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'' MARECHAL ARTHUR DA COSTA E SILVA

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Ministro de Estado da Justiça
i PROFESSOR Luís ANTÔNIO DA GAMA E SILVA
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CONSELHO PENJTENCIARIO FEDERAL

PRESIDENTE: DOUTOR JOst! JúLIO GUIMARÃES LIMA

Conselheiros: Hélio Pinheiro da Silva, Elísio Rodrigues de Araújo, Abelardo


da Silva Gomes, Nestor Estácio Azambuja Cavakanti, Miguel
Jorge Sobrinho e Otto Mohn.

informante: Capitão Adonisede Martins Dantas.


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\ exatamente, os indivíduos ainda protegidos pela presunção de
inocência sejam os mais sacrificados com os xadrêzes policiais.
b) Pela instalação, naquele local, do Forum Criminal, fa-
cilitando os atos dos processos e estabelecendo o indispensável
-~ contato que asseguraria a tutela dos processados contra a vio-
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" lência ou a corrupção e permitiria observações diretas para a


individualização da pena.
O Primeiro Conselho Penitenciário e) Os definitivamente condenados, e sàmente êstes, ficariam
em estabelecimentos de cumprimento de pena. Falou-se na de-
do Distrito Federal mora da construção, quando o interêsse particular improvisava
arranha-céus. O Estado não pode o mínimo. O interêsse pú-
blico deve predominar.
ROBERTO LY.RA d) Fui voto vencido, quando se decidiu a construção da
chamada Penitenciária de Mulheres e do Sanatório Penal, em
Bangu. Estávamos começando pelo fim, quando as necessidades
1. Introdução. 2. Cândido Mendes de Almeida. eram e são ainda elementares. A população feminina não exi-
gia, então, a preferência. Acrescia o seguinte: as prêsas, que
3. Milciades Mário de Sá Freire. 4. Juliano Moreira.
podem ser tidas como criminosas prôpriamente ditas, eram trans-
5. Heitor Carrilho. feridas para a Penitenciária masculina em piores condições.
Devíamos começar pelos xadrêzes policiais. Há mais de 20
anos, escrevi: "Se eu ocupasse, por cinco minutos, a Chefatura
l, Fui Membro do Conselho Penitenciário do então Distrito
Federal de 1931 a 1955, o de permanência mais prolongada.
de Polícia mandaria soltar todos os presos recolhidos aos xadrê-
zes da Rua da Relação e das delegacias. Por mais graves que
tivessem sido os delitos daquêles homens, não seriam piores do
Com humildade profunda e solene contemplei meu nome que os dos responsáveis pela ignomínia da jaula. Nêles são
na sala de sessões do atual Conselho Penitenciário do Distrito postos simples suspeitos, e até parentes e testemunhas.
Federal, em Brasília. Propus, no dia da inauguração, que roeu e) A Penitenciária de Mulheres de Bangu fõra confiada a
retrato fõsse antecedido e sucedido, cronolàgicamente, por outros uma congregação religiosa. Impugnei esta .. concessão do ser-
para a galeria dos primeiros componentes do Conselho Peniten- viço público", embora disfarçada pela subordinação daquêle es-
ciário Federal. tabelecimento à Penitenciária Central e pela exigência da nacio-
O Conselho metropolitano completou 45 anos (1924-1969). nalidade brasileira das irmãs. O capelão era alemão, durante
Sle foi apenas deslocado. Aos nossos sucessores pertence a a guerra. Freiras puras, enclausuradas, dignas de respeito pelas
tradição, hoje sob sua guarda. Está em Brasília, e não no Es- intenções, além de inaptas, pela ignorância e pela inexperiência
tado da Guanabara, a história a prosseguir, Tentarei documen- do mal para operar na lama das degradações, seriam impotentes
tar o passado para encadeá-lo ao futuro. para as necessidades heróicas da disciplina. Os meios religio-
Como conselheiro e depois inspetor penitenciário, cansei de sos foram impotentes, como revelaram os crimes.
assistir ao lançamento de pedras fundamentais e de barracões, Evocarei as primeiras figuras, já canonizadas como patronos
inclusive na Covanca. Cova grande? No intuito de transmitir da Sociedade Brasileira de Criminologia. Tratarei de outros
dados sõbre os antecedentes de problemas ainda à espera de conselheiros históricos, principalmente Lemos Brito, noutro artigo.
solução, destaco algumas iniciativas e resistências em que consumi 2. Cândido Mendes de Almeida foi meu professor (5• ano
ilusões. de 1920) de Teoria e Prática do Processo Penal, correspondente
a) Pelo aproveitamento das antigas Casas de Detenção e à atual cadeira de Direito Judiciário Penal. Sob a direção do
Correção na rua Frei Caneca para processados, evitando-se que, Mestre, fundamos o Patronato Jurídico dos Condenados, Em
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1931, tive a glória de passar a colega do antigo professor do tudo. Fale com o chefe do meu gabinete" . Osvaldo Aranha
Conselho Penitenciário do Distrito Federal. explicou depois a um colega: "Vou lá discutir com êste homem!
Acompanhei, de perto, a vida e a obra de Cândido Mendes. Ninguém pode com aquêJe ren--ren--ren, ren--ren--ren. Se eu dei--
ll:le foi, no seu tempo, o maior idealizador e inspirador de re- xar, êle não para de falar". Mas o ren--ren--ren estava a serviço
formas carcerárias no Brasil. Devemos a êle urna criação bra-- público.
sileira, um Conselho Penitenciário - colegiado consultivo, plani- Durante a visita do professor chileno Israel Drapkin ao
ficador e fiscalizador, composto de juristas, médicos, membros do Conselho Penitenciário, Cândido Mendes relatou as conquistas
Ministério Público · e administradores carcerários, locado entre brasileiras em matéria de prisões. Foi uma fantasia patriótica
o Poder Executivo e o Poder Judiciário, para a solução dos em que a sombria realidade ganhava côres que estavam apenas
problemas com a visão unitária e integral das realidades. Sua nos olhos azuis de Cândido Mendes. Intervi: - Professor!
concepção do good time law ( encurtamento gradativo da pena Somos homens de ciência. Os chilenos são nossos amigos.
pela conduta durante seu cumprimento) apresenta traços originais Vamos dizer a verdade? Se não, Drapkin fica com o dever de
na sua especialidade, desde o de São Petesburgo, projetando idéias mentir também, patriàticamente. Sor_riram todos, e o mais ~e--
brasileiras mundialmente. liciado e aberto foi Cândido Mendes. Passamos a contar, m-
Mais do que sua ciência valia sua consciência das necessi- clusive Drapkin, defeitos e necessidades comuns na ânsia de
dades. Mais do que suas idéias, tantas vêzes orientadas pelas corrigi-los e satisfazê-las. Trocamos idéias e planos na emula-
circunstâncias, impunha-se a obstinação do impulsionador. Sua ção da sinceridade.
cultura era mais• auditiva e visual do que livresca. Vivendo, Nos pareceres e votos, Heitor Carrilho era benévolo e Migm:1
como êle, saindo, visitando, viajando, atuando, a que hora iria Sales também médico, era rigoroso. Cândido Mendes expli-
estudar? Serviu-se das humanidades recebidas à feição de sua cava; "Carrilho lida com criminosos (era diretor do Manicômio
época, resistentes como todo alicerce clássico. Se citávamos Judiciário) e Sales com as vítimas" ( era diretor do Instituto
uma obra de Lombroso, êle citava o próprio Lombroso. "Con- Médico Legal).
versei com Lombroso em São Petesburgo e êle me disse ... ,.
Curioso, observador, comunicativo, perguntador, tendo percorri- Como presidente do Conselho Penitenciário, Cândido Men-
do os sete inares, como se dizia, possuía a visão direta e total des exigia do liberado condicional, ao entregar-lhe a caderneta.
das superfícies. a palavra de honra de que nunca mais praticaria crimes. É
claro que nenhum prêso, ansioso pela liberdade, deixou de aten-
Era polemista terrível, um artista da controvérsia. Impre- der ao compromisso. Na primeira cerimônia de livramento, a
visível e fugidio. Se se via entre a espada e a parede, fugia que compareci ( 1931), · perguntei ao Mestre se êle, seria capaz
como aquêle desconcertante: "Esta é outra questão!º Discutía- de dar a palavra de honra de que não cometeria crime. ll:le
mos sôbre a pena de morte. ll:le era partidário dela. Estranhei sorriu e mudou de assunto. Hã nas prisões homens como nós
que um católico a aceitasse, quando o mandamento absoluto, e até melhores do que nós, os que se sacrificam por uma vida
como tôda ordem divina, proibia, sem exceções: - .. Não ma-- melhor para os outros, os que enfrentam tudo e a tudo renunciam
tarásl" E Cândido Mendes: "Esta é outra questão!" Perguntei: pelo amor da Pátria e da humanidade, os que são títeres dos
O Homem pode alterar o mandamento? Não irá para o inferno? desesperos da honra e da necessidade, os que são vítimas de
- A resposta foi a mesma: "Esta é outra questão!" E daí não convenções à mercê de circunstâncias.
sàía. Espalmava as mãos, sorridente, e passava a outro ponto.
Sua visão altruística foi prejudicada pela excessiva preocupa-
Era invencível como postulante de verbas e decisões do ção - habitual nos especialistas de sua geração - menos pela
Govêrno em favor de sua causa de sempre - o melhoramento segurança das prisões do que pela segurança da permanência
das prisões. Em visita do Conselho Penitenciário ao Ministro dos presos nas prisões. Era a obsessão da fuga que vinha de
da Justiça Osvaldo Aranha, estranhei a afirmação dêste, antes Bentham com seu modêlo panótico. Um problema de arquite-
de qualquer palavra de Cândido Mendes: "Pois não, Professor. tura e engenharia desvlava ós melhores batalhadores da essên-
Estou de acôrdo com tudo. Concederei logo tudo. Deferirei cia moral e social. Por outro lado, Cândido Mendes chegava
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bidade, altivez e independência, desde auxiliar de guarda-livr~s
ao exagêro de proibir faca e garfo no refeitório, fazendo-as a conselheiro de governos e parlamentos, abandonou uma cadei-
substituir pela colher infantil. Entretanto, existem armas na- ra no Senado e demitiu-se de Prefeito do Distrito Federal; de-
turais até para asfixiar e punhos para transformar colheres em fendeu a economia popular, tanto da jogatina na praça pública,
instrumentos contundentes. Mas, no seu espírito de reformador quanto das especulações na Bõlsa; recusou a toga de ministro
chamejava a angústia que o fazia sonhar com o "hospital de do Supremo Tribunal e a segunda presidência do Banco do Brasil;
almas". empenhou-se pela mudança da capital do País contra os seus
Cândido Mendes deve ser incluído na história do Direito sentimentos e interêsses pessoais. Não é preciso recordar o re-
Brasileiro. formador, o administrador, o codificador, o tratadista, o advoga-
Os oradores de turma não disfarçavam nas perorações notas do, chefe de sua classe. Reaparecendo no Tribunal de Apela-
prematuras de ceticismo. Mas o paraninfo Cândido Mendes, ção, depois de uma doença, mereceu a suspensão dos trabalhos
que contaminou ceri.tenas de alunos, invertia os papéis. Era êle para que os desembargadores pudessem cumprimentá-lo.
quem usava os tropos líricos. E sabia tecê-los na fluência de Guardo para sempre a emoção do meu primeiro encontro
uma oratória sempre igual. :Ble gostava de falar, de conversar, com Sá Freire no Conselho Penitenciário. Eu ia sentar-me ao
e só sabia calar, por emoção ou educação. Costumava repetir: lado do ex-companheiro de meu pai na Comissão de Finanças
"Sei que existem insônia e dor de cabeça por ouvir dizer". Como do Senado. Paralitico, Sá Freire era carregado por presos até
podia deixar de ser assim se enxotava do coração tudo que à sala de sessões da antiga Casa de Correção. Mas, logo
pudesse ameaçar a leveza do otimismo? compensava a paralisia física com o dinamismo moral e intelec-
Quando o vi morto, minha dor concentrou-se para pensar. tual, na luta pela liberdade e pela justiça.
Em poucos homens chocaria tanto a imobilidade como naquele Em carta de 11 de novembro de 1911 Sá Freire recordava
vibrante jovem de 73 anos. Só a morte reduziria um Cândido seus dez anos de serviços ao Conselho ao primeiro presidente
Mendes à inércia. Ninguém o conceberia indiferente aos neti- Cândido Mendes: "Foi, é certo, difícil a atuação, uma vez que,
nhos, já inquietos pelo sono tão demorado, procurando, nos vin- então, se formava o aparelho, procurando cultuar a liberdade
cos dos lábios infatigáveis, o sorriso de ternura, a palavra de e premiar os penados, que, pela sua regeneração, mereciam voltar
carinho. E ali estavam, na expectativa de um milagre, três ao convívio da sociedade".
gerações habituadas ao espetáculo de uma primavera exorbitante "Convenço-me, ainda uma vez, que muito vale trabalhar
e insubmissa. g}e viu a neve na cabeça e no coração de meni-
pela liberdade individual e, por pouco que se faça, nunca se é
nos de seu tempo de velho. Nêle, o nome foi bem pôsto. Cân-
esquecido".
dido semeador de ilusões no dinamismo da fé e da esperança. 1. Estreei no Júri com um caso que, para os peritos,
No edifício do Paço funcionou o Conselho Penitenciário. Ali
era de psicose-maníaco-depressiva. O laudo concluía pela irres-
êle montou uma de suas oficinas. Se tivéssemos o poder de ponsabilidade do réu. Na preparação para o julgamento fiquei
reprodução da vida, num espetáculo de luz e som, estaríamos a naquela aura obsessiva que Bulhões Pedreira chamava de "Es-
vê--lo, a ouvi-lo. Lá vem êle, sempre disposto, com as mãos
tado de Júri". Felizmente, os psiquiatras não nos examinavam.
e os bolsos cheios de papéis, com notas e esboços. Passos
ágeis e vivos, sempre apressados. Amável e cordial: "Des- No 5• ano do curso jurídico, estudei Medicina Legal com
culpem o atraso. Eu estava noutra reunião". E os olhos no Antônio Maria Teixeira que ministrava aulas práticas no antigo
relógio. "Preciso ir a outro lugar. Que temos hoje?" Contava Hospício, edifício depois adaptado para a Universidade. A casa
o que fizera, o que esperava. Projetos, cuidados, providências. passou dos loucos para os estudantes. Não acredito nestes sem
E abria a sessão. Que temos hoje, Cândido Mendes? Temos a febre de paixão e rutura. Fui aluno da hoje Faculdade Na-
)
nossa saudade, nossa gratidão e, para honrá-lo, nossa ansiedade cional de Medicina ( 1• ano) . Recebi ensinamentos de Juliano
por um Brasil autenticado pela soberania, pela liberdade, pelo Moreira, Júlio Pires Pôrto Carrero, Afrânio Peixoto, Henrique
progresso, pela justiça social e pela solidariedade humana. Roxo.
Estudei, como sempre, para só falar do que entendo em
3. Milciades Mário de Sá Freire foi um padrão humano incessante atualização. Meus conhecimentos a respeito da
pelo espírito público e pela coragem cívica, numa vida de pro-
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psicose-maníaco-depressiva e as leituras de emergência não sa- zando e analisando a teoria, expondo a prática, resolvendo a "'' ""'"" Fddec•\
tisfaziam ao empenho de fazer boa figura no júri. Amor próprio problemática médico-legal. Assim faz quem traz a cultura na
ou amor ao dever? Cumpria-me honrar a adversidade de um própria cabeça e não a subtrai, nas emergências, dos cofres que
"rival da lei", isto é, um dêsses advogados prestidigitadores que guardam a cultura dos outros: as estantes. E tudo simples,
convertem palavras em alvarás de soltura. Na questão êle tinha claro, acessível, como a voz da ciência. Se o ouvinte médio
a seu favor o parecer médico-legal. não entende o cientista, então êste priva a palavra de sua fun--
Pedi esclarecimentos psiquiátricos a Juliano Moreira, me,- ção. Será língua morta. Fala dificil quem não aprendeu o
tiço que ensinava a arianos na casa dêles. Juliano era, ao
bastante para passar as essências no liquidificador pedagógico.
Não é preciso "vulgarizar", como as "seleções", três vêzes fu-
mesmo tempo - coisa rara! - o mais popular e o mais sábio de
nossos psiquiatras. :E:le preferia a velha designação de alienis• nestas, porque desvirtuam, porque mercantilizam e porque des-
ta. Recordo-o de braços cruzados à altura do peito. Olhos nacionalizam.
exorbitantes. . . Nêle, êste lugar comum servia à realidade ana- Nossa amizade, constantemente praticada, só era efusiva na
tômica. Arregalavam-se na transfixação onividente, como a franqueza das divergências. Poupávamos os gestos e as pala-
"observar". Concordava sempre com o "paciente", balançando, vras do travesti galante, de corpo presente e alma ausente, em
resolutamente, a cabeça. Juliano indicou-me a tradução espa- que os hipócritas procuram parecer bonzinhos e amávet~. Ma:,,
nhola do livro de Bleuler. O mestre não pensou em minha falta nós nos queríamos muito, na recíproca sinceridade até dos cho-
de base e, sobretudo, na concepção sectária e na terminologia ques. Nestes entravam apenas idéias, aspirações, meios, modos,
peculiar do psiquiatra alemão. Então, eram italianas e francesas rumos e jamais pessoas. Entre homens prôpriamente ditos os
as fontes dos bacharéis em Medicina Legal. Recorri a outros compromissos sentimentais não arrendam a varonilidade. Eu
especialistas. Mas, certamente, seu excesso de saber não per- costumava dizer--Ihe, depois das incessantes discussões, até no
mitia que eu aproveitasse tantas luzes. "manicônibus", como êle chamava o automóvel do diretor do
Dizia-se que Juliano Moreira votara a favor de todos os Manicômio .Judiciário: - Amizade, Carrilho, precisa de adubo,
pedidos de livramento condicional, indulto e comutação. Como e adubo bom é... Lamento não poder escrever a palavra vigo-
relator, não emitira um só parecer contrário. Certa vez, depois rosa e honesta, limitando-me a reticências, eufemismo gráfico.
de mencionar, com a habitual lisura, os péssimos antecedentes Quando Carrilho adoeceu para morrer, eu não podia ver o
e conduta carcerária do liberando, que não dispunha de trabalho, desmoronamento daquele "carrilhão". Covardia? Egoísmo? Era
a gravidade do crime e tudo o mais no mesmo estilo da pen- assim que o chamava. E com despercebida felicidade, tais as
curiosidade, hesitou. Cândido Mendes perguntou: "Qual o seu convibrações para a alegria, a bondade, a esperança que lhe de-
parecer"? E Juliano: "Sou a favor. É mais desgraçado do que vem doentes, alunos, subordinados, colegas, amigos. Fugi à sua
os outros". convivência. Minha revelia no Conselho Penitenciário, imposta
5. Como obter, pelo menos, trabalhos assimiláveis sôbre pela querida incapacidade de simular e dissimular, facilitava a
o período médico-legal do quadro nosológico? É o único que separação. É que os encontros com Heitor Carrilho passaram
interessa â responsabilidade. a ser um mal para ambos, sobretudo para êle. Da última vez,
no meio da rua, nós nos confundimos no estatelamento e na
O amigo, que me apresentou a Heitor Carrilho numa livraria, gagueira interjeitiva. Foi um prodígio de comunhão, como se
estava longe de imaginar a oportunid_ade daquela aproximação. eu adotasse "a doença até na disartria e na atonia. Repeti, não
Começamos a conversar. Carrilho relembrou que devia o seu sei quantas vêzes, abraços, apertos nas mãos, nos braços. Sua
primeiro emprêgo ao meu tio e sogro Tavares de Lyra, ex-Mi- cabeça caiu sôbre o meu ombro. :E:le soluçava. E eu repre-
nistro da Justiça, de quem falou reconhecidamente. Gratidão. sava os lábios, mas a torrente pulou pela janela dos olhos. Não!
Diante de meu pedido de esclarecimento e informação, alegou Não pude mais. Como suportar aquêle sofrimento que extre-
falta de autoridade. Modéstia. Dada a minha insistência, mava a aflição ao aflito, no desespêro do autodiagnóstico? Fal-
deu-me uma aula. Sabedoria. Grato, modesto e sábio, e â tou-me, talvez, a coragem (ou a insensibilidade?) e não a ternura,
primeira visita. Carrilho falou sôbre psicose, ali mesmo, sinteti• sempre desajeitada e pudica, por isso que sincera, e não a devo-
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ção de que lhe dei provas dificeis em horas incertas. Ternura Noutro lugar, estudarei os principais aspectos da obra de
não é mímica, não é verbo. Há mais amor na sutileza e no Heitor Carrilho, como professor, clínico, perito, legislador, "juiz",
recato de uma ação de defesa, assistência, desagravo do que em administrador, doutrinador. . . Escolherei, aqui, alguns pontos
tõdas as poesias, em todos os discursos glicosados. Os que mais familiares à minha observação.
usam o sentimento apenas para alivio glandular não passam da
liturgia, da convenção, do desabafo. Quando cedemos a subs- Levei os meus alunos várias vêzes para ouvir suas aulas
tâncias afetivas estas aprofundam a sua autenticidade até a dieta práticas no Manicômio Judiciário e considerava-me, com orgu-
das aparências e o sacrifício das incompreensões. Os insensí- lho convicto, mais um discípulo. O legislador trai-me na co-
veis, ou os sensíveis para o assomo epidérmico, êstes transitam autoria do anteprojeto do Código Penitenciário. O juiz, em
de "um minuto de silêncio" ao ruído do tempo profanado. Para sentido magno, operando no Conselho Penitenciário, emancipava-
mim era insuportável a ruína daquele cérebro que brilhou tão se, a meu ver demais, pois se, como dizia, "não tinha compro-
densamente e tão perdulàriamente serviu. Heitor Carrilho era missos com a lei" na ordem funcional, mantinha com a coletivi-
inteligente, também, de coração, para receber a mensagem que dade, e cumpria, os deveres de indivíduo e de cidadão. Seu
o melhor dos emissários murmurou aos seus ouvidos de confiden-- drama era o conflito entre tais deveres e os do cientista, os do
tes nato: ":Sle não tem coragem de ver você assim". Era sofrer e ser humano que, na sua consciência, prevaleciam ao contraste
fazer sofrer. Justamente a superexação do sentimento repelia o profundo, minucioso, sincero. Do trabalho O SUIC!DIO FRUS-
trivial mundano, evitando o paroxismo emocional que os bem TRO E A RESPONSABILIDADE DOS CRIMINOSOS PAS-
educados, os convenientes "reparam" como fora do "tom". As SIONAIS (Rio, 1935) consta uma das minhas réplicas a Heitor
reminiscências pessoais ainda estão no coração. O intento crí- Carrilho. Vêde, também, os ARQUIVOS DO MANICôMIO
tico há de sofrer a contaminação sentimental. O tempo não su- JUDICIARIO DO RIO DE JANEIRO, 1939.
primirá, porém serenará e organizará no fundo da alma as lem-- Do administrador diz o Manicômio Judiciário, que êle vin-
branças hoje exaltadas e caóticas. Mas a agudeza da saudade culou à melhor projeção internacional de nossa Pátria. Nao
não prejudica cs traços que, desde já, comportam a elaboração realizou o seu sonho - as novaS instalações, a casa de custódia
histórica. e tratamento - mas parecia satisfeito com os últimos cuidados -
Em aulas e colóquios, em seminários e pesquisas, em sessões a assistência social, a liberdade vigiada, o colegiado de peritos
e até na ~apa do órgão oficial da Sociedade B'rasileira de Cri- para as· trocas de estudos e pesquisas. Do doutrinador, ouvido
minologia, na tribuna da Sociedade Psiquiátrica, Neurologia e com respeito nos congressos internacionais, e seguido entre nós
Medicina Legal, venho transmitindo a colheita de uma intimidade como o traço de união entre a Medicina e o Direito, está, em
que mais contribuiram para a minha fé no ser humano e a minha essência, na coleção dos Arquivos do Manicômio Judiciário e na
esperança na sociedade. Êle não dividiu a personalidade e do órgão oficial da Sociedade Brasileira de Criminologia ( 2• e
adotou o mesmo padrão, na casa e na praça, como homem par- 3<' fases) .
ticular <los mais felizes e devotados que conheci, e como homem Posso afirmar a evolução de Carrilho para maior flexibili-
público, um pouco descrente e, por isso, transigente. Entretan- dade ante a influência do fator social, não sã da criminalidade,
to, conservou o ideal, na pureza de suas inquietações científicas como da prôpria loucura, e a tomada de conhecimento do conflito
e de seus anseios humanitários. filosófico criado pelo determinismo biológico. Êle não estava
Devo recordar a prova de superioridade e lealdade que me longe de distinguir imputabilidade de responsabilidade, o bioló-
deu Heitor Carrilho, ao publicar meus pareceres e artigos contra gico e psicológico do social e jurídico.
sua orientação. Êle sabia que a variedade dos caminhos e das Eram cada vez mais reduzidas as faixas de divergências e
marchas aplicava--se ao mesmo fim social e humano. Por isso, já nos abraçávamos no combate comum ao tecnicismo jurídico e
a 1 de novembro de 1948, oferecia-me uma fotografia do Mani- às desvirtuações do positivismo.
cômio Judiciário com esta dedicatória: "Para Roberto Lyra, esta
fotografia de uma Casa que tem merecido a sua melhor simpatia
e o seu sincero aprêço".

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