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A Pista e o Camelódromo
A Pista e o Camelódromo
Museu Nacional
A “PISTA” E O “CAMELÓDROMO”
CAMELÔS NO CENTRO DO RIO DE JANEIRO
Rio de Janeiro
2005
A “PISTA” E O “CAMELÓDROMO”
CAMELÔS NO CENTRO DO RIO DE JANEIRO
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2005
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A “PISTA” E O “CAMELÓDROMO”
CAMELÔS NO CENTRO DO RIO DE JANEIRO
Aprovada por:
_____________________________
Presidente, Prof. Dr. Gilberto Cardoso Alves Velho.
______________________________
Prof. Yonne de Freitas Leite
______________________________
Prof. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2005
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À Helena e Maíra
4
AGRADECIMENTOS
Nos últimos dois anos tive o privilégio de ter como meu orientador de mestrado o Prof.
Gilberto Velho, sempre muito atencioso e disposto a incentivar-me. Além da gentileza e
carinho, deu crédito e apoio às minhas idéias. Sua dedicada orientação foi o que de melhor
poderia receber. Ele sabe o quanto o considero, mas ainda assim, muito obrigada.
Ao Prof. Marco Antonio da Silva Mello, meu ex-professor, agradeço por ter me
apresentado, ainda na graduação, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ,
trabalhos e pesquisas que me despertaram para o estudo da cultura popular urbana. Através
da sua pessoa agradeço também ao Nufep – Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas da
Universidade Federal Fluminense, pela oportunidade de diálogo que me ofereceu, no início
do curso de mestrado, ao me convidar para participar dos seminários e reuniões com o
grupo de pesquisa “Cidades & Mercados”. A todos do grupo agradeço sinceramente.
5
Hércules Quintanilha, tem sido um amigo inigualável. Agradeço pelos livros emprestados,
leituras compartilhadas e por sua contagiante paixão pela cidade do Rio de Janeiro. Um
grande abraço.
Minha família, como sempre, me deu muito carinho. Helena Delgado, minha mãe foi, como
sempre, simplesmente fantástica. Ajudou-me a cuidar de minha filha e de minha casa.
Muito obrigada por tanto amor e dedicação. Sem sua força e encorajamento essa
dissertação não existiria. Everaldo Costa, meu bravo companheiro, sempre acreditou nos
meus sonhos e, desde o início do mestrado, neste projeto. Acompanhou todo o processo
com muita compreensão e solidariedade. Maíra Mafra, minha filha, se mostrou muito
amiga e compreensiva às minhas ausências. Uma pessoa realmente muito especial.
Obrigada por fazerem parte da minha vida.
Finalmente, deixo aqui registrada a minha gratidão a todos os camelôs que gentilmente
colaboraram para a realização dessa pesquisa. A todos muito obrigada.
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Mafra, Patrícia Delgado.
A “pista” e o “camelódromo” – Camelôs no Centro do Rio de Janeiro/ Patrícia Delgado
Mafra – Rio de Janeiro: UFRJ/ Museu Nacional, 2005
x, 106f.: il.; 31cm.
Orientador: Gilberto Cardoso Alves Velho.
Dissertação (mestrado) – UFRJ/ Museu Nacional/ Programa de Pós-graduação em
Antropologia Social, 2005.
Referências Bibliográficas: f. 97-99.
1.Antropologia Urbana. 2. Cidade do Rio de Janeiro. 3. Camelôs. 4. Carreiras na
camelotagem. I. Velho, Gilberto Cardoso Alves. II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-graduação em Antropologia Social. III. A
“pista” e o “camelódromo” – Camelôs no Centro do Rio de Janeiro.
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A “PISTA” E O “CAMELÓDROMO”
CAMELÔS NO CENTRO DO RIO DE JANEIRO
Esta dissertação é fruto da pesquisa que desenvolvi junto aos camelôs nos anos
2003 e 2004. Nesta etnografia apresento o universo da camelotagem, tal como é praticada
no Centro da cidade do Rio de Janeiro. Para tanto, descrevo o cotidiano dos camelôs no
Centro, explicitando as situações vivenciadas por eles nas três possibilidades de exercício
dessa ocupação – na pista, no camelódromo e nas barracas. Através de oito personagens,
cujas trajetórias são paradigmáticas, aponto as possíveis carreiras que podem ser
desenvolvidas na camelotagem carioca.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2005
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A “PISTA” E O “CAMELÓDROMO”
CAMELÔS NO CENTRO DO RIO DE JANEIRO
This dissertation is product of the research done with street vendors in the years
2003 e 2004. In this ethnography I present the street vendors universe, as it is praticed in
Rio de Janeiro’s downtown. Therefore, I describe their day-by-day in downtown,
explaining the activities that they experience into the three possibilities of praticing this
occupation – in the street (pista), in the market (camelódromo) and at the stands (barracas).
Through eight characters, whose trajectories are paradigmatics, I point out the possible
careers that can be developed in the Rio de Janeiro’s street vendors scene.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2005
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ÍNDICE
INTRODUÇÃO .................................................................................1
CAPÍTULO 1
A rua Uruguaiana e a cidade ........................................................10
CAPÍTULO 2
O cotidiano dos camelôs no Centro do Rio de Janeiro .............34
CAPÍTULO 3
Carreiras na camelotagem carioca ...............................................76
ANEXOS ........................................................................................100
10
INTRODUÇÃO
Na cidade do Rio de Janeiro, em todo e qualquer lugar onde circule ou para onde
convirja uma grande quantidade de pessoas — seja nas ruas, nos sinais de trânsito, no
interior dos transportes coletivos, nas saídas das estações de metrô, nos terminais de ônibus
ou nas beiradas das feiras livres —, os camelôs estão presentes, oferecendo diversos tipos
proximidade que os tornava muito familiares nos meus percursos como carioca e moradora
rua com outro olhar. Um olhar já prevenido por certas leituras que me permitiram constatar
que, na experiência urbana, o anonimato e a distância são tão fortes e marcantes quanto a
contrário, mostra que, por não fazermos parte de um grupo exclusivo, é possível haver
pesquisa ainda mais desafiadora. Resolvi começar pela percepção dessa diversidade,
11
caminhadas diárias pelo Centro do Rio, procurando conversar e estabelecer contato com os
Saara1 são referenciais evidentes para os vendedores com os quais conversei. As ruas que
compõem essa área, com suas praças, patrimônios da arquitetura urbana, instituições
públicas, galerias comerciais, lojas, escritórios, bancos etc., criam um setting privilegiado
para a atuação dos camelôs, que ora circulam pelas ruas ou fixam-se nas esquinas e ao
Passos, Presidente Vargas e Rio Branco, e ao Largo da Carioca, abrangendo uma área
quadras e corredores, tentando apreender seu ritmo diário, seu colorido e toda a sua
camelódromo, num “canto” peculiar que conjugava um bar, o salão, um boxe de jogos
vendem nas ruas adquirem suas mercadorias. Como cliente, utilizava os serviços de
manicuro e, aos poucos, fui deixando claro o meu interesse.2 No início, eu ia ao salão
1
Sociedade dos Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega.
2
Chamo a atenção para o fato de ter sido proibida a prestação de serviços de barbearia, cabeleireiro,
manicuro e pedicuro no camelódromo logo após o término da pesquisa.
12
Nesse canto, todos se conhecem: a dona do bar, as moças que trabalham no salão, os
donos dos boxes atacadistas, o rapaz que toma conta do boxe de jogos eletrônicos, o
vendem nas ruas e que fazem do camelódromo seu ponto de apoio no Centro da cidade. Em
brincadeira e jocosidade se instala no ambiente. Passei várias tardes e noites entre eles,
participando dessas conversas, e as relações que estabeleci ali me inseriram numa rede de
por volta das nove horas da manhã e resolvi me sentar num dos bancos localizados no largo
que fica na quadra C. Um rapaz, com uma prancheta e uma caneta na mão, sentou-se ao
meu lado e pediu para dar uma olhada no caderno de esportes do jornal que eu estava lendo.
A partir daí, começamos a conversar sobre algumas notícias. Enquanto isso, diversos
bloco preso na prancheta. Esse movimento se repetiu inúmeras vezes. Ao ser perguntado
sobre o que estava anotando, ele me respondeu que estava marcando o horário de chegada
do pessoal que trabalha para ele “na pista”. Indaguei: “Na pista?” E ele: “É, na rua, aí fora
Essa breve conversa revelou que a camelotagem pode ser desempenhada “na pista”
e/ou “no camelódromo”. Por evocar uma divisão nativa desse universo, recuperei essas
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desempenham suas atividades diariamente. Assim, identifiquei o camelô do
camelô: aquele que dispõe de barraca de ferro e lona, e se fixa ao longo de determinadas
calçadas. Apesar de estarem fora do camelódromo, esses camelôs não estão na pista. Sendo
assim, pode-se dizer que há três situações gerais nas quais a camelotagem carioca se
camelódromo, mas também na pista, uma série de eventos importantes para a compreensão
desse universo. Batidas policiais, dentro e fora do camelódromo, para reprimir o comércio
acontecimentos que pude acompanhar. Realizei poucas entrevistas formais; preferi deixar
seus dramas, fofocas e afazeres diários. Dessa forma, consegui depoimentos relevantes
importância fundamental na vida dos sujeitos pesquisados. O Centro do Rio surge também
nos discursos dos camelôs como uma categoria significativa, sendo considerado um local
que oferece muitas oportunidades. Frases como “o Centro é onde tudo acontece” e “é aqui
[no Centro] que tá a grana” revelam suas percepções sobre os lugares e os seus percursos na
cidade. O fato de a camelotagem ser praticada no Centro de uma cidade como o Rio de
Janeiro abre, para os atores sociais nela envolvidos, possibilidades únicas de interação. Isso
nos obriga a uma série de reflexões sobre a rua, a cidade e os estilos de vida urbanos.
14
A cidade como plano de reflexão antropológica
populacional, por si só, não as diferencia de outros tipos de sociedade complexa, mas
cidade metropolitana, portanto, se coloca como o lócus das realizações desse tipo de
sociedade.
a cidade metropolitana. A partir de meados do século XIX, a região dos Grandes Lagos
histórico dos Estados Unidos, em que o sistema capitalista se fortaleceu após a Guerra Civil
Americana, Chicago foi uma das cidades que mais cresceu em população e densidade,
dos migrantes nacionais, como negros ex-escravos e pessoas do sul do país. Esse fluxo
15
colombianos, porto-riquenhos e caribenhos. Mais recentemente, portugueses e brasileiros
cidade rica e desordenada, que enfrentava uma série de problemas sociais ligados à
universidade, transformando-a num importante centro de pesquisas nessa área (cf. Becker,
1996).
tomou a cidade como tema de pesquisa das ciências sociais e elaborou métodos orientados
para uma investigação qualitativa que valorizava a pesquisa empírica, o trabalho de campo
considerada ainda hoje referencial teórico para a compreensão de fenômenos que têm a
Na Berlim do início do século XX, Georg Simmel (1967 [1903]), autor que lhes
domínios, que dão contornos particulares à vida psicológica individual. Na sua perspectiva,
3
Notas de aula. Curso de Antropologia Urbana, professor Gilberto Velho, 1º semestre de 2004,
PPGAS/MN/UFRJ.
16
subjetividades e o desejo de expressão dos indivíduos nessa realidade. A vida na metrópole,
produzida.
Robert E. Park (1967 [1916]), num célebre artigo, mostrou que a cidade é um
laboratório para a investigação da vida social e sugeriu uma série de tópicos de pesquisa,
muitos dos quais foram empreendidos por seus alunos. A mobilidade física e social das
pessoas e a questão dos fluxos são percebidas como problemas interessantes para a
compreensão do fenômeno da cidade vivido por ele no início do século XX, em plena
Chicago. Muito mais que um ambiente físico, para ele, a cidade é a expressão da natureza
A questão dos “tipos vocacionais”, indicada por Park nesse artigo, chama a atenção
para uma definição interessante: “A cidade antiga era principalmente uma fortaleza, um
uma conveniência de comércio e deve sua existência à praça do mercado em volta da qual
profissão sob condições citadinas, ou seja, há, na cidade, uma tendência explícita de
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específica (cf. Park, 1967 [1916]: 41). Park enfatiza, deste modo, que os “talentos
mundo social estabelecido. Segundo Park (1967 [1916]: 42), “cada um, com sua
1970. Das comunidades faveladas às classes médias, foram estudados temas como consumo
antropologia brasileira.5 Antes, porém, na obra de Gilberto Freyre, nos anos 1930, já se
onde, entre outros pontos, a temática da “rua”, central para este trabalho, é analisada.
Centro para a cidade do Rio de Janeiro e, especificamente, para a camelotagem. Para tanto,
rua Uruguaiana com relação a outros logradouros do bairro. Essa rua aparece, nos registros
de cronistas de tempos passados, como o local onde “acaba a cidade”. Hoje, nos noticiários,
4
Essas idéias serão retomadas no capítulo 3, em que discutirei as carreiras na camelotagem a partir
das noções de Everett Hughes e Howard Becker — pesquisadores pertencentes a duas gerações
subseqüentes à de Robert Park.
5
Cf. a produção de Gilberto Velho, sobretudo a partir de A utopia urbana (1989 [1973]) e de
Nobres e anjos (1998) — originalmente tese de doutoramento defendida na USP, em 1975. Ver
também, entre outros, Zaluar (1985), Vianna (1988) e Cavalcanti (1995).
18
não é muito diferente: a rua Uruguaiana aparece como a arena do confronto entre camelôs e
camelotagem, tal como é praticada nessa área do Centro. Em seguida, procuro explicitar as
situações vivenciadas pelos camelôs nas três possibilidades de exercício dessa ocupação: na
Uma temática recorrente nas conversas dos camelôs é a questão do seu trabalho e
portanto, num exercício de análise das percepções que os camelôs desenvolvem sobre a
atividade que realizam e do modo como essas percepções são articuladas no todo de sua
19
CAPÍTULO 1
central e faz dela passagem obrigatória para grande parte da população da cidade. Parte
dessa rua é destinada somente aos pedestres. Os passantes esbarram-se por toda a sua
extensão, tomada por religiosos que pregam em altos brados, por artesãos que manipulam
seus artigos e por artistas de rua que fazem brincadeiras. Pedintes, engraxates e panfleteiros
segunda a sexta-feira, no horário comercial, suas imediações são tomadas por uma intensa
mapa do Centro.
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O Centro
peculiaridade de comportar boa parte do maquinário que move toda a cidade — é o lugar
onde está sediada grande parte das empresas nacionais e multinacionais, das instituições
City que, nas palavras de Max Weber (1967 [1921]), vem a ser um bairro quase
exclusivamente de negócios.6
cercado por estratos urbanos periféricos cada vez mais carentes de serviços e de infra-
populações de baixa renda” (Abreu, 1997: 17). A cidade do Rio “está dividida em quatro
faixas de limites imprecisos mas que pelas características do espaço e face ao desenho da
concêntricas” (Abreu, 1997: 17). O “núcleo” é composto pela área comercial e financeira
6
Entre os bairros cariocas, alguns desenvolveram áreas centrais importantes, concentrando setores
de comércio e serviços. Tijuca, Méier, Madureira (na Zona Norte), Catete, Botafogo, Copacabana e
Ipanema (na Zona Sul) são os exemplos mais significativos.
21
central: o core histórico da cidade — o que é considerado o Centro do Rio — e suas
expansões em direção à orla oceânica (Zona Sul) e ao interior (Zona Norte), cujos limites
são os bairros da Tijuca, de Vila Isabel, de São Cristóvão e do Caju, o Centro de Niterói e a
sua Zona Sul. Por falta de uma distribuição equânime dos recursos geradores de infra-
periferia da cidade, o núcleo se tornou o lugar por excelência da busca por recursos e de
acesso ao mercado de trabalho, à moradia, ao lazer e à sociabilidade (cf. Abreu, 1997: 18).
No Rio de Janeiro, essa divisão desigual dos recursos também ocorre, em algum
hierarquia simbólica do espaço organizada pela oposição entre Zona Sul e Zona Norte. A
Norte e aos diferentes subúrbios foi atribuída uma conotação moral de natureza mais
tradicional e conservadora. Segundo Heilborn (1999: 101), “tal associação sempre esteve
Ipanema, bairros da Zona Sul, por exemplo, não existem camelódromos; a maior parte dos
camelôs não tem autorização da Prefeitura e costuma ficar ao longo das calçadas da avenida
aramados dos camelôs nessas imediações não são muito diferentes dos que são oferecidos
7
Cf. capítulo 2, seção “Camelódromos na cidade”. Nota-se que os primeiros camelódromos foram
instalados na Zona Norte e nas áreas suburbanas da cidade.
22
no Centro. Ocasionalmente, encontram-se artigos voltados para turistas. Em Ipanema, a
presença dos camelôs é mais dispersa e, entre as mercadorias expostas, algumas são mais
Outros locais da Zona Sul que são importantes para a camelotagem da cidade são o
Catete e o Largo do Machado. Ali, há barracas de ferro e lona instaladas nas ruas
transversais e, nos dias de semana e nos sábados, após as 18 horas, ou nos domingos e
que armam seus “pára-quedas” no chão das calçadas, formando um extenso mercado. Em
sem autorização da Prefeitura, nas entradas dos dois shoppings existentes no bairro.
Na Zona Norte, nos bairros da Tijuca, Méier e Madureira, a presença dos camelôs é
nas calçadas sem autorização, principalmente na Praça Saens Pena. Em Madureira, eles
camelôs entre essas áreas da cidade. Porém, em certas situações, pode haver deslocamentos
com mais freqüência, como nos casos mais ofensivos de repressão num determinado local,
quando os camelôs migram para outros bairros da cidade. É mais comum ocorrer afluxo de
O Centro se diferencia dos demais bairros, entre outras razões, por ser aglutinador
das funções administrativas, políticas e econômicas da cidade. Talvez não seja à toa que, na
fala corrente do carioca, o Centro se confunde com “a cidade”, não só por ser o core de sua
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evolução urbana, mas também por ser o local onde se realizou e concentrou, a partir do
século XIX, e mais intensamente após o início do século XX, um projeto de cidade e de
nação. O Rio de Janeiro foi capital do país durante muito tempo, constituindo-se em
modelo urbano para as demais cidades brasileiras, e o Centro é uma de suas vitrines.
do início do século XX, com as obras realizadas sob o comando do prefeito Pereira Passos,
8
As famílias mais pobres migraram para as áreas que se organizam em torno da Praça Cruz
Vermelha, do bairro de Fátima e da Lapa, nos morros do Pinto, da Providência e da Conceição, ou
24
reformas urbanísticas, atingiu níveis insuportáveis para as camadas mais modestas da
modelo adotado para a cidade, chegando a passar, na década de 1980, por um suposto
função dos roubos freqüentes aos pedestres e de sua ocupação — especialmente da rua
basicamente por camelôs, mendigos, ambulantes e crianças que, sozinhas ou com suas
famílias, tinham passado a morar nas ruas e praças do bairro (cf. Carvalho, 1997).
No início dos anos 1980, a Prefeitura Municipal, com o objetivo de recuperar sua
identidade cultural, considerada ameaçada, lançou o projeto Corredor Cultural, para atuar
Rio (cf. Carvalho, 1997). No início dos anos 1990, a região da Uruguaiana era identificada
A proposta de estudo da cidade elaborada por Park (1967 [1916]) coloca, entre
outras questões, o problema da identidade dos lugares. O sentido de região moral está
associado aos encontros de semelhantes nos mesmos lugares ou eventos. Não se trata,
para o interior da cidade. As outras migraram para áreas mais valorizadas, como os bairros da
Glória, Catete e Botafogo.
9
Cf. capítulo 2, seção “Camelódromos na cidade”.
25
necessariamente, de um local fisicamente delimitado, e sim de pontos caracterizados pelo
encontro de determinados sujeitos com interesses comuns. Uma observação mais detalhada
do Centro do Rio permite identificar regiões morais demarcadas a partir dos traçados da rua
Uruguaiana, da avenida Rio Branco e da avenida Presidente Vargas. Embora não se possa
dizer que existam fronteiras rígidas entre essas áreas, pois o trânsito entre elas é fluido e
ocupacionais, estilos de vida e freqüência em cada uma delas, em função dos setores de
atividades ali localizados, de seus referenciais urbanísticos e dos usos atribuídos ao lugar
pela população.10
Gambôa, Cidade Nova, Santa Teresa e Glória. O Centro possui 5,67 Km² e tem duas
artérias principais: a avenida Rio Branco e a avenida Presidente Vargas. Uma grande
quantidade de vias corta essas avenidas, constituindo o traçado básico do bairro, com suas
Para se ter uma idéia do volume e intensidade do fluxo que imprime ritmo ao lugar,
ônibus e “vans”, por onde desembarcam pessoas vindas de diferentes localidades da cidade,
do grande Rio de Janeiro e até mesmo de outras cidades brasileiras. Isso evidencia a
10
Sobre a noção de região moral cf., por exemplo, os trabalhos de Heilborn (1999) e Kuschnir
(1999).
11
Estações de metrô – recebem o seguinte fluxo diário de pessoas: Cinelândia, 50 mil; Carioca, 82
mil; Uruguaiana, 65 mil; Presidente Vargas, 17 mil; Central, 42 mil. Fonte:
http://www.metrorio.com.br/Estações.
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Internamente, o Centro possui uma organização composta pelas seguintes áreas:
Praça XV, Esplanada do Castelo, Cinelândia, Lapa, Praça Cruz Vermelha, Largo da
Carioca, Largo de São Francisco, Praça Tiradentes, Campo de Santana, Praça Onze, Central
e Praça Mauá.
Polícia Federal, a Alfândega, o Cais do Porto e inúmeros hotéis e boates voltados para um
Praça Mauá, que é conhecida como reduto de “inferninhos”, está fortemente associada à
prostituição. A maior parte dos camelôs ali localizados instala-se em barracas e concentra-
27
para a consecução de passaportes e vistos junto aos consulados e à Polícia Federal. Na
souvenirs, cangas e toalhas de praia estampadas com motivos “brasileiros”. Como quase
todas as praças do Centro do Rio, a Praça Mauá era, originalmente, um grande alagadiço
que recebia as águas de uma lagoa situada onde hoje fica o Largo da Carioca. As águas
eram trazidas por um córrego, que deu origem ao desenho da atual rua Uruguaiana (cf.
Gerson, 2000).
várias ruas transversais, ao longo de quase dois mil metros de extensão. Por trás de seu lado
possui também uma característica peculiar no mapa do Centro. A Praça XV, pátio surgido
da necessidade do encontro da cidade com o mar, antes de ganhar esse nome, em memória
à data da Proclamação da República, era chamada de Largo do Paço. Nas suas imediações,
entre outros estabelecimentos, estão situados a Bolsa de Valores, a Estação das Barcas, a
reúne a igreja de Nossa Senhora da Ordem Terceira do Carmo, o antigo convento do Carmo
e a igreja São José, entre outros, indicam que essa área foi o epicentro da vida econômica,
12
O Arco do Teles consiste em ruelas estreitas que, no final do século XIX, eram contíguas ao
mercado da Candelária, um dos primeiros mercados da cidade. Possui prédios de fachadas
preservadas que, atualmente, abrigam bares e restaurantes freqüentados todo final de tarde, ao fim
do expediente dos escritórios. É conhecido, entre os trabalhadores de diversas ocupações, como o
lugar onde acontece uma das happy hours mais animadas do Centro. O Paço Imperial é um
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A Esplanada do Castelo, área contígua à Praça XV, é conhecida por reunir
uma área ensolarada do Centro, bem próxima ao mar, formada por calçadas amplas e
avenidas monumentais. Essa área surgiu na década de 1920, no lugar do morro do Castelo,
núcleo original da colônia. O desmonte, que botou abaixo parte da história da cidade com o
uma grande esplanada que, ao longo da década de 1930, se expandiu sob a inspiração e o
Aeroporto Santos Dumont. Essa região, que engloba a Praça XV e o Castelo, concentra
transversais à avenida Rio Branco. Nas suas ruas internas, há camelôs instalados em
barracas. Entre outros passantes, tipos ocupacionais que provavelmente exercem cargos de
prestigiado centro cultural da cidade: além das salas que servem a exposições, peças de teatro e
seminários, o Paço tem cinema, livraria, cafeteria e biblioteca. Construído em 1743 para ser a casa
dos governadores, tornou-se palácio dos vice-reis quando a cidade foi elevada a capital da colônia.
A partir de 1808, serviu à família real portuguesa, que o transformou em Paço Real, tornando-o em
1815 a sede administrativa do Reino Unido de Portugal Brasil e Algarve. Para mais informações
sobre a história desses lugares, cf. Edmundo (1938) e Coaracy (1988).
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alto e médio escalão em instituições e empresas importantes podem ser identificados nos
restaurantes, nas charutarias e nos cafés. Também é possível vê-los entrando em táxis,
aquisitivo dos passantes. Isso se reflete nos tipos de mercadoria oferecidos pelos camelôs
das barracas e por alguns da pista, tais como imitações de canetas da marca Mont Blanc,
Câmara Municipal — e a sede do tradicional Cordão do Bola Preta formam uma moldura
bandeiras e outros artigos. Essa praça abriga também “meninos de rua”, que fazem dela um
de seus lugares na cidade. Os camelôs dessa área, assim como os do Castelo, não ficam nas
13
Sobre formas de ocupação dos espaços públicos da cidade do Rio de Janeiro, ver, por exemplo, os
trabalhos de Carvalho (1997) e Travassos (1995).
30
calçadas. É forte a presença de hippies confeccionando artesanato ao longo da rua Joaquim
Silva, nas noites de quinta e sexta-feira, e de camelôs servindo doses de uísque com bebida
mercadorias variam desde frutas, verduras, ervas, farinhas e queijos do Nordeste, até
cidade numa permanente situação de espetáculo. O fluxo intenso de passantes faz dele um
em torno do qual formam-se “rodas” de espectadores (Carvalho, 1997). Vale destacar que a
tem afugentado os espetáculos, que vêm se irradiando para a alameda central da rua
Uruguaiana. O Largo da Carioca se insere nessa divisão moral do bairro como uma espécie
de umbral para a rua Uruguaiana. É uma região considerada “perigosa” ou até mesmo
Rio.
suas principais ruas e avenidas transversais e paralelas, como Presidente Vargas, Rio
Branco, Sete de Setembro, Ouvidor, Rosário, Buenos Aires e Alfândega. Além de serem
31
públicas, as imediações da rua Uruguaiana são citadas como o lugar referencial da
camelotagem no Centro, não só por se encontrarem em intensa densidade, mas também por
de lojas conhecido como “rua da Alfândega” ou Saara14 — e compõe uma área do Centro
a serviço dos camelôs e de guardas municipais revela uma atmosfera de violência latente e
marroquinos descritos por Clifford Geertz (1979), uma espécie de fear of nefra adeja toda a
área.15 A qualquer momento, todos sabem, pode acontecer um confronto entre camelôs e
violência que não revele ainda mais a sua iminência. Mesmo aqueles que nunca viram de
perto uma contenda envolvendo guardas e camelôs sabem da sua possibilidade. A imprensa
14
Trata-se de um complexo de 11 ruas que recebe diariamente um fluxo de milhares de pessoas.
Fundada em 1962 pelos comerciantes da região, tornou-se de tal maneira popular que passou a
identificar todo esse trecho do centro do Rio. Para saber mais sobre a Saara, cf. Ribeiro (2000) e
Worcman (2000).
15
“In the marketplace, where individuals from all sorts of back-ground, with all sorts of loyalties,
and possessed of all sorts of intentions meet in an atmosphere of hectic interaction, the possibility of
discord mounting to ‘explosion’ (...) is clearly much enhanced” (Geertz, 1979: 196).
16
A reportagem intitulada “Cuidado, você está no Centro” (Jornal do Brasil, 21/12/2003) é um
exemplo.
32
Antes mesmo de vir a ser uma rua, o traçado da Uruguaiana marcava o limite da
velha cidade, provavelmente porque havia ali um córrego que ligava o morro da Conceição
e o morro de Santo Antonio, dois dos quatro morros referenciais na formação da antiga área
urbana. Depois de uma tentativa de invasão francesa e da idéia mal sucedida de construir
muralhas entre os quatro morros, o córrego foi lajeado, e às suas margens criou-se uma via
de passagem, a que deram o nome de rua da Vala. Pouco a pouco, a população daquelas
imediações passou a utilizá-la para o despejo de lixo; era como uma “cloaca máxima”, nas
palavras do cronista Vivaldo Coaracy (1988). Para além da Vala, iniciava-se a área rural,
igreja do Rosário, “um templo levantado à beira da fossa” (Coaracy, 1988: 112). Mesmo
depois de um incêndio, a igreja continuou no mesmo lugar, sendo hoje contígua à quadra A
Largo da Carioca já era marcado por “agitados episódios protagonizados por uma legião de
pobres que perambulavam pelas ruas” e por alguns tipos elegantes da alta sociedade carioca
(Carvalho, 1997: 28). A diversidade, já bastante evidente nesse largo, se refletia no intenso
movimento de pedestres, que atraía para lá as “pequenas profissões”, como bem denominou
engraxates, cada qual a apregoar em altos brados o que lhe traz dinheiro”, as “turcas
Uruguaiana, fala-se de um Rio de Janeiro bas-fond. Uma cidade suja, mas pitoresca, com
33
uma estrutura urbana velha e ultrapassada, de valas e pontes toscas, ruas estreitas e
sobrados coloniais infectos, por onde circula uma “gentalha, alvoroçada e suja”, cujos
virada do século, extirpados. Afinal, essa era a cidade que Pereira Passos, então prefeito,
desejava modernizar (Edmundo, 1938: 142). As pessoas que ali circulavam aparecem
nesses relatos como objeto de encanto e, ao mesmo tempo, de repugnância (cf. Carvalho,
1997: 31). Os cronistas dedicam-lhes amplos espaços em suas notas sobre o Rio de Janeiro,
interessante notar o que Luiz Edmundo pensa, por exemplo, sobre os quiosques daquela
época. Para ele, os quiosques são como “monstros” e constituem um “insulto” ao “sopro
tropical da Paris reformada por Haussmann, baixou várias posturas que interferiram no
loteria, que, por toda parte, perseguiam a população, incomodando-a com a infernal
34
Com seu projeto político, Pereira Passos procurava criar um novo espaço urbano e
um novo modo de viver, ambos centrados no que ele entendia por “civilizar”. Nesse
mais marcantes desse processo foi a transformação dos papéis da casa e da rua, que se
tornaram esferas separadas e até “inimigas”. A casa deveria ser o local das trocas íntimas,
da família, do privado, em contraposição à rua, que passaria a ser o local das trocas
[1936]).
etc. continuaram por toda parte com seus pregões, súplicas e acrobacias. Tais indivíduos
movimentadas, como a rua Uruguaiana. Pode-se dizer que o que caracteriza o ethos (cf.
Geertz, 1989) dessas pessoas é justamente o que se entende por “cultura da rua”, ou seja,
uma visão de mundo que teria como traço marcante a opção pela liberdade, pela mobilidade
e pelo anonimato. A escolha da “rua” e da “liberdade”, porém, deve ser entendida dentro de
um contexto específico, pois não se trata de algo puramente interno, subjetivo. Essa opção é
[1981]: 27).
35
se apresenta — como uma alternativa de trabalho e de consumo. Ser camelô nos dias de
hoje é, portanto, uma escolha que deve ser entendida nesse contexto de crise.17
Entre o vaivém dos passantes, nas ruas estreitas das imediações da Uruguaiana, os
ausência da Guarda Municipal. Apreensivos, querem expor a todo custo o que trazem para
certo nervosismo, apregoam suas ofertas em meio aos passantes, até ser dado o alerta da
A ação da guarda, pelo que pude observar, segue uma lógica que varia de acordo
como um todo: do ápice no Natal, passando pelos ciclos promovidos pelo “dia de
pagamento”, até a sexta-feira, que celebra o fim da semana de trabalho. Essas ocasiões
dinamizam as compras e geram uma maior incidência de investidas da guarda nos locais
mais movimentados.
A maior parte das investidas da guarda não gera grandes confrontos; os vendedores
conseguem escapar, pois seus sistemas de comunicação muitas vezes impedem que sejam
17
Cf. capítulo 3.
18
Normalmente, o alerta é dado, por meio de radiotransmissores, para alguns camelôs, que avisam
os demais. Uma outra forma de alertar sobre a chegada dos fiscais, da polícia ou da Guarda
Municipal é a utilização de fogos de artifício. Mas, o mais comum dos alertas é mesmo o grito: “Ó
o rapa!”
36
pegos. Essas situações foram cotidianizadas pelos próprios camelôs e guardas, que
passaram a chamá-las de “gato e rato”. A maneira como a guarda exerce seu poder pode ser
campo, pude notar que algumas ações de repressão realizadas pela Guarda Municipal são
fogem, se organizam, se munem de paus e pedras, e retornam momentos depois para uma
do camelódromo da Uruguaiana.
Foi numa dessas situações que conheci Adriano, um dos camelôs, cuja trajetória
camelódromo por volta das três horas da tarde. O movimento estava muito intenso no
camelódromo, o vento quente produzido pelos ventiladores não aplacava, de jeito nenhum,
o calor que estava fazendo. Boa parte dos homens estava sem camisa, principalmente os
mais jovens.
Todos já estavam tomando cerveja e, assim que cheguei, a cabeleireira fez questão de
19
Os nomes de alguns personagens tratados nesta etnografia são fictícios.
37
providenciar “um copinho” para mim. A fila no salão estava grande e era formada apenas
por homens, que aguardavam a sua vez no balcão do bar da Raquel. Três deles, enquanto
Enquanto fazia as unhas, pude observar tudo ao meu redor. Havia três homens mais
velhos, por volta dos cinqüenta anos, vestidos alinhadamente, com blusas de seda, um deles
com cordão e pulseira dourados e calça de linho, todos com sapatos limpíssimos. Mais
segurança do camelódromo estava sentado no local onde são lavados os cabelos dos
clientes. Ele havia acabado de recolher a taxa semanal dos comerciantes. Portava um maço
de notas de dinheiro na mão e aguardava a dona do salão chegar, para receber a parte dela.
Ao fundo, eu podia ver Raquel sentada no lado de dentro do balcão de seu bar,
fumando um cigarro e ouvindo a música altíssima que saía do seu aparelho de som,
meio à vozearia e à confusão de sons, era muito grande. No salão, a freqüência era de
Quando acabei de fazer as unhas, fui conversar com a Raquel no seu bar. De
repente, numa correria, várias pessoas adentraram o local. Alguns rapazes carregavam
sobressalto. Perguntei o que tinha acontecido, e eles me disseram que a Guarda Municipal
estava “partindo pra cima”. Eles, então, resolveram “relaxar” e tomar uma cerveja. Sentada
38
no balcão do bar em que eles começaram a beber, pude notar que eles chegaram um pouco
Eles deram seus mostruários para a dona do bar guardar e pediram uma cerveja.
Adriano, um dos rapazes, cujo nome eu ainda não conhecia, combinou com a manicura que
faria as unhas das mãos e aguardou sua vez no bar. Os rapazes começaram a conversar
as vendas do dia nesses momentos. Adriano respondeu: “Tem dia que, quando dá duas
horas da tarde, já consegui tirar mais de cem reais. Aí aproveito pra começar a me divertir.
Hoje vou ficar aí no pagode. Tu já viu como é isso aqui à noite? É muito bom... Fica
lotado! Hoje, então, que tá todo mundo com dinheiro, vai ser o bicho!”
Adriano estava se referindo à data especialíssima que era aquele dia: tratava-se de
uma “sexta-feira dia cinco”, isto é, além de ser sexta-feira, era o “quinto dia útil” do mês,
uma das datas em que se convencionou acertar pagamentos e receber salários, o que
obviamente dinamiza o comércio. Somava-se a isso o fato de que era mês de dezembro e,
muitos outros bares espalhados por todas as quadras. Os bares, em geral, se situam em
cantos e vãos sem saída, os quais, ao final do dia, se transformam em pequenos largos para
20
Os bares têm permissão para ficar abertos até as 22 horas, enquanto os demais boxes são
obrigados a fechar até as 20 horas. Esses limites, entretanto, podem ser negociados e estendidos em
algumas situações. O fato de uma loja de acessórios para celular, por exemplo, permanecer aberta
até as 22 horas está relacionado à sua localização próxima a um bar.
39
onde converge uma quantidade relativamente grande de pessoas. Nesse momento, entram
pista, comerciantes dos boxes vizinhos e pessoas da “associação”. Como há pouco espaço
para mesas, alguns deles bebem na entrada de seus próprios boxes, apoiando os copos em
seus balcões, dividindo a cerveja com um cliente ou amigo.21 Assim como Adriano, essas
pessoas passam o tempo todo combinando, com um e com outro, encontros “lá fora, mais
de isolamento é passado em volta de cada uma das quadras, para impedir a entrada de
torno de uma mesa, tocam sambas consagrados. Em outras barracas, novos hits das rádios
de pagode são emitidos de aparelhos de som precariamente instalados sobre fios que se
espalham pelo chão, quase sempre empoçado. As pessoas se divertem alegremente em volta
das mesas e em meio à fumaça das chapas de sanduíches e das churrasqueiras que assam
dos nomes que seus freqüentadores costumam, em tom de brincadeira, atribuir ao local:
“Camelódromo Grill”.
21
É muito comum um comerciante oferecer “um copinho” de cerveja ao cliente nesses momentos.
22
Como as mercadorias dos comerciantes ficam armazenadas nos próprios boxes, é preciso
controlar a área durante a noite.
40
O que me chamou a atenção, particularmente, foi a realização de festas de
aniversário de crianças ali na rua. Presenciei o aniversário de uma menina que estava
fazendo seis anos de idade. Enfeitaram a tenda da festa com balões coloridos e arrumaram a
comida. Inusitadamente, aquele lugar, que durante dia era palco de perseguições e tumultos
em virtude da repressão à ocupação da rua pelos camelôs, estava agora cheio de crianças,
os filhos dos camelôs, correndo e brincando ao redor das mesas ocupadas por seus pais, tios
e avós.
A rua Uruguaiana é freqüentada à noite por muitos camelôs da área e por suas
namoradas, noivas, mães, filhos, mulheres, tias e tios. Mas a rua também faz parte de um
circuito de happy hour do Centro do Rio, atraindo pessoas de camadas médias e populares
que trabalham no Centro e que elegeram esse lugar para celebrar o final de sua jornada de
desde biscateiros até funcionários públicos, passando por camelôs e secretárias, office-boys
mundo dos camelôs, é possível identificar uma seqüência nos confrontos e nas happy
hours, e verificar quem são os seus atores e quais são os locais onde eles se iniciam, se
espalham e terminam. Nesse sentido, quero sugerir que esses eventos são, de certa forma,
23
Sobre as formas de sociabilidade e de ocupação do espaço no interior da metrópole, cf. Frúgoli
(1989).
41
ritualizados e, portanto, implicam atitudes que demarcam um “sistema de contrastes”
próprio à construção do “espaço como coisa concreta e visível” (DaMatta, 1985: 29). Ou
seja, nesses eventos, o “tempo medido e quantificado é substituído por uma duração vivida
e concebida como emocional”. Não se fala mais em horas ou minutos, e sim naquele
momento em que “a guarda partiu pra cima”, por exemplo. Ocorre, portanto, uma mudança
no modo de conceber e medir a duração do tempo, como também se faz uma modificação
dos seus espaços concebidos como “privado” e “público”. À noite, a rua Uruguaiana se
refaz. Sem o controle do Estado através da Guarda Municipal, o tempo e o espaço adquirem
também uma linguagem da casa, da família, dos amigos e da festa, com a qual se celebram
luta, onde “cada um está por si”. Os significados da casa e da rua parecem, então, adquirir
concebidos dessa maneira, mencionada por Gilberto Freyre (1968 [1936]), tem um caráter
especial para Roberto DaMatta (1985: 47), segundo o qual esses espaços se reproduzem
mutuamente, pois “há espaços na rua que podem ser fechados ou apropriados por um
Em suma, o que estou sugerindo é que a rua Uruguaiana se configura num espaço
singular. Ela se assemelha aos locais transitórios citados por DaMatta (1985), “onde a
ambíguo”. Um espaço liminar, que, entretanto, faz “parte de uma estrutura social que
42
43
CAPÍTULO 2
Como foi visto, cada localidade tem seu fluxo e freqüência próprios, e se configura
utilizando-a da forma mais rendosa possível. Pode-se dizer que o uso dos espaços pela
camelotagem varia em função do ritmo dos fluxos e dos usos dos lugares da cidade. Nesse
sentido, para que se realize o trabalho do camelô, é fundamental que o ponto, a mercadoria
e o freguês se compatibilizem.
maior fluxo de pessoas. No caso dos camelôs, os pontos preferenciais são os terminais de
ônibus, os arredores das estações de trem e de metrô, as esquinas das ruas principais, as
carnavalescos, os shows na praia, as praças, ou qualquer lugar para onde convirja uma
O ponto
visto no capítulo anterior, esse bairro concentra a vida comercial, financeira, cultural e
política da cidade e, portanto, cria uma situação favorável à prática do comércio de rua.
Durante o dia inteiro, é forte a presença dos camelôs por toda a extensão do bairro, porém,
44
há pontos específicos que sobressaem nesse contexto. As imediações da rua Uruguaiana são
um dos locais do Centro bastante favoráveis à camelotagem. Esse potencial pode ser
identificado a partir da sua configuração no mapa do Centro da cidade, pois, nessa área, se
Uruguaiana. Tais espaços fazem dessa região uma área voltada para o comércio popular,
camelotagem carioca: na pista (nas ruas, sem ponto fixo), nas barracas (nas calçadas, com
ponto fixo) e no camelódromo (em boxes de alvenaria, com ponto fixo).26 A situação das
imediações da rua Uruguaiana é a seguinte: nas ruas que entremeiam a Saara, não há
camelôs; elas são destinadas apenas aos pedestres, suas lojas vendem artigos diversificados
no atacado e no varejo, e os espaços de suas calçadas são ocupados pelas bancas com as
Contíguo a esse extenso mercado, em torno das saídas da estação de metrô, fica o
alvenaria.28 Nas calçadas das ruas ao redor do camelódromo, mais precisamente em direção
24
O caráter de multiplicidade e de mistura de etnias, os sistemas próprios de abastecimento de
mercadorias e de segurança, a flexibilidade dos preços e a possibilidade de barganha são alguns dos
traços de um mercado com características de bazar, segundo Geertz (1979: 123).
25
Cf. capítulo 1, em que identifico uma organização moral do Centro e faço referência a outros
trabalhos sobre o bairro.
26
Essas maneiras de ocupar pontos, assim como o tipo de mercadoria comercializado, posicionam o
sujeito na carreira da camelotagem. Sobre essa reflexão, cf. capítulo 3.
27
Para mais detalhes sobre a Saara, cf. Ribeiro (2000).
28
Cf., neste capítulo, a seção “O camelódromo da Uruguaiana”.
45
pela Prefeitura, com barracas padronizadas, feitas de ferro e lona. Esses camelôs
autorizados, que se tornaram comerciantes com relativa estabilidade no uso do ponto, são
os chamados “barraqueiros”. Nessas mesmas ruas, há ainda forte presença dos camelôs da
pista.
A rua Uruguaiana e as ruas do seu entorno compõem um espaço que é visado pela
possível de vendas. Eles não utilizam barracas, e sim tabuleiros, mostruários aramados,
para as situações de fuga. Esses camelôs não possuem autorização da Prefeitura, e o único
empregado pelos camelôs com muita propriedade, eles realizam um circuito, como numa
Há duas maneiras de se obter um desses pontos, as quais são muito semelhantes aos modos
pontuação atingida, o candidato deve entrar numa fila de espera, pois estão suspensas as
concessões para o bairro do Centro.29 A outra maneira, mais utilizada, é fazer contato com
29
Para mais detalhes sobre os critérios de concessão e o número de camelôs em ponto fixo por
região administrativa, ver a Lei Municipal nº 1.867/92.
46
Um barraqueiro fixado nas imediações da Praça Cruz Vermelha me relatou que o
quantia semanal de 150 reais. Nesses casos, o camelô não tem uma autorização em seu
nome; porém, está incluído no acordo que nem a fiscalização nem a Guarda Municipal irão
impedi-lo de vender suas mercadorias no local, pois uma parcela do valor do aluguel
precisa armar sua barraca e transportar a mercadoria até ela diariamente. A grande maioria
regras das barracas na calçada: o candidato deve preencher os critérios elaborados pelo
poder público municipal e aguardar a concessão, que pode demorar muito tempo ou até
mesmo nunca sair.30 Ao conversar com d. Elzira, uma senhora que mantinha um boxe de
camelódromo da Uruguaiana, ela me disse que já havia tentado conseguir um ponto por
meio dos critérios de pontuação e da fila de espera. Sua solicitação não foi atendida, e ela
então resolveu alugar o ponto, tratando diretamente com a associação que administra o
camelódromo da Uruguaiana.
30
Em tese, somente a Prefeitura pode conceder os pontos aos camelôs já cadastrados, e a sua venda
é proibida. O interessado faz o cadastramento na Inspetoria de Licenciamento e Fiscalização, órgão
submetido à Coordenadoria (ambas amparadas pela Secretaria Municipal de Fazenda), e passa por
uma espécie de triagem, através do mecanismo de pontuação previsto pela Lei Municipal nº
1.876/92. Feito o cadastro, a licença dependerá diretamente do prefeito, que a concederá ou não
através da Secretaria Municipal de Governo.
47
Diversas vezes, tentei me aproximar das pessoas ligadas a essas associações, mas as
conversas não fluíam depois que elas ficavam sabendo que sou pesquisadora, até mesmo
quando eu me identificava como estudante. Não queriam dar qualquer tipo de informação
para aqueles que não fossem comerciantes querendo comprar ou alugar um dos pontos sob
seu controle. No caso das barracas, é muito difícil encontrar essas pessoas ou ao menos
Um dia, uma senhora que tem uma barraca próxima à Praça Cruz Vermelha me
mostrou quem era o senhor que “cuidava” das barracas. Dessa vez, mudei a estratégia e
que eu era uma pessoa interessada em alugar uma barraca, o senhor se prontificou a
informar como eu deveria proceder se quisesse ter uma. Não somente em razão da ética
profissional, mas também em virtude da natureza das questões que eu precisava colocar, era
importante que ele soubesse das minhas intenções. Assim que soube, porém, desconversou
associações também não foram bem-sucedidas. Nas ocasiões em que tentei me informar
controversas dos homens da associação e dos camelôs que me relataram sua entrada no
camelódromo. Muitos camelôs não estavam no mercado desde a sua inauguração, haviam
comprado seu boxe por mais de vinte mil reais e revelavam que “tudo é feito com a
associação”. Nas duas vezes que perguntei sobre o que fazer para conseguir um ponto na
48
Resolvi procurar a Prefeitura no endereço que eles mesmos me deram. Era o lugar
Prefeitura localizada na Cidade Nova. Para minha surpresa, ao chegar lá, fiquei sabendo
que o local “certo” era contíguo ao camelódromo, na divisa de uma das ruas pertencentes à
Saara, bem próximo à sede da associação que fica no final da quadra C do camelódromo, na
parte que dá para rua da Alfândega. O sobrado onde funciona a Inspetoria Regional de
Licenciamento e Fiscalização fica na rua Senhor dos Passos. Lá, obtive a informação de
que estavam fechadas as inscrições para o Centro, pois o prefeito assim tinha decidido.31
assisti à intensa rotatividade no uso dos boxes. Sendo assim, tudo leva a crer que há uma
rede de pessoas que liga as prerrogativas estatais de controle do uso das ruas pelos camelôs
a uma elite dentro da própria camelotagem, que controla os pontos nas áreas da cidade.
conquistar a confiança desses atores, de modo que eles contassem “a sua história”, a sua
“versão” dos fatos e, principalmente, a sua trajetória nesse universo. Tais dados seriam
preciosos, pois, de certa forma, podem ser considerados como referências nas possíveis
A mercadoria
venda. As mais freqüentes nas ruas do Centro são as falsificações de CDs de músicas,
31
De fato, o Poder Executivo tem a prerrogativa de suspender e conceder pontos no camelódromo e
nas calçadas, ou de criar camelódromos. Cf. Lei Municipal nº 1.876/92, Capítulo X, Artigo 44.
49
filmes e softwares, de relógios de pulso, de perfumes de grife francesa, de canetas e de
óculos, além de acessórios para telefones celulares, cintos, bolsas, carteiras, aparelhos de
No caso dos camelôs da pista, a exposição das mercadorias deve ser feita de forma
precisam escapar da repressão policial, pois a sua presença não é permitida nas ruas do
Centro. Dependendo do dia e do lugar, eles precisam se deslocar com freqüência, esperando
Normalmente, esses camelôs utilizam lonas estendidas pelo chão das calçadas,32
mercadorias em seus pescoços e braços.35 No caso dos CDs de software, o camelô expõe
dirige ao fornecedor, que está sempre por perto com a mercadoria estocada.
Segundo um camelô que vende cópias de CDs de música na rua dos Andradas, há
três tipos de acordo com o fornecedor. É possível comprar a mercadoria à vista, com
32
Essas lonas são chamadas de “pára-quedas” porque possuem cordões amarrados nas pontas, os
quais, ao serem puxados, “salvam” a mercadoria. Elas são usadas nas situações em que as batidas
policiais e fiscais são mais prováveis. Nelas, geralmente, são expostas roupas, brinquedos, carteiras,
bolsas e CDs.
33
Estruturas feitas de ripas de madeira, caixotes improvisados ou caixas de papelão, essas bancas
normalmente são usadas para expor canetas, pulseiras, bombons, bijuterias etc.
34
Os mostruários geralmente são usados para expor acessórios para celulares, óculos, fotocópias
das capas dos CDs de software e embalagens de DVDs e de CDs de música.
35
As mercadorias expostas dessa maneira são os colares, cordões para crachá, toalhas de mesa,
colchas, redes, guarda-chuvas, caixas ou saquinhos de balas e cartelas de aparelhos de barbear, entre
outros.
50
possibilidade de lucro de até cem por cento, ou pegar em consignação — pagando somente
o que for vendido — por comissão “meio a meio”. O camelô também pode levar a
No caso desse camelô que conversou comigo, o combinado foi ele receber 15 reais
Por me parecer menos vantajosa essa última alternativa, indaguei o motivo de sua escolha,
e ele respondeu: “Tenho compromisso em casa, não posso chegar sem dinheiro. Preciso ter
certeza do que vai entrar. Quando a gente divide o lucro, também tem que dividir o
acabou. Então perguntei: “E agora, você vai pra casa?” Ele respondeu: “Não, vou buscar
mais mercadoria. Tenho que cumprir horário. Hoje, só vou embora às oito”. Antes que ele
saísse, chegou um comprador que queria um determinado título. Como ele não tinha, pegou
com o vendedor ao lado e efetuou a venda. Em seguida, pediu a esse mesmo vendedor que
tomasse conta da sua banca por alguns minutos e saiu. Permaneci no local, de onde era
possível vê-lo entrando no camelódromo. Em menos de dez minutos, ele estava de volta.
O caso descrito remete a uma das maneiras de ser camelô na pista. A mercadoria é
obtida mediante um acordo em que o camelô, por não dispor de capital em espécie, oferece
troca uma quantia preestabelecida. Sendo assim, o fornecedor, em alguns casos, torna-se
36
Os CDs são vendidos por cinco reais a unidade, ou por dez reais três unidades. Esses camelôs
dispõem de um CD player com headphones, para o freguês testar a cópia.
51
previstas no Código Penal.37 Nesse sentido, o camelô que comercializa esses produtos
exerce uma atividade duplamente ilícita, o que o torna ainda mais exposto à repressão e à
extorsão policial.
Quando perguntei a esse vendedor o porquê de trabalhar com cópias de CDs, ele me
respondeu que não foi exatamente uma escolha, “foi por acaso”. Ele estava “parado” havia
quase um ano, depois de ter sido office-boy num escritório de advocacia. Viu um amigo
vendendo CDs no Centro e, como estava precisando trabalhar, pediu a ele informações
sobre como fazer para conseguir a mercadoria. No mesmo dia, conheceu o fornecedor, e
fizeram um acordo. Combinaram que ele chegaria no dia seguinte, por volta das nove horas
na pista”.38
Um outro camelô que entrevistei me informou que não trabalha com um único
artigo e que escolhe a mercadoria a ser comercializada quando chega no Centro. Perguntei
como ele consegue a mercadoria, e ele me disse que, se tem algum dinheiro, compra uma
pequena quantidade da mercadoria e sai “por aí” oferecendo; se não tem dinheiro, pega a
Como pode ser visto, nem sempre o camelô tem recursos financeiros para comprar o
produto a ser comercializado. Muitas vezes, a aquisição da mercadoria segue uma lógica na
qual são imprescindíveis tanto uma rede de contatos na camelotagem quanto uma certa
visão de mercado, para detectar qual artigo, onde, como e a que preço pode ser comprado e
37
Código Penal, Artigo 175, Capítulo VI, Da fraude no comércio; Artigo 180, Capítulo VII, Da
receptação; Artigo 184, Título III, Dos crimes contra a propriedade imaterial, Capítulo I, Dos
crimes contra a propriedade intelectual.
38
Sobre a “personificação” das relações e a substituição do “patrão” pelo “consumidor” de serviços
prestados no mercado de trabalho, cf. Silva (1971).
52
vendido, de modo que seja gerado um excedente satisfatório. A mercadoria é meramente
um meio de troca, mas há situações em que ocorre alguma identificação entre o camelô e a
O Natal e outras ocasiões festivas, como a Páscoa, o dia das mães e a Copa do
manhã e o horário do almoço, momentos em que ocorre maior procura por café, refrescos,
Uma situação etnográfica revelou uma outra forma de aquisição da mercadoria a ser
comercializada pelo camelô. Três rapazes vestidos de terno e gravata, na faixa etária de 25
a trinta anos, se aproximaram de Adriano enquanto ele tomava uma cerveja no bar da
trataram pelo nome. Um dos rapazes retirou de dentro de uma sacola uma caixa com um
telefone celular e a ofereceu a Adriano, para que ele a vendesse por 150 reais em troca de
telefone, verificou se o kit estava completo, com carregador, bateria e manual de instruções,
e tentou ligar o aparelho. O rapaz explicou que a bateria estava descarregada, mas que o
telefone estava em perfeito estado. Adriano olhou desconfiado e pediu para a dona do bar
ligar o carregador em alguma tomada, para ver se o aparelho estava realmente funcionando.
Constatou que não estava. Retirou-o da tomada, colocou-o de volta na caixa e devolveu-o.
39
Cf. capítulo 3.
53
O rapaz tentou dar explicações, e Adriano respondeu: “O cara, quando compra, quer ver o
display acendendo, senão não leva. Sem chance, amigo”. O rapaz insistiu, e Adriano disse:
As mercadorias da pista são adquiridas sem grandes deslocamentos por parte desses
camelôs. Eles raramente viajam ou cruzam fronteiras entre cidades e localidades regionais
para adquiri-las.40 Como o próprio informante declarou, a maior parte dos “camelôs que a
gente vê aí” não compra a mercadoria, e sim pega em consignação com quem compra. A
as quais as mais declaradas são a China, o Paraguai, Bali, São Paulo e Paraná. Há também
mercadorias fabricadas aqui mesmo, no Rio de Janeiro. Parte das confecções de malhas de
camelódromo é “caseira”, e muitas delas estão situadas no subúrbio carioca, como, por
exemplo, uma que fica em Del Castilho. Seu Linhares, um comerciante do camelódromo,
há três anos deixou de mexer com mercadoria “de fora” e não vende mais artigos
eletrônicos. Segundo ele, esse tipo de mercadoria “dá muita dor de cabeça”, pois chama a
atenção da fiscalização. Atualmente, seu Linhares comercializa artigos que vêm do Paraná.
Ele não precisa se deslocar para adquirir os produtos, pois o representante de suas
Para o comércio nas barracas das calçadas ou na pista, é comum o camelô adquirir a
40
Ao contrário dos camelôs do Centro do Rio de Janeiro, os camelôs de Porto Alegre - RS
estudados por Machado (2003) viajam para o Paraguai para adquirir mercadoria.
54
relógios, óculos escuros, bolsas e mochilas de lona colorida. Pode-se dizer que há
mercadorias mais femininas e outras mais masculinas. Na pista, há muito menos mulheres
mulheres lidam com mais freqüência com artigos de interesse feminino, como roupas,
cosméticos, maquiagens, lingeries, bolsas, bijuterias etc. Elas são também consumidoras
trabalham.
por Machado (2003), a montagem das bancas no Centro do Rio pode ser feita com muito
esmero pelos camelôs que trabalham em pontos fixos. A autora comparou os arranjos feitos
de mercadorias com as quais tem que fazer um arranjo. Cada dia é um arranjo novo com o
mesmo repertório de peças. O resultado final é uma harmonia de cores e formas obtida
Trata-se de artefatos que despertam a curiosidade dos passantes e que, geralmente, são
adquiridos por seu conteúdo jocoso. Por exemplo, são vendidas imitações perfeitas de fezes
feitas de material sintético e miniaturas de pênis movidas a corda. Ultimamente, têm sido
colocando cada um desses bichinhos dentro de uma garrafa de refrigerante cheia d’água.
55
Há também réplicas de artigos lançados e patenteados por grifes famosas e produtos
semelhantes aos usados — como apregoam os camelôs — por “artista de novela”. Tais
artigos se repetem em diversas bancas, como uma espécie de fetiche que ganha
bancas de camelôs, tem sido vendido um tipo de pulseira que foi lançado originalmente por
uma joalheria famosa. São pulseiras com módulos nos quais estão gravadas letras do
alfabeto e com as quais o cliente pode formar nomes e outras palavras. Alguns acessórios
usados por personagens de novela também podem virar mania na camelotagem, como um
modelo de brinco usado por uma personagem interpretada pela atriz Carolina Dieckman,
que se popularizou nas ruas durante o período da novela — eram os “brincos da Edwiges”.
Na mesma novela, havia uma escola chamada Nova Era, na qual os personagens
figurar nas barracas dos camelôs. Cheguei a ver alguns jovens circulando pelo
mochilas, bolsas e perfumes de marcas famosas são algumas das mercadorias mais
comercializadas por camelôs. Esse tipo de artigo, chamado de “pirata”, de “segunda linha”
questionável. As etiquetas das grifes Adidas, Osklen, Nike, Mont Blanc e Louis Vuitton são
as mais procuradas nesse mercado, e nem sempre são oferecidas a preços populares. Um
modelo simples pode ser encontrado por quinhentos reais, preço que corresponde, segundo
uma compradora, a um quarto do valor da bolsa original. Essas mercadorias falsificadas são
56
oferecidas em todo o Centro; entretanto, estão mais presentes nos arredores de áreas nobres,
modelos ordenados em mostruários giratórios e com espelhos espalhados por toda parte.
Nesses boxes, ocorre uma intensa movimentação. Mesmo quem não está ali para comprar o
produto experimenta algum modelo. Algumas pessoas chegam a fazer poses na frente do
espelho, depois do que devolvem a mercadoria e vão embora. Os tênis também fazem
muito sucesso no camelódromo. São réplicas de marcas famosas, vendidas por um quarto
O freguês
que é vista como um fenômeno sintomático de uma crise do mercado de trabalho e como
uma atividade ligada a um mercado conveniente, acessível, com produtos úteis e mais
57
demanda significativa pelos produtos oferecidos pelos camelôs: nos boxes dos
época em que tinha uma barraca no Largo da Carioca, conheceu um rapaz que vendia
para matar ratos — e que, ocasionalmente, se posicionava perto de sua barraca. Certa vez,
uma senhora, interessada em comprar o pequeno tubo com o conteúdo venenoso pelo valor
de cinco reais, deu uma nota de cinqüenta reais ao camelô. Ele disse que não tinha troco,
mas a senhora insistiu. O camelô então pediu a Lucinha que tomasse conta de sua banca
enquanto ele sairia em busca de troco. O camelô nunca mais voltou, e Lucinha acabou
tendo de consolar a freguesa enganada, que, a essa altura, já havia descoberto que o
conteúdo deixado pelo camelô era areia tingida de cor grafite. Em tom anedótico, Lucinha
finalizou o relato: “Na rua tem de tudo... Tem que ficar ligada. Pô, essa mulher deu bobeira
[risos]”.
camelódromo da Uruguaiana na cidade e, por extensão, sobre a imagem dos camelôs. Nessa
conversa, ela fez questão de dizer que trabalha “honestamente” desde a época em que
vendia na rua, onde conquistou uma freguesia fiel, que até hoje compra com ela: “O pessoal
acha que, só porque tá na rua, não tá fixo, que pode fazer o que quer que ninguém vai
41
Esses adjetivos que qualificam o camelô serão discutidos no capítulo 3, em que analisarei a
identidade social do camelô a partir das noções de carreira moral (Goffman, 1974 [1961]) e
carreira desviante (Becker, 1963).
58
descobrir. Pode até ser... O cara se dá bem e tudo... Mas se dá bem só uma vez, porque não
camelôs. Nessas entrevistas, ouvi relatos interessantes para a reflexão sobre a relação do
camelô com o freguês. Um desses consumidores, um bancário na faixa dos quarenta anos
software que acompanhei na pesquisa. Esse freguês me disse que toda semana passa no
ponto em que Adriano costuma ficar, para saber se tem alguma novidade: “Toda a minha
máquina [referindo-se ao seu microcomputador] é montada com os CDs dele. Não tem erro:
quando tenho dificuldades na instalação dos programas, ligo pra ele ou pro Reinaldo,43 e
precisou trocar algum CD?” E ele: “Já. Quando comprei um antivírus muito pesado [com
configuração incompatível com a capacidade de seu computador], voltei aqui e troquei por
outro que ele mesmo me indicou. E tô até hoje com ele instalado no meu computador”.
Esse mesmo freguês também relatou que, antes de comprar com Adriano, foi enganado por
um camelô que lhe vendeu um CD em branco, sem nada gravado, como se fosse a cópia de
Não são apenas os passantes que compram em camelôs. Muitas pessoas vão até eles
sobretudo, entre as camadas populares. Nota-se, porém, que há uma demanda significativa
por mercadorias nas camadas médias, a qual, como foi visto, está relacionada a um padrão
específico de produto. Aos sábados, por exemplo, é comum ver famílias inteiras circulando
42
Sobre a trajetória de Lucinha na camelotagem, cf. capítulo 3.
43
Reinaldo é o fornecedor de CDs de Adriano.
59
pelo camelódromo, conversando com os conhecidos e comprando roupas, brinquedos para
Para falar da relação entre camelô e freguês, é preciso ter como referência a relação
entre os próprios camelôs, pois eles também são fregueses em potencial. A compra e a
venda, nesse comércio, pressupõem uma lógica de confiança e de competição tanto entre
indicar outro vendedor, quando ele não tem a mercadoria solicitada. Geralmente, esses
freguês a aciona, jogando com a necessidade do camelô de vender e buscando obter, assim,
maiores vantagens. O camelô, por sua vez, joga com o desejo do comprador de adquirir a
mercadoria.
dia, presenciei a seguinte cena: um camelô anunciava uma promoção, repetindo em voz alta
que “um é cinco, três é dez”. Um comprador se aproximou e propôs: “Faz aí um por três?”
O camelô respondeu: “Faço por quatro, quer?” O comprador aceitou, entregou uma nota de
cinco reais, pegou o troco e o CD e partiu sem se despedir. Tudo não durou mais que alguns
segundos. Há também casos em que a barganha pode se estender e implicar uma forma de
44
Sobre a barganha como forma de comunicação e sociabilidade nos bazares marroquinos, cf.
Geertz (1979: 221-222).
60
camelódromo, ao anoitecer, o freguês sendo convidado pelo vendedor, após realizar a
CDs de música em camelôs do Centro me disse que só compra os CDs depois de testá-los
no CD player que o próprio camelô oferece na hora da venda: “Só pago depois de saber que
tem todas as músicas no CD. Com camelô não se pode dar mole”. Perguntei por que, e ele
respondeu: “Por quê?! Ora... Ele some no mundo, e aí eu fico no prejuízo”. Nessa relação,
tanto o camelô quanto o freguês jogam com o anonimato e a mobilidade próprios da vida
urbana e dos contatos efêmeros que se travam na rua. Nota-se que a possibilidade de
Robert Park (1967 [1916]) destaca a questão da mobilidade, mostrando que ela é um
elemento a ser examinado nas investigações sobre as metrópoles modernas. Na sua visão,
está subentendido que o anonimato é uma maneira de lidar com o controle social. Deve-se
notar, entretanto, que a liberdade, própria da situação urbana, é tanto originada quanto
limitada pelas dimensões metropolitanas. Isto é, ao mesmo tempo que se é livre para
mobilidade, haver áreas exclusivas a determinados tipos de pessoas. Assim, todos estão
sempre repetidas e são feitas num tom de voz específico. De modo diferente do que ocorre
Uruguaiana, nem nas barracas armadas nas calçadas de suas imediações. No contexto
45
Sobre anonimato relativo, cf. Velho e Silva (1976).
61
carioca, encontrei, na pista, alguns exemplos de falas constantemente proferidas pelos
camelôs: “É um real aí, é um real aí, é um real!” e “Chumbinho pra matar rato, matar a
formas mais discretas de atrair o possível comprador. A abordagem feita pelos camelôs tem
sua frente com a mercadoria, oferecem um “ótimo negócio” e dizem que o comprador
obterá algum tipo de vantagem na compra. É comum ver, na rua Uruguaiana, rapazes que
não armam bancas nem carregam mostruários abordando os passantes para oferecer jóias
produtos, realizando verdadeiros shows. Eles limpam o chão da rua com um saponáceo
— costumam entregar aos seus fregueses cartões de visita, nos quais estão impressos o tipo
para troca. Na pista, os cartões de visita são mais comuns entre os vendedores de software,
que os entregam apenas com seu nome e o número do seu telefone celular. Para esses
62
camelôs, o cartão de visita opera como um dos mecanismos de controle e manutenção da
freguesia, pois eles não podem estar com regularidade em seus pontos.46
O camelódromo da Uruguaiana
Entremeado por tradicionais ruas de comércio — com uma área interna de dez mil
com a avenida Presidente Vargas. Entre as quadras D e C, fica a rua da Alfândega; entre as
quadras C e B, a rua Senhor dos Passos e, entre as quadras B e A, a rua Buenos Aires.47
Uruguaiana, em 1983. A partir de 1988, passou a ser divulgado na imprensa que havia
intenções de se utilizar esse espaço para receber os camelôs que ocupavam as principais
ruas do Centro.49 Somente seis anos depois, em 1994, o terreno foi concedido à Prefeitura,
46
Sobre “modos de manipulação do mercado” e “laços de clientela”, cf. Silva (1971).
47
É importante registrar que, nos trechos dessas ruas que ficam entre as quadras, antigas lojas vêm
se transformando em uma espécie de camelódromo. Esse é o caso de uma tradicional loja de
ferramentas localizada na rua Buenos Aires, que dividiu em estandes sua área interna e alugou-os
para pequenos comerciantes que trabalham com as mesmas mercadorias oferecidas no
camelódromo.
48
Companhia de Desenvolvimento Rodoviário e Terminais do Estado do Rio de Janeiro.
49
Cf., por exemplo, “‘Camelódromo’: secretário não sabe quando a obra começará” (Jornal do
Brasil, 4/4/1988).
63
para o remanejo dos vendedores que se haviam fixado irregularmente nas suas
imediações.50
participaram da sua implantação, há dez anos.51 Com o tempo, os “lotes” concedidos pela
Não são muitos os comerciantes que ainda utilizam a metragem original, de 2 m2. A
maioria dispõe de portas de ferro e pontos de energia elétrica, e muitos aceitam cartão de
artigos para pesca e os que vendem roupas. Alguns dos salões de cabeleireiro, bares e
50
Cf. “César quer ‘camelódromo’ no lugar de estacionamento” (O Globo, 1º/6/1994).
51
Cf. Machado (2003). A título de comparação, gostaria de chamar a atenção para os camelôs do
camelódromo da Praça XV, na cidade de Porto Alegre, que reivindicam um status diferenciado dos
demais vendedores de rua, considerando “camelôs” somente aqueles que estão no camelódromo e
que, portanto, estão regularizados junto ao poder público municipal. Isso não ocorre entre os
comerciantes do camelódromo da Uruguaiana, na cidade do Rio de Janeiro.
52
Trata-se de compartimentos separados entre si por divisões de alvenaria, aramados ou madeira,
que substituíram as barracas de ferro e lona após a instalação da cobertura nos quatro terrenos do
camelódromo.
64
Conversando sobre os percalços da camelotagem com alguns daqueles que estão no
camelódromo desde sua fundação, percebi que o fato de não haver sanitários não lhes
parece gerar uma situação muito difícil de solucionar. Eles costumam dizer que “isso é o de
dia de vendas. No camelódromo, a solução para esses problemas foi a substituição das
lonas usadas por camelôs em toda a cidade.53 Atualmente, está sendo instalada uma terceira
cobertura — uma para cada quadra do mercado —, com pé direito mais alto, material mais
resistente, armações de ferro, cabeamento das instalações elétricas etc., o que parece ser a
viabilizam as obras e as transformações desse espaço. Quando conversei com uma outra
informante, dona do bar que freqüentei durante o trabalho de campo, ela me disse que a
parede de alvenaria do seu boxe foi ela quem levantou “tijolo por tijolo”, e que os “bicos de
água” foram uma obra que ela e a dona do salão ao lado fizeram com “dinheiro do próprio
bolso” — além disso, elas pagam taxas à administração para custear as despesas com
percorrer os seus corredores e recantos estreitos no início do trabalho de campo. Sob luzes
53
Cf. “Tendas bicolores substituem barracas azuis dos camelôs” (O Globo, 27/9/1995).
54
Toda sexta-feira, recolhe-se uma taxa de 25 reais em cada boxe de dois metros quadrados. Essa
taxa, que é recolhida pelos seguranças, é paga de acordo com a metragem dos estabelecimentos.
65
incandescentes e fluorescentes, caminhos se cruzam — num quadrilhado que abrange toda
a área do camelódromo — e são rompidos por três ruas transversais e por três largos a céu
aberto. Em dois desses largos, há bancos e telefones públicos. A cada vaguear, em meio à
a multiplicidade das ofertas. Nos lugares onde se vendem os mesmos produtos, os boxes
parecem amontoados, uns ao lado dos outros, em grupos que variam de três a uma dezena,
ocupando corredores inteiros, salvo algumas disposições nas quais mercadorias deslocadas
interrompem uma seqüência, criando uma situação inusitada. É possível ver, por exemplo,
entre uma sucessão de televisores, CDs e cartuchos de jogos eletrônicos, mulheres sentadas
no interior de suas lojinhas, em meio a ervas frescas ou artigos de candomblé. Mais adiante,
seguindo por um corredor transversal que liga as duas ruas laterais que dão acesso ao setor,
radinhos am/fm, anéis, cordões, presilhas, óculos escuros, relógios, tops e biquínis, bonés,
headphones, diskmans, cangas e canetas são expostos de forma aleatória e ao alcance das
mãos dos passantes. Fazendo o retorno no final desse corredor, seguindo por outro,
outro, camisas de times de futebol e basquete, bandeiras, flâmulas, taças e faixas formam
um alegre colorido.
Contígua a essa seção, inicia-se uma outra só de bolsas, com todos os modelos e
utilidades. Nessa parte, é possível ver boxes inteiros sendo usados como depósitos. De tão
tratar-se de uma cavidade. Nesse corredor, não há saída para nenhum outro corredor
transversal; a passagem é fechada por um boxe, e é preciso retornar pelo corredor paralelo,
66
vinda do acesso a um dos largos. Esse largo, que faz ligação com a calçada da avenida
O bulício contínuo, hits da música pop internacional e ruídos estridentes dos jogos
camelódromo chega a ser um lugar sossegado: poucos boxes estão abertos, e o único
apressados chegando para o trabalho. Os primeiros boxes a abrir são os de sucos e lanches.
Com o passar das horas, cresce o fluxo de pedestres na rua, e o movimento no mercado se
intensifica. Entre meio-dia e duas horas da tarde, o movimento comercial atinge o seu auge,
para depois retomar o ritmo a partir das 18 horas. À tarde, os estabelecimentos que vendem
com ícones do rock, bem como os bares, são alguns dos boxes mais movimentados.
investigação mostrou que o cadastramento, que deveria ser feito pela Prefeitura, estava
55
Justamente nesses largos estão situados os orifícios que servem para a entrada e a saída de ar da
estação de metrô da Uruguaiana. Na verdade, esses respiradouros tinham de ficar a céu aberto, o
que favoreceu a criação de largos no seu entorno.
67
sendo realizado pelo grupo que administra o camelódromo, o qual estava vendendo os
pontos.56
páginas dos jornais. A última notícia que saiu na imprensa se refere à prisão, realizada no
roubados. Segundo a reportagem, nessa ação, foram apreendidos duzentos aparelhos e cerca
de cinqüenta baterias. Empreendida por policiais da 5ª DP, situada na rua Gomes Freire, a
investigação, chamada Operação Serial, estava sendo feita há um mês, período em que os
68
Segundo os investigadores, em seis meses, mil telefones haviam sido roubados na
área da 5ª DP. Nove dos detidos estavam trabalhando como camelôs em pontos no interior
e que aqueles que tinham sido detidos teriam a licença cassada. A reportagem termina
informando que os acusados tiveram sua prisão decretada por cinco dias.58
principalmente por policiais civis e federais, que são destacados para atuar contra o
dez meses do trabalho de campo, percebi que o número de batidas para a apreensão de
mercadorias “pirateadas” foi muito maior do que qualquer outro tipo de atuação policial. A
batida que presenciei começou logo pela manhã, e só terminou às cinco horas da tarde.
constatei que o efetivo da Guarda Municipal estava mais numeroso do que o comum. No
percurso até o camelódromo, presenciei uma apreensão feita por guardas municipais numa
área que costumava ficar repleta de vendedores de cópias de CDs. Nessa ocasião, a área
58
Cf. “Polícia prende 12 pessoas e apreende 200 celulares no camelódromo da Uruguaiana” (Extra,
17/7/2004).
69
Em seguida, ao entrar no camelódromo, percebi que a sonoridade do ambiente
estava diferente. Já passava das nove horas da manhã, e a maioria dos boxes estava fechada.
estavam todos fechados. Fui para o salão e, enquanto conversava com a manicura, começou
um corre-corre entre os comerciantes da quadra. Alguns fecharam as portas dos seus boxes,
respondeu: “É a Federal. De vez em quando eles vêm aí pra pegar o pessoal que não anda
na linha”.
Durante todo esse dia, percorri o mercado acompanhando a operação, que era
chamada de Pressão Máxima. A ação não foi empreendida por policiais federais, e sim pelo
resolveram abrir os boxes com seus alicates. Não consegui entender o critério usado pelos
policiais para escolher os boxes que seriam abertos. Aparentemente, eles olhavam para o
interior dos estabelecimentos por uma fresta e decidiam entre si se iriam ou não abri-los.
postos desde cedo, circulando pelo mercado, e iniciavam a ação. Dava para perceber que os
donos dos boxes acompanhavam toda a operação sem se identificar. Eles ficavam por perto,
Ao longo do dia, circulei pelo mercado e conversei com diversas pessoas, muitas
delas funcionários dos boxes abertos pelos policiais. Presenciei uma situação dramática:
70
uma mulher teve uma crise nervosa no momento em que os policiais começaram a ensacar
a mercadoria apreendida no boxe em que ela trabalhava. Seu medo era perder o emprego e
ser acusada pela polícia de cúmplice do dono do boxe. Na ocasião, um grupo de mulheres
tentou acalmá-la, aconselhando-a a se retirar do local para não despertar a atenção dos
policiais.
A batida policial silenciou o camelódromo durante o dia inteiro. Por volta das cinco
horas da tarde, tudo estava terminado, e a maior parte dos boxes reabriu. Nos bares, já
cheios, não se falava em outro assunto. No dia seguinte, o jornal anunciava: “Na chegada
dos policiais, seguranças dos camelôs deram o alerta e os boxes foram fechados às pressas.
foi preso”.59
Camelódromos na cidade
comércio”, nos quais trabalhariam os camelôs que se espalhavam pelas ruas da cidade.
Priorizando o bairro do Centro, ele resolveu que o primeiro centro a ser construído seria o
nos bairros de Higienópolis, Méier, Madureira, Marechal Hermes, Campo Grande, Penha e
59
“Policiais apreendem durante o dia mais de 10 mil CDs vendidos por camelôs” (O Globo,
20/3/2004).
60
Cf. O Globo, 24/2/1984.
71
abertas 4.782 vagas, distribuídas por 11 bairros.61 A lista dos documentos que deveriam ser
apresentados no cadastramento para a utilização dos espaços era composta de oito itens:
pagamento da taxa62 cobrada pela Prefeitura para a concessão da licença. Quando o período
procurado foi a Praça Onze, mas há registros de que os camelôs que se inscreveram
61
“As 4.782 licenças serão distribuídas para as 11 áreas. As de maior concentração são as da
Pavuna, com 8.518 m2 e 524 ambulantes; Campo Grande, ao lado do terminal rodoviário, com 577
ambulantes distribuídos em 6.926 m2; Bonsucesso, com 5.346 m2, divididos nas avenidas
Democráticos e Novo Rio, com 316 e 140 ambulantes, respectivamente. A Praça Onze concentrará
700 ambulantes em toda sua área; e Madureira, com 8.518 m2, nas ruas Carolina Machado, João
Vicente e Edgar Romero, com o total de 524 ambulantes; Marechal Hermes, com uma área de 7.842
m2, localizada entre as ruas João Vicente, General Oswaldo Cordeiro de Farias, Praça XV de
Novembro e Carolina Machado, com 918 ambulantes. Os demais pontos são a Praça da Bandeira,
com 255 ambulantes; Penha, na avenida Brás de Pina, com 84 ambulantes; Méier com 412, à
avenida Amaro Cavalcanti; Cascadura com 219 ambulantes espalhados em 2.694 m2; e Bangu, com
106 ambulantes em 2.891 m2” (Jornal do Brasil, 3/5/1984).
62
O valor da taxa era de Cr$ 10.826,00. Para as barracas de alimentação, era cobrada uma taxa
maior, de Cr$ 76.560,00 (cf. Jornal do Brasil, 3/5/1984).
63
Cf. Jornal do Brasil, 12/5/1984 e 16/5/1984.
72
instalar nas ruas do Centro, pois a fiscalização seria implacável.64 Cerca de mil camelôs,
Saúde, que resolveu aproveitar a presença do prefeito para reivindicar melhores condições
de trabalho.
e o prefeito teve que sair escoltado por policiais militares, sendo levado para a sede da
local. A insatisfação foi motivada por diversos fatores. Primeiro, a localização desse centro
disso, as obras estruturais — tais como a construção de uma creche para os filhos dos
ônibus, para que o lugar recebesse um maior fluxo de pessoas — não foram concluídas
antes da inauguração, como havia sido prometido. Dois meses depois, os jornais
Livres da ameaça do “rapa”, [os camelôs] enfrentam, porém, uma situação que
produtos. O camelódromo tem ainda 590 lugares vagos, mas muitos dos que se
64
Cf. O Globo, 19/7/1984.
65
Cf. O Globo, 20/7/1984.
73
inscreveram para ter ali o seu ponto preferiram ficar pela cidade correndo do
“rapa”.66
Três meses após a inauguração, uma reportagem registrou que os vendedores que
e decidiram não utilizar o espaço. Uma comissão foi formada, para solicitar ao governador
Leonel Brizola a extinção do ponto e uma solução satisfatória em 48 horas. Caso contrário,
os camelôs voltariam às ruas do Centro da cidade. Segundo uma matéria d’O Globo, “a
nesse local, nós estamos falidos, já que não há fregueses. Queremos um lugar, mesmo
Vieira, camelô eleito para presidir a comissão, disse: “Até agora o prefeito não fez nada.
Prometeu terminais de ônibus, espaço para ônibus de turismo, cobertura, shows diários,
passarelas. Não cumpriu nada disso. O pior de tudo é o calor, não há quem agüente. Não
temos uma só árvore”.69 Nas vésperas do Natal, o movimento foi tão fraco que, dos 820
66
Cf. “Ambulantes reivindicam melhorias e mais fregueses no camelódromo” (O Globo,
23/9/1984).
67
Cf. “No camelódromo, vendedores param e ameaçam voltar às ruas do Centro” (O Globo,
31/10/1984).
68
Cf. “Camelô entra em greve na luta contra ‘camelódromo’” (Jornal do Brasil, 2/11/1984).
69
Cf. “Na assembléia, apenas um acordo: ninguém quer ficar no camelódromo” (O Globo,
4/11/1984).
74
camelôs cadastrados para trabalhar no local, apenas 23 armaram suas barracas.70
Nos anos seguintes, o problema da ocupação das ruas pelos camelôs se intensificou,
não foi posta de lado. A partir de então, com a implantação de camelódromos na cidade, o
poder público passou a operar com a justificativa de que, por existirem espaços legais para
depois. Em 1989, Marcello Alencar voltou à Prefeitura, dessa vez por meio de eleições
lugar de criar camelódromos, adotou outra estratégia para coibir a atuação dos camelôs:
município a projetos de tratamento urbanístico. “Para essas ruas [do Centro da cidade]
70
Cf. “Camelódromo fica às moscas” (Jornal do Brasil, 22/12/1984).
71
Cf. “Camelódromo: secretário não sabe quando a obra começará” (O Globo, 4/4/1988).
72
Cf. “O Rio contra os camelôs: Prefeitura revê leis que espalharam 100 mil ambulantes pelas ruas”
(Jornal do Brasil, 4/7/1989).
75
No decorrer desse mandato de Marcello Alencar,73 obras urbanísticas foram
realizadas, uma nova lei que dispõe sobre o comércio ambulante no município foi
uma das ruas que passaram por reformas urbanísticas, foi ocupada por quatro filas de
barracas, reunindo cerca de oitocentos camelôs no trecho entre a rua Sete de Setembro e a
cadastramento dos camelôs que seriam alocados em áreas determinadas, que estavam em
o seu local de depósito ou, do contrário, não seriam cadastrados.77 No mês de abril, os
73
O mandato iniciou em 1989 e terminou em 1992.
74
Lei Municipal nº 1.876, de 29 de junho de 1992, publicada no Diário da Câmara Municipal do
Rio de Janeiro, ano XVI, n. 118, 1º/7/1992, p. 10. Nessa lei, constam um critério de pontuação para
a seleção dos comerciantes e um quadro com o número máximo de comerciantes com pontos fixos
por área administrativa. Na II Região Administrativa (Centro), o número máximo é de mil camelôs.
75
Cf. “Camelôs vão ter que sair do Centro” (O Globo, 2/6/1994).
76
Cf. “Protesto de ambulantes obriga comerciantes a fecharem lojas” (Jornal do Brasil, 14/1/1994).
77
Cf. “Cadastramento” (O Globo, 26/1/1994). Os outros critérios relacionados às mercadorias estão
enumerados na reportagem intitulada “Mercadorias serão limitadas”: “Não se poderá vender
equipamentos eletroeletrônicos, relógios, inflamáveis, medicamentos ou animais em geral” (O
Globo, 24/4/1994).
76
executivo da Guarda Municipal e o secretário de Desenvolvimento Econômico.78 Mesmo
sem ter sido fixada uma data para o início da “operação”, foi acertado que a retirada dos
todos eles.79
consultar os arquivos da agência do jornal O Globo, que esse foi o ano com o maior número
guardas municipais e dez fiscais, na Tijuca e no Centro. Uma reportagem informa que, na
avenida Presidente Vargas, nos dias 10 e 11 de maio, camelôs chegaram a interditar pistas
com fogueiras, em protesto contra a “operação de retirada”.80 Até o início do mês de junho,
não havia menção, nas reportagens dos jornais, à intenção de se retomar o projeto de
mobilizou 150 guardas municipais, cem fiscais e quarenta policiais militares, para esvaziar
a área e dar início às obras de reurbanização, confirmando que a “grande operação” tinha
78
César Maia, Augusto Ivan de Freitas, Ruy César Miranda Reis, coronel Paulo César Amêndola e
Paulo Maurício Castelo Branco, respectivamente.
79
Cf. “Presidente Vargas e Uruguaiana ficarão livres de camelôs” (O Globo, 16/4/1994).
80
Cf. “Polícia dá proteção contra camelôs” (Jornal do Brasil, 12/5/1994).
81
Cf. “Sete de Setembro aberta ao trânsito” (O Globo, 1º/6/1994).
82
Cf. “Prefeito vai retirar camelôs do Centro na próxima semana” (O Globo, 29/7/1994) e “Estado
cede terrenos para Prefeitura fazer ‘camelódromos’” (O Globo, 30/7/1994).
77
Diversas idéias para coibir a camelotagem e concretizar a revitalização dessa área
de veículos e o gradeamento da rua Uruguaiana foram algumas delas. Essas idéias foram
contestadas pelo então secretário de Urbanismo Luiz Paulo Conde e pelo subprefeito do
Centro Augusto Ivan de Freitas. O prefeito, então, reviu sua decisão, aceitando a proposta
com a transferência. A estimativa feita foi de duas semanas para a conclusão da retirada dos
Primeiro, o Governo do Estado cedeu à Prefeitura uma área que já era objeto de um
contrato de comodato firmado entre a Light e o Metrô. Sendo assim, liminares e rescisões
contratuais acaloraram ainda mais o processo. Ao final dessa etapa, o acordo entre a
nos pontos e sua remoção das ruas foram etapas difíceis de um processo marcado por
impasses, violência e resistência.85 Muitos camelôs que haviam concordado com a remoção
83
Cf. “César quer ‘camelódromo’ no lugar de estacionamento” (O Globo, 1º/6/1994).
84
Cf. “Estado cede terrenos para Prefeitura fazer ‘camelódromos’” (O Globo, 30/7/1994).
85
Cf. “Ambulantes dizem que não vão mais aceitar remoção para terrenos do metrô” (O Globo,
10/8/1994) e “Disputa por pontos vai acabar no ‘sambódromo’” (O Dia, 11/8/1994). Sobre a
78
preferiram continuar nos seus pontos, pois não conseguiram se cadastrar. Outros não
ficaram satisfeitos com os locais que lhes foram destinados no terreno. Os que não
concordaram com a remoção tentaram permanecer na rua. Muitos deles estavam instalados
nome dos camelôs era composta por membros da Associação dos Ambulantes do Centro e
a serem ocupados nos terrenos sofreu ameaças e foi acusada de guardar os melhores pontos
para determinados comerciantes. Sendo assim, a distribuição foi anulada, e os pontos foram
definidos através de um sorteio, no qual cada camelô concorreu com o seu número de
por quatro subcomissões — uma para cada um dos quatro terrenos — que, ligadas à
resistência por parte dos camelôs sem senha, ver também O Dia, 17/8/1994 e “Prefeitura adia
remoção de camelôs no Centro” (O Globo, 11/8/1994).
86
A camelô Balbina Carvalho da Silva, por exemplo, há 12 anos tinha a sua barraca de artigos
importados do Paraguai instalada na rua Sete de Setembro, na altura do número 75 (cf. O Dia,
11/8/1994, 17/8/1994 e 28/8/1994). Cf. também “Mulher que comandou camelôs diz que está
pronta para outro confronto” (O Globo, 10/8/1994).
87
Cf. “Muitas associações, nenhuma organização” (O Globo, 10/8/1994).
88
Cf. “Disputa por pontos vai acabar no ‘sambódromo’” (O Dia, 11/8/1994). Para saber mais sobre
o sorteio, ver “Camelôs têm que deixar calçadas até amanhã” (O Globo, 15/8/1994).
79
quatro quadras do camelódromo. Isso ficou acertado numa reunião entre membros dessa
O processo de remoção dos camelôs para os terrenos foi apenas uma das etapas da
“grande operação” cujo objetivo principal era “retirar” os camelôs das ruas do Centro e
iniciar um “plano de revitalização da área”.90 Esse processo foi marcado por graves
camelôs.91 Muitos camelôs estavam sendo obrigados a deixar seus pontos sem ter para onde
ir. Então, muitos deles resistiram, modificando a forma de exposição das mercadorias — de
vendedores a fazer o mesmo.92 Essa situação foi controlada por meio do aumento do efetivo
policial no Centro da cidade, tanto para conduzir a remoção dos camelôs que já estavam
cadastrados, quanto para reprimir os que haviam ficado excluídos ou não aceitavam o
89
Cf. “Acaba prazo para nova lista” (Jornal do Brasil, 19/8/1994).
90
Cf. “Plano de revitalização retomado” (Jornal do Brasil, 20/8/1994) e “Quando PM sai
ambulante faz a festa” (Jornal do Brasil, 19/8/1994). Há informações de que, com a possibilidade
de assentamento nos terrenos da Uruguaiana, o Centro da cidade passou a receber um número maior
de vendedores egressos de outras áreas da cidade. Cf. “Maia interrompe retirada de camelô do
Centro” (Jornal do Brasil, 19/8/1994).
91
Cf. “Protesto de ambulantes fecha 3.500 lojas e acaba em apedrejamento, saques e conflitos com
policiais militares” (O Globo, 9/8/1994).
92
Cf. “Impedidos de montar as barracas alguns camelôs venderam suas mercadorias nas mãos”
(Jornal do Brasil, 18/8/1994) e “Eles agora vendem produtos nas mãos ou sobre tabuleiros” (Jornal
do Brasil, 20/8/1994). Conforme publicado numa reportagem, “agitadores sem senha para trabalhar
no camelódromo fizeram um arrastão para intimidar os ambulantes que lá trabalhavam e fazê-los
desmontar as barracas, mas foram contidos por policiais militares” (O Dia, 17/8/1994).
93
Em maio de 1994, havia 25 guardas municipais, para garantir o esvaziamento da rua Uruguaiana
e a remoção dos camelôs para o camelódromo (cf. “Operação Ventania”, Jornal do Brasil,
12/5/1994). Em julho de 1994, eram 150 guardas municipais e 40 policiais militares (cf. O Globo,
30/7/1994). Em agosto de 1994, havia 360 guardas municipais (cf. Jornal do Brasil, 19/8/1994).
80
A etapa de transferência dos camelôs para o camelódromo foi concluída nos últimos
dias do mês de agosto, sob forte repressão policial. A estratégia adotada para garantir a
ausência dos camelôs nas principais ruas de comércio foi a ocupação de toda a área com
guardas e policiais antes da chegada dos vendedores.94 Sem conseguir inibir a ocupação das
reprimir a resistência dos camelôs, no decorrer do ano de 1994. Uma delas foi a sugestão da
estivessem incomodados com a presença dos camelôs na porta dos seus estabelecimentos.
O prefeito declarou, numa das reportagens consultadas, que o efetivo da Guarda Municipal
não era suficiente para reprimir o comércio ambulante e que seria mais eficaz a contratação
caracterizaria receptação.96 Antes mesmo de essa lei entrar em vigor, os jornais publicaram
reportagens mostrando a dificuldade de sua aplicação, uma vez que até policiais militares
94
Segundo a matéria intitulada “Camelôs têm que deixar calçadas até amanhã”, “amanhã todas as
ruas junto aos camelódromos amanhecerão ocupadas por guardas municipais e PMs, que não
permitirão que os ambulantes armem suas barracas” (O Globo, 15/8/1994). Cf. também “Prefeitura
devolve tranqüilidade ao Centro” (Jornal do Brasil, 18/8/1994).
95
Cf. “César sugere que comércio contrate PMs” (O Globo, 23/8/1994), “Prefeito pressiona
comerciantes do Centro: loja que não pagar taxa terá camelô na porta” (O Globo, 7/10/1994) e
“Polícia particular vai impedir ação de ambulantes no Centro” (Jornal do Brasil, 4/11/1994).
96
Cf. “Maia quer prender quem compra em camelô” (Jornal do Brasil, 20/9/1994, 2ª ed.).
81
informação divulgada é a de que o decreto que determinava a punição estava sendo
assunto.97
A cruzada contra os camelôs estava lançada e, no transcurso desses dez anos, foi
Limpeza Urbana (Comlurb). Esse grupo ganhou autonomia para atuar na proteção de
Vigilância e Segurança Patrimonial. Três anos depois, com o Decreto nº 12.000, baixado
pelo prefeito César Maia e amparado pela Lei nº 1887/92, foi criada a Guarda Municipal,
que é administrada pela Empresa Municipal de Vigilância S.A., também criada em 1994,
Essa força de segurança municipal age em diversas frentes de trabalho, com oito
97
Cf. “Decreto de Maia não tira freguês de camelô” (Jornal do Brasil, 21/9/1994).
98
Recentemente, uma reportagem trazia um “guia de sobrevivência”, mostrando todo o “decálogo
do front” e ensinando como sobreviver em meio à “guerra” que se instaurou no Centro. Cf.
“Cuidado, você está no Centro” (Jornal do Brasil, 21/12/2003).
82
(GAE), Grupamento Tático Móvel (GTM), Grupamento de Defesa Ambiental (GDA),
Guarda Municipal seja responsável pelo controle dessa atividade nas ruas da cidade.
municipais”, de forma a impedir o que é considerado sua “má utilização”. Para tanto,
comum ver os guardas municipais nesse local, nas primeiras horas do dia, reunidos em
círculos ou se paramentando para iniciar as operações nas ruas. Também é possível vê-los,
amenizar a força de golpes. Eles também usam capacetes de fibra de carbono com protetor
de nuca, visores que cobrem todo o rosto, caneleiras, cotoveleiras, escudos e longos
nas esquinas e nos locais mais propícios à camelotagem. Em diversos pontos da rua
99
Cf. Anexos.
100
Cf. o site http://www.rio.rj.gov.br/gmrio/.
83
outras circunstâncias, chegam repentinamente, marchando enfileirados e erguendo seus
escudos e cassetetes, formando uma espécie de bloqueio. Na maioria das vezes, os camelôs
escapam.
aqueles que não dispõem de pontos concedidos pela Prefeitura. Para reprimir esses
acordo com essa lei, “comércio ambulante é atividade profissional temporária, exercida por
física que exerce essa atividade por sua conta e risco, com ou sem emprego de tabuleiro ou
outro apetrecho”. A lei não considera camelô “aquele que exerce sua atividade em
mercadoria comercializada”.
competente da Secretaria Municipal de Fazenda. Aquele que requer autorização deve passar
por um crivo de pontuação, que o classifica numa lista de espera, pois as regiões
ambulante obedece a uma fórmula, que prioriza aqueles que obtêm maior pontuação, e a
uma tabela, com o número máximo de comerciantes ambulantes por região administrativa
contido na lei.
84
Entre outros produtos comercializados pelos ambulantes apesar de serem proibidos
por essa lei, há alguns que precisam ser destacados por serem os mais encontrados nas ruas
preparados no local — exceto pipoca, algodão doce, amendoim, milho verde, churros e
proibido o estabelecimento sem autorização, assim como o uso de caixotes como assento ou
esquinas.
uma dessas cláusulas. A autoridade, no ato da ação fiscal, deve obrigatoriamente lavrar auto
de apreensão, com as devidas informações sobre a situação, deixando uma via com o
infrator. As mercadorias perecíveis não são devolvidas, e as demais devem ser recolhidas
titulares no prazo de três dias. As mercadorias apreendidas que não têm “comprovação
aceitável” de sua procedência ou que são requeridas após o vencimento do prazo não
podem ser liberadas. Percebe-se, entretanto, que existe uma distância entre a lei e a prática.
A lei não é cumprida à risca. A camelotagem está, em certa medida, ligada à troca de
Janeiro, a partir da promulgação da lei municipal, passou a ser desempenhada por uma
85
comissão permanente, na qual, entre outros atores, destaca-se a presença de representantes
oferecendo facilidades de compra no atacado. Outros lojistas estendem o seu comércio para
a calçada das ruas através de camelôs, assim como os comerciantes dos boxes do
“crime organizado”.
A partir do banco de dados que construí ao longo desta pesquisa, constatei que as
notícias que envolvem camelôs são rotineiras. De uma forma ou de outra, elas acabam
surgindo no noticiário da cidade. Mesmo em épocas mais tranqüilas, fora das temporadas
de festas, que propiciam esse tipo de consumo e a ocorrência dos confrontos no Centro, os
101
Cf., por exemplo, “Pirataria S.A.”, coluna que sai toda quinta-feira no caderno de economia do
jornal O Globo e que sempre contém alguma referência à camelotagem.
86
CAPÍTULO 3
Neste último capítulo identifico as principais carreiras que podem ser desenvolvidas
na camelotagem carioca. Devo, antes de tudo, voltar a frisar que realizei poucas entrevistas
espontâneos das histórias dos camelôs, tomei conhecimento de alguns de seus dramas e
carreiras na camelotagem são vividas e sentidas em relação ao restante de sua vida social.
desse universo: “na pista” e “no camelódromo”. Acredito que essas situações gerais, que
camelô do camelódromo. Também faço referência a outras pessoas, cujas trajetórias podem
camelotagem. Trata-se dos amigos de Adriano — Jéferson e Roberto, que também são
102
Como foi dito anteriormente, o exercício da camelotagem também pode ser realizado numa
terceira situação: em barracas armadas ao longo das calçadas (cf. Introdução).
87
Linhares, que também é comerciante do camelódromo, P.R., proprietário de boxes, agiota e
Hughes (1971) mostra que as situações de trabalho são focos a partir dos quais
sentido, a carreira pode ser tomada como um momento do ciclo de vida de uma pessoa que
desenvolve suas atividades numa determinada sociedade, a qual, por sua vez, possui seus
entendidos como decorrência da interação que o indivíduo desenvolve com a sua sociedade.
problemas típicos, que variam de acordo com a posição ocupada pelo sujeito no grupo
ocupacional (cf. Hughes, 1971: 124). Como em qualquer outra ocupação, na camelotagem
linguagens próprias. Deve-se notar, porém, que a ocupação de camelô possui um status na
sociedade, e que esse status marca a imagem de quem a desempenha (cf. Hughes, 1971:
133). A camelotagem, tal como se pratica nas ruas do Centro da cidade, diante da legislação
Na pista
do Rio de Janeiro, para trabalhar no Centro. Chegando por volta das nove horas da manhã,
ele passa no camelódromo da Uruguaiana para tomar seu café da manhã — uma tigela de
açaí com granola —, depois passa no boxe onde ficam guardados os CD-ROMs, pega seu
103
Estou pensando aqui na noção de network desenvolvida por Clyde Mitchell (1969). Nesse
sentido, Lucinha e Adriano são usados como uma espécie de anchorage.
88
mostruário — um aramado com as fotocópias das embalagens dos programas — e vai para
ocasionalmente anuncia sua mercadoria: “Vai aí? Corel, Autocad, Norton, Office? Tem
dicionário: inglês, português, alemão francês! Vai?” Sempre muito atento, ele sabe o que
fazer. Quando o freguês se interessa pelo produto, ele olha ao redor, para ver se o Reinaldo
está por perto, e, se não o avista, ele mesmo vai pegar a mercadoria, pedindo ao Jéferson ou
ao Roberto para tomar conta do seu mostruário. Essa estratégia de deixar o mostruário sob
os cuidados de um colega serve para “segurar o freguês” nas ocasiões em que ele precisa se
ausentar, o que é relativamente freqüente, pois ele não pode portar a mercadoria. Ele então
vai pegar o CD, tudo muito ligeiro, e em segundos está de volta. Ele entrega o CD, pega o
para os três.
Roberto costumam chegar mais tarde e, às vezes, nem aparecem. Reparei que, quando não
há ninguém no ponto, Adriano vende sem o aramado que sustenta o mostruário; ele apenas
anuncia os produtos e mostra, num papel dobrado, as fotocópias das capas dos programas.
Perguntei a ele como é lidar com a repressão. Ele me respondeu que é preciso “ficar ligado”
o tempo todo, pois a qualquer momento pode ser preciso sair correndo da Guarda
Municipal: “Não enfrento esses guardas não. Pra enfrentar eles, só com ferro, pra valer.
Camelô e Guarda Municipal é igual a traficante e PM... Só que com pedra e pau”. Ele disse
que a freqüência de suas fugas é diária, ocorrendo com mais intensidade por volta da hora
do almoço, justamente no momento de maior fluxo de pessoas nas ruas do Centro. Disse
também que, quando a repressão está intensa, já encontra os guardas ao chegar, pela manhã,
na esquina: “Aí não dá pra fazer nada. Tem gente que fica revoltado. Eu fico também, mas
89
não vou fazer nada. Foi como eu te disse: se eu tiver que fazer, vai ser pra valer. Aí, espero
eles sair; alguma hora eles têm que sair. Aí a gente volta”. Nessas ocasiões, Adriano
costuma se refugiar no camelódromo: “É muito raro a guarda entrar aqui atrás de camelô.
Eles não entram, porque sabem que aqui tem o pessoal da segurança, que não deixa ter
confusão”.
Com 28 anos de idade, seu domínio da situação é próprio de quem, há oito anos,
trabalha como camelô no Centro do Rio. Adriano mora com a filha de nove anos e com a
mãe. A aposentadoria da mãe e o que ele ganha com suas vendas são as únicas fontes de
renda da família. Ele se diz o “chefe da casa”, pois, se não fossem os seus rendimentos, a
programas de computador há dois anos. Antes, “vendia de tudo”: vinha para o Centro,
vinha sustentando sua mãe e sua filha. Certo dia, no Centro, encontrou Jéferson, a quem
conhecia do lugar onde ambos moram, e ele, camelô de software, o recomendou a seu
primo, que é fornecedor da mercadoria. Adriano, se referindo às cópias, me disse que não
gosta de trabalhar com “pirataria” por se tratar de mercadoria ilícita, e me relatou que, no
tempo em que prestava serviços ao comércio ilegal de drogas estabelecido na área onde
mora, passou por situações difíceis. Ao escapar dessas situações, prometeu à sua mãe que
Adriano, o trabalho do camelô, “mesmo sendo a maior pedreira, não é tão perigoso quanto
o tráfico. É melhor do que sair por aí roubando. Sendo camelô, não preciso mexer com
arma. Na rua, sempre dá pra levar algum dinheiro pra casa. Por isso, resolvi ser camelô, e
90
É interessante notar que a ocupação de camelô tem um status que é constantemente
negociado (cf. Becker, 1970). Não se deve esquecer que se trata de uma carreira de difícil
aceitação social, embora represente, para boa parte de seus integrantes, uma forma “digna”
imagem que estigmatiza, por outro, é um artifício usado na defesa contra outras acusações,
como, por exemplo, a de “ser ladrão”. Como Hugues (1971: 333) afirma, “another
important variable in occupations is the nature of the contact of its practioners with each
cópias de software, pois esse negócio oferece vantagens, mesmo envolvendo a venda de
mercadoria ilegal.104 Segundo ele, sem essa oportunidade, não seria possível criar sua filha
nem cuidar de sua mãe da maneira que considera satisfatória. Ele calcula que, num
emprego formal, ganharia no máximo quinhentos reais por mês, o que inviabilizaria o
sustento de sua família. Como camelô de outras mercadorias, não conseguia tirar um bom
lucro nas vendas, pois trabalhava com artigos de baixo valor, como balas, canetas, pilhas
etc. Depois que começou a comercializar software, aprendeu com Reinaldo e Jéferson
“muita coisa de computação” e, de acordo com seus cálculos, sua renda melhorou. Adriano
tira em média, por dia, entre cinqüenta e cem reais, o que possibilita a manutenção do plano
104
Segundo Reinaldo, essas mercadorias têm baixo custo de produção e muita procura no mercado.
Adriano disse que vende, em média, de vinte a trinta CDs por dia. O fornecedor vende a mercadoria
— por cinco reais à vista e por sete reais em consignação — para diversos camelôs, que a
comercializam por dez reais nas ruas do Centro. O custo de produção da mídia não chega a dois
reais por CD, já contando com o custo da embalagem. Sendo assim, esse negócio é bastante
lucrativo, principalmente para o fornecedor.
91
de saúde de sua mãe e a educação de sua filha. Segundo ele, ainda “sobra algum pra tomar
uma cerveja”.
vendida. Ele me revelou que “a maior parte desses camelôs que a gente vê aí faz desse
jeito. Ninguém quer empatar dinheiro. Só aquele que quer vender no atacado. Aí sim, vale a
pena, porque já tem os camelôs certos que vendem pra eles aí na pista”. Depois de ter
vendido drogas e bugigangas, Adriano se sente “mais correto” e “honrado” por lidar com
uma mercadoria que, apesar de ilícita, não causa danos físicos a ninguém diretamente e
Nilópolis. É casado e tem uma filha de 4 anos de idade. Não é mais camelô da pista e há
dois anos abastece diversos camelôs com cópias de software. Segundo seu relato, muitas
das cópias vendidas são feitas por ele mesmo, em seu próprio computador. Ele fica a maior
parte do dia num boxe do camelódromo, onde vende também a varejo e guarda toda a
mercadoria — Reinaldo não me disse em que quadra fica o seu boxe. “No início”, disse ele,
“eu vendia na rua as coisas que o meu cunhado trazia de São Paulo. Depois vim cuidar do
vendem pra gente na pista. No início do ano passado [2003], compramos dois
computador”.
tem dois filhos e, no momento, está vendendo cópias de CDs, pois está desempregado.
92
Certa vez, numa terça-feira à tarde, estávamos no bar da Raquel, eu, Adriano, Roberto105 e
Reinaldo. Eles costumavam beber e almoçar ali com relativa freqüência. Nesse dia,
Jéferson chegou mais tarde; ele não estava na pista, tinha ido procurar emprego. Quando
chegou no bar, portava um envelope com seu currículo, e isso virou motivo de brincadeira
entre eles. Roberto disse: “Olha só, Adriano... Ele foi procurar emprego de novo. Quantas
horas na fila da CAT?106 Onde é que você vai trabalhar? Tu acha mesmo que vai conseguir
trabalhar? Tu não tem nem o segundo grau”. Adriano percebeu que Jéferson não estava
Adriano: “Deixa o cara, ele tá certo em tentar trabalhar com carteira assinada. Se
Roberto: “Mas tu não quer sair da rua pra ganhar quinhentos contos por mês, quer?”
Jéferson: “Pô, não sou camelô, não... Já trabalhei, tenho experiência, posso
de assinatura da revista Veja etc. Seu último emprego foi de entregador de remédios numa
farmácia. No decorrer da conversa, ele revelou que nenhum desses empregos lhe pagou por
105
Roberto, de quem falarei mais adiante, é um dos amigos de Adriano.
106
Roberto está se referindo a uma agência de empregos, a Central de Apoio ao Trabalhador,
localizada em São Cristóvão.
93
Quero chamar a atenção para o fato de que Adriano havia exercido uma atividade
criminosa e, diante de uma situação de risco, a alternativa “menos arriscada” que encontrou
foi tornar-se camelô. É importante mencionar que, de forma recorrente entre os informantes
uma atividade criminosa, a recusa de um “emprego” que não oferece condições de sustento
Roberto tem 27 anos e mora com a namorada e as duas filhas dela em Magé, um dos
municípios banhados pelo fundo da Baía de Guanabara, na Baixada Fluminense. Sua mãe,
jornalista, e seu pai, delegado, moram no bairro da Glória, que fica próximo ao Centro. Sua
mãe vendeu dois terrenos que tinha em Maricá e, com o dinheiro, Roberto comprou uma
“boa” casa em Magé. Tive a oportunidade de conhecer sua mãe: numa das vezes que fiquei
conversando com eles, ali no bar da Raquel, Roberto combinou de se encontrar com ela.
Quando ela chegou, já passava das sete horas da noite, e ela foi logo dizendo que estava
com pressa. Fomos apresentadas — ela se chama Beth —, e resolvemos sair de lá juntas.
Caminhamos da Uruguaiana até a Glória, pois também moro nessas imediações. Beth sente
o maior desgosto por Roberto ser camelô. Disse que ele mudou muito e que “só fala alto
agora”. Ela se diz jornalista e contou que está movendo uma ação contra a Rede Manchete,
que faliu e não pagou aos funcionários. Roberto diz que ela está “obcecada com essa
história”. Quando estávamos a sós, ela revelou que Roberto “nunca deu pra trabalhar de
verdade. Ele não agüenta ficar mais do que quinze dias num serviço”.
uma brincadeira com o nome da famosa lanchonete —, trabalha como garçom de vez em
107
Sobre fronteiras tênues entre trabalho e marginalidade, cf. Zaluar (1985).
94
quando e, como camelô, vende “qualquer coisa”. Chega no Centro e resolve o que vai
fazer: “Às vezes panfleto, outras vezes pego CDs com Reinaldo pra vender, se é Páscoa
diferente ou um brinquedinho, pego e vendo”. Sempre que ele vem ao Centro, volta para
casa com, pelo menos, dez reais no bolso. Segundo ele, “o Centro é onde tá a grana”.
Perguntei como ele consegue a mercadoria, e ele me respondeu que, na maioria das vezes,
por aqui. Quando não estou vendendo nada, consigo trocar um cheque para alguém. Aí,
O modo como Beth encara o tipo de vida que Roberto leva revela que uma das
No camelódromo
conforto relativo e garantias aos fregueses. Dispõe de provador com espelho, aceita cartão
bairro de Cachambi, tem 34 anos e “sempre mexeu com comércio”. Com o segundo grau
completo, trabalhou em diversas lojas e butiques do Shopping Rio Sul e em outras lojas da
Zona Sul da cidade. Seu marido tem um boxe de óculos escuros e relógios no atacado,
também no camelódromo. Eles se conheceram no bairro onde nasceram e onde moram até
hoje. Antes de ser transferido para o camelódromo, Alex tinha uma barraca de
95
“importados” no Largo da Carioca, em frente à rua Uruguaiana. Nessa época, Lucinha
trabalhava na Redley,108 das quatro horas da tarde às dez da noite. Na parte da manhã,
ficava na barraca do Largo da Carioca, para que seu namorado — na época eles não eram
casados — pudesse freqüentar o curso de Direito que fazia na Universidade Estácio de Sá.
Dois anos depois de seu namorado ter sido transferido para o camelódromo e ter
Alex.
Ao longo desses oito anos que trabalham juntos no camelódromo, Lucinha e Alex
se casaram e ampliaram os negócios; hoje, estão construindo uma casa em Maricá. Lucinha
adora crianças, mas não pode ter filhos — ela me revelou isso num dia em que levou para o
camelódromo sua sobrinha de cinco anos, o que fez com que algumas pessoas que não a
conheciam perguntassem se a menina era sua filha. Alex não gosta muito de conversar, mas
Lucinha adora. Está sempre entre os vizinhos de boxe. Sua lojinha é interessante, toda feita
de ripas de madeira, com spots embutidos no teto e araras com as roupas organizadas por
tamanho e cor. Na parede, tem uma cortiça, onde coloca as fotos dos amigos, dos parentes e
das farras entre os colegas do camelódromo. Tudo isso em meio a recortes de revista, com
surfistas descendo ondas enormes e paisagens paradisíacas, e ao som de reggae, que ela
sempre coloca “pra dar o clima das roupas”, como ela mesma diz.
autonomia relativa sobre suas condições. Essa é uma das tensões que caracterizam as
108
Loja especializada em roupas do tipo surfwear e uma das marcas mais consumidas entre jovens
de classe média, a Redley é uma das grifes mais falsificadas no mercado da camelotagem carioca.
96
ocupações em que a prestação de serviço a pessoas “de fora”, a uma clientela, é central (cf.
e das condições de sua realização nessa ocupação. Adriano, há oito anos, é um camelô da
pista que passa diariamente pela situação degradante de fugir da fiscalização. Lucinha foi
camelô da pista e também fugia da fiscalização, mas há oito anos tem uma lojinha no
trabalho, ela realiza boa parte de suas aspirações. Ela e seu marido estão construindo uma
casa em Maricá e pretendem “pegar uma criança pra criar” futuramente. Adriano mora
numa favela no município de Nilópolis, precisa sustentar mãe e filha, não estudou, nunca
trabalhou com “carteira assinada”, e também não faz muitos planos para o futuro. Ao ser
indagado sobre seus projetos, Adriano mostrava não ir muito longe nas suas aspirações; ele
pretende poder continuar cuidando de sua mãe e de sua filha e se divertir quando “sobrar
Adriano, por outro lado, já teve a sua carreira no tráfico de drogas e viu na camelotagem
uma maneira de sobreviver e de sair de uma atividade ainda mais degradante e perigosa.
delimitadas por ele. Ou seja, os indivíduos têm de se movimentar dentro de num processo
Seu Linhares, colega de Lucinha, tem um boxe de frente para a rua Uruguaiana,
num dos pontos mais privilegiados do camelódromo. Atualmente, vende pilhas, radinhos
97
am/fm, headphones, fitas cassete etc. Antes, vendia produtos mais sofisticados, como
eletrônicas etc. Substituiu as mercadorias porque estava tendo muito prejuízo. Revelou que,
por serem muito visados pela fiscalização, esses produtos o deixavam “na mão” dos fiscais.
Outro motivo é o fato de que a associação cobra taxas mais caras àqueles que trabalham
com mercadoria desse tipo. Segundo ele, hoje, suas mercadorias vêm do Paraná: “Eu nem
1970, indo morar na casa de um parente em São Cristóvão. Nessa época, “vendia crediário”
— uma espécie de mascateagem em que o vendedor passa nas casas das pessoas oferecendo
roupas de cama, panelas, tapetes, toalhas e utensílios domésticos em geral. A venda é feita
a prazo e, nas datas do vencimento, o vendedor volta à casa do freguês para receber o
pagamento. Depois de dez anos trabalhando dessa forma, ele resolveu abrir uma “birosca”
na porta de casa: “Uma espécie de mercearia. Vendo de tudo um pouco pro pessoal da
vizinhança: sabão, enlatado, refrigerante, pinga...” Seu Linhares mantém esse negócio até
hoje. Quando resolveu ser camelô, colocou uma moça para trabalhar para ele. Essa moça
cuida do comércio, da casa e de suas roupas, e, segundo ele, “é uma pessoa de confiança”.
Seu Linhares nunca se casou e não tem filhos. Aposentou-se como autônomo e, como fez
questão de dizer, há oito anos tem crédito especial de cinco mil reais no banco em que é
correntista. Segundo ele, “o pessoal nordestino vem pro Rio e São Paulo e não constrói
nada. Eu não: posso me considerar bem de vida. Tenho minha casa própria e ainda ajudo
Centro, seu Linhares disse: “Tem mais é que proibir mesmo. Eles são contra a lei e contra o
patrimônio público”. Indaguei sobre sua vida como camelô e perguntei se ele sempre
98
trabalhou no camelódromo. Ele respondeu que, antes, ficava na rua Sete de Setembro,
esquina com a rua Uruguaiana: “Naquela época, a gente ficava aqui na rua mesmo. Foi um
tempo bom pra ganhar dinheiro. Foi quando consegui comprar a casa que eu moro”.
Perguntei como foi o processo de transferência para o camelódromo, e se ele não sofreu
com a repressão. Ele respondeu: “Não. Nunca precisei fugir da polícia por ser camelô,
porque sempre fui um camelô honesto. E depois, assim que ficou pronto o camelódromo,
eu vim logo. O pessoal que não quis vir é que sofreu mais”. Seu Linhares diz que tem uma
vida estável e que por isso não trabalha mais aos sábados e fecha o boxe antes das quatro
horas da tarde: “Tô bem. E quando eu não puder mais vir trabalhar, quando eu estiver
velho, já tenho casa, e a minha aposentadoria vai dar pra comer e beber. Não posso
reclamar de nada”.
P.R., outro colega de Lucinha, também se diz muito satisfeito com a sua vida. Ele
tem 44 anos e mora na Barra da Tijuca. Nunca foi camelô, mas sempre contratou camelôs
para vender suas mercadorias. É dono de dez boxes no camelódromo e se diz “rico”. Passa
o dia circulando pelos corredores e é saudado nas quatro quadras por onde passa. Adora
pagar tudo para todo mundo. Assim, quando ele passa, sempre há alguém que faz uma
brincadeira com ele: “P.R.! Me arruma um dinheiro aí!”. No salão que freqüentei, ele é
queridíssimo. Assim que ele chega, as meninas — tanto a manicura quanto a cabeleireira —
pedem a ele alguma coisa, e ele prontamente compra. Antes de sermos apresentados,
presenciei uma cena interessante. Ele chegou e começou a beber com dois rapazes; um era
segurança e o outro, um comerciante dali mesmo. Logo chegou um homem que eu nunca
tinha visto por ali, e, depois de algumas cervejas, P.R. tirou do pescoço uma corrente de
ouro espessa e a estendeu a esse homem, que lhe deu um maço de dinheiro preso num
99
elástico. P.R. abriu o maço e conferiu o dinheiro ali mesmo, na frente de todo mundo. Os
rapazes que estavam ao redor pareciam bastante impressionados com a opulência expressa
P.R. possui vários negócios: compra e vende ouro, empresta dinheiro a juros para os
uniforme do time de futebol dos comerciantes do camelódromo, que disputa torneios nos
Pode-se dizer que, pelas características de suas posições, Lucinha, seu Linhares e
P.R. fazem parte de um grupo de referência. Suas atitudes podem influenciar nas carreiras
dos demais indivíduos, pois expressam, em certa medida, autonomia das condições de
trabalho (cf. Becker, 1963: 102). De modo geral, como as chances de entrada no mercado
Tico, outro colega de Lucinha, trabalha para um amigo de Alex num boxe de
costuma ficar conversando no salão quando o movimento está fraco. Conheci Tico quando
ele encomendava, a uma moça que estava no salão, bolo e salgadinhos para o chá de bebê
de seu filho, que estava para nascer. Dois comerciantes que estavam próximos e são seus
colegas perguntaram se a sua namorada já havia voltado a morar com ele. Ele respondeu
que não, e disse que não iria aparecer na festa; estava apenas ajudando nos preparativos.
109
P.R. me contou que, no Aterro do Flamengo, há torneios entre times de diversas ocupações, tais
como hoteleiros, bancários, camelôs etc.
100
Não resisti e comentei que era muito gentil da parte dele ajudar nos preparativos. E ele:
“Diz isso pra ela...” Nesse momento, a manicura e os dois comerciantes começaram a fazer
gozações. Ainda sem entender direito, perguntei por que, afinal, ele não podia ir à casa da
namorada, que também trabalhava no camelódromo, numa quadra distante. Não tive a
oportunidade de conhecê-la.
Tico mora no morro da Providência, perto do Centro, na casa de tios. Não mora com
a namorada porque ela não quer sair de perto da mãe, que mora numa das favelas do
Complexo do Alemão, área onde Tico viveu até os 17 anos de idade. Tico não pode mais
voltar lá porque, segundo ele, trabalhou — a partir dos 13 anos de idade — para os
traficantes da região. Perguntei por que deixou o trabalho no tráfico, e ele me respondeu o
seguinte:
chegada da polícia. Depois passei a ficar na boca; foi quando eu comecei a ganhar
mais dinheiro. Mas também foi quando passei a não poder sair da favela, sair pra
pista, dar um rolé. Pô, então pra que ter dinheiro se não dá nem pra dar um rolé? Aí
saí fora logo, antes que fosse tarde, e vim pra rua trabalhar de camelô.
Perguntei ao Tico como ele começou na camelotagem, e ele respondeu: “Sempre fui
camelô. Desde moleque, sempre ia com esse meu tio pra show na praia vender cerveja.
Sempre tava com ele na rua, ajudando a vender as coisas que ele arrumava. Ainda hoje,
quando tem um evento grande, a gente vai vender cerveja”. Explicando seu trabalho no
camelódromo, ele me disse: “Sou técnico de celular. Aprendi com o André, e ele me botou
pra trabalhar no boxe com ele”. Tico precisa cumprir horário no boxe de André, que lhe
101
paga 75 reais por semana, além de uma quentinha no almoço, diariamente. As últimas
notícias que tive desse rapaz foram de que seu filho, um menino, já havia nascido, sua
namorada continuava morando com a mãe, e ele tinha sido preso pela polícia por estar
manipulam sua ocupação e fazem dela um trabalho tolerável e, em alguns casos, até
honroso (cf. Hughes, 1971: 342). Tudo isso revela que as carreiras não são lineares; elas
modo, são elaboradas no conjunto de sua vida, em meio aos seus dramas sociais e dilemas
individuais.
102
CONSIDERAÇÕES FINAIS
nas notícias, conversas e comentários como um “problema”. De longe, a face mais evidente
enumerar uma série de acusações feitas, principalmente em jornais, contra esses atores: eles
maneira, precisam lançar mão de estratégias que estão na fronteira entre a legalidade e a
ou nas barracas. De fato, existe uma rede de corrupção e de crimes que envolvem
contrabando, roubos de carga, e uso e partilha ilegal dos espaços públicos. Por outro lado,
pesquisa deixaram claro que é inútil tentar obter a concessão de um ponto indo diretamente
à Prefeitura, ou seja, agindo como o previsto pela lei. São as diversas associações que
103
dessas negociações são evidentemente velados, e os membros dessas associações compõem
uma espécie de sociedade secreta. À medida que a pesquisa avançava e que eu ficava mais
próxima das pessoas, esse aspecto da camelotagem ia se revelando nas entrelinhas e nas
contradições entre o que se dizia e o que de fato acontecia. A importância desse aspecto
tácito, como aquilo que sustenta o complexo sistema da camelotagem carioca, foi ficando
que é preciso definir “o que queremos e o que podemos saber sobre o que pesquisamos”
(Cavalcanti, 2003). Mais do que conhecer os meandros dos acordos “suspeitos”, procurei
conhecer aquilo que é obscuro para o senso comum: as situações vivenciadas pelos camelôs
no seu dia-a-dia, suas aspirações e seus projetos. Nessa perspectiva, a camelotagem aparece
como uma “solução”, pois, por meio dela, essas pessoas sobrevivem, realizam suas
A opção pela vida na camelotagem não é trivial, por se tratar de uma atividade, até
certo ponto, vista como transgressora. A realização de uma carreira nessa ocupação,
portanto, passa pela elaboração de uma carreira moral (cf. Goffman, 1974 [1961]), em que
o sujeito desenvolve uma atividade desviante (cf. Becker, 1963), o que gera conseqüências
A maneira como Becker e Goffman lidam com as noções de desvio e estigma revela
imposição de regras está ligada a uma relação de poder político e econômico. Vista dessa
concepção da realidade. Segundo Becker (1963: 8), “a society has many groups, each with
104
its own set of rules, and people belong to many groups simultaneously. A person breaks the
rules of one group by the very act of abiding by the rules of another group. Is he then,
deviant?” O desvio é criado pelos grupos sociais quando eles estabelecem normas. Sendo
assim, ele não deve ser entendido como a qualidade de uma ação, e sim como o resultado
de um processo de acusação que estigmatiza quem transgride as normas. Becker (1963: 14)
afirma que “deviance is not a quality that lies in behavior itself, but in the interaction
between the person who commits an act and those who respond to it”.
transgressora e passou a ser vista como caso de polícia. Becker (1963: 129) afirma que toda
atitude desviante passa por etapas de acusação, até ser interpretada como tal. No caso dos
cujos antecedentes podem ser encontrados nos ideais de civilidade do início do século XX,
em nome dos quais Pereira Passos perseguiu as “pequenas profissões”, usando a proposta
meu ver, uma história recente. No decorrer da etnografia, expus de forma sintética uma
camelotagem. Esse processo foi realizado, ao longo dos últimos vinte anos, por meio da
105
Polícia Militar entrava em ação. A criação de espaços para o exercício da camelotagem
parece ter sido um ponto importante nesse processo acusatório. Com a implantação de
camelódromos na cidade, o poder público passou a operar com a justificativa de que não
havia mais motivo para o uso de locais impróprios e ilegais, legitimando assim a repressão
fiscal — o “rapa” — começou a ser substituída pela do guarda municipal, o novo inimigo
do camelô. Nesse quadro, encontramos uma cruzada moral empreendida pelos criadores e
os aplicadores das regras, além da acusação pública, cristalizada nos confrontos entre
guardas e camelôs em pleno Centro da cidade, e na sua divulgação pela imprensa (cf.
Becker, 1963).
sujeitos. O indivíduo acaba internalizando a acusação, aceitando o estigma como real (cf.
Goffman, 1974). No todo de sua vida social, em meio às acusações, confrontos corporais
com a polícia, situações vexatórias, “cervejas de fim de tarde” e situações próprias de sua
ocupação, o camelô vai levando sua vida e se definindo como pessoa. Nesse quadro de
110
“O prefeito acredita que, com essa medida, estará solucionado o problema dos camelôs: —
‘Vamos criar uma alternativa de oferta de trabalho e, a partir daí, poderemos cumprir a lei em
relação aos camelôs que estiverem instalados em locais impróprios’” (Jornal do Brasil, 3/5/1984).
111
Sobre o processo de implantação do camelódromo da Uruguaiana, cf. capítulo 2.
106
emprego que não oferece as condições de sustento desejadas. Procuram uma “liberdade” de
movimento e de uso de seu tempo que deve ser compreendida num contexto de tensão entre
um trabalho que toma todo o seu dia — por exemplo, no interior de uma lanchonete — e
um salário que não sustenta suas aspirações de consumo, mas que, ao mesmo tempo, não o
assinada”. Num diálogo entre Roberto, Adriano e Jéferson,112 esse dilema ficou claro.
Roberto, que já se sentiu um “McEscravo”, tem opinião formada sobre o que é ter um
emprego. Jéferson não se vê como camelô, apesar de reconhecer que a rua lhe oferece mais
retorno financeiro. Adriano, por sua vez, sintetiza as duas opiniões, quando contemporiza
“deixa o cara; se arrumar um emprego ele sai dessa pedreira” e, logo em seguida, diz que se
112
Cf. capítulo 3.
107
BIBLIOGRAFIA CITADA
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109
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110
WORCMAN, Susane. Saara. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000 (Série Cantos do Rio).
ANEXOS
1. Camelôs da pista
111
112
2. Barracas.
113
3. Camelódromo da Uruguaiana.
114
Boxes Fim de tarde na quadra C
115
Quadras A, B e C
5. Rua Uruguaiana.
116
6. Guarda Municipal.
7. Saara
117
DECRETO "N" Nº 17931, DE 24 DE SETEMBRO DE 1999
118
119
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/Title
(camels no Centro do Rio de Janeiro )
/Subject
(D:20051005105812)
/ModDate
(camel )
/Keywords
(PDFCreator Version 0.8.0)
/Creator
(D:20051005105812)
/CreationDate
(Patrcia Delgado Mafra )
/Author
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