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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

FACULDADE DE ADMINISTRAÇÃO, CIÊNCIAS CONTÁBEIS E CIÊNCIAS


ECONÔMICAS
CURSO DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS

ERICK MICHEL RAMOS DO CARMO

QUAL É O PAPEL DO TEMPO NA DETERMINAÇÃO DO VALOR ECONÔMICO?


SOBRE OS FUNDAMENTOS E PRINCIPAIS AUTORES DA TEORIA DO VALOR-
TEMPO

GOIÂNIA
2024
ERICK MICHEL RAMOS DO CARMO

QUAL É O PAPEL DO TEMPO NA DETERMINAÇÃO DO VALOR ECONÔMICO?


SOBRE OS FUNDAMENTOS E PRINCIPAIS AUTORES DA TEORIA DO VALOR-
TEMPO

Monografia apresentada ao curso de Ciências Econômicas da


Faculdade de Administração, Ciências Contábeis e Ciências
Econômicas (FACE) da Universidade Federal de Goiás (UFG)
como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em
Ciências Econômicas.
Orientador: Prof. Dr. Tiago Camarinha Lopes

GOIÂNIA
2024
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE ADMINISTRAÇÃO, CIÊNCIAS CONTÁBEIS E CIÊNCIAS ECONÔMICAS

ATA DE DEFESA DE TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

Ao(s) 23 dia(s) do mês de janeiro do ano de 2024 iniciou-se às 16h30 a sessão pública de
defesa do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) intitulado “QUAL É O PAPEL DO TEMPO NA
DETERMINAÇÃO DO VALOR ECONÔMICO? SOBRE OS FUNDAMENTOS E PRINCIPAIS
AUTORES DA TEORIA DO VALOR-TEMPO”, de autoria de Erick Michel Ramos do Carmo, do curso
de ciências econômicas, do(a) FACE da UFG. Os trabalhos foram instalados pelo(a) prof. Dr. Tiago
Camarinha Lopes (FACE/UFG) com a participação dos demais membros da Banca Examinadora: prf. Dr.
Antônio Marcos de Queiroz (FACE/UFG) e prof. Dr. Felipe Nogueira da Cruz (FACE/UFG). Após a
apresentação, a banca examinadora realizou a arguição do(a) estudante. Posteriormente, de forma
reservada, a Banca Examinadora atribuiu a nota final de 9,5, tendo sido o TCC considerado aprovado.
Proclamados os resultados, os trabalhos foram encerrados e, para constar, lavrou-se a
presente ata que segue assinada pelos Membros da Banca Examinadora.

Documento assinado eletronicamente por Tiago Camarinha Lopes, Professor do Magistério


Superior, em 23/01/2024, às 18:04, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no § 3º do
art. 4º do Decreto nº 10.543, de 13 de novembro de 2020 .

Documento assinado eletronicamente por Antonio Marcos De Queiroz , Professor do Magistério


Superior, em 23/01/2024, às 18:04, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no § 3º do
art. 4º do Decreto nº 10.543, de 13 de novembro de 2020 .

Documento assinado eletronicamente por Felipe Nogueira Da Cruz , Professor do Magistério


Superior, em 23/01/2024, às 18:04, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no § 3º do
art. 4º do Decreto nº 10.543, de 13 de novembro de 2020 .

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Referência: Processo nº 23070.002924/2024-06 SEI nº 4329649

Ata de Defesa de Trabalho de Conclusão de Curso 4329649 SEI 23070.002924/2024-06 / pg. 1


RESUMO

Este trabalho explora a relevância do tempo na teoria do valor econômico, objetivando


investigar o papel fundamental do tempo nas teorias do valor e do capital. Para estabelecer esta
análise, foram revisitados os trabalhos originais de diversos autores que incorporaram a questão
temporal em suas definições de valor, subdividindo-os em três seções cronológicas, sendo a
primeira referente aos primeiros pensadores da teoria do “valor-tempo”, a segunda referente ao
desenvolvimento por Böhm-Bawerk da teoria da preferência temporal, e a terceira tratando dos
autores que forneceram alternativas ou críticas à teoria bawerkiana. Constata-se, por fim, que o
papel do tempo na determinação do valor econômico pode manifestar-se por meio de diversas
modalidades. De maneira geral, não se nega que a hipótese da preferência temporal é verdadeira
em numerosas circunstâncias distintas, embora não alcance uma universalidade integral. A
influência de sua manifestação no valor ou na determinação das taxas de juros está,
primariamente, condicionada às forças que exercem impacto sobre a referida preferência.

Palavras-chave: Preferência Temporal, Teoria do Valor, Taxa de Juros.


ABSTRACT

This work explores the relevance of time in the theory of economic value, aiming to investigate
the fundamental role of time in theories of value and capital. To establish this analysis, the
original works of several authors who incorporated the temporal issue into their definitions of
value were revisited, subdividing them into three chronological sections, the first referring to
the first thinkers of the “time-value” theory, the second referring to the development by Böhm-
Bawerk of the theory of time preference, and the third dealing with the authors who provided
alternatives or criticisms to the bawerkian theory. Finally, it appears that the role of time in
determining economic value can manifest itself through different modalities. In general, it
cannot be denied that the hypothesis of time preference is true in numerous different
circumstances, although it does not achieve complete universality. The influence of its
manifestation on the value or determination of interest rates is, primarily, conditioned on the
forces that have an impact on said preference.

Keywords: Time Preference, Value Theory, Interest Rate.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 7
2. DA ESCOLÁSTICA À MARX: OS PRIMEIROS PENSADORES E A POSIÇÃO DE
MARX QUANTO À GERAÇÃO DE VALOR PELA PASSAGEM DO TEMPO............. 8
2.1 São Tomás de Aquino: Sobre a usura e a parcimônia ................................................. 8
2.2 Turgot e a utilidade subjetiva ...................................................................................... 10
2.3 John Rae: O desejo efetivo de acumulação ................................................................. 11
2.4 Marx e a crítica à transferência de valor em relação ao tempo ................................ 12
3. VALOR E CAPITAL: A TEORIA POSITIVA DE BÖHM-BAWERK, SEUS
DESDOBRAMENTOS E CRÍTICAS ................................................................................... 15
3.1 Böhm-Bawerk: A teoria da preferência temporal...................................................... 15
3.2 Schumpeter: Poder de compra e a função do mercado de capitais .......................... 23
3.3 Wicksell e a reserva de valor da moeda no tempo ..................................................... 25
3.4 John Hicks: A abordagem “neo-austríaca” ................................................................ 27
3.5 Irving fisher: impaciência e renda ............................................................................... 29
4 DIFERENÇAS E TRANSIÇÃO ENTRE O PENSAMENTO AUSTRÍACO E O
MAINSTREAM........................................................................................................................ 31
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 32
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................... 35
7

1 INTRODUÇÃO

Em um contexto globalizado como o atual, onde a aceleração do ritmo de vida torna-se


cada vez mais evidente, a expressão “tempo é dinheiro” ressoa como um lembrete contundente
da valiosa dimensão que é o tempo. Tão repetida nos contextos social e econômico, essa
máxima reflete não apenas a percepção da escassez temporal, mas também aponta para a estreita
interligação entre tempo e valor. Enquanto a expressão pode surgir no contexto prático das
atividades comerciais e produtivas, sua importância transcende o âmbito do cotidiano e se
estende até as teorias econômicas fundamentais.
Em muitas vezes, as decisões empresariais dependem de previsões mercadológicas
sobre o futuro, sejam elas objetivas ou subjetivas. Estas previsões são constantemente alvos de
investigação pelos economistas, em que as projeções para o futuro são estipuladas diretamente
em função do período considerado. Como aponta Roger Garrison (2001), tempo e dinheiro são
denominadores comuns da teoria macroeconômica. Ainda assim, o futuro é sempre incerto, é
absolutamente “uma categoria da Ciência Econômica inseparável do conceito de ação humana.
Não é possível conceber uma ação que não seja efetuada no tempo ou que não dure tempo” (De
Soto, 2012, p. 246). Por conseguinte, é factível esperar que o tempo exerça algum tipo de
influência em qualquer teoria de valor e capital no âmbito da Economia Política. Nesta
perspectiva, surge a indagação: qual é o papel do tempo na teoria do valor econômico? Ou,
mais especificamente: em que medida o tempo desempenha um papel significativo nas teorias
do valor e do capital?
Muitos teóricos da Economia Política se debruçaram sobre este tema, desde a
escolástica antiga até os dias de hoje. Este trabalho se propõe, portanto, a fornecer uma
investigação sobre alguns dos principais autores que incorporaram a questão temporal em suas
análises de valor. Neste sentido, buscou-se apresentar prioritariamente as ideias contidas nos
trabalhos originais destes autores, tentando ao máximo estabelecer uma ordem cronológica de
exposições.
O ponto de referência que foi estabelecido ao longo da investigação é, especificamente,
a teoria da preferência temporal proposta por Böhm-Bawerk. A decisão de adotar Böhm-
Bawerk como ponto central nesta pesquisa foi fundamentada na significativa influência que o
austríaco exerceu sobre o debate das teorias do juro e do capital. Böhm-Bawerk desempenhou
um papel crucial ao formular e popularizar conceitos fundamentais que moldaram a
compreensão contemporânea da preferência temporal. Tais conceitos, que serão abordados
8

neste trabalho, posteriormente serviram como base para a formulação de modelos de economia
comportamental (Macedo, 2022) e estabeleceram um marco divisório na abordagem do tempo
na Ciência Econômica.
Iorio (2011), enfatiza que há dois conceitos de tempo: de um lado, a abordagem
convencional do tempo newtoniano, característico pela homogeneidade, continuidade
matemática e inércia causal; de outro lado, a abordagem (preferido por Böhm-Bawerk) pelo
tempo real ou subjetivo, característico pela heterogeneidade, continuidade dinâmica e eficácia
causal. Essa divisão, por sua vez, é levada em conta na escolha dos demais autores tratados
aqui, pois prioriza aqueles que, direta ou indiretamente, expuseram argumentos sob o ponto de
vista do tempo subjetivo, ao contrário dos que formularam propostas fundamentadas no tempo
newtoniano, mais comuns no mainstream econômico, por exemplo, no caso do modelo Arrow-
Debreu1.
Em vista disso, o trabalho se subdivide em quatro seções principais: dos escolásticos
aos clássicos, em que houve uma primeira aproximação ao que posteriormente viria a ser uma
teoria de valor-tempo; a proposta positiva de Böhm-Bawerk, que explicitamente atribui ao
tempo um papel essencial na teoria do capital; os autores responsáveis por complementações,
críticas e alternativas à teoria bawerkiana; e, por fim, as diferenças e transições entre as
abordagens austríaca e neoclássica.
O objetivo deste trabalho é, portanto, prover uma resposta a indagação exposta, sob a
hipótese de que o tempo de fato exerce fundamentalmente um papel essencial na teoria do valor.
Supõe-se que esse papel, ou importância, ocorre no sentido em que a valoração do presente é
subjetivamente maior do que a valoração do futuro, uma vez que os indivíduos preferem
satisfazer suas necessidades e atingir seus objetivos o mais cedo possível.

2 DA ESCOLÁSTICA À MARX: OS PRIMEIROS PENSADORES E A POSIÇÃO DE


MARX QUANTO À GERAÇÃO DE VALOR PELA PASSAGEM DO TEMPO

2.1 São Tomás de Aquino: Sobre a usura e a parcimônia

Referência intelectual na alta Idade Média, sobretudo nos campos da teologia e da


filosofia, o frade italiano São Tomás de Aquino (1225-1274) traz consigo as primitivas

1
Modelo de Equilíbrio Geral proposto por Kenneth Arrow e Gerard Debreu na década de 1950. Aqui, “o tempo
passa sem que os agentes econômicos aprendam, o que, evidentemente, é incompatível com a visão de mercado
como um processo” (Iorio, 2011, p. 107).
9

concepções do que viria a ser a ideia de preferência temporal. Como um proeminente autor da
escolástica católica, fez contribuições ao pensamento do chamado “preço justo”: seguindo seu
mestre São Alberto (1206-1280), acreditava que a “lei divina, com sua reivindicação de
precedência sobre a (lei) humana, exige a virtude perfeita, ou seja, o preço justo exato”
(Rothbard, 2012, p. 82). No entanto, fundamentando-se filosofia aristotélica, expandiu tal
debate quando adotou a ideia de que a utilidade dos consumidores, quando expressada em sua
demanda de produtos, determina o valor de troca de algo.
Segundo Rothbard (2012, p. 82), os escolásticos foram pensadores que, como
economistas, favoreceram o comércio e o capitalismo, além de terem defendido o preço de
mercado como preço justo, excetuando-se o problema da usura. Aquino, aliás, condenou ainda
mais veementemente o problema da usura:

Receber usura pelo dinheiro mutuado é, em si mesmo, injusto, porque se vende o que
não se tem; donde nasce manifestamente uma desigualdade contrária à justiça. [...]
Mas, o dinheiro foi principalmente inventado, segundo o filósofo, para se fazerem as
trocas; por onde, o uso próprio e principal dele é ser consumido ou gasto, por ser
despendido nas trocas. E por isso é, em si mesmo, ilícito receber um preço pelo uso
do dinheiro mutuado, o que se chama usura. E, como tudo o que foi recebido
injustamente, está obrigado a restituir o dinheiro quem o recebeu como usura.
(Aquino, p. 2222 e 2223).

Há ainda outro elemento a ser ponderado em relação à análise temporal para este autor.
Trata-se da concepção de Aquino que atribui à parcimônia um caráter vicioso. Em suas próprias
palavras:

O parcimonioso [...] visa principalmente a parcimônia do gasto; e por isso o Filósofo


diz que busca o modo de despender o mínimo. Mas, por consequência, visa a
parcimônia da obra que não rejeita, contanto que faça despesas pequenas. Por isso,
diz o filósofo, no mesmo lugar, que o parcimonioso, embora despendendo muito, com
a vontade que tem de não fazer grandes despesas, perde o bem que resultaria de uma
obra que teria feito com magnificência. Por onde é claro, que o parcimonioso se afasta
da proporção exigida pela razão entre as despesas e as obras. Ora, a falta do que a
razão exige implica a existência do vício. Portanto, é claro que a parcimônia é um
vício. [...] A virtude modera as coisas pequenas de acordo com a regra da razão, da
qual se afasta o parcimonioso, como se disse. Pois, não se chama parcimonioso quem
modera as coisas pequenas, mas quem, ao moderar, tanto as grandes como as
pequenas, se afastam da regra da razão. E, portanto, a parcimônia é por natureza um
vício (Aquino, P. 2541).

Logo, percebe-se a forte tendência do frade à condenação ao consumo futuro em


detrimento do consumo presente, desta vez apoiando-se em sua filosofia quanto à razão. De
fato, em sua obra magna, a Summa Theologica, Tomás de Aquino também trabalha com uma
virtude em que a razão humana prepondera sobre as verdades básicas do universo. Argumenta,
10

como visto anteriormente, que a parcimônia fere tais princípios da razão, sendo um vício, e
tornando-se condenável:

Como diz o filósofo, o temor faz os conciliativos. Por isso, o parcimonioso se põe a
fazer contas com exatidão: pois teme, sem razão, consumir os seus bens, mesmo em
parte mínima. O que não é louvável, mas, vicioso e digno de censura; porque não
dirige o seu afeto pela razão, mas, ao contrário, usa dela para desordenar o seu afeto
(Aquino, p. 2541).

Portanto, o que pode ser observado aqui não é, de toda forma, o entendimento sobre
preferência temporal a que os outros autores se dispuseram a investigar, isto é, uma tendência
natural do ser humano à preferência pelo consumo presente. Na verdade, observa-se, em alguma
forma, uma negação da validade filosófica e/ou religiosa quanto à postergação da utilidade, seja
na forma dos ganhos com usura, o que torna a prática do juro (nesse contexto) pecadora, seja
na forma de parcimônia, sendo uma atitude viciosa e condenável.

2.2 Turgot e a utilidade subjetiva

Anne Robert Jacques Turgot, o Barão de L’aulne (1727-1781), foi um economista e


filósofo parisiense, descendente de uma família normanda composta principalmente por
funcionários reais de longa data. Tal como eles, Turgot seguiu carreira na burocracia real,
chegando a se tornar ministro de finanças do país.
O francês se aventurou profundamente nos assuntos econômicos, discutindo as teorias
do capital, das firmas, da poupança e do juro. A este último, propôs-se a responder os seguintes
problemas: Por que os mutuários estão dispostos a pagar o prêmio de juro pelo uso do dinheiro?
Posto que o excesso, a usura, por tanto tempo foi considerada imoral; e, ainda: É verdade que,
ao pagar o capital principal, o mutuário devolve exatamente o mesmo peso de metal que o
mutuante o havia dado, mas por que, ademais, deve ser o peso do metal do dinheiro o critério
principal, e não o valor e utilidade que tem para o mutuante e o mutuário?
Sobre a última, afinal, Turgot já se fundamentava nos conceitos de valor subjetivo ou
utilidade subjetiva um século antes da revolução marginalista. Essa fundamentação, destarte,
leva o francês a comparar a “diferença de utilidade que há entre o momento em que se pede
emprestado uma quantidade possuída no presente e uma quantia que há de se receber no futuro”
(Turgot, 2011, p. 215). Logo em seguida, ele recorre ao ditado bem conhecido de que mais vale
um pássaro na mão do que dois voando, em clara referência à preferência pela segurança do
11

dinheiro que se possui verdadeiramente no presente. A compensação pela perda de valor ao


longo do tempo, à vista disso, é precisamente o tipo de juro.
Para Turgot, o que deve ser comparado em uma transação de empréstimo não é o valor
do dinheiro emprestado com a soma de dinheiro que se devolve, mas sim o valor da promessa
de uma soma de dinheiro comparada com o valor do dinheiro de que se dispõe agora. Da mesma
forma, “o valor atual em capital de qualquer bem de capital do mercado tende a igualar a soma
de suas rendas ou rendimentos anuais futuros previstos, antecipados pela taxa de preferência
temporal, ou tipo de juro” (Rothbard, 2012, p. 442).

2.3 John Rae: O desejo efetivo de acumulação

Nascido em Aberdeen, na Escócia, John Rae (1796-1872) foi um dos mais significativos
contribuintes à teoria pós-ricardiana do capital e do juro. Passou boa parte de sua vida no
Canadá, onde escreveu sua principal obra, Statement of some new principles on the subject of
Political Economy (Rae viajou para publicá-la em Boston, nos Estados Unidos) que,
surpreendentemente, conciliou precisamente a teoria do juro e a teoria do capital, da forma em
que foram posteriormente elaboradas por Böhm-Bawerk no Império Austro-Húngaro, e
alicerçadas na teoria do capital mengeriana.
A teoria do capital de Rae foi pontualmente a compreensão de que o motor da produção
era o aumento do investimento em bens de capital, que podem ser classificados de acordo com
suas taxas de retorno e tempo decorrido entre sua produção e esgotamento. O aumento da
produtividade, nesse caso, advém da ampliação do processo produtivo ou do horizonte de tempo
dedicado ao processo de investimento de capital. A avaliação passa a ser, portanto, o confronto
entre o benefício do processo mais produtivo frente à necessidade não desejada de esperar o
tempo necessário à maturação do capital até que se obtenha seu rendimento.
A teoria do juro de Rae, portanto, é profundamente associada à teoria da preferência
temporal. Como observa Rothbard (2012, p. 166), “para compensar a maior produtividade de
uma espera mais prolongada, o capitalista deve estabelecer um tipo de juro baseado na maior
desejabilidade dos bens presentes frente aos futuros”. Ou seja, os investidores sacrificam bens
presentes na expectativa de obter um bem de maior valor futuramente, sendo que este adicional
no valor depende da disposição “cultural e psicológica” das pessoas com visão de futuro de
longo prazo, e, o diferencial, por consequência, é exatamente o rendimento de juros.
12

Curiosamente, apesar de elaborar uma teoria de dinâmica essencialmente subjetiva (e


que Turgot, inclusive, considerava imprescindível que a taxa de juros fosse determinada pela
ação livre dos agentes e suas preferências), John Rae foi um grande defensor do protecionismo
econômico durante boa parte de sua vida, o que o levou a estudar a Wealth of Nations de Smith
com olhar muito mais crítico do que propriamente aceptivo.

2.4 Marx e a crítica à transferência de valor em relação ao tempo

De Trèves, sul da Alemanha, nascera o mais proeminente pensador socialista da história.


Karl Marx (1818-1883), em seu célebre Das Kapital, apresentou uma das maiores análises
sobre valor e capital à luz daquela ciência ainda intitulada Economia Política. Antes de tudo,
entretanto, é preciso estabelecer e ressaltar que a análise proposta neste trabalho, ainda que
explicitamente objetivada na questão temporal, não se desdobra sobre o conceito de valor-
trabalho o qual Marx atribui às mercadorias, qual seja, o tempo de trabalho socialmente
necessário para a concepção da mercadoria. O que se investiga aqui, portanto, trata-se da crítica
de Marx em relação à geração de valor pela passagem do tempo, ou, precisamente, à noção do
juro sendo determinado pela passagem do tempo.
Em O Capital, Marx (1983) define os conceitos de valor de uso (utilidade de uma
mercadoria – realizada em seu uso ou consumo – que constitui o conteúdo material da riqueza)
e valor de troca – capacidade de formar valor de uso social, de ser trocada por outra mercadoria
distinta (Carcanholo, 1998). Posto isto, uma mercadoria só pode ser assim chamada devido a
sua duplicidade simultânea como objeto de uso e portadora de valor (Marx, 1983). Reduzindo
as propriedades do conjunto de mercadorias a um elemento em comum, conclui-se que um bem
possui valor porque nele se materializa trabalho humano abstrato, medido, em síntese, pelo
tempo de trabalho socialmente necessário para produzir o próprio valor de uso – no sentido
social – das mercadorias.
A forma comum de valor assumida pelas mercadorias é o dinheiro (Marx, 1984). Uma
vez que se busca como objeto de estudo a crítica do autor à geração de valor pelo tempo, pode-
se iniciar a investigação pela abordagem marxiana em relação ao empréstimo de dinheiro, isto
é, a transferência de valor em relação ao tempo. No capítulo XXI do terceiro livro de O Capital,
onde se aborda o capital portador de juros, Marx diz:

Dinheiro – considerado aqui como expressão autônoma de uma soma de valor, exista
ela de fato em dinheiro ou em mercadorias – pode na base da produção capitalista ser
transformado em capital e, em virtude dessa transformação, passar de um valor dado
13

para um valor que se valoriza a si mesmo, que se multiplica. Produz lucro, isto é,
capacita o capitalista a extrair dos trabalhadores determinado quantum de trabalho
não-pago, mais-produto e mais-valia, e apropriar-se dele. Assim adquire, além do
valor de uso que possui como dinheiro, um valor de uso adicional, a saber, o de
funcionar como capital. Seu valor de uso consiste aqui justamente no lucro que, uma
vez transformado em capital, produz. Nessa qualidade de capital possível, de meio
para a produção de lucro, torna-se mercadoria, mas uma mercadoria sui generis
(Marx, 1984, p. 255).

Essa é a concepção básica que permite ao dinheiro como “mercadoria em si mesma”


escapar do processo comum M – D – M e possibilitar ao proprietário do dinheiro obter mais
valor por um processo simplificado D – D’. Na verdade, o processo passa a ser algo como D –
D’ – M – D – D’, ou seja, há a transferência do dinheiro do prestamista ao mutuário, que o
transformará em capital industrial e que, por sua vez, produzirá lucro. Lucro este que, em parte,
será devolvido ao emprestador na forma de juros.
Em O rendimento e suas fontes, Marx (1982) destaca que, no processo de empréstimo
de dinheiro, a forma do capital (monetário) é emprestada sem a efetiva transformação em capital
produtivo. Isso significa que, ao contrário da transformação do dinheiro em capital por meio do
processo de produção, no empréstimo o dinheiro a emprestar não está sendo utilizado para gerar
mais valor por meio do processo produtivo. O dinheiro não assume forma de mercadoria, mas
assume a característica de alienação comum às mercadorias:

Como no caso da capacidade de trabalho, o valor de uso do dinheiro se transforma no


valor da capacidade de criar valor de troca, valor de troca maior do que o possuído. É
emprestado como valor que se valoriza a si mesmo, mercadoria, mas uma mercadoria
que se distingue da propriedade como tal precisamente por essa propriedade,
possuindo, portanto, também uma forma particular de alienação (Marx, 1982, p. 192).

Isto faz com que a negociação seja expressa pela “valorização do valor de uso”, pois,
quando o mutuário que “comprou o valor de uso” do dinheiro definitivamente emprega o capital
na indústria, revelando precisamente o valor de uso do capital monetário, exige-se, por parte do
prestamista, que algo da mais-valia gerada no processo produtivo seja retornada a ele, daí a
valorização em si mesmo do dinheiro, já que “o que de fato é vendido é seu valor de uso, que
nesse caso consiste em por valor de troca, produzir lucro, produzir maior valor do que o
possuído por ele próprio. Como dinheiro, não se modifica pelo uso, mas como dinheiro é gasto
e como dinheiro reflui” (Marx, 1982, p. 192).
Não obstante, os juros devem ser percebidos por um ponto de vista distinto do lucro em
si, uma vez que, por definição, é o prestamista quem possui o direito de propriedade da parcela
correspondente ao juro e, portanto, “O juro, diferenciado do lucro, representa o valor da mera
propriedade do capital, isto é, transforma a propriedade de dinheiro em si (soma de valor,
14

mercadoria seja ela qual for) em propriedade do capital e, portanto, mercadoria ou dinheiro para
si, em valor que se valoriza a si mesmo” (Marx, 1982, p. 193). Enquanto o lucro surge do
processo produtivo, o juro é vinculado à mera propriedade do capital. O firmamento contratual
puramente jurídico (sem processo econômico) do empréstimo atribui à propriedade do capital
uma característica de mercadoria, o que, por sua vez, “cria” valor por si mesma, ao extrair
capital adicional pelo uso empreendido pela segunda parte da negociação.
Marx não define diretamente o tempo como sendo determinante na geração de valor
dentro do processo D-D’, ainda que pudesse ser possível deduzir essa condição. Ao contrário,
posteriormente, a crítica se dá justamente sobre a característica fetichista dessa relação, em que
o valor é adicionado ao capital inicial sem que ocorra o processo de transição D – M – D’ em
relação ao prestamista. Como visto, esse valor pode ser derivado da própria extração de mais-
valia que ocorre em um processo paralelo ao tempo de mútuo, em que o capitalista industrial
usufrui do valor de uso obtido pelo empréstimo:

O juro [...] aparece originalmente, é originalmente e continua sendo, na realidade,


apenas parte do lucro, isto é, da mais-valia que o capitalista funcionante, industrial ou
comerciante, à medida que não emprega seu próprio capital, mas capital emprestado,
tem de pagar ao proprietário e prestamista desse capital. [...] Na realidade, é somente
a separação dos capitalistas em capitalistas monetários e capitalistas industriais que
converte parte do lucro em juros e cria, em geral, a categoria do juro; e é apenas a
concorrência entre essas duas espécies de capitalistas que cria a taxa de juros (Marx,
1984, p. 277).

Marx (1984) afirma que, mediante a determinação do lucro para um tempo dado
precisamente, o juro é determinado. Basta observar que, se está dada a taxa geral de lucro, então
o excedente sobre o juro que o capitalista produtivo obtém é determinado pela taxa de juros. E
o contrário é válido: se a taxa de juros está dada, então o juro a ser pago pelo prestamista, isto
é, a própria taxa de juros, é determinado pela taxa geral de lucro.
Em síntese, a crítica de Marx se dá pela forma pura de fetiche que o capital assume
nesse contexto, isto é, D – D’ como sujeito, em que seus elementos reais se tornam invisíveis.
O capital portador de juros, portanto, dispõe-se como extrator de valor ao longo do tempo. Não
contribui para o processo produtivo e nem age como capital industrial, apenas possibilita ao
capitalista monetário, por meio de contrato e disposição de espera no tempo, internalizar parte
da mais-valia explorada pelo capitalista mutuário, o que agrega valor ao capital monetário, mas
de forma totalmente fetichista. O tempo, aqui, é condicionante para que esse processo ocorra,
pois é o tempo de espera do capitalista monetário para que o circuito D – D’ – M – D – D’ se
conclua e, igualmente, condiciona o cálculo econômico da mais-valia pelo ponto de vista do
próprio capitalista industrial.
15

3 VALOR E CAPITAL: A TEORIA POSITIVA DE BÖHM-BAWERK, SEUS


DESDOBRAMENTOS E CRÍTICAS

3.1 Böhm-Bawerk: A teoria da preferência temporal

Discípulo de Carl Menger, especialista na teoria do capital e dos juros, e duas vezes
ministro de finanças da Áustria, Eugen von Böhm-Bawerk (1851-1914) destrinchou
profundamente as relações entre juro, tempo e capital em sua obra magna Capital and Interest,
publicada em 1884. Antes de explorar a ideia bawerkiana de valor, convém, primeiramente,
sintetizar a estrutura de capital com o qual o austríaco trabalha em sua obra.
Os elementos iniciais que constituem o pensamento austríaco podem ser visualizados já
no primeiro capítulo dos Princípios de Economia Política de Menger (1983). A estrutura com
o qual se forma o processo de capital pode ser estendida em etapas ou, de forma mais
pragmática, em bens de ordens diferentes, no sentido em que atendem as necessidades dos
indivíduos imediatamente (diretamente) ou após determinado prazo (indiretamente). Sendo
assim, etapas mais distantes do consumo – temporalmente indiretas – são compostas pelos
“bens de ordem superior”, e as etapas mais próximas do consumo – imediatas – são compostas
pelos “bens de ordem inferior”. Nessa teoria do capital, o tempo é o fator chave para o aumento
da produtividade.
Toma-se, por exemplo, uma economia simples, à la Robinson Crusoé, em que sua
principal fonte de alimento fossem batatas, estas seriam os bens mais próximos do consumo,
ou bens de “primeira ordem”. Supondo que, incialmente, Crusoé apenas se utilize da prática de
coleta, e que suas satisfações de utilidade inicialmente aumentassem à medida em que a
quantidade de batatas disponíveis para consumo aumentasse, então, por consequência,
poderíamos deduzir que Crusoé estaria disposto a buscar novos meios de aumentar suas
satisfações, isto é, aumentar a quantidade disponível de batatas para consumo.
Se supuséssemos também que ele tenha o conhecimento necessário à cultura do cultivo,
Crusoé se depararia com a seguinte questão: Ele poderia continuar consumindo a mesma
quantidade de batatas, sem alterar em nada o seu esforço atual, ou poderia dedicar parte do seu
tempo (que seria utilizado na coleta) para o preparo do terreno e dos fatores necessários ao
cultivo da batata, sabendo ele, é claro, que isso elevaria a quantidade disponível de batatas no
futuro, mas, evidentemente, exigiria uma abstenção do consumo no presente, pela redução do
tempo dedicado à coleta.
16

A cada nova ferramenta/método utilizado em vistas ao aumento da produtividade de


batatas, Crusoé estaria estabelecendo igualmente uma nova etapa de produção, utilizando-se de
bens de “ordem superior”. Para Crusoé construir um arado simples, por exemplo, teria que se
abster do consumo presente que poderia obter coletando batatas, além de se dispor a poupar
parte das batatas que o deverão servir de alimento durante o tempo em que estiver se dedicando
estritamente à produção do arado.
É interessante observar que o capital, quando relacionado ao tempo, pode ter
interpretações diferentes, mas ainda assim estabelecer a mesma utilidade final. Para Stanley
Jevons (1835-1882),

O capital [...] consiste apenas no conjunto daqueles bens que são necessários para
sustentar os trabalhadores de qualquer tipo ou classe ocupados no trabalho. A função
única e fundamental do capital é possibilitar ao trabalhador esperar o resultado de
qualquer trabalho de longa duração – estabelecer um intervalo entre o início e o fim
de um empreendimento. [...] O capital simplesmente nos permite despender trabalho
com antecipação. Dessa forma, para cultivar trigo, precisamos revolver a superfície
do solo. Se nos puséssemos a trabalhar diretamente, usando os instrumentos com que
a natureza nos dotou – nossos dedos – iríamos gastar enorme quantidade de trabalho
penoso com pouquíssimo resultado. É muito melhor, portanto, gastar a primeira parte
do nosso trabalho fazendo uma pá ou outro instrumento que auxilie o resto do nosso
trabalho (Jevons, 1983, p. 138-139).

Por outro lado, a “proposta positiva” de Böhm-Bawerk (1986) sugere que, em geral, o
capital é um conjunto de produtos que servem como meios para a aquisição de bens, e, ainda

[...] capital social é um conjunto de produtos que servem como meios de aquisição de
bens econômicos pela sociedade [...], ou um conjunto de produtos que são destinados
a servir à produção ulterior, ou, finalmente, em resumo, um conjunto de produtos
intermediários. [...] Os ‘produtos que servem para fins de aquisição’ possuem uma
importância destacada para teoria dos rendimentos como fonte dos ‘juros do capital’,
enquanto os ‘produtos intermediários’ têm significado no mínimo igualmente
importante para a teoria da produção (Böhm-Bawerk, 1986, p. 57).

Posteriormente, esse entendimento foi mais bem lapidado por Mises e outros seguidores
da escola Austríaca de economia, como o espanhol Huerta de Soto, que considera bens de
capital

“as etapas intermediárias de cada processo de ação, subjetivamente consideradas


como tal pelo ator [...] ou, cada uma das etapas intermediárias, subjetivamente
considerada como tal, nas quais se concretiza ou materializa todo o processo produtivo
empreendido pelo ator. [...] A natureza econômica de um bem de capital não depende
das propriedades físicas, mas sim do fato de haver algum ator que considere que o
bem vai lhe ser útil para alcançar ou culminar alguma etapa do processo de ação.
Assim, os bens de capital, tal como os definimos, não são mais do que etapas
intermediárias pelas quais o ator acha necessário passar antes de alcançar o fim da
própria ação. Os bens de capital devem ser concebidos em um contexto teleológico,
no qual o fim perseguido e a perspectiva subjetiva do ator em relação às etapas
necessárias para alcançá-lo são os elementos definidores essenciais” (De Soto, 2012,
p. 249).
17

Desta forma, a poupança, entendida como a renúncia ao consumo imediato, passa a ser
a condição sine qua non para produzir bens de capital. Entendida a estrutura de capital, pode-
se finalmente adentrar ao conceito de valor defendido por Böhm-Bawerk que, para o austríaco,
na verdade, existem dois. O primeiro refere-se ao valor próprio de um objeto, isto é, o valor em
virtude de si mesmo, já o segundo se trata do valor que os indivíduos atribuem a um objeto em
função de um fim extrínseco a ele (Böhm-Bawerk, 1986). Este último possui, portanto, o que
se chama de valor econômico, pois se espera que determinado objeto tenha capacidade de
permitir a um indivíduo atingir seus objetivos. Além disso, deve-se ter em mente a distinção
entre valor objetivo (aptidão que um bem possui em produzir um resultado objetivo) e o valor
subjetivo (a importância de um bem em relação ao bem-estar do indivíduo).
Para objeto de estudo deste trabalho, já é suficiente a análise focalizada apenas no valor
subjetivo, definido, como visto, como “a importância que um bem ou conjunto de bens tem
para os fins de bem-estar de um indivíduo, [...] aquela importância que um bem ou conjunto de
bens adquire como condição reconhecida de uma utilidade que não poderia concorrer de outra
forma para o bem-estar do indivíduo” (Böhm-Bawerk, 1986, p. 155). Além disso, Eugen
adiciona a velha noção econômica de escassez, pois só assim um bem pode deixar de ter apenas
utilidade, para ter simultaneamente valor. Entretanto, essa escassez deve ser relativa, isto é,
comparada à demanda por bens de respectiva espécie.
Em relação a grandeza de valor, portanto, quanto maior (menor) o bem-estar nele
dependido, maior (menor) será o seu valor. É justamente desse conceito que surge a ideia de
utilidade marginal, que nada mais é do que a própria medida da grandeza do valor. A utilidade
marginal, deste modo, pode ser entendida como a utilidade mínima capaz de ser extraída de um
bem. Consequentemente, a grandeza do valor de um bem pode ser medida “pela importância
daquela necessidade concreta ou necessidade parcial que for a menos importante dentre as
satisfeitas pelo estoque disponível de bens da mesma espécie” (Böhm-Bawerk, 1986, p. 168).
O livro quarto da Teoria Positiva do Capital de Böhm-Bawerk vai tratar propriamente
do fenômeno do juro, mais especificamente de seu surgimento e relação com a preferência
temporal. A defesa do austríaco é de que

Bens presentes sempre têm um valor subjetivo maior do que bens futuros (e
intermediários) da mesma espécie e da mesma quantidade. E uma vez que a resultante
das avaliações subjetivas determina o valor de troca objetivo, os bens presentes têm
em geral um valor de troca maior e um preço mais alto do que bens futuros (e
intermediários) da mesma espécie e da mesma quantidade (Böhm-Bawerk, 1986, p.
275).
18

Essa concepção, na visão do autor, capaz de gerar uma diferença no valor entre bens
presentes e bens futuros, deriva-se de causas de natureza diferente, mas igual sentido. Para
comprovar tal afirmação, Böhm-Bawerk estabelece a investigação de uma série de três causas
que atuam no mesmo sentido.
A primeira causa ocorre porque há uma discrepância nas forças de oferta e demanda em
diferentes períodos do tempo. Assume-se, por uma condição de racionalidade, que na grande
maioria das vezes os indivíduos esperam, desejam e planejam ter no futuro um quantum maior
de bens que satisfaçam seus desejos e necessidades. Sendo assim, a projeção para o futuro é de
uma situação mais “confortável” do que a atual. Deduz-se, por conseguinte, que os indivíduos
sempre valorarão com mais afinco aquele conjunto de bens de que já se dispõe imediatamente,
ou seja, o conjunto dos bens presentes. Não obstante, é evidente que possa haver algum grau de
objetividade nas relações de suprimento presente e futuro que possa ser estimado, como o autor
afirma,

Muitíssimas pessoas que no presente estão menos bem supridas do que no futuro
atribuem bem mais valor à bens presentes do que a bens futuros; muitíssimas pessoas
que no presente estão mais bem supridas do que no futuro, mas que têm a possibilidade
de guardar bens presentes para servir ao futuro e além disso utilizá-los como fundo de
reserva para o período intermediário, atribuem a bens presentes o mesmo valor que a
bens futuros, ou até um valor um pouco maior; somente em uma minoria insignificante
de casos, nos quais a comunicação entre o presente e o futuro está impedida ou
ameaçada por circunstâncias especiais, bens presentes têm para seus donos um valor
de uso subjetivo menor do que bens futuros (Böhm-Bawerk, 1986, p. 278).

A primeira situação representa os casos em que as necessidades individuais de urgência


(necessidades financeiras, fisiológicas etc.) exercem forte pressão sobre as utilidades objetiva
e subjetiva dos bens presentes. O segundo caso apresenta a lógica anteriormente dita, da
possibilidade e desejo pelo acúmulo de riqueza ao longo do tempo. E o último caso, ainda que
existente, é apenas uma minoria em relação aos outros, mas, ainda assim, suficientemente
significativo para que torne esta primeira causa possivelmente a mais fraca entre as três
defendidas pelo austríaco.
A segunda causa é psicológica, emocional, trata-se da menor estima aos sentimentos
de prazer e sofrimento futuros, pelo simples fato de pertencerem a um momento mais distante,
que não pode ser visualizado. Ou, ainda, que “atribuímos a bens destinados a servir a esses
sentimentos um valor inferior à verdadeira intensidade de utilidade marginal futura deles.
Subestimamos sistematicamente nossas necessidades futuras e os meios que servem para o
atendimento delas” (Böhm-Bawerk, 1986, p. 279). Existem fartos e frequentes exemplos para
19

esta condição, como por exemplo uma tendência comum do ser humano ao endividamento, ao
gasto momentâneo, a atração pela satisfação do prazer imediato.
De todo modo, existe um motivo perene e muito mais peremptório que exerce força
nesta causa. Trata-se da brevidade e incerteza da vida humana. Este motivo é verdadeiro por si
mesmo, já que, se pudéssemos escrever uma função de utilidade em relação ao tempo para
determinado bem, e tendêssemos o próprio tempo ao infinito, é claro que a utilidade deste bem
iria consequentemente tender a zero. Ainda que o tempo esteja dentro da expectativa de vida,
existem incontáveis fatores que levam qualquer indivíduo a incrementar a relação de risco
quanto maior for o tempo envolvido.
Por fim, a terceira causa tem a ver com o que foi anteriormente comentado sobre a
duração das etapas produtivas. Como o autor aponta, “é um fato elementar da experiência que
métodos de produção indireta que levam tempo são mais produtivos” (Böhm-Bawerk, 1986, p.
283). O que foi sintetizado nessa passagem é a ideia de que, quando a preferência temporal é
menor (entendendo esta afirmação como sendo uma abundância de bens presentes), e as pessoas
se dispõem mais a se abster do consumo presente, os fundos de poupança disponíveis se tornam
mais abundantes, o que leva a uma diminuição na taxa “natural” de juros em função do tempo,
e os agentes produtores se veem em uma situação mais favorável e permissiva para investir em
projetos que exigem maior tempo e mais etapas para se concretizarem, mas que oferecem um
processo muito mais produtivo quando finalizados.
O ponto é, para que exista a possibilidade deste processo, deve haver antes uma maior
preferência temporal, o que parece paradoxal, porque à primeira vista esta análise é observada
sob a ótica da utilidade marginal “verdadeira” dos bens. É por este motivo que Böhm-Bawerk
(1986) deixa clara a importância de se considerar que para a avaliação presente de um bem ou
produto futuro, o que de fato interessa não é sua utilidade marginal verdadeira, mas a avaliação
subjetiva que se faz da mesma:

A explicação é a seguinte. Poder dispor de uma soma de bens de consumo presentes


supre nossa subsistência no período econômico corrente e com isso libera os meios
produtivos de que dispomos nesse mesmo período (trabalho, recursos do solo, bens
de capital) para o serviço tecnicamente mais produtivo do futuro, e nos proporciona
com eles o produto mais abundante que se pode conseguir com métodos de produção
de duração mais longa. Ao contrário, poder dispor de uma soma de bens de consumo
futuros deixa naturalmente o presente sem suprimento, e consequentemente faz com
que continuemos a ter de aplicar, totalmente ou em parte, nossos meios produtivos
disponíveis no presente para o atendimento do presente, aplicação em que esses meios
produtivos só podem proporcionar um produto menor, devido à pouca duração do
processo de produção. A diferença entre os dois produtos é a vantagem inerente à
posse dos bens de consumo presentes (Böhm-Bawerk, 1986, p. 291).
20

A avaliação objetiva da possibilidade de aumento produtivo, pela disposição de bens


de consumo presentes suficientes para suprir o grau de subsistência necessário durante o tempo
de investimento indireto e aumento de etapas, é o que induz à avaliação subjetiva de que os
bens presentes tenham maior valor em relação aos bens futuros.
Em resumo, as três causas principais da valoração maior de bens presentes em relação
aos futuros são: a diversidade das condições de suprimento no presente e no futuro (diferenciais
de oferta e demanda no tempo), a subavaliação de vantagens e bens futuros por diferença de
perspectiva, e a superioridade ou produtividade maior de métodos de produção indiretos (de
duração mais longa). Posto isto, pode-se verificar a atuação simultânea destes três fatores. Os
dois primeiros possuem efeitos cumulativos, no entanto, o terceiro, ainda que possa reforçar a
atuação dos demais, faz isto por alternação, e não por acumulação. Para o austríaco,

A superioridade que os bens presentes adquirem pelo fato de ser possível utilizar
métodos indiretos de produção longos e mais produtivos não pode ser reforçada pela
subavaliação de bens futuros em virtude da defasagem de perspectiva, porque a
utilidade decorrente de métodos indiretos de produção longos é ela mesma uma
utilidade para o futuro, a qual é também atingida, e na mesma medida, pelos bens
futuros cujo valor se compara com o dos bens presentes (Böhm-Bawerk, 1986, p.
295).

A conclusão apresentada é que, dessas três avaliações subjetivas,

[...] resulta, no mercado em geral, uma superioridade dos bens presentes relativamente
a valor de troca objetivo e preço de mercado. Essa superioridade retroage e faz com
que façam uma avaliação subjetiva (do valor de troca) mais alta dos bens presentes
também aquelas pessoas que, por suas condições pessoais casuais, não atribuem a
esses bens presentes um valor de uso subjetivo maior. Ao final, as tendências
niveladoras do mercado fazem com que a inferioridade do valor dos bens futuros
apresente uma proporção regular com o intervalo de tempo que os separa do presente.
Por conseguinte, na Economia da nação há uma inferioridade geral dos bens futuros,
no tocante ao valor subjetivo, de acordo com o intervalo de tempo que os separa do
presente (Böhm-Bawerk, 1986, p. 300).

Eis a teoria do valor-tempo. Essa diferença natural de valor em relação ao tempo é o


que origina o fenômeno do juro na teoria bawerkiana. Para o autor, existem novamente três
casos principais em que esse fenômeno se revela.
O primeiro caso, e mais descomplicado, é o empréstimo e o juro por empréstimo. A
dedução lógica é simples na medida em que, se os bens presentes possuem vantagem sobre os
bens futuros, o mutuário sempre terá que “comprar” as unidades monetárias presentes por uma
quantia maior de unidades monetárias futuras, em que o diferencial nada mais é do que o prêmio
de juro. É a diferença de valor entre bens presentes e bens futuros.
O segundo caso trata da compra e o emprego produtivo de bens de ordens superiores, é
o ganho de capital auferido pelos empresários. Este provavelmente é o caso mais estudado pelos
21

teóricos do valor, uma vez que representa a fonte original dos fenômenos associados ao juro,
muitas vezes chamado propriamente de lucro empresarial, juro original do capital, ou mais-
valia.
Inicialmente, deve-se ter em consideração que bens de ordem superior são mercadoria
futura, mesmo que estejam presentes fisicamente. Mercadoria futura no sentido de que o
produto pronto para consumo leva tempo para ser de fato disponibilizado. Grãos de milho para
confecção de subprodutos e maquinário, por exemplo, ainda que dispostos corporalmente, só
podem suprir a necessidade de alimentação pelo subproduto após determinado período, sendo
assim, sua utilidade é futura. Se, por exemplo, determinados meios de produção são capazes de
gerar um produto à utilidade de 100 unidades monetárias, mas que tal produto demore 1 ano
para ser produzido, então, ainda que esse conjunto de meios de produção tenha a importância
de 100 unidades monetárias, o valor presente equivalente às 100 unidades deverá ser menor,
visto que se trata de uma mercadoria futura.
Se, como visto, meios de produção são mercadoria futura ao mesmo tempo em que seu
preço é avaliado em termos de bens presentes, que possuem maior valor, então o lucro só pode
ser gerado por meio do empresário, já que “[...] sua mercadoria futura amadurece
paulatinamente, durante o avanço da produção, para transformar-se em mercadoria presente, e
consequentemente ela passa a adquirir o valor pleno de mercadoria presente” (Böhm-Bawerk,
1986, p. 311). À medida que o tempo passa, as necessidades que anteriormente eram
subavaliadas, agora possuem a utilidade de mercadoria presente, de tal modo que elimina as
razões subjetivas que deduziam seu valor objetivo em relação ao tempo. A mercadoria,
portanto, que foi comprada a um preço reduzido, agora possui efetivamente o valor pleno de
um bem presente.
Esse diferencial gerado ao longo do tempo, o aumento de valor, é precisamente o ganho
de capital. Mesmo para meios de produção que admitem diferentes alternativas de emprego,
não é difícil trazer a valor presente os fluxos futuros proporcionais a seus respectivos
distanciamentos temporais. De todas as possibilidades de emprego para o meio de produção, o
valor da utilidade marginal deste meio de produção é determinado pelo menor valor entre todas
aquelas maiores utilidades marginais que podem ser derivadas dessas possibilidades.
O terceiro e último caso principal é o juro proveniente de bens duráveis. Fazendo uma
aproximação com a Ciência das Finanças, o argumento tratado aqui não se distancia muito dos
conceitos de desconto e custo de oportunidade. Trata-se de uma abordagem sobre bens que
possuem condições de prestar vários e diferentes tipos de serviços, de forma sucessiva. O valor
22

dos bens duráveis, justamente pelo motivo anterior, só pode ser representado por uma grandeza
composta. Em síntese, para este caso

O proprietário de um bem durável pode continuamente apurar o valor pleno (maior)


da respectiva prestação de serviços então presente; esse valor representa o ‘produto
bruto’ do bem de capital ou seu ‘juro bruto’. Mas, devido ao atraso, em termos de
tempo, das prestações de serviços mais remotas, o proprietário perde sempre apenas
o valor menor da última prestação de serviços que ainda inere ao bem, valor este que
determina a grandeza da ‘cota de resgate’; portanto, lhe sobra sempre uma diferença
entre o juro bruto e a cota de desgaste, diferença que constitui para ele um ganho ou
juro líquido. E a causa à qual o juro líquido deve sua existência não é outra coisa senão
um aumento de valor das prestações de serviços futuras, que no início tinham valor
menor, mas durante a duração do uso se tornam presentes ou pelo menos se
aproximam sempre mais do presente (Böhm-Bawerk, 1986, p. 340).

Diante disto, a dinâmica do juro pode ser descrita da forma que se segue. Indivíduos
com baixa preferência temporal (menor valoração psíquica de bens presentes) se propõem
dispostos a trocar bens presentes por futuros, disponibilizando-os aos indivíduos de alta
preferência temporal (maior valoração de bens presentes) mediante recebimento dos bens
futuros a um preço relativo mais alto. Essa dinâmica de trocas, quando associada à criatividade
da função empresarial, tende a determinar um preço de mercado dos bens presentes em
relação/função aos bens futuros, esse preço, portanto, é a própria taxa de juro.
Destarte, pode-se denominar como poupadores aqueles que renunciam ao consumo
imediato, ofertando bens presentes, em troca do consumo futuro de um quantum maior de bens.
As trocas podem assumir várias formas, seja como contratos de trabalho, em que os
poupadores/capitalistas adiantam bens presentes como pagamentos aos proprietários de fatores,
objetivando o recebimento de um produto finalizado no futuro, ou em cooperativas, em que os
trabalhadores são também os próprios capitalistas, e, é claro, no mercado de crédito, em que é
mais fácil a visualização desse processo, em termos monetários. De Soto (2012, p. 261) afirma
que os únicos rendimentos diretamente observáveis são a taxa de juro bruta (de mercado) e os
lucros contábeis brutos da atividade produtiva. A taxa de juro bruta é composta pela taxa
“natural” que foi descrita anteriormente, mais o prêmio de risco da operação, mais o prêmio
pela inflação esperada.
Os juros, representados como uma taxa de preferência e preço de mercado, portanto,
ordenam e equilibram as ações conjuntas de poupadores, consumidores e produtores, tanto
intra-temporalmente como intertemporalmente. Assim, quanto menor for a preferência
temporal e, portanto, mais bens estiverem sendo oferecidos no presente, maior será a poupança
social e menor será o preço relativo dos bens futuros, o que significa uma taxa de juros
igualmente menor. Nesse contexto, a taxa de juros sinaliza ao mercado uma maior
23

disponibilidade de bens presentes, permitindo aos empresários investir em processos produtivos


de maior duração e maior complexidade em cada etapa, aumentando a produtividade total. O
caso inverso, de pouca oferta de bens presentes e alta taxa de juros, sinalizaria a escassez de
poupança, o que representa uma ressalva ao leque de oportunidades, tempo e nível de duração
com os quais os empresários poderiam trabalhar.
Conclui-se esta seção com a noção de que o agente capitalista, na dimensão essencial
de sua atuação, é aquele comerciante que possui mercadoria presente para vender, isto é,
capitalista é aquele que detém bens de ordem inferior que são mais que suficientes para
satisfazer suas necessidades presentes. Como visto na terceira causa da maior valoração de bens
presentes, o empresário, ou capitalista, nestas condições de abundância de bens presentes, pode
trocar as mercadorias atuais por mercadoria futura, fazendo com que ela amadureça ao longo
das etapas produtivas e ao longo do tempo, até que finalmente se tornem mercadoria presente
em seu valor pleno.
Em síntese, o que Böhm-Bawerk se propôs a examinar, foi a forma em que as condições
psicológicas e práticas dos agentes econômicos se relacionam temporalmente, e como essas
relações acabam por determinar a dinâmica do capital e do juro em função do tempo. A teoria
geral, em resumo, pode ser escrita simplificadamente da seguinte maneira:

A proporção entre consumo e poupança ou investimento é determinada pelas


preferências temporais das pessoas – o grau em que elas preferem satisfações
presentes ou futuras. Quanto menos elas as preferirem no presente, menor será sua
taxa de preferência temporal, e menor, portanto, a taxa pura de juros, que é
determinada pelas preferências temporais dos indivíduos na sociedade. Uma taxa mais
baixa de preferência temporal será refletida em maiores proporções entre investimento
e consumo, no prolongamento da estrutura de produção, e em formação de capital.
Preferências temporais mais altas, por outro lado, refletir-se-ão em taxas de juros
puras mais altas e numa proporção menor entre investimento e consumo (Rothbard,
2012, p.52).

O fato de se necessitar de um esforço simultâneo de observação direta e subjetiva atribui


a esta teoria um grau de complexidade reconhecido por diferentes autores e correntes
econômicas. John Hicks, Schumpeter, Fisher, Wicksell e muitos outros economistas
complementaram e criticaram vários pontos apresentados por Böhm-Bawerk. Nas próximas
seções, serão analisadas as propostas de alguns desses autores, bem como a conexão de
intuições observada entre eles.

3.2 Schumpeter: Poder de compra e a função do mercado de capitais


24

Joseph Alois Schumpeter (1883-1950) nasceu em Triesch, província austríaca que hoje
pertence a República Tcheca, e graduou-se em Direito pela Universidade de Viena. No entanto,
foi às Ciências Econômicas que dedicou a maior parte de seu tempo e trabalho, obtendo,
igualmente, maior prestígio. Muitas vezes associado à Escola Austríaca de Economia,
Schumpeter de fato baseou boa parte de seus estudos sobre valor e juro a partir dos trabalhos
de Böhm-Bawerk.
Quando se propôs a desenvolver sua Teoria do Desenvolvimento Econômico (1982),
definiu o capital como sendo “a alavanca com a qual o empresário subjuga ao seu controle os
bens concretos de que necessita [...], desviando os fatores de produção para novos usos, ou
ditando uma nova direção para a produção” (Schumpeter, 1982, p. 80). No entanto, o autor se
diferencia dos demais por considerar como capital apenas aqueles bens que são meios de
pagamento, não necessariamente dinheiro, mas, de forma ampla, todos aqueles meios de
pagamento que estão disponíveis para transferência aos empresários em determinado momento.
Para este autor, o cerne da investigação em valor e juro deve ser concentrado no juro
sobre empréstimos produtivos, os Produktivzins. Essa concepção é ligeiramente a ideia já
comentada de que o juro produtivo é derivado (mas distinto) dos lucros, sendo, na visão de
Schumpeter, uma ramificação que se espalha sobre todo o sistema econômico na forma de
rendimentos líquidos. Como dito, sua teoria dos juros é parcialmente baseada na já apresentada
teoria bawerkiana, entretanto, Schumpeter (1982) rejeita aquela segunda causa em que se atribui
prêmio em valor ao poder de compra presente, a saber: o desconto sobre os prazeres futuros, a
causa psicológica. Schumpeter, como se sabe, ficou conhecido pelo seu conceito de “destruição
criativa” (Schumpeter, 1961), em que o empresário se torna a figura central do modelo
capitalista, justamente por ser o agente que “quebra” o fenômeno da circularidade em uma
economia estática. Portanto, ao contrário de uma situação em que o valor do produto seria
inteiramente retroagido aos meios de trabalho e da terra, num processo de imputação (na qual
a própria concorrência se encarregaria de eliminar quaisquer excedentes de valor entre produto
e esses serviços de trabalho e da terra), existe um diferencial de valor que Schumpeter chama
de excedente permanente.
Esse excedente permanente, tal como na teoria de Böhm-Bawerk, é derivado do
aparecimento de um prêmio ao poder de compra presente em relação ao poder de compra futuro.
A principal força atuante sobre o poder de compra presente é a própria demanda que, na visão
de Schumpeter, é aquela exercida pelos empresários (Schumpeter não considerava o
25

empréstimo ao consumo como determinante no processo de desenvolvimento econômico, uma


vez que este último não é capaz de se realizar sem que haja a ação empresarial).
Os empresários, agentes inovadores e capazes de gerar crescimento econômico,
demandam capital (meios de pagamento) dos prestamistas (capitalistas), de acordo com as
possibilidades de lucro que visualizam com a utilização dessa soma de capital. Portanto, tem-
se uma relação de oferta e demanda pelo poder de compra presente, em que os agentes
empresários se colocam pelo lado da demanda, enquanto os capitalistas portadores de poder de
compra presente se colocam do lado da oferta. Nesse contexto,

[...] na luta da troca no mercado monetário, estabelecer-se-á um preço definido para o


poder de compra, exatamente como em qualquer outro mercado. E uma vez que, em
regra, ambas as partes dão valor mais alto para o dinheiro presente que para o futuro
– o empresário, porque o dinheiro presente significa para ele mais dinheiro futuro, o
emprestador, porque segundo nossas proposições o dinheiro presente torna possível o
curso ordenado de sua atividade econômica, ao passo que o dinheiro futuro e
meramente acrescentado à sua renda – o preço estará praticamente sempre acima do
par (Schumpeter, 1982, p. 129).

O processo descrito é o entendimento do autor de que bens concretos não são capital,
mas que podem ser convertidos ou trocados por capital. Assim, o empresário precisa de acesso
ao capital, a fins de usufruir desse poder de compra, auferindo bens para sua inovação (Hebeche,
2015). Daí a importância do crédito produtivo tão defendida por Schumpeter. O fenômeno do
juro é, portanto, indissociável do mercado monetário, mais especificamente, do mercado de
capitais, pois o próprio capital entendido como detentor de poder de compra é a base do juro,
diferenciando-se, por conseguinte, do lucro empresarial.

3.3 Wicksell e a reserva de valor da moeda no tempo

Johan Gustaf Knut Wicksell (1851-1926) nasceu em Estocolmo, Suécia, e é amplamente


conhecido por suas contribuições ao estudo das teorias monetárias e dos juros, principalmente
ao desenvolver, para esta última, o conceito de taxa natural de juros. Por esta mesma concepção
foi também responsável por significativa influência na teoria dos ciclos de Hayek, com sua
representação “triangular”2 de incorporação do tempo na estrutura de capital (Soromenho,
1998).

2
O “triângulo de Hayek” é uma forma simplificada de representar a estrutura de produção, conciliando elementos
wicksellianos e bawerkianos. A estrutura é formada por retângulos dispostos um ao lado do outro, de forma
verticalizada, representando as diferentes etapas de produção. Mais à esquerda estão as etapas mais distantes do
consumo, compostas pelos bens de ordem superior, e mais à direita estão as etapas mais próximas ao consumo,
compostas pelos bens de ordem inferior. O eixo horizontal mede, portanto, o tempo envolvido, enquanto o eixo
vertical – ou a altura de cada retângulo – reflete o valor da produção de cada etapa. Assim, a estrutura completa
26

No que concerne à teoria do valor, o sueco, em sua obra Lectures on Political Economy
(1946), faz críticas a parca generalidade de aplicação das causas apontadas por Böhm-Bawerk
que acarretam a preferência maior por bens presentes. Por exemplo, Wicksell aponta que

A circunstância apresentada por Böhm-Bawerk de que aqueles que esperam uma


satisfação menos abundante das suas necessidades podem sempre acumular
mercadorias existentes (especialmente os metais preciosos e outros bens duradouros)
não pode, por si só, ser uma garantia de uma taxa de juro positiva, mas apenas implica
que os juros não podem cair num sentido negativo inferior ao que corresponderia aos
riscos e custos associados ao armazenamento destes objetos (Wicksell, 1946, p. 170).

Adicionalmente, o autor considera equivocada a afirmativa de superioridade técnica de


bens presentes em relação aos bens futuros, pois o princípio da vantagem dos métodos indiretos
de produção não necessariamente implica que o processo produtivo possa ser prolongado
indefinidamente com sucesso. Além do que, para Wicksell (1954), é inconcebível resolver o
problema do juro sem se referir aos mercados de capital e trabalho.
De qualquer modo, o método proposto por Knut Wicksell (1946) para analisar os juros
tem como objetivo enfatizar a centralidade do elemento tempo que, para ele, constitui o
verdadeiro cerne do conceito de capital. Wicksell forneceu uma explicação alternativa ao
fenômeno da origem dos juros e da solução do problema da distribuição na produção capitalista,
presumindo que toda a oferta disponível de trabalho e terra em determinado momento é
investida na produção de uma só uma vez, ao mesmo tempo ou possivelmente em momentos
diferentes.
O sueco inicia sua consideração no contexto mais simples de emprego do capital,
caracterizado pela utilização única dos fatores originais – terra ou trabalho – em um momento
indivisível de tempo, seguido pelo amadurecimento espontâneo dos seus frutos por forças
naturais. Exemplifica esse caso com a oferta de vinho para consumo ou o plantio de árvores em
terrenos estéreis, já que esses produtos amadurecem espontaneamente sob a influência de forças
naturais livres. Nesse cenário, a função do capital reside na preservação dos serviços de trabalho
e terra por um período específico, sendo a duração do tempo a única dimensão variável do
capital, quando a oferta total de trabalho e terra é fixa. O juro aparece então na sua forma mais
pura como o que ele chama de “produtividade marginal da espera” ou, em outras palavras, a
produtividade marginal do tempo. A dedução das leis gerais do capital e dos juros a partir desses
casos simples é considerada por Wicksell como um ingrediente essencial na explicação dos
fenômenos mais complexos relacionados ao emprego efetivo do capital.

de produção forma uma espécie de triângulo retângulo, ligando os pontos de início e término da dimensão
temporal, ao ponto de máximo valor agregado da produção, isto é, o valor do bem de consumo final.
27

Posteriormente, Wicksell aplicou a questão temporal nos seus estudos sobre teoria
monetária. A questão apresentada se desdobra no fato de que

Em geral, não existe, intertemporalmente, coincidência de vendedores e compradores.


O agente que compra uma mercadoria de um particular indivíduo na primavera não
será, em geral, o mesmo que lhe venderá outra mercadoria no outono. As vendas,
então, podem ser realizadas a crédito, mas o ressarcimento das dívidas deve ser
efetuado por meio de um instrumento universal de pagamentos (Soromenho, 1995, p.
89).

Ou seja, a ausência de coincidência temporal entre pagamentos e recebimentos exige


intermediação monetária, em que a moeda é introduzida na função de reserva temporária de
valor. Sendo assim, “o papel de reserva de valor que a moeda cumpre na economia de caixa
adquire, na visão de Wicksell, o caráter de uma troca intertemporal de consumo entre agentes
econômicos” (Soromenho, 1995, p. 89). Essa visão termina por se aproximar da noção
schumpeteriana de que os indivíduos portadores de moeda (o capital, para Schumpeter) são os
credores da sociedade. Portanto, qualquer moeda constitui, na verdade, um instrumento de
crédito (Wicksell, 1936).

3.4 John Hicks: A abordagem “neo-austríaca”

Laureado com o Nobel de Economia em 1972, o britânico John Richard Hicks (1904-
1989) foi um dos nomes mais influentes da Ciência Econômica no século XX. Diferentemente
dos autores anteriores, a visão de Hicks deve ser distinguida em duas fases ou,
cronologicamente, dois períodos distintos. Isto porque, curiosamente, existiram “dois Hicks”:
O primeiro, cujo pensamento foi destrinchado na obra Valor e Capital, publicada originalmente
em 1939, teceu uma análise estritamente rigorosa sobre as teorias do capital e juros de Böhm-
Bawerk. Tal como Wicksell, percebia pouca generalidade da concepção austríaca, julgando-a
como um caso de exceção, e não universal; O segundo, muito mais preocupado com as
implicações do tempo na teoria do capital, despejou forte interesse pela visão dos austríacos,
introduzindo a ela uma nova perspectiva, a qual, em seu livro Capital and Time (1973), chamou
de abordagem “neo-austríaca”.
A primeira fase da concepção de Hicks sobre a influência temporal no valor econômico
pode ser sintetizada em sua indagação quanto a teoria do capital, quando diz que “é claro que
Böhm-Bawerk estava errado, mas deve haver algo de verdade no que ele disse, não se pode
elaborar uma teoria tão requintada como essa a partir do nada. O fundo de verdade da teoria
austríaca precisa ser descoberto [...]” (Hicks, 1984, p. 160). Para Hicks, a teoria do capital
28

passava pela maximização do planejamento de produção pelo empresário. Nesse sentido, dever-
se-ia haver três condições necessárias para que o valor presente de um planejamento fosse
máximo, a saber: “1) uma taxa marginal crescente de substituição entre produtos; 2) uma taxa
marginal decrescente de substituição entre insumos; 3) uma taxa marginal decrescente de
transformação de um insumo num produto” (Hicks, 1984, p. 164), estabelecendo uma condição
dinâmica para que o fluxo de excedentes dos insumos no tempo seja positivo.
O erro de Böhm-Bawerk, portanto, não foi em conceber o processo de produção como
um processo temporal, mas sim a sua concentração no que seria o caso mais simples desse
movimento, em que todo insumo é utilizado numa determinada data, e todo produto é concluído
em outra data determinada. O problema, destarte, foi considerar que o resultado válido para tal
caso simples pudesse ser generalizado em relação a todos os outros casos. Evidentemente,

Nesse caso simples há somente um termo do fluxo antecipado de excedentes – o valor


do produto na data do seu acabamento, em consequência disso, não importa que
medidas sejam usadas no cálculo do ‘período médio’; em qualquer sistema de cálculo,
o ‘período médio’ de ‘fluxo’ rudimentar deve ser igual ao período real de produção,
o período de tempo real que deve passar até que o processo se complete (Hicks, 1984,
p. 181).

O período médio, neste caso, deve ser entendido como a média dos períodos de tempo
pelos quais é necessário esperar pelos produtos acabados fabricados com o insumo inicial.
Entretanto, como aponta Hicks, a variação desse período tem importância, mas não a duração
absoluta do período em si, pois este mede apenas o “crescendo” do planejamento, não
oferecendo relação com a tecnicidade dos métodos de produção (Hicks, 1984).
Na segunda fase de Hicks, em sua abordagem “neo-austríaca”, o britânico abandona não
só o conceito de período médio de produção, como também a noção de uma taxa máxima de
lucros para o sistema econômico como um todo (Gerhke; Kurz, 2009). Em troca, o modelo de
tempo deveria ser estabelecido a partir de uma teoria de fluxo-produto. Pelo conceito de fluxo-
produto, qualquer planejamento deve ter um valor de capital presente líquido, isto é, o fluxo
descontado da soma dos valores líquidos projetados para o decorrer de sua vida útil. Isso é
evidente, mas o que Hicks explicita é a “forma como as avaliações de valor presente mudam ao
longo do tempo, especificamente ao longo da vida do projeto. Ele aborda a estrutura de valor
intertemporal, a lógica dentro de um único plano humano relativo à relação dos valores de
capital em várias datas contempladas entre si” (Lewin, 1997, p. 66, tradução nossa). Diante
disso, Hicks conclui com o que ele chama de princípio fundamental, em que, a uma determinada
taxa real de salário, um aumento (queda) na taxa de juros diminuirá (aumentará) o valor de
capital do processo de produção para todos os horizontes de tempo.
29

Apesar disso, em pouco tempo a abordagem de Hicks tornou-se obsoleta, já que nos
anos seguintes houve uma grande modernização e incorporação das expectativas racionais, dos
choques estocásticos e do comportamento sob condições de incerteza aos modelos econômicos
usuais. Para Burmeister,

Hicks provavelmente tinha dois objetivos principais ao escrever Capital e Tempo:


1. Para esclarecer o papel puro do tempo na economia, sem as complicações de
incerteza, fornecendo uma alternativa à função de produção padrão que nos ajudaria
a compreender melhor a determinação das taxas de salários reais.
2. Estabelecer as propriedades de estabilidade dinâmica para modelos usando sua
tecnologia neo-austríaca alternativa (Burmeister, 2002, p. 22, tradução nossa).

Em termos gerais, a teoria neo-austríaca pode enfatizar a coordenação intertemporal dos


planos individuais na economia. Hicks, ao desenvolver sua tecnologia neo-austríaca,
provavelmente buscava demonstrar como essa abordagem oferece uma estrutura dinâmica para
modelos econômicos, explorando a interação entre tempo e processos de mercado.

3.5 Irving Fisher: impaciência e renda

Uma das principais obras do economista estadunidense Irving Fisher (1867-1947) é


justamente denominada A teoria do juro. Interessante observar a sua dedicatória em memória
à John Rae e Böhm-Bawerk que, como ele mesmo disse, estabeleceram os alicerces sobre os
quais se empenhou a construir. A sua definição de preferência temporal é “o excedente ou
porcentagem da precisão marginal presente de uma unidade a mais de bens presentes sobre a
precisão marginal presente de uma unidade a mais de bens futuros” (Fisher, 1984, p. 47).
Fisher prefere o uso do termo “impaciência”, pelo seu significado mais evidente e por
sua suposição da direção usual da preferência temporal. A grande característica própria de
Fisher sobre esse conceito foi a de relacioná-lo ao capital-riqueza que, em última análise, é a
própria renda. Para ele, portanto, a preferência reduz-se à preferência pela renda
comparativamente antecipada sobre a renda comparativamente remota, ou protelada. Da mesma
forma, a preferência pela renda imediata sobre a renda tardia, reduz-se à preferência pela renda-
prazer antecipada sobre a renda-prazer protelada. A mecânica é a seguinte:

O grau de impaciência varia, naturalmente, com o indivíduo, mas quando


selecionamos nosso indivíduo, o grau de sua impaciência depende do seu fluxo de
renda total, tendo início no instante presente e estendendo-se indefinidamente no
futuro. [...] O fato essencial é que para qualquer indivíduo determinado em qualquer
época determinada, sua impaciência depende de uma maneira definida da dimensão,
do perfil temporal e da probabilidade de seu fluxo de renda (Fisher, 1984, p. 50-63).
30

Por conseguinte, a impaciência de um indivíduo poderia depender de quatro diferentes


características do fluxo de renda. A primeira trata-se da dimensão do fluxo de renda real
esperado, no sentido em que, quanto menor for a renda de um indivíduo, maior será a
preferência do mesmo pela renda presente em relação à futura. A segunda é a distribuição do
fluxo de renda esperada no tempo (perfil temporal), de forma que, se a renda de um indivíduo
é crescente, é mais provável que ele também tenha maior preferência pela renda presente (a
percepção é de que a renda presente é escassa e a renda futura abundante).
A terceira refere-se à composição do fluxo. Toma-se, por exemplo, uma diminuição na
proporção de um bem cuja utilidade é de necessidade primária. Tal condição evidentemente
afetará a impaciência da mesma forma como se fosse uma diminuição na renda total. A quarta
e última característica é a probabilidade ou grau de risco (incerteza) do fluxo de rendimentos.
Por definição, “a renda futura está sempre sujeita a alguma incerteza, e esta incerteza deve,
naturalmente, ter uma influência sobre a taxa de preferência temporal, ou grau de impaciência,
de seu possuidor” (Fisher, 1984, p. 55).
Fisher estabelece, ainda, que a preferência temporal de um indivíduo varia conforme
seis fatores diferentes:
1. Sua previsão, por exemplo, por um treinamento visando fomentar uma
conscientização da necessidade de precaver-se contra o proverbial “dia
chuvoso”;
2. Seu autocontrole, pela educação em autocontrole;
3. Hábito, pela formação de hábitos de frugalidade, evitando parcimônia de um
lado e extravagância de outro;
4. A perspectiva de duração e certeza de sua vida, como, por exemplo, melhor
higiene e cuidado com a saúde pessoal, levando a uma vida mais longa e mais
saudável;
5. Seu amor pela prole e consideração com as gerações futuras, como incentivos
para prover mais generosamente a prole e as gerações futuras;
6. Moda, pela modificação da moda visando gastos menos perdulários e
prejudiciais com o fim de ostentação pretensiosa. Todos esses fatores podem se
relacionar entre si, alterando o grau de preferência pela renda presente e
influenciando fortemente na taxa de juro.
Por fim, o resultado do somatório dessas tendências determinará o nível de sua
impaciência, em um determinado momento, sob condições específicas e diante de um
31

determinado fluxo de renda (Fisher, 1984). Isso pode variar tanto para diferentes indivíduos
quanto para o mesmo indivíduo em diferentes momentos do tempo. Igualmente, no correr de
sua vida, uma pessoa pode transitar de um extremo de impaciência para outro, sendo essa
mudança influenciada pela evolução da própria natureza do indivíduo ou por alterações em seu
fluxo de renda, seja pela mudança na sua dimensão, perfil temporal ou incerteza associada.

4 DIFERENÇAS E TRANSIÇÃO ENTRE O PENSAMENTO AUSTRÍACO E O


MAINSTREAM

É comum considerar o pensamento austríaco como sendo essencialmente heterodoxo,


seja pela sua abordagem epistemológica da “praxeologia” (Mises, 2010), seja pelo forte teor
liberalizante de suas propostas político-econômicas. Ao considerar a definição de Dequech
(2007) para o conceito de ortodoxia, Angeli (2018) desconsidera a possibilidade de a Escola
Austríaca ser considerada ortodoxa, já que

Em particular com relação ao termo ortodoxia, ele a identifica atualmente com a


Escola Neoclássica, que é assentada sobre três pilares: destaque para racionalidade
(entendida como maximização de utilidade), ênfase sobre estado(s) de equilíbrio e
negligência de tipos fortes de incerteza. Pode-se argumentar que a Escola Austríaca
rejeita estes três pontos e, portanto, não pode ser considerada ortodoxa (Angeli, 2018,
p. 683).

Na mesma linha,

três características marcariam a singularidade do austrianismo face outras correntes


de pensamento econômico: (i) o radical subjetivismo que inclui não só preferências,
mas também expectativas; (ii) a inclusão do tempo como variável relevante ao estudo
da economia, com particular atenção às alterações no conhecimento disponível; e (iii)
a desconfiança com relação à utilização de categorias que não sejam expressões do
que existe nas mentes do homo agens misesiano, em particular a utilização de
agregados macroeconômicos e o estudo de suas relações (Lachmann, 1978, apud
Angeli, 2018, p. 688-689).

De fato, desde a revolução marginalista, dos três principais nomes que a encabeçaram,
Walras, Jevons e Menger, este último priorizou fundamentalmente a análise não matemática do
subjetivismo e da utilidade marginal (Menger, 1983). Pelo contrário, o rumo tomado pela linha
mainstream neoclássica, hoje denominada Microeconomia, foi justamente a tentativa de
formalização matemática das teorias econômicas em modelos algébricos. O próprio Jevons
(1983) acreditava que a Economia enquanto ciência deveria ser, antes de tudo, uma ciência
matemática.
32

Muitos pontos comparativos entre os austríacos e neoclássicos podem ser obtidos em


De Soto (2010). Em relação ao proposto neste trabalho, pode-se sintetizar algumas diferenças
elementares entre essas correntes de pensamento, além da já citada diferença de lógica verbal e
formalismo matemático.
O primeiro, evidentemente, é o papel do tempo na economia e que, para os austríacos,
desempenha papel essencial, adquirindo uma função apenas secundária no paradigma
neoclássico. Do mesmo modo, enquanto para os primeiros o capital é concebido como um
conjunto heterogêneo de bens de capital, para os segundos é comum que se atribua uma forma
homogênea. Os austríacos também negam o fluxo circular do rendimento, assumindo que o
processo produtivo é dinâmico e desagregado em múltiplas etapas verticais. Por conseguinte,
ao contrário da abordagem mainstream por funções de produção e reprodução “lateral” do
capital, os austríacos acreditam que a poupança é responsável por determinar a mudança
longitudinal na estrutura produtiva, além da própria tecnologia a ser utilizada, portanto, esta
não poderia ser considerada dada a priori.
Ainda segundo De Soto (2010), na concepção austríaca a procura por bens de capital
varia no sentido contrário à procura por bens de consumo, diferentemente da abordagem
unidirecional dos neoclássicos. E, por fim, quanto à taxa de juros, agora amplamente associada
à produtividade marginal do capital, isto é, a taxa interna de retorno que iguala o fluxo de
rendimentos com o custo histórico de produção dos bens de capital, na verdade, no pensamento
austríaco, é determinada por valorações subjetivas de preferência temporal.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, é possível verificar que houve, ao longo do tempo, um


desenvolvimento significativamente complexo, mas altamente proveitoso, da argumentação em
favor do papel do tempo na teoria econômica. Isso por si só demonstra a suma importância de
se avaliar a questão temporal na perspectiva da geração de valor, tanto pela perspectiva
subjetiva quanto do ponto de vista concreto.
Em síntese, o conceito de preferência temporal pode ser definido, basicamente, como
uma categoria lógica em que, ceteris paribus, os agentes econômicos preferem satisfazer suas
necessidades ou atingir seus objetivos o mais cedo possível, ou, mais simplificadamente, que
os seres humanos, diante das mesmas circunstâncias, dão mais valor aos “bens presentes” do
que aos “bens futuros” (De Soto, 2012). A intensidade dessa valoração, evidentemente, é
33

totalmente subjetiva e varia significativamente para cada indivíduo, seja ao longo do tempo ou
por mudanças circunstanciais. No entanto, é justamente essa diferença de intensidade que
permite ao sistema econômico, ou, mais especificamente, ao mercado, fornecer o terreno
necessário ao surgimento de diversas oportunidades de trocas benéficas.
Por conseguinte, a preferência temporal dos indivíduos, ou seja, sua disposição para
esperar por benefícios futuros em vez de obter recompensas imediatas, influencia a dinâmica
de trocas no mercado. Indivíduos com baixa preferência temporal estariam dispostos a trocar
bens presentes por futuros, enquanto aqueles com alta preferência temporal estariam mais
inclinados a valorizar os bens presentes. A criatividade da função empresarial, neste contexto,
desempenharia um papel crucial na determinação do preço de mercado dos bens presentes em
relação aos bens futuros. Essa interação intertemporal é o que define, consequentemente, a taxa
de juros.
Em termos gerais, cada pensador teve sua contribuição (seja a favor ou como crítica) à
teoria do valor-tempo. Turgot introduziu o conceito de utilidade subjetiva, John Rae apresentou
o “desejo efetivo de acumulação”, Marx demonstrou o problema econômico do surgimento do
juro, e Böhm-Bawerk desenvolveu a teoria da preferência temporal. Posteriormente,
Schumpeter apontou a relevância da demanda presente por bens de capital para inovação,
Wicksell alertou para o descompasso temporal entre pagamentos e recebimentos, Hicks
estabeleceu o modelo de tempo em relação a uma teoria de fluxo-produto e, por fim, Fisher
propôs uma perspectiva de preferência temporal em termos de renda.
A análise das diferenças e transição entre o pensamento austríaco e o mainstream revela
uma clara dicotomia na abordagem econômica. A Escola Austríaca destaca-se por sua natureza
heterodoxa, fundamentada em princípios como o radical subjetivismo, a consideração crucial
do tempo na análise econômica e a desconfiança em relação à formalização matemática e
agregados macroeconômicos. Em contraste, o mainstream neoclássico, enraizado na
formalização matemática, racionalidade maximizadora e foco em equilíbrio, representa uma
visão mais ortodoxa. Essas diferenças fundamentais, como a importância atribuída ao tempo na
economia, a concepção heterogênea do capital e a determinação da taxa de juros por valorações
subjetivas, ressaltam a complexidade e a divergência entre as duas correntes de pensamento
econômico. Este contraste não apenas evidencia a riqueza de perspectivas na análise econômica,
mas também destaca a importância de compreender e explorar diferentes paradigmas para
promover um diálogo enriquecedor no campo da teoria econômica.
34

Portanto, finalmente, observa-se que o papel do tempo na determinação do valor


econômico pode ser estabelecido por múltiplas formas. Em geral, não se nega que a hipótese
da preferência temporal é sustentável em muitas situações distintas, ainda que não seja
totalmente universal. A influência de sua ocorrência no valor ou na determinação dos juros
depende, fundamentalmente, das forças que atuam sobre ela.
Como explicitado na introdução e ao longo deste trabalho, a ideia de preferência
temporal não é exclusiva de algum autor e tampouco de alguma escola de pensamento. Existem
considerações a respeito que foram investigadas por Ricardo, Jevons, Keynes e inúmeros outros
pensadores de suma importância para a Ciência Econômica. O trabalho encontra, portanto,
limitações quanto à abrangência de pensadores e teorias, o que o torna mais concentrado sobre
o aspecto da preferência temporal (no sentido de preferência por bens presentes) em relação à
dinâmica do tempo nos processos econômicos em geral. Por outro lado, essas limitações abrem
um leque de possibilidades de investigação, direcionando-as à diferentes abordagens e
perspectivas dentro do campo da preferência temporal. Dessa forma, este trabalho não pretende
ser exaustivo, mas sim um ponto de partida para investigações mais amplas e detalhadas sobre
os desdobramentos do tempo na Economia.
35

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