa estratégia alargada que visa a criação de uma

*O presente artigo corresponde, no essencial, a um trabalho apresentado e avaliado no âmbito da parte


escolar do Curso de Doutoramento em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Santiago de
Compostela.
1
Declaration on Strengthening the Financial System, Londres, 2 de Abril de 2009, em particular, as
proclamações em matéria de Paraísos fiscais e jurisdições não cooperantes, p. 4 ( em Bold e
sublinhadas no documento), in, www.londonsummit.gov.uk

1
“ordem global” que possibilite a regulação da economia2, rectius da actividade
financeira, privilegiando a transparência das operações, através do reforço dos
mecanismos de controlo prudencial, da supervisão, da governabilidade e da gestão,
nomeadamente dos riscos, bem como da revisão das normas contabilísticas, e previna e
reprima factores de perversidade, como são agora considerados os espaços off-shore,
estrangeiros ao controlo, naturalmente avessos ao fornecimento de informação e à
cooperação, privilegiados para ocultar quer rendimentos que fogem aos impostos e que
aí não são tributados, quer vantagens provenientes da prática de condutas ilícitas, fraude
fiscal, corrupção, tráfico de pessoas, armas, droga, e outros, que aí são branqueados.
A sentida premência, pelos Governos dos países que representam 87% da riqueza
mundial, da criação de regras por que deve pautar-se a actividade económica, tinha sido,
aliás, já anunciada nos finais da década de 90.
Na verdade, à euforia generalizada suportada numa inteligentsia defensora das
propriedades, inesgotáveis, do novo modelo liberal aplicado à era da economia
globalizada, e de que a política do Fundo Monetário Internacional se fez eco, seguiu-se
o aturdimento próprio de um capitalismo “desregulamentado” que perdeu o norte “ um
capitalismo estupefacto, confundido … que já não sabe para onde vai …que ninguém
parece dominar, um capitalismo sem rumo, incapaz de encontrar um porto”3 perante as
castástrofes que os afamados peritos do FMI não souberam prever: falência de grupos
económicos poderosos, estrondosas fraudes nos EUA, desemprego e miséria em
determinadas regiões do mundo, designadamente, na América Latina4, a acompanhar

2
Laurent Cordonnier exprime uma opinião, partilhada, de resto, por um conjunto de economistas,
manifestamente crítica sobre as reais intenções desta “nova ordem global” que, longe de ter subjacente
uma vontade seriamente reformadora, repristina o modelo liberal através de um conjunto de medidas de
“engenharia de natureza técnico-política” que pretendem, tão só, “anular as derivas induzidas por uma
doutrina que continua intacta: a que cria os riscos em nome da liberdade de iniciativa e tenta em seguida
domesticar a besta, uma vez que ela foi ultrapassada pela sua criatura”, por outras palavras, o “espartilho
das instituições, regras, normas e cartas que se vai abater sobre a economia mundial …… define a altura
da gaiola que é necessário construir quando se quer exibir um tigre de Bengala numa escola de crianças”.
Esta ordem global deixa de fora, quiçá, intencionalmente, uma reflexão sobre o âmago da questão, o
sentido (necessidade, utilidade e importância) e o âmbito ( funções essenciais) da actividade financeira no
mundo actual., in A crise, o G20 e a “Nova Ordem Global”. Remendos no “Titanic” da finança global, in,
Le Monde diplomatique, edição portuguesa, Abril de 2009, p. 8.
3
As expressões são de François Ewald, Les Echos, 6 de Agosto de 2002, apud Serge Halimi, “Crashes em
Cadeia. Para crise do mercado, remédios de mercado, in, Le Monde diplomatique, edição portuguesa,
Setembro 2002, p. 3.
4
De acordo com a CEPAL, Comissão Económica das Nações Unidas para a América Latina, e a
Comissão Económica para a América Latina, Santiago do Chile, in, Situation et perspectives. Ètude
économique de l’Amérique latine et Caraïbes, Agosto de 2002, no ano de 2002, a dívida externa ascendia
-a 750 mil milhões de dólares, o PIB diminuía 3 a 4 por cento, as importações e a exportações diminuíam
5 e 4 por cento, respectivamente, e os investimentos directos estrangeiros caíam para menos de metade,
com referência a 1999.

2
“um círculo vicioso de dinheiro rápido” que “desafia o bom senso” “compromete o
desenvolvimento”, “fabrica bolhas especulativas”5.
Sabe-se como foi, à época, propalada a necessidade de controlo, regulamentação
da economia, em particular da actividade cambial cuja ausência constituiu o ambiente
propício para a “rápida propagação da crise”6, e do corporate governance.
Com especial incidência no “controlo interno” das empresas, surgem, nos EUA,
mecanismos jurídicos como a SOX ( Sarbanes-Oxley Act de 2002)7, aplicável a todas as
empresas com títulos cotados na Bolsa de Valores, prosseguindo o reforço da confiança
dos investidores, duramente abalada com os escândalos financeiros, onde se rodeia os
Chief Executive Officers de uma malha apertadíssima de deveres de controlo e de
certificação da informação financeira8.
Mecanismos que, malogradamente, vieram a revelar-se meros paliativos, em si
mesmos, crassamente insuficientes9 e, como se veio a verificar, incapazes de prevenir e
evitar a actual situação, considerada, a justo título, “a maior crise financeira desde
1929”10 com epicentro nos EUA, especificamente em torno da denominada crise do
“sub-prime”, um turbilhão que arrastou consigo o sistema financeiro americano apoiado
em empréstimos cujas garantias, hipotecas sobre imóveis cujos preços desceram a
pique, ficaram reduzidas a quase nada e causaram a falência de instituições financeiras
dentro e, devido à internacionalização dos mercados, também, fora dos EUA. Por detrás
desta crise, uma vez mais, se acha o vazio do controlo de uma actividade pautada
apenas pela vertigem de portentosos lucros, irresponsável, cega quanto aos riscos
inerentes a esses hipotéticos lucros, alheia a limites éticos, estranha a valores.
Não admira, pois, que fosse facilmente obtido um consenso das instâncias
internacionais, postas perante a urgência de encontrar soluções eficazes de combate à
5
L’ Express, 1 de Agosto de 2002, apud Serge Halimi, cit.
6
Assim, Celestino Olalla, “Paraísos fiscales: los agujeros negros de la economia mundial”, in, Outro
Mundo es possible, Revista Iberoamericana de Sostenibilidad, La Crónica, Año 3, Número 24, Junho
2007, disponível in www.otromundoespossible.net
7
Para uma avaliação do normativo, veja-se Marie Censoplano/Michael Zuppone/Scott Saks, “Sarbanes-
Oxley Act of 2002. Highlights for Foreign Private Issuers”, Pub. Paul Hastings Attorneys, in, Stay
Current, October 2003
8
Cfr. com o regime de controlo plasmado no art. 12º da Convenção das Nações Unidas contra a
Corrupção, de 2003.
9
Serge Halimi, cobre com um saboroso véu de ironia, que, talvez só hoje, ganhe plena dimensão, as
tentativas levadas a cabo no início deste século, de “remendar” os buracos feitos pela “ausência de regras
resultante da desregulamentação da economia”: “ Com isto arriscamo-nos a compreender que os remédios
para a crise actual já foram encontrados “Se o mercado acabar por admirar a honestidade, a
transparência e a boa corporate governance” explica o The Economist, “os chefes de empresa tratarão
rapidamente de adquirir tais características”. Podemos pois ficar descansados.”, cit.
10
“Globalização e Crise Financeira, Documento de Trabalho, de 10 de Março de 2009”, Comissão dos
Assuntos Económicos, Financeiros e Comerciais, Assembleia Parlamentar Euro-Latino-Americana, p. 2

3
crise, quanto às suas alegadas causas, bem assim como quanto às medidas a tomar.
Reconheceu-se que a liberalização dos mercados, trazendo consigo o crescimento
inusitado de fluxos financeiros, mas também práticas de gestão visando maximizar o
lucro, mediante o negligenciar dos riscos associados e o uso de produtos financeiros
complexos, opacos, dependentes da volatilidade do mercado, não foi devidamente
acompanhada de supervisão internacional estribada em princípios modeladores de uma
política macroeconómica consistente, nem das reformas estruturais que se impunham11.
E gizou-se o que se denomina “Plano de Acção” que, sem descurar a exigência de
reforma das instituições financeiras internacionais, tem em vista a concretização dos
seguintes princípios: reforço da transparência e responsabilidade na actividade
financeira que implique informação sobre a situação financeira dos seus agentes, bem
como sobre as características dos investimentos que lançam no mercado; reforço do
sistema regulador que imponha a gestão prudente e a adequada avaliação dos riscos e
fortaleça um código deontológico internacional; promoção da integridade dos mercados
financeiros mundiais, a fim de evitar práticas ilícitas de manipulação, abuso, fraude;
previsão de um regime sancionatório dessas práticas e protecção da finança
internacional contra os riscos atinentes a actos ilícitos perpetrados em jurisdições “não
cooperantes”; promoção da troca de informações entre agentes financeiros e, entre estes
e as autoridades competentes, nomeadamente, as autoridades de jurisdições que
cumprem os princípios internacionais respeitantes ao sigilo bancário/transparência e,
desta forma, fortalecer a cooperação internacional12.
É, justamente, neste âmbito, que se confere particular relevo às medidas a
tomar em sede de prevenção e repressão dos riscos decorrentes das específicas
características dos “paraísos” fiscais, num mundo globalizado. Apela-se aos Estados e
Regiões para redobrar de esforços no sentido da detecção das jurisdições que se
recusam a adoptar os parâmetros aceites internacionalmente sobre a transparência nas
operações económico-financeiras e na tributação fiscal de rendimentos, bem como no
domínio da troca de informações, vertidos na Convenção Modelo das Nações Unidas
em Matéria Fiscal. Pretende-se que as entidades internacionais e regionais reavaliem as
condições em que efectuam investimentos nesses territórios “não cooperantes”, revejam
a política de concessão de apoios no plano bilateral, pondo particular ênfase no respeito

11
Veja-se o Documento lavrado na sequência da Cimeira do G20, Declaration Summit on Financial
Markets and the World Economy, Washington, 15 de Novembro de 2008.
12
Ibidem

4
pelos princípios de transparência e troca de informação. Espera-se, no fundo, que os
Estados reanalisem as suas políticas fiscais, nomeadamente, que prevejam a recusa de
deduções fiscais quanto ao pagamento de despesas efectuadas por residentes nos
referenciados espaços territoriais e estabeleçam medidas que estimulem a iniciativa, por
parte dos contribuintes e das instituições financeiras, de fornecer informação sobre as
operações económico-financeiras envolvendo esses territórios13.
Em síntese, estas medidas buscam o estabelecimento de um modelo normativo e
prático que promova e estimule a transigência das autoridades das jurisdições
denominadas “paraísos fiscais”, quanto a regras e princípios que os identificam e se
encontram no seu núcleo essencial, como sejam o muro de silêncio com que se
defendem as relações económico-financeiras aí concretizadas, a confidencialidade, o
sigilo bancário, a recusa de cooperação com entidades externas, as favoráveis condições
fiscais, que vão desde a redução dos impostos relativos a determinadas rendimentos à
total isenção, a inexistência de regras e a quase nula supervisão.
Cumulativamente, inscrevem-se, respectivamente, num quadro-negro ou num
quadro-cinzento os nomes dos “paraísos fiscais”, denominação que aparenta significar,
por si só, um anátema, que, não obstante as solicitações internacionais, continuam
irredutíveis à mudança, ou, pelo menos, não revelam clara e consistentemente, a
vontade de cumprir com as obrigações decorrentes da adesão à “nova ordem”
económica internacional14. Por último, prevê-se a necessidade de estabelecer um regime
sancionatório das práticas off-shore e, antecipa-se, mesmo, “um movimento em direcção
à proibição dos paraísos fiscais” sem todavia, negligenciar “possíveis compensações” a
atribuir aos países e regiões em causa15.

Génese e razão de ser dos paraísos fiscais.


A história e, de certa forma, o destino dos paraísos fiscais está, indissoluvelmente
ligada, à sua génese16. Intimamente ligados à mundialização económica que se inicia
nos finais do séc. XIX, e se expande extraordinariamente nos finais do séc. XX, surgem
como forma de “reconciliar a soberania dos Estados com o movimento dos capitais”.
Com efeito, inscrevem-se na “invenção de uma economia extra-territorial” que permita

13
Veja-se, Declaration on Strengthening the Financial System…., cit.
14
Vejam-se as Listas elaboradas no seio da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Económico, doravante, OCDE, in www.ocde.org.
15
Globalização e Crise Financeira, Documento de Trabalho, de 10 de Março de 2009, cit., pontos 10 e 16.
16
Seguimos, Christian Chavagneux/Ronen Palan, Los paraísos fiscales, Ed. El viejo Topo, 2007, p. 34 e
ss..

5
a existência de espaços onde não se apliquem as normas integrantes de ordenamentos
jurídicos estaduais, resolvendo, desta forma, o conflito instaurado entre as leis nacionais
e as exigências próprias do mercado internacional de troca de bens e capitais, em
particular, as exigências ditadas pelas aspirações das empresas multinacionais, ao
mesmo tempo que preserva, afinal, o exercício de soberania de cada Estado dentro do
seu território. Paradoxal? Talvez não, na medida em que o surgimento das zonas extra-
territoriais “off-shore” coincide com o apoio outorgado pelas grandes potências, como a
Inglaterra e os EUA, desde finais do séc. XIX, à “internacionalização das suas empresas
mais emblemáticas” e acompanha práticas como a que se verifica, desde 1880, nos
Estados de Nova Iorque, Massachusset e, depois, Delaware, a criação de um regime
legal que consagra “limites máximos” de imposto a pagar pelas empresas que se
instalarem nos seus territórios ou, como a que é levada a cabo por empresas inglesas a
partir da segunda década do séc. XX, que localizam, ficticiamente, fora de Inglaterra, os
seus centros de gestão e controlo, furtando-se, assim, à aplicação das leis fiscais
inglesas17. A lei Suiça de 1934, relativa ao sistema financeiro, consagrando no célebre
art. 47º uma sanção de natureza penal para a violação do segredo bancário, acrescenta,
apenas, um episódio, ainda que importante, à história dos “oásis fiscais” que, durante a
II Guerra Mundial, se intitulavam os garantes da segurança dos capitais das empresas
e de pessoas singulares, face à ameaça que representavam o fascismo e o nazismo18.
Nos territórios off-shore existentes na década de 60, manifestam-se, já, as
características que permitirão reconhecer a sua natureza e darão fundamento às
perplexidades que suscita a sua existência. A importância que auferem na economia
internacional revela as razões do que, bem poderá considerar-se uma atitude de entono
esquizofrénico, com que a comunidade internacional, entenda-se, os Estados mais
poderosos económica e politicamente, têm encarado a sua proliferação. Não
representassem os paraísos fiscais uma “exasperação” das práticas financeiras

17
Na sequência de jurisprudência firmada, rectius, da conhecida decisão contra a empresa De Beers,
registada na África do Sul, onde explorava as minas de diamante, reafirma-se o princípio da submissão às
leis inglesas das sociedades que, não obstante realizarem a sua actividade no exterior, mantivessem, em
solo britânico, o órgão de controlo das decisões de gestão, ou seja, o órgão que, verdadeiramente, definia
e controlava as estratégias empresariais. Veja-se, sobre o caso, Christian/Chavagneux/Ronen Palan, ob.
cit. p. 42.
18
A Holanda apela, na criação do paraíso fiscal das Antilhas, para esta finalidade de salvaguarda dos
activos financeiros face à ocupação alemã, e, como, de resto, é sabido, a Suiça, alimenta, desde a
“sugestão” efectuada pelo presidente da Comissão de Bancos, perante o Congresso norte-americano, em
1965, a “lenda” de que o segredo bancário visava proteger os fundos propriedade de judeus, “lenda” que,
porém, sofre uma erosão com a resistência das autoridades financeiras suíças ao fornecimento de
informações com vista a entregar os tais fundos aos herdeiros dos judeus que pereceram no Holocausto.
Tal resistência só foi quebrada em 1998, após firme intervenção dos EUA, ibidem, p.s 50 e 52.

6
consideradas como factores de eficácia, de eficiência e de maximização do princípio da
concorrência, próprio da liberdade de mercado – discrição absoluta que se recobre com
o respeito pelo anonimato dos depositantes e com o desinteresse pela proveniência dos
bens depositados, máximo sigilo garantido através da previsão de sanções para a sua
violação, recusa de cooperação com entidades externas, mínima regulação, em
particular, inexistência de controlo cambial, descomplexidade e celeridade das
operações.
Práticas que, forçoso é reconhecer, assentavam bem à actividade financeira
conhecida como o “mercado de euro-dólares”, operações negociais em dólares fora do
território norte-americano, “à margem de regulação por qualquer autoridade monetária”,
qual mola propulsora que restituiu a Londres o lugar cimeiro no mundo das finanças.
Com o indisfarçado apoio do Banco de Inglaterra e a tímida objecção no seio do Banco
de Regulamentação Internacional(BRI)19 o mercado dos euro-dólares tem como
catalizador a City - os bancos ingleses usam, depois, os “oásis fiscais” Jersey, Guernsey
e Man - onde, ironicamente, acorrem os grandes bancos dos EUA, Citibank, Chase
Manhatten Bank, Bank of America que, seguidamente, realizarão as operações em euro-
dólares através de territórios off-shore como Bahamas, Bermudas, Caimão. Começava a
edificar-se a “liberalização financeira internacional”, assente na inexistência de
regulação e controlo, na opacidade das operações, quer para as autoridades, quer para os
próprios operadores financeiros, na impossibilidade de calcular os seus níveis de risco,
em suma, “a actividade financeira internacional convertia-se numa zona de não-
governo”20.
As características do mercado dos euro-dólares conduziram a que se tornasse em
“marco natural do desenvolvimento dos paraísos financeiros”21. Mercado que viria a ter
como principais aliados as Câmaras de Compensação electrónica interbancária,
denominadas “clearing”em língua inglesa, a Clearstream e a Euroclear, sedeadas,
respectivamente, no Luxemburgo e na Bélgica.

19
Objecções que não deverão levar-se muito a sério, comprovado que foi que o BRI, reproduzindo, aliás,
o comportamento dos Bancos Centrais, colocou uma parte das suas reservas no mercado de euro-dólares
… Veja-se, Christian Chavagneux/Ronen Palan, ob. cit. p. 58-59.
20
S. Strange, The Retreat of the State. The diffusion of Power in the World Economy, Cambridge
University Press, Cambridge, 1996, apud, Christian Chavagneux/Ronen Palan, ob. cit. p. 58.
21
Assim, Christian Chavagneux/Ronen Palan, ob. cit.

7
A existência de “paraísos fiscais” “tax heavens” na língua inglesa, ou, consoante
as diversas nomenclaturas22, territórios de fiscalidade privilegiada ou de regime fiscal
privilegiado como no ordenamento jurídico francês, refúgios fiscais ou oásis fiscais
“Steueroasen”, em língua alemã, regimes fiscais claramente mais favoráveis de acordo
com o legislador português, que se caracterizam pela isenção fiscal ou pela tributação
manifestamente baixa, por vezes, meramente simbólica, de certos factos, portanto, nula
ou baixa tributação fiscal directa, com a finalidade de atrair capitais estrangeiros,
tornou-se visível e, dir-se-ia, ostensiva, acompanhando a sua proliferação, na década de
80 do século XX. Ora, as jurisdições que apresentam as características identitárias dos
“paraísos fiscais” passaram, desde a década de 60, a ser consideradas, de um modo
relativamente consensual, como “úteis”, se não, mesmo, “necessárias”, constituindo
lugares que garantiam, de modo mais eficaz, a segurança dos depósitos bancários aí
efectuados, ao mesmo tempo que constituíam veículos de obtenção de benefícios fiscais
sobre os elevados rendimentos decorrentes da alta rentabilidade de investimentos que
essas jurisdições possibilitavam.
“Os paraísos fiscais converteram-se, no decurso dos anos setenta, em centros de
expansão do liberalismo económico e financeiro à escala planetária”, o seu
desenvolvimento representou “uma das respostas do capitalismo contemporâneo à crise
estrutural de que era vítima”23 .
Na verdade, reconhecendo as vantagens dessas jurisdições, viu-se como, alguns
Estados, apoiaram a criação de “Centros Financeiros Extraterritoriais” (Off-Shore
Financial Centres), em territórios insulares, casos de Inglaterra24 e Holanda25 na
Europa, os Estados Unidos da América26, onde se isenta de imposto o rendimento das
pessoas colectivas cujo capital seja detido por não residentes que exerçam a sua
actividade exclusivamente fora daquele território e, em regra, se isenta, também, o
imposto sobre o rendimento, na fonte, respeitante aos dividendos distribuídos aos

22
Veja-se, Alberto Xavier, com a colaboração de Clotilde Palma e Leonor Xavier, Direito Tributário
Internacional, 2º ed. Actualizada, Almedina, 2007, p. 357, 361.
23
Christian Chavagneux/Ronen Palan, ob. cit., p. 61 e 63. Os autores aludem à crise que se seguiu à
erosão do denominado “fordismo”, enquanto modelo económico que acompanhou a ascensão do Estado
Providência, aprofundada pelo aumento das matérias primas e pela subida dos preços do petróleo. Esta
crise fundou a necessidade de elaborar novas estratégias empresariais privilegiando a busca de territórios
alternativos onde fosse possível reduzir os custos, nomeadamente, os salários e as obrigações impostas
pelo Wellfare State, no plano da segurança social, no plano fiscal, territórios onde vigorasse o anonimato,
a garantia de confidencialidade das transacções e mínimo controlo.
24
Assinalem-se os territórios sob a administração inglesa das Ilhas Virgens, Man, Jersey e Guersey, onde
operam as sociedades off-shore “exempt companies”.
25
Nas Antilhas Holandesas existem, também, em Aruba, “exempt companies”.
26
Cite-se o caso das Ilhas Virgens administradas pelos EUA.

8
sócios27. Outros Estados adoptaram o princípio “fiscalidade de geometria variável”28,
criando em certas zonas do seu território regimes fiscais privilegiados que se afastam,
em consequência, do regime geral vigente no restante território29, “enclaves territoriais
com vantagens fiscais”30 assumindo em alguns casos, alegadamente, a natureza de
auxílios estaduais e prosseguindo objectivos de desenvolvimento regional31.
Pode afirmar-se sem rebuço que, ao menos até à entrada do presente século, boa
parte dos economistas e grande parte do sector económico-financeiro encontravam
evidentes benefícios na existência e funcionamento de “paraísos fiscais” e de centros
off-shore. Numa economia globalizada32, onde, todavia, coexistem ordenamentos
jurídicos diferentes, com distintos entendimentos no domínio fiscal, a existência de
jurisdições que constituem refúgios fiscais, possibilitaria um lugar de “repouso” para os
fluxos financeiros, aproveitado pelos seus titulares para analisar e decidir a melhor
aplicação dos mesmos, tomando a configuração de uma espécie de “plataforma de
investimento internacional”. O paraíso fiscal permitiria, para além do mais,
“neutralizar” as desvantagens, no plano da concorrência, que para as empresas significa
instalar filiais ou associadas em países com níveis elevados de tributação (como é o caso
da Alemanha). Finalmente, o regime fiscal especialmente favorável oferecido por
determinados territórios constituiria, internacionalmente, um factor importante de

27
Veja-se, Alberto Xavier, ob cit. p. 361-2.
28
A expressão é de Tulio Rosembuj, in, Harmful Tax Competition, Intertax, 27, 1999, apud A. Xavier,
ob. cit. p. 362.
29
Os Centros de Coordenação belgas, cujo regime, foi, entretanto alterado, o International Financial
Services Centre, de Dublin, o Centro Financeiro Internacional de Trieste, extintos, na sequência das
recomendações da OCDE, em especial, dos trabalhos do Grupo do Código de Conduta no Domínio da
Fiscalidade das Empresas, criado por Resolução do Conselho da União Europeia, a propósito da
concorrência fiscal prejudicial. Refiram-se outros exemplos, os Centros Financeiros da Áustria,
Luxemburgo, e fora da Europa, no Japão “Japanese Off-Shore Market”, em Singapura, nos EUA
“International Banking Facility”, no Brunei, no Chile e na Guatemala. Veja-se, o Progress Report on the
Jurisdiction Surveyed by the OCDE Global Forum, Abril de 2009.
30
Assim os designa José Manuel Braz da Silva, in, Os Paraísos Fiscais. Casos práticos com empresas
portuguesas, Almedina, 2007, 4º reimpressão, p.s 32 e 167.
31
De que é exemplo o Centro Internacional de Negócios ou Zona Franca da Ilha da Madeira, uma Região
Autónoma portuguesa. Aluda-se, ainda, na Ásia, às Regiões Administrativas Especiais da China, Hong-
Kong e Macau, respectivamente.
32
O sentido em que aqui se usa o conceito globalização económica abrange uma conjuntura caracterizada
pelo aumento, diversificação e rapidez na troca de bens e serviços, pela abertura e expansão dos mercados
e volatilidade das transacções especulativas, pela inter-conexão de sistemas económicos e financeiros à
escala global, que se exprime numa relação de condicionamento ou de ressonância entre processos que
têm lugar em espaços geográficos diversos e longínquos, em tempo quase simultâneo, beneficiando dos
meios proporcionados pela alta tecnologia. Veja-se, Anthony Giddens, O Mundo na Era da Globalização,
Ed. Presença, 2000.

9
estímulo à poupança, ao aforro, por parte de pessoas singulares, nomeadamente as
detentoras de grandes somas de capital33.
Pressuposto inarredável deste argumentário, o princípio, aceite na ordem fiscal
internacional, da liberdade de escolha do sistema tributário por cada sujeito passivo, seja
individual ou colectivo. Bem como, o seu corolário lógico, o princípio do respeito pela
autonomia da vontade do sujeito contribuinte que a manifesta, no âmbito do
planeamento fiscal que lhe cabe fazer34, elegendo a jurisdição fiscalmente mais
favorável, através da “localização” de um facto ou factos relevantes para efeito de
tributação no território dessa jurisdição35.
Resta acrescentar que os efeitos de tratamento fiscal mais favorável serão, tanto
maiores, quanto sejam aplicáveis à jurisdição “refúgio” eleita convenções contra a dupla
tributação.
Convém ter em linha de conta que, numa perspectiva “empresarial”, a
internacionalização da actividade da empresa impõe a ponderação cuidadosa dos
inerentes factores de “oportunidade” versus “risco”. Ora, o planeamento fiscal incide
numa área considerada de assinalável “risco”, quando as decisões a tomar envolvem
condutas de realização de investimento, na forma de financiamento ou aplicação, gestão
de fluxos de fundos entre eventuais empresas associadas, estruturação de operações
comerciais ou operações cambiais36.
Não deve, portanto, causar surpresa, a pequena ou muito relativa relutância
manifestada pelos Estados perante o surgimento de figuras jurídicas, nomeadamente, no
domínio societário empresarial, e de mecanismos de gestão contabilística e de
fiscalidade que configuram preciosos auxiliares à realização de determinadas condutas
ou à concretização de certas operações destinadas a usufruir das vantagens
proporcionadas pelos “oásis fiscais”. Ainda que, na fronteira, tais condutas ou operações

33
Cfr. com Brás da Silva, ob. cit..
34
Compete ao sujeito passivo, destinatário da norma fiscal, efectuar a gestão do sistema fiscal, cabendo-
lhe “auto-qualificar-se como sujeito passivo numa qualquer zona da relação jurídica tributária, tendo, para
isso, que proceder a uma prévia aplicação da norma fiscal.”, J. L. Saldanha Sanches, Os Limites do
Planeamento Fiscal. Substância e Forma no Direito Fiscal Português, Comunitário e Internacional,
Coimbra Editora, 2006, p. 39
35
Sobre os modos de concretização desta escolha que poderão significar outros tantos processos de elisão
fiscal, A. Xavier, com colaboração de Clotilde Palma/Leonor Xavier, ob. cit. p. 351 e ss, particularmente,
p. 353, p. 378 e ss, p. 397 e ss. Acerca dos processos de elisão ou “evitação” fiscal abusiva como
mecanismos fraudulentos susceptíveis de ser combatidos mediante cláusulas anti-abuso que, actuando no
domínio delicado da limitação à liberdade de escolha do sujeito passivo são, contudo, instrumentos de
eficiência económica e de justiça na distribuição dos encargos fiscais , J. L. Saldanha Sanches, Os Limites
do Planeamento Fiscal……”, ob. cit.,, particularmente, p. 165 e ss
36
Braz da Silva, ob. cit., p. 17.

10
se aproximem, quiçá perigosamente, do âmbito da “elisão” fiscal ou “evitação” fiscal
abusiva, traduzindo-se na manipulação das normas de conflitos, quer dizer, na “actuação
intencional”, com vista à sua alteração, sobre o facto ou factos relevantes como
elemento de conexão, isto é, o elemento que determinada ordem jurídica elege como
relevante para a sua aplicação, a fim de desencadear, de motu proprio, a aplicação do
ordenamento jurídico mais favorável. Através, da (re)localização nos territórios dos
paraísos fiscais, seja do elemento de conexão subjectivo, a residência ou o domicílio do
contribuinte ou sujeito passivo, “elisão subjectiva”, seja do elemento objectivo de
conexão, a fonte de produção, o pagamento de um rendimento, o exercício da actividade
ou o estabelecimento estável, “elisão fiscal objectiva”37.
As autoridades desses territórios apressaram-se, de resto, a dotá-los de condições
normativas e práticas privilegiadas de funcionamento, isto é, condições coadjuvantes
das que integram o seu núcleo essencial, em que avulta um ordenamento jurídico
permissivo - mínima disciplina jurídica societária no que tange aos processos de
constituição (em particular, não exigência de capital mínimo nem registos específicos),
de alteração estatutária ou de extinção, quase nulo regime de fiscalização do
funcionamento - acrescidas de outras, quais sejam, a estabilidade política e social e um
conjunto de “boas condições de acolhimento”38. Com efeito, para além das logísticas
básicas, dispõem, mais, de uma profusão de técnicos (juristas, economistas,
contabilistas, revisores, administrativos, informáticos) altamente qualificados, de
eficientes telecomunicações, às vezes, verdadeiros “parques” tecnológicos, oferecendo
meios electrónicos e informáticos que permitem o acesso livre, em tempo real, a todos
os mercados mundiais”39.

Estruturas e mecanismos de utilização dos paraísos fiscais


Refiram-se, ainda que de modo sincopado e, necessariamente, incompleto, os
mecanismos ou utensílios que vêm permitindo, desde a sua origem, o integral
aproveitamento das jurisdições com regime fiscal especialmente favorável.

37
A. Xavier…, ibidem.
38
A expressão é de Braz da Silva, ob. cit. p. 44.
39
Veja-se, Paraísos Fiscais, Artigo de Fundo, in Câncer Capitalista, trad. in Juris, disponível in
http://doc.jurispro.net/

11
Para além da actividade conhecida como “private banking”40 que se desenvolve
naturalmente no interior do tecido financeiro que opera nos paraísos fiscais, intervindo
nas operações financeiras off-shore41, às vezes nos “centros financeiros internacionais”
aí sedeados ou nas denominadas “zonas francas”, vocacionado para prestar, de modo
eficiente, serviços aos clientes (realização de transferências de modo eficiente, abertura
de contas em nome de sujeitos colectivos, concessão de empréstimos)42, surgiram tipos
e estruturas societárias off-shore, isto é, entidades constituídas no território do paraíso
fiscal ou na zona franca ( num “centro internacional de negócios”, por exemplo),
controladas exclusivamente por não residentes e que exercem a sua actividade fora
desse território a fim de beneficiarem do regime ring fencing, “tratamento fiscal
preferencial oferecido a não residentes isolando as operações beneficiadas do mercado
interno protegido como que por um “anel””43.
Tais sociedades apresentam as características de sociedades-base44, assumindo a
forma de filiais, “branches” em língua inglesa, ou sociedades intermediárias ou
subsidiárias da sociedade-mãe, as quais desenvolvem uma parte do processo produtivo
global ou centralizam resultados obtidos por uma ou mais sociedades pertencentes ao
grupo empresarial. A finalidade destas sociedades, na expressiva formulação de

40
A Suiça surge a dominar, internacionalmente, a actividade de private banking, administrando cerca de
30% dos patrimónios de “high net-worth”, ou “henwees”, denominação dada aos proprietários de grandes
fortunas, ainda que Singapura ocupe uma posição importante na administração de fortunas asiáticas,
provenientes do Japão, China e Índia. Veja-se, Christian Chavagneux/Ronen Palan, ob. cit. p. 70.
41
A actividade bancária off-shore, em particular, os investimentos em “fundos off-shore”, também
denominados “hedge funds”, tornou-se um negócio altamente rentável na década de 90, e é levado a cabo
pelas principais entidades financeiras mundiais, a operarem em Estados como a Suiça, o Liechenstein e o
Luxemburgo. Esses investimentos, de natureza especulativa de alto risco, furtam-se à tributação fiscal e
estão cobertos por um véu de confidencialidade, a montante e a juzante. Mas a verdade é que, além de
Zurique, as cidades de Londres e Nova Iorque acolhem importantes centros bancários off-shore a par dos
centros financeiros on-shore. A razão é óbvia, os bancos que operam neste âmbito beneficiam de isenções
fiscais quanto aos lucros, inexistência de limites cambiais, não submissão a uma rígida disciplina jurídica
e mínima supervisão. A este propósito, realce-se a necessidade sentida, ainda antes da crise económica
que se vivencia, de reforçar a “credibilidade e notoriedade” das actividades off-shore, expressa na criação
do Grupo de Supervisores Bancários Off-Shore que envolve os centros financeiros das Bahamas, Bahrein,
Barbados, Caimão, Chipre, Gibraltar, Guernsey, Hong-Kong, Man, Jersey, Líbano, Antilhas Holandesas,
Panamá, Singapura e Vanuatu . Vejam-se Braz da Silva, ob. cit. p.s 37-39 e 202 e ss, e, Juan Hdez.
Fuigueras, Los Pararaísos Fiscales. Como los centros Offshore socavan las democracias, Akal Ed.,
2005, p. 75 e ss..
42
A actividade financeira é, reafirma-se a actividade por excelência dos paraísos fiscais, onde se
encontram representadas, através de filiais ou sucursais, os Bancos de maior porte a nivel mundial. O
Comité de Supervisão Bancária de Basileia enuncia as modalidades de que se reveste a representação dos
bancos e grupos financeiros nas jurisdições off-shore, atrvés de bancos fantasma (shell banks), sucursais
(booking banches), filiais (booking subsidiaries), bancos em paralelo (paralell banks). Veja-se sobre a
matéria, Juan Hdez Figueras, ob. cit. p. 108 e ss.
43
Seguimos A. Xavier, ob. cit., p. 395
44
Também denominadas sociedades-écran, uma vez que a sua criação cumpre, tão só, a concreta
finalidade de realizar um processo imanente ao planeamento fiscal ou à “arquitectura” fiscal de uma
empresa.

12
Menezes Leitão é “a de, por razões fiscais, receber os rendimentos que seriam
percebidos directamente pelos contribuintes, colocando-os, assim, ao abrigo da
tributação que sofreriam no país da sua residência”45.
Com efeito, as sociedades-base, tomando em conta os incentivos fiscais
específicos oferecidos por determinadas jurisdições, incentivos que podem ter
subjacente o objectivo de “adquirir “know-how” e notoriedade no mercado
internacional”, numa área económica particular, como a financeira, ou, simplesmente, o
fim de captar investimentos46, realizam aí as actividades, seja de produção, seja de parte
do processo de montagem, de importação ou exportação, compra e venda de produtos47
e de prestação de serviços48, às vezes, especializados - como a gestão de marcas e
patentes49, a concessão de empréstimos50 ou a constituição de seguros51 - às empresas

45
Veja-se, Luís Manuel Teles de Meneses Leitão, “Evasão e fraude fiscal internacional”, in A
Internacionalização da Economia e a Fiscalidade, XXX Aniversário do CEF (Centro de Estudos Fiscais),
Lisboa, 1993, p. 313, também citado por A. Xavier, ob. cit. p. 378
46
Brás da Silva, ob. cit. p. 160-1
47
É oportuno aludir ao que se chama “trading”, nas compras ou nas vendas, em que é usada uma
sociedade intermediária, sociedade trading, (as empresas portuguesas normalmente usam sociedades
sedeadas em Inglaterra) que tem como sócia uma sociedade off-shore. A sociedade intermédia tem como
função receber as facturas relativas às compras ou vendas e proceder à refacturação, com indicação de
valores distintos dos reais, e posterior envio para a sociedade que realmente compra e vende. As
vantagens decorrentes das diferenças entre aqueles valores são enviadas para a conta bancária da
sociedade off-shore, a título de “dividendos”. Desde finais dos anos 90, as empresas portuguesas
passaram a celebrar contratos de representação entre a sociedade off-shore e a sociedade intermediária
inglesa pelo que “na prática a sociedade inglesa actua como representante fiscal da sociedade off-shore na
União Europeia”, assim, Rui M. Marques Gonçalves, Fraude Fiscal e Branqueamento de capitais,
Almeida & Leitão, Lda, 2007, p.s 29 a 40, em particular, p. 34. Estas sociedades intermediárias nas
compras e vendas aproximar-se-ão do modelo “empresas-canal”, “conduit companies”, funcionando
como “canal de trânsito dos rendimentos auferidos por uma sociedade em direcção ao beneficiário final
dos mesmos” sendo que a verdadeira identidade do beneficiário estará protegida pelo regime de
anonimato e dever de sigilo vigentes na jurisdição off-shore. Veja-se, A. Xavier, ob. cit., p. 395.
48
São as sociedades “de prestação de serviço intra-grupo”. Vem a propósito, aludir, aqui, aos Centros de
Coordenação, entidades instaladas em jurisdições off-shore, com o objectivo de centralizar as actividades
administrativas relativas à coordenação de um negócio empreendido por uma multinacional, em
determinada área do Mundo. A. Xavier, ob. cit. p. 394-5
49
Conhecidas multinacionais, como a Shell, a Merrill Lynch, a Siemens, a Coca-Cola e a Pepsi-Cola,
estabeleceram sociedades nas Antilhas Holandesas com a finalidade de administrar direitos de
propriedade industrial, emergentes de patentes, marcas, de “know-how”e de “franchising”. A instalação
de tais sociedades subsidiárias nesse território prossegue o objectivo de prevenir a tributação de
rendimentos decorrentes de licenças e de “royalties” no Estado da sociedade-mãe (em cujo ordenamento
fiscal vigore o princípio da Universalidade ou da Tributação de Base Mundial) e proceder à acumulação
desses rendimentos, isentos de impostos ou a uma taxa fiscal diminuta, partindo do pressuposto de que a
utilização do paraíso fiscal permitirá diferir a dívida fiscal até ao momento da sua transferência para
aquele Estado. O óptimo aproveitamento deste “esquema” passa, às vezes, pela “canalização” dos
rendimentos em causa através de uma jurisdição “intermediária”, aí instituindo uma sociedade on-shore,
quando o Estado, onde se efectua o pagamento das licenças ou royalties, imponha a retenção do imposto
sobre esse pagamento, atendendo a que a beneficiária é uma sociedade off-shore. Tem-se referido o uso
reiterado da Inglaterra - como é sabido tem laços privilegiados com Gibraltar e Ilhas Caimão e dispõe de
um direito comercial flexível - para a criação dessas sociedades “intermediárias” que podem, até, assumir
a natureza de sociedades “na prateleira”, em língua francesa, “en rayon”, ou “prêtes à l' emploi”,
caracterizadas pela não coincidência temporal entre o momento formal de constituição e o início de

13
do grupo ou, finalmente, o transporte marítimo52. Numa óptica estritamente económico-
financeira, o uso de sociedades-base, sociedades intermediárias sedeadas nessas
jurisdições, é uma excelente “estrutura de investimento externo”, afinal, uma forma
eufemística para designar um processo de elisão fiscal53.
Particular ênfase deve ser concedida às estruturas societárias que, pelo uso
reiterado, devido à importância e ao volume das operações efectuadas através delas,
vêm merecendo, desde há alguns anos a esta parte, redobrada atenção que toma, às
vezes, a natureza de reacção, por parte, quer dos Estados, quer de organismos
internacionais como a OCDE e a União Europeia. Referimo-nos, em primeiro lugar, às
sociedades subsidiárias off-shore que são utilizadas para a transferência indirecta de

actividade. Vejam-se, Brás da Silva, ob. cit., p.s 197-200; Rui Miguel Marques Gonçalves, ob. cit., p. 27;
ainda, Christian Chavagneux/Ronen Palan, ob. cit. p. 71-2. Estes últimos Autores contam como, no ano
de 2005, as autoridades fiscais norte-americanas constataram que a multinacional Microsoft havia
instalado, na Irlanda, uma filial que detinha os direitos de propriedade intelectual da empresa, cedidos na
Europa, e que, por isso, os correspondentes rendimentos foram tributados pela lei irlandesa à taxa de
12,5%, ao invés da taxa de 35% imposta pela lei nos EUA.
50
Denomina-se “banco cativo” a sociedade subsidiária de um grupo multinacional, instalada num
“refúgio fiscal”, que oferece serviços do domínio financeiro às entidades pertencentes ao grupo, desde a
abertura de contas à concessão de crédito, em condições vantajosas. Estes bancos gozam do regime fiscal
especialmente favorável praticado nesses territórios e beneficiam com a inexistência de restrições
cambiais, a diminuta regulação e as exigências diminutas relativas ao seu funcionamento, por exemplo a
não obrigatoriedade de constituição de reservas. Braz da Silva, ob. cit. p. 205
51
Caso das designadas “sociedades de seguro cativas”, em inglês, “captive off-shore insurance
companies”, cuja finalidade é cobrir os riscos de um grupo empresarial, “contornando”, deste modo, a
proibição do auto-seguro e deduzir os prémios em Estados de fiscalidade elevada, e ao mesmo tempo,
através dos prémios, constituir reservas quando a lei fiscal o não permite, garantir específicos riscos,
aceder directamente ao mercado internacional de resseguros e transformar provisões, para riscos
contingentes, em encargos fiscalmente dedutíveis. Por vezes, as restrições legais existentes nas jurisdições
onde se localizam as sociedades do grupo, na realização de operações com sociedades off-shore, impõem
a intermediação de uma Seguradora internacional, instalada no “paraíso fiscal”, mediante um acordo,
“fronting” na formulação anglo-saxónica. Vejam-se A. Xavier, ob. cit., p. 395 e Braz da Silva, ob. cit., p.s
194-197. Desde o dealbar do século, as Bermudas constituíram-se como um dos principais centros
mundiais da actividade de resseguro. No domínio dos seguros, surgem em lugar importante, Caimão,
Ilhas Virgens britânicas e Guernsey.
52
Trata-se de “escolher uma bandeira de conveniência”. Os paraísos fiscais mais apetecidos para o registo
de navios são o Panamá e, a seguir, a Libéria dado que não vinculam tal registo a especial controlo e não
submetem o navio a qualquer regime fiscal. A obtenção de financiamento para a construção ou aquisição
do navio está facilitada e, a acrescer, a contratação de tripulantes não obedece a determinações legais, em
matéria de salários, horário de trabalho ou segurança social …. Vejam-se, A. Xavier, ob. cit. p. 379 e
Braz da Silva, ob.cit., p.s 210-211.
53
Braz da Silva, na obra já citada que pode cognominar-se uma espécie de Guia dos Paraísos Fiscais
acompanhado da Cartilha das Técnicas para a melhor Utilização dos Mesmos, postula a sua convicção
nas virtualidades dos investimentos efectuados através de empresas intermediárias off-shore que poderão
ser utilizados para diferir o imposto, no Estado da sede da sociedade, sobre os rendimentos obtidos no
exterior, assim, possibilitando o “reinvestimento dos dividendos” não tributados no paraíso fiscal.
Enuncia o mesmo Autor, de entre as principais “vantagens obtidas” em investimentos internacionais
daquele tipo, a possibilidade de “dissimular a identidade dos investidores” através de ordens de compra
de acções de grandes empresas estrangeiras emitidas por várias sociedades offshore que “de forma
confidencial e insuspeita adquirirão progressivamente o controlo accionista das empresas visadas”,
evitando ou retardando, através deste processo “a percepção pelo mercado financeiro de que existe uma
operação de compra em curso, o que provocaria o aumento do preço das acções e inflacionaria o custo da
operação”, p. 161.

14
lucros através da fixação, nas relações comerciais com outras do mesmo grupo, de
preços artificiais que se afastam dos preços praticados no mercado, isto é, dos preços
considerados “justos”, “normais”, “objectivos” de acordo com o princípio, aceite na
ordem internacional, “at arm's lenth”. Esta conduta, comum em empresas
multinacionais, podendo, embora, imputar-se a distintos factores54 - incentivos
financeiros, restrições cambiais, necessidades de crédito, legislação laboral exigente, ou,
até, à “performance” da unidade empresarial em questão, que interessa a determinados
accionistas - relaciona-se, na maior parte das vezes, com a estratégia fiscal55 e, tem, na
verdade, como resultado a introdução de “distorções artificiais nos preços das operações
praticadas entre empresas” podendo conduzir à “atrofia artificial das receitas fiscais”
dos Estados56.
As sociedades off-shore poderão, ainda, desempenhar um papel crucial no
domínio da estratégia fiscal que passa pela subcapitalização (thin capitalization),
mediante a criação de uma sociedade por um grupo empresarial, a qual não dispõe de
capital necessário à realização do seu objecto comercial, necessitando, por isso, de
procurar financiamento junto de uma subsidiária situada num paraíso fiscal que lhe virá
a conceder um empréstimo vultuoso - os juros e amortizações de capital relativos ao
dito empréstimo deverão poder ser deduzidos fiscalmente57.
Importa, também, efectuar uma referência às sociedades holding, que,
apresentando algumas nuances jurídicas traduzidas, de certo modo, por diferentes
nomenclaturas, “Sociedades de Participação Financeira” (SOPARFI) usada no
ordenamento jurídico francês, “Sociedades Financeiras”, “Sociedades de Investimento”
“Sociedades de Gestão de Participações Sociais” (SGPS), própria do direito português,
deverão entender-se como as sociedades titulares de participações no capital de outra
sociedade, podendo, através dessas participações, controlar esta sociedade, ou as

54
Veja-se Brás da Silva, ob. cit. p.s 170-173 que aponta, designadamente, a consecução dos seguintes
objectivos: “contornar as restrições cambiais ……., posicionar fundos financeiros junto das jurisdições
onde existam maiores necessidades de tesouraria, melhores condições de remuneração do capital e
menores riscos …., ultrapassar a fixação de quotas através de preços subavaliados …., apresentar lucros
mínimos a fim de reforçar a posição negocial nas relações com sindicatos ou com governos no caso do
desenvolvimento da actividade em sectores monopolistas ou oligopolistas …., preparar uma hipotética
restrição à actividade da empresa ou um possível risco de expropriação”.
55
Segundo uma sondagem realizada em finais de 2005, pela firma de consultadoria Ernst & Young ( uma
das quatro mais importantes, a nível mundial), a questão dos preços de transferência era considerada
como a mais importante no domínio da estratégia fiscal das 476 multinacionais inquiridas, sedeadas em
22 países, e era levada em conta desde a fase inicial da concepção dos seus produtos. Veja-se, Christian
Chavagneux/Ronen Palan, ob. cit. p. 75.
56
A. Xavier, ob. cit. p.s 432-434.
57
Veja-se, Juan Hdez. Vigueras, ob. cit. p. 138.

15
sociedades que têm por objecto exclusivo a participação noutras sociedades (holding
“puras”). Seja como for, a holding surge, assim, como uma sociedade “sócia”, na
medida em que o seu património “se encontra investido, no todo ou em parte, em
participações noutras sociedades “sociedades operacionais”58. Ora, este tipo societário,
surgido nos EUA, não se tem furtado a críticas, fundadas nas ambiguidades que se
geram em torno da sua verdadeira natureza jurídica. A “unidade económica” que
suporta as relações entre a holding e a sociedade operacional, e que é manifesta no caso
da holding “pura”, contribui para questionar a existência de uma verdadeira
personalidade jurídica (tenha-se em conta o carácter instrumental, funcional ou relativo
do conceito de personalidade jurídica), distinta da sociedade participada, uma vez que se
tratará de “uma dúplice aplicação da disciplina jurídica das sociedades quando estão em
causa os mesmos bens”59. Há, ainda, quem vá mais longe e considere que o património
da holding não passa de um “duplicado” das acções ou quotas das sociedades
operacionais e aponta o risco de “as participações de sociedades no capital de outras
sociedades dar origem a “patrimónios fictícios” susceptíveis de multiplicação ao
infinito”60.
Deve reconhecer-se que as ambiguidades que rodeiam esta figura societária vêm,
de certa forma, colocá-la numa posição invejável no domínio do planeamento fiscal61. A
grande maioria dos países, que acolhem no seu sistema jurídico tal figura, contemplam
o método da isenção que, quanto às distribuições inter-societárias dos lucros, se
denomina “participation exemption”, “privilégio de holding” ou “privilégio de
afiliação”, desde que a entidade cumpra determinados requisitos62 - período mínimo de

58
Veja-se A. Xavier, ob. cit. p. 380 e ss.
59
O raciocínio é de Libonatti, in Holding e Investment Trust, apud A. Xavier ob. cit. p. 384. O Autor
desenvolve a ideia da existência de um princípio de unicidade patrimonial, reconhecendo que, podendo
embora o “património da “holding” ser juridicamente independente, para certos efeitos, dos patrimónios
das sociedades em que participa, isso não deve fazer perder de vista que o valor das suas participações
sociais, outro não é que o valor proporcional dos patrimónios das sociedades participadas”.
60
Vivante, em artigo publicado em 1935, La società finanziarie (holding) e le loro responsabilitá, apud
A. Xavier, ob. cit. p.s 383-4.
61
Não surpreende, pois, que seja considerada, desassombradamente, “um veículo que tem por finalidade
a obtenção de vantagens fiscais….”, Braz da Silva, ob. cit. p. 206.
62
Tal como em Espanha, a Lei das Entidades de Tenencia de Valores Extranjeros,( ETVE), em Portugal,
a Lei das Sociedades Gestoras de Participação Social (SGPS). Veja-se, o regime fiscal particularmente
favorável da lei luxemburguesa de 1929 sobre as sociedades holding, às quais era admitido emitir acções
ao portador o que, obviamente, torna difícil a identificação dos accionistas, não apresentar contas anuais e
beneficiar de isenção de imposto sobre o rendimento e as mais valias e de isenção de retenção de imposto
sobre dividendos ou juros pagos. O Luxemburgo, assumindo-se como jurisdição que oferece condições
vantajosas para empresas que adoptem a forma jurídica de holding, criou, através de uma Lei de 1990, as
“Holding – 1990” ou “Sociedades de Participação”. Constituídas como sociedades de capitais, o seu
objecto pode abranger o investimento ou uma actividade comercial ou industrial e beneficiam de isenção
de imposto sobre os dividendos e mais valias resultantes de aplicações em sociedades qualificadas, bem

16
detenção da participação societária, percentual mínimo de participação no capital da
participada, mínimo de tributação imposto à participada, a que acresce uma exigência
quanto á natureza do rendimento auferido pela participada. Para além dos dividendos, a
isenção abrange, também, as mais-valias na alienação de participações tituladas pela
holding63.
Ora, deve reconhecer-se que as vantagens na área fiscal, prosseguidas pela
constituição das holding, cumprem-se integralmente quando, instituídas em centros off-
shore, a coberto do secretismo, nula ou reduzida regulação que os caracteriza, essas
holding criam sociedades intermediárias em países onde beneficiam de Acordos para
Evitar a Dupla Tributação64.
Um outro mecanismo com origem no direito anglo-saxónico o trust65, merece-nos
um olhar breve. Não dispondo de personalidade jurídica, pode dizer-se que traduz um
contrato efectuado entre o proprietário de determinado património, que se denomina
“settlor”, e uma entidade que passa, por via desse contrato, a gerir, a administrar esse
património, a que se chama “trustee”, por conta de um “beneficiário”. A finalidade
desta construção jurídica é a capitalização de bens, por forma a “minimizar riscos” de
incidência fiscal ou outros, como despesas inerentes à transmissão de bens por morte
(processo sucessório). Uma modalidade do contrato de trust, reiteradamente usada, é a
que atribui amplos poderes discricionários ao “trustee”, que abarcam os poderes
tradicionalmente reconhecidos no domínio do direito de propriedade, e que possibilita
que a tributação dos beneficiários seja diferida para a data em que os fundos lhes forem
distribuídos66. Compreende-se a apetência dos territórios off-shore para a instalação
material do trust67.

como da faculdade de deduzirem fiscalmente os encargos inerentes a empréstimos para financiamento de


investimentos ou compra de acções. Acresce que estas sociedades são abrangidas pelos Acordos de Dupla
Tributação que vinculam o Luxemburgo. Veja-se, Braz da Silva, ob. cit. p.s 100-101. De notar, que os
regimes das holding foram alterados (excepto o português), por se considerar que eram prejudiciais, na
sequência dos trabalhos levados a cabo pelo Fórum da OCDE Para as Práticas da Concorrência Fiscal
Prejudicial e do Grupo do Código de Conduta da Fiscalidade das Empresas da União Europeia.
63
A. Xavier, ob. cit. p. 387.
64
Desta feita, alcança-se o que Braz da Silva denomina “optimização fiscal” na montagem de uma
sociedade holding, ob. cit. p. 207.
65
Uma outra figura jurídica que se aproxima do trust, denomina-se Anstalt e foi criada no Liechenstein,
nos anos 20, com o fito de gerir fortunas, iludindo a aplicação de impostos no domínio sucessório.
66
Veja-se, Brás da Silva, ob. cit. p.s 200-202.
67
Por influência do direito inglês, as Ilhas Caimão preveêm a figura do trust (desde 1967), tal como
Hong-Kong. Jurisdições com ordenamentos jurídicos de matriz romano-germânica, que não conhecem
este mecanismo (de certa forma, aproxima-se do contrato de gestão fiduciária), como o Luxemburgo,
Malta e a Suiça, admitem o seu funcionamento off-shore, tal como as Zonas Francas de Macau, Região
Administrativa Especial da China e da Madeira, Região Autónoma portuguesa.

17
Medidas de reacção contra os paraísos fiscais, no plano internacional
A reacção negativa internacional, pode dizer-se “institucional”, ao funcionamento
( mas não, necessariamente, à sua existência) das jurisdições off-shore, é inaugurada nos
finais da década de 90, pela OCDE, no âmbito da tentativa de prevenir práticas de
“concorrência fiscal prejudicial” e acompanhará as iniciativas tomadas no plano
internacional, a partir dos finais da década de 80, com vista à prevenção e repressão,
“combate”, de determinada fenomenologia criminosa transnacional praticada por, ou em
relação com, o crime organizado, que tem vindo a crescer em dimensão e tem
diversificado as suas actividades. Primeiro, o tráfico de droga, depois, a corrupção e as
fraudes financeiras e fiscais68. É, justamente, neste âmbito, que são desencadeados
mecanismos de luta contra o que passou a chamar-se “branqueamento de capitais” que
constitui, seguramente, a zona nuclear das organizações criminosas, uma vez que lhes
permite, a um tempo, dissimular a origem dos bens ou valores obtidos ilicitamente e,
após o seu reinvestimento, financiar as outras actividades criminosas que constituem o
seu escopo69.

Parte-se do pressuposto de que o branqueamento de capitais partilha com outros


ilícitos transnacionais, justamente cognominados crimes económicos, crimes dos
poderosos ou “white collar crime”, na conhecida nomenclatura de Sutherland, a
corrupção, as fraudes financeiras e fiscais, um elemento fenomenológico – é uma
actividade comercial ou empresarial, tem como fim a preservação e/ou o aumento do
lucro. E, por isso, realiza-se, na maioria dos casos, de forma organizada ou sistemática.
Aqui residindo a sua particular danosidade social70.
O crime económico-financeiro possui, em si mesmo, um enorme potencial para
minar as instituições públicas e privadas, descredibilizá-las perante os cidadãos e
desestabilizar o sistema político, económico-financeiro e social. Na verdade, sobretudo

68
De entre os crimes praticados pelas associações criminosas, assinalem-se o “tráfico de seres humanos,
em particular, mulheres e crianças”, “ o tráfico de armas”, “a migração clandestina”, “a exploração da
prostituição e jogo ilícito”, este intimamente ligado à usura e à extorsão a pretexto de protecção”, a
“fraude relativa a subvenções ou subsídios, a “falsificação e abuso de cartão de crédito”, a “contrafacção
de moeda”, o “contrabando de bens”, as ofensas à propriedade industrial na forma de “contrafacção e
usurpação de obras protegidas”, o “comércio de cópias ilícitas” - realce-se, ainda, a “apropriação e
reprodução e publicitação ilícitas de obras de software”, o “acesso não autorizado a sistema ou rede
informáticos”, a “sabotagem informática”, a “falsidade informática” e a “burla informática”, condutas que
se inscrevem no emergente conceito de cibercrime.
69
Neste sentido, Maria Leonor Assunção, Do lugar onde o Sol se levanta, um olhar sobre a criminalidade
organizada, in Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, p. 121.
70
Cfr. Pedro Caeiro, “A Decisão-Quadro do Conselho de 26 de Junho de 2001 e a relação entre a punição
do branqueamento e o facto precedente: necessidade e oportunidade de uma reforma legislativa”, in,
Liber Discipulorum Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, p. 1067 e ss

18
pelos elevados valores que movimenta71, constitui um factor de grave perturbação da
economia, alimenta mercados paralelos, subverte as várias áreas da actividade
económica legal, distorcendo as regras de circulação de bens e criando formas de
concorrência desleal72 e cria indesejáveis sentimentos de que é possível ser
recompensado pela prática de crimes73.
Acresce que o crime económico transnacional vem, hoje, na Ásia como na Europa ou
na América, inarredavelmente associado a uma forma especial de violência organizada
que assinalou, tragicamente, o dealbar deste século e revela uma insidiosa vocação para
se disseminar, instalar e atingir objectivos em qualquer sociedade – o terrorismo74.
Ora, pelas suas características de facilitação de operações económicas, nula ou
mínima regulação e controlo, desinteresse na origem dos bens objecto das operações e
opacidade que as rodeiam, os paraísos fiscais guindam-se, naturalmente, a um lugar de
topo na escolha que deles fazem todos quantos têm por finalidade ocultar, dissimular a
origem ilícita de bens, a fim de os subtrair à detecção e perda pelas autoridades
estaduais de administração da justiça75 e, a seguir, reinvesti-los, seja na economia lícita,

71
Até finais do ano 2002, segundo informação fornecida pelas autoridades policiais, estimava-se que, no
continente chinês, se branqueavam, anualmente, 200 mil milhões de renminbi, enquanto que em Hong
Kong, presumia-se que as actividades de branqueamento de capitais incidiriam, anualmente, sobre um
valor superior a 930 milhões de HK dólares. Veja-se, Alain Shan, “Branqueamento de capitais: crime sem
fronteira”, in Seminário sobre Teorias e Medidas de Combate ao Crime Económico Transfronteiriço, org.
Polícia Judiciária de Macau, 2003.
72
Vejam-se Miguel Abel Souto, El blanqueo de dinero en la normativa internacional, Universidade de
Santiago de Compostela, 2002, p. 41 e ss, também, Luís Goes Pinheiro, “O branqueamento de capitais e a
globalização (facilidades na reciclagem, obstáculos à repressão e algumas propostas de política
criminal)”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 12, 2002, p. 614 e ss, Nuno Brandão,
Branqueamento de Capitais: O sistema Comunitário de Prevenção, Coimbra Editora, 2002, p. 18 e ss; já
antes, J. Del Carpio Delgado, El delito de blanqueo de bienes en el nuevo Código Penal, Tirant Lo
Blanch, Valencia, 1997, p. 30 e 415, Faria Costa, “El Blanqueo de Capitales (Algunas reflexiones a la luz
del Derecho penal y de la Politica Criminal”, in, Hacia un Derecho Penal Económico Europeo, Jornadas
en Honor del Professor Klaus Tiedmann, 1992, e “O Fenómeno da Globalização e o Direito Penal
Económico”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Coimbra Editora, 2001, p. 531
e ss, Alberto Silva Franco, “Globalização e Criminalidade dos Poderosos”, Revista Portuguesa de
Ciência Criminal, 10, 2000, p. 183 e ss, e Jorge Fernandes Godinho, Do Crime de «Branqueamento» de
Capitais, Introdução e Tipicidade, Almedina, 2001, p. 49 e ss
73
Assim, Maria Leonor Assunção, “Sobre o papel do direito penal no propalado “combate” ao
branqueamento de capitais e ao terrorismo. O caso de Macau”, comunicação no Seminário sobre
Prevenção e Repressão dos crimes de branqueamento de capitais e de terrorismo, 2008, Centro de
Formação Jurídica e Judiciária ed., 2009.
74
Ibidem.
75
É do conhecimento geral que usam as “rotas” abertas pelos oásis fiscais, todos quantos pretendem
esconder e reinvestir as vantagens obtidas através dos vários tráficos proibidos, do aproveitamento ilícito
de bens através do exercício de cargos políticos, tendo como fonte a corrupção, a participação ilícita em
negócio, o abuso de poder, o enriquecimento criminoso mediante fraudes financeiras e fiscais. Os bancos
e estruturas societárias off-shore são instrumentos privilegiados de ditadores corruptos, da América à Ásia
e à África. Por eles passaram os fundos destinados ao auxílio internacional à Rússia, apropriados por
autoridades corruptas e associações criminosas, como refere Louise Shelley que inventaria os casos de
corrupção relacionados com o crime organizado, in “Transnational Crime: the Case of Russian Organized

19
seja em outras actividades ilícitas rentáveis. Não é difícil compreender a permissividade
dos “canais” abertos pela economia “off-shore” à concretização de operações de
financiamento de condutas ilícitas, em particular, de financiamento ao terrorismo, que,
para além do mais, estão garantidas por um “muro de silêncio”.
Em 1989 é criado um organismo inter-governamental, Finantial Task Force on
Money Laundering, doravante, FATF, em língua inglesa, Groupe d’ Action Financière
sur le Blanchiment de Capitaux (GAFI) em língua francesa, com o objectivo de
promover estratégias de “combate” ao branqueamento de capitais, em particular, estudar
as tipologias de realização do fenómeno, criar sistemas de prevenção e repressão e
proceder a recomendações aos Estados tendo em vista a harmonização de
procedimentos, nos planos normativo e prático. As primeiras 40 Recomendações datam
de 1990 e tomam como referência o branqueamento das vantagens do tráfico ilícito de
droga, crime que se pretende controlar, cumprindo os desígnios da Convenção
Internacional de Viena de 1988.
No ano de 1996, procede à primeira revisão das 40 Recomendações, alargando o seu
âmbito de aplicação ao branqueamento de vantagens provenientes de quaisquer crimes
graves e, em 2000, elabora uma lista de jurisdições “não cooperantes” que, inicialmente
continha 29 referências, mas que é reduzida para 1576. Refira-se, que a classificação
como país ou território que não cumpre, ou cumpre deficientemente, as Recomendações
deve ser entendida à luz do princípio “name and shame”, convoca uma censura
internacional e legitima a aplicação, por parte dos países “cumpridores” de “medidas
apropriadas”, leia-se, sanções, ainda que não se enunciem quais. Esta qualificação
passa a revestir-se de especial gravidade quando a FATF, no pós 11 de Setembro,
acrescenta, às iniciais 40, mais 8 Recomendações visando medidas de “combate” ao
financiamento ao terrorismo. Estas Recomendações serão consideradas, pelo Banco
Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional, como “international standards for
combating Money laundering and the financing of terrorism”77. Convém realçar que se

crime and the Role of International Cooperation in Law Enforcemnt”, in Journal of Post-Soviet
Democratization, vol. 10, Number 1, Winter 2002, e “The nexus of Organized International Criminals and
Terrorism”, comunicação apresentada no Symposium Addressing Transnational Security Threats in The
Ásia-Pacific Region, e, ainda, “Is the Russian State Coping with Organized Crime and Corruption?”.
76
Aruba, Bermudas, Caimão, Chipre, Ilhas Virgens norte-americanas, Labuan, Libéria, Ilha de Man,
Montserrat, Nauru, Niue, Panamá, Maldivas, Singapura, Sâo Cristovão e Nevis. No ano de 2005, a FATF
indicava como não cooperantes, apenas, Mianmar e Nigéria.
77
In, documento elaborado pela FATF/GAFI, distribuído na 24º Sessão “Money Laundering and
Gatekeeper Rules Aplicable to Attorneys”, 18th Biennal Conference of LAWASIA, September 1-5, 2003,
Tokyo, Japan. Interessa referir que foram criados organismos regionais análogos à FATF, entre os quais o
APG (Ásia-Pacifique Group), do qual fazem parte Hong-Kong e Macau.

20
recomenda aos Estados que não permitam o estabelecimento nos seus territórios de
“bancos de fachada” e às instituições bancárias que se abstenham de criar ou manter
relações com esses bancos, bem como com instituições bancárias estrangeiras que
permitem que as suas contam sejam usadas por aqueles bancos78. E que se apela à não
consagração nos ordenamentos jurídicos internos de motivos de recusa à cooperação
internacional em matéria de branqueamento de capitais, como o “segredo bancário” ou
o facto de a infracção precedente possuir natureza fiscal79. Acrescente-se, ainda, que se
instaura um sistema preventivo da prática de branqueamento de capitais e de
financiamento ao terrorismo que impõe o cumprimento de determinados deveres a
entidades financeiras80 e a determinadas categorias de profissionais, deveres de
vigilância, identificação, comunicação e recusa de realizar operações económicas, bem
como o dever de colaboração com as autoridades competentes, sempre que,
respectivamente, as operações indiciem a prática dos crimes em questão, ou envolvam
valores relevantes, no contexto da actividade em causa81.
Ora, independentemente das tentativas de reacção contra as características e práticas
da actividade económico-financeira off-shore, integrantes das políticas internacionais de
prevenção de fenómenos criminosos graves, como o branqueamento de capitais, o
financiamento ao terrorismo, as organizações criminosas e a corrupção 82, mercê é aludir

78
Recomendação 18. Note-se que as instituições bancárias deverão diligenciar no sentido de que as
Recomendações sejam cumpridas, muito em particular, pelas suas filiais localizadas em países não
cooperantes, de acordo com as Recomendações 21 e 22.
79
Recomendação 36.
80
O Comité de Basileia ( Comité de Regulação e Práticas de Controlo das Operações Bancárias) alertava,
já em 1988, para a necessidade de reforço de um modelo de controlo que prevenisse a utilização do
sistema financeiro na concretização de crimes. A conhecida Declaração de Basileia de 12/12/1988 apela
aos bancos a aderir a um modelo de auto-regulação com vista à prevenção e detecção do uso das
entidades financeiras no processo de branqueamento de capitais, em torno de determinados princípios a
seguir, o mais importante dos quais é o “know your customer” que estabelece a obrigação de empreender
os esforços razoáveis para verificar a identidade dos clientes (embora haja quem entenda que a descrição,
vaga, do aludido princípio sirva para continuar a proteger o anonimato dos depositantes). Refere-se,
ainda, a necessidade de cooperação com as autoridades competentes que, contudo, se vincula às leis
internas de cada Estado, o que o mesmo é dizer, poderá deparar com um sério obstáculo - a disciplina
relativa ao “sigilo bancário”. Um comentário sobre o sentido e valor deste documento, pode ver-se, em
Miguel Abel Souto, El blanqueo de dinero en la normativa internacional, Universidadade de Santiago de
Compostela Pub. 2002, p. 64 a 77.
81
Neste âmbito, é de assinalar a criação de UIFs (Unidades de Informação Financeira), FIU (Finantial
Intelligence Units), em inglês, entidades nacionais responsáveis pela recepção, análise e disseminação
pelas autoridades competentes dessa informação. Vejam-se os dados sobre a natureza e funcionamento
das UIFs, en Egmont Group of Finnantial Intelligence Units www.egmontgroup.org .
82
Instrumentos internacionais importantes para compreender o essencial das referidas políticas, são, a
Convenção Internacional para a Supressão do Financiamento ao Terrorismo de 2000, a Convenção das
Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional de 2000, a Resolução 1373 (2001) do
Conselho de Segurança sobre a ameaça à paz e segurança resultante dos Actos Terroristas, a Convenção
das Nações Unidas contra a Corrupção, de 2003. Especial menção merecem os documentos produzidos
no seio do United Nations Office for Drug Control and Crime Prevention, (UNODCCP) no âmbito do

21
a um movimento, embora não muito ousado, no seio da OCDE, com vista a minimizar
os prejuízos decorrentes da existência de territórios funcionando como “refúgios fiscais”
que constituem factores gravemente perturbadores do princípio da lealdade da
concorrência fiscal entre Estados e Regiões, para além de se demonstrarem
permissivos a condutas de elisão fiscal, ou, mesmo, de fraude fiscal.
No ano de 1998, a OCDE elabora um documento de reflexão sobre “concorrência
fiscal prejudicial”, contendo uma manifesta censura das práticas fiscais desleais, tendo
em vista a atracção de capitais e investimentos estrangeiros e fazendo recomendações
aos Estados que devem “remover, rever e refrear” os regimes fiscais preferenciais. E,
prosseguindo a finalidade inscrita no lema “name and shame”83, torna pública uma lista
em que identifica as 35 jurisdições que realizam práticas fiscais desleais, por isso, não
cooperantes84. Enunciam-se critérios que permitem identificar as jurisdições “paraísos

Global Programme Against Money Laundering, in www.unodc.org e www.imolin.org . “ Model


legislation on money laundering and financing of terrorism” para sistemas jurídicos de matriz
continental, última edição 1/12/2005. No continente americano, Regulamento da Comissão Inter-
americana para o Controlo e Abuso de Drogas (CICAD) sobre os “Crimes de Branqueamento de Capitais
Relacionados com o Tráfico de Droga e Outros Crimes Graves”, de 1989, a Convenção Inter-americana
conta a Corrupção, aprovada pela Organização dos Estados Americanos em 29/3/1996. Em África, a
Convenção da União Africana para prevenir o combater a corrupção, provada pelos Chefes de Estado e de
Governo da União Africana em 12/7/2003. À Convenção do Conselho da Europa sobre o Branqueamento,
a Despistagem, a Apreensão e o Perda dos Produtos do Crime, de 1990, segue-se a Directiva do Conselho
da União Europeia de 1991 sobre a Prevenção do Uso do Sistema Financeiro para o Branqueamento de
Capitais. No ano de 1997, o Conselho Europeu aprova, em Amesterdão, o Plano de Acção Global onde se
encontram vertidas linhas de política-criminal respeitantes à luta contra o crime organizado a que se segue
a Acção Comum 98 /699/JAI, adoptada pelo Conselho com base no art. K.3 do Tratado da União
Europeia relativa ao branqueamento de capitais, identificação, detecção, congelamento, apreensão e perda
de instrumentos e produtos do crime, e, depois, a Decisão-Quadro 2001/5001/JAI sobre a mesma matéria.
A Decisão-Quadro 2002/475/JAI, do Conselho tem como objectivo específico o combate ao terrorismo e
a Directiva do Parlamento e do Conselho 2005/60/CE estabelece um regime preventivo da utilização do
sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais e de financiamento ao terrorismo (ver a
Directiva da Comissão de 2006 que estabelece medidas de execução da Directiva de 2005).
Concretamente, quanto à luta contra a corrupção, aluda-se à Convenção Penal sobre a Corrupção do
Conselho da Europa de 1999, à Convenção sobre o combate à Corrupção de Agentes Públicos
Estrangeiros nas Transacções Comerciais Internacionais da OCDE de 1997, à Convenção contra a
Corrupção em que estejam implicados funcionários das Comunidades Europeias ou dos estados Membros
da União Europeia de 26/5/1997, à Acção Comum com base no K.3 do Tratado da União Europeia de
22/12 1998 e, por fim, à Decisão Quadro da União Europeia sobre a Corrupção no Sector Privado, de
2003.
83
O mesmo objectivo de censura pública cumpria a lista publicada pelo Fórum para a Estabilidade
Financeira, um mês antes, no rescaldo da crise económica e financeira dos finais de 90. Veja-se, Christian
Chavagneux/Ronen Palan, ob. cit. p. 101.
84
Refúgios fiscais como as Bermudas, Caimão, Chipre, Malta, Maurício e São Marino, comprometem-se
a adoptar medidas imediatas de correcção das práticas fiscais, a fim de não figurar na lista. No Relatório
de 2001, estipulam-se critérios de transparência e de troca de informações, que virão a ser plasmados no
Acordo sobre a Troca de Informações em Matéria Fiscal, de 18 de Abril de 2002. No ano de 2002,
figuravam na lista, Andorra, Libéria, Liechenstein, Mónaco, Ilhas Marshall, Nauru e Vanuatu. Em 2004, a
lista circunscreve-se às primeiras cinco jurisdições enunciadas em 2002. Em Abril do corrente ano de
2009, integram a chamada lista “negra”, o Uruguai, a Costa Rica, a Malásia e as Filipinas, porém, existe
uma lista “cinzenta” de jurisdições que não cumprem adequadamente as recomendações, a saber, Áustria,
Andorra, Anguila, Antigua e Barbados, Aruba, Bahamas, Bahrein, Bélgica, Belize, Bermudas, Brunei,

22
fiscais” - a tributação nula ou mínima (critério por si só suficiente quando o dito
território acolhe práticas de evasão à tributação nacional), a inexistência de efectivo
intercâmbio de informações, a falta de transparência no âmbito normativo e
administrativo e a ausência de actividades económicas substanciais. E, embora de modo
relativamente confuso, apontam-se outras características identificadoras dos “regimes
preferenciais fiscais” em países membros, em que avultam as taxas de tributação nulas
ou mínimas, os regimes ring fencing, a falta de transparência normativa e prática, a
omissão de troca de informações quanto aos contribuintes que beneficiam do regime
preferencial, a definição artificial da base tributável, a não aplicação dos princípios
internacionais de fixação dos preços de transferência, em particular das Guidelines da
OCDE de 199585, a existência de níveis de taxas ou de bases tributáveis negociáveis, a
vigência de regras de confidencialidade. Finalmente, prevêem-se medidas defensivas86

Caimão, Chile, Ilhas Cook, República Dominicana, Gibraltar, Granada, Libéria, Marshall, Guatemala,
Liechtenstein, Luxemburgo, Mónaco, Montserrat, Nauru, Antilhas Holandesas, Niue, Panamá, São
Cristóvão e Nevis, Santa Luzia, São Vicente e Granadinas, Samoa, São Marino, Singapura, Suiça, Turcos
e Caicos, Vanuatu e Ilhas Virgens.
85
Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations. Fiel à sua
“vocação” “contribuir para a expansão das trocas mundiais numa base multilateral e não
discriminatória” e alcançar nos países Membros uma taxa de crescimento sustentado o mais elevada
possível”, a OCDE, elabora este documento que, procurando cumprir o desígnio último, obter um
consenso sobre princípios de tributação internacional, enuncia modos de avaliação dos preços de
transferência fixados nas operações internacionais com vista a identificar aqueles “preços de
transferência que não reflectem os mecanismos de mercado e o princípio da plena concorrência” , e,
deste modo, “ se afastam das condições prevalecentes no mercado aberto” ( condições comerciais e
financeiras que se observariam entre empresas independentes relativamente a operações idênticas -
princípio at arm’s lenth) e, criam distorções “quer do montante do imposto devido pelas empresas
associadas quer das receitas fiscais dos países de acolhimento” e que, em consequência, justificam e
legitimam um ajustamento dos lucros das aludidas empresas associadas para corrigir essas distorções. O
princípio de plena concorrência é vertido no art. 9º do Modelo de Convenção Fiscal da OCDE e reza :
“Quando …. as duas empresas (associadas), nas suas relações comerciais ou financeiras, estiverem
ligadas por condições aceites ou impostas que difiram das que seriam estabelecidas entre empresas
independentes, os lucros que, se não existissem nessas condições, teriam sido obtidos por uma das
empresas, mas não o foram por causa dessas condições, podem ser incluídos nos lucros dessa empresa
e tributados em conformidade”. Deve entender-se, por aqui, que o referenciado princípio de plena
concorrência toma como pressuposto o critério da consideração de cada empresa associada, como uma
entidade separada e “não como subconjunto indissociável de uma única empresa unificada”. Veja-se,
Overview, disponível, in, www.ocde.org.
86
A aplicação destas medidas defensivas virá a subordinar-se ao chamado princípio “level playing field”.
Pretendendo criar-se um sistema de transparência e de troca de informações num nível, o mais alto
possível (em concordância com os princípios elaborados no âmbito do Global Tax Forum e vertidos na
Convenção Modelo), e faz-se depender a aplicação das aludidas medidas, aos paraísos fiscais não
cooperantes, da sua efectiva aplicação entre os Estados Membros da OCDE, esperando-se que os Estados
Membros criem as condições indispensáveis para a sua consecução. A densificação do anunciado
princípio “level playing field” foi cometida a um grupo de trabalho cujo resultado consta do documento
“A Process for Achieving a Global Level Playing Field”. Veja-se, José Manuel Caldéron Carrero, “La
Ley de Medidas para la Prevención del Fraude Fiscal: La Bifurcacion del Régimen de Praísos Fiscales y
sus Implicaciones de politica Fiscal y Derecho Comunitário”, in La lucha contra el fraude fiscal.
Estrategias nacionales y comunitárias, Collado Yurrita dir., Moreno Gonzalez/Sanz Dáz-Palacios, coord.,
Atelier Libros Jurídicos, Barcelona, 2008, ps 225 a 265, em particular, ps 247-248.

23
contra os paraísos fiscais não cooperantes, uma espécie de “sanções”, que vão desde a
denúncia pelos países Membros das Convenções celebradas com aquelas jurisdições,
passando pela possibilidade de restrição das deduções de pagamentos efectuados a entes
domiciliados em paraísos fiscais, à aplicação de regimes específicos em matéria de
preços de transferência e de subcapitalização87.
O referenciado documento da OCDE, bem os outros que foram sendo elaborados no
seio dessa Organização, nomeadamente, os Relatórios de Progresso do Fórum da OCDE
para as Práticas Concorrenciais Fiscais Prejudiciais 88 e as correspondentes iniciativas
levada a cabo na União Europeia, radicam numa alteração de fundo no domínio do
Direito Tributário Internacional, onde surge a primeira tentativa de contrariar o primado
absoluto do arbítrio do particular que, com a única finalidade de escolher a lei fiscal que
lhe é mais favorável, manipula os elementos de conexão “situando-os”,
“deslocalizando-os” ou “relocalizando-os” a seu bel-prazer. Concretizando, no fundo,
uma conduta que traduz um manifesto abuso do princípio da liberdade contratual e das
limitações decorrentes do princípio da legalidade aplicável em direito fiscal. A tentativa
de limitar o princípio da liberdade de escolha do regime fiscal, pelo contribuinte,
suporta-se no emergente entendimento doutrinal acerca dos fim que cumpre prosseguir
ao Direito Fiscal e que o legitimam, não visando este ordenamento jurídico, apenas, e
em si mesmo, a intromissão do Estado no património do cidadão com o objectivo de
obter receitas, mas a “justa repartição dos encargos tributários” como pressuposto da
“repartição justa dos rendimentos e da riqueza”89.
É neste sentido que deverão interpretar-se as medidas contra o que se considera “uso
abusivo dos Tratados que afastam a dupla tributação”, o designado “treaty shopping”,
i.e. a escolha de residência obedecendo ao, único, propósito de aproveitar o regime
fiscal mais favorável que decorre da aplicação do Tratado, nomeadamente, através do
uso de conduit companies. Comentários efectuados à Convenção Fiscal Modelo sobre o
Rendimento e Património da OCDE90 indicam aos Estados como, através da inclusão de
cláusulas nos Tratados que Afastam a Dupla Tributação, podem impedir o seu uso

87
Veja-se, A.Xavier, ob. cit. p. 367 e ss.
88
, Este Fórum foi criado no seio do Comité para os Assuntos Fiscais. O seu primeiro relatório data de
2000, tendo como título “Towards Global Tax-Co-operation”. Seguem-se Relatórios em 2001, 2004,
2006 e 2007, colocando o acento tónico na necessidade de “transparência” e de “intercâmbio de
informações”. Vejam-se, os documentos “Tax Co-operation: Towards a Global Playing Field. Progress
Reports”, disponíveis, em www.ocde.org.
89
Assim, Saldanha Sanches, ob. cit. ps. 43 e 46.
90
Que toma como referência a Convenção Modelo sobre a Dupla Tributação das Nações Unidas.

24
abusivo91. Tais cláusulas poderão reservar a aplicação do Tratado a sociedades
controladas directa ou indirectamente por residentes do Estado em causa ou, pelo
contrário, excluir expressamente, do âmbito do Tratado determinadas sociedades, ou,
ainda, condicionar a aplicação do Tratado ao facto de o rendimento em causa estar
efectivamente sujeito a tributação no outro Estado. Sugere-se, mais, o uso de uma
cláusula genérica que restrinja o âmbito de aplicação do Tratado a certas entidades
denominadas “pessoas qualificadas”. Tudo isto, procurando, não obstante, salvaguardar
os casos que possam considerar-se “de boa fé”, em que a localização do domicílio se
deveu a razões económicas e não visa obter benefícios fiscais resultantes do Tratado.
Ainda de acordo com os Comentários exarados no documento da OCDE, as cláusulas
anti-abuso dos Tratados poderão abranger determinadas entidades e determinados
rendimentos e estipular a proibição de aplicação do Tratado aos casos em que a
transmissão do direito a dividendos, juros e royalties esteja vinculado à obtenção de
taxas fiscais reduzidas, bem como, a regimes especiais concedidos por um Estado a
rendimentos externos após a assinatura do Tratado92.
Deve, porém, tomar-se na devida conta o quanto da reacção, de determinadas
entidades internacionais, ao funcionamento dos paraísos fiscais revela de preocupação
pelos riscos que tal funcionamento, fora de qualquer regulação ou controlo, importa
para o sistema financeiro globalizado, riscos que as sucessivas crises do Sudoeste
Asiático e da Rússia vieram agravar.
Atribuíram-se, a partir de 1999, funções de controlo dos centros off-shore a
organismos internacionais como o Fórum para a Estabilidade Financeira, doravante,
FSF93, que, todavia, não punham em causa a sua existência, curando, apenas,
mediante a elaboração de standard-settings, guide-lines, best-practices -conceitos
integrantes do emergente conceito good corporate governance - minimizar o que, “não
constituiria, em si mesmo, um perigo para a estabilidade financeira”, i. e., “uma ameaça
sistémica”, desde que essas jurisdições se sujeitassem a supervisão e aceitassem
cooperar com as autoridades das outras jurisdições”94.

91
Segue-se, sobre a problemática, A. Xavier, ob. cit. ps 403 e ss.
92
Ibid., p. 404.
93
Idênticas funções de controlo atribuíram-se ao Comité de Supervisão Bancária de Basileia no seio do
BIS, ao International Association of Securities Comissions (IOSCO), ao International Association of
Insurance Supervision (IAIS). Veja-se, Juan Hdez.Vigueras, ob. cit. p. 236.
94
A propósito das 15 iniciativas de política internacional destinadas a conter os efeitos negativos dos
centros financeiros off-shore, gizadas por peritos do FMI Juan Hdez. Vigueras, ob. cit., p. 132. O Autor
cita Vito Tanzi um alto quadro do FMI que, no ano de 2001, afirmaria, in, Globalization and the Work of
Fiscal Térmites, que os paraísos fiscais são uma das térmitas que roem as bases dos sistemas fiscais,

25
Com efeito, a ideia do controlo e supervisão dos paraísos fiscais resulta com clareza
da Declaração de Okinawa saída do encontro do G7, em Junho de 200095, onde se faz
referência aos documentos elaborados pelos FATF, FSF e OCDE, e se apela aos
Estados para que reforcem os canais de cooperação no combate ao branqueamento de
capitais e à concorrência fiscal prejudicial, e para que procedam à observância dos
parâmetros internacionais de boa governação96. Ao mesmo tempo, assinalam-se
medidas de protecção do sistema financeiro que abrangem recomendações às entidades
financeiras para que redobrem a atenção na realização de operações com jurisdições não
cooperantes ou com entidades que operam nessas jurisdições, alerta-se para a
necessidade de restringir ou, mesmo, de proibir operações financeiras com as
jurisdições não cooperantes. Em contrapartida, oferece-se auxílio, designadamente,
técnico, aos centros off-shore que pretendam seriamente comprometer-se com o
cumprimento dos parâmetros internacionais em referência.
No mês seguinte, O Conselho Executivo do FMI instaura um sistema de avaliação
dos 42 centros financeiros off-shore, de acordo com os critérios enunciados pelo FSF,
que se realiza em três módulos, de acordo com o grau de adesão do paraíso fiscal em
questão, auto-avaliação com auxílio a peritos, avaliação independente efectuada pelo
FMI e, finalmente, um análise global que abrange todas as vulnerabilidades e riscos. De
referir, que o resultado da avaliação só poderá ser tornado público com a autorização
das respectivas autoridades da jurisdição avaliada97.

É devida uma palavra às iniciativas no seio da União Europeia, doravante UE, que
traduzem uma reacção negativa às zonas off-shore.
Deve dizer-se, antes de mais, que não se poderá falar, em bom rigor, de uma política,
ou, mesmo, de um plano concertado da UE com vista ao “combate” aos paraísos fiscais
ou aos territórios com regimes fiscais claramente mais favoráveis. Na verdade, as
decisões normativas europeias certificam, sobretudo, a intenção de criar condições para
a concretização de um grande princípio que fundava a, então CEE, o princípio da livre
concorrência no mercado comum, condições que passam, em não pouca medida, pela
harmonização dos ordenamentos internos e das práticas quotidianas. E, que passam,

prejudicando, nos últimos anos, a capacidade de gerar receitas dos Estados e a justa distribuição da carga
fiscal entre as populações.
95
Actions Against Abuse of the Global Financial System , documento redigido pelos ministros dos
seguintes Estados: Alemanha, Canadá, EUA, França, Itália, Inglaterra e Japão.
96
Sobre o sentido do documento de Okinawa, veja-se, Juan Vigueras, ob. cit. p. 269 e ss.
97
Sobre este sistema de avaliação, veja-se, Juan Hdez. Vigueras, ob. cit. p. 273 e ss.

26
também, pela instituição de mecanismos de reacção a condutas, tanto no plano jurídico,
como no plano de realização prática que signifiquem impedir, limitar ou falsear a
materialização daquele princípio. Encontram-se, neste preciso sentido, justificadas as
medidas que, salvaguardando o essencial das diferenças entre os sistemas tributários
nacionais, instituem regras que protejam uma leal concorrência fiscal e, ao mesmo
tempo, previnam distorções económicas no seio da UE e atinjam os alicerces que
sustentam os edifícios fiscais dos Estados Membros.
No dia 1 de Dezembro de 1997, reconhecida pelo Conselho ECOFIN a necessidade
de “uma acção coordenada a nível europeu para lutar contra a concorrência
prejudicial em matéria fiscal…” tendente a “ …reduzir as distorções ainda existentes
no mercado único, evitar perdas demasiado importantes de receitas fiscais …..”98 é
aprovado o denominado “Pacote Fiscal” que abrange um documento intitulado “Código
de Conduta no domínio da Fiscalidade das Empresas”99, e dará origem a duas
Directivas, uma referente à fiscalidade dos rendimentos de poupança100 e outra relativa
à retenção na fonte aplicada aos pagamentos transfronteiriços de juros e de “royalties”.
O Código de Conduta, surgindo como soft law, um documento de natureza política, por
conseguinte, não vinculativo, tem como âmbito de aplicação a tributação das pessoas
colectivas, no âmbito da fiscalidade directa e prossegue o objectivo de contrariar as
medidas fiscais prejudiciais, nos domínios legislativo, regulamentar ou administrativo,
no espaço da UE. A qualificação como medida fiscal “prejudicial” é efectuada com base
em critérios101 que, vêm sendo afeiçoados à luz dos critérios da OCDE, mas que, na

98
Conclusões do Conselho ECOFIN, Jornal Oficial nº C 002 de 06/01/1998 p. 0001-0006.
99
Resolução do Conselho e dos representantes dos Governos dos Estados-membros, Jornal Oficial nº C
002 de 06/01/1998 p. 0002-0005
100
Esta Directiva, de 2003/48/CE de 3 de Junho, intenta contrariar a fuga à tributação dos rendimentos
das pessoas singulares no Estado da sua residência através de operações de deslocalização desses
rendimentos para Estados que oferecem condições fiscais particularmente vantajosas, o que é dizer, os
“paraísos fiscais” e prevê que, a partir de Janeiro de 2005, os Estados procedam à troca de informações
sobre as contas bancárias que sejam abertas pelos cidadãos europeus em Estado diverso da sua
nacionalidade. Tendo subjacente um acordo firmado no seio do Conselho ECOFIN, isentam-se da
obrigação de informar três Estados, Áustria, Bélgica e Luxemburgo que beneficiam de um período de
transição, durante o qual deverão aplicar a retenção fiscal na origem de 15%. Do montante apurado, os
referidos países retirarão 25%, sendo os restantes 75% enviados ao Estado Membro da residência do
beneficiário efectivo dos rendimentos em causa. O mencionado acordo foi severamente criticado, pela
Organização não Governamental ATTAC, por “ignorar os princípios da construção europeia como são a
não discriminação em razão da nacionalidade e a uniformidade das práticas fiscais na União Europeia” e
estar fundada numa razão censurável “ a vontade dos três Estados de competir com a Suiça e outros
paraísos fiscais na protecção dos agentes que defraudam os sistemas fiscais nacionais através do segredo
bancário e da opacidade financeira”. Veja-se Juan Hdez. Vigueras, ob. cit. p.s 300-1.
101
Medidas que prevejam um nível de tributação efectivo inferior ao normalmente aplicado no Estado em
causa são consideradas “potencialmente prejudiciais …” devendo ter-se em conta se essas medidas se
aplicam a não residentes ou a operações com não residentes, se são isoladas da economia interna, se não

27
opinião de alguma doutrina, são vagos e apresentam-se de contornos indefinidos102. Por
iniciativa das delegações portuguesa e espanhola foi inserido no ponto G uma “mola de
segurança”, que impõe a avaliação da medida fiscal em causa, tendo em atenção
finalidades de desenvolvimento económico da região específica onde tem lugar,
devendo atender-se às características e condicionalismos particulares das regiões
ultraperiféricas e das pequenas ilhas e à relação de proporcionalidade e de adequação
entre tais finalidades e a medida fiscal103. Ora, no documento em questão, mais se
estipula o compromisso dos Estados no sentido de não introduzirem novas medidas
fiscais prejudiciais e “desmantelarem” as existentes, bem como de procederem à troca
de informações em matéria fiscal. Alude-se, ainda, às futuras diligências da Comissão
quanto à elaboração de directrizes sobre a aplicação das regras relativas aos auxílios de
Estado104 e às medidas que respeitam à fiscalidade directa das empresas e apela-se à

correspondem a quaisquer actividade económica ou presença económica reais, se o método de


determinação do lucro relativo às actividades de um grupo multinacional se afasta dos princípios
geralmente aceites a nível internacional e, ainda, se as medidas carecem de transparência, sobretudo se a
sua aplicação pelas autoridades administrativas é menos rigorosa e transparente. Sobre este documento,
veja-se, Luz Ruibal Pereira, “Código de conducta para la fiscalidad de las empresas”, in, Noticias de la
Unión Europea, nº179, 1999, p. 105-110.
102
Neste sentido, A. Xavier, ob. cit. p. 366. A dificuldade de estabelecer critérios rigorosos neste domínio
que, afinal, possibilitariam a qualificação clara do que deve considerar-se um “paraíso fiscal” é, como se
sabe, antiga. O documento pioneiro na tentativa de identificar as jurisdições integrantes do conceito de
paraíso fiscal, o Relatório da Comissão de Peritos Independentes sobre a Tributação das Empresas,
conhecido como Relatório Ruding, de 1992, afirma, clarividentemente, que o conceito de “paraíso fiscal”
é essencialmente relativo, uma vez que basta que um Estado, relativamente a outro, não tribute
determinados rendimentos ou que estabeleça taxas de tributação substancialmente mais baixas. Veja-se, o
mesmo Autor, a p. 362.
103
Portugal e Espanha dispõem, ambos, como é sabido, de territórios abrangidos pelo regime jurídico
comunitário dos auxílios de Estado, as Zonas Francas da Madeira e de Santa Maria dos Açores (onde se
aplicam os regimes dos benefícios fiscais ao investimento de natureza contratual e dos benefícios fiscais à
interioridade) e a Zona Especial das Canárias, respectivamente.
104
Convém relembrar que a reacção às condutas dos Estados-membros que traduzam ofensas ao princípio
de leal concorrência encontra-se patenteada no art. 87º do Tratado das União Europeia, onde se proíbe,
genericamente, a concessão de auxílios de Estado, em particular, auxílios que assumam a forma fiscal. De
acordo com a jurisprudência comunitária, entende-se auxílio de Estado “ toda a medida destinada a
isentar, total ou parcialmente, as empresas de um determinado sector dos encargos derivados da
aplicação normal do sistema geral, sem que tal isenção se justifique pela natureza ou economia do
sistema”, Ac. TJ de 2/7/1974. Apud, A. Xavier, ob. cit. p. 374. O auxílio de Estado requer, de toda a sorte,
uma autorização prévia da Comissão que é condição de eficácia, devendo a Comissão proceder ao
reexame contínuo dos regimes de auxílios de Estado autorizados. Ibidem, p. 375. Cite-se, a decisão da
Comissão, de 17/2/2003, sobre o regime de auxílio concedido pela Holanda a favor das actividades de
financiamento internacional (artigo 15b da lei relativa aos impostos sobre as sociedades de 1969) que o
consideraram “ilegal em violação do nº3 do art. 88º do Tratado da CE” e “incompatível com o mercado
comum”, todavia “ tendo em conta a confiança legítima criada junto dos beneficiários e as circunstâncias
excepcionais … não há razão para proceder à recuperação dos auxílios pagos e o regime pode ser
mantido até o mais tardar 31 de Dezembro de 2010”, Jornal Oficial nº L 180 de 18/07/2003 p. 0052-
0066. Sobre a conformidade de regimes fiscais claramente mais favoráveis no território da UE e o modelo
fiscal comunitário, veja-se Luz Maria Ruibal Pereira, “La compatibilidad de los regímenes fiscales
privilegiados en la Unión Europea com los critérios contenidos en el Código de Conducta y las normas
sobre ayudas de estado”, in, Maria Teresa Soler Roch/Fernando Serrano Antón (Org.), Las medidas anti-
abuso en le normativa interna española y en los convénios para evitar la doble imposición internacional

28
cooperação dos estados na luta contra a evasão e a fraude fiscais. O Grupo constituído
para a aplicação dos princípios exarados no Código deu à estampa, em Novembro de
1999, um Relatório105 onde se enunciam 66 medidas “prejudiciais”.
De enfatizar que, após a comunicação da Comissão de 23 de Outubro de 2001,
relativa à criação de condições “Para um mercado interno sem obstáculos fiscais” e
com vista à criação de um Fórum Conjunto da UE, em matéria de Preços de
Transferência, foram desencadeadas negociações que tiveram como resultado a
aprovação pelo Conselho e Representantes dos Governos dos Estados Membros, em
27/6/2006, de um “Código de Conduta relativa à Documentação dos Preços de
Transferência para as Empresas Associadas na União Europeia (DPT UE)”106 com
intenção de “assegurar que a determinação dos preços de transferência é efectuada em
conformidade com as condições normais de concorrência”, como forma de “ajudar as
empresas a tirar maior partido das vantagens do mercado interno” e instituir “uma
abordagem comum à escala da UE relativa ás exigências de documentação” que, tendo
como referência as “guidelines” da OCDE possibilitará “maior transparência e
coerência”. No mês seguinte, é aprovado um “Código de Conduta para a Efectiva
Aplicação da Convenção relativa à Eliminação da Dupla Tributação em Caso de
Correcção de lucros entre Empresas Associadas” (refere-se à Convenção de Arbitragem
de 1990)107 na qual se recomenda aos Estados que, no respeitante aos preços de
transferência, apliquem as disposições da Convenção Fiscal Modelo sobre o
Rendimento e o Capital da OCDE, que serve de base às Convenções sobre Dupla
Tributação entre os Estados Membros.

Medidas de reacção contra os “paraísos fiscais” no ordenamento jurídico


português – as leis anti-abuso. Breve alusão.
Deve dizer-se, em primeiro lugar, que Portugal, não dispondo de um plano
concertado de luta contra os paraísos fiscais, aliás, como outros países, inscreveu nas

y su compatibilidad com el Derecho Comunitário, Madrid, 2002, p. 207 e ss..; também da mesma Autora,
“STJCE 13.1-2005 Ayudas de estado: proyecto de ayuda. Prohibición de ejecución de las medidas
proyectadas antes de que la Comissión adopte una décisión definitiva. Exacción parcialmente destinada a
financiar la medida de ayuda y establecida antes de que se aplique la ayuda”, in Crónica Tributaria,
nº124, 2007, p. 199-204.
105
Relatório Primarolo (nome da Presidente do organismo)
106
Jornal Oficial nº C 176 de 28/07/2006, p. 0001-0007,
107
Jornal oficial nº C 176 de 28/07/2006, p. 0008-0012.

29
suas leis internas medidas que directa ou indirectamente procuram “contrariar” ou
intentam “controlar” o seu uso abusivo.
Cumprindo obrigações plasmadas em instrumentos internacionais108, a Lei
portuguesa nº 52/2003 de 22 de Agosto e, depois, a Lei nº 25/2008 de 5 de Junho109,
reconhece a indispensabilidade de envolver, na prevenção e repressão de certa
criminalidade económico-financeira, como o branqueamento de capitais e o
financiamento ao terrorismo, as pessoas e entidades particularmente expostas, em razão
da sua actividade, à concretização dos processos integrantes daquela fenomenologia
criminosa. Quer porque têm contacto imediato com eles, quer porque são quem, no seu
âmbito de actividade, possui os conhecimentos e os meios técnicos adequados à
identificação e controlo de tais fenómenos. Estão nestes casos as entidades financeiras e
outras, como revisores e técnicos oficiais de contas, consultores fiscais, notários,
conservadores, advogados, mediadores imobiliários, quando intervenham em
determinadas operações, a quem impõe um conjunto de deveres (de identificação do
cliente e da operação, de recusa de realização da operação em determinadas
circunstâncias de risco, de comunicação de operações suspeitas ….), ao mesmo tempo
que se estabelece um sistema de fiscalização do cumprimento desses deveres.
Convém reafirmar, desde já, que, sendo o Estado português Membro da UE,
dispõe, tal como qualquer dos outros Estados Membros, de ampla discricionariedade no
que tange à construção do seu modelo fiscal - sabe-se que a matéria relativa à tributação
directa é domínio reservado aos Estados, como emanação da sua soberania - em
particular, compete a cada Estado, sem prejuízo dos princípios da “liberdade de
circulação de capitais”, de “liberdade de estabelecimento” e da “não discriminação”,
criar normas internas não integralmente conformes com as Directivas comunitárias,
quando está em causa prevenir e reprimir condutas criminosas, como a fraude fiscal, a

108
Nomeadamente, na Convenção do Conselho da Europa relativa ao Branqueamento, Detecção,
Apreensão e Perda dos Produtos do Crime de 8 de Novembro de 1990, na Decisão-quadro do Conselho
de 26 de Junho de 2001, relativa ao branqueamento de capitais, à identificação, detecção, congelamento,
apreensão e perda dos instrumentos e produtos do crime, na Decisão-quadro nº 2002/475 /JAI do
Conselho, de 13 de Junho, relativa à luta contra o terrorismo, nas Directivas nº 2005/60/CE do
Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Outubro, e nº 2006/70/CE da Comissão, de 1 de Agosto,
relativas à prevenção da utilização do sistema financeiro e das actividades e profissões especialmente
designadas para efeitos de branqueamento de capitais e de financiamento ao terrorismo. De referir,
também, as Convenções das Nações Unidas, a Relativa à a Eliminação do Financiamento ao Terrorismo e
a Relativa ao Crime Organizado Transnacional, bem como as 49 Recomendações do FATF/GAFI.
109
Cfr. com as Leis de Macau, a Lei nº2/2006 de 3 de Abril, Prevenção e repressão do crime de
branqueamento de capitais, BO nº14/2006, a Lei nº3/2006, de 10 de Abril, Prevenção e repressão dos
crimes de terrorismo, BO nº 15/2006, bem como o Regulamento Administrativo nº7/2006 de 15 de Maio,
BO nº20/2006, disponíveis em http://pt.io.gov.mo

30
corrupção, o branqueamento de capitais ou o financiamento ao terrorismo, bem como
combater práticas abusivas, nomeadamente, as que se inscrevam na elisão ou evasão
fiscais abusivas110.
Alberto Xavier afirma, com razão, que “é sobretudo contra a prática de
acumulação de rendimentos … que ocorre por via da constituição de uma sociedade-
base em países de fiscalidade privilegiada, com o objectivo de nela concentrar os lucros
do grupo empresarial, de modo a diferir a tributação no país de domicílio dos sócios
(pessoas singulares e colectivas) …. que se dirigiram inicialmente as legislações para
prevenir e reprimir, unilateralmente, o “abuso dos paraísos fiscais” (anti tax heaven
measures)”111.
A estratégia de prevenção e repressão empreendida passa por contrariar o uso
abusivo de certas estruturas societárias, bem como a sua instalação em refúgios fiscais,
quando não são utilizadas para fins ilícitos, como vem traduzido no documento
elaborado no seio da OCDE “Behind the Corporate Veil: Using Corporate Entities for
Illicit Purposes”, em 2001.
A doutrina denominada “piercing the veil of the corporate entity” - que, em
termos simples, significa “desconsiderar” a personalidade jurídica da sociedade cuja
constituição ou funcionamento tenha subjacente fins de fuga ao fisco, permite “tributar
os sócios sem aguardar necessariamente pelo momento da distribuição dos lucros
acumulados”, afastando, assim, a regra do diferimento do imposto - surge nos EUA e,
na década de 60, aplica-se às denominadas controlled foreign corporations e foreign
personal holding companies, como forma de combater a elisão fiscal112.
Independentemente do “modelo” adoptado, seja o denominado “entity approach”, que
pressupõe que a sociedade intermediária se encontra localizada em território de baixa
tributação e implica, por isso, a detecção dos mesmos territórios ( listando-os, de acordo
com o método da OCDE, ou determinando a taxa de tributação efectiva prejudicial),
seja o chamado “transactional approach”, outorgando relevância à natureza do
rendimento, normalmente, rendimento passivo ( juros, “royalties”, p. ex.), seja qual for

110
Note-se que os Estados deverão, em concordância com a jurisprudência do TJCE, cuidar para que as
leis internas não sejam, elas próprias abusivas, designadamente, desproporcionais aos fins a atingir. Em
conformidade, deverá estabelecer-se que a conduta a prevenir e reprimir revele “a intenção subjectiva do
contribuinte de obter uma vantagem fiscal estabelecendo-se noutro Estado Membro, se existe um
estabelecimento no Estado Membro que prossiga actividades económicas e disponha de existência
física”, Processo C-196/04, Caso Cadbury Schweppes, de 12 de Setembro de 2006, apud, A. Xavier, ob.
cit., p. 429. Veja-se, ainda, Calderón Cerezo, ob. cit. p. 254 e ss.
111
Ob. cit. p. 409
112
Veja-se, sobre o tema, A. Xavier, ob. cit. p. 410 e ss.

31
a domiciliação, modelo que, deve reconhecer-se, não surge, actualmente nas leis
internas, na sua forma “pura”, antes, numa forma de combinação dos dois referenciados,
a intenção que preside à estratégia subjacente é, como se disse, combater a elisão fiscal
internacional.
À teoria “da desconsideração da personalidade jurídica”, que suporta esta
estratégia de combate à elisão fiscal, vieram acrescentar-se as teses da “presunção legal
da distribuição da totalidade do lucro auferido pelas sociedades em questão” “fictive
dividend approach”, da “desconsideração do seu domicílio estrangeiro, presumindo-se o
seu domicílio no Estado da sociedade controladora ou coligada”, da “transparência
fiscal internacional das sociedades controladas e coligadas estrangeiras” “pass-through
entity”113, tudo com o fim de justificar e legitimar o ultrapassar da entidade
intermediária formal, a “aparente” pessoa colectiva estrangeira, para “atingir
directamente os seus sócios”114.
Deve dizer-se que alguma doutrina fiscal aconselha prudência na adopção de
qualquer dos critérios fundados na ideia da “desconsideração da personalidade jurídica
da pessoa colectiva”, argumentando que os regimes de combate à elisão fiscal, a que
conduzem, chamados “regimes CFC”, assumindo-se como contra-face da utilização
abusiva dos paraísos fiscais, “ consagram “uma verdadeira tributação extra-territorial,
pois atingem rendimentos de pessoa colectiva estrangeira, tratando-a como se fosse
mero estabelecimento estável destituído de personalidade jurídica”115

Portugal criou um conjunto de medidas anti-abuso116 no Decreto-Lei nº 37/95 de


14 de Fevereiro, com vista a minimizar a utilização de “paraísos fiscais” ou de
“territórios com regimes fiscais claramente mais favoráveis” pelas sociedades-base aí
localizadas. Consagra-se, no art. 60º do Código do Imposto sobre o Rendimento de
Pessoas Colectivas, doravante, CIRC, a tese da “transparência fiscal” das sociedades-
base instaladas em “paraísos fiscais” ou em locais com “regimes fiscais privilegiados”,

113
A. Xavier considera esta última doutrina a mais correcta cientificamente, ob. cit. p. 414.
114
A. Xavier, ob. cit. p. 415
115
A. Xavier, ob. cit. p. 416, onde cita Túlio Rosembuj, in, Derecho Fiscal Internacional, Barcelona,
2001, p.203. Este Autor considera que “ os “regimes CFC” representam uma ultraterritorialidade
ofensiva ….. dificilmente conciliável com as regras básicas da repartição das soberanias fiscais dos
Estados ….”. Em itálico, no texto.
116
Note-se que, também o Decreto-Lei nº 192/2005 de 7 de Novembro, contém medidas que visam
prevenir práticas de evasão fiscal como “a mudança da titularidade de partes sociais, antes da
distribuição de dividendos, de entidades, não residentes ou residentes, sujeitas a uma tributação mais
elevada, para entidades sujeitas a um regime mais favorável, que, de seguida, procedem à revenda das
partes sociais adquiridas”.

32
pertencentes a sócios residentes, possibilitando, deste modo, a tributação fiscal dos
rendimentos que elas aufiram, ainda que não se tenha procedido à distribuição dos
lucros. Tendo o legislador português optado por um sistema “misto” de identificação
dos “paraísos fiscais”, usando, quer uma “lista”, quer um critério material, quer a
combinação dos dois, que reconhece, contudo, ser necessário rever,
117
permanentemente , concorda-se com A. Xavier, que afirma que “conciliou
equilibradamente o jurisdictional approach 118 e o transactional approach, ao restringir
o campo de aplicação do mencionado art. 60º a empresas domiciliadas em “paraísos
fiscais” que neles obtenham “rendimentos passivos”, por “contraposição aos
“rendimentos empresariais” nela tipificados, que ficam, assim, fora do alcance do
mecanismo de imputação automática”119.
No que tange à questão da transferência de preços (ou da transferência indirecta de
lucros) entre empresas, Portugal não se furtou à influência dos documentos da OCDE e
da UE. O artigo 58º do CIRC veio conferir nova redacção ao velho artigo 57º que
consagrava, já, um regime relativo aos preços de transferência, justamente qualificado
como insuficiente e vago, “pondo em causa os princípios da certeza e segurança
jurídicas”120. A Lei nº 30-G/2000 de 29 de Dezembro, na senda dos critérios da OCDE,
institui a seguinte disciplina jurídica: tendo como base de sustentação o conceito da
existência de “relações especiais” entre empresas - em que se presume juris et jure que
uma entidade “tem o poder de exercer, directa ou indirectamente uma influência
significativa nas decisões de gestão da outra”121 - desde que se verifiquem os requisitos
enunciados, de modo exemplificativo, no nº4 do aludido artigo 58º, determina-se, nos
nºs 1º e 2º do mesmo artigo, uma vinculação das operações comerciais, e financeiras, no
plano contratual, “aos termos e condições substancialmente idênticos aos que

117
Como consta da Portaria nº 150/2004 de 13 de Fevereiro.
118
Acolhido pela OCDE em Comentário ao arttigo 1º da Convenção Modelo.
119
A. Xavier, ob. cit., p.s 418-9. O Autor, entende, porém, que os regimes de transparência fiscal
internacional são incompatíveis com a letra e o espírito dos Tratados contra a Dupla Tributação
celebrados por Portugal que seguem a Convenção modelo da OCDE, em particular, com o estabelecido
no art. 7º, por criarem o perigo de tributação dupla do mesmo lucro, ainda que detido por dois sujeitos
distintos, o investidor nacional e as sociedades estrangeiras. Isto poderá significar o “o exercício extra-
territorial dos poderes públicos, como a liquidação e a cobrança, ofensivos da soberania do Estado
estrangeiro”. O problema identificado pelo Autor colocou-se, também, em Espanha, face à Lei nº
43/1995, de 27 de Dezembro, tendo a doutrina entendido, maioritariamente, que o regime aí vertido de
“transparência fiscal internacional” era incompatível com os Tratados contra a Dupla Tributação. Ob.
cit., p. 422 e 426.
120
A. Xavier, ob. cit. p. 434
121
Fernando Rocha Andrade, “Preços de Transferência e tributação de multinacionais: as evoluções
recentes e o novo enquadramento jurídico português”, in Boletim de Ciências Económicas, XLV, 2002,
apud, A. Xavier, ob. cit. p. 439.

33
normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes
em operações comparáveis”. Portanto, em situações normais de mercado ou de ausência
de relações especiais, tendo em conta, nomeadamente, “as características dos bens,
direitos, serviços, posição do mercado, situação económica e financeira, estratégia do
negócio e demais características relevantes das empresas envolvidas, as funções por
elas desempenhadas, os activos utilizados e a repartição do risco” (verifica-se, aqui,
uma manifestação do princípio at arm’s lenth”)122. Acresce que o artigo 59º do CIRC
estabelece a inversão do ónus da prova quanto a despesas ou encargos apresentados por
uma empresa portuguesa referentes a dívidas ou pagamentos a entes localizados nos
territórios de “regime fiscal claramente mais favorável”123.
Em conformidade com as directrizes da OCDE que prevêem e recomendam a
regulamentação da celebração de Acordos Prévios no âmbito dos preços de
transferência (APP), e que o legislador português define no art. 128º-A do CIRC, a Lei
do Orçamento de Estado (para 2007) nº53-A/2006 de 29 de Dezembro atribuiu ao
Governo uma autorização com vista à consagração de um regime obrigatório de acordos
prévios na matéria, quanto aos métodos a usar pelos contribuintes, considerados lícitos.
No respeitante aos preços dos “serviços intra-grupo” e à “partilha de custos” que
constituem, como se disse supra, instrumentos apetecidos de “engenharia fiscal”124, são
consagradas regras, pela lei portuguesa, na Portaria do Ministério das Finanças nº 1446-
C/2001 de 21 de Dezembro. Pressupõe-se a inclusão “de uma margem de lucro
apropriada na contraprestação devida pelos serviços prestados intra-grupo”( nº4 do

122
De referir, que A. Xavier lança um olhar crítico sobre a presente norma, censurando o uso do critério
da percentagem de participação no capital social para determinar a existência das “relações especiais”,
considerando 10% percentagem demasiado baixa para que se possa afirmar a “direcção comum” às
entidades envolvidas na operação em análise. O Autor censura, também, a revogação da norma do
anterior artigo 129º do CIRC, que previa “ um meio específico de defesa do contribuinte” - o recurso
hierárquico a interpor pelo contribuinte para o Ministro das Finanças, com efeito suspensivo, da decisão
da direcção Geral das Contribuições e Impostos de proceder a uma correcção de natureza quantitativa dos
valores constantes das declarações de rendimento, com reflexos na determinação do lucro tributável. Tal
correcção encontra-se prevista no nº11 do aludido artigo 58º do CIRC, que se aproxima, aliás, do artigo
9º da Convenção Modelo da OCDE, onde se atribui às Administrações Fiscais o direito de reintegração
dos lucros, verificada uma transferência indirecta dos mesmos. Ob. cit. p. 441 e 447.
123
Os critérios que suportam a qualificação de “regime fiscal claramente mais favorável” vêm enunciados
no nº2 do aludido artigo: o território da localização constar de uma lista aprovada por Portaria do
Ministério das Finanças, o ente não ser tributado no lugar do seu domicílio, em imposto sobre o
rendimento, análogo ao IRS (imposto sobre o rendimento das pessoas singulares) ou IRC (imposto sobre
o rendimento das pessoas colectivas), o montante do imposto pago ser igual ou inferior a 60% ao imposto
a que o ente se sujeitava se residisse em Portugal.
124
Têm sido objecto de estudo pela OCDE, como se documenta nos Relatórios da sua Comissão de
Assuntos Fiscais.

34
artigo 12º)125 e vincula-se o que se denomina “acordos de partilha de custos” (no nº1 do
artigo 11º) aos princípios e disciplina integrantes das recomendações da OCDE sobre o
âmbito de aplicação do princípio “at arm’s length”126.
Ainda no âmbito das pessoas colectivas, aluda-se às medidas que o ordenamento
jurídico português estabelece para evitar a subcapitalização. O arttigo 61º do CIRC visa
combater o endividamento, no domínio de entes “especialmente relacionados”, como
instrumento de redução artificial do lucro tributável para efeitos de IRC127. Verificados
os requisitos legais, nomeadamente, a existência de “relações especiais” entre a
entidade credora e devedora e o “endividamento excessivo”, desencadeia-se o efeito “da
não dedutibilidade” dos juros referentes à parte do crédito considerada excessiva.
Uma palavra, relativamente ao imposto consagrado nos artigos 76º -A a C do
CIRC, correspondendo ao chamado, com razão, “exit tax”, que intenta proteger as
receitas fiscais do Estado português, aquando da deslocalização das mais valias de uma
sociedade para um território com “regime fiscal claramente mais favorável”, obrigando
a sociedade ao pagamento prévio do imposto sobre os potenciais ganhos de capital
(mais-valias latentes). Análoga obrigação impende sobre o contribuinte, nos casos de
deslocalização de estabelecimento estável de entidade não residente ou de transferência
de elementos patrimoniais afectos a esse estabelecimento.
Refira-se, ainda, a cláusula especial anti-abuso vertida no nº5 do artigo 16º da
Código de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS) que, visando
salvaguardar as receitas fiscais devidas ao Estado português pelo contribuinte singular,

125
Margem de lucro, avaliada segundo determinados factores, como sejam as alternativas económicas
disponíveis, a natureza da actividade da prestação de serviços, a sua relevância para o grupo, a vantagem
que ele retira dela, a eficiência do prestador dos serviços e a qualidade em que ele intervém, distinguindo
as situações em que actua como agente na aquisição dos serviços a terceiros por conta do grupo e aquelas
em que os presta directamente.
126
Prevê-se: (i) a inexistência de pagamento de qualquer prestação adicional; (ii) a exigência de uma
relação de equivalência ente o valor da contribuição imposta a cada uma das partes no acordo e o valor da
contribuição que seria imposta ou aceite por uma entidade independente em condições comparáveis; (iii)
a equivalência entre a quota-parte nas contribuições totais, que é da responsabilidade de cada participante
e a quota-parte que lhe for atribuída nas vantagens ou benefícios globais, resultantes do acordo,
equivalência essa, que, se não existente, deve dar lugar a uma compensação; (iv) a consideração das
contribuições efectuadas como despesa, que o sujeito passivo realizaria se desenvolvesse directamente as
mesmas actividades, ou adquirisse, numa operação não vinculada comparável, bens, direitos ou serviços
idênticos aos que são utilizados no âmbito do acordo.” A . Xavier entende existirem equívocos àcerca da
natureza jurídica do conceito de “contribuições” que conduzem a uma equiparação inaceitável - em
particular, pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo português - entre as ditas
“contribuições” ( as quais, respeitando a pesquisas científicas ou tecnológicas “são despesas de capital”
amortizáveis, dado que contribuem para a formação do resultado de vários exercícios sociais que, sendo
positivos, são sujeitos a tributação, conquanto diferida) e as “royalties” que são custos operacionais
correntes da empresa que os paga, e um rendimento para quem os recebe. Assim, ob. cit., p.s 465-6.
127
Sobre esta matéria, veja-se Saldanha Sanches, ob. cit.

35
estipula uma presunção juris tantum128, considerando como residentes no território
nacional, os portugueses que mudarem o seu domicílio para um território com “regime
fiscal claramente mais favorável”, no ano da mudança, bem como nos quatro anos
subsequentes.
Duas notas, a finalizar.
Para realçar o facto de o Estado português ter, recentemente, previsto o encetar de
negociações com vista à realização de Acordos de troca de informação sobre elementos
fiscalmente relevantes, que incluem a informação bancária, com as jurisdições que
integram a lista de “paraísos fiscais” que declararam a adesão aos princípios da
OCDE129. E, enfim, para referenciar a obrigação que, desde o mês de Setembro do
corrente ano130, impende sobre as instituições de crédito e sociedades financeiras de
informar a Direcção Geral dos Impostos até ao final do mês de Julho de cada ano sobre
as transferências financeiras cujo destinatário é uma “entidade localizada em país,
território ou região com regime de tributação privilegiada mais favorável ….”131, bem
como o dever cometido aos sujeitos passivos de IRS de mencionar na sua “declaração
de rendimentos a existência e identificação de contas de depósitos ou de títulos abertas
em instituição financeira não residente em território português”. A administração
tributária poderá aceder directamente aos documentos bancários “quando exista a
necessidade de controlar os pressupostos de regimes fiscais privilegiados de que o
contribuinte usufrua”132

Nota Conclusiva
Finalizada a referência ao que julgamos serem as medidas básicas integrantes de
eventuais modelos de reacção contra os “paraísos fiscais”, necessariamente incompleta

128
A presunção pode, contudo, ser ilidida, provando-se que a mudança se deveu a razões atendíveis.
129
Tais negociações são conduzidas pela direcção das Contribuições e Impostos “devendo ser dada
prioridade à celebração de acordos com as seguintes jurisdições: Ilha de Man, Jersey, Guernsey, Ilhas
Caimão, Andorra, Antilhas Holandesas, Aruba, Ilhas Virgens Britânicas, Turcos e Caicos, Antígua e
Barbuda, Gibraltar, Liechtenstein e Hong Kong”, Despacho do Gabinete do Secretário dos Assuntos
fiscais, nº 12047/2009, de 20 de Maio.
130
Lei nº 94/2009 de 1 de Setembro que aprova medidas de derrogação do sigilo bancário, bem como a
tributação a uma taxa especial dos acréscimos patrimoniais injustificados superiores a €100 000.
Limitamo-nos a referenciar este diploma sem procedermos à sua análise hermenêutica nem à sua
avaliação crítica.
131
Tal dever de informação, que “inclui a identificação das contas, o número de identificação fiscal dos
titulares, o valor dos depósitos no ano, o saldo em 31 de Dezembro ….”, não abrange as pessoas
colectivas de direito público, como consta da nova redacção dada aos nºs 2 e 5 do artigo 63º-A da Lei
Tributária.
132
Nova redacção do nº 1 alínea e) do artigo 63º -B da Lei Geral Tributária.

36
e, mesmo, fragmentária, importa fazer uma avaliação, ainda que brevíssima, do sentido
e da eficácia dessas medidas.
O que nos conduz, de volta ao essencial do problema que tentámos enunciar na
Introdução. Tudo está em saber “se” e “como” pode conceber-se um “modelo de
combate aos “paraísos fiscais”” à luz do paradigma económico que assenta, ainda, nas
leis do mercado ( que, entretanto se globalizou), essa realidade económica que possui
alguma coisa de mítica, que se auto-justifica, se auto-legitima, onde o capital, guindado
ao estatuto de global player133, exige liberalização máxima, inexistência de controlo e
de regulação com vista à maximização do lucro. Por outras palavras, se é possível
construir uma plano, forçosamente internacional, com consistência e dotado de eficácia
para “contrariar” ou “impedir” o uso dos paraísos fiscais, num mundo refém do mercado
financeiro, que se nutre da actividade especulativa, e que se auto-elegeu “dominus”,
“senhor”, capaz de se impor a (des)regulação, que lhe convém, como admitir a
existência de espaços “fora da lei”, de “refúgios” face ao eventual controlo ainda
fundado na soberania dos Estados, mercado financeiro que parece, mais, ambicionar a
determinar o lugar de cada um de nós, a nossa morada e o nosso destino134.
É bem certo que o modelo neo-liberal - que se funda, justamente na
“(des)regulação” e constituiu um poderoso motor de propulsão que alcandorou os
mercados financeiros, as bolsas de valores, os mercados de divisas ao lugar cimeiro da
economia globalizada, criadores e reprodutores de uma dinâmica própria subordinada à
finalidade “rentabilidade do capital” - sofreu forte erosão com as crises económicas de
finais dos séc. XX e a que se vivencia, hoje.
E, todavia….
Os refúgios para o capital que constituem os “paraísos fiscais” ou os “centros
financeiros off-shore” que, deve enfatizar-se, estão, em não pequeno número,
localizados135 na Europa, no interior da própria UE, ou dependentes de Estados
Membros (alguns integram a lista “cinzenta” da OCDE), ou possuem relações próximas

133
Tomamos a expressão de Juan Vigueras, ob. cit. p. 30
134
A economia persiste em fixar a “lei (nomos) da nossa morada (oikos)” . Veja-se, Paul Gilbert, “A crise
de sentido”, Brotéria, 1993, p. 441.
135
A “localização” dos paraísos fiscais deve, actualmente, ser entendida com as peculiaridades que
introduziram as vantagens da alta tecnologia da Sociedade da Informação, uma vez que o domicílio pode,
hoje, ser virtual….

37
com a UE136, são, na expressiva metáfora de Laurent Cordonnier, “estilhaços do dogma
liberal”137.
As propaladas medidas de “combate” aos paraísos fiscais exprimem a intenção
que continua a presidir-lhes, não exactamente suprimi-los, bani-los, mas, apenas,
“controlar” o seu funcionamento, minimizar o seu uso “abusivo”.
Trata-se, afinal, de tentar construir um espartilho de leis, regulamentos, práticas
administrativas que limitem os danos causados por uma realidade, naturalmente, avessa
a normas e regulação. Procura-se, enfim, puerilmente, “domesticar” um fenómeno, que,
no seu núcleo essencial, identitário e na sua teleologia é, exasperadamente, contrário a
regras e disciplina.
Por isso, atrevemo-nos a afirmar, sem qualquer veleidade premonitória, antes
numa previsão estribada na realidade económico-política actual, que a proclamação do
“movimento em direcção à proibição dos “paraísos fiscais”” no documento que
certifica as conclusões da cimeira do G20 do mês de Abril do presente ano, deverá ser
entendida, tão só, como o que é, na verdade, uma declaração programática que, quando
muito, permitirá eleger, certas jurisdições, menos poderosas, como “bodes expiatórios”,
transformados, assim, em exemplos, símbolos privilegiados da validade e da eficácia
desta Ordem Global que se pretende inaugurar.

136
São conhecidas as, aparentemente, intermináveis negociações da UE com a Suiça para minimizar os
riscos da regra estrita de sigilo bancário……
137
Usada, embora, num sentido mais amplo, in Le Monde Diplomatique, Edição Portuguesa, Abril de
2009, p. 8.

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