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IMAGINÁRIO E REPRESENTAÇÕES MÍTICAS: AS BELAS

PALAVRAS (AYVU PORÃ) DOS CANTOS DIVINOS (MBORAI)


GUARANI MBYA

ALZIRA LOBO ARRUDA CAMPOS1


UNISA

MARÍLIA GOMES CHIZZI GODOY2


UNISA

RAIMUNDA MARIA RODRIGUES SANTOS3


IFRR

____________________________________________________________

RESUMO: Os discursos poéticos dos mborai (cantos) Guarani Mbya, registrados em CDs
lançados por grupos de canto e dança, são representativos do imaginário cultural desse povo,
comprometido com sua concepção mitológica. Os conteúdos sagrados desses cantos estão
ligados às divindades e permitem entender a dimensão espaço-temporal da cultura Guarani
Mbya. Neles, as experiências históricas são retratadas como reais, e o mito origina-se enquanto
expressão fundacional da vida e dos homens. As narrativas míticas dos cantos, concebidas como
as “belas palavras” (ayvu porã), são parte integrante do “belo saber” (arandu porã) e
encaminham essa discussão, que tem por foco a significação das identidades míticas divinas
registradas nas letras desses cantos.

PALAVRAS-CHAVE: canto (mborai) Guarani Mbya; cosmologia; discurso mítico; grupo de


canto-dança (mborai-jeroky); teogonia.

ABSTRACT: The poetic discourses of the Guarani Mbya mborai (chants), which were recorded
in CDs released by chants and dance groups, are representatives of this people’s cultural
imagery, compromised to its mythological conception. Through the sacred contents of the chants,
always linked to praised deities, we can understand the space-time dimension of the Guarani
Mbya culture, in which the historical experiences are portrayed as real, and the myth arises as a

1
Livre-docente em Metodologia da História pela Universidade Estadual de São Paulo (UNESP); Doutora
e Mestra em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); docente do Mestrado Interdisciplinar
em Ciências Humanas da Universidade de Santo Amaro (UNISA). Email: loboarruda@hotmail.com .
2
Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP); Mestra em Antropologia
Social pela Universidade de São Paulo (USP); docente do Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas
da Universidade de Santo Amaro (UNISA). Email: mgggodoy@yahoo.com.br .
3
Doutoranda no Programa de Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS);
Mestra em Educação, Administração e Comunicação pela Universidade São Marcos (UNIMARCOS-SP);
Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Roraima (IFRR). E-mail:
raimundarodrigues@ifrr.edu.br.

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foundational expression of life and mankind. The mythical narratives of the chants, conceived as
ayvu porã (“the beautiful words”), are seen as an intrinsic part of the “beautiful knowledge”
(arandu porã) and lead to this discussion, which focuses on debating the signification of those
divine mythical identities registered in the words of the chants.

KEYWORDS: Guarani Mbya chant (mborai); cosmology; mythical discourse; chant-and-dance


group (mborai-jeroky); theogony.
____________________________________________________________

Introdução

A música e o sagrado — sejam as festas, os cultos, as adorações,


as preces ou os cantos rituais — têm sido avaliados como expressões
centrais dos universos simbólicos indígenas, historicamente registrados
por meio de formas sonoras, que permitem um contato religioso com
divindades diversas (TERRIN, 2004). Entre os domínios do som e de seus
sentidos míticos, destaca-se o cenário cultural do povo Guarani, que
ocupa áreas do Sudeste, Sul e Centro-oeste do Brasil, além de regiões da
Argentina, do Paraguai e do Uruguai. Dentre os seus três subgrupos em
território brasileiro, os Kaiova, os Nhandeva/Xiripa e os Mbya (família
linguística Tupi-Guarani, tronco Tupi), são os últimos o foco deste
estudo. As manifestações culturais destes foram influenciadas pelas
práticas missioneiras no Brasil colonial, dentre as quais destaca-se a
música enquanto eixo central da sociabilidade indígena (MONTARDO,
2002; STEIN, 2009; CASTAGNA, 1997).
O presente artigo reflete sobre a religiosidade e as visões de mundo
expressas em cânticos do subgrupo Mbya, que se distingue dos demais
por ter conseguido se manter isolado e arredio ao contato com os
colonizadores por mais de um século após o descobrimento. Como viviam
no interior das matas da América do Sul, os Guarani Mbya eram chamados
de ka’aygua, “os que habitavam as florestas” (GODOY, 2003; LITAIFF,
2004, p. 18).
A população geral dos Guarani em 2010, segundo o Conselho
Indigenista Missionário, era de aproximadamente 225 mil pessoas4, das

4
O ensino musical sempre foi intenso durante a permanência dos jesuítas no Brasil, desempenhando forte
papel no ministério com os indígenas. Da insistência nessa arte surgiriam índios capazes de reproduzir todas
as manifestações musicais básicas do culto cristão: os nheengaribas, ou “músicos da terra”, como seriam

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quais 67.523 habitam áreas no Sul, Centro-oeste e Sudeste do Brasil


(IBGE, 2010). No Estado de São Paulo, os Mbya compreendem 4.557
pessoas (IBGE, 2010), população essa distribuída em 19 aldeias.
A música e a dança ocupam um lugar central na cosmologia
Guarani, pois traduzem o caminhar real, esforçado, livre, sem alienação e
sem opressão, baseado no encontro entre a boa terra Guarani e a
dimensão de uma “terra sem males” (Yvy Mara E’ỹ). Essas manifestações
se impõem na cultura com uma discursividade própria, como expressão
de sua totalidade (MELIÀ, 1989). Tal fenômeno inscreve-se na proposta
de participação e compartilhamento que grupos Guaranis de canto-dança
(mborai-jeroky) vêm projetando na sociedade, na tentativa de
constituírem não só um cenário coeso de espetáculo e representação da
cultura, mas também um recorte da realidade, situado no
entrecruzamento do tempo vivido (ete: "real"; aỹ: "agora") com o tempo
sagrado (yma: "antigo").
Os mborai, objeto da investigação aqui apresentada, poderiam
desdobrar-se em diferentes temas, tais como: a “terra sem males”, os
rituais e os objetos sagrados, a preparação de guerreiros e guerreiras
(xondaro, xondaria), os animais de estimação de Nhanderu (mymba’i) e
as coisas (mba’emo) da natureza, como frutos, árvores e animais. (GODOY
e SILVA, 2014, p. 22). Contudo, o olhar deste artigo recai sobre as
narrativas míticas dos cantos, concebidas como as “belas palavras” (ayvu
porã), as quais compreendem o “belo saber” (arandu porã) e fornecem a
base para esta discussão a respeito do significado, para os Mbya, das
identidades míticas divinas, registrados nas letras dos cantos (mborai).
Entende-se que o mito se produz como um discurso fundador e se
recria poeticamente, ritualizando-se e expressando-se de forma histórica
e material (BORGES, 1998, 2001 e 2002; HUIZINGA, 1971). Segundo essa
vertente, a mitopoesia emerge “como uma unidade cultural, poética e
discursiva bastante complexa, na qual se intercruzam elementos do
fantasiamento, da personificação simbólica de noções morais e sociais,
de racionalização sobre a origem e a existência do mundo e do homem”
(BORGES, 1998, p. 174).

conhecidos entre os portugueses. Nas missões do Sul, no século XVIII, eles alcançaram um estágio
extraordinário de desenvolvimento, construindo seus próprios instrumentos e executando música europeia
de relativa complexidade técnica (CASTAGNA, 1997).

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Perfilhadas essas análises e diante da complexidade desse


fenômeno, as experiências aqui retratadas provêm do convívio direto e
indireto das pesquisadoras com os Mbya das aldeias de São Paulo
Tenonde Porã, Krukutu, Tekoa Pyau, Tekoa Ytu, Rio Silveira e Boa Vista
(estas últimas do litoral paulista) nos últimos decênios. Vivência essa que
nos permite afirmar, conforme será demonstrado no corpo deste
trabalho, que os cantos (mborai) são mitopoemas que reproduzem o
imaginário social indígena, expresso como discurso oral. Eles refletem a
tradição ao constituir, por si próprios, um material-memória e um
inventário cultural. A inspiração divina exprime a autoria imemorável com
que se traduz a palavra rezada (poraei, mboraei). Ouve-se com muita
frequência o termo arandu porã, a designar a “sabedoria sagrada”, como
uma expressão própria dos mborai.

Cosmologia Guarani Mbya: fundamentos das “belas palavras” (ayvu porã)

As produções etnológicas Guarani Mbya reiteram a existência de


uma cosmologia que considera o universo um ideal de busca contínua,
compreendendo-o como a moradia dos deuses, como um lugar de
imagem verdadeira, de conhecimento e de beleza primordial, sendo o
cosmo denominado Yvy Mara E’ỹ (“terra sem males”). Essa concepção
constitui o pano de fundo do qual se origina um tipo de profetismo que
se impõe como linguagem divina na ordem discursiva religiosa. Trata-se
de um contexto cultural que legitima a importância dos messias enquanto
figuras representativas do grupo étnico e defensores de um ideal comum,
cujo objetivo é reforçar o sentimento comunitário e fazê-lo progredir
continuamente (SCHADEN, 1969, p. 248). As condições proféticas aludem
a um movimento expansivo e progressivo em torno desse ideal e de sua
dinâmica evolutiva, e a criatividade se expressa no seu próprio curso
evolutivo (CLASTRES, 1990). Essa realidade se configura pelo termo
oguero-jera, que compreende o exercício de abrir, de criar no curso de
sua própria evolução, de desdobrar-se em seu próprio desdobramento
(CADOGAN, 1959, p. 17).
A etnologia registra essa dimensão teológica com relação à
condição subjetiva em que a vida se expressa na terra. A prevalência

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cosmológica e social implica uma concepção do sujeito divino que, neste


contexto histórico, subentende uma dinâmica profética através da qual
os indivíduos se tornam responsáveis por um devir sonhado e pela busca
incessante do além (SCHADEN, 1974). Isso implica reconhecer que, para
os Guarani, a condição humana, em sua incompletude, corresponde à
constituição histórica da era da imperfeição, designada como teko axy
(“modo de ser imperfeito”). Longe de ser uma forma abstrata de estar no
mundo, esse modo de ser indica a necessidade de uma memorização, de
um compromisso — e os poderes expressivos das figuras divinas
encaminham, hierárquica e progressivamente, esse misticismo Guarani.
Os deuses destacam-se por uma sabedoria própria, e não por um modelo
de pessoa justa e boa (SCHADEN, 1969, p. 123).
A dinâmica descrita toca em um ponto crítico da cultura ao incluir
um Ser Supremo no panteão Guarani. A esse respeito observa-se que, no
conjunto dos seres superiores, distingue-se uma entidade de existência
eterna, de natureza profundamente ética: um ser onisciente, beneficente
e onipotente, criador do universo e da humanidade, autor dos preceitos
morais, que recompensa os bons, castiga os maus e que, acima de tudo,
mantém uma relação vital com os negócios humanos, sendo, por isso,
objeto de preces, sacrifícios e cerimônias formais (SCHADEN, 1969, p.
107-108). Na teogonia Mbya, destacam-se quatro divindades: Nhamandu
e sua esposa Jaxuka, deuses do sol; Tupã Ru Ete e sua esposa Para, deuses
da água, do trovão e dos raios; Karai Ru Ete e sua esposa Kerexu, deuses
do fogo e donos do ruído e do crepitar das chamas; e, por fim, Jakaira e
sua esposa Ysapy, deuses da neblina, designados como deuses da
primavera (CADOGAN, 1959; LITAIFF, 2004).
Cabe destacar que a palavra divina revela a primazia do universo
cosmológico sobre o social, do qual é princípio e destino final. Por isso,
escutar e entender as palavras divinas são os meios de realização do ser,
de construção da história. Como ensina Melià (1989, p. 306), para os
Guarani, "a palavra é tudo e tudo é palavra". Essa afirmação confirma-se
nas expressões nhe’e e ayvu, que indicam a palavra, a fala e a língua como
porções divinas da alma: alma-palavra e palavra-alma. Nhe’e é o espírito
que os deuses enviam para que se encarne nas criaturas prestes a nascer
(CADOGAN, 1959). Para completar esse quadro, deve-se observar que ery
é o nome através do qual se origina a alma, que se constrói na vida como

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fluxo da realidade do ser (MELIÀ, 1989). Entende-se, dessa forma, que,


para os Guarani, toda vida compromete-se miticamente por meio das
experiências da palavra e do dizer enquanto atos de representação,
levando-se em conta que a alma “no es una parte del ser, sino la vida
misma como un todo” (CHAMORRO, 1998, p. 49).
A importância da palavra ganha ênfase ritual própria nas cerimônias
mborai-jeroky (canto-dança), momento em que os participantes dirigem
as suas ações e entram em contato com os seus deuses. Nesses rituais,
destacam-se as produções musicais, categorias conceituais do universo
e dimensões sonoras da vida Mbya (STEIN, 2009), que configuram uma
produção poética expressiva na qualidade de mitopoemas. Os criadores
das letras afirmam que se trata de uma ação mboypy (“fazer-se mito”),
conceituação corroborada pela Antropologia: “Para os Guarani, linguagem
poética é linguagem dos deuses, dos pássaros, das árvores, da cachoeira,
da terra, do sol. Linguagem poética e musical. Ñe’e porã, as famosas belas
palavras, então, são poesia e música” (MONTARDO, 2002, p. 153).
Seguindo nessa perspectiva, apresenta-se, na sequência, uma
leitura de cantos Guarani, visando a discutir a significação das
identidades míticas divinas para esse povo. Antes, porém, é relevante
expor a trajetória do movimento cultural nas comunidades Guarani Mbya
que resultou na coletânea de cantos de onde foram retirados os textos
para análise.

Mborai-jeroky (grupos de canto-dança): CDs e atuação intercultural

A criação de CDs em aldeias Guarani Mbya decorreu de um


movimento designado Memória Viva Guarani, iniciado na comunidade
Tenondé Porã em 1998. Os CDs Nande Reko Arandu (1998) e Nande
Arandu Pygua (2005) foram as primeiras produções desse movimento e
contaram com a participação de jovens e crianças a partir dos 7-8 anos
das aldeias Tenondé Porã, Krukutu e Boa Vista, de São Paulo, e Bracuí, do
Rio de Janeiro5. Dessa forma, instituiu-se um novo lugar de significação
nas condições sócio-históricas desse povo, comprometendo o processo

5
Disponível em http://cpisp.org.br/indios/html/saiba-mais/24/o-povo-indigena-guarani.aspx, acessado em
16/10/2015.

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de investimento sagrado tradicional com as novas tecnologias de som e


imagem. Esse movimento divulga a cosmologia Guarani através de sinais
sonoro-musicais diacríticos de sua cultura, reafirmando a centralidade da
música na vida da comunidade — ou a sua "cosmo-sônica" (STEIN, 2009,
p. 102).
Os xondaro6 ruxiva (líderes indígenas dos grupos de dança) e
outros líderes religiosos afirmam que os CDs e as demais apresentações
culturais têm por objetivo permitir que os indígenas possam “mostrar sua
cultura, quem eles são, para os não-índios”. No encarte do CD1, Nhande
Reko Arandu, lê-se:

Através da gravação dos cânticos, a gente vai estar


apresentando, também, quinhentos anos de resistência
à dominação dos povos brancos. Através da gravação, a
gente vai estar em forma de protesto (Nhande Reko
Arandu, p. 2).

Os repertórios musicais dos quatro CDs aqui analisados foram


escolhidos tendo em vista a nossa proposta de construção do foco
temático a partir dos deuses, adotando-se o critério de divulgação e
domínio dos mborai, na área pesquisada. Essa análise se concentrou nas
divindades Nhamandu, Tupã e Tupã Ra’y. Portanto, para efeitos
analíticos, compõem o presente estudo textos retirados das seguintes
fontes: o CD1, Ñande Reko Arandu (traduzido por “Memória Viva
Guarani”), de 1998; o CD2, Ñande Arandu Pygua (“Nossa sabedoria”), de
2004; o CD3, Tape Mirim (“Caminho Sagrado”), não datado; e, por fim, o
CD4, Kyringue Nhembovy’a (“Guardiões Guarani”), de 20097.

Nhamandu oua re (“Nhamandu surge no céu”)

6
Esse projeto foi resultado de uma iniciativa do sociólogo Maurício Fonseca e contou com o apoio da
Secretaria Estadual de Cultura, do Conselho Estadual dos Povos Indígenas e do Instituto Teko Arandu
Memória Viva Guarani. A produção dos CDs obteve patrocínio de vários órgãos e entidades (Caritas
brasileira, Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal, Fundo Social de Solidariedade do
Estado de São Paulo, Secretaria do Estado da Educação), conforme consta no encarte do CD Nhande
Arandu Pygua.
7
O termo xondaro é traduzido por “soldado” (R. A. DOOLEY, Vocabulário do Guarani, p. 197) e
compreende uma iniciativa cultural ligada à educação tradicional dos jovens, na qual se inserem um
repertório de dança e a execução de músicas de temática ligada a desempenhos e protagonismos de luta,
enfrentamento, ataque.

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Das 15 faixas do CD1, observam-se os mborai dirigidos a


Nhamandu, transcritos e traduzidos nos quadros abaixo:

NHAMANDU (faixa 6) Nhamandu

NHAMANDU JOGWERU Nhamandu (sol) nasce


NHANDERU TENONDE OMA’Ẽ com seus raios e sua sabedoria
NHANDEXY TENONDE Nosso Pai Supremo olha para nós
NHANDERE OMA’Ẽ Nossa Mãe Suprema olha para nós

NHAMANDU MIRĨ (faixa 12) Pequeno Sol


NHAMANDU MIRĨ OGUÊRÔ PU’Ã Pequeno Sol
OJEXAKA OGUÊRO GUATA Levando sua luz
OGUÊRO GUATA E caminhando
NHAMANDU MIRĨ, OGUÊRÔ PU’Ã Com sua sabedoria
OJEXAKA, OGUERO GUATA E com seu raio eterno
OGUERO GUATA
NHAMANDU MIRĨ OGUÊRÔ PU’Ã
OJEXAKA
OGUERO GUATA
NHAMANDU MIRĨ OGUÊRÔ PU’Ã
OJEXAKA
OGUERO GUATA OGUERO GUATA

No duplo CD2, Nande Arandu Pygua (“Nossa Sabedoria”), constam


27 faixas; destas, quatro se dirigem a Nhamandu. Duas estão transcritas
abaixo:

NHAMANDU JEXAKAA (faixa 18) O clarão de Nhamandu

NHAMANDU JEXAKAA RUPI MEME O clarão de Nhamandu


OPA RUPI Ilumina em todo lugar
NHOGUEROPU’Ã Ele se levanta do outro lado
VA’E ROVAI Nos faz levantar
NHANHOGUEROPU’Ã Nos erguemos com Ele e sorrimos
NHANDERORY’I Nos erguemos com Ele e sorrimos
NHANHOGUEROPU’Ã
NHANDERORY’I
NHANDERORY’I

NHAMANDU TENONDE (faixa 19) Nhamandu Pai Primeiro

NHAMANDU TENONDE Nhamandu Nosso Pai Primeiro


OYVARAPY PY Em sua Morada Celeste
IMBA’EKUAA GUI Com sua Sabedoria
ONHEMBOJERA Desdobrou-se a si mesmo
PYTUYMÃ MBYTE GUI Na noite original
NHANDERU Nosso Pai
NHAMANDU TENONDE Nhamandu Pai Primeiro

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NHAMANDU TENONDE Nhamandu Pai Primeiro


TENONDE Primeiro
TENONDE Primeiro

No CD4, o tema em discussão aparece nas duas faixas seguintes:

NHANDERU NHAMANDU (faixa 5) Nosso Deus Sol

NHANDERU NHAMANDU Nosso Deus Sol


JOGUERO GUATAMA está se dirigindo
NHANDE YVYRUPARE JAIKO’I AGUÃ Para o nosso mundo para nos fazer
OMOÊXAKÂ MA JAVY’A’I AGUÃ viver
OMOÊXAKÂ MA JAVY’A’I AGUÃ Iluminando assim nossa alegria
Iluminando assim nossa alegria

NHAMANDU OUA RE (faixa 16) Onde nasce o sol sagrado

NHAMANDU OUA RE JAJEROJY’I Onde nasce o Sol Sagrado,


JAUPI NHANDEPO YVATE reverenciamos
NHAROPORANDU NHANDERETE’I Levantamos nossas mãos para o alto
Pedindo nos fortalecer nossos corpos

Os mborai selecionados compreendem mitopoemas que destacam


Nhamandu em seu aspecto sagrado e primordial. Criam-se temáticas
convincentes da sua atuação, reveladora de sua divindade solar e
expressiva de uma sabedoria (arandu): o raio solar eterno “nasce
brilhando”, “brilha enquanto se eleva”, “irradia alegria e felicidade”, "nos
levanta" (nhanemopu’ã), “nos faz sorrir” (nhanembory), “nos alegra”
(nhanembovy’a). O mborai número 19, do CD2, contém a representação
da entidade suprema Nhamandu Tenonde, Nhamandu Pai Primeiro, e sua
expressão nhembogera (desdobrou-se em si mesmo).
O mborai número 16, do CD4, registra um notável grau de
reverência às divindades: “levantamos nossas mãos para o alto (jaupi
nhandepo yvate), pedindo nos fortalecer (nharoporandu nhanderete’i).
Percebe-se, nessa linguagem, a realidade do corpo (rete) e sua dinâmica
de purificação mediante o verbo pedir (porandu).
A dinâmica ontológica, imanente aos sujeitos, supõe a divindade
como representação da sabedoria-alma e se torna expressiva pelo termo
py’a rendy, que significa “entendimento através do coração”, uma
consciência-ânimo de natureza perceptível. O milagre divino caracteriza-
se como guero-yvara, que simboliza a incorporação dos indivíduos à
própria divindade, fazendo com que se transformem em parte dela

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mesma (CADOGAN, 1959, p. 26). A expressão guero-moñemoña alude à


forma de criação engendrada como parte do próprio ser (CADOGAN,
1959, p. 27).
Os narradores reportam-se à voz da ancestralidade, manifestada
pela expressão “Nosso Pai Nhanderu”. O movimento autogerado, de si
para si, atualiza a transformação do caos em cosmo, da noite em reflexo
da sabedoria divina — a luz solar. O espaço existencial é concebido como
uma cópia ou sombra, um lugar-tempo onde se vive a realidade. Essas
representações partem do imaginário social instituído, segundo o qual o
fundamento da vida corpórea é sofrimento e busca incessante para
superar a condição de imperfeição e a (re)integração à ordem divina
(CASTORIADIS, 1982 apud BORGES, 1998). As mesmas representações
também revelam que a fundação de si mesmo, sendo de origem e sentido
divinos, constrói a forma-sujeito Mbya. Para o imaginário Guarani, a
palavra (o logos divino) é a condição de existência do universo e da vida.
Trata-se da vida cosmológica em sua dimensão fundadora do mundo, dos
homens e de seu destino divino (BORGES, 1998, p. 209).
A compreensão teogônica dos Mbya considera que Nhamandu Ru
Ete, igualmente chamado de Nhande Ru Papa Tenonde ("nosso pai
último", "último primeiro"), é o deus fundador, responsável pela origem
do mundo — um deus gerador e de si mesmo gerado, que será também
o destruidor da terra. Do nome Nhamandu derivam-se outros, tais como
Nhamandu’i, Nhamandu Ru Ete, Nhamandu Ru Ete Tenonde e Nhamandu
Yma. Um segundo grupo de nomes deriva de Nhande Ru: Nhande Ru
Tenonde, Nhande Ru Papa Tenonde, Nhanderu Nhamandu. Nota-se,
ainda, o desdobramento de Nhamandu em Nhamandu Ru/Xy Ete
(Nhamandu Pai/Mãe verdadeiros), designando os pais e mães verdadeiros
da humanidade (CADOGAN, 1959; GODOY, 2003). Pode-se entender que
os outros deuses seriam criações de Nhamandu Ru/Xy Ete: Karai Ru/Xy
Ete (Karai Pai/Mãe verdadeiro/a); Tupã Ru/Xy Ete (Tupã Pai/Mãe
verdadeiros) e Jakaira Ru/Xy Ete (Jakaira Pai/Mãe verdadeiros). (BORGES,
1998, p. 27).
Essas divindades não são concebidas como manifestações de
Nhamandu, que é um deus uno, absoluto em sua unicidade, mas sim
como entidades dotadas de atributos e domínios próprios (SCHADEN,
1969, p. 123). Com base no modelo-representação, criam-se orientações

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específicas, que têm ascendência sobre o envio das almas/palavras: os


nomes (ery), como ocorre no ritual do batismo e na demanda de atuações
xamânicas dos chefes religiosos (designados como xeramoī, nossos pais
e avós)8.

Tupã Ojepovera (“Tupã relampeja, ilumina”)

No universo cósmico Guarani, Tupã é uma divindade expressiva do


mar, do domínio aquático (CADOGAN, 1959, p. 208). “Tupã veio para ser
guardião do mundo. Seu brilho (overa) e seu barulho (opororo) são suas
armas destruidoras” (LADEIRA, 1992, p. 103). Afirma-se que Tupã foi
criado por último (NIMUENDAJU, 1987). Quanto à sua aparência física,
vários informantes caracterizam-no como de baixa estatura, com cabelos
crespos e usando o tukumbo (“chicote”) e o tembekua (“adorno de osso”),
mas não o petỹgua (“cachimbo”). Ele é frequentemente mencionado
quando há raios e trovões. Durante as rezas, a área posterior da Casa de
Reza (opy) é considerada de influência de Tupã — por isso as reverências
a essa divindade ocorrem dirigindo-se a esse local o olhar, os gestos e,
às vezes, os corpos.
O equilíbrio da terra está ligado à movimentação de Tupã, que
ocorre de forma oposta ao sol (Kuaray), do Oeste para o Leste. Observa-
se que essa divindade se estende para outras culturas Tupi e é vista como
controladora da morte e da destruição, acarretando, assim, mais medo
do que veneração (LARAIA, 1986, p. 103). Por outro lado, o sentido de
refrescamento, a suavização do calor, o controle das emoções e o
refrescar do coração também se originam de Tupã (BORGES, 1998, p.
272). Examinemos essas observações nas narrativas Guarani.
No CD2, destaca-se a faixa 18 do segundo exemplar:

NHANDERU TUPÃ (faixa 18) Nosso Pai Tupã

NHANDERU TUPÃ Nosso Pai Tupã


OPOPYGUA OJEPOVERA Com seu bastão iluminado

8
A escrita dos mborai aqui utilizada segue as normas empregadas nas escolas indígenas, em grande parte
fundamentadas em R. A. Dooley (Vocabulário do Guarani). Usou-se como base a escrita indígena
registrada nos encartes dos CDs. As dúvidas remanescentes foram resolvidas por uma reflexão conjunta
entre as autoras e o professor de língua Guarani Jordi Ferri.

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YY GUAXU ROVAIRE Do outro lado do oceano


XONDARO’I Pequenos guardiões
XONDARIA’I Pequenas guardiãs
NHANEPU’Ã KATU Vamos nos erguer
JAJEROJY Reverenciar
JAPORAI Cantar
NHANDERU ETE O nosso Pai Supremo
NHANDEXY ETE A nossa Mãe Suprema
NHAMBOVY’A Alegrar

Segue a faixa 12 do CD4:

TUPÃ (faixa 12) Tupã

TUPÃ XONDARO’I TUPÃ XONDARIA’I Guardiões de Tupã, guardiãs de Tupã


PEJU KATU PEMOEXAKÃ OREROPY’I RE Venham iluminar nossa Casa de Reza
PEJU KATU PEJEPOVERA OREROPY’I RE Venham clarear nossa Casa de Reza
PEEXAUKA PENDEPOPYGUA Revelem seus Popygua sagrados

Tupã Ra’y (Filho de Tupã, Jesus Cristo): “aqui esperamos o filho de Tupã”

Tupã Ra’y, filho de Tupã, é a entidade representativa de Jesus


Cristo, o filho de Deus, um registro claro de que os subgrupos Guaranis
introduziram elementos cristãos em sua tradição mitológica. Essa
atribuição deriva-se da importância do fato de Tupã ter enviado seu filho
à terra a fim de prestar ajuda ao homem (SCHADEN, 1969, p. 110-111).
As analogias entre Tupã e o Deus cristão resultaram do processo de
aculturação e de conversão imposto aos povos indígenas americanos
entre os séculos XVI e XVIII por missionários jesuítas como uma empresa
consciente de aculturação provocada, dirigida e controlada (SCHADEN,
1969).
CD2, faixa 13:

TUPÃ RA’Y (faixa 13) O filho de Tupã

TUPÃ RA’Y O filho de Tupã


OGUEJY MAVY OGUERU Quando desce à Terra
KARENA MARÃ E’Ỹ Traz consigo
KARENA MARÃ E’Ỹ O trono eterno
KARENA MARÃ E’Ỹ Traz consigo
O trono eterno
NEE KATU XEREINDY KUE’IRY
NHAMONHENDU MBORAI Venham, minhas irmãs

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NHANDERU TUPÃ AMBA Vamos todos cantar

Observa-se como se impõem as palavras do mborai seguinte:

NHANDERU RA’Y (faixa 5) Filho de Deus

NHANDERU RA’Y KURUXU MBYTE RE O Filho de Deus no centro da cruz


OJEEXAUKA OJEEXAUKA, se revelou, se revelou.
NHANDERU RA’Y KURUXU MBYTE RE O Filho de Deus no centro da cruz
OJEEXAUKA OJEEXAUKA, se revelou, se revelou
RIRE JEPE OUPITY JEVY NGUU ETE AMBA, Depois alcançou novamente a
RIRE JEPE OUPITY JEVY NGUU ETE AMBA, Morada do seu Pai Verdadeiro
AỸ REVE OJEPOVERA OJEPOVERA, Depois alcançou novamente a
AỸ REVE OJEPOVERA OJEPOVERA Morada do seu Pai Verdadeiro
Até hoje brilhando, brilhando.
Até hoje brilhando, brilhando.

As narrativas expressam o sentido cristão nelas materializado. Não


se trata de uma influência simples, e sim de uma forma de recriação
mítica efetuada pelos índios, que usam diversas expressões extraídas do
ideário cristão para se referir a Tupã Ra’y: “aqui esperamos”, “revelou-se
e alcançou novamente a morada do seu pai verdadeiro”, “revelou-se no
centro da cruz” (SCHADEN, 1982, p. 12; 1989), denotando um processo
de releitura do mito original à luz de informações trazidas por
missionários. É preciso entender que a capacidade de gerar imagens de
esperança e parábolas contextualizadas de vida, força original do
cristianismo, são expressivas do fenômeno religioso Guarani e “viven algo
proprio, inspirado y divino” (MELIÀ, 1997, p. 135).

Profetismo e religiosidade na consagração dos mborai

Os mitopoemas e a palavra "mito" assumem significados relativos


a tempo-espaço-renascimento, introduzindo o sentido real com que a
memória é vivenciada e postulando um sentido de veracidade. São formas
verbais que funcionam como testemunhos míticos. Os sujeitos verbais,
convencidos (mbojerovia: "fazer crer") de seus desejos de imortalidade,
de ultrapassar o plano material, de ir para Yvy Mara E’ỹ, têm sua origem
na negação do tempo profano, que é uma sombra do tempo verdadeiro.
Por meio da atuação conjunta, ordena-se um tempo de renovação —
“aquele que, ao se repetir, transforma, retorna e avança, diferencia-se,

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faz-se outro: um tempo que se faz passagem, retorno e ultrapassagem”


(BORGES, 2002, p. 119). Na teogonia Mbya, arandu porã (o “belo saber")
identifica os compromissos dos sujeitos como uma expressão mística
divina, individual e, ao mesmo tempo, coletiva, num universo simbólico
onde “é possível negar a condição humana, de modo-radical, e tornar-se
divino sem passar pela prova da morte” (VIVEIROS DE CASTRO, 1984-5,
p. 19).
A identidade cultural, implícita na dimensão de oralidade
tradicional, segue um rumo que desloca o sentido ancestral das
caminhadas — a busca da salvação no lugar do sagrado —,
comprometendo-se com a dinâmica do messianismo (SCHADEN, 1982;
CLASTRES, H, 1978; MELIÀ, 1990; BRANDÃO, 1990, p. 74-75). A crise se
instala diante do fato de que não é mais possível aos humanos seguir
essa viagem (oguataa: "caminhada") em função do adiamento do
cataclismo, que uma vez já aniquilou o universo, a “primeira terra”
(SCHADEN, 1982; BRANDÃO, 1990, p. 77). As alusões a Yvy Mara E’ỹ
enquanto uma busca mais ecológica do que religiosa — isto é, de
territórios virgens para a caça e a prática da agricultura indígena (MELIÀ,
1990) — podem ser estendidas para a estrutura comemorativa e
emancipatória das narrativas quando expressam significados míticos.
Dessa perspectiva, observamos que alguns mitopoemas se expressam
“como uma resposta ao mal, que é o valor do branco e tudo o que ele
conduz [...] ou como a vocação coletiva da história transformada em um
desejo de ética” (BRANDÃO, 1990, p. 72). As experiências reiteram que a
religião dos antigos e o sistema de crenças devem ser preservados.
Assim, a adoção de elementos do cristianismo reforça a estratégia para
melhor conservar as crenças e os valores tradicionais, “concedendo para
não ceder” (SCHADEN, 1982, p. 2). A formulação teológica doutrinária dos
Mbya inclui elementos do cristianismo, tais como o batismo e o uso da
cruz ou do crucifixo. Também o sistema musical simboliza a presença de
traços ocidentais (SETTI, 1988).
É preciso notar, não obstante, que a resistência nativa e a
incorporação dos elementos do cristianismo projetam-se como formas
criativas no “núcleo duro”, especificamente Guarani (BORGES, 2001, p.
14). Nesse núcleo, habitar a alma sagrada por meio da palavra
rememorada dos deuses, dos verdadeiros Pais e Mães, torna-se metáfora

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das expressões mborayvu (concepção ligada ao sentido compartilhado da


palavra, traduzido por “amor”) e aguyje (que designa aperfeiçoamento e
implica o cumprimento rigoroso da lei segundo o Criador, espelhando-se
nele como uma imagem dos “enfeitados”, “escolhidos”). As manifestações
da palavra do canto e do movimento da dança são enfatizadas como uma
devoção dos Mbya às práticas religiosas autóctones (MELIÀ, 1997, p.
127).
A linguagem poética dos mborai é a que se pode observar
cotidianamente na Casa de Rezas (opy), quando são invocados os
conhecimentos sagrados como recursos míticos criativos. Assim,
ouvimos as seguintes exclamações discursivas, que reforçam a linguagem
poética descrita:
— Japorairã nhanhembo’e’i: “enquanto cantamos, aprendemos
conteúdos sagrados";
— Japyta nhande py’are: “ficamos (dominados) em nossos
corações”;
— Petỹgua jajopy reko axy’i: “fumamos nesta era das imperfeições”;
— Tataxina reko axy’i: “fumaça sagrada da era das imperfeições”;
— Nharoporandu nhanderete’i, nhanderu pe: “cantamos pelos
nossos corpos, invocando a Deus”;
— Ayvu anhentegua: “as verdadeiras palavras”, que vêm dos
espíritos (envolvem um estado de meditação).
Lembra-se do clima profético desta contextualização sob a neblina
vivificante: tatachina reko axy, emanada da fumaça do tabaco (petỹ).

Considerações Finais

Nos últimos dez ou quinze anos, várias aldeias indígenas sofreram


intervenções em sua organização tradicional, que ocasionaram
modificações de natureza intercultural nos seus espaços de sociabilidade.
A dinâmica daí decorrente culminou na formação de novos espaços, mas
neles permanece viva a memória registrada nos mitopoemas, saberes
cristalizados sobre a mitologia e a sociedade tradicional, que são, em
última instância, o núcleo fundamental da cultura Guarani Mbya.

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As narrativas que falam sobre a origem e os destinos dos Guarani


foram gravadas em CDs, constituindo uma fonte ampla e segura sobre o
imaginário coletivo e a identidade desse povo. Por meio deles, pode-se
compreender o passado imemorial dos Guarani, as noções que possuem
sobre o seu devir e a cultura tal como a compreendem no contexto de
autovalorização das tradições — a marca básica de sua organização
social.
Os mborai registram o desejo dos índios de ser como os seus
deuses, detendo o poder de anular ou adiar a angústia e o sofrimento do
presente, numa reiteração do caráter melancólico e pessimista desde há
muito assinalados por diversos autores.

____________________________________________________________
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Recebido em: 17/06/2016 * Aprovado em: 21/09/2017 * Publicado em: 31/12/2017

Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 11, n. 2, p. 167-185, jul./dez. 2017.

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