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Desvendando o “Dom de Línguas” – Uma análise Judaico-Messiânica

Um dos objetos de estudo da teologia mais apreciado e estudado ao longo dos séculos é a profecia
e o ato de profetizar. Tanto nos meios judaicos como nos meios cristãos, tem-se a figura do profeta
‫( נביא‬Naví, em hebraico) como uma autoridade divina, sendo o “porta-voz” da vontade e do
direcionamento de Deus a indivíduos e nações. Às vezes honrados e quase sempre perseguidos
exatamente pela legitimidade de seu dom, os profetas hebreus desempenham um papel
fundamental para a compreensão do Deus criador e seus propósitos para Israel e para a
humanidade. Porém, este fenômeno bíblico, que em hebraico é chamado de ‫“ ְנבּוָאה‬Nevuá”
(profecia), é bem mais vasto e rico do que sua simples tradução nos apresenta. O conceito de
“profetizar” assumiu uma compreensão comum de “prever o futuro”, “anunciar juízos” ou
“proferir bênçãos”. Porém, uma rápida análise semântica das ocorrências na Tanách do ato de
“profetizar” nos mostra que tal fenômeno vai muito além das ações supra citadas, como
veremos a seguir.
Como fruto da observação do fenômeno da profecia (Nevuá) nas Escrituras, encontramos um
outro tipo de manifestação do ato de profetizar. A chamada “profecia extática” também pode ser
evidenciada ao longo dos relatos Bíblicos, juntamente com a profecia “clássica” de antever,
predizer ou anunciar claramente a vontade divina. Na profecia extática (que permeia o êxtase),
vemos pessoas de variados contextos e origens sendo cheias da inspiração divina (Rúach ou
Espírito de Deus) e traduzindo tal conteúdo espiritual (aparentemente desprovidas do ‘filtro’ do
intelecto e da linguagem), externando os efeitos de tal experiência através da voz. Os sons
emitidos por alguém que passa por esse tipo de “Nevuá” nem sempre obedecem às regras de
linguagem que conhecemos. Muitas vezes, são externados sons e palavras que não são parte de
uma língua conhecida ou falada, mas que, apesar disso, fazem parte do processo sobrenatural da
Nevuá. Tal processo não se desdobra apenas na expressão de sons, mas também na
COMPREENSÃO desses sons por parte de seus ouvintes. Em algumas ocorrências, como
Números 11:25 ou I Sm 19:20, vemos que este tipo de profecia extática tem como principal
objetivo servir de sinal e comprovação da operação divina a um público ou indivíduo específico.
Assim, a NEVUÁ extática é muitas vezes evidenciada em duas frentes:
1. Um emissor que FALA “em êxtase” pelo Rúach (à esse fenômeno a psicologia patológica dá
o nome de línguas extáticas ou glossolalia);
2. Um receptor que ENTENDE pelo Rúach os sons incompreensíveis do emissor “em Nevuá”
como se estivessem sendo proferidos em sua própria língua.
O famoso escritor e historiador judeu Joseph Klauser, em seu livro “From Jesus to Paul”,
aborda o fenômeno Bíblico da “Nevuá” (glossolalia) conectando-o também aos eventos e
relatos do Novo Testamento em Atos cap. 02, I Co cap. 12 e cap. 14. (KLAUSNER, p. 273).
A psicologia também tenta, há décadas, entender este tipo especial de NEVUÁ. À ele foi dado o
nome de GLOSSOLALIA (*) , que significa, “variedade de palavras”. Hoje, a psicologia já
conseguiu explicar como o processo se desenvolve no cérebro do indivíduo, atestando sua
veracidade. Segundo os estudos feitos, a glossolalia é um estado emocional que permeia o êxtase,
não afetado pelo intelecto, externado pela pessoa através de uma “supra-linguagem” com sons e
palavras incompreensíveis ao intelecto, mas que carregam a essência do que está enchendo a
“psiqué” (alma) do portador.
Às vezes, este fenômeno da NEVUÁ ocorre nos relatos da TORÁ, sendo erroneamente traduzido
como “profecia”, o que confunde o entendimento do leitor e leva-o a interpretar tal ato de
“profecia” como um simples “predizer o futuro”. É claro que existe a profecia clássica onde
se declara a palavra de Deus clara e diretamente, prevendo acontecimentos ou juízos. Porém, há
fenômenos de Nevuá extática nas Escrituras que são mascarados sob a fraca tradução de
“profecia”. Dentre os vários exemplos, podemos citar a ocasião em que o Rei Saul envia
mensageiros para trazerem Davi, o qual estava na Casa dos Profetas, presidida pelo profeta
SAMUEL. O texto diz:
“Foi dito a Saul: Eis que Davi está na casa dos profetas, em Ramá. Então, enviou Saul
mensageiros para trazerem Davi, os quais viram um grupo de profetas profetizando, onde estava
Samuel, que lhes presidia; e o Espírito de Deus veio sobre os mensageiros de Saul, e também eles
profetizaram (teNAVU). Avisado disto, Saul enviou outros mensageiros, e também estes
profetizaram (teNAVÚ); então, enviou Saul ainda uns terceiros, os quais também profetizaram
(teNAVÚ). Então, foi também ele mesmo a Ramá e, chegando ao poço grande que estava em
Seco, perguntou: Onde estão Samuel e Davi? Responderam-lhe: Eis que estão na casa dos
profetas, em Ramá. Então, foi para a casa dos profetas, em Ramá; e o mesmo ESPÍRITO DE
DEUS O ENCHEU, que, caminhando, profetizava (itNAVÊ) até chegar à casa dos profetas, em
Ramá. Também ele despiu a sua túnica, e profetizou diante de Samuel, e, sem ela, esteve deitado
em terra todo aquele dia e toda aquela noite; pelo que se diz: Está também Saul entre os
profetas?” (1Sm 19:19-24)

O Rei Saul "profetizando" com os profetas - James Tissot


Nesta e em várias outras ocasiões nos relatos bíblicos, vemos que o ato traduzido como
“profetizar” não se caracteriza por um discurso direto e compreensível para uma platéia
específica (pois tal cenário não existiu em tais ocasiões). Vemos aqui um fenômeno causado pelo
encher do Rúach que é externado através de sons e palavras incompreensíveis ao intelecto, mas
compreensíveis ao próprio Espírito. Isso é o que chamamos de profecia extática. É importante
notar que, geralmente, quem escreve sobre um evento onde ocorreu uma profecia extática não
escreve sobre o conteúdo dessa profecia, provavelmente pois o ouvinte não conseguia
compreender o emissor. Apenas quando o ouvinte também é influenciado pela mesma fonte
(Rúach), ele consegue compreender o conteúdo deste tipo de NEVUÁ.
Se notarmos também o evento ocorrido em ATOS capítulo 02, podemos ver que o que ocorreu
assemelha-se muito ao processo de NEVUÁ (glossolalia) como os relatados no Tanách:
“…de repente, veio do céu um som, como de um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde
estavam assentados (…) Todos ficaram CHEIOS DO ESPÍRITO SANTO e passaram a falar em
outras línguas, segundo o Espírito lhes concedia que falassem. Ora, estavam habitando em
Jerusalém judeus, homens piedosos, vindos de todas as nações debaixo do céu. Quando, pois, se
fez ouvir aquela voz, afluiu a multidão, que se possuiu de perplexidade, porquanto cada um os
ouvia falar na sua própria língua. (…) tanto judeus como prosélitos, cretenses e arábios. (…)
Outros, porém, zombando, diziam: Estão EMBREAGADOS! Então, se levantou Pedro, com os
onze; e, erguendo a voz, advertiu-os nestes termos: (…) Estes homens não estão embriagados,
como vindes pensando, sendo esta a terceira hora do dia. Mas o que ocorre é o que foi dito por
intermédio do profeta Joel: E acontecerá nos últimos dias, diz o Senhor, que derramarei do meu
Espírito sobre toda a carne; vossos filhos e vossas filhas PROFETIZARÃO (NIVÚ), vossos
jovens terão visões, e sonharão vossos velhos;” (At 2:2-17)
Vemos claramente que Shimon (Pedro) ao explicar para a multidão atônita sobre o fenômeno
descrito acima, cita o profeta Joel cap. 02:28, afirmando que eles “NIVU” –
PROFETIZARAM (não no sentido clássico de “profecia” – declarar ou prever juízos ou
acontecimento futuros, mas da mesma forma que Saul profetizou em I Sm cap. 19). Tal como a
Nevuá extática, o fenômeno ocorreu como sinal e comprovação do mover de Deus. O Eterno,
visando testemunhar para os presentes e impactá-los com tal acontecimento, concede que parte da
multidão pudesse compreender (cada um em sua língua natal) o que os discípulos
“profetizavam”. Por esta razão, vemos que uma outra parte da multidão NÃO compreende e
afirma que os discípulos estavam “bêbados” (At 2:13).
Ora, mesmo que um judeu do 1º século não falasse árabe, não seria difícil perceber quando
alguém falasse o idioma árabe próximo a ele. Mesmo que não se entendesse o grego, um judeu do
Egito daquela época poderia discernir quando alguém falasse grego próximo a ele, pois os sons e a
entonação lhes seriam familiares. Assim, é certo que os judeus estrangeiros que ali estavam e que
afirmaram que os discípulos estavam “bêbados”, não estavam escutando línguas existentes
(como o árabe, o persa, ou o grego), mas sim, sons incompreensíveis ao intelecto, o que os fez
pensar que tais homens estivessem bêbados. Isso caracteriza uma NEVUÁ extática ou
GLOSSOLALIA. Por esta razão, vemos não existir diferença entre o fenômeno descrito em Nm
11:25, em I Sm cap. 19, em At cap. 02 ou explicado pelo rabino Shaul (Paulo) em I Co cap 12 e
cap. 14. A NEVUÁ e o chamado “dom de Línguas” representam O MESMO AGIR
SOBRENATURAL pelo Espírito de Deus. Todos são relatos e descrições do MESMO fenômeno
Espiritual que nunca foi EXCLUSIVO do NOVO TESTAMENTO, mas sim, um mover e um dom
do ETERNO já presente ao longo de toda a Tanách. É necessário, no entanto, perceber que Paulo
refere-se ao dom da profecia extática como “variedade de línguas” ou “línguas estranhas”
exatamente para diferenciá-lo do dom da Profecia clássica. O chamado “dom de línguas” não
representa o falar em idiomas conhecidos pelo homem, como explicado claramente pelo Apóstolo:
“Pois quem fala em outra língua não fala a homens, senão a Deus, visto que NINGÚEM o
entende, e em espírito fala mistérios.” [1Co 14:2 ARA]). Quando alguém fala em línguas e outro
ouvinte consegue entender como se fosse em seu próprio idioma, tem-se evidenciado uma
intervenção divina (também chamado por Paulo de “dom de interpretação de línguas” – ICo
14:27-28).

Shimon Keifa (Pedro) explicando o evento ocorrido durante Shavuot, em Jerusalém: "Eles
profetizaram"!
Portanto, como conclusão desse breve artigo, é necessário chamar a atenção do leitor para o
grande ceticismo moderno presente em alguns meios judaicos e também cristãos sobre a
autenticidade e veracidade do fenômeno da profecia extática (glossolalia). Esse descrédito é
compreensível considerando-se que nos últimos 150 anos, nos meios evangélicos pentecostais de
várias partes do mundo (e recentemente nos meios católicos carismáticos), vemos o exercício de
uma prática chamada “orar em línguas”, onde pessoas são ensinadas a exercer o dom de
“línguas estranhas” ou “línguas espirituais” acreditando-se ser o “dom de línguas
estranhas” mencionado pelo apóstolo Paulo. Não é intenção deste artigo justificar, julgar,
comprovar, incentivar ou deslegitimar tal fenômeno pentecostal cristão. Porém, mesmo que o
leitor julgue não existir paralelos entre as práticas pentecostais pós-modernas e a Nevuá extática
Bíblica, deve-se ter em mente que o fenômeno da Nevuá (ou línguas extáticas) nas Escrituras é um
fato inegável, perfeitamente passível de ser evidenciado em nossos dias da mesma forma com que
era evidenciado entre o povo hebreu e nas várias comunidades de discípulos de Yeshua (Jesus) ao
longo do 1º século. O verdadeiro “dom de línguas”, tal como explicado neste artigo, existe e
pode ser testemunhado e comprovado não só nos meios judaicos atuais, mas também em alguns
meios cristãos.

(*) Como explicado no artigo, o DOM de línguas ou ‫( ְנבּוָאה‬Nevuá – Profecia Extática) é uma
manifestação do Rúach na ALMA e no Espírito do indivíduo. É a expressão de um “encher” do
Espírito de Deus. No entanto, o ser humano pode, perfeitamente, se encher de “outros” espíritos
de outras origens. Todos já viram ou assistiram imagens de pessoas possessas, tomadas por
demônios, as quais também passam a proferir palavras sem nenhum sentido ao intelecto humano,
mas com certeza com um significado no mundo espiritual. Assim, a “glossolalia” como
fenômeno psicológico, pode também ser evidenciado em OUTROS ambientes e com OUTRAS
fontes. Porém, chamamos de “dom de línguas” ou profecia extática (Nevuá) APENAS quando
quando tal fenômeno (glossolalia) é originado e 100% controlado por influência do Espírito de
Deus

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