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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Museu Nacional

A “PISTA” E O “CAMELÓDROMO”
CAMELÔS NO CENTRO DO RIO DE JANEIRO

Patrícia Delgado Mafra

Rio de Janeiro
2005
A “PISTA” E O “CAMELÓDROMO”
CAMELÔS NO CENTRO DO RIO DE JANEIRO

Patrícia Delgado Mafra

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de


Pós-graduação em Antropologia Social, Museu Nacional,
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em
Antropologia Social

Orientador: Prof. Dr. Gilberto Cardoso Alves Velho

Rio de Janeiro
Fevereiro de 2005

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A “PISTA” E O “CAMELÓDROMO”
CAMELÔS NO CENTRO DO RIO DE JANEIRO

Patrícia Delgado Mafra

ORIENTADOR: PROF. DR. GILBERTO CARDOSO ALVES VELHO

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em


Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia
Social.

Aprovada por:

_____________________________
Presidente, Prof. Dr. Gilberto Cardoso Alves Velho.

______________________________
Prof. Yonne de Freitas Leite

______________________________
Prof. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti

Rio de Janeiro
Fevereiro de 2005

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À Helena e Maíra

4
AGRADECIMENTOS

Nos últimos dois anos tive o privilégio de ter como meu orientador de mestrado o Prof.
Gilberto Velho, sempre muito atencioso e disposto a incentivar-me. Além da gentileza e
carinho, deu crédito e apoio às minhas idéias. Sua dedicada orientação foi o que de melhor
poderia receber. Ele sabe o quanto o considero, mas ainda assim, muito obrigada.

Ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional através do seu


corpo docente, agradeço por ter proporcionado-me ambiente de estudos e cursos do mais
alto nível, fundamentais para minha formação. Agradeço também às bibliotecárias Carla
Regina de Freitas e Cristina Coimbra e à secretária do programa Tânia Lucia Ferreira.
Todas particularmente atenciosas, ajudando-me sempre com presteza e delicadeza.

Ao CNPq, concedeu-me bolsa durante todo o mestrado, viabilizando minha dedicação


exclusiva aos estudos. Sou muito grata à esta instituição.

Aos colegas do Museu Nacional, agradeço especialmente à Fernanda Delvalhas Piccolo


pelas longas conversas, livros emprestados e preciosas sugestões. À Virna Plastino, Luciana
Lombardo, Maria Paula Miller, Deborah Bronz, Paula Siqueira, Antonio Holzmeister e
Gustavo Vilela, nunca esquecerei o incentivo e os momentos agradáveis que
compartilhamos no laborioso cotidiano das aulas, nas festinhas e nos animados encontros.
Aos colegas Bruno Cardoso e Thiago Coutinho, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
agradeço pela força e carinho. Todos foram sempre divertidos e amáveis.

Ao Prof. Marco Antonio da Silva Mello, meu ex-professor, agradeço por ter me
apresentado, ainda na graduação, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ,
trabalhos e pesquisas que me despertaram para o estudo da cultura popular urbana. Através
da sua pessoa agradeço também ao Nufep – Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas da
Universidade Federal Fluminense, pela oportunidade de diálogo que me ofereceu, no início
do curso de mestrado, ao me convidar para participar dos seminários e reuniões com o
grupo de pesquisa “Cidades & Mercados”. A todos do grupo agradeço sinceramente.

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Hércules Quintanilha, tem sido um amigo inigualável. Agradeço pelos livros emprestados,
leituras compartilhadas e por sua contagiante paixão pela cidade do Rio de Janeiro. Um
grande abraço.

Minha família, como sempre, me deu muito carinho. Helena Delgado, minha mãe foi, como
sempre, simplesmente fantástica. Ajudou-me a cuidar de minha filha e de minha casa.
Muito obrigada por tanto amor e dedicação. Sem sua força e encorajamento essa
dissertação não existiria. Everaldo Costa, meu bravo companheiro, sempre acreditou nos
meus sonhos e, desde o início do mestrado, neste projeto. Acompanhou todo o processo
com muita compreensão e solidariedade. Maíra Mafra, minha filha, se mostrou muito
amiga e compreensiva às minhas ausências. Uma pessoa realmente muito especial.
Obrigada por fazerem parte da minha vida.

Finalmente, deixo aqui registrada a minha gratidão a todos os camelôs que gentilmente
colaboraram para a realização dessa pesquisa. A todos muito obrigada.

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Mafra, Patrícia Delgado.
A “pista” e o “camelódromo” – Camelôs no Centro do Rio de Janeiro/ Patrícia Delgado
Mafra – Rio de Janeiro: UFRJ/ Museu Nacional, 2005
x, 106f.: il.; 31cm.
Orientador: Gilberto Cardoso Alves Velho.
Dissertação (mestrado) – UFRJ/ Museu Nacional/ Programa de Pós-graduação em
Antropologia Social, 2005.
Referências Bibliográficas: f. 97-99.
1.Antropologia Urbana. 2. Cidade do Rio de Janeiro. 3. Camelôs. 4. Carreiras na
camelotagem. I. Velho, Gilberto Cardoso Alves. II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-graduação em Antropologia Social. III. A
“pista” e o “camelódromo” – Camelôs no Centro do Rio de Janeiro.

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A “PISTA” E O “CAMELÓDROMO”
CAMELÔS NO CENTRO DO RIO DE JANEIRO

Patrícia Delgado Mafra

ORIENTADOR: PROF. DR. GILBERTO CARDOSO ALVES VELHO

Resumo da Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em


Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia
Social.

Esta dissertação é fruto da pesquisa que desenvolvi junto aos camelôs nos anos
2003 e 2004. Nesta etnografia apresento o universo da camelotagem, tal como é praticada
no Centro da cidade do Rio de Janeiro. Para tanto, descrevo o cotidiano dos camelôs no
Centro, explicitando as situações vivenciadas por eles nas três possibilidades de exercício
dessa ocupação – na pista, no camelódromo e nas barracas. Através de oito personagens,
cujas trajetórias são paradigmáticas, aponto as possíveis carreiras que podem ser
desenvolvidas na camelotagem carioca.

Rio de Janeiro
Fevereiro de 2005

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A “PISTA” E O “CAMELÓDROMO”
CAMELÔS NO CENTRO DO RIO DE JANEIRO

Patrícia Delgado Mafra

ORIENTADOR: PROF. DR. GILBERTO CARDOSO ALVES VELHO

Abstract da Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em


Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia
Social.

This dissertation is product of the research done with street vendors in the years
2003 e 2004. In this ethnography I present the street vendors universe, as it is praticed in
Rio de Janeiro’s downtown. Therefore, I describe their day-by-day in downtown,
explaining the activities that they experience into the three possibilities of praticing this
occupation – in the street (pista), in the market (camelódromo) and at the stands (barracas).
Through eight characters, whose trajectories are paradigmatics, I point out the possible
careers that can be developed in the Rio de Janeiro’s street vendors scene.

Rio de Janeiro
Fevereiro de 2005

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO .................................................................................1

CAPÍTULO 1
A rua Uruguaiana e a cidade ........................................................10

CAPÍTULO 2
O cotidiano dos camelôs no Centro do Rio de Janeiro .............34

CAPÍTULO 3
Carreiras na camelotagem carioca ...............................................76

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................... 92

BIBLIOGRAFIA CITADA ..............................................................98

ANEXOS ........................................................................................100

10
INTRODUÇÃO

Na cidade do Rio de Janeiro, em todo e qualquer lugar onde circule ou para onde

convirja uma grande quantidade de pessoas — seja nas ruas, nos sinais de trânsito, no

interior dos transportes coletivos, nas saídas das estações de metrô, nos terminais de ônibus

ou nas beiradas das feiras livres —, os camelôs estão presentes, oferecendo diversos tipos

de mercadorias. As cenas de violência ocorridas quando há confrontos durante ações de

repressão policial são comumente noticiadas e comentadas, revelando de forma dramática a

dimensão ubíqua da camelotagem no cotidiano da cidade.

Ao definir os camelôs como objeto de pesquisa, fui obrigada a rever os termos da

proximidade que os tornava muito familiares nos meus percursos como carioca e moradora

da cidade. Transformar essa familiaridade foi o primeiro desafio da pesquisa. A busca de

uma estratégia de observação que me aproximasse, de fato, de suas práticas me conduziu à

rua com outro olhar. Um olhar já prevenido por certas leituras que me permitiram constatar

que, na experiência urbana, o anonimato e a distância são tão fortes e marcantes quanto a

própria proximidade. A construção de objetos de investigação no meio urbano, portanto,

não impede o distanciamento tão necessário para o conhecimento antropológico. Ao

contrário, mostra que, por não fazermos parte de um grupo exclusivo, é possível haver

constantemente um movimento de estranhamento crítico diante do próximo (cf. Velho,

1987 [1981] e 2003).

O caráter diverso da camelotagem carioca ficou nítido para mim, tornando a

pesquisa ainda mais desafiadora. Resolvi começar pela percepção dessa diversidade,

deixando-a conduzir o processo de estranhamento. Paralelamente às leituras, iniciei

11
caminhadas diárias pelo Centro do Rio, procurando conversar e estabelecer contato com os

camelôs. Nesses percursos, as situações que se apresentaram foram indicando, pouco a

pouco, algumas diretrizes para o trabalho de campo.

As imediações da rua Uruguaiana, o “camelódromo” ali localizado e as lojas da

Saara1 são referenciais evidentes para os vendedores com os quais conversei. As ruas que

compõem essa área, com suas praças, patrimônios da arquitetura urbana, instituições

públicas, galerias comerciais, lojas, escritórios, bancos etc., criam um setting privilegiado

para a atuação dos camelôs, que ora circulam pelas ruas ou fixam-se nas esquinas e ao

longo das calçadas, ora se assentam no interior do camelódromo da Uruguaiana. Decidi

estabelecer um raio de percurso etnográfico a partir dessa rua, em direção às avenidas

Passos, Presidente Vargas e Rio Branco, e ao Largo da Carioca, abrangendo uma área

específica do Centro da cidade.

Durante cerca de dez meses, freqüentei assiduamente o camelódromo da rua

Uruguaiana, observando e registrando o que acontecia. No princípio, vagava por suas

quadras e corredores, tentando apreender seu ritmo diário, seu colorido e toda a sua

diversidade. Depois, tornei-me cliente de um salão de cabeleireiro situado no interior do

camelódromo, num “canto” peculiar que conjugava um bar, o salão, um boxe de jogos

eletrônicos, caça-níqueis e diversos comerciantes atacadistas, com os quais os camelôs que

vendem nas ruas adquirem suas mercadorias. Como cliente, utilizava os serviços de

manicuro e, aos poucos, fui deixando claro o meu interesse.2 No início, eu ia ao salão

somente às sextas-feiras; depois, passei a ir regularmente para “bater-papo”.

1
Sociedade dos Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega.
2
Chamo a atenção para o fato de ter sido proibida a prestação de serviços de barbearia, cabeleireiro,
manicuro e pedicuro no camelódromo logo após o término da pesquisa.

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Nesse canto, todos se conhecem: a dona do bar, as moças que trabalham no salão, os

donos dos boxes atacadistas, o rapaz que toma conta do boxe de jogos eletrônicos, o

relojoeiro e os freqüentadores mais assíduos, principalmente alguns dos camelôs que

vendem nas ruas e que fazem do camelódromo seu ponto de apoio no Centro da cidade. Em

momentos de pouco movimento comercial ou no final do dia de trabalho, essas pessoas

costumam se reunir entre o bar e o salão de beleza para conversar, e um clima de

brincadeira e jocosidade se instala no ambiente. Passei várias tardes e noites entre eles,

participando dessas conversas, e as relações que estabeleci ali me inseriram numa rede de

pessoas ligadas às atividades da camelotagem, dentro e fora do camelódromo.

Certo dia, ainda no início da pesquisa, em agosto de 2003, cheguei no camelódromo

por volta das nove horas da manhã e resolvi me sentar num dos bancos localizados no largo

que fica na quadra C. Um rapaz, com uma prancheta e uma caneta na mão, sentou-se ao

meu lado e pediu para dar uma olhada no caderno de esportes do jornal que eu estava lendo.

A partir daí, começamos a conversar sobre algumas notícias. Enquanto isso, diversos

rapazes passavam e o cumprimentavam. Ele então olhava o relógio e fazia anotações no

bloco preso na prancheta. Esse movimento se repetiu inúmeras vezes. Ao ser perguntado

sobre o que estava anotando, ele me respondeu que estava marcando o horário de chegada

do pessoal que trabalha para ele “na pista”. Indaguei: “Na pista?” E ele: “É, na rua, aí fora

do camelódromo”. Sem querer entrar em detalhes, conferiu os nomes na lista, marcando um

por um, se despediu e saiu.

Essa breve conversa revelou que a camelotagem pode ser desempenhada “na pista”

e/ou “no camelódromo”. Por evocar uma divisão nativa desse universo, recuperei essas

denominações na etnografia para indicar situações gerais, com características e ritmos

diferenciados — apesar de envolvidas em certas continuidades —, nas quais os camelôs

13
desempenham suas atividades diariamente. Assim, identifiquei o camelô do

“camelódromo” e o camelô da “pista”. Logo me chamou a atenção um terceiro tipo de

camelô: aquele que dispõe de barraca de ferro e lona, e se fixa ao longo de determinadas

calçadas. Apesar de estarem fora do camelódromo, esses camelôs não estão na pista. Sendo

assim, pode-se dizer que há três situações gerais nas quais a camelotagem carioca se

desenvolve: na pista, no camelódromo e em barracas armadas nas calçadas.

No transcurso da pesquisa, tive a oportunidade de presenciar, não só no interior do

camelódromo, mas também na pista, uma série de eventos importantes para a compreensão

desse universo. Batidas policiais, dentro e fora do camelódromo, para reprimir o comércio

de mercadorias consideradas falsificadas, e confrontos decorrentes de ações da Guarda

Municipal, em repressão aos camelôs considerados irregulares, foram alguns dos

acontecimentos que pude acompanhar. Realizei poucas entrevistas formais; preferi deixar

as conversas fluírem para, em determinados momentos, introduzir os temas de interesse da

pesquisa. Optei principalmente por estar entre os camelôs, observando e acompanhando

seus dramas, fofocas e afazeres diários. Dessa forma, consegui depoimentos relevantes

sobre diversas questões pertinentes ao universo da camelotagem.

A “rua” aparece nas conversas como uma categoria física e simbólica de

importância fundamental na vida dos sujeitos pesquisados. O Centro do Rio surge também

nos discursos dos camelôs como uma categoria significativa, sendo considerado um local

que oferece muitas oportunidades. Frases como “o Centro é onde tudo acontece” e “é aqui

[no Centro] que tá a grana” revelam suas percepções sobre os lugares e os seus percursos na

cidade. O fato de a camelotagem ser praticada no Centro de uma cidade como o Rio de

Janeiro abre, para os atores sociais nela envolvidos, possibilidades únicas de interação. Isso

nos obriga a uma série de reflexões sobre a rua, a cidade e os estilos de vida urbanos.

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A cidade como plano de reflexão antropológica

A Revolução Industrial criou um tipo de sociedade cuja complexidade está

associada à crescente divisão do trabalho, ao aumento da produção e do consumo e a um

rápido crescimento urbano. A existência de cidades com milhões de habitantes somente é

possível num quadro de desenvolvimento das forças produtivas, articulado a um mercado

mundial e associado ao aperfeiçoamento de técnicas aplicadas à agricultura, à medicina e às

comunicações. A modernização e a disseminação desses recursos fazem com que

determinadas cidades atinjam um número crescente de indivíduos. O alto índice

populacional, por si só, não as diferencia de outros tipos de sociedade complexa, mas

constitui um atributo marcante das sociedades industriais moderno-contemporâneas. A

cidade metropolitana, portanto, se coloca como o lócus das realizações desse tipo de

sociedade.

A cidade norte-americana de Chicago se apresentou como caso limite para se pensar

a cidade metropolitana. A partir de meados do século XIX, a região dos Grandes Lagos

começou a sofrer a expansão das redes ferroviária e de navegação. Dentro do contexto

histórico dos Estados Unidos, em que o sistema capitalista se fortaleceu após a Guerra Civil

Americana, Chicago foi uma das cidades que mais cresceu em população e densidade,

recebendo povos de diversos lugares. A partir de então, começou a ocorrer um intenso

fluxo migratório, de origem européia, de escala sem precedentes na história. Aportaram na

região irlandeses, italianos, alemães, poloneses, russos, escandinavos, húngaros e judeus de

diferentes procedências e, em menor número, sérvios, croatas, austríacos e asiáticos, além

dos migrantes nacionais, como negros ex-escravos e pessoas do sul do país. Esse fluxo

perdurou até meados do século XX, quando se foram avolumando os mexicanos,

15
colombianos, porto-riquenhos e caribenhos. Mais recentemente, portugueses e brasileiros

também têm acorrido em maior escala.3

Chicago, na época da fundação de sua universidade, em 1892, era considerada uma

cidade rica e desordenada, que enfrentava uma série de problemas sociais ligados à

criminalidade, à imigração e à assimilação de milhares de estrangeiros. A preocupação em

produzir conhecimento sobre essas situações marcou a produção socioantropológica de sua

universidade, transformando-a num importante centro de pesquisas nessa área (cf. Becker,

1996).

Inspirado na sociologia alemã e, em particular, na obra de Simmel, um círculo de

pesquisadores do Departamento de Antropologia e Sociologia da Universidade de Chicago

tomou a cidade como tema de pesquisa das ciências sociais e elaborou métodos orientados

para uma investigação qualitativa que valorizava a pesquisa empírica, o trabalho de campo

e a exploração de diversas fontes documentais. A produção da chamada Escola de Chicago,

principalmente a partir das figuras de W. Thomas, Robert Park e Louis Wirth, é

considerada ainda hoje referencial teórico para a compreensão de fenômenos que têm a

cidade contemporânea como contexto.

Na Berlim do início do século XX, Georg Simmel (1967 [1903]), autor que lhes

serviu de inspiração, assinalou, no artigo “A metrópole e a vida mental”, as especificidades

da vida metropolitana referentes à extrema fragmentação e à diferenciação de papéis e

domínios, que dão contornos particulares à vida psicológica individual. Na sua perspectiva,

indivíduo e sociedade constroem-se e reconstroem-se mutuamente, como num jogo tenso

entre forças objetivas, que emanam da exatidão calculista da vida metropolitana, e as

3
Notas de aula. Curso de Antropologia Urbana, professor Gilberto Velho, 1º semestre de 2004,
PPGAS/MN/UFRJ.

16
subjetividades e o desejo de expressão dos indivíduos nessa realidade. A vida na metrópole,

portanto, se coloca no pensamento simmeliano como um exemplo paradigmático dessa

relação, em função da heterogeneidade das interações sociais e da diversidade nelas

produzida.

Robert E. Park (1967 [1916]), num célebre artigo, mostrou que a cidade é um

laboratório para a investigação da vida social e sugeriu uma série de tópicos de pesquisa,

muitos dos quais foram empreendidos por seus alunos. A mobilidade física e social das

pessoas e a questão dos fluxos são percebidas como problemas interessantes para a

compreensão do fenômeno da cidade vivido por ele no início do século XX, em plena

Chicago. Muito mais que um ambiente físico, para ele, a cidade é a expressão da natureza

humana. A organização moral, bem como a organização física da cidade, interagem

reciprocamente de maneira característica, moldando e modificando uma a outra (cf. Park,

1967 [1916]: 32).

A questão dos “tipos vocacionais”, indicada por Park nesse artigo, chama a atenção

para uma definição interessante: “A cidade antiga era principalmente uma fortaleza, um

lugar de refúgio em tempo de guerra. A cidade moderna, pelo contrário, é principalmente

uma conveniência de comércio e deve sua existência à praça do mercado em volta da qual

foi erigida”. A divisão do trabalho e o surgimento de novas profissões, na escala

ininterrupta em que se encontram, somente são possíveis “sob a condição da existência de

mercados, dinheiro e outros expedientes para facilitar os negócios e o comércio” (Park,

1967 [1916]: 39-40).

Na percepção desse autor, todos os tipos de trabalho tendem a assumir o caráter de

profissão sob condições citadinas, ou seja, há, na cidade, uma tendência explícita de

especializar e racionalizar as ocupações ao desenvolver e realizar uma técnica consciente e

17
específica (cf. Park, 1967 [1916]: 41). Park enfatiza, deste modo, que os “talentos

específicos dos indivíduos” e as novas profissões urbanas oferecem elementos para se

pensar como os sujeitos expressam e constroem sua subjetividade na relação com um

mundo social estabelecido. Segundo Park (1967 [1916]: 42), “cada um, com sua

experiência, perspectiva e ponto de vista específicos, determina sua individualidade para

cada grupo vocacional e para a cidade como um todo”.4

No Brasil, o interesse por práticas culturais e modos de vida de diferentes classes

sociais que vivem em sociedades urbanas expandiu-se, sobretudo, a partir da década de

1970. Das comunidades faveladas às classes médias, foram estudados temas como consumo

de drogas, marginalidade, carnaval, violência, religiosidade popular, minorias sociais e

sexuais. Alguns desses trabalhos se tornaram referenciais de grande importância na

antropologia brasileira.5 Antes, porém, na obra de Gilberto Freyre, nos anos 1930, já se

encontra a problemática urbana, mais precisamente em Sobrados e mocambos, de 1936,

onde, entre outros pontos, a temática da “rua”, central para este trabalho, é analisada.

No primeiro capítulo desta dissertação, procuro compreender a importância do

Centro para a cidade do Rio de Janeiro e, especificamente, para a camelotagem. Para tanto,

descrevo o seu cotidiano, com o objetivo de demarcar a especificidade das imediações da

rua Uruguaiana com relação a outros logradouros do bairro. Essa rua aparece, nos registros

de cronistas de tempos passados, como o local onde “acaba a cidade”. Hoje, nos noticiários,

4
Essas idéias serão retomadas no capítulo 3, em que discutirei as carreiras na camelotagem a partir
das noções de Everett Hughes e Howard Becker — pesquisadores pertencentes a duas gerações
subseqüentes à de Robert Park.
5
Cf. a produção de Gilberto Velho, sobretudo a partir de A utopia urbana (1989 [1973]) e de
Nobres e anjos (1998) — originalmente tese de doutoramento defendida na USP, em 1975. Ver
também, entre outros, Zaluar (1985), Vianna (1988) e Cavalcanti (1995).

18
não é muito diferente: a rua Uruguaiana aparece como a arena do confronto entre camelôs e

guardas municipais, simbolizando o limite da civilidade.

No capítulo seguinte, apresento de início uma visão geral sobre o universo da

camelotagem, tal como é praticada nessa área do Centro. Em seguida, procuro explicitar as

situações vivenciadas pelos camelôs nas três possibilidades de exercício dessa ocupação: na

pista, no camelódromo e nas barracas armadas ao longo das calçadas.

Uma temática recorrente nas conversas dos camelôs é a questão do seu trabalho e

das condições da sua realização. Subliminarmente, eles tratam de temas relacionados à

identidade que desenvolvem em função de sua ocupação. O terceiro capítulo consiste,

portanto, num exercício de análise das percepções que os camelôs desenvolvem sobre a

atividade que realizam e do modo como essas percepções são articuladas no todo de sua

vida social. Comparando as possibilidades de exercício da ocupação de camelô na cidade,

busco identificar os tipos de carreira possíveis na camelotagem carioca.

19
CAPÍTULO 1

A rua Uruguaiana e a cidade

Oh! Sim, as ruas têm alma! Há ruas honestas,


ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres, delicadas,
trágicas, depravadas, puras, infames, ruas sem história,
ruas tão velhas que bastam pra contar a evolução de uma
cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas...
(João do Rio, A alma encantadora das ruas)

A situação estratégica da rua Uruguaiana, que constitui um ponto de convergência e

de irradiação de numerosas ruas e redes de transporte coletivo, coloca-a numa posição

central e faz dela passagem obrigatória para grande parte da população da cidade. Parte

dessa rua é destinada somente aos pedestres. Os passantes esbarram-se por toda a sua

extensão, tomada por religiosos que pregam em altos brados, por artesãos que manipulam

seus artigos e por artistas de rua que fazem brincadeiras. Pedintes, engraxates e panfleteiros

misturam-se às ciganas de vestidos coloridos, às baianas que jogam búzios e aos

biscateiros. Entre eles, avistam-se ainda grupos de colegiais, trabalhadores, executivos

engravatados e estudantes de música com seus instrumentos a tiracolo. Diariamente, de

segunda a sexta-feira, no horário comercial, suas imediações são tomadas por uma intensa

vitalidade, concentração e diversidade. Seu caráter de referência, como ponto de encontro

de pessoas de várias camadas e grupos sociais, a inscreve de maneira muito particular no

mapa do Centro.

20
O Centro

No contexto carioca, o Centro é o local preferencial para a camelotagem. Em outros

bairros, encontram-se também áreas em que se desenvolvem atividades comerciais e que se

configuram em centralidades interessantes aos camelôs. Entretanto, o Centro traz consigo a

peculiaridade de comportar boa parte do maquinário que move toda a cidade — é o lugar

onde está sediada grande parte das empresas nacionais e multinacionais, das instituições

financeiras e dos escritórios da administração pública, além de instituições de ensino,

museus, centros culturais, cinemas, casas de shows, teatros, consulados, instituições

religiosas e políticas, salas comerciais, lojas, camelôs e magazines —, constituindo-se na

City que, nas palavras de Max Weber (1967 [1921]), vem a ser um bairro quase

exclusivamente de negócios.6

A estrutura metropolitana da cidade do Rio de Janeiro segue um modelo de núcleo

“hipertrofiado, concentrador da maioria da renda e dos recursos urbanísticos disponíveis,

cercado por estratos urbanos periféricos cada vez mais carentes de serviços e de infra-

estrutura à medida que se afastam do núcleo, servindo de moradia às grandes massas de

populações de baixa renda” (Abreu, 1997: 17). A cidade do Rio “está dividida em quatro

faixas de limites imprecisos mas que pelas características do espaço e face ao desenho da

estrutura viária, condicionamento da expansão urbana, são mais ou menos circulares e

concêntricas” (Abreu, 1997: 17). O “núcleo” é composto pela área comercial e financeira

6
Entre os bairros cariocas, alguns desenvolveram áreas centrais importantes, concentrando setores
de comércio e serviços. Tijuca, Méier, Madureira (na Zona Norte), Catete, Botafogo, Copacabana e
Ipanema (na Zona Sul) são os exemplos mais significativos.

21
central: o core histórico da cidade — o que é considerado o Centro do Rio — e suas

expansões em direção à orla oceânica (Zona Sul) e ao interior (Zona Norte), cujos limites

são os bairros da Tijuca, de Vila Isabel, de São Cristóvão e do Caju, o Centro de Niterói e a

sua Zona Sul. Por falta de uma distribuição equânime dos recursos geradores de infra-

estrutura urbanística, do sistema de transportes e de equipamentos sociais que incluam a

periferia da cidade, o núcleo se tornou o lugar por excelência da busca por recursos e de

acesso ao mercado de trabalho, à moradia, ao lazer e à sociabilidade (cf. Abreu, 1997: 18).

No Rio de Janeiro, essa divisão desigual dos recursos também ocorre, em algum

nível, no interior do próprio núcleo, e se expande, refletindo-se na existência de uma

hierarquia simbólica do espaço organizada pela oposição entre Zona Sul e Zona Norte. A

Zona Sul foi associada à modernidade, à riqueza e ao cosmopolitismo, enquanto à Zona

Norte e aos diferentes subúrbios foi atribuída uma conotação moral de natureza mais

tradicional e conservadora. Segundo Heilborn (1999: 101), “tal associação sempre esteve

articulada às representações atribuídas aos segmentos sociais intermediários e inferiores das

camadas médias e populares e às formas de controle da vida social em tais locais”.

Essa hierarquia simbólica do espaço pode ser percebida de diversas maneiras,

inclusive pela ausência ou presença de camelôs em determinados locais. Em Copacabana e

Ipanema, bairros da Zona Sul, por exemplo, não existem camelódromos; a maior parte dos

camelôs não tem autorização da Prefeitura e costuma ficar ao longo das calçadas da avenida

Nossa Senhora de Copacabana, apesar da presença da Guarda Municipal, que

freqüentemente reprime a camelotagem nessa área.7 Os artigos ofertados nas banquinhas e

aramados dos camelôs nessas imediações não são muito diferentes dos que são oferecidos

7
Cf. capítulo 2, seção “Camelódromos na cidade”. Nota-se que os primeiros camelódromos foram
instalados na Zona Norte e nas áreas suburbanas da cidade.

22
no Centro. Ocasionalmente, encontram-se artigos voltados para turistas. Em Ipanema, a

presença dos camelôs é mais dispersa e, entre as mercadorias expostas, algumas são mais

sofisticadas, como pratarias, toalhas de mesa rendadas e falsificações de perfumes, bolsas,

relógios e óculos de grifes famosas.

Outros locais da Zona Sul que são importantes para a camelotagem da cidade são o

Catete e o Largo do Machado. Ali, há barracas de ferro e lona instaladas nas ruas

transversais e, nos dias de semana e nos sábados, após as 18 horas, ou nos domingos e

feriados, pela manhã, chegam os livreiros, os vendedores de discos de vinil e os camelôs

que armam seus “pára-quedas” no chão das calçadas, formando um extenso mercado. Em

Botafogo, há um camelódromo na saída da estação do metrô. Nele, são utilizadas barracas

galvanizadas e são oferecidas diversas mercadorias e serviços, como os de sapateiro,

costureira e assistência técnica de bicicletas. Há também camelôs que se instalam, mesmo

sem autorização da Prefeitura, nas entradas dos dois shoppings existentes no bairro.

Na Zona Norte, nos bairros da Tijuca, Méier e Madureira, a presença dos camelôs é

ostensiva. Na Tijuca, por exemplo, eles ficam no camelódromo ou expõem as mercadorias

nas calçadas sem autorização, principalmente na Praça Saens Pena. Em Madureira, eles

ficam em torno do Mercadão de Madureira. É interessante notar que há pouco trânsito de

camelôs entre essas áreas da cidade. Porém, em certas situações, pode haver deslocamentos

com mais freqüência, como nos casos mais ofensivos de repressão num determinado local,

quando os camelôs migram para outros bairros da cidade. É mais comum ocorrer afluxo de

camelôs das áreas da Zona Sul da cidade para o Centro.

O Centro se diferencia dos demais bairros, entre outras razões, por ser aglutinador

das funções administrativas, políticas e econômicas da cidade. Talvez não seja à toa que, na

fala corrente do carioca, o Centro se confunde com “a cidade”, não só por ser o core de sua

23
evolução urbana, mas também por ser o local onde se realizou e concentrou, a partir do

século XIX, e mais intensamente após o início do século XX, um projeto de cidade e de

nação. O Rio de Janeiro foi capital do país durante muito tempo, constituindo-se em

modelo urbano para as demais cidades brasileiras, e o Centro é uma de suas vitrines.

Cidade do Rio de Janeiro. Limites de bairros

No decorrer do processo de estruturação urbana do Rio, mais precisamente a partir

do início do século XX, com as obras realizadas sob o comando do prefeito Pereira Passos,

o Centro foi se configurando num bairro comercial e administrativo, relegando as

residências a locais determinados.8 O valor comercial dos terrenos do Centro, com as

8
As famílias mais pobres migraram para as áreas que se organizam em torno da Praça Cruz
Vermelha, do bairro de Fátima e da Lapa, nos morros do Pinto, da Providência e da Conceição, ou

24
reformas urbanísticas, atingiu níveis insuportáveis para as camadas mais modestas da

população. Essas pessoas foram se acomodando em regiões periféricas do bairro ou

migrando para outras áreas da cidade (cf. Abreu, 1997).

O Centro acabou por expressar, no seu espaço, os discursos e as contradições desse

modelo adotado para a cidade, chegando a passar, na década de 1980, por um suposto

processo de esvaziamento econômico e cultural. Nessa época, as imediações da rua

Uruguaiana e o Largo da Carioca apareciam nos noticiários como locais de insegurança, em

função dos roubos freqüentes aos pedestres e de sua ocupação — especialmente da rua

Uruguaiana — pela camelotagem. A “insegurança”, nesse caso, estava sendo provocada

basicamente por camelôs, mendigos, ambulantes e crianças que, sozinhas ou com suas

famílias, tinham passado a morar nas ruas e praças do bairro (cf. Carvalho, 1997).

No início dos anos 1980, a Prefeitura Municipal, com o objetivo de recuperar sua

identidade cultural, considerada ameaçada, lançou o projeto Corredor Cultural, para atuar

na “preservação e revitalização” do bairro. Esse projeto foi desenvolvido pela Prefeitura da

cidade em conjunto com associações comerciais, empresas privadas e organizações da

sociedade civil, e destinava-se à preservação e restauração do centro histórico e cultural do

Rio (cf. Carvalho, 1997). No início dos anos 1990, a região da Uruguaiana era identificada

como “território livre” e “reduto da camelotagem” no Centro.9

A proposta de estudo da cidade elaborada por Park (1967 [1916]) coloca, entre

outras questões, o problema da identidade dos lugares. O sentido de região moral está

associado aos encontros de semelhantes nos mesmos lugares ou eventos. Não se trata,

para o interior da cidade. As outras migraram para áreas mais valorizadas, como os bairros da
Glória, Catete e Botafogo.
9
Cf. capítulo 2, seção “Camelódromos na cidade”.

25
necessariamente, de um local fisicamente delimitado, e sim de pontos caracterizados pelo

encontro de determinados sujeitos com interesses comuns. Uma observação mais detalhada

do Centro do Rio permite identificar regiões morais demarcadas a partir dos traçados da rua

Uruguaiana, da avenida Rio Branco e da avenida Presidente Vargas. Embora não se possa

dizer que existam fronteiras rígidas entre essas áreas, pois o trânsito entre elas é fluido e

aberto a todos os seus usuários, é possível identificar certas predominâncias de perfis

ocupacionais, estilos de vida e freqüência em cada uma delas, em função dos setores de

atividades ali localizados, de seus referenciais urbanísticos e dos usos atribuídos ao lugar

pela população.10

A planta do Centro do Rio é limitada pelos seguintes bairros fronteiriços: Saúde,

Gambôa, Cidade Nova, Santa Teresa e Glória. O Centro possui 5,67 Km² e tem duas

artérias principais: a avenida Rio Branco e a avenida Presidente Vargas. Uma grande

quantidade de vias corta essas avenidas, constituindo o traçado básico do bairro, com suas

praças, largos e viadutos.

Para se ter uma idéia do volume e intensidade do fluxo que imprime ritmo ao lugar,

há, na área administrativa do Centro, exatamente cinco estações de metrô, um terminal

ferroviário e dois rodoviários, um aeroporto, uma estação de barcas e inúmeras linhas de

ônibus e “vans”, por onde desembarcam pessoas vindas de diferentes localidades da cidade,

do grande Rio de Janeiro e até mesmo de outras cidades brasileiras. Isso evidencia a

densidade e o teor cosmopolita do bairro.11

10
Sobre a noção de região moral cf., por exemplo, os trabalhos de Heilborn (1999) e Kuschnir
(1999).
11
Estações de metrô – recebem o seguinte fluxo diário de pessoas: Cinelândia, 50 mil; Carioca, 82
mil; Uruguaiana, 65 mil; Presidente Vargas, 17 mil; Central, 42 mil. Fonte:
http://www.metrorio.com.br/Estações.

26
Internamente, o Centro possui uma organização composta pelas seguintes áreas:

Praça XV, Esplanada do Castelo, Cinelândia, Lapa, Praça Cruz Vermelha, Largo da

Carioca, Largo de São Francisco, Praça Tiradentes, Campo de Santana, Praça Onze, Central

e Praça Mauá.

Nas imediações da Praça Mauá, por exemplo, predomina a movimentação ligada às

atividades portuárias. É ali que se encontram a sede do Serviço de Polícia de Fronteira da

Polícia Federal, a Alfândega, o Cais do Porto e inúmeros hotéis e boates voltados para um

público composto, em sua maioria, de turistas, marinheiros e portuários. A vida noturna da

Praça Mauá, que é conhecida como reduto de “inferninhos”, está fortemente associada à

prostituição. A maior parte dos camelôs ali localizados instala-se em barracas e concentra-

se perto do terminal rodoviário Mariano Procópio e na travessa do Liceu.

Durante o dia, há ali uma movimentação intensa de turistas, trabalhadores e

“despachantes” que, com prancheta na mão, abordam os passantes, oferecendo facilidades

Estação D. Pedro II da Rede Ferroviária Federal, a Central do Brasil – possui 89 estações


distribuídas entre os seguintes municípios: Rio de Janeiro, Duque de Caxias, Nilópolis, Mesquita,
Queimados, São João de Meriti, Belford Roxo, Japeri, Paracambi e Magé. Fonte:
http://www.supervia.com.br.
Terminais rodoviários – Coronel Américo Fontenelle: localizado junto à Central do Brasil, nele
movimentam-se mensalmente cerca de 11 milhões de passageiros, distribuídos em 200 mil viagens
com as 14 empresas de ônibus que controlam as 90 linhas intermunicipais. Meneses Cortes: de onde
partem ônibus especiais com ar condicionado, que ligam os diversos bairros da cidade, além dos
que têm como destino as cidades de Petrópolis, Teresópolis e Maricá. Nos andares superiores, há
um estacionamento amplo, público e rotativo. Fonte: http://www.sectran.gov.br.
Aeroporto Santos Dumont – serve a vôos da ponte aérea entre Rio e São Paulo, e a companhias
com aviões de menor porte, que atendem a cidades do Rio de Janeiro e do interior do Brasil.
Estação de Barcas Praça XV de Novembro – faz conexão com Niterói, Paquetá e Ilha do
Governador. Volume diário do tráfego de passageiros em dias úteis: entre Niterói e Rio de Janeiro,
75 mil; Ribeira (Ilha do Governador) e Praça XV, 1,5 mil; entre Paquetá e Rio, 2 mil. Fonte:
http://www.barcas-sa.com.br.

27
para a consecução de passaportes e vistos junto aos consulados e à Polícia Federal. Na

travessa do Liceu, há bancas de pilhas, radinhos am/fm e headphones, e barracas de

souvenirs, cangas e toalhas de praia estampadas com motivos “brasileiros”. Como quase

todas as praças do Centro do Rio, a Praça Mauá era, originalmente, um grande alagadiço

que recebia as águas de uma lagoa situada onde hoje fica o Largo da Carioca. As águas

eram trazidas por um córrego, que deu origem ao desenho da atual rua Uruguaiana (cf.

Gerson, 2000).

A avenida Rio Branco, considerada o coração financeiro da cidade, inicia nessa

praça e faz um traçado em direção à Cinelândia, cruzando a avenida Presidente Vargas e

várias ruas transversais, ao longo de quase dois mil metros de extensão. Por trás de seu lado

ímpar, encontram-se a Praça XV de Novembro e a Esplanada do Castelo. Essa região

possui também uma característica peculiar no mapa do Centro. A Praça XV, pátio surgido

da necessidade do encontro da cidade com o mar, antes de ganhar esse nome, em memória

à data da Proclamação da República, era chamada de Largo do Paço. Nas suas imediações,

entre outros estabelecimentos, estão situados a Bolsa de Valores, a Estação das Barcas, a

Universidade Cândido Mendes, o Tribunal Regional Eleitoral e a sede da Assembléia

Legislativa do Estado. O Arco do Teles, o Paço Imperial e o complexo monumental que

reúne a igreja de Nossa Senhora da Ordem Terceira do Carmo, o antigo convento do Carmo

e a igreja São José, entre outros, indicam que essa área foi o epicentro da vida econômica,

cultural e política da cidade.12

12
O Arco do Teles consiste em ruelas estreitas que, no final do século XIX, eram contíguas ao
mercado da Candelária, um dos primeiros mercados da cidade. Possui prédios de fachadas
preservadas que, atualmente, abrigam bares e restaurantes freqüentados todo final de tarde, ao fim
do expediente dos escritórios. É conhecido, entre os trabalhadores de diversas ocupações, como o
lugar onde acontece uma das happy hours mais animadas do Centro. O Paço Imperial é um

28
A Esplanada do Castelo, área contígua à Praça XV, é conhecida por reunir

estabelecimentos ligados a importantes instituições e por concentrar escritórios de

respeitáveis e renomados profissionais liberais, principalmente de advogados. Trata-se de

uma área ensolarada do Centro, bem próxima ao mar, formada por calçadas amplas e

avenidas monumentais. Essa área surgiu na década de 1920, no lugar do morro do Castelo,

núcleo original da colônia. O desmonte, que botou abaixo parte da história da cidade com o

argumento de se tratar de encosta sob risco de desmoronamento, incorporou à área central

uma grande esplanada que, ao longo da década de 1930, se expandiu sob a inspiração e o

patrocínio do Estado Novo (cf. Abreu, 1997: 73).

Nessa área central, estão sediados a Associação Brasileira de Imprensa, o Palácio

Gustavo Capanema — o Ministério da Educação —, o Ministério da Fazenda, a Academia

Brasileira de Letras, a Academia Brasileira de Ciências, o Palácio da Justiça, o Fórum do

Rio de Janeiro, a Santa Casa de Misericórdia, o Consulado dos Estados Unidos e o

Aeroporto Santos Dumont. Essa região, que engloba a Praça XV e o Castelo, concentra

determinadas atividades e tipos ocupacionais, sendo identificada, em virtude da presença

desses prédios e instituições, como um importante pólo financeiro, administrativo e

empresarial da cidade, uma “área nobre” do Centro.

A presença de camelôs da pista nessa área se restringe às esquinas das ruas

transversais à avenida Rio Branco. Nas suas ruas internas, há camelôs instalados em

barracas. Entre outros passantes, tipos ocupacionais que provavelmente exercem cargos de

prestigiado centro cultural da cidade: além das salas que servem a exposições, peças de teatro e
seminários, o Paço tem cinema, livraria, cafeteria e biblioteca. Construído em 1743 para ser a casa
dos governadores, tornou-se palácio dos vice-reis quando a cidade foi elevada a capital da colônia.
A partir de 1808, serviu à família real portuguesa, que o transformou em Paço Real, tornando-o em
1815 a sede administrativa do Reino Unido de Portugal Brasil e Algarve. Para mais informações
sobre a história desses lugares, cf. Edmundo (1938) e Coaracy (1988).

29
alto e médio escalão em instituições e empresas importantes podem ser identificados nos

restaurantes, nas charutarias e nos cafés. Também é possível vê-los entrando em táxis,

saindo de amplos automóveis oficiais ou nas portarias dos prédios monumentais da

esplanada. Trata-se, portanto, de uma região moral onde predomina um universo de

profissionais liberais e executivos. Na camelotagem, esse é um ponto valorizado pelo poder

aquisitivo dos passantes. Isso se reflete nos tipos de mercadoria oferecidos pelos camelôs

das barracas e por alguns da pista, tais como imitações de canetas da marca Mont Blanc,

gravatas de seda e bolsas femininas da grife Louis Vuitton.

Na Cinelândia, o Museu Nacional de Belas Artes, o Teatro Municipal, a Biblioteca

Nacional, o Supremo Tribunal Federal, o Cine Odeon, o Palácio Pedro Ernesto — a

Câmara Municipal — e a sede do tradicional Cordão do Bola Preta formam uma moldura

em torno de sua praça. Em frente às escadarias da Câmara, há constantemente

manifestações e eventos comemorativos, bem como são armadas barraquinhas de partidos

políticos e de movimentos sociais, nas quais são expostos materiais de propaganda,

bandeiras e outros artigos. Essa praça abriga também “meninos de rua”, que fazem dela um

de seus lugares na cidade. Os camelôs dessa área, assim como os do Castelo, não ficam nas

esplanadas — geralmente ocupadas por duplas de guardas municipais —, limitando-se às

ruas internas e transversais.13

A camelotagem na Lapa está ligada às características do bairro. A Lapa é

considerada reduto da vida noturna e parte do circuito universitário da cidade, e os camelôs

presentes nessa redondeza se voltam para o comércio de bebidas e comidas,

particularmente de cerveja e espetinhos de carne assados em churrasqueiras montadas nas

13
Sobre formas de ocupação dos espaços públicos da cidade do Rio de Janeiro, ver, por exemplo, os
trabalhos de Carvalho (1997) e Travassos (1995).

30
calçadas. É forte a presença de hippies confeccionando artesanato ao longo da rua Joaquim

Silva, nas noites de quinta e sexta-feira, e de camelôs servindo doses de uísque com bebida

energética e gelo em bandejas, como se fossem garçons de rua. Em direção ao bairro de

Fátima e à Praça Cruz Vermelha, os camelôs se concentram nas calçadas, em barracas, e as

mercadorias variam desde frutas, verduras, ervas, farinhas e queijos do Nordeste, até

serviços de assistência técnica de bicicletas. As mercadorias vendidas nessa área refletem,

de certa forma, sua característica residencial.

O Largo da Carioca parece ser um espaço à parte do Centro, por se colocar na

cidade numa permanente situação de espetáculo. O fluxo intenso de passantes faz dele um

“espaço improvisado e bricolado” e um “domínio provisório” do camelô e do artista de rua,

em torno do qual formam-se “rodas” de espectadores (Carvalho, 1997). Vale destacar que a

transformação do largo em local de reunião de guardas municipais, há cerca de quatro anos,

tem afugentado os espetáculos, que vêm se irradiando para a alameda central da rua

Uruguaiana. O Largo da Carioca se insere nessa divisão moral do bairro como uma espécie

de umbral para a rua Uruguaiana. É uma região considerada “perigosa” ou até mesmo

“exótica” e um tanto “aventuresca” para outros segmentos mais elitizados do Centro do

Rio.

A alma da rua Uruguaiana

A densidade é a marca da rua Uruguaiana, e pode ser experimentada no dia-a-dia de

suas principais ruas e avenidas transversais e paralelas, como Presidente Vargas, Rio

Branco, Sete de Setembro, Ouvidor, Rosário, Buenos Aires e Alfândega. Além de serem

ocupadas por estabelecimentos comerciais, instituições financeiras, órgãos públicos,

estação de metrô, terminais de ônibus intermunicipais, universidades, igrejas e edificações

31
públicas, as imediações da rua Uruguaiana são citadas como o lugar referencial da

camelotagem no Centro, não só por se encontrarem em intensa densidade, mas também por

sua qualidade e vitalidade em termos de povoamento e atribuições. O comércio varejista

predomina — além dos estabelecimentos em galerias, há um extenso e tradicional mercado

de lojas conhecido como “rua da Alfândega” ou Saara14 — e compõe uma área do Centro

marcada por um caráter dinâmico e popular.

A forte presença de seguranças particulares contratados pelos lojistas, de “olheiros”

a serviço dos camelôs e de guardas municipais revela uma atmosfera de violência latente e

a possibilidade iminente de tumulto. De modo semelhante ao que acontece nos bazares

marroquinos descritos por Clifford Geertz (1979), uma espécie de fear of nefra adeja toda a

área.15 A qualquer momento, todos sabem, pode acontecer um confronto entre camelôs e

guardas municipais nessas imediações. Aqueles que freqüentam a região conhecem a

precariedade da ordem nessas ocasiões e percebem que não há mecanismo de controle da

violência que não revele ainda mais a sua iminência. Mesmo aqueles que nunca viram de

perto uma contenda envolvendo guardas e camelôs sabem da sua possibilidade. A imprensa

da cidade se encarrega de relatar em detalhes os confrontos ocorridos, e, nessas notícias, a

rua Uruguaiana aparece como a arena principal.16

14
Trata-se de um complexo de 11 ruas que recebe diariamente um fluxo de milhares de pessoas.
Fundada em 1962 pelos comerciantes da região, tornou-se de tal maneira popular que passou a
identificar todo esse trecho do centro do Rio. Para saber mais sobre a Saara, cf. Ribeiro (2000) e
Worcman (2000).
15
“In the marketplace, where individuals from all sorts of back-ground, with all sorts of loyalties,
and possessed of all sorts of intentions meet in an atmosphere of hectic interaction, the possibility of
discord mounting to ‘explosion’ (...) is clearly much enhanced” (Geertz, 1979: 196).
16
A reportagem intitulada “Cuidado, você está no Centro” (Jornal do Brasil, 21/12/2003) é um
exemplo.

32
Antes mesmo de vir a ser uma rua, o traçado da Uruguaiana marcava o limite da

velha cidade, provavelmente porque havia ali um córrego que ligava o morro da Conceição

e o morro de Santo Antonio, dois dos quatro morros referenciais na formação da antiga área

urbana. Depois de uma tentativa de invasão francesa e da idéia mal sucedida de construir

muralhas entre os quatro morros, o córrego foi lajeado, e às suas margens criou-se uma via

de passagem, a que deram o nome de rua da Vala. Pouco a pouco, a população daquelas

imediações passou a utilizá-la para o despejo de lixo; era como uma “cloaca máxima”, nas

palavras do cronista Vivaldo Coaracy (1988). Para além da Vala, iniciava-se a área rural,

que começou a ser ocupada a partir de então.

O marco de ocupação da Uruguaiana foi a construção, no início do século XVIII, da

igreja do Rosário, “um templo levantado à beira da fossa” (Coaracy, 1988: 112). Mesmo

depois de um incêndio, a igreja continuou no mesmo lugar, sendo hoje contígua à quadra A

do camelódromo da Uruguaiana. Em meados do século XIX, o cotidiano das imediações do

Largo da Carioca já era marcado por “agitados episódios protagonizados por uma legião de

pobres que perambulavam pelas ruas” e por alguns tipos elegantes da alta sociedade carioca

(Carvalho, 1997: 28). A diversidade, já bastante evidente nesse largo, se refletia no intenso

movimento de pedestres, que atraía para lá as “pequenas profissões”, como bem denominou

João do Rio (1987): os “vendedores de bilhetes de loteria, de jornais, de jogo do bicho e

engraxates, cada qual a apregoar em altos brados o que lhe traz dinheiro”, as “turcas

vendedoras de miudezas”, o vendedor de guarda-chuvas, o vendedor de mocotó, o funileiro,

o vassoureiro e a “revoada” dos moleques que, com a “ligeireza acrobática do capoeira

colonial”, vendiam balas nos bondes em movimento (Edmundo, 1938).

Nessas crônicas que relatam o cotidiano das imediações do Largo da Carioca e da

Uruguaiana, fala-se de um Rio de Janeiro bas-fond. Uma cidade suja, mas pitoresca, com

33
uma estrutura urbana velha e ultrapassada, de valas e pontes toscas, ruas estreitas e

sobrados coloniais infectos, por onde circula uma “gentalha, alvoroçada e suja”, cujos

hábitos e costumes, identificados com a barbárie e o primitivismo, deveriam ser, naquela

virada do século, extirpados. Afinal, essa era a cidade que Pereira Passos, então prefeito,

desejava modernizar (Edmundo, 1938: 142). As pessoas que ali circulavam aparecem

nesses relatos como objeto de encanto e, ao mesmo tempo, de repugnância (cf. Carvalho,

1997: 31). Os cronistas dedicam-lhes amplos espaços em suas notas sobre o Rio de Janeiro,

relatando as “artimanhas dessa legião de esquecidos da cidade” (Carvalho, 1997: 32). É

interessante notar o que Luiz Edmundo pensa, por exemplo, sobre os quiosques daquela

época. Para ele, os quiosques são como “monstros” e constituem um “insulto” ao “sopro

civilizador” de Pereira Passos: “Do kiosque e sua freguesia reclamam as famílias,

reclamam os homens de negócio, reclamam até as gazetas” (Edmundo, 1938: 119).

O prefeito Pereira Passos, na ânsia de fazer da cidade suja e caótica a réplica

tropical da Paris reformada por Haussmann, baixou várias posturas que interferiram no

cotidiano dessas pessoas:

Tenho procurado pôr termo à praga dos vendedores ambulantes de bilhetes de

loteria, que, por toda parte, perseguiam a população, incomodando-a com a infernal

grita e dando à cidade o aspecto de uma tavolagem. Muito me preocupei com a

extinção da mendicância pública (...) punindo os falsos mendigos e eximindo os

verdadeiros à contingência de exporem pelas ruas sua infelicidade. (Pereira Passos

apud Carvalho, 1997: 31)

34
Com seu projeto político, Pereira Passos procurava criar um novo espaço urbano e

um novo modo de viver, ambos centrados no que ele entendia por “civilizar”. Nesse

contexto, a cidade começou a se modernizar e a se diversificar. Uma das conseqüências

mais marcantes desse processo foi a transformação dos papéis da casa e da rua, que se

tornaram esferas separadas e até “inimigas”. A casa deveria ser o local das trocas íntimas,

da família, do privado, em contraposição à rua, que passaria a ser o local das trocas

impessoais, da atitude blasé, das multidões, do anonimato, do público (Freyre, 1968

[1936]).

A despeito do projeto de “civilizar” e “revitalizar” a cidade ou, até mesmo, apesar da

posterior criação de camelódromos, os vendedores ambulantes, mendigos, artistas de rua

etc. continuaram por toda parte com seus pregões, súplicas e acrobacias. Tais indivíduos

nunca deixaram em definitivo as ruas e praças da cidade, principalmente as mais

movimentadas, como a rua Uruguaiana. Pode-se dizer que o que caracteriza o ethos (cf.

Geertz, 1989) dessas pessoas é justamente o que se entende por “cultura da rua”, ou seja,

uma visão de mundo que teria como traço marcante a opção pela liberdade, pela mobilidade

e pelo anonimato. A escolha da “rua” e da “liberdade”, porém, deve ser entendida dentro de

um contexto específico, pois não se trata de algo puramente interno, subjetivo. Essa opção é

elaborada dentro de um campo de possibilidades circunscrito socialmente (cf. Velho, 1987

[1981]: 27).

As sucessivas crises econômicas ocorridas em âmbito nacional, principalmente nas

três ultimas décadas, e as mudanças no perfil do sistema produtivo acarretaram a

diminuição da capacidade industrial e a intensificação do setor de serviços na cidade do Rio

de Janeiro. De modo geral, essas mudanças alteraram o mercado de trabalho e geraram

altos índices de desemprego. Diante desse quadro, a camelotagem se apresentou — e ainda

35
se apresenta — como uma alternativa de trabalho e de consumo. Ser camelô nos dias de

hoje é, portanto, uma escolha que deve ser entendida nesse contexto de crise.17

Tumulto e happy hour na rua Uruguaiana

Entre o vaivém dos passantes, nas ruas estreitas das imediações da Uruguaiana, os

camelôs buscam, afoitos, pontos movimentados para se instalar durante os momentos de

ausência da Guarda Municipal. Apreensivos, querem expor a todo custo o que trazem para

vender. Carregam os produtos em suas mãos ou montam frágeis bancas de caixa de

papelão, forram-nas rapidamente com tecido e espalham as mercadorias. Com euforia e um

certo nervosismo, apregoam suas ofertas em meio aos passantes, até ser dado o alerta da

volta dos guardas municipais.18

A ação da guarda, pelo que pude observar, segue uma lógica que varia de acordo

com o calendário comercial da cidade e com os significados e valores dos lugares na

situação de mercado. O calendário comercial está relacionado com os rituais da sociedade

como um todo: do ápice no Natal, passando pelos ciclos promovidos pelo “dia de

pagamento”, até a sexta-feira, que celebra o fim da semana de trabalho. Essas ocasiões

dinamizam as compras e geram uma maior incidência de investidas da guarda nos locais

mais movimentados.

A maior parte das investidas da guarda não gera grandes confrontos; os vendedores

conseguem escapar, pois seus sistemas de comunicação muitas vezes impedem que sejam

17
Cf. capítulo 3.
18
Normalmente, o alerta é dado, por meio de radiotransmissores, para alguns camelôs, que avisam
os demais. Uma outra forma de alertar sobre a chegada dos fiscais, da polícia ou da Guarda
Municipal é a utilização de fogos de artifício. Mas, o mais comum dos alertas é mesmo o grito: “Ó
o rapa!”

36
pegos. Essas situações foram cotidianizadas pelos próprios camelôs e guardas, que

passaram a chamá-las de “gato e rato”. A maneira como a guarda exerce seu poder pode ser

um dos fatores que potencializa a probabilidade de um confronto mais sério. No trabalho de

campo, pude notar que algumas ações de repressão realizadas pela Guarda Municipal são

consideradas exageradas e geram revoltas e mobilização de recursos para o enfrentamento.

Há ocasiões em que alguns camelôs reagem individualmente à ação da guarda, e o próprio

tumulto se encarrega de sorver quem está de fora. Em outras circunstâncias, os camelôs

fogem, se organizam, se munem de paus e pedras, e retornam momentos depois para uma

revanche. Em geral, as lojas cerram as portas, e seguranças particulares e policiais militares

se envolvem na contenda. Em meio à confusão, algumas vezes, ouvem-se tiros de origem

indefinida e estouros de morteiros. Assustados, os passantes correm em todas as direções,

buscando refúgio em lojas e galerias, e os camelôs, em grande parte, se refugiam no interior

do camelódromo da Uruguaiana.

Foi numa dessas situações que conheci Adriano, um dos camelôs, cuja trajetória

apresentarei mais adiante.19 Era sexta-feira, dia 5 de dezembro de 2003. Cheguei no

camelódromo por volta das três horas da tarde. O movimento estava muito intenso no

Centro, e vários camelôs se arriscavam na rua Uruguaiana, tentando vender de tudo,

principalmente papéis de presente, cartões de natal e lâmpadas decorativas. No interior do

camelódromo, o vento quente produzido pelos ventiladores não aplacava, de jeito nenhum,

o calor que estava fazendo. Boa parte dos homens estava sem camisa, principalmente os

mais jovens.

O “canto” do salão de cabeleireiro estava especialmente animado naquela tarde.

Todos já estavam tomando cerveja e, assim que cheguei, a cabeleireira fez questão de

19
Os nomes de alguns personagens tratados nesta etnografia são fictícios.

37
providenciar “um copinho” para mim. A fila no salão estava grande e era formada apenas

por homens, que aguardavam a sua vez no balcão do bar da Raquel. Três deles, enquanto

esperavam, bebiam e brincavam fazendo provocações mútuas, atendiam ou manipulavam

freqüentemente seus telefones celulares ultramodernos e ficavam de um lado para o outro,

fazendo mil brincadeiras em alto e bom som.

Enquanto fazia as unhas, pude observar tudo ao meu redor. Havia três homens mais

velhos, por volta dos cinqüenta anos, vestidos alinhadamente, com blusas de seda, um deles

com cordão e pulseira dourados e calça de linho, todos com sapatos limpíssimos. Mais

contidos, eles bebiam na companhia do relojoeiro, apoiados na sua vitrine. No salão, um

segurança do camelódromo estava sentado no local onde são lavados os cabelos dos

clientes. Ele havia acabado de recolher a taxa semanal dos comerciantes. Portava um maço

de notas de dinheiro na mão e aguardava a dona do salão chegar, para receber a parte dela.

Ao fundo, eu podia ver Raquel sentada no lado de dentro do balcão de seu bar,

fumando um cigarro e ouvindo a música altíssima que saía do seu aparelho de som,

enquanto servia os fregueses. Passou um vendedor de rodelas de abacaxi, outro de ovos de

codorna, e ainda outro de amendoins. O movimento de pessoas no corredor da quadra, em

meio à vozearia e à confusão de sons, era muito grande. No salão, a freqüência era de

muitos homens fazendo a barba, as unhas e cortando cabelo.

Quando acabei de fazer as unhas, fui conversar com a Raquel no seu bar. De

repente, numa correria, várias pessoas adentraram o local. Alguns rapazes carregavam

aramados e tabuleiros, os mostruários das mercadorias. Seus rostos expressavam

sobressalto. Perguntei o que tinha acontecido, e eles me disseram que a Guarda Municipal

estava “partindo pra cima”. Eles, então, resolveram “relaxar” e tomar uma cerveja. Sentada

38
no balcão do bar em que eles começaram a beber, pude notar que eles chegaram um pouco

nervosos, mas logo começaram a rir, fazendo comentários sobre a situação.

Eles deram seus mostruários para a dona do bar guardar e pediram uma cerveja.

Adriano, um dos rapazes, cujo nome eu ainda não conhecia, combinou com a manicura que

faria as unhas das mãos e aguardou sua vez no bar. Os rapazes começaram a conversar

comigo e, depois de algum tempo, indaguei se eles costumam interromper definitivamente

as vendas do dia nesses momentos. Adriano respondeu: “Tem dia que, quando dá duas

horas da tarde, já consegui tirar mais de cem reais. Aí aproveito pra começar a me divertir.

Hoje vou ficar aí no pagode. Tu já viu como é isso aqui à noite? É muito bom... Fica

lotado! Hoje, então, que tá todo mundo com dinheiro, vai ser o bicho!”

Adriano estava se referindo à data especialíssima que era aquele dia: tratava-se de

uma “sexta-feira dia cinco”, isto é, além de ser sexta-feira, era o “quinto dia útil” do mês,

uma das datas em que se convencionou acertar pagamentos e receber salários, o que

obviamente dinamiza o comércio. Somava-se a isso o fato de que era mês de dezembro e,

portanto, tratava-se do “dia de pagamento” do esperado “décimo terceiro”, o ápice do ciclo

comercial que conduz multidões às ruas para as compras de Natal.

Com a chegada da noite, as lojas e os escritórios do Centro encerram seus

expedientes, e os boxes do camelódromo também começam a fechar, ficando abertos

apenas os bares e as lanchonetes.20 No interior do camelódromo, além do bar da Raquel, há

muitos outros bares espalhados por todas as quadras. Os bares, em geral, se situam em

cantos e vãos sem saída, os quais, ao final do dia, se transformam em pequenos largos para

20
Os bares têm permissão para ficar abertos até as 22 horas, enquanto os demais boxes são
obrigados a fechar até as 20 horas. Esses limites, entretanto, podem ser negociados e estendidos em
algumas situações. O fato de uma loja de acessórios para celular, por exemplo, permanecer aberta
até as 22 horas está relacionado à sua localização próxima a um bar.

39
onde converge uma quantidade relativamente grande de pessoas. Nesse momento, entram

em cena os vendedores ambulantes de tira-gostos, que oferecem castanhas de caju, frios

embalados em pequenas porções, ovos de codorna cozidos, amendoins torrados etc.

Entre outros freqüentadores, costumam se reunir em torno dos bares camelôs da

pista, comerciantes dos boxes vizinhos e pessoas da “associação”. Como há pouco espaço

para mesas, alguns deles bebem na entrada de seus próprios boxes, apoiando os copos em

seus balcões, dividindo a cerveja com um cliente ou amigo.21 Assim como Adriano, essas

pessoas passam o tempo todo combinando, com um e com outro, encontros “lá fora, mais

tarde”, no “pagode” de fulano ou na “barraca” de sicrano. Às dez horas da noite, um cordão

de isolamento é passado em volta de cada uma das quadras, para impedir a entrada de

estranhos nos corredores do camelódromo, e seguranças noturnos rondam toda a sua

extensão.22 A festa, então, se transfere para a rua.

Na alameda central da rua Uruguaiana, grupos de músicos, cada qual reunido em

torno de uma mesa, tocam sambas consagrados. Em outras barracas, novos hits das rádios

de pagode são emitidos de aparelhos de som precariamente instalados sobre fios que se

espalham pelo chão, quase sempre empoçado. As pessoas se divertem alegremente em volta

das mesas e em meio à fumaça das chapas de sanduíches e das churrasqueiras que assam

carne, milho, queijo e camarão. As tendas dispõem de infra-estrutura de cobertura, mesas e

cadeiras, e transformam a rua em um corredor de bares e restaurantes. Isso se reflete num

dos nomes que seus freqüentadores costumam, em tom de brincadeira, atribuir ao local:

“Camelódromo Grill”.

21
É muito comum um comerciante oferecer “um copinho” de cerveja ao cliente nesses momentos.
22
Como as mercadorias dos comerciantes ficam armazenadas nos próprios boxes, é preciso
controlar a área durante a noite.

40
O que me chamou a atenção, particularmente, foi a realização de festas de

aniversário de crianças ali na rua. Presenciei o aniversário de uma menina que estava

fazendo seis anos de idade. Enfeitaram a tenda da festa com balões coloridos e arrumaram a

mesa do bolo. Os convidados chegavam, e a família da menina recebia-os como se

estivesse em sua casa, acomodando-os nas cadeiras e mesas e servindo-lhes bebida e

comida. Inusitadamente, aquele lugar, que durante dia era palco de perseguições e tumultos

em virtude da repressão à ocupação da rua pelos camelôs, estava agora cheio de crianças,

os filhos dos camelôs, correndo e brincando ao redor das mesas ocupadas por seus pais, tios

e avós.

A rua Uruguaiana é freqüentada à noite por muitos camelôs da área e por suas

namoradas, noivas, mães, filhos, mulheres, tias e tios. Mas a rua também faz parte de um

circuito de happy hour do Centro do Rio, atraindo pessoas de camadas médias e populares

que trabalham no Centro e que elegeram esse lugar para celebrar o final de sua jornada de

trabalho. Independentemente do tipo de ocupação, a happy hour que se instala na rua

Uruguaiana confere à música, à cerveja e à comida um papel de destaque, congregando

desde biscateiros até funcionários públicos, passando por camelôs e secretárias, office-boys

e universitários, bancários, comerciantes e balconistas.23

Esses eventos, que são aparentemente espontâneos e caóticos, apresentam

características organizadas, antecipadas e programadas, assim como fases recorrentes. No

mundo dos camelôs, é possível identificar uma seqüência nos confrontos e nas happy

hours, e verificar quem são os seus atores e quais são os locais onde eles se iniciam, se

espalham e terminam. Nesse sentido, quero sugerir que esses eventos são, de certa forma,

23
Sobre as formas de sociabilidade e de ocupação do espaço no interior da metrópole, cf. Frúgoli
(1989).

41
ritualizados e, portanto, implicam atitudes que demarcam um “sistema de contrastes”

próprio à construção do “espaço como coisa concreta e visível” (DaMatta, 1985: 29). Ou

seja, nesses eventos, o “tempo medido e quantificado é substituído por uma duração vivida

e concebida como emocional”. Não se fala mais em horas ou minutos, e sim naquele

momento em que “a guarda partiu pra cima”, por exemplo. Ocorre, portanto, uma mudança

no modo de conceber e medir a duração do tempo, como também se faz uma modificação

concomitante do espaço (DaMatta, 1985: 32).

A rua Uruguaiana, nessas circunstâncias, passa por um processo de (re)significação

dos seus espaços concebidos como “privado” e “público”. À noite, a rua Uruguaiana se

refaz. Sem o controle do Estado através da Guarda Municipal, o tempo e o espaço adquirem

também uma linguagem da casa, da família, dos amigos e da festa, com a qual se celebram

as próprias relações sociais. De dia, é local de “ganhar dinheiro”, de individualização e de

luta, onde “cada um está por si”. Os significados da casa e da rua parecem, então, adquirir

um caráter complementar, apesar da oposição que os define. A “inimizade” dos espaços

concebidos dessa maneira, mencionada por Gilberto Freyre (1968 [1936]), tem um caráter

especial para Roberto DaMatta (1985: 47), segundo o qual esses espaços se reproduzem

mutuamente, pois “há espaços na rua que podem ser fechados ou apropriados por um

grupo, categoria social ou pessoas, tornando-se sua ‘casa’, ou seu ‘ponto’”.

Em suma, o que estou sugerindo é que a rua Uruguaiana se configura num espaço

singular. Ela se assemelha aos locais transitórios citados por DaMatta (1985), “onde a

presença conjunta da terra e da água marca um espaço físico, confuso e necessariamente

ambíguo”. Um espaço liminar, que, entretanto, faz “parte de uma estrutura social que

necessariamente inclui espaços e temporalidades permanentes que operam em todos os

níveis da sociedade” (DaMatta, 1985: 39).

42
43
CAPÍTULO 2

O cotidiano dos camelôs no Centro do Rio de Janeiro

Como foi visto, cada localidade tem seu fluxo e freqüência próprios, e se configura

num mercado específico. O camelô percebe as características de cada localidade,

utilizando-a da forma mais rendosa possível. Pode-se dizer que o uso dos espaços pela

camelotagem varia em função do ritmo dos fluxos e dos usos dos lugares da cidade. Nesse

sentido, para que se realize o trabalho do camelô, é fundamental que o ponto, a mercadoria

e o freguês se compatibilizem.

No mundo do comércio, o local onde a mercadoria é oferecida é quase tão

importante quanto a própria mercadoria. Obviamente, a escolha recai sobre os locais de

maior fluxo de pessoas. No caso dos camelôs, os pontos preferenciais são os terminais de

ônibus, os arredores das estações de trem e de metrô, as esquinas das ruas principais, as

entradas de shopping centers, as festas e eventos realizados em locais públicos, os blocos

carnavalescos, os shows na praia, as praças, ou qualquer lugar para onde convirja uma

grande quantidade de pessoas.

O ponto

No contexto da camelotagem carioca, o Centro é uma área privilegiada. Como foi

visto no capítulo anterior, esse bairro concentra a vida comercial, financeira, cultural e

política da cidade e, portanto, cria uma situação favorável à prática do comércio de rua.

Durante o dia inteiro, é forte a presença dos camelôs por toda a extensão do bairro, porém,

44
há pontos específicos que sobressaem nesse contexto. As imediações da rua Uruguaiana são

um dos locais do Centro bastante favoráveis à camelotagem. Esse potencial pode ser

identificado a partir da sua configuração no mapa do Centro da cidade, pois, nessa área, se

destacam espaços referenciais a essa atividade, como a Saara e o camelódromo da

Uruguaiana. Tais espaços fazem dessa região uma área voltada para o comércio popular,

com características de bazar,24 direcionada aos padrões mais modestos de consumo.25

De modo geral, é possível identificar três modos de ocupação dos espaços na

camelotagem carioca: na pista (nas ruas, sem ponto fixo), nas barracas (nas calçadas, com

ponto fixo) e no camelódromo (em boxes de alvenaria, com ponto fixo).26 A situação das

imediações da rua Uruguaiana é a seguinte: nas ruas que entremeiam a Saara, não há

camelôs; elas são destinadas apenas aos pedestres, suas lojas vendem artigos diversificados

no atacado e no varejo, e os espaços de suas calçadas são ocupados pelas bancas com as

mercadorias em oferta e destinados às encenações de seus pregoeiros. Muitas dessas lojas

fornecem mercadorias para os camelôs.27

Contíguo a esse extenso mercado, em torno das saídas da estação de metrô, fica o

camelódromo da Uruguaiana, que concentra 1.600 comerciantes estabelecidos em boxes de

alvenaria.28 Nas calçadas das ruas ao redor do camelódromo, mais precisamente em direção

ao Largo de São Francisco, estão presentes os camelôs estabelecidos em pontos licenciados

24
O caráter de multiplicidade e de mistura de etnias, os sistemas próprios de abastecimento de
mercadorias e de segurança, a flexibilidade dos preços e a possibilidade de barganha são alguns dos
traços de um mercado com características de bazar, segundo Geertz (1979: 123).
25
Cf. capítulo 1, em que identifico uma organização moral do Centro e faço referência a outros
trabalhos sobre o bairro.
26
Essas maneiras de ocupar pontos, assim como o tipo de mercadoria comercializado, posicionam o
sujeito na carreira da camelotagem. Sobre essa reflexão, cf. capítulo 3.
27
Para mais detalhes sobre a Saara, cf. Ribeiro (2000).
28
Cf., neste capítulo, a seção “O camelódromo da Uruguaiana”.

45
pela Prefeitura, com barracas padronizadas, feitas de ferro e lona. Esses camelôs

autorizados, que se tornaram comerciantes com relativa estabilidade no uso do ponto, são

os chamados “barraqueiros”. Nessas mesmas ruas, há ainda forte presença dos camelôs da

pista.

A rua Uruguaiana e as ruas do seu entorno compõem um espaço que é visado pela

camelotagem, mas é fortemente controlado pela guarda do município. Os camelôs da pista

costumam se posicionar nessas ruas, as mais movimentadas do Centro, nos momentos de

ausência da guarda, a fim de realizar, na passagem de milhares de pessoas, o maior número

possível de vendas. Eles não utilizam barracas, e sim tabuleiros, mostruários aramados,

caixas de papelão, ou quaisquer outros apetrechos que ofereçam liberdade de movimento

para as situações de fuga. Esses camelôs não possuem autorização da Prefeitura, e o único

mecanismo de controle do espaço do qual dispõem é a mobilidade. Utilizando um termo

empregado pelos camelôs com muita propriedade, eles realizam um circuito, como numa

“pista”, percorrendo diariamente diversos pontos de diferentes áreas do Centro da cidade.

Os barraqueiros se posicionam em pontos fixos, geralmente em ruas secundárias.

Há duas maneiras de se obter um desses pontos, as quais são muito semelhantes aos modos

de se conseguir um boxe no camelódromo da Uruguaiana. Uma delas é preencher os

critérios de concessão estabelecidos pela lei municipal. Entretanto, independentemente da

pontuação atingida, o candidato deve entrar numa fila de espera, pois estão suspensas as

concessões para o bairro do Centro.29 A outra maneira, mais utilizada, é fazer contato com

o presidente da associação de camelôs da área almejada para se estabelecer, a fim de

“alugar” ou “comprar” o ponto.

29
Para mais detalhes sobre os critérios de concessão e o número de camelôs em ponto fixo por
região administrativa, ver a Lei Municipal nº 1.867/92.

46
Um barraqueiro fixado nas imediações da Praça Cruz Vermelha me relatou que o

método mais utilizado é o aluguel. A associação fornece a barraca e o ponto mediante a

quantia semanal de 150 reais. Nesses casos, o camelô não tem uma autorização em seu

nome; porém, está incluído no acordo que nem a fiscalização nem a Guarda Municipal irão

impedi-lo de vender suas mercadorias no local, pois uma parcela do valor do aluguel

destina-se ao pagamento de propinas e “agrados”, quando “alguma coisa não tá certa”,

como o próprio informante revelou. O barraqueiro, pelas características de seu ponto,

precisa armar sua barraca e transportar a mercadoria até ela diariamente. A grande maioria

desses camelôs contrata os serviços de um “montador e desmontador” de barracas, que

custam em torno de vinte reais por semana.

A obtenção de um ponto no camelódromo da Uruguaiana, em tese, segue as mesmas

regras das barracas na calçada: o candidato deve preencher os critérios elaborados pelo

poder público municipal e aguardar a concessão, que pode demorar muito tempo ou até

mesmo nunca sair.30 Ao conversar com d. Elzira, uma senhora que mantinha um boxe de

“artigos de Bali” — como ela mesma denominava — num corredor isolado do

camelódromo da Uruguaiana, ela me disse que já havia tentado conseguir um ponto por

meio dos critérios de pontuação e da fila de espera. Sua solicitação não foi atendida, e ela

então resolveu alugar o ponto, tratando diretamente com a associação que administra o

camelódromo da Uruguaiana.

30
Em tese, somente a Prefeitura pode conceder os pontos aos camelôs já cadastrados, e a sua venda
é proibida. O interessado faz o cadastramento na Inspetoria de Licenciamento e Fiscalização, órgão
submetido à Coordenadoria (ambas amparadas pela Secretaria Municipal de Fazenda), e passa por
uma espécie de triagem, através do mecanismo de pontuação previsto pela Lei Municipal nº
1.876/92. Feito o cadastro, a licença dependerá diretamente do prefeito, que a concederá ou não
através da Secretaria Municipal de Governo.

47
Diversas vezes, tentei me aproximar das pessoas ligadas a essas associações, mas as

conversas não fluíam depois que elas ficavam sabendo que sou pesquisadora, até mesmo

quando eu me identificava como estudante. Não queriam dar qualquer tipo de informação

para aqueles que não fossem comerciantes querendo comprar ou alugar um dos pontos sob

seu controle. No caso das barracas, é muito difícil encontrar essas pessoas ou ao menos

identificá-las nas ruas.

Um dia, uma senhora que tem uma barraca próxima à Praça Cruz Vermelha me

mostrou quem era o senhor que “cuidava” das barracas. Dessa vez, mudei a estratégia e

cheguei pedindo informações básicas, antes de me identificar como estudante. Pensando

que eu era uma pessoa interessada em alugar uma barraca, o senhor se prontificou a

informar como eu deveria proceder se quisesse ter uma. Não somente em razão da ética

profissional, mas também em virtude da natureza das questões que eu precisava colocar, era

importante que ele soubesse das minhas intenções. Assim que soube, porém, desconversou

e se esquivou das minhas indagações.

No camelódromo da Uruguaiana, as tentativas de entrevistar pessoas ligadas às

associações também não foram bem-sucedidas. Nas ocasiões em que tentei me informar

sobre o procedimento a seguir para obter um boxe no camelódromo, recebi respostas

controversas dos homens da associação e dos camelôs que me relataram sua entrada no

camelódromo. Muitos camelôs não estavam no mercado desde a sua inauguração, haviam

comprado seu boxe por mais de vinte mil reais e revelavam que “tudo é feito com a

associação”. Nas duas vezes que perguntei sobre o que fazer para conseguir um ponto na

associação, responderam-me: “Aqui a gente só cuida do mercado, da limpeza e da

segurança. O resto é tudo na Prefeitura”.

48
Resolvi procurar a Prefeitura no endereço que eles mesmos me deram. Era o lugar

errado: tinham informado o endereço da Secretaria Municipal de Fazenda, na sede da

Prefeitura localizada na Cidade Nova. Para minha surpresa, ao chegar lá, fiquei sabendo

que o local “certo” era contíguo ao camelódromo, na divisa de uma das ruas pertencentes à

Saara, bem próximo à sede da associação que fica no final da quadra C do camelódromo, na

parte que dá para rua da Alfândega. O sobrado onde funciona a Inspetoria Regional de

Licenciamento e Fiscalização fica na rua Senhor dos Passos. Lá, obtive a informação de

que estavam fechadas as inscrições para o Centro, pois o prefeito assim tinha decidido.31

Todavia, pude constatar que novas barracas, padronizadas e ligadas às associações,

surgiam constantemente em determinadas áreas do Centro. No camelódromo, também

assisti à intensa rotatividade no uso dos boxes. Sendo assim, tudo leva a crer que há uma

rede de pessoas que liga as prerrogativas estatais de controle do uso das ruas pelos camelôs

a uma elite dentro da própria camelotagem, que controla os pontos nas áreas da cidade.

Devido ao limite de tempo da própria pesquisa, não pude me empenhar em

conquistar a confiança desses atores, de modo que eles contassem “a sua história”, a sua

“versão” dos fatos e, principalmente, a sua trajetória nesse universo. Tais dados seriam

preciosos, pois, de certa forma, podem ser considerados como referências nas possíveis

carreiras da camelotagem (Hughes, 1971).

A mercadoria

No comércio praticado na camelotagem, há uma infinita variedade de mercadorias à

venda. As mais freqüentes nas ruas do Centro são as falsificações de CDs de músicas,

31
De fato, o Poder Executivo tem a prerrogativa de suspender e conceder pontos no camelódromo e
nas calçadas, ou de criar camelódromos. Cf. Lei Municipal nº 1.876/92, Capítulo X, Artigo 44.

49
filmes e softwares, de relógios de pulso, de perfumes de grife francesa, de canetas e de

óculos, além de acessórios para telefones celulares, cintos, bolsas, carteiras, aparelhos de

barbear, calculadoras, lupas, relógios despertadores, pilhas, mini-rádios am/fm, bombons de

chocolate, balas e bijuterias.

No caso dos camelôs da pista, a exposição das mercadorias deve ser feita de forma

portátil, para facilitar a sua remoção. A todo instante, os vendedores —principalmente

aqueles que comercializam falsificações, caracterizadas como mercadoria ilícita —

precisam escapar da repressão policial, pois a sua presença não é permitida nas ruas do

Centro. Dependendo do dia e do lugar, eles precisam se deslocar com freqüência, esperando

a retirada dos guardas para retornar ao local de sua preferência.

Normalmente, esses camelôs utilizam lonas estendidas pelo chão das calçadas,32

pequenas bancas desmontáveis,33 mostruários de arame34 e tabuleiros, ou penduram as

mercadorias em seus pescoços e braços.35 No caso dos CDs de software, o camelô expõe

apenas a fotocópia das embalagens dos programas e, mediante o pedido do freguês, se

dirige ao fornecedor, que está sempre por perto com a mercadoria estocada.

Segundo um camelô que vende cópias de CDs de música na rua dos Andradas, há

três tipos de acordo com o fornecedor. É possível comprar a mercadoria à vista, com

32
Essas lonas são chamadas de “pára-quedas” porque possuem cordões amarrados nas pontas, os
quais, ao serem puxados, “salvam” a mercadoria. Elas são usadas nas situações em que as batidas
policiais e fiscais são mais prováveis. Nelas, geralmente, são expostas roupas, brinquedos, carteiras,
bolsas e CDs.
33
Estruturas feitas de ripas de madeira, caixotes improvisados ou caixas de papelão, essas bancas
normalmente são usadas para expor canetas, pulseiras, bombons, bijuterias etc.
34
Os mostruários geralmente são usados para expor acessórios para celulares, óculos, fotocópias
das capas dos CDs de software e embalagens de DVDs e de CDs de música.
35
As mercadorias expostas dessa maneira são os colares, cordões para crachá, toalhas de mesa,
colchas, redes, guarda-chuvas, caixas ou saquinhos de balas e cartelas de aparelhos de barbear, entre
outros.

50
possibilidade de lucro de até cem por cento, ou pegar em consignação — pagando somente

o que for vendido — por comissão “meio a meio”. O camelô também pode levar a

mercadoria para as ruas em troca de um pagamento fixo, uma diária.

No caso desse camelô que conversou comigo, o combinado foi ele receber 15 reais

por dia, além do transporte e do almoço, independentemente do montante de suas vendas.

Por me parecer menos vantajosa essa última alternativa, indaguei o motivo de sua escolha,

e ele respondeu: “Tenho compromisso em casa, não posso chegar sem dinheiro. Preciso ter

certeza do que vai entrar. Quando a gente divide o lucro, também tem que dividir o

prejuízo”. No decorrer da conversa, as vendas não pararam e, rapidamente, seu estoque

acabou. Então perguntei: “E agora, você vai pra casa?” Ele respondeu: “Não, vou buscar

mais mercadoria. Tenho que cumprir horário. Hoje, só vou embora às oito”. Antes que ele

saísse, chegou um comprador que queria um determinado título. Como ele não tinha, pegou

com o vendedor ao lado e efetuou a venda. Em seguida, pediu a esse mesmo vendedor que

tomasse conta da sua banca por alguns minutos e saiu. Permaneci no local, de onde era

possível vê-lo entrando no camelódromo. Em menos de dez minutos, ele estava de volta.

Abriu uma bolsa cheia de CDs e arrumou-os em cima da banca.36

O caso descrito remete a uma das maneiras de ser camelô na pista. A mercadoria é

obtida mediante um acordo em que o camelô, por não dispor de capital em espécie, oferece

sua força de trabalho ao fornecedor e, em vez de uma porcentagem do lucro, recebe em

troca uma quantia preestabelecida. Sendo assim, o fornecedor, em alguns casos, torna-se

também empregador. No exemplo citado, há ainda o diferencial de se tratar de mercadoria

falsificada, cuja produção, porte e comercialização constituem crimes com penalidades

36
Os CDs são vendidos por cinco reais a unidade, ou por dez reais três unidades. Esses camelôs
dispõem de um CD player com headphones, para o freguês testar a cópia.

51
previstas no Código Penal.37 Nesse sentido, o camelô que comercializa esses produtos

exerce uma atividade duplamente ilícita, o que o torna ainda mais exposto à repressão e à

extorsão policial.

Quando perguntei a esse vendedor o porquê de trabalhar com cópias de CDs, ele me

respondeu que não foi exatamente uma escolha, “foi por acaso”. Ele estava “parado” havia

quase um ano, depois de ter sido office-boy num escritório de advocacia. Viu um amigo

vendendo CDs no Centro e, como estava precisando trabalhar, pediu a ele informações

sobre como fazer para conseguir a mercadoria. No mesmo dia, conheceu o fornecedor, e

fizeram um acordo. Combinaram que ele chegaria no dia seguinte, por volta das nove horas

da manhã, munido de um tabuleiro ou de qualquer outro apetrecho para “botar a mercadoria

na pista”.38

Um outro camelô que entrevistei me informou que não trabalha com um único

artigo e que escolhe a mercadoria a ser comercializada quando chega no Centro. Perguntei

como ele consegue a mercadoria, e ele me disse que, se tem algum dinheiro, compra uma

pequena quantidade da mercadoria e sai “por aí” oferecendo; se não tem dinheiro, pega a

mercadoria em consignação com alguém conhecido do camelódromo da Uruguaiana.

Como pode ser visto, nem sempre o camelô tem recursos financeiros para comprar o

produto a ser comercializado. Muitas vezes, a aquisição da mercadoria segue uma lógica na

qual são imprescindíveis tanto uma rede de contatos na camelotagem quanto uma certa

visão de mercado, para detectar qual artigo, onde, como e a que preço pode ser comprado e

37
Código Penal, Artigo 175, Capítulo VI, Da fraude no comércio; Artigo 180, Capítulo VII, Da
receptação; Artigo 184, Título III, Dos crimes contra a propriedade imaterial, Capítulo I, Dos
crimes contra a propriedade intelectual.
38
Sobre a “personificação” das relações e a substituição do “patrão” pelo “consumidor” de serviços
prestados no mercado de trabalho, cf. Silva (1971).

52
vendido, de modo que seja gerado um excedente satisfatório. A mercadoria é meramente

um meio de troca, mas há situações em que ocorre alguma identificação entre o camelô e a

mercadoria por ele vendida.39 Em outros casos, a escolha da mercadoria é circunstancial,

em função do calendário comercial ou de situações climáticas.

O Natal e outras ocasiões festivas, como a Páscoa, o dia das mães e a Copa do

Mundo, e até mesmo as sextas-feiras à noite e as happy hours, mobilizam o consumo e

geram uma situação de mercado favorável a determinados artigos. Há também ciclos

diários que favorecem a oferta de determinadas mercadorias, como as primeiras horas da

manhã e o horário do almoço, momentos em que ocorre maior procura por café, refrescos,

bolos, salgados, sanduíches e quentinhas, ou a noite, quando incide a oferta de dropes,

botões de flores, churrasquinhos, amendoins torrados, bebidas alcoólicas, refrigerantes etc.

Uma situação etnográfica revelou uma outra forma de aquisição da mercadoria a ser

comercializada pelo camelô. Três rapazes vestidos de terno e gravata, na faixa etária de 25

a trinta anos, se aproximaram de Adriano enquanto ele tomava uma cerveja no bar da

Raquel, no interior do camelódromo da Uruguaiana. Todos se cumprimentaram e se

trataram pelo nome. Um dos rapazes retirou de dentro de uma sacola uma caixa com um

telefone celular e a ofereceu a Adriano, para que ele a vendesse por 150 reais em troca de

cinqüenta reais de comissão. Adriano pegou a caixa, conferiu a marca e o modelo do

telefone, verificou se o kit estava completo, com carregador, bateria e manual de instruções,

e tentou ligar o aparelho. O rapaz explicou que a bateria estava descarregada, mas que o

telefone estava em perfeito estado. Adriano olhou desconfiado e pediu para a dona do bar

ligar o carregador em alguma tomada, para ver se o aparelho estava realmente funcionando.

Constatou que não estava. Retirou-o da tomada, colocou-o de volta na caixa e devolveu-o.
39
Cf. capítulo 3.

53
O rapaz tentou dar explicações, e Adriano respondeu: “O cara, quando compra, quer ver o

display acendendo, senão não leva. Sem chance, amigo”. O rapaz insistiu, e Adriano disse:

“Dá aí pra outro vender”.

As mercadorias da pista são adquiridas sem grandes deslocamentos por parte desses

camelôs. Eles raramente viajam ou cruzam fronteiras entre cidades e localidades regionais

para adquiri-las.40 Como o próprio informante declarou, a maior parte dos “camelôs que a

gente vê aí” não compra a mercadoria, e sim pega em consignação com quem compra. A

mercadoria vendida nessas condições é adquirida em locais próximos, muitas vezes

contíguos, como os camelódromos e as lojas registradas do chamado comércio “formal”.

No camelódromo, a situação é diferente. As mercadorias têm diversas origens, entre

as quais as mais declaradas são a China, o Paraguai, Bali, São Paulo e Paraná. Há também

mercadorias fabricadas aqui mesmo, no Rio de Janeiro. Parte das confecções de malhas de

ginástica e de roupas de praia que fornecem seus produtos para os comerciantes do

camelódromo é “caseira”, e muitas delas estão situadas no subúrbio carioca, como, por

exemplo, uma que fica em Del Castilho. Seu Linhares, um comerciante do camelódromo,

há três anos deixou de mexer com mercadoria “de fora” e não vende mais artigos

eletrônicos. Segundo ele, esse tipo de mercadoria “dá muita dor de cabeça”, pois chama a

atenção da fiscalização. Atualmente, seu Linhares comercializa artigos que vêm do Paraná.

Ele não precisa se deslocar para adquirir os produtos, pois o representante de suas

mercadorias vem ocasionalmente “tirar o pedido”.

Para o comércio nas barracas das calçadas ou na pista, é comum o camelô adquirir a

mercadoria no interior do camelódromo, principalmente acessórios para telefones celulares,

40
Ao contrário dos camelôs do Centro do Rio de Janeiro, os camelôs de Porto Alegre - RS
estudados por Machado (2003) viajam para o Paraguai para adquirir mercadoria.

54
relógios, óculos escuros, bolsas e mochilas de lona colorida. Pode-se dizer que há

mercadorias mais femininas e outras mais masculinas. Na pista, há muito menos mulheres

do que em qualquer outra situação na camelotagem. Nas barracas e no camelódromo, as

mulheres lidam com mais freqüência com artigos de interesse feminino, como roupas,

cosméticos, maquiagens, lingeries, bolsas, bijuterias etc. Elas são também consumidoras

desses produtos e, normalmente, usam as roupas, os perfumes e os brincos com os quais

trabalham.

Assim como acontece em Porto Alegre, nas barracas do camelódromo etnografado

por Machado (2003), a montagem das bancas no Centro do Rio pode ser feita com muito

esmero pelos camelôs que trabalham em pontos fixos. A autora comparou os arranjos feitos

pelos vendedores ao trabalho de um bricoleur: “O camelô possui um número determinado

de mercadorias com as quais tem que fazer um arranjo. Cada dia é um arranjo novo com o

mesmo repertório de peças. O resultado final é uma harmonia de cores e formas obtida

através de um conhecimento prático” (Machado, 2003: 32). No caso do Rio de Janeiro,

pode-se dizer que esse é um traço forte entre as mulheres na camelotagem.

Há um tipo de mercadoria muito comum na camelotagem carioca: a “novidade”.

Trata-se de artefatos que despertam a curiosidade dos passantes e que, geralmente, são

adquiridos por seu conteúdo jocoso. Por exemplo, são vendidas imitações perfeitas de fezes

feitas de material sintético e miniaturas de pênis movidas a corda. Ultimamente, têm sido

vendidas miniaturas de monstrinhos coloridos, feitas de um tipo de material que, ao ser

imerso na água, aumenta de tamanho. Os camelôs costumam fazer demonstrações,

colocando cada um desses bichinhos dentro de uma garrafa de refrigerante cheia d’água.

Ao final de alguns dias, o monstrinho está do tamanho da garrafa.

55
Há também réplicas de artigos lançados e patenteados por grifes famosas e produtos

semelhantes aos usados — como apregoam os camelôs — por “artista de novela”. Tais

artigos se repetem em diversas bancas, como uma espécie de fetiche que ganha

popularidade nas ruas da cidade durante um determinado período. Atualmente, em muitas

bancas de camelôs, tem sido vendido um tipo de pulseira que foi lançado originalmente por

uma joalheria famosa. São pulseiras com módulos nos quais estão gravadas letras do

alfabeto e com as quais o cliente pode formar nomes e outras palavras. Alguns acessórios

usados por personagens de novela também podem virar mania na camelotagem, como um

modelo de brinco usado por uma personagem interpretada pela atriz Carolina Dieckman,

que se popularizou nas ruas durante o período da novela — eram os “brincos da Edwiges”.

Na mesma novela, havia uma escola chamada Nova Era, na qual os personagens

adolescentes estudavam. A blusa confeccionada para ser o uniforme da escola passou a

figurar nas barracas dos camelôs. Cheguei a ver alguns jovens circulando pelo

camelódromo com essas camisetas.

As falsificações de bonés, camisetas, bermudas, tênis, óculos, relógios, canetas,

mochilas, bolsas e perfumes de marcas famosas são algumas das mercadorias mais

comercializadas por camelôs. Esse tipo de artigo, chamado de “pirata”, de “segunda linha”

ou de “similar”, é bastante procurado no mercado da camelotagem, mesmo tendo qualidade

questionável. As etiquetas das grifes Adidas, Osklen, Nike, Mont Blanc e Louis Vuitton são

as mais procuradas nesse mercado, e nem sempre são oferecidas a preços populares. Um

exemplo é o comércio de falsificações das bolsas da marca Louis Vuitton, em que um

modelo simples pode ser encontrado por quinhentos reais, preço que corresponde, segundo

uma compradora, a um quarto do valor da bolsa original. Essas mercadorias falsificadas são

56
oferecidas em todo o Centro; entretanto, estão mais presentes nos arredores de áreas nobres,

por onde circulam executivos e profissionais liberais.

Os óculos escuros, com “design italiano” — como muitos camelôs anunciam —,

fazem um sucesso incrível no interior do camelódromo. Há boxes enormes, com diversos

modelos ordenados em mostruários giratórios e com espelhos espalhados por toda parte.

Nesses boxes, ocorre uma intensa movimentação. Mesmo quem não está ali para comprar o

produto experimenta algum modelo. Algumas pessoas chegam a fazer poses na frente do

espelho, depois do que devolvem a mercadoria e vão embora. Os tênis também fazem

muito sucesso no camelódromo. São réplicas de marcas famosas, vendidas por um quarto

do valor de um modelo original. Assim como os tênis e os óculos escuros, as correntes de

ouro e prata, as camisetas de times de futebol e basquete e os relógios são mercadorias

amplamente vendidas, além de serem consumidas pelos próprios camelôs.

O freguês

A relação do camelô com a freguesia é dotada de ambigüidades. Ao mesmo tempo

que é vista como um fenômeno sintomático de uma crise do mercado de trabalho e como

uma atividade ligada a um mercado conveniente, acessível, com produtos úteis e mais

baratos, a camelotagem é associada também às idéias de “desordem”, de “concorrência

desleal” e de “extensão do crime organizado”, e os camelôs são vistos tanto como

“trabalhadores” quanto como pessoas “perigosas” e “embusteiras”, que comercializam

produtos de qualidade e origem duvidosas. Apesar de todos esses adjetivos, há uma

57
demanda significativa pelos produtos oferecidos pelos camelôs: nos boxes dos

camelódromos, nas barracas das calçadas ou na pista, as ofertas atraem os fregueses.41

Lucinha, uma comerciante do camelódromo da Uruguaiana, me relatou que, na

época em que tinha uma barraca no Largo da Carioca, conheceu um rapaz que vendia

“chumbinho” — composição química venenosa, comercializada ilegalmente e muito usada

para matar ratos — e que, ocasionalmente, se posicionava perto de sua barraca. Certa vez,

uma senhora, interessada em comprar o pequeno tubo com o conteúdo venenoso pelo valor

de cinco reais, deu uma nota de cinqüenta reais ao camelô. Ele disse que não tinha troco,

mas a senhora insistiu. O camelô então pediu a Lucinha que tomasse conta de sua banca

enquanto ele sairia em busca de troco. O camelô nunca mais voltou, e Lucinha acabou

tendo de consolar a freguesa enganada, que, a essa altura, já havia descoberto que o

conteúdo deixado pelo camelô era areia tingida de cor grafite. Em tom anedótico, Lucinha

finalizou o relato: “Na rua tem de tudo... Tem que ficar ligada. Pô, essa mulher deu bobeira

[risos]”.

Lucinha se estabeleceu no camelódromo há oito anos. Quando ela me contou a

história do vendedor de “chumbinho”, nós estávamos conversando sobre a imagem do

camelódromo da Uruguaiana na cidade e, por extensão, sobre a imagem dos camelôs. Nessa

conversa, ela fez questão de dizer que trabalha “honestamente” desde a época em que

vendia na rua, onde conquistou uma freguesia fiel, que até hoje compra com ela: “O pessoal

acha que, só porque tá na rua, não tá fixo, que pode fazer o que quer que ninguém vai

41
Esses adjetivos que qualificam o camelô serão discutidos no capítulo 3, em que analisarei a
identidade social do camelô a partir das noções de carreira moral (Goffman, 1974 [1961]) e
carreira desviante (Becker, 1963).

58
descobrir. Pode até ser... O cara se dá bem e tudo... Mas se dá bem só uma vez, porque não

pode mais voltar”. 42

Durante a pesquisa, conversei com alguns consumidores de artigos vendidos por

camelôs. Nessas entrevistas, ouvi relatos interessantes para a reflexão sobre a relação do

camelô com o freguês. Um desses consumidores, um bancário na faixa dos quarenta anos

de idade, morador de Botafogo, se diz freguês de Adriano, um dos vendedores de cópias de

software que acompanhei na pesquisa. Esse freguês me disse que toda semana passa no

ponto em que Adriano costuma ficar, para saber se tem alguma novidade: “Toda a minha

máquina [referindo-se ao seu microcomputador] é montada com os CDs dele. Não tem erro:

quando tenho dificuldades na instalação dos programas, ligo pra ele ou pro Reinaldo,43 e

eles me passam os códigos de instalação ou me ajudam a instalar”. Perguntei: “Você já

precisou trocar algum CD?” E ele: “Já. Quando comprei um antivírus muito pesado [com

configuração incompatível com a capacidade de seu computador], voltei aqui e troquei por

outro que ele mesmo me indicou. E tô até hoje com ele instalado no meu computador”.

Esse mesmo freguês também relatou que, antes de comprar com Adriano, foi enganado por

um camelô que lhe vendeu um CD em branco, sem nada gravado, como se fosse a cópia de

um programa. Ao voltar, no dia seguinte ao da compra, ele não o viu mais.

Não são apenas os passantes que compram em camelôs. Muitas pessoas vão até eles

intencionalmente, para comprar. A freguesia do camelô é muito heterogênea e varia,

sobretudo, entre as camadas populares. Nota-se, porém, que há uma demanda significativa

por mercadorias nas camadas médias, a qual, como foi visto, está relacionada a um padrão

específico de produto. Aos sábados, por exemplo, é comum ver famílias inteiras circulando

42
Sobre a trajetória de Lucinha na camelotagem, cf. capítulo 3.
43
Reinaldo é o fornecedor de CDs de Adriano.

59
pelo camelódromo, conversando com os conhecidos e comprando roupas, brinquedos para

as crianças, utensílios domésticos, calçados etc.

Para falar da relação entre camelô e freguês, é preciso ter como referência a relação

entre os próprios camelôs, pois eles também são fregueses em potencial. A compra e a

venda, nesse comércio, pressupõem uma lógica de confiança e de competição tanto entre

camelô e freguês quanto entre os próprios camelôs. Há redes familiares, religiosas e

comerciais de solidariedade entre os vendedores: é relativamente comum um camelô

indicar outro vendedor, quando ele não tem a mercadoria solicitada. Geralmente, esses

camelôs são parentes, amigos, “irmãos” da igreja, ou trabalham com os mesmos

distribuidores ou atacadistas. Isso não implica, porém, a ausência de concorrência entre

eles. Ao contrário, a competição pode ser percebida no ato da compra/venda, quando o

freguês a aciona, jogando com a necessidade do camelô de vender e buscando obter, assim,

maiores vantagens. O camelô, por sua vez, joga com o desejo do comprador de adquirir a

mercadoria.

Essas negociações podem ter duração diversa. Na pista, a negociação é rápida. Um

dia, presenciei a seguinte cena: um camelô anunciava uma promoção, repetindo em voz alta

que “um é cinco, três é dez”. Um comprador se aproximou e propôs: “Faz aí um por três?”

O camelô respondeu: “Faço por quatro, quer?” O comprador aceitou, entregou uma nota de

cinco reais, pegou o troco e o CD e partiu sem se despedir. Tudo não durou mais que alguns

segundos. Há também casos em que a barganha pode se estender e implicar uma forma de

sociabilidade, uma maneira de se comunicar e de trocar experiências.44 Não é raro ver, no

44
Sobre a barganha como forma de comunicação e sociabilidade nos bazares marroquinos, cf.
Geertz (1979: 221-222).

60
camelódromo, ao anoitecer, o freguês sendo convidado pelo vendedor, após realizar a

compra, para tomar um “copinho de cerveja”, a fim de selar o negócio.

Numa outra entrevista, um estudante universitário que costuma comprar cópias de

CDs de música em camelôs do Centro me disse que só compra os CDs depois de testá-los

no CD player que o próprio camelô oferece na hora da venda: “Só pago depois de saber que

tem todas as músicas no CD. Com camelô não se pode dar mole”. Perguntei por que, e ele

respondeu: “Por quê?! Ora... Ele some no mundo, e aí eu fico no prejuízo”. Nessa relação,

tanto o camelô quanto o freguês jogam com o anonimato e a mobilidade próprios da vida

urbana e dos contatos efêmeros que se travam na rua. Nota-se que a possibilidade de

desempenhar diversos papéis em universos sociais distintos e, em alguns casos, estanques

explica o caráter relativo do anonimato vivido na metrópole.45

Robert Park (1967 [1916]) destaca a questão da mobilidade, mostrando que ela é um

elemento a ser examinado nas investigações sobre as metrópoles modernas. Na sua visão,

está subentendido que o anonimato é uma maneira de lidar com o controle social. Deve-se

notar, entretanto, que a liberdade, própria da situação urbana, é tanto originada quanto

limitada pelas dimensões metropolitanas. Isto é, ao mesmo tempo que se é livre para

desempenhar papéis diferentes em situações descontínuas, é difícil, em função da própria

mobilidade, haver áreas exclusivas a determinados tipos de pessoas. Assim, todos estão

sujeitos a se encontrar em contextos distintos.

Na camelotagem, há diversas formas de abordar o freguês. As falas dos camelôs são

sempre repetidas e são feitas num tom de voz específico. De modo diferente do que ocorre

em Porto Alegre (cf. Machado, 2003), não há pregão no interior do camelódromo da

Uruguaiana, nem nas barracas armadas nas calçadas de suas imediações. No contexto
45
Sobre anonimato relativo, cf. Velho e Silva (1976).

61
carioca, encontrei, na pista, alguns exemplos de falas constantemente proferidas pelos

camelôs: “É um real aí, é um real aí, é um real!” e “Chumbinho pra matar rato, matar a

sogra, matar o chefe! Esse é original!”

O pregão é o tipo de abordagem mais usado na camelotagem, mas há também

formas mais discretas de atrair o possível comprador. A abordagem feita pelos camelôs tem

um ar de sedução: eles antecipam o desejo e a necessidade do passante, se apresentam na

sua frente com a mercadoria, oferecem um “ótimo negócio” e dizem que o comprador

obterá algum tipo de vantagem na compra. É comum ver, na rua Uruguaiana, rapazes que

não armam bancas nem carregam mostruários abordando os passantes para oferecer jóias

ou relógios que são retirados de seus bolsos. Sorrateiramente, eles se aproximam do

passante e oferecem a pechincha.

Há também as performances dos camelôs que fazem demonstrações dos seus

produtos, realizando verdadeiros shows. Eles limpam o chão da rua com um saponáceo

miraculoso, cortam legumes de diversas maneiras com cortadores super-práticos, bordam

tecidos com agulhas especiais ou manipulam brinquedos e objetos com habilidade,

despertando a curiosidade dos passantes, que só conseguem descobrir os truques usados

quando compram a mercadoria. Depois que o cliente se aproxima, o vendedor precisa

atendê-lo com simpatia, cordialidade e agilidade.

Os camelôs — tanto os estabelecidos em pontos fixos quanto os que estão na pista

— costumam entregar aos seus fregueses cartões de visita, nos quais estão impressos o tipo

de mercadoria ou de serviço oferecido, a localização do ponto, o telefone celular do camelô

e um campo para o preenchimento do valor da mercadoria, da data da compra e do prazo

para troca. Na pista, os cartões de visita são mais comuns entre os vendedores de software,

que os entregam apenas com seu nome e o número do seu telefone celular. Para esses

62
camelôs, o cartão de visita opera como um dos mecanismos de controle e manutenção da

freguesia, pois eles não podem estar com regularidade em seus pontos.46

O camelódromo da Uruguaiana

Entremeado por tradicionais ruas de comércio — com uma área interna de dez mil

metros quadrados e 1.600 boxes de comércio atacadista e varejista de diversos artigos —, o

Mercado Popular da Uruguaiana está dividido em quatro quadras, denominadas, no sentido

Sul-Norte, de quadras A, B, C e D. A quadra D encontra-se na esquina da rua Uruguaiana

com a avenida Presidente Vargas. Entre as quadras D e C, fica a rua da Alfândega; entre as

quadras C e B, a rua Senhor dos Passos e, entre as quadras B e A, a rua Buenos Aires.47

O terreno onde essas quadras estão situadas pertencia à Companhia do Metrô —

ligada ao Governo do Estado do Rio de Janeiro — e foi concedido à Coderte48 para o

estacionamento de veículos particulares, logo após a inauguração da estação da

Uruguaiana, em 1983. A partir de 1988, passou a ser divulgado na imprensa que havia

intenções de se utilizar esse espaço para receber os camelôs que ocupavam as principais

ruas do Centro.49 Somente seis anos depois, em 1994, o terreno foi concedido à Prefeitura,

46
Sobre “modos de manipulação do mercado” e “laços de clientela”, cf. Silva (1971).
47
É importante registrar que, nos trechos dessas ruas que ficam entre as quadras, antigas lojas vêm
se transformando em uma espécie de camelódromo. Esse é o caso de uma tradicional loja de
ferramentas localizada na rua Buenos Aires, que dividiu em estandes sua área interna e alugou-os
para pequenos comerciantes que trabalham com as mesmas mercadorias oferecidas no
camelódromo.
48
Companhia de Desenvolvimento Rodoviário e Terminais do Estado do Rio de Janeiro.
49
Cf., por exemplo, “‘Camelódromo’: secretário não sabe quando a obra começará” (Jornal do
Brasil, 4/4/1988).

63
para o remanejo dos vendedores que se haviam fixado irregularmente nas suas

imediações.50

No camelódromo, atualmente, não se encontram apenas os camelôs que

participaram da sua implantação, há dez anos.51 Com o tempo, os “lotes” concedidos pela

Prefeitura foram transformados em boxes de alvenaria,52 e alguns deles foram repassados a

outros comerciantes. O comércio varejista e atacadista que predomina no camelódromo é o

de acessórios para telefones celulares, CDs, bijuterias, bolsas, brinquedos, artigos de

vestuário, de armarinho, de papelaria, de pesca e de tabacaria, além dos serviços de

barbearia, cabeleireiro, manicuro, pedicuro, alimentação, bebidas e assistência técnica de

relógios e telefones celulares.

Não são muitos os comerciantes que ainda utilizam a metragem original, de 2 m2. A

maior parte dos estabelecimentos do camelódromo assemelha-se a pequenas lojas: a grande

maioria dispõe de portas de ferro e pontos de energia elétrica, e muitos aceitam cartão de

crédito e têm linhas telefônicas, principalmente os estabelecimentos especializados em

artigos para pesca e os que vendem roupas. Alguns dos salões de cabeleireiro, bares e

lanchonetes são, também, providos de água encanada. Não há banheiros. Os comerciantes e

freqüentadores mais assíduos do mercado utilizam os sanitários dos estabelecimentos

comerciais das ruas em torno.

50
Cf. “César quer ‘camelódromo’ no lugar de estacionamento” (O Globo, 1º/6/1994).
51
Cf. Machado (2003). A título de comparação, gostaria de chamar a atenção para os camelôs do
camelódromo da Praça XV, na cidade de Porto Alegre, que reivindicam um status diferenciado dos
demais vendedores de rua, considerando “camelôs” somente aqueles que estão no camelódromo e
que, portanto, estão regularizados junto ao poder público municipal. Isso não ocorre entre os
comerciantes do camelódromo da Uruguaiana, na cidade do Rio de Janeiro.
52
Trata-se de compartimentos separados entre si por divisões de alvenaria, aramados ou madeira,
que substituíram as barracas de ferro e lona após a instalação da cobertura nos quatro terrenos do
camelódromo.

64
Conversando sobre os percalços da camelotagem com alguns daqueles que estão no

camelódromo desde sua fundação, percebi que o fato de não haver sanitários não lhes

parece gerar uma situação muito difícil de solucionar. Eles costumam dizer que “isso é o de

menos” e que as situações mais difíceis aconteceram no “início” do mercado, quando o

vento, a chuva e o sol intensos os impediam de trabalhar. Há relatos sobre situações

dramáticas decorrentes das intempéries, as quais envolveram a perda de mercadorias e do

dia de vendas. No camelódromo, a solução para esses problemas foi a substituição das

lonas protetoras, feita em 1995, como parte de um projeto da Prefeitura de padronizar as

lonas usadas por camelôs em toda a cidade.53 Atualmente, está sendo instalada uma terceira

cobertura — uma para cada quadra do mercado —, com pé direito mais alto, material mais

resistente, armações de ferro, cabeamento das instalações elétricas etc., o que parece ser a

solução de parte desses percalços da camelotagem.

É interessante notar que os comerciantes do camelódromo geram os recursos que

viabilizam as obras e as transformações desse espaço. Quando conversei com uma outra

informante, dona do bar que freqüentei durante o trabalho de campo, ela me disse que a

parede de alvenaria do seu boxe foi ela quem levantou “tijolo por tijolo”, e que os “bicos de

água” foram uma obra que ela e a dona do salão ao lado fizeram com “dinheiro do próprio

bolso” — além disso, elas pagam taxas à administração para custear as despesas com

manutenção, limpeza e segurança.54

Labiríntico, sonoro e colorido, assim me pareceu o camelódromo quando passei a

percorrer os seus corredores e recantos estreitos no início do trabalho de campo. Sob luzes

53
Cf. “Tendas bicolores substituem barracas azuis dos camelôs” (O Globo, 27/9/1995).
54
Toda sexta-feira, recolhe-se uma taxa de 25 reais em cada boxe de dois metros quadrados. Essa
taxa, que é recolhida pelos seguranças, é paga de acordo com a metragem dos estabelecimentos.

65
incandescentes e fluorescentes, caminhos se cruzam — num quadrilhado que abrange toda

a área do camelódromo — e são rompidos por três ruas transversais e por três largos a céu

aberto. Em dois desses largos, há bancos e telefones públicos. A cada vaguear, em meio à

profusão repetitiva de sons e objetos, mercadorias inesperadas se apresentam, confirmando

a multiplicidade das ofertas. Nos lugares onde se vendem os mesmos produtos, os boxes

parecem amontoados, uns ao lado dos outros, em grupos que variam de três a uma dezena,

ocupando corredores inteiros, salvo algumas disposições nas quais mercadorias deslocadas

interrompem uma seqüência, criando uma situação inusitada. É possível ver, por exemplo,

entre uma sucessão de televisores, CDs e cartuchos de jogos eletrônicos, mulheres sentadas

no interior de suas lojinhas, em meio a ervas frescas ou artigos de candomblé. Mais adiante,

seguindo por um corredor transversal que liga as duas ruas laterais que dão acesso ao setor,

radinhos am/fm, anéis, cordões, presilhas, óculos escuros, relógios, tops e biquínis, bonés,

headphones, diskmans, cangas e canetas são expostos de forma aleatória e ao alcance das

mãos dos passantes. Fazendo o retorno no final desse corredor, seguindo por outro,

transversal, há uma seção inteira somente de artigos e roupas esportivas. De um lado e de

outro, camisas de times de futebol e basquete, bandeiras, flâmulas, taças e faixas formam

um alegre colorido.

Contígua a essa seção, inicia-se uma outra só de bolsas, com todos os modelos e

utilidades. Nessa parte, é possível ver boxes inteiros sendo usados como depósitos. De tão

abarrotados, a luminosidade dilui-se quando se passa entre eles, dando a impressão de

tratar-se de uma cavidade. Nesse corredor, não há saída para nenhum outro corredor

transversal; a passagem é fechada por um boxe, e é preciso retornar pelo corredor paralelo,

igualmente repleto de bolsas. No cruzamento seguinte, já se percebe a entrada da luz do dia,

66
vinda do acesso a um dos largos. Esse largo, que faz ligação com a calçada da avenida

Presidente Vargas, é uma espécie de “respiradouro” do mercado.55

O bulício contínuo, hits da música pop internacional e ruídos estridentes dos jogos

eletrônicos e dos caça-níqueis sobressaem no rumor do ambiente, alterando-se de acordo os

tipos de mercadoria e o fluxo de pessoas no mercado. Nas primeiras horas da manhã, o

camelódromo chega a ser um lugar sossegado: poucos boxes estão abertos, e o único

movimento que se vê, dentro e fora do mercado, é o de trabalhadores sonolentos ou

apressados chegando para o trabalho. Os primeiros boxes a abrir são os de sucos e lanches.

Com o passar das horas, cresce o fluxo de pedestres na rua, e o movimento no mercado se

intensifica. Entre meio-dia e duas horas da tarde, o movimento comercial atinge o seu auge,

para depois retomar o ritmo a partir das 18 horas. À tarde, os estabelecimentos que vendem

acessórios para telefones celulares, CDs, equipamentos de som e camisetas estampadas

com ícones do rock, bem como os bares, são alguns dos boxes mais movimentados.

Uma das características atribuídas ao espaço do camelódromo da Uruguaiana pelo

senso comum é a de “receptáculo de mercadorias ilícitas”. Em 1999, a Guarda Municipal

divulgou na imprensa um relatório — fruto de uma investigação feita a pedido da

Coordenadoria de Licenciamento e Fiscalização, órgão responsável pelo comércio no

município — que indicava diversas irregularidades, entre as quais o comércio de

mercadorias contrabandeadas, roubadas e falsificadas. Além da prática de extorsão por

parte de policiais e de um sistema de segurança clandestino instalado no mercado, a

investigação mostrou que o cadastramento, que deveria ser feito pela Prefeitura, estava

55
Justamente nesses largos estão situados os orifícios que servem para a entrada e a saída de ar da
estação de metrô da Uruguaiana. Na verdade, esses respiradouros tinham de ficar a céu aberto, o
que favoreceu a criação de largos no seu entorno.

67
sendo realizado pelo grupo que administra o camelódromo, o qual estava vendendo os

pontos.56

Nessa época, sob o mandato de Luiz Paulo Conde, a Prefeitura, associada ao

Governo do Estado, preparava uma operação de repressão ao comércio ilegal praticado no

camelódromo. Além disso, havia a intenção de substituir as barracas e os boxes

improvisados por um “centro de comércio popular” de estrutura metálica e com dois

andares, e por prédios de salas comerciais. As denúncias reveladas no relatório da Guarda

Municipal foram encaminhadas ao então secretário de Segurança Pública, coronel Josias

Quintal, o qual, na reportagem, declarou desconhecê-las, prometendo iniciar uma

investigação para apurá-las.57

As acusações de práticas ilegais no camelódromo não cessaram de estampar as

páginas dos jornais. A última notícia que saiu na imprensa se refere à prisão, realizada no

interior do camelódromo, de 12 homens acusados de interceptar telefones celulares

roubados. Segundo a reportagem, nessa ação, foram apreendidos duzentos aparelhos e cerca

de cinqüenta baterias. Empreendida por policiais da 5ª DP, situada na rua Gomes Freire, a

investigação, chamada Operação Serial, estava sendo feita há um mês, período em que os

acusados foram filmados enquanto negociavam, em boxes do camelódromo, a compra de

telefones roubados por ladrões que atuavam no Centro da cidade.


56
A entidade administrativa a que se refere a reportagem é a União dos Comerciantes do Mercado
Popular da Uruguaiana – comumente chamada de “associação”. Segundo alguns dos comerciantes
com os quais conversei, até meados de 1998, os comerciantes do camelódromo eram representados
pela Associação dos Comerciantes Ambulantes do Centro do Rio, cuja comissão era a mesma desde
a sua criação. A partir de então, uma dissidência pôs fim à gestão do presidente Antônio Perez
Póvoa. Em desacordo com ele, membros da diretoria da associação fundaram a União dos
Comerciantes do Mercado da Rua Uruguaiana, presidida por Alexandre Farias. Essas informações
foram confirmadas no material de imprensa consultado.
57
Cf. “Prefeitura fará blitz em camelódromo e polícia investiga denúncias de extorsão” (O Globo,
21/6/1999).

68
Segundo os investigadores, em seis meses, mil telefones haviam sido roubados na

área da 5ª DP. Nove dos detidos estavam trabalhando como camelôs em pontos no interior

do camelódromo. A assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Governo, ao ser

consultada, afirmou que os boxes de venda do mercado eram permanentemente fiscalizados

e que aqueles que tinham sido detidos teriam a licença cassada. A reportagem termina

informando que os acusados tiveram sua prisão decretada por cinco dias.58

Atualmente, o camelódromo tem sido objeto de sucessivas batidas, realizadas

principalmente por policiais civis e federais, que são destacados para atuar contra o

comércio de mercadorias consideradas falsificadas. Há também ações policiais de repressão

às vendas de contrabando; porém, durante minha permanência no mercado, ao longo dos

dez meses do trabalho de campo, percebi que o número de batidas para a apreensão de

mercadorias “pirateadas” foi muito maior do que qualquer outro tipo de atuação policial. A

batida que presenciei começou logo pela manhã, e só terminou às cinco horas da tarde.

Nesse dia, quando cheguei no Centro, mais precisamente no Largo da Carioca,

constatei que o efetivo da Guarda Municipal estava mais numeroso do que o comum. No

percurso até o camelódromo, presenciei uma apreensão feita por guardas municipais numa

área que costumava ficar repleta de vendedores de cópias de CDs. Nessa ocasião, a área

estava vazia, e havia apenas um vendedor de essências e um outro de flanelas, os quais

tinham acabado de se instalar e ainda estavam começando a expor a mercadoria. Quando

um grupo de seis guardas se aproximou, esses camelôs abandonaram tudo e saíram

correndo pela rua Buenos Aires, em direção à avenida Passos.

58
Cf. “Polícia prende 12 pessoas e apreende 200 celulares no camelódromo da Uruguaiana” (Extra,
17/7/2004).

69
Em seguida, ao entrar no camelódromo, percebi que a sonoridade do ambiente

estava diferente. Já passava das nove horas da manhã, e a maioria dos boxes estava fechada.

O movimento no Centro já estava intenso e, nos corredores do mercado, apenas

determinados estabelecimentos estavam abertos. Os boxes de CDs e de jogos eletrônicos

estavam todos fechados. Fui para o salão e, enquanto conversava com a manicura, começou

um corre-corre entre os comerciantes da quadra. Alguns fecharam as portas dos seus boxes,

saíram carregando sacolas de mercadorias e pediram às moças do salão e do bar para

guardá-las. Perguntei a elas o que estava acontecendo, e, tranqüilamente, uma delas me

respondeu: “É a Federal. De vez em quando eles vêm aí pra pegar o pessoal que não anda

na linha”.

Durante todo esse dia, percorri o mercado acompanhando a operação, que era

chamada de Pressão Máxima. A ação não foi empreendida por policiais federais, e sim pelo

Destacamento Anti-Pirataria da Polícia Civil. Alguns dos policiais, munidos de grandes

alicates, se espalharam pelo mercado acompanhados de mais três ou quatro policiais.

Assisti à ação de um desses grupos: diante da ausência dos comerciantes, os policiais

resolveram abrir os boxes com seus alicates. Não consegui entender o critério usado pelos

policiais para escolher os boxes que seriam abertos. Aparentemente, eles olhavam para o

interior dos estabelecimentos por uma fresta e decidiam entre si se iriam ou não abri-los.

Depois que se decidiam, mandavam avisar os fotógrafos e cinegrafistas, que já estavam a

postos desde cedo, circulando pelo mercado, e iniciavam a ação. Dava para perceber que os

donos dos boxes acompanhavam toda a operação sem se identificar. Eles ficavam por perto,

mas não demonstravam ser quem de fato eram.

Ao longo do dia, circulei pelo mercado e conversei com diversas pessoas, muitas

delas funcionários dos boxes abertos pelos policiais. Presenciei uma situação dramática:

70
uma mulher teve uma crise nervosa no momento em que os policiais começaram a ensacar

a mercadoria apreendida no boxe em que ela trabalhava. Seu medo era perder o emprego e

ser acusada pela polícia de cúmplice do dono do boxe. Na ocasião, um grupo de mulheres

tentou acalmá-la, aconselhando-a a se retirar do local para não despertar a atenção dos

policiais.

A batida policial silenciou o camelódromo durante o dia inteiro. Por volta das cinco

horas da tarde, tudo estava terminado, e a maior parte dos boxes reabriu. Nos bares, já

cheios, não se falava em outro assunto. No dia seguinte, o jornal anunciava: “Na chegada

dos policiais, seguranças dos camelôs deram o alerta e os boxes foram fechados às pressas.

Mesmo assim, os policiais abriram os boxes e apreenderam produtos falsificados. Ninguém

foi preso”.59

Camelódromos na cidade

No início do ano de 1984, Marcello Alencar, prefeito indicado pelo governador

Leonel Brizola, definiu os bairros onde seriam instalados os “centros populares de

comércio”, nos quais trabalhariam os camelôs que se espalhavam pelas ruas da cidade.

Priorizando o bairro do Centro, ele resolveu que o primeiro centro a ser construído seria o

da Praça Onze. Os outros funcionariam na Zona Norte e em áreas suburbanas da cidade,

nos bairros de Higienópolis, Méier, Madureira, Marechal Hermes, Campo Grande, Penha e

Pavuna.60 No decorrer do processo de regulamentação, o projeto foi ampliado, e foram

59
“Policiais apreendem durante o dia mais de 10 mil CDs vendidos por camelôs” (O Globo,
20/3/2004).
60
Cf. O Globo, 24/2/1984.

71
abertas 4.782 vagas, distribuídas por 11 bairros.61 A lista dos documentos que deveriam ser

apresentados no cadastramento para a utilização dos espaços era composta de oito itens:

comprovante de residência de mais de dois anos no município do Rio de Janeiro;

comprovante de pagamento da contribuição sindical; carteira de saúde; carteira de

identidade; três fotografias; formulário para recolhimento de impostos; vistoria sanitária, no

caso de gêneros alimentícios; carteira do cadastro de pessoa física (CPF), e comprovante de

pagamento da taxa62 cobrada pela Prefeitura para a concessão da licença. Quando o período

de inscrições se encerrou, cerca de setecentas vagas ficaram ociosas. O local mais

procurado foi a Praça Onze, mas há registros de que os camelôs que se inscreveram

estavam céticos em relação à freqüência de compradores em todos os pontos oferecidos.63

Com um destacamento de quarenta homens da Polícia Militar, um caminhão

provido de aparelhagem de som que servia de palanque para o governador e o prefeito, e a

presença da bateria da escola de samba Estácio de Sá, de um grupo de repentistas e do

pároco da igreja de Santana, realizou-se, na tarde do dia 19 de julho de 1984, a festa de

inauguração do camelódromo da Praça Onze. A partir de então, nenhum camelô poderia se

61
“As 4.782 licenças serão distribuídas para as 11 áreas. As de maior concentração são as da
Pavuna, com 8.518 m2 e 524 ambulantes; Campo Grande, ao lado do terminal rodoviário, com 577
ambulantes distribuídos em 6.926 m2; Bonsucesso, com 5.346 m2, divididos nas avenidas
Democráticos e Novo Rio, com 316 e 140 ambulantes, respectivamente. A Praça Onze concentrará
700 ambulantes em toda sua área; e Madureira, com 8.518 m2, nas ruas Carolina Machado, João
Vicente e Edgar Romero, com o total de 524 ambulantes; Marechal Hermes, com uma área de 7.842
m2, localizada entre as ruas João Vicente, General Oswaldo Cordeiro de Farias, Praça XV de
Novembro e Carolina Machado, com 918 ambulantes. Os demais pontos são a Praça da Bandeira,
com 255 ambulantes; Penha, na avenida Brás de Pina, com 84 ambulantes; Méier com 412, à
avenida Amaro Cavalcanti; Cascadura com 219 ambulantes espalhados em 2.694 m2; e Bangu, com
106 ambulantes em 2.891 m2” (Jornal do Brasil, 3/5/1984).
62
O valor da taxa era de Cr$ 10.826,00. Para as barracas de alimentação, era cobrada uma taxa
maior, de Cr$ 76.560,00 (cf. Jornal do Brasil, 3/5/1984).
63
Cf. Jornal do Brasil, 12/5/1984 e 16/5/1984.

72
instalar nas ruas do Centro, pois a fiscalização seria implacável.64 Cerca de mil camelôs,

munidos de cartazes de protesto, ouviam o discurso do prefeito, quando, irritados com os

elogios feitos à “obra” do camelódromo, começaram a vaiar, iniciando um certo tumulto. O

tropel se completou com a chegada de um grupo de servidores da Secretaria Municipal de

Saúde, que resolveu aproveitar a presença do prefeito para reivindicar melhores condições

de trabalho.

Segundo uma reportagem publicada no jornal O Globo,65 “tomates e ovos foram

jogados no caminhão onde se encontravam as autoridades sem, no entanto, atingir o alvo”,

e o prefeito teve que sair escoltado por policiais militares, sendo levado para a sede da

administração do camelódromo, enquanto o padre João, da igreja de Santana, benzia o

local. A insatisfação foi motivada por diversos fatores. Primeiro, a localização desse centro

de comércio não condizia com as características da prática da venda ambulante. Além

disso, as obras estruturais — tais como a construção de uma creche para os filhos dos

vendedores e de um depósito para guardar as mercadorias, e a instalação de um terminal de

ônibus, para que o lugar recebesse um maior fluxo de pessoas — não foram concluídas

antes da inauguração, como havia sido prometido. Dois meses depois, os jornais

começaram a divulgar os sinais do fracasso do projeto:

Livres da ameaça do “rapa”, [os camelôs] enfrentam, porém, uma situação que

desconheciam quando ocupavam as ruas: a escassez de compradores para seus

produtos. O camelódromo tem ainda 590 lugares vagos, mas muitos dos que se

64
Cf. O Globo, 19/7/1984.
65
Cf. O Globo, 20/7/1984.

73
inscreveram para ter ali o seu ponto preferiram ficar pela cidade correndo do

“rapa”.66

Três meses após a inauguração, uma reportagem registrou que os vendedores que

tinham ponto no camelódromo se reuniram em assembléia no auditório da igreja de Santana

e decidiram não utilizar o espaço. Uma comissão foi formada, para solicitar ao governador

Leonel Brizola a extinção do ponto e uma solução satisfatória em 48 horas. Caso contrário,

os camelôs voltariam às ruas do Centro da cidade. Segundo uma matéria d’O Globo, “a

opinião dos camelôs é unânime: o camelódromo não é próprio ao comércio ambulante.

Segundo eles, os camelôs devem ir ao encontro do público e não o contrário”.67 Como as

tais 48 horas se passaram e nada aconteceu, um dos componentes da comissão, em

entrevista concedida a um jornalista, disse que pretendia convencer o prefeito de “que,

nesse local, nós estamos falidos, já que não há fregueses. Queremos um lugar, mesmo

provisório, para trabalhar, antes do Natal”.68 Em declaração ao jornal O Globo, Ozair

Vieira, camelô eleito para presidir a comissão, disse: “Até agora o prefeito não fez nada.

Prometeu terminais de ônibus, espaço para ônibus de turismo, cobertura, shows diários,

passarelas. Não cumpriu nada disso. O pior de tudo é o calor, não há quem agüente. Não

temos uma só árvore”.69 Nas vésperas do Natal, o movimento foi tão fraco que, dos 820

66
Cf. “Ambulantes reivindicam melhorias e mais fregueses no camelódromo” (O Globo,
23/9/1984).
67
Cf. “No camelódromo, vendedores param e ameaçam voltar às ruas do Centro” (O Globo,
31/10/1984).
68
Cf. “Camelô entra em greve na luta contra ‘camelódromo’” (Jornal do Brasil, 2/11/1984).
69
Cf. “Na assembléia, apenas um acordo: ninguém quer ficar no camelódromo” (O Globo,
4/11/1984).

74
camelôs cadastrados para trabalhar no local, apenas 23 armaram suas barracas.70

Obviamente, os demais vendedores estavam nas ruas do Centro.

Nos anos seguintes, o problema da ocupação das ruas pelos camelôs se intensificou,

e a idéia de se criar centros de comércio popular, formulada e implementada nesse governo,

não foi posta de lado. A partir de então, com a implantação de camelódromos na cidade, o

poder público passou a operar com a justificativa de que, por existirem espaços legais para

a atividade da camelotagem, não haveria motivo para o uso de locais impróprios.

Em 1988, último ano do mandato de Saturnino Braga, a Prefeitura iniciou as

negociações com a Secretaria Estadual de Planejamento, para a cessão dos terrenos de

estacionamento pertencentes ao Metrô, localizados na rua Uruguaiana, com o objetivo de

transformá-los em mais um centro popular de comércio.71 Isso só aconteceu seis anos

depois. Em 1989, Marcello Alencar voltou à Prefeitura, dessa vez por meio de eleições

diretas, e acionou a Procuradoria Geral do Município para que verificasse a

constitucionalidade das leis promulgadas no mandato anterior.72 Marcello Alencar, em

lugar de criar camelódromos, adotou outra estratégia para coibir a atuação dos camelôs:

suspendeu as inscrições e as renovações de autorizações para o uso da área pública e

recorreu a uma medida que associa um plano de reformulação do Código de Posturas do

município a projetos de tratamento urbanístico. “Para essas ruas [do Centro da cidade]

pensamos em criar áreas de circulação que naturalmente criem constrangimento para a

fixação do comércio ambulante, revela o secretário de Fazenda Edgar Monteiro”.

70
Cf. “Camelódromo fica às moscas” (Jornal do Brasil, 22/12/1984).
71
Cf. “Camelódromo: secretário não sabe quando a obra começará” (O Globo, 4/4/1988).
72
Cf. “O Rio contra os camelôs: Prefeitura revê leis que espalharam 100 mil ambulantes pelas ruas”
(Jornal do Brasil, 4/7/1989).

75
No decorrer desse mandato de Marcello Alencar,73 obras urbanísticas foram

realizadas, uma nova lei que dispõe sobre o comércio ambulante no município foi

promulgada74 e as ruas continuaram repletas de vendedores. Nesse período, a Uruguaiana,

uma das ruas que passaram por reformas urbanísticas, foi ocupada por quatro filas de

barracas, reunindo cerca de oitocentos camelôs no trecho entre a rua Sete de Setembro e a

avenida Presidente Vargas.75

A implantação do camelódromo da Uruguaiana


No início de 1994, a Prefeitura, sob o mandato de César Maia, anunciou que faria

uma “grande operação” no Centro da cidade.76 No dia 25 de janeiro, foi publicado no

Diário Oficial o Decreto nº 12.644, no qual constava a nova regulamentação para o

cadastramento dos camelôs que seriam alocados em áreas determinadas, que estavam em

fase de implementação na cidade, já em execução na Tijuca e em Copacabana. Segundo

esse decreto, os vendedores interessados deveriam declarar a origem de suas mercadorias e

o seu local de depósito ou, do contrário, não seriam cadastrados.77 No mês de abril, os

detalhes dessa operação começaram a ser acertados entre o prefeito, o subprefeito do

Centro, o coordenador de Licenciamento e Fiscalização do município, o superintendente-

73
O mandato iniciou em 1989 e terminou em 1992.
74
Lei Municipal nº 1.876, de 29 de junho de 1992, publicada no Diário da Câmara Municipal do
Rio de Janeiro, ano XVI, n. 118, 1º/7/1992, p. 10. Nessa lei, constam um critério de pontuação para
a seleção dos comerciantes e um quadro com o número máximo de comerciantes com pontos fixos
por área administrativa. Na II Região Administrativa (Centro), o número máximo é de mil camelôs.
75
Cf. “Camelôs vão ter que sair do Centro” (O Globo, 2/6/1994).
76
Cf. “Protesto de ambulantes obriga comerciantes a fecharem lojas” (Jornal do Brasil, 14/1/1994).
77
Cf. “Cadastramento” (O Globo, 26/1/1994). Os outros critérios relacionados às mercadorias estão
enumerados na reportagem intitulada “Mercadorias serão limitadas”: “Não se poderá vender
equipamentos eletroeletrônicos, relógios, inflamáveis, medicamentos ou animais em geral” (O
Globo, 24/4/1994).

76
executivo da Guarda Municipal e o secretário de Desenvolvimento Econômico.78 Mesmo

sem ter sido fixada uma data para o início da “operação”, foi acertado que a retirada dos

camelôs seria anunciada com antecedência e precedida da entrega de uma notificação a

todos eles.79

O ano de 1994 foi expressivo na história dos camelôs e dos camelódromos da

cidade: ano de criação da Guarda Municipal e do camelódromo da Uruguaiana, constituiu

um período marcado por muitos confrontos entre a guarda e os vendedores. Constatei, ao

consultar os arquivos da agência do jornal O Globo, que esse foi o ano com o maior número

de reportagens sobre casos de violência e conflito relacionados à camelotagem. No mês de

maio, a Secretaria Municipal de Fazenda empreendeu a Operação Ventania, com 25

guardas municipais e dez fiscais, na Tijuca e no Centro. Uma reportagem informa que, na

avenida Presidente Vargas, nos dias 10 e 11 de maio, camelôs chegaram a interditar pistas

com fogueiras, em protesto contra a “operação de retirada”.80 Até o início do mês de junho,

não havia menção, nas reportagens dos jornais, à intenção de se retomar o projeto de

implantação de um camelódromo nos terrenos do metrô da Uruguaiana.81 A Prefeitura

mobilizou 150 guardas municipais, cem fiscais e quarenta policiais militares, para esvaziar

a área e dar início às obras de reurbanização, confirmando que a “grande operação” tinha

como prioridade “limpar” e “recuperar” as ruas do Centro da cidade.82

78
César Maia, Augusto Ivan de Freitas, Ruy César Miranda Reis, coronel Paulo César Amêndola e
Paulo Maurício Castelo Branco, respectivamente.
79
Cf. “Presidente Vargas e Uruguaiana ficarão livres de camelôs” (O Globo, 16/4/1994).
80
Cf. “Polícia dá proteção contra camelôs” (Jornal do Brasil, 12/5/1994).
81
Cf. “Sete de Setembro aberta ao trânsito” (O Globo, 1º/6/1994).
82
Cf. “Prefeito vai retirar camelôs do Centro na próxima semana” (O Globo, 29/7/1994) e “Estado
cede terrenos para Prefeitura fazer ‘camelódromos’” (O Globo, 30/7/1994).

77
Diversas idéias para coibir a camelotagem e concretizar a revitalização dessa área

do Centro ocuparam as pastas da Prefeitura: a abertura de ruas de pedestres para o trânsito

de veículos e o gradeamento da rua Uruguaiana foram algumas delas. Essas idéias foram

contestadas pelo então secretário de Urbanismo Luiz Paulo Conde e pelo subprefeito do

Centro Augusto Ivan de Freitas. O prefeito, então, reviu sua decisão, aceitando a proposta

alternativa, encaminhada à Prefeitura por dirigentes do PDT, de iniciar uma negociação

com o Governo Estadual, para a liberação dos terrenos do Metrô.83

No dia 29 de julho, o prefeito anunciou que o governador Nilo Batista havia

liberado os terrenos. No mesmo dia, uma comissão de ambulantes se reuniu com o

subprefeito do Centro e com o coordenador de Licenciamento e Fiscalização, e concordou

com a transferência. A estimativa feita foi de duas semanas para a conclusão da retirada dos

camelôs das ruas da área.84

Durante esse período, os jornais da cidade noticiaram uma sucessão de

acontecimentos que marcaram o processo de implantação do camelódromo da Uruguaiana.

Primeiro, o Governo do Estado cedeu à Prefeitura uma área que já era objeto de um

contrato de comodato firmado entre a Light e o Metrô. Sendo assim, liminares e rescisões

contratuais acaloraram ainda mais o processo. Ao final dessa etapa, o acordo entre a

Prefeitura e o Governo do Estado foi firmado. O cadastramento, a alocação dos vendedores

nos pontos e sua remoção das ruas foram etapas difíceis de um processo marcado por

impasses, violência e resistência.85 Muitos camelôs que haviam concordado com a remoção

83
Cf. “César quer ‘camelódromo’ no lugar de estacionamento” (O Globo, 1º/6/1994).
84
Cf. “Estado cede terrenos para Prefeitura fazer ‘camelódromos’” (O Globo, 30/7/1994).
85
Cf. “Ambulantes dizem que não vão mais aceitar remoção para terrenos do metrô” (O Globo,
10/8/1994) e “Disputa por pontos vai acabar no ‘sambódromo’” (O Dia, 11/8/1994). Sobre a

78
preferiram continuar nos seus pontos, pois não conseguiram se cadastrar. Outros não

ficaram satisfeitos com os locais que lhes foram destinados no terreno. Os que não

concordaram com a remoção tentaram permanecer na rua. Muitos deles estavam instalados

em seus pontos havia mais de dez anos.86

A partilha do terreno e a necessidade de negociação entre os camelôs e o poder

público municipal chamaram a atenção para um sistema de representação extremamente

complexo, formado por inúmeras associações. A comissão encarregada de interceder em

nome dos camelôs era composta por membros da Associação dos Ambulantes do Centro e

da União das Associações do Comércio Ambulante do Rio, e por representantes de várias

ruas do Centro.87 A comissão encarregada de distribuir as senhas que definiriam os lugares

a serem ocupados nos terrenos sofreu ameaças e foi acusada de guardar os melhores pontos

para determinados comerciantes. Sendo assim, a distribuição foi anulada, e os pontos foram

definidos através de um sorteio, no qual cada camelô concorreu com o seu número de

cadastro.88 Os camelôs, uma vez instalados no camelódromo, passaram a ser representados

por quatro subcomissões — uma para cada um dos quatro terrenos — que, ligadas à

Associação dos Ambulantes do Centro, intercederiam junto à Prefeitura na gestão das

resistência por parte dos camelôs sem senha, ver também O Dia, 17/8/1994 e “Prefeitura adia
remoção de camelôs no Centro” (O Globo, 11/8/1994).
86
A camelô Balbina Carvalho da Silva, por exemplo, há 12 anos tinha a sua barraca de artigos
importados do Paraguai instalada na rua Sete de Setembro, na altura do número 75 (cf. O Dia,
11/8/1994, 17/8/1994 e 28/8/1994). Cf. também “Mulher que comandou camelôs diz que está
pronta para outro confronto” (O Globo, 10/8/1994).
87
Cf. “Muitas associações, nenhuma organização” (O Globo, 10/8/1994).
88
Cf. “Disputa por pontos vai acabar no ‘sambódromo’” (O Dia, 11/8/1994). Para saber mais sobre
o sorteio, ver “Camelôs têm que deixar calçadas até amanhã” (O Globo, 15/8/1994).

79
quatro quadras do camelódromo. Isso ficou acertado numa reunião entre membros dessa

associação e representantes do poder público municipal.89

O processo de remoção dos camelôs para os terrenos foi apenas uma das etapas da

“grande operação” cujo objetivo principal era “retirar” os camelôs das ruas do Centro e

iniciar um “plano de revitalização da área”.90 Esse processo foi marcado por graves

situações de violência e confronto entre guardas municipais, policiais militares, fiscais e

camelôs.91 Muitos camelôs estavam sendo obrigados a deixar seus pontos sem ter para onde

ir. Então, muitos deles resistiram, modificando a forma de exposição das mercadorias — de

maneira a possibilitar a fuga antes da chegada dos policiais — e motivando outros

vendedores a fazer o mesmo.92 Essa situação foi controlada por meio do aumento do efetivo

policial no Centro da cidade, tanto para conduzir a remoção dos camelôs que já estavam

cadastrados, quanto para reprimir os que haviam ficado excluídos ou não aceitavam o

assentamento, insistindo em ocupar as ruas.93

89
Cf. “Acaba prazo para nova lista” (Jornal do Brasil, 19/8/1994).
90
Cf. “Plano de revitalização retomado” (Jornal do Brasil, 20/8/1994) e “Quando PM sai
ambulante faz a festa” (Jornal do Brasil, 19/8/1994). Há informações de que, com a possibilidade
de assentamento nos terrenos da Uruguaiana, o Centro da cidade passou a receber um número maior
de vendedores egressos de outras áreas da cidade. Cf. “Maia interrompe retirada de camelô do
Centro” (Jornal do Brasil, 19/8/1994).
91
Cf. “Protesto de ambulantes fecha 3.500 lojas e acaba em apedrejamento, saques e conflitos com
policiais militares” (O Globo, 9/8/1994).
92
Cf. “Impedidos de montar as barracas alguns camelôs venderam suas mercadorias nas mãos”
(Jornal do Brasil, 18/8/1994) e “Eles agora vendem produtos nas mãos ou sobre tabuleiros” (Jornal
do Brasil, 20/8/1994). Conforme publicado numa reportagem, “agitadores sem senha para trabalhar
no camelódromo fizeram um arrastão para intimidar os ambulantes que lá trabalhavam e fazê-los
desmontar as barracas, mas foram contidos por policiais militares” (O Dia, 17/8/1994).
93
Em maio de 1994, havia 25 guardas municipais, para garantir o esvaziamento da rua Uruguaiana
e a remoção dos camelôs para o camelódromo (cf. “Operação Ventania”, Jornal do Brasil,
12/5/1994). Em julho de 1994, eram 150 guardas municipais e 40 policiais militares (cf. O Globo,
30/7/1994). Em agosto de 1994, havia 360 guardas municipais (cf. Jornal do Brasil, 19/8/1994).

80
A etapa de transferência dos camelôs para o camelódromo foi concluída nos últimos

dias do mês de agosto, sob forte repressão policial. A estratégia adotada para garantir a

ausência dos camelôs nas principais ruas de comércio foi a ocupação de toda a área com

guardas e policiais antes da chegada dos vendedores.94 Sem conseguir inibir a ocupação das

ruas, mesmo depois da criação do camelódromo, a Prefeitura fez outras tentativas de

reprimir a resistência dos camelôs, no decorrer do ano de 1994. Uma delas foi a sugestão da

instalação de um sistema de segurança privado custeado pelos comerciantes lojistas que

estivessem incomodados com a presença dos camelôs na porta dos seus estabelecimentos.

O prefeito declarou, numa das reportagens consultadas, que o efetivo da Guarda Municipal

não era suficiente para reprimir o comércio ambulante e que seria mais eficaz a contratação

de empresas particulares de vigilância ou a liberação de policiais militares por parte do

Governo do Estado, para o “programa de segundo emprego”.95

Outra tentativa de reprimir a camelotagem foi a elaboração de um decreto que

determinava a prisão de quem comprasse em camelôs fora dos camelódromos. O prefeito

alegava que a compra e a venda de mercadorias em áreas proibidas pela Prefeitura

caracterizaria receptação.96 Antes mesmo de essa lei entrar em vigor, os jornais publicaram

reportagens mostrando a dificuldade de sua aplicação, uma vez que até policiais militares

eram flagrados consumindo essas mercadorias. Entre as reportagens pesquisadas, não há

menção ao modo como a idéia de punir os consumidores foi descartada. A última

94
Segundo a matéria intitulada “Camelôs têm que deixar calçadas até amanhã”, “amanhã todas as
ruas junto aos camelódromos amanhecerão ocupadas por guardas municipais e PMs, que não
permitirão que os ambulantes armem suas barracas” (O Globo, 15/8/1994). Cf. também “Prefeitura
devolve tranqüilidade ao Centro” (Jornal do Brasil, 18/8/1994).
95
Cf. “César sugere que comércio contrate PMs” (O Globo, 23/8/1994), “Prefeito pressiona
comerciantes do Centro: loja que não pagar taxa terá camelô na porta” (O Globo, 7/10/1994) e
“Polícia particular vai impedir ação de ambulantes no Centro” (Jornal do Brasil, 4/11/1994).
96
Cf. “Maia quer prender quem compra em camelô” (Jornal do Brasil, 20/9/1994, 2ª ed.).

81
informação divulgada é a de que o decreto que determinava a punição estava sendo

estudado pela Procuradoria Geral do Município e pela Coordenadoria de Licenciamento e

Fiscalização da Secretaria Municipal de Fazenda. Depois disso, não se falou mais no

assunto.97

A cruzada contra os camelôs estava lançada e, no transcurso desses dez anos, foi

sucessivamente provida de recursos. Na mesma proporção, os confrontos no Centro da

cidade se agravaram, atingindo dimensões dramáticas.98

A municipalidade, os jornais e os lojistas

A Guarda Municipal é a força de segurança da Prefeitura da Cidade do Rio de

Janeiro. Criada no ano de 1994, ela é originária do corpo de vigilantes da Companhia de

Limpeza Urbana (Comlurb). Esse grupo ganhou autonomia para atuar na proteção de

instalações das empresas municipais, transformando-se, em 1990, na Gerência de

Vigilância e Segurança Patrimonial. Três anos depois, com o Decreto nº 12.000, baixado

pelo prefeito César Maia e amparado pela Lei nº 1887/92, foi criada a Guarda Municipal,

que é administrada pela Empresa Municipal de Vigilância S.A., também criada em 1994,

sob o mesmo decreto.

Essa força de segurança municipal age em diversas frentes de trabalho, com oito

grupamentos especiais: Grupamento de Apoio ao Turista (GAT), Grupamento de Ronda

Escolar (GRE), Grupamento de Cães da Guarda (GCG), Grupamento de Ações Especiais

97
Cf. “Decreto de Maia não tira freguês de camelô” (Jornal do Brasil, 21/9/1994).
98
Recentemente, uma reportagem trazia um “guia de sobrevivência”, mostrando todo o “decálogo
do front” e ensinando como sobreviver em meio à “guerra” que se instaurou no Centro. Cf.
“Cuidado, você está no Centro” (Jornal do Brasil, 21/12/2003).

82
(GAE), Grupamento Tático Móvel (GTM), Grupamento de Defesa Ambiental (GDA),

Grupamento Especial de Praia (GEP) e Coordenadoria de Trânsito (Ctran).

Na lei municipal que regulamenta o comércio ambulante, não há menção de que a

Guarda Municipal seja responsável pelo controle dessa atividade nas ruas da cidade.

Somente a partir da publicação do Decreto nº 17.931, de 24 de setembro de 1999, a Guarda

Municipal passou a atuar de forma legítima na “desobstrução dos bens públicos

municipais”, de forma a impedir o que é considerado sua “má utilização”. Para tanto,

segundo o decreto, a Guarda Municipal “poderá recolher mercadorias que estejam

ocupando indevidamente os bens públicos municipais”.99

O Largo da Carioca tornou-se uma espécie de “quartel general” da Guarda

Municipal. Ali ficam estacionados os veículos utilizados em suas ações. É relativamente

comum ver os guardas municipais nesse local, nas primeiras horas do dia, reunidos em

círculos ou se paramentando para iniciar as operações nas ruas. Também é possível vê-los,

ao longo do dia, armazenando mercadorias apreendidas no interior de um veículo com as

inscrições Controle Urbano.

Os guardas municipais utilizam, nas operações, coletes antimotim feitos de

policarbonato — um tipo de plástico muito resistente — e revestidos com lona, para

amenizar a força de golpes. Eles também usam capacetes de fibra de carbono com protetor

de nuca, visores que cobrem todo o rosto, caneleiras, cotoveleiras, escudos e longos

bastões.100 Sua presença no Centro é ostensiva. Geralmente, eles se posicionam, em duplas,

nas esquinas e nos locais mais propícios à camelotagem. Em diversos pontos da rua

Uruguaiana, costumam se organizar em grupos, para coibir a atividade dos camelôs. Em

99
Cf. Anexos.
100
Cf. o site http://www.rio.rj.gov.br/gmrio/.

83
outras circunstâncias, chegam repentinamente, marchando enfileirados e erguendo seus

escudos e cassetetes, formando uma espécie de bloqueio. Na maioria das vezes, os camelôs

escapam.

Independentemente da mercadoria comercializada, a camelotagem é proibida para

aqueles que não dispõem de pontos concedidos pela Prefeitura. Para reprimir esses

camelôs, há um aparato policial e fiscal, com estratégias e critérios específicos, registrados

no decreto municipal acima citado e na Lei Municipal nº 1.876, de 29 de junho de 1992. De

acordo com essa lei, “comércio ambulante é atividade profissional temporária, exercida por

pessoa física em logradouro público”, e “comerciante ambulante ou camelô é a pessoa

física que exerce essa atividade por sua conta e risco, com ou sem emprego de tabuleiro ou

outro apetrecho”. A lei não considera camelô “aquele que exerce sua atividade em

condições que caracterizem a experiência de vínculo empregatício com fornecedor de

mercadoria comercializada”.

As autorizações e a fiscalização do comércio ambulante, em tese, cabem ao órgão

competente da Secretaria Municipal de Fazenda. Aquele que requer autorização deve passar

por um crivo de pontuação, que o classifica numa lista de espera, pois as regiões

administrativas já excederam o número de camelôs em pontos fixos previstos pela lei. A

autorização “é pessoal e intransferível, concedida a título precário”. Ou seja, é passível de

suspensão por parte da autoridade competente da Secretaria Municipal de Fazenda ou por

ordem do Poder Executivo. A concessão de autorização para a utilização de ponto fixo ou

ambulante obedece a uma fórmula, que prioriza aqueles que obtêm maior pontuação, e a

uma tabela, com o número máximo de comerciantes ambulantes por região administrativa

contido na lei.

84
Entre outros produtos comercializados pelos ambulantes apesar de serem proibidos

por essa lei, há alguns que precisam ser destacados por serem os mais encontrados nas ruas

da cidade: bebidas alcoólicas — somente a venda de cerveja é permitida —, alimentos

preparados no local — exceto pipoca, algodão doce, amendoim, milho verde, churros e

sanduíches em geral —, relógios, óculos e artigos elétricos e eletrônicos. Também é

proibido o estabelecimento sem autorização, assim como o uso de caixotes como assento ou

para exposição de mercadoria, a localização a menos de cinqüenta metros de estações de

embarque e desembarque de passageiros ou de estabelecimentos que vendam

“exclusivamente” os mesmos produtos, e a localização a menos de cinco metros das

esquinas.

A apreensão das mercadorias pode ser feita diante do não-cumprimento de qualquer

uma dessas cláusulas. A autoridade, no ato da ação fiscal, deve obrigatoriamente lavrar auto

de apreensão, com as devidas informações sobre a situação, deixando uma via com o

infrator. As mercadorias perecíveis não são devolvidas, e as demais devem ser recolhidas

ao depósito da Secretaria Municipal de Fazenda, podendo ser devolvidas somente por

decisão da autoridade competente dessa secretaria, mediante recurso dos respectivos

titulares no prazo de três dias. As mercadorias apreendidas que não têm “comprovação

aceitável” de sua procedência ou que são requeridas após o vencimento do prazo não

podem ser liberadas. Percebe-se, entretanto, que existe uma distância entre a lei e a prática.

A lei não é cumprida à risca. A camelotagem está, em certa medida, ligada à troca de

favores, presentes e facilidades. Além disso, extorsões e cumplicidades ligam agentes

fiscais e policiais aos camelôs.

É interessante notar que a ordenação do comércio ambulante na cidade do Rio de

Janeiro, a partir da promulgação da lei municipal, passou a ser desempenhada por uma

85
comissão permanente, na qual, entre outros atores, destaca-se a presença de representantes

de organizações de lojistas. Essas organizações estabelecem parcerias com a Prefeitura da

cidade em diversos projetos de “revitalização” do Centro. A relação entre camelôs e lojistas

é ambígua. Os lojistas da Saara, por exemplo, têm forte participação na camelotagem,

oferecendo facilidades de compra no atacado. Outros lojistas estendem o seu comércio para

a calçada das ruas através de camelôs, assim como os comerciantes dos boxes do

camelódromo. Ao mesmo tempo, a noção de “concorrência desleal” é proferida por

importantes órgãos comerciais e industriais do país. O discurso em prol da repressão traz

sempre consigo a idéia da “perda de tributos” por parte do Estado e da movimentação de

um dinheiro invisível, advindo do comércio de bugigangas e falsificações, que financiaria o

“crime organizado”.

A partir do banco de dados que construí ao longo desta pesquisa, constatei que as

notícias que envolvem camelôs são rotineiras. De uma forma ou de outra, elas acabam

surgindo no noticiário da cidade. Mesmo em épocas mais tranqüilas, fora das temporadas

de festas, que propiciam esse tipo de consumo e a ocorrência dos confrontos no Centro, os

camelôs figuram em notas editoriais ou em colunas semanais.101 O tom dessas publicações,

em geral, é depreciativo e acusatório. Na maioria das vezes, o discurso é alarmista:

denuncia as rotas de um comércio escuso e irregular, ligado à contravenção e ao crime

organizado, e apresenta os camelôs como causa da “degradação”, da “sujeira”, da

insegurança e da violência das ruas.

101
Cf., por exemplo, “Pirataria S.A.”, coluna que sai toda quinta-feira no caderno de economia do
jornal O Globo e que sempre contém alguma referência à camelotagem.

86
CAPÍTULO 3

Carreiras na camelotagem carioca

Neste último capítulo identifico as principais carreiras que podem ser desenvolvidas

na camelotagem carioca. Devo, antes de tudo, voltar a frisar que realizei poucas entrevistas

formais e que preferi deixar fluir as conversas, colocando, em determinados momentos, os

temas de interesse da pesquisa. Portanto, a partir de fragmentos de conversas e de relatos

espontâneos das histórias dos camelôs, tomei conhecimento de alguns de seus dramas e

dilemas. Agora, procurarei reuni-los e interpretá-los, de forma a compreender como suas

carreiras na camelotagem são vividas e sentidas em relação ao restante de sua vida social.

Escolhi pessoas que ocupam posições diferentes em duas situações de trabalho

desse universo: “na pista” e “no camelódromo”. Acredito que essas situações gerais, que

possuem características e ritmos diferenciados, consistem em duas das três escolhas

possíveis dentro do universo pesquisado.102

Há dois personagens centrais neste capítulo: Adriano, camelô da pista, e Lucinha,

camelô do camelódromo. Também faço referência a outras pessoas, cujas trajetórias podem

ajudar a perceber a diversidade desse universo e a entender as variadas formas que os

indivíduos encontram de elaborar suas identidades ao longo de suas carreiras na

camelotagem. Trata-se dos amigos de Adriano — Jéferson e Roberto, que também são

camelôs, e Reinaldo, o fornecedor da mercadoria — e dos colegas de Lucinha — seu

102
Como foi dito anteriormente, o exercício da camelotagem também pode ser realizado numa
terceira situação: em barracas armadas ao longo das calçadas (cf. Introdução).

87
Linhares, que também é comerciante do camelódromo, P.R., proprietário de boxes, agiota e

cambista, e Tico, empregado num boxe no camelódromo.103

Hughes (1971) mostra que as situações de trabalho são focos a partir dos quais

pode-se observar a formação de identidades e a produção de papéis e sanções sociais. Nesse

sentido, a carreira pode ser tomada como um momento do ciclo de vida de uma pessoa que

desenvolve suas atividades numa determinada sociedade, a qual, por sua vez, possui seus

ciclos coletivos. A escolha e o desempenho de uma ocupação, portanto, devem ser

entendidos como decorrência da interação que o indivíduo desenvolve com a sua sociedade.

Procuro demonstrar que a carreira de camelô está envolvida em ciclos, ritmos e

problemas típicos, que variam de acordo com a posição ocupada pelo sujeito no grupo

ocupacional (cf. Hughes, 1971: 124). Como em qualquer outra ocupação, na camelotagem

também se desenvolvem padrões culturais, estilos de vida peculiares, e códigos e

linguagens próprias. Deve-se notar, porém, que a ocupação de camelô possui um status na

sociedade, e que esse status marca a imagem de quem a desempenha (cf. Hughes, 1971:

133). A camelotagem, tal como se pratica nas ruas do Centro da cidade, diante da legislação

municipal é uma atividade transgressora.

Na pista

De segunda a sexta-feira, Adriano sai de Nilópolis, município fronteiriço à cidade

do Rio de Janeiro, para trabalhar no Centro. Chegando por volta das nove horas da manhã,

ele passa no camelódromo da Uruguaiana para tomar seu café da manhã — uma tigela de

açaí com granola —, depois passa no boxe onde ficam guardados os CD-ROMs, pega seu

103
Estou pensando aqui na noção de network desenvolvida por Clyde Mitchell (1969). Nesse
sentido, Lucinha e Adriano são usados como uma espécie de anchorage.

88
mostruário — um aramado com as fotocópias das embalagens dos programas — e vai para

o seu ponto de venda. Ali, em meio à confusão de passantes e compradores, Adriano

ocasionalmente anuncia sua mercadoria: “Vai aí? Corel, Autocad, Norton, Office? Tem

dicionário: inglês, português, alemão francês! Vai?” Sempre muito atento, ele sabe o que

fazer. Quando o freguês se interessa pelo produto, ele olha ao redor, para ver se o Reinaldo

está por perto, e, se não o avista, ele mesmo vai pegar a mercadoria, pedindo ao Jéferson ou

ao Roberto para tomar conta do seu mostruário. Essa estratégia de deixar o mostruário sob

os cuidados de um colega serve para “segurar o freguês” nas ocasiões em que ele precisa se

ausentar, o que é relativamente freqüente, pois ele não pode portar a mercadoria. Ele então

vai pegar o CD, tudo muito ligeiro, e em segundos está de volta. Ele entrega o CD, pega o

dinheiro, e já tem que atender outro comprador. O movimento é intenso, e há compradores

para os três.

Adriano é sempre o primeiro a chegar e é mais assíduo que os outros. Jéferson e

Roberto costumam chegar mais tarde e, às vezes, nem aparecem. Reparei que, quando não

há ninguém no ponto, Adriano vende sem o aramado que sustenta o mostruário; ele apenas

anuncia os produtos e mostra, num papel dobrado, as fotocópias das capas dos programas.

Perguntei a ele como é lidar com a repressão. Ele me respondeu que é preciso “ficar ligado”

o tempo todo, pois a qualquer momento pode ser preciso sair correndo da Guarda

Municipal: “Não enfrento esses guardas não. Pra enfrentar eles, só com ferro, pra valer.

Camelô e Guarda Municipal é igual a traficante e PM... Só que com pedra e pau”. Ele disse

que a freqüência de suas fugas é diária, ocorrendo com mais intensidade por volta da hora

do almoço, justamente no momento de maior fluxo de pessoas nas ruas do Centro. Disse

também que, quando a repressão está intensa, já encontra os guardas ao chegar, pela manhã,

na esquina: “Aí não dá pra fazer nada. Tem gente que fica revoltado. Eu fico também, mas

89
não vou fazer nada. Foi como eu te disse: se eu tiver que fazer, vai ser pra valer. Aí, espero

eles sair; alguma hora eles têm que sair. Aí a gente volta”. Nessas ocasiões, Adriano

costuma se refugiar no camelódromo: “É muito raro a guarda entrar aqui atrás de camelô.

Eles não entram, porque sabem que aqui tem o pessoal da segurança, que não deixa ter

confusão”.

Com 28 anos de idade, seu domínio da situação é próprio de quem, há oito anos,

trabalha como camelô no Centro do Rio. Adriano mora com a filha de nove anos e com a

mãe. A aposentadoria da mãe e o que ele ganha com suas vendas são as únicas fontes de

renda da família. Ele se diz o “chefe da casa”, pois, se não fossem os seus rendimentos, a

mãe e a filha estariam “passando por necessidades”. Começou a vender cópias de

programas de computador há dois anos. Antes, “vendia de tudo”: vinha para o Centro,

passava no camelódromo da Central ou da Uruguaiana e decidia o que ia vender. Assim,

vinha sustentando sua mãe e sua filha. Certo dia, no Centro, encontrou Jéferson, a quem

conhecia do lugar onde ambos moram, e ele, camelô de software, o recomendou a seu

primo, que é fornecedor da mercadoria. Adriano, se referindo às cópias, me disse que não

gosta de trabalhar com “pirataria” por se tratar de mercadoria ilícita, e me relatou que, no

tempo em que prestava serviços ao comércio ilegal de drogas estabelecido na área onde

mora, passou por situações difíceis. Ao escapar dessas situações, prometeu à sua mãe que

trabalharia de forma “honesta” e não se envolveria mais em atividades arriscadas. Segundo

Adriano, o trabalho do camelô, “mesmo sendo a maior pedreira, não é tão perigoso quanto

o tráfico. É melhor do que sair por aí roubando. Sendo camelô, não preciso mexer com

arma. Na rua, sempre dá pra levar algum dinheiro pra casa. Por isso, resolvi ser camelô, e

há oito anos tô aqui”.

90
É interessante notar que a ocupação de camelô tem um status que é constantemente

negociado (cf. Becker, 1970). Não se deve esquecer que se trata de uma carreira de difícil

aceitação social, embora represente, para boa parte de seus integrantes, uma forma “digna”

e “honesta” de sobrevivência. Se, por um lado, o exercício da camelotagem tem uma

imagem que estigmatiza, por outro, é um artifício usado na defesa contra outras acusações,

como, por exemplo, a de “ser ladrão”. Como Hugues (1971: 333) afirma, “another

important variable in occupations is the nature of the contact of its practioners with each

other, and the nature of competition”.

Ao conhecer Reinaldo, primo de Jéferson e fornecedor de CDs, Adriano viu a

possibilidade de “mexer com informática” e de obter maiores ganhos comercializando as

cópias de software, pois esse negócio oferece vantagens, mesmo envolvendo a venda de

mercadoria ilegal.104 Segundo ele, sem essa oportunidade, não seria possível criar sua filha

nem cuidar de sua mãe da maneira que considera satisfatória. Ele calcula que, num

emprego formal, ganharia no máximo quinhentos reais por mês, o que inviabilizaria o

sustento de sua família. Como camelô de outras mercadorias, não conseguia tirar um bom

lucro nas vendas, pois trabalhava com artigos de baixo valor, como balas, canetas, pilhas

etc. Depois que começou a comercializar software, aprendeu com Reinaldo e Jéferson

“muita coisa de computação” e, de acordo com seus cálculos, sua renda melhorou. Adriano

tira em média, por dia, entre cinqüenta e cem reais, o que possibilita a manutenção do plano

104
Segundo Reinaldo, essas mercadorias têm baixo custo de produção e muita procura no mercado.
Adriano disse que vende, em média, de vinte a trinta CDs por dia. O fornecedor vende a mercadoria
— por cinco reais à vista e por sete reais em consignação — para diversos camelôs, que a
comercializam por dez reais nas ruas do Centro. O custo de produção da mídia não chega a dois
reais por CD, já contando com o custo da embalagem. Sendo assim, esse negócio é bastante
lucrativo, principalmente para o fornecedor.

91
de saúde de sua mãe e a educação de sua filha. Segundo ele, ainda “sobra algum pra tomar

uma cerveja”.

Adriano pega a mercadoria em consignação, ou seja, paga apenas pela mercadoria

vendida. Ele me revelou que “a maior parte desses camelôs que a gente vê aí faz desse

jeito. Ninguém quer empatar dinheiro. Só aquele que quer vender no atacado. Aí sim, vale a

pena, porque já tem os camelôs certos que vendem pra eles aí na pista”. Depois de ter

vendido drogas e bugigangas, Adriano se sente “mais correto” e “honrado” por lidar com

uma mercadoria que, apesar de ilícita, não causa danos físicos a ninguém diretamente e

rende lucros satisfatórios, além de se tratar de um tipo de produto que oferece a

possibilidade de se familiarizar com “computação”.

Reinaldo, o fornecedor, tem 24 anos, e também é morador do município de

Nilópolis. É casado e tem uma filha de 4 anos de idade. Não é mais camelô da pista e há

dois anos abastece diversos camelôs com cópias de software. Segundo seu relato, muitas

das cópias vendidas são feitas por ele mesmo, em seu próprio computador. Ele fica a maior

parte do dia num boxe do camelódromo, onde vende também a varejo e guarda toda a

mercadoria — Reinaldo não me disse em que quadra fica o seu boxe. “No início”, disse ele,

“eu vendia na rua as coisas que o meu cunhado trazia de São Paulo. Depois vim cuidar do

boxe dele aqui no camelódromo, arrumando a mercadoria e atendendo os camelôs que

vendem pra gente na pista. No início do ano passado [2003], compramos dois

computadores, e rapidinho peguei as manhas. Hoje, a gente só trabalha com programas de

computador”.

Jéferson é primo de Reinaldo, tem 26 anos e também mora em Nilópolis. É casado,

tem dois filhos e, no momento, está vendendo cópias de CDs, pois está desempregado.

92
Certa vez, numa terça-feira à tarde, estávamos no bar da Raquel, eu, Adriano, Roberto105 e

Reinaldo. Eles costumavam beber e almoçar ali com relativa freqüência. Nesse dia,

Jéferson chegou mais tarde; ele não estava na pista, tinha ido procurar emprego. Quando

chegou no bar, portava um envelope com seu currículo, e isso virou motivo de brincadeira

entre eles. Roberto disse: “Olha só, Adriano... Ele foi procurar emprego de novo. Quantas

horas na fila da CAT?106 Onde é que você vai trabalhar? Tu acha mesmo que vai conseguir

trabalhar? Tu não tem nem o segundo grau”. Adriano percebeu que Jéferson não estava

gostando muito da brincadeira, e tomou partido do amigo.

Adriano: “Deixa o cara, ele tá certo em tentar trabalhar com carteira assinada. Se

conseguir, não precisa mais ficar nessa pedreira.”

Roberto: “Mas tu não quer sair da rua pra ganhar quinhentos contos por mês, quer?”

Adriano: “Agora é tarde... A rua pra mim é uma necessidade.”

Jéferson: “Pô, não sou camelô, não... Já trabalhei, tenho experiência, posso

conseguir alguma coisa.”

Jéferson está desempregado há quase um ano. Teve diversos empregos, todos

temporários. Trabalhou no McDonald’s e foi office-boy, balconista de papelaria, vendedor

de assinatura da revista Veja etc. Seu último emprego foi de entregador de remédios numa

farmácia. No decorrer da conversa, ele revelou que nenhum desses empregos lhe pagou por

mês mais do que ele ganha “na rua” em uma semana.

105
Roberto, de quem falarei mais adiante, é um dos amigos de Adriano.
106
Roberto está se referindo a uma agência de empregos, a Central de Apoio ao Trabalhador,
localizada em São Cristóvão.

93
Quero chamar a atenção para o fato de que Adriano havia exercido uma atividade

criminosa e, diante de uma situação de risco, a alternativa “menos arriscada” que encontrou

foi tornar-se camelô. É importante mencionar que, de forma recorrente entre os informantes

da pesquisa, a prática da camelotagem aparece como alternativa ao tráfico de drogas. Assim

como na fala de Adriano, também se percebe em outros depoimentos, além da recusa de

uma atividade criminosa, a recusa de um “emprego” que não oferece condições de sustento

nem a manutenção dos padrões de consumo desejados.107

Roberto tem 27 anos e mora com a namorada e as duas filhas dela em Magé, um dos

municípios banhados pelo fundo da Baía de Guanabara, na Baixada Fluminense. Sua mãe,

jornalista, e seu pai, delegado, moram no bairro da Glória, que fica próximo ao Centro. Sua

mãe vendeu dois terrenos que tinha em Maricá e, com o dinheiro, Roberto comprou uma

“boa” casa em Magé. Tive a oportunidade de conhecer sua mãe: numa das vezes que fiquei

conversando com eles, ali no bar da Raquel, Roberto combinou de se encontrar com ela.

Quando ela chegou, já passava das sete horas da noite, e ela foi logo dizendo que estava

com pressa. Fomos apresentadas — ela se chama Beth —, e resolvemos sair de lá juntas.

Caminhamos da Uruguaiana até a Glória, pois também moro nessas imediações. Beth sente

o maior desgosto por Roberto ser camelô. Disse que ele mudou muito e que “só fala alto

agora”. Ela se diz jornalista e contou que está movendo uma ação contra a Rede Manchete,

que faliu e não pagou aos funcionários. Roberto diz que ela está “obcecada com essa

história”. Quando estávamos a sós, ela revelou que Roberto “nunca deu pra trabalhar de

verdade. Ele não agüenta ficar mais do que quinze dias num serviço”.

Roberto diz que já fez de tudo na vida. Trabalhou no Bob’s e no “McEscravo” —

uma brincadeira com o nome da famosa lanchonete —, trabalha como garçom de vez em
107
Sobre fronteiras tênues entre trabalho e marginalidade, cf. Zaluar (1985).

94
quando e, como camelô, vende “qualquer coisa”. Chega no Centro e resolve o que vai

fazer: “Às vezes panfleto, outras vezes pego CDs com Reinaldo pra vender, se é Páscoa

vendo chocolate, se está chovendo vendo guarda-chuvas, se a novidade é uma caneta

diferente ou um brinquedinho, pego e vendo”. Sempre que ele vem ao Centro, volta para

casa com, pelo menos, dez reais no bolso. Segundo ele, “o Centro é onde tá a grana”.

Perguntei como ele consegue a mercadoria, e ele me respondeu que, na maioria das vezes,

pega em consignação com algum conhecido do camelódromo: “Tenho muitos conhecidos

por aqui. Quando não estou vendendo nada, consigo trocar um cheque para alguém. Aí,

ganho uma comissão”.

O modo como Beth encara o tipo de vida que Roberto leva revela que uma das

conseqüências de se desempenhar uma atividade vista como desviante são os conflitos

familiares. Esses conflitos representariam um dos pontos de contato do indivíduo com os

valores difundidos na sociedade (cf. Becker, 1963).

No camelódromo

Lucinha é uma comerciante estabelecida no camelódromo há oito anos. É uma

pessoa muito comunicativa e espirituosa. Em seu boxe de roupas esportivas, oferece

conforto relativo e garantias aos fregueses. Dispõe de provador com espelho, aceita cartão

de crédito e garante a troca em caso de problemas com a mercadoria. Lucinha mora no

bairro de Cachambi, tem 34 anos e “sempre mexeu com comércio”. Com o segundo grau

completo, trabalhou em diversas lojas e butiques do Shopping Rio Sul e em outras lojas da

Zona Sul da cidade. Seu marido tem um boxe de óculos escuros e relógios no atacado,

também no camelódromo. Eles se conheceram no bairro onde nasceram e onde moram até

hoje. Antes de ser transferido para o camelódromo, Alex tinha uma barraca de

95
“importados” no Largo da Carioca, em frente à rua Uruguaiana. Nessa época, Lucinha

trabalhava na Redley,108 das quatro horas da tarde às dez da noite. Na parte da manhã,

ficava na barraca do Largo da Carioca, para que seu namorado — na época eles não eram

casados — pudesse freqüentar o curso de Direito que fazia na Universidade Estácio de Sá.

Dois anos depois de seu namorado ter sido transferido para o camelódromo e ter

abandonado a faculdade, Lucinha saiu do emprego e conseguiu um ponto próximo ao de

Alex.

Ao longo desses oito anos que trabalham juntos no camelódromo, Lucinha e Alex

se casaram e ampliaram os negócios; hoje, estão construindo uma casa em Maricá. Lucinha

adora crianças, mas não pode ter filhos — ela me revelou isso num dia em que levou para o

camelódromo sua sobrinha de cinco anos, o que fez com que algumas pessoas que não a

conheciam perguntassem se a menina era sua filha. Alex não gosta muito de conversar, mas

Lucinha adora. Está sempre entre os vizinhos de boxe. Sua lojinha é interessante, toda feita

de ripas de madeira, com spots embutidos no teto e araras com as roupas organizadas por

tamanho e cor. Na parede, tem uma cortiça, onde coloca as fotos dos amigos, dos parentes e

das farras entre os colegas do camelódromo. Tudo isso em meio a recortes de revista, com

surfistas descendo ondas enormes e paisagens paradisíacas, e ao som de reggae, que ela

sempre coloca “pra dar o clima das roupas”, como ela mesma diz.

Verifica-se, na atitude de Lucinha em relação ao “clima” que cria no seu boxe, um

grau elevado de comprometimento com o seu trabalho e de esforço em manter uma

autonomia relativa sobre suas condições. Essa é uma das tensões que caracterizam as

108
Loja especializada em roupas do tipo surfwear e uma das marcas mais consumidas entre jovens
de classe média, a Redley é uma das grifes mais falsificadas no mercado da camelotagem carioca.

96
ocupações em que a prestação de serviço a pessoas “de fora”, a uma clientela, é central (cf.

Becker, 1970: 245).

Comparando as trajetórias de Lucinha e de Adriano, é possível perceber as

diferentes dimensões de elaboração do ethos na camelotagem, em função de suas carreiras

e das condições de sua realização nessa ocupação. Adriano, há oito anos, é um camelô da

pista que passa diariamente pela situação degradante de fugir da fiscalização. Lucinha foi

camelô da pista e também fugia da fiscalização, mas há oito anos tem uma lojinha no

camelódromo, possuindo estabilidade relativa em seu ponto e ocupação. Através desse

trabalho, ela realiza boa parte de suas aspirações. Ela e seu marido estão construindo uma

casa em Maricá e pretendem “pegar uma criança pra criar” futuramente. Adriano mora

numa favela no município de Nilópolis, precisa sustentar mãe e filha, não estudou, nunca

trabalhou com “carteira assinada”, e também não faz muitos planos para o futuro. Ao ser

indagado sobre seus projetos, Adriano mostrava não ir muito longe nas suas aspirações; ele

pretende poder continuar cuidando de sua mãe e de sua filha e se divertir quando “sobrar

algum para a cerveja”. Lucinha já trabalhou em lojas e butiques de shopping centers.

Adriano, por outro lado, já teve a sua carreira no tráfico de drogas e viu na camelotagem

uma maneira de sobreviver e de sair de uma atividade ainda mais degradante e perigosa.

Lucinha viu na camelotagem uma possibilidade de ascender economicamente. Os projetos

de Adriano e Lucinha, portanto, são formulações inseridas num campo de possibilidades e

delimitadas por ele. Ou seja, os indivíduos têm de se movimentar dentro de num processo

econômico, histórico e cultural que demarca as alternativas possíveis de ação e realização

de seus projetos (cf. Velho, 1987 [1981]).

Seu Linhares, colega de Lucinha, tem um boxe de frente para a rua Uruguaiana,

num dos pontos mais privilegiados do camelódromo. Atualmente, vende pilhas, radinhos

97
am/fm, headphones, fitas cassete etc. Antes, vendia produtos mais sofisticados, como

máquinas fotográficas, walkmans, relógios, aparelhos de telefone sem fio, secretárias

eletrônicas etc. Substituiu as mercadorias porque estava tendo muito prejuízo. Revelou que,

por serem muito visados pela fiscalização, esses produtos o deixavam “na mão” dos fiscais.

Outro motivo é o fato de que a associação cobra taxas mais caras àqueles que trabalham

com mercadoria desse tipo. Segundo ele, hoje, suas mercadorias vêm do Paraná: “Eu nem

preciso ir lá. Faço o pedido, e eles entregam aqui mesmo”.

Pernambucano da cidade de Garanhuns, seu Linhares veio para o Rio de Janeiro em

1970, indo morar na casa de um parente em São Cristóvão. Nessa época, “vendia crediário”

— uma espécie de mascateagem em que o vendedor passa nas casas das pessoas oferecendo

roupas de cama, panelas, tapetes, toalhas e utensílios domésticos em geral. A venda é feita

a prazo e, nas datas do vencimento, o vendedor volta à casa do freguês para receber o

pagamento. Depois de dez anos trabalhando dessa forma, ele resolveu abrir uma “birosca”

na porta de casa: “Uma espécie de mercearia. Vendo de tudo um pouco pro pessoal da

vizinhança: sabão, enlatado, refrigerante, pinga...” Seu Linhares mantém esse negócio até

hoje. Quando resolveu ser camelô, colocou uma moça para trabalhar para ele. Essa moça

cuida do comércio, da casa e de suas roupas, e, segundo ele, “é uma pessoa de confiança”.

Seu Linhares nunca se casou e não tem filhos. Aposentou-se como autônomo e, como fez

questão de dizer, há oito anos tem crédito especial de cinco mil reais no banco em que é

correntista. Segundo ele, “o pessoal nordestino vem pro Rio e São Paulo e não constrói

nada. Eu não: posso me considerar bem de vida. Tenho minha casa própria e ainda ajudo

minha família, que tá lá em Garanhuns”. Referindo-se aos camelôs e à repressão policial no

Centro, seu Linhares disse: “Tem mais é que proibir mesmo. Eles são contra a lei e contra o

patrimônio público”. Indaguei sobre sua vida como camelô e perguntei se ele sempre

98
trabalhou no camelódromo. Ele respondeu que, antes, ficava na rua Sete de Setembro,

esquina com a rua Uruguaiana: “Naquela época, a gente ficava aqui na rua mesmo. Foi um

tempo bom pra ganhar dinheiro. Foi quando consegui comprar a casa que eu moro”.

Seu Linhares está no camelódromo da Uruguaiana desde a sua inauguração.

Perguntei como foi o processo de transferência para o camelódromo, e se ele não sofreu

com a repressão. Ele respondeu: “Não. Nunca precisei fugir da polícia por ser camelô,

porque sempre fui um camelô honesto. E depois, assim que ficou pronto o camelódromo,

eu vim logo. O pessoal que não quis vir é que sofreu mais”. Seu Linhares diz que tem uma

vida estável e que por isso não trabalha mais aos sábados e fecha o boxe antes das quatro

horas da tarde: “Tô bem. E quando eu não puder mais vir trabalhar, quando eu estiver

velho, já tenho casa, e a minha aposentadoria vai dar pra comer e beber. Não posso

reclamar de nada”.

P.R., outro colega de Lucinha, também se diz muito satisfeito com a sua vida. Ele

tem 44 anos e mora na Barra da Tijuca. Nunca foi camelô, mas sempre contratou camelôs

para vender suas mercadorias. É dono de dez boxes no camelódromo e se diz “rico”. Passa

o dia circulando pelos corredores e é saudado nas quatro quadras por onde passa. Adora

pagar tudo para todo mundo. Assim, quando ele passa, sempre há alguém que faz uma

brincadeira com ele: “P.R.! Me arruma um dinheiro aí!”. No salão que freqüentei, ele é

queridíssimo. Assim que ele chega, as meninas — tanto a manicura quanto a cabeleireira —

pedem a ele alguma coisa, e ele prontamente compra. Antes de sermos apresentados,

presenciei uma cena interessante. Ele chegou e começou a beber com dois rapazes; um era

segurança e o outro, um comerciante dali mesmo. Logo chegou um homem que eu nunca

tinha visto por ali, e, depois de algumas cervejas, P.R. tirou do pescoço uma corrente de

ouro espessa e a estendeu a esse homem, que lhe deu um maço de dinheiro preso num

99
elástico. P.R. abriu o maço e conferiu o dinheiro ali mesmo, na frente de todo mundo. Os

rapazes que estavam ao redor pareciam bastante impressionados com a opulência expressa

nos gestos daqueles homens.

P.R. possui vários negócios: compra e vende ouro, empresta dinheiro a juros para os

comerciantes do camelódromo e é cambista de ingressos de shows, de jogos de futebol, de

desfiles de escolas de samba e de outros eventos. No momento, ele é o patrocinador do

uniforme do time de futebol dos comerciantes do camelódromo, que disputa torneios nos

campos de futebol do Aterro do Flamengo.109

Pode-se dizer que, pelas características de suas posições, Lucinha, seu Linhares e

P.R. fazem parte de um grupo de referência. Suas atitudes podem influenciar nas carreiras

dos demais indivíduos, pois expressam, em certa medida, autonomia das condições de

trabalho (cf. Becker, 1963: 102). De modo geral, como as chances de entrada no mercado

formal são reduzidas, o grupo de referência passa a delimitar o campo de possibilidades

existente, representando para os demais camelôs as perspectivas de ascensão social e de

status na camelotagem (cf. Velho, 1987 [1981]).

Tico, outro colega de Lucinha, trabalha para um amigo de Alex num boxe de

acessórios e de assistência técnica de aparelhos de telefone celular. Ele tem 19 anos e

costuma ficar conversando no salão quando o movimento está fraco. Conheci Tico quando

ele encomendava, a uma moça que estava no salão, bolo e salgadinhos para o chá de bebê

de seu filho, que estava para nascer. Dois comerciantes que estavam próximos e são seus

colegas perguntaram se a sua namorada já havia voltado a morar com ele. Ele respondeu

que não, e disse que não iria aparecer na festa; estava apenas ajudando nos preparativos.

109
P.R. me contou que, no Aterro do Flamengo, há torneios entre times de diversas ocupações, tais
como hoteleiros, bancários, camelôs etc.

100
Não resisti e comentei que era muito gentil da parte dele ajudar nos preparativos. E ele:

“Diz isso pra ela...” Nesse momento, a manicura e os dois comerciantes começaram a fazer

gozações. Ainda sem entender direito, perguntei por que, afinal, ele não podia ir à casa da

namorada, que também trabalhava no camelódromo, numa quadra distante. Não tive a

oportunidade de conhecê-la.

Tico mora no morro da Providência, perto do Centro, na casa de tios. Não mora com

a namorada porque ela não quer sair de perto da mãe, que mora numa das favelas do

Complexo do Alemão, área onde Tico viveu até os 17 anos de idade. Tico não pode mais

voltar lá porque, segundo ele, trabalhou — a partir dos 13 anos de idade — para os

traficantes da região. Perguntei por que deixou o trabalho no tráfico, e ele me respondeu o

seguinte:

Comecei comprando as coisas pra eles na rua, trazendo quentinha e avisando da

chegada da polícia. Depois passei a ficar na boca; foi quando eu comecei a ganhar

mais dinheiro. Mas também foi quando passei a não poder sair da favela, sair pra

pista, dar um rolé. Pô, então pra que ter dinheiro se não dá nem pra dar um rolé? Aí

saí fora logo, antes que fosse tarde, e vim pra rua trabalhar de camelô.

Perguntei ao Tico como ele começou na camelotagem, e ele respondeu: “Sempre fui

camelô. Desde moleque, sempre ia com esse meu tio pra show na praia vender cerveja.

Sempre tava com ele na rua, ajudando a vender as coisas que ele arrumava. Ainda hoje,

quando tem um evento grande, a gente vai vender cerveja”. Explicando seu trabalho no

camelódromo, ele me disse: “Sou técnico de celular. Aprendi com o André, e ele me botou

pra trabalhar no boxe com ele”. Tico precisa cumprir horário no boxe de André, que lhe

101
paga 75 reais por semana, além de uma quentinha no almoço, diariamente. As últimas

notícias que tive desse rapaz foram de que seu filho, um menino, já havia nascido, sua

namorada continuava morando com a mãe, e ele tinha sido preso pela polícia por estar

participando de um esquema de “clonagem” de telefones celulares.

Nessas trajetórias, é interessante observar, especialmente, como essas pessoas

manipulam sua ocupação e fazem dela um trabalho tolerável e, em alguns casos, até

honroso (cf. Hughes, 1971: 342). Tudo isso revela que as carreiras não são lineares; elas

são extremamente dinâmicas e acompanham os indivíduos em seus deslocamentos. Desse

modo, são elaboradas no conjunto de sua vida, em meio aos seus dramas sociais e dilemas

individuais.

102
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os camelôs da cidade do Rio de Janeiro são atores permanentemente apresentados

nas notícias, conversas e comentários como um “problema”. De longe, a face mais evidente

da camelotagem é justamente a que tangencia as atividades ilegais e criminosas. É possível

enumerar uma série de acusações feitas, principalmente em jornais, contra esses atores: eles

são classificados como os principais receptores de mercadorias ilícitas, desordeiros e

recalcitrantes. Nessas circunstâncias, a camelotagem não aparece como uma alternativa de

trabalho. Todavia, é preciso levar em conta que o universo da camelotagem é muito

heterogêneo e possui níveis variados de adesão às atividades ilegais. Assim, ao iniciar a

pesquisa, precisei desconhecer esse aspecto problemático tão disseminado no senso

comum, para poder compreendê-lo antropologicamente (Cavalcanti, 2003: 134).

No decorrer do trabalho de campo, fui constatando que todos os camelôs, de alguma

maneira, precisam lançar mão de estratégias que estão na fronteira entre a legalidade e a

ilegalidade, na tentativa de manutenção da própria ocupação, seja na pista, no camelódromo

ou nas barracas. De fato, existe uma rede de corrupção e de crimes que envolvem

contrabando, roubos de carga, e uso e partilha ilegal dos espaços públicos. Por outro lado,

há uma multidão de pessoas que encontra, na camelotagem, a sua alternativa de

sobrevivência, extraindo dela os meios de realizar suas aspirações.

Como procurei demonstrar no decorrer deste texto, alguns interlocutores da

pesquisa deixaram claro que é inútil tentar obter a concessão de um ponto indo diretamente

à Prefeitura, ou seja, agindo como o previsto pela lei. São as diversas associações que

fazem a mediação entre o indivíduo interessado em ser camelô e a Prefeitura. Os meandros

103
dessas negociações são evidentemente velados, e os membros dessas associações compõem

uma espécie de sociedade secreta. À medida que a pesquisa avançava e que eu ficava mais

próxima das pessoas, esse aspecto da camelotagem ia se revelando nas entrelinhas e nas

contradições entre o que se dizia e o que de fato acontecia. A importância desse aspecto

tácito, como aquilo que sustenta o complexo sistema da camelotagem carioca, foi ficando

evidente e, sem ignorá-la, fui delimitando o foco da pesquisa que me propunha a

desenvolver durante o mestrado.

Há um momento crucial no trabalho de campo, e na pesquisa como um todo, em

que é preciso definir “o que queremos e o que podemos saber sobre o que pesquisamos”

(Cavalcanti, 2003). Mais do que conhecer os meandros dos acordos “suspeitos”, procurei

conhecer aquilo que é obscuro para o senso comum: as situações vivenciadas pelos camelôs

no seu dia-a-dia, suas aspirações e seus projetos. Nessa perspectiva, a camelotagem aparece

como uma “solução”, pois, por meio dela, essas pessoas sobrevivem, realizam suas

pretensões e elaboram suas identidades.

A opção pela vida na camelotagem não é trivial, por se tratar de uma atividade, até

certo ponto, vista como transgressora. A realização de uma carreira nessa ocupação,

portanto, passa pela elaboração de uma carreira moral (cf. Goffman, 1974 [1961]), em que

o sujeito desenvolve uma atividade desviante (cf. Becker, 1963), o que gera conseqüências

específicas na elaboração de sua identidade.

A maneira como Becker e Goffman lidam com as noções de desvio e estigma revela

que a dinâmica da vida social é um processo complexo e contraditório, no qual toda

imposição de regras está ligada a uma relação de poder político e econômico. Vista dessa

forma, a problemática do desvio pressupõe a existência da diversidade de modos de

concepção da realidade. Segundo Becker (1963: 8), “a society has many groups, each with

104
its own set of rules, and people belong to many groups simultaneously. A person breaks the

rules of one group by the very act of abiding by the rules of another group. Is he then,

deviant?” O desvio é criado pelos grupos sociais quando eles estabelecem normas. Sendo

assim, ele não deve ser entendido como a qualidade de uma ação, e sim como o resultado

de um processo de acusação que estigmatiza quem transgride as normas. Becker (1963: 14)

afirma que “deviance is not a quality that lies in behavior itself, but in the interaction

between the person who commits an act and those who respond to it”.

Partindo dessas noções, é possível refletir sobre a conduta dos camelôs,

principalmente os da pista, e sobre o modo como a camelotagem se tornou uma atividade

transgressora e passou a ser vista como caso de polícia. Becker (1963: 129) afirma que toda

atitude desviante passa por etapas de acusação, até ser interpretada como tal. No caso dos

camelôs da cidade do Rio de Janeiro, há um longo processo de acusação dessa atividade,

cujos antecedentes podem ser encontrados nos ideais de civilidade do início do século XX,

em nome dos quais Pereira Passos perseguiu as “pequenas profissões”, usando a proposta

de “saneamento” como base do discurso de repressão.

Porém, a repressão à camelotagem, tal como se apresenta hoje na cidade, tem, a

meu ver, uma história recente. No decorrer da etnografia, expus de forma sintética uma

série de reportagens, publicada na imprensa carioca, sobre o processo de contenção da

camelotagem. Esse processo foi realizado, ao longo dos últimos vinte anos, por meio da

implantação de camelódromos na cidade e da criação de uma guarda especial para a

repressão dos camelôs irregulares. Essas reportagens me ofereceram a possibilidade de

identificar algumas etapas desse processo de acusação.

Em 1984, quando havia a intenção de se criar centros de comércio popular, os

camelôs eram controlados por fiscais da Prefeitura e, somente em casos excepcionais, a

105
Polícia Militar entrava em ação. A criação de espaços para o exercício da camelotagem

parece ter sido um ponto importante nesse processo acusatório. Com a implantação de

camelódromos na cidade, o poder público passou a operar com a justificativa de que não

havia mais motivo para o uso de locais impróprios e ilegais, legitimando assim a repressão

àqueles usassem as ruas para o comércio ambulante.110

Com a criação da Guarda Municipal e a implantação do camelódromo da

Uruguaiana, em 1994, a repressão aos camelôs tomou novas proporções.111 A figura do

fiscal — o “rapa” — começou a ser substituída pela do guarda municipal, o novo inimigo

do camelô. Nesse quadro, encontramos uma cruzada moral empreendida pelos criadores e

os aplicadores das regras, além da acusação pública, cristalizada nos confrontos entre

guardas e camelôs em pleno Centro da cidade, e na sua divulgação pela imprensa (cf.

Becker, 1963).

Isso tudo gera conseqüências específicas na elaboração das identidades desses

sujeitos. O indivíduo acaba internalizando a acusação, aceitando o estigma como real (cf.

Goffman, 1974). No todo de sua vida social, em meio às acusações, confrontos corporais

com a polícia, situações vexatórias, “cervejas de fim de tarde” e situações próprias de sua

ocupação, o camelô vai levando sua vida e se definindo como pessoa. Nesse quadro de

possibilidades, ele encontra as frestas que o levarão à realização de seus projetos

individuais (Cf. Velho, 1987 [1981]).

Muitas vezes, os camelôs falam em “liberdade” e “independência”, e tentam

encontrá-las na camelotagem. Consideram-se “escravos” quando são submetidos a um

110
“O prefeito acredita que, com essa medida, estará solucionado o problema dos camelôs: —
‘Vamos criar uma alternativa de oferta de trabalho e, a partir daí, poderemos cumprir a lei em
relação aos camelôs que estiverem instalados em locais impróprios’” (Jornal do Brasil, 3/5/1984).
111
Sobre o processo de implantação do camelódromo da Uruguaiana, cf. capítulo 2.

106
emprego que não oferece as condições de sustento desejadas. Procuram uma “liberdade” de

movimento e de uso de seu tempo que deve ser compreendida num contexto de tensão entre

um trabalho que toma todo o seu dia — por exemplo, no interior de uma lanchonete — e

um salário que não sustenta suas aspirações de consumo, mas que, ao mesmo tempo, não o

estigmatiza como desviante e oferece garantias jurídico-institucionais, através da “carteira

assinada”. Num diálogo entre Roberto, Adriano e Jéferson,112 esse dilema ficou claro.

Roberto, que já se sentiu um “McEscravo”, tem opinião formada sobre o que é ter um

emprego. Jéferson não se vê como camelô, apesar de reconhecer que a rua lhe oferece mais

retorno financeiro. Adriano, por sua vez, sintetiza as duas opiniões, quando contemporiza

“deixa o cara; se arrumar um emprego ele sai dessa pedreira” e, logo em seguida, diz que se

sente obrigado a ser camelô e a agüentar essa “pedreira”.

112
Cf. capítulo 3.

107
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ANEXOS

1. Camelôs da pista

111
112
2. Barracas.

113
3. Camelódromo da Uruguaiana.

Corredor interno da quadra D Praça da quadra C


.

114
Boxes Fim de tarde na quadra C

Boxes da quadra D voltados Bar da Raquel


para avenida Presidente Vargas

4. Vista aérea do Camelódromo da Uruguaiana

115
Quadras A, B e C

Quadras D e C e parte das quadras B e A

5. Rua Uruguaiana.

116
6. Guarda Municipal.

7. Saara

117
DECRETO "N" Nº 17931, DE 24 DE SETEMBRO DE 1999

Dispõe sobre procedimentos atinentes à desobstrução dos bens públicos municipais.


O PREFEITO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, no uso de suas atribuições legais, tendo em
vista o que consta do processo administrativo nº 01/005.027/99,
CONSIDERANDO o disposto no artigo 30, inciso VII, alíneas "a" e "c", da Lei Orgânica do
Município, no que diz respeito às atribuições dos guardas municipais;
CONSIDERANDO a ocupação ilegal dos bens públicos municipais, o que impede o livre trânsito de
pedestres,
DECRETA:
Art. 1º Fica a Guarda Municipal responsável pela desobstrução dos bens públicos municipais, de
forma a impedir a má utilização dos mesmos.
Art. 2º Para proceder ao desimpedimento a que se refere o artigo 1º, a Guarda Municipal poderá
recolher mercadorias que estejam ocupando indevidamente os bens públicos municipais.
Art. 3º No momento da retenção de mercadorias, a Guarda Municipal deverá preencher um termo,
a ser definido em resolução do Superintendente da Guarda Municipal.
Art. 4º As mercadorias recolhidas deverão ser encaminhadas imediatamente ao órgão competente
da Prefeitura para efetuar os autos de apreensão e infração.
Art. 5º Este Decreto entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em
contrário.
Rio de Janeiro, 24 de setembro de 1999 - 435º ano da fundação da Cidade
LUIZ PAULO FERNANDEZ CONDE
D.O. RIO 27/9/1999.

Fonte: Portal da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro: http://www.rio.rj.gov.br/.

118
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(camels no Centro do Rio de Janeiro )
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(Patrcia Delgado Mafra )
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