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Sexo e poder

A Família no Mundo, 1900-2000

Göran Therborn

1
Sexo e poder ................................................................................................................... 1

Göran Therborn............................................................................................................. 1

Entre sexo e poder ......................................................................................................... 3

Prefácio {à edição inglesa}............................................................................................ 4

Introdução: Sexo, poder e famílias no mundo. ............................................................ 1

Antecessores ................................................................................................................ 3

Temas .......................................................................................................................... 9

Buscando o mundo .................................................................................................... 11

PARTE 1...................................................................................................................... 15

Cap. 1: O Patriarcado: saídas de cena e desfechos. ................................................... 15

1 Modernidades e sistemas familiares. O patriarcado por volta de 1900.................... 18


Choques e Continuidades na Europa...........................................................................................................21
Na Fronteira: a governança do gênero nos assentamentos europeus.....................................................31
A dualidade da Sociedade Crioula: Famílias coloniais Indo e Afro-americanas após as revoluções.
...........................................................................................................................................................................................37
Embates Coloniais ..........................................................................................................................................42
Ásia do sul: as elites e os outros..............................................................................................................46
África: o amanhecer do choque colonial ...............................................................................................52
Os interstícios do Sudeste Asiático.........................................................................................................58
Ameaças imperiais .........................................................................................................................................64
Leste Asiático: a família nas modernidades reativas...........................................................................65
O Islã sob pressão ......................................................................................................................................74

2- O mundo do patriarcado por volta de 1900 ........................................................... 80

2
Entre sexo e poder
A instituição da família mudou tremendamente no decorrer do século 20. Nesta sua
nova e importante obra, Göran Therborn desenvolve a História Global e a Sociologia da
Família enquanto instituição assim como a Sociologia Política da família, focalizando três
dimensões das relações familiares: os direitos e poderes de pais e de maridos; o
casamento, a coabitação e a sexualidade extramarital; a fecundidade e o controle da
natalidade. A análise empírica de Therborn recorre a uma abordagem multidisciplinar para
mostrar como os principais sistemas familiares do mundo se formaram e se desenvolveram.
Seu escopo, verdadeiramente global, cobre a família nas seguintes regiões:
? Europa e Novo Mundo
? Ásia Ocidental e Norte da África
? Ásia do Sul e Leste Asiático
? África subsaariana
? América Crioula e Sudeste Asiático
Therborn conclui avaliando que mudanças a família deverá sofrer durante este novo
século.
Este livro é de leitura fundamental para todos aqueles interessados na História ou na
Sociologia da Família.
Göran Therborn é Diretor do Swedish Collegium for Advanced Studies in the Social
Sciences e Professor de Sociologia na Universidade de Uppsala.

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Prefácio {à edição inglesa}
Quando este texto estiver sendo lido, ao menos oito anos terão se passado desde
que meu amigo e distinto colega Frank Castles, então na Universidade Nacional Australiana,
pediu-me para escrever um livro sobre a instituição da família no mundo entre 1901 e 2001.
Pretendia-se que fizesse parte de um amplo programa de pesquisa australiano, celebrando
o Centenário do Estado australiano. A oferta foi feita não a um sociólogo da família, mas a
um cientista social comparativista, cujo único mérito pertinente era ter realizado um estudo
da ascensão dos direitos das crianças nos países da OCDE. 1
Perdi a data do Centenário em 2001, sem, penso eu, ter comprometido de nenhum
modo suas solenes celebrações. A tarefa era atemorizante. Contudo logo fiquei arrebatado
pelo tópico e, independentemente do que se possa achar dos resultados, pes soalmente,
aprendi bastante. Sou muito grato a Frank Castles pelo desafio. Os trabalhos empíricos
preliminares que eu mesmo realizara tinham-me deixado uma sensação de alguma
familiaridade com o vasto campo.
Infelizmente, meu eminente predecessor na área, William J. Goode – Si, para os
amigos -, morreu repentinamente em maio de 2003. Ele começara a ler e a comentar,
cuidadosamente, meu manuscrito, mas eu nunca soube sua avaliação final: Perdi o meu
prazo mais importante. Nossas perspectivas teóricas eram fundamentalmente diferentes,
mas eu admirava-o como um grande estudioso, gostava dele e sinto sua falta enquanto
pessoa das mais agradáveis.
O Colégio Sueco para Estudos Avançados nas Ciências Sociais é um excelente local
de trabalho e gostaria de agradecer o Presidente de nosso Conselho, Professor Sverker
Gustavsson por seu inabalável apoio. O projeto foi desenvolvido a partir da Universidade
Nacional Australiana e a hospitalidade recebida durante duas visitas de pesquisa, o
amigável colegiado de sua Escola de Pesquisa, com seu arco de expoentes da Filosofia
Política à Demografia, passando pela Ciência Política e pela Sociologia, assim como os
recursos de sua excelente biblioteca foram cruciais para este trabalho.
Tenho também uma dívida intelectual para com meus estudantes na Universidade
Pompeu Fabra em Barcelona e com meu distinto amigo Vicenç Navarro, que me convidou
para lá ministrar um curso no verão de 2000. O curso deu-me razões para repensar a
sinopse do livro.
Minha mulher Sonia tem sido a mais importante colaboradora neste projeto, em
todos os seus estágios: da concepção, delineada com base em sua experiência psicológica
à coleta e armazenamento de dados e referências. Este projeto, mais do que acadêmico, foi
um pequeno empreendimento familiar.

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Como sempre, todos os erros são de responsabilidade do autor. Mas espero que o
leitor partilhe comigo um pouco do prazer que tive em escrever este livro.
Göran Therborn
Uppsala, julho de 2003.

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Introdução:

Sexo, poder e famílias no mundo.


O sexo é uma força básica de orientação da biologia humana; o poder é um aspecto
fundamental da sociologia humana. Sexo e poder não são mundos distintos um do outro,
mas estão entrelaçados um no outro. O poder pode ser observado no reino animal,
enquanto as formas de sexualidade humana são socialmente construídas e variáveis.
Ambos são moedas convertíveis e mescláveis uma na outra. O sexo pode levar ao poder
através do canal da sedução. O poder é também uma base de obtenção do sexo, pela força
ou azeitado pelo dinheiro e por tudo aquilo que ele pode comprar. A família é um espaço
cercado nos campos de batalha abertos pelo sexo e pelo poder, delimitando a livre
competição através de fronteiras entre membros e não membros; substituindo o comércio
livre e o combate perpétuo por direitos e obrigações. Como tal, a família é uma instituição
social, a mais antiga e a mais disseminada de todas.
Em um importante livro, dois sociólogos americanos argumentaram que a família, ou,
ao menos, a família americana estava em transição – deixando de ser uma instituição para
ser “companheirismo”. Isto foi em 1945, de modo que, se eles estivessem certos, não teria
sobrado muito da instituição. Mas eles estavam usando o termo instituição em um sentido
mais estreito do que o faz grande parte da Ciência Social contemporânea. Para Burgess e
Locke2, uma “família institucional” seria tipicamente aquela cuja unidade estaria totalmente
determinada pela pressão social imposta aos seus membros, enquanto que a unidade da
família como companheirismo surgiria da afeição mútua e da associação íntima. Neste livro,
uma instituição é um conjunto de normas definindo direitos e obrigações dos membros e
limites entre eles e os não-membros. Os tipos de afeto e intimidade referidos à família são
ainda governados por este complexo de normas e uma brecha nas normas – que
certamente ocorre – não significa que elas tenham desaparecido.
A família está suspensa entre o sexo e o poder, enquanto forças biológica e social.
Mas, seguramente, ela não é um porto seguro ou uma fuga do poder e do sexo. A família é
sempre um resultado das relações sexuais passadas ou correntes: sem sexo não há família.
Mas é um regulador das relações sexuais, determinando quem pode e quem deve ou não
ter relações sexuais com quem. As relações de poder estão inscritas nos direitos e
obrigações dos membros da família. De fato, é questão de bom senso analítico, perceber
uma instituição em termos de equilíbrio entre o padrão de direitos e obrigações, de um lado,
e a distribuição de recursos de poder entre os membros de outro. Este balanço ou equilíbrio
explica a resiliência de uma forma institucional, uma vez estabelecida – no caso, de certo

1
tipo de família. Aqueles a quem ela privilegia, através dela podem manter seus status
porque seus recursos de controle e de sanção coincidem com seus direitos, enquanto que
aqueles que têm poucos recursos de poder têm mais obrigações do que direitos.
A mudança institucional é assim induzida por eventos ou processos que desarranjam
um dado balanço entre, de um lado, diretos e obrigações e, de outro, poderes e
dependências. Pais podem perder sua propriedade, filhos podem ter a oportunidade de ir
para a escola, mulheres podem conseguir oportunidades no mercado de trabalho, as
tradições religiosas podem enfraquecer, os estados ou as organizações internacionais
podem se intrometer nas famílias, limitando o poder de pais e maridos e municiando as
filhas rebeldes com rotas de fuga. Ou então, as forças que afetam o equilíbrio existente
podem trabalhar no sentido contrário: a propriedade familiar – e o seu controle e
transmissão – pode tornar-se mais importante, como ocorreu na China em décadas
recentes; as mulheres podem ser pressionadas para fora do mercado trabalho – como tem
sido tentado, pelo menos do Elba até o Mar Amarelo; os suportes religiosos para os direitos
de pais e maridos podem se tornar mais fortes; e ainda persiste a lembrança de quando os
pais franceses tinham o direito de enviar as crianças desobedientes à penitenciária estatal.
A privacidade da vida familiar esteve sempre ligada à autoridade societária através
de direitos e deveres institucionalizados, prescritos e proscritos por organizações religiosas
mantidas ou autorizadas por autoridades políticas ou diretamente pela legislação estatal.
Mas os vínculos podem ser distantes e/ou tênues, completamente perdidos nos labirintos
das estruturas de poder das famílias individuais ou, então, modificados pelos costumes
locais ou provincianos. Uma visão global da família terá que apreender algo da diversidade
na qual existem estes poderosos cânones da autoridade.
Todo presente tem seu passado. A família é uma instituição antiga; suas origens vão
além da história. Mas este é um estudo da família a partir das experiências e preocupações
presentes na virada do século XX para o XXI. Embora escrito de um modo mais acadêmico
do que opinativo e com a perspectiva de um autor individual, este livro é produto de um
período que assistiu aquilo que, nas barricadas, Juliet Mitchell 3, chamou de “A Revolução
Mais Longa”, referindo-se às mulheres,e que Francis Fukuyama, do lado oposto, denominou
“A Grande Ruptura”. Está sendo lançado em uma época em que o “casamento
heterossexual” é visto como “profundamente minado pela ascensão do relacionamento puro
e da sexualidade plástica”4 e quando aparentemente faz sentido discutir “O Fim do
Casamento” 5 ou “O que vem após a família”6.
Se tudo isto for verdade, talvez se possa, ao menos, entender – sem
necessariamente concordar com ele - o grande economista americano que compara o
“desastre” da “falência do sistema familiar na Europa” com a Fome Irlandesa de Batata 7.

2
Deparamo-nos com o fato de que a “família ocidental” está sendo considerada amplamente
como “em grande desordem” por escritores de vozes estridentes e fortes opiniões 8.

Antecessores
A problemática deste livro é, portanto, naturalmente diferente daquela dos clássicos
que o precederam, em cujos ombros estou sentado, olhando o passado, o presente e o
futuro. O mais próximo no tempo, o de maior afinidade e até mesmo com certa proximidade
pessoal é a obra máxima de William J. Goode9: Revolução Mundial e Padrões de Família,
que procurou “descrever e interpretar as principais mudanças nos padrões familiares
ocorridas na metade do século passado no Japão, na China, na Índia, no Ocidente, na
África subsaariana e nos países árabes e relacioná-las às diversas alterações em outras
10
áreas institucionais.” – um empreendimento ousado que Goode, auxiliado por uma vasta
rede de ilustres informantes, desenvolveu com enorme perspicácia empírica e concluiu com
infalível sabedoria. Seu livro é um marco da Ciência Social Comparativa.
Contudo, no mundo do academicismo e do compromisso intelectual com as idéias, o
respeito e a admiração não significam adulação e deixam espaço para a crítica. Com a
retrospectiva de quatro décadas, posso ver três principais conjuntos de problemas na obra
de Goode. Primeiro, seu foco da mudança - em outras palavras, sua variável dependente –
é uma “tendência em direção a algum tipo de padrão de família conjugal – isto é, em direção
à redução dos laços com parentes distantes e uma maior ênfase na unidade familiar
11
‘nuclear’ formada pelo casal e seus filhos” . Afortunadamente, sua análise real foi além
desta perspectiva e acabou por incluir padrões de casamento e relações entre maridos e
esposas, pais e filhos; mas ela prejudicou, sim, a percepção dos outros temas. Sua
formulação deu um caráter elusivo à variável chave de Goode:“a característica mais
importante da construção típico-ideal da família conjugal é a exclusão relativa de uma
ampla variedade de parentes consangüíneos e afins dos assuntos quotidianos. A rede de
parentesco não tem grande extensão”, “ A localização do domicílio do casal não será mais
em grande parte determinado por seus parentes... A escolha do parceiro é mais livre do que
nos outros sistemas”12. Mesmo o tipo ideal é formulado em termos de mais ou menos.
A perspectiva não discute de modo sistemático, até que ponto isto significaria algo
além da justificativa de que o resto do mundo está se aproximando da conjugalidade pré-
moderna da Europa ocidental. Do modo como estão formuladas, como uma direção da
mudança, as avaliações apóiam-se pesadamente na perspectiva permitida pelo ponto
específico do qual o ritmo da mudança é observado. Quarenta anos mais tarde é fácil
perceber que muitas das mais dramáticas mudanças na família – como vistas hoje –de fato
ocorreram após os primeiros anos da década de sessenta, quando Goode já estava
terminando seu livro. O envelhecimento da perspectiva é reforçado pelo fato de Goode ter

3
se abstido de considerar tipos ideais alternativos e de avaliar a quantidade de mudança de
um ao outro.
Em segundo lugar, a principal variável explicativa de Goode, “as forças sociais da
industrialização e da urbanização” é pouco clara com relação ao seu significado e ao modo
como influencia a família. “Com referência ao mundo moderno, não parece ser possível ou
útil distinguir claramente entre os efeitos separados da urbanização e industrialização (itálico
original)”; (...) ”o elemento central da industrialização é um fator social, a liberdade de
13
alguém usar seus talentos e habilidades na melhoria de seu trabalho” . “A característica
social fundamental da moderna empresa industrial é a de que, idealmente, a atribuição de
um emprego a um indivíduo tem por base sua habilidade em satisfazer as exigências deste
14
emprego e de que sua realização é avaliada por critérios universalistas. . A explicação
maior parece ser uma cultura econômica da realização e do universalismo, difícil de manejar
na pesquisa histórica comparativa sob qualquer circunstância e não operacionalizada
através de indicadores. Seu idílio típico ideal, contudo, não parece capturar os processos de
proletarização e de acumulação de capital aos quais, na verdade, a industrialização esteve
assoc iada historicamente. Mas aqui, novamente, Goode é muito melhor do que sua teoria,
injetando algo de uma perspectiva de classe nas “variáveis-padrão” 1 parsonianas. Por
exemplo, ele nota que uma vez que é o “estrato superior” que controla os novos empregos
industriais, seus membros podem continuar a controlar os seus filhos.15.
Em terceiro lugar, o argumento explicativo básico de Goode é claramente funcional,
a “Adaptação” entre a Família Conjugal e o Moderno Sistema Industrial 16. A família conjugal,
mais limitada, abre os canais de mobilidade requeridos pelo sistema industrial. Sua “ênfase
na emotividade” compensa a “férrea disciplina” e a insegurança emocional do trabalho
industrial. Deste e de outros modos semelhantes “as necessidades do sistema industrial são
17
(...) satisfeitas pelo padrão de família conjugal”. . Goode tem perfeita consciência das
severas limitações de seu funcionalismo, estabelecido principalmente em termos de
18
“harmonia teórica” ou “adaptação” ; e reconhece a possibilidade dos sistemas familiares
afetarem a industrialização, concedendo um papel significativo à “ideologia”: a ideologia da
família conjugal, do individualismo e do igualitarismo19 .
Apesar de toda a ousadia e brilho do seu autor, Revolução Mundial e Padrões de
Família está preso no paradigma teórico prevalecente em seu tempo e lugar: o estruturo-
funcionalismo parsoniano, e com sua visão em parte ofuscada pela luz mortiça
remanescente da Antropologia evolucionista do parentesco. A nuvem funcionalista que paira
sobre as investigações de Goode impede qualquer atenção sistemática aos caminhos
efetivos para a secularização, para a escolaridade, para o conflito político e para as

1
N.T. “pattern variables”

4
mudanças do poder político, por exemplo. Além disto, sua história termina antes das
dramáticas mudanças nos padrões de família no último terço do século XX.
O aspecto mais fascinante da obra de Goode sobre a família, que também inclui,
entre outros, um monumental tratado sobre o divórcio20, e ao qual, teremos razões para
retornar é sua curiosidade sobre o mundo e seu conhecimento dele. De fato, em uma
história futura de Ciência Social Comparativa, sociólogos da família merecem atenção
central. As correntes opacas da moda teórica e o poder institucional tenderam a empurrar os
estudos de família, empíricos ou teóricos, para a periferia da Ciência Social Geral. Contudo,
no campo da pesquisa empírica de grande abrangência, em grande escala, historicamente
consciente e perspicaz, a Sociologia da Família tem uma linhagem impressionante.
Goode permaneceu como uma baliza para a Sociologia Comparativa da Família,
mas suas conquistas não representam o ápice dos estudos de família, de um modo geral.
Mais tarde apareceram muitos trabalhos de época, principalmente, mas não exclusivamente,
em outras disciplinas: História, Antropologia, Demografia e Economia. Quem quer que hoje
esteja engajado nos estudos de família tem dívidas com um expressivo número de grandes
acadêmicos e com seus projetos coletivos em larga escala, tais como Ansley Coale e o
Princeton European Fertility Project (Projeto Princeton sobre Fecundidade Européia), o
falecido Peter Laslett e o Cambridge Group on the History of Population and Social
Structure; (Grupo de Cambridge sobre História da População e Estrutura Social); a historias
coletivas tais como o estudo global editado por André Burguière et al., e aquele por Gordon
Anderson; o projeto Eurásia, atualmente em curso, desenvolvido em rede, cobrindo do Leste
da Ásia à Europa ocidental (de George Alter et al), e o trabalho europeu por David Kertzer e
Marzio Barbagli; a historiadores individuais, como John Gillis, Karl Kaser, Michael Mitterauer,
Joan Scott e Louise Tilly; ao antropólogo histórico global Jack Goody; aos demógrafos
sociais e históricos como P.N. Mari Bhat, John Caldwell, Jean-Claude Chesnais, Gavin
Jones, Dirk van den Kaa, James Lee, Ron Lestaeghe, Peter McDonald e Wang Fen; às
economistas feministas do desenvolvimento como Esther Boserup e Bina Agarwal; a juristas
e historiadores do Direito como David Bradley, John Eekelaar e Mary Ann Glendon. Os
estudos de família atraíram também uma grande quantidade de pesquisas orientadas para
políticas, entre as quais sobressaem os projetos comparativos em larga escala de Franz
Xavier Kaufmann et al., e de Sheila Kamerman e Alfred Kahn.
Um teórico da família, muito frequentemente elogiado, estará ausente da discussão.
O prêmio Nobel Gary Becker 21. Não se trata de entrar em uma querela disciplinar. A
modelagem derivada de proposições, típica da Economia neoclássica, emerge fatalmente
como paroquial em qualquer perspectiva comparativa, histórica ou espacial. Por exemplo,
22
de acordo com Becker “O divórcio é mais provável quando a taxa de salário da mulher é
alta em relação à do marido.” Embora esta afirmação possa parecer senso comum, em nada

5
nos ajuda se quisermos explicar a história real das taxas de divórcio no mundo, as taxas
espetacularmente altas entre os malaios muçulmanos até cerca de1970, quando a maioria
das mulheres não era assalariada, as taxas de divórcio tradicionalmente altas entre as
populações árabes, onde virtualmente nenhuma mulher casada jamais teve um salário, ou
porque a Escandinávia tem taxas de divórcios mais baixas e taxas de salário feminino mais
altas do que os Estados Unidos. Na explicação de diferentes taxas de casamento e de
vínculos sexuais, que uso terá a seguinte proposição: Uma pessoa ingressa no mercado
matrimonial se espera que seu rendimento marital exceda sua renda de solteiro” 23? A
pesquisa comparativa tem seu foco na variabilidade do senso comum, dos parâmetros
institucionais e, desta perspectiva, Becker, apesar de todos os seus poderes intelectuais,
parece preso à América do meio-oeste.
Por mais páginas que eu escrevesse dificilmente conseguiria uma avaliação justa do
trabalho destes e de outros eminentes e relevantes predecessores e colegas
contemporâneos. Em vez disso, portanto, recuemos brevemente um pouco mais na árvore
genealógica da família.
Antes de William J. Goode, duas figuras da Sociologia da Família destacaram-se das
demais. Frédéric Le Play e Edward Westermarck, ambos extremamente bem sucedidos e
influentes em seu tempo, mas, atualmente, quase totalmente esquecidos fora de seus
países de origem (respectivamente, França e Finlândia), exceto por um pequeno corpo de
especialistas. Ambos foram há muito excluídos da lista dos clássicos da disciplina. Le Play
jamais conseguiu consagração comparável a de seus rivais franceses, Émile Durkeim e
René Worms. Com a ascensão de Bronislaw Malinowski ao centro da Antropologia como
disciplina assim como à cátedra de Antropologia na London School of Economics, onde
Westermarck ensinava, este se tornou um pré-clássico. Embora as dúvidas sobre a
importância, para o desenvolvimento das Ciências Sociais, da eventual ressurreição destes
ancestrais pareçam bastante legítimas, no contexto da História Sociológica da Família, eles
merecem ser reverenciados.
Fréderic Le Play (1806-82) deixou um legado duradouro aos historiadores e
antropólogos da família, menos visível na Sociologia da Família dominada pelos Estados
Unidos e menos relevante para as preocupações atuais sobre a família do Atlântico norte:
ou seja, uma tipologia de estruturas familiares acondicionada nas preocupações com a
crise, de acordo com o tempo e ambiente de Le Play: o Contra-Iluminismo do catolicismo
social francês de meados do século XIX. A roupagem ideológica foi descartada, mas a
análise estrutural de Le Play foi aperfeiçoada e posta em uso. Um maitre-penseur francês do
final do século XX, Emmanuel Todd 24 tomou-a como base para explicações de longo
alcance dos desenvolvimentos ideológicos e políticos na Europa.

6
Le Play distinguia três tipos de família a partir das relações entre os pais e os filhos
2
casados: a “família patriarcal”, que hoje é denominada, usualmente de “família indivisa”
(patrilinear); a famille souche traduzida para o inglês como “família-tronco” (stem family) e a
“família instável” chamada, na linguagem do século XX, de família conjugal ou nuclear. Na
família patriarcal que Le Play encontrou “entre os nômades orientais, os camponeses russos
e os eslavos da Europa central”, os filhos casados permaneciam com ou próximos de seu
pai, que continuava exercendo autoridade sobre eles e seus descendentes. A preferência de
Le Play recaía sobre a família-tronco, uma estrutura agrária sedentária encontrada na
Europa ocidental, em particular na Inglaterra, após ter sido solapada pelas leis de herança
da Revolução Francesa – estipulando direitos iguais de herança entre os filhos – e pela
proletarização. Na família tronco, o pai retém o controle sobre a transmissão da propriedade,
mas apenas um único filho casado permanece com os pais, herda e cuida do lar paterno,
enquanto os outros recebem um dote e se estabelecem por conta própria.
Por causa das regras de herança, liberdade de testamento e propriedade matrimonial
unificada sob o comando do marido/pai, Le Play 25 era muito positivo com relação aos
britânicos: “A raça anglo-saxônica (...) tem valorizado a necessidade de manter firmemente
a organização da família sob a proteção tutelar da autoridade paterna.” “É na Inglaterra (...)
que a autoridade paterna e a família (...) parecem apresentar aqueles traços mais
26
recomendáveis.” Na classe trabalhadora industrial européia Le Play notou o predomínio
de uma família “instável”, isto é, uma família formada pelo casamento, crescendo com a
chegada das crianças, encolhendo com a partida dos filhos adultos da casa e dissolvendo-
se após a morte dos pais, enfim, uma família conjugal neolocal, que estabelece seu próprio
domicílio com o casamento.
Este esquema, com seu foco nas regras de herança e em seu efeito na organização
da família e nos padrões de interação, transformou-se em uma frutífera abordagem
estrutural comparativa dos sistemas familiares27. Sua distinção entre a família indivisa
patrilinear da Europa oriental e os padrões familiares da Europa ocidental foi corroborada
mais tarde por historiadores especializados28.
Le Play era um engenheiro de minas, com uma licença anual para pesquisa do
Ministério dos Trabalhos Públicos, que ele usou para estudar não apenas os mineiros e
metalúrgicos europeus, mas também as condições sociais européias. Sua principal obra,
Les Ouvriers Européens (Os operários europeus) apareceu em sua primeira edição em
1855. Ele trata de uma vasta gama de condições de vida de famílias de operários e de

2
NT: No Brasil, há diferentes traduções para “joint family” e “stem family”. Optou-se pela
tradução mais próxima dos termos consagrados pela tradição antropológica e sociológica francesa –
“joint family” por família indivisa (famille indivise) e stem family por família-tronco (famille souche)

7
agricultores, com base na observação direta e com o foco sobre o orçamento familiar. Mas
nesta obra, sua tipologia de família estava apenas esboçada29 e só mais tarde foi formulada
mais claramente30. Durante o Segundo Império, Le Play foi importante figura pública. Uma
introdução em inglês à sua volumosa obra, bastante útil, é a seleção de textos
acompanhada por uma biografia curta editada por Catherine Bodar Silver 31.
Edward Westermarck (1862-1939) fazia parte da elite liberal fínlando-sueca no então
Grão-Ducado Russo da Finlândia. Seu primeiro trabalho importante The History of Human
Marriage32 (A História do Casamento Humano), uma edição inglesa expandida de sua
dissertação de 1889, foi prefaciada e lida ainda na prova pelo grande naturalista
evolucionista inglês Alfred Wallace e pelo vice-cônsul britânico em Helsingfors que o ajudou
com a língua inglesa. O livro foi um grande sucesso, tendo cinco edições e várias traduções.
Ele conseguiu para seu autor o cargo de professor (de Filosofia Prática) em Helsingfors
(hoje a Helsinque de língua finlandesa) e um cargo de professor de Sociologia em tempo
parcial na London School of Economics (1907-30)
Posteriormente, Westermarck conduziu extenso trabalho de campo no Marrocos,
mas a primeira edição de seu livro sobre o casamento baseou-se em pesquisa bibliográfica
e em um questionário sobre culturas e costumes de fora da Europa, dirigido a missionários e
outros informantes parecidos. Sua referência temporal é quase infinita, começando com o
acasalamento e a paternidade entre animais, particularmente pássaros e objetivando
capturar a história humana desde os “selvagens” até a legislação “civilizada” do final do
século XIX. Seu alcance espacial é global. Sua argumentação tem um estilo um tanto
anedótico, a imensa área coberta o obriga a ser conciso; os costumes de diferentes épocas,
de pequenas tribos e grandes impérios são justapostos diretamente uns aos outros e faltam
dados estatísticos sistemáticos. Este foi um estilo atacado e abandonado pela nova
disciplina Antropologia em prol da observação intensiva das sociedades delimitadas em
pequena escala. Contudo, a amplidão dos conhecimentos do autor é por demais
impressionante e o livro é uma análise poderosa, baseada em extensa evidência empírica.
Ele trata de diversos tópicos de relevância direta para este livro, tal como a liberdade de
escolha do parceiro matrimonial, as relações entre marido e esposa e pais e filhos, as
possibilidades e as práticas do divórcio.
Em seu próprio tempo, seu impacto parece ter-se devido, acima de tudo, ao descarte
dos mitos prevalecentes sobre a promiscuidade primitiva; o tema principal da dissertação de
Westermarck33 é o interesse na seleção sexual, sua explicação do tabu do incesto com base
no instinto: “uma aversão inata ao casamento entre pessoas que vivem juntas, de forma
34
muito íntima, desde o começo da juventude.” . Mas Westermarck também tinha algo a
dizer sobre um tema chave deste livro.

8
Em 1891, ele concluiu: “O casamento tem sido assim sujeito à evolução de várias
formas, embora o curso da evolução não tenha sido sempre o mesmo. A tendência
dominante deste processo, em seus últimos estágios tem sido a extensão dos direitos das
esposas... A história do casamento humano é a história da relação na qual as mulheres vem
gradualmente triunfando sobre as paixões, os preconceitos e o egoísmo dos homens.”35. Um
neto de Westermarck poderia ter escrito isto em 1991 e ainda estaria no meio do processo
de mudança. Quanto às prospectivas para 2091, veremos abaixo.

Temas
Este livro tem três temas principais, que refletem como o autor está tentando, de
modo acadêmico, entender seu tempo e seu contexto. O primeiro deles é o patriarcado e os
direitos e deveres relativos, de pais e filhos, homens e mulheres. A “regra do pai” é aqui
vista de um modo mais amplo do que por Le Play, na medida em que se refere aos poderes
familiares masculinos, não importando se de pais, tios maternos nas sociedades
matrilineares, maridos ou outros membros da família enquanto homens. Seu foco principal
são as relações entre pais e filhos adultos 36 e as relações entre maridos e esposas. O poder
parental estará amplamente concentrado no controle – grau ou ausência – sobre os
casamentos dos filhos e sobre a formação de domicílios, enquanto o aspecto mais
importante do controle sobre o curso de vida da nova geração; mas também se prestará
atenção à discriminação das filhas, intra-específica à família, do infanticídio ou desnutrição e
negligência até a deserdação.
Nesta perspectiva, o poder e o controle parentais serão considerados como
manifestações do patriarcado, sem dele excluir ou singularizar as mães casamenteiras e as
sogras controladoras, uma vez que elas são delegadas do poder paterno ou a ele estão
vinculadas. O poder sexual masculino sem significado parental será referido como
falocracia, que pode ser considerada como um irmão mais moço do patriarcado.
O poder paterno é o significado central do patriarcado, histórica e etimologicamente e
várias vezes e em vários lugares, teremos que fazer o inventário do modo como ele opera.
Este nos revela algo importante sobre as recentes mudanças no Reino Unido, a ponto de
uma influente teórica feminista britânica, em 1990 e em todas as oito reimpressões durante
os anos noventa, ter podido descartar o poder paterno, como, no mínimo, irrelevante: “Esta
inclusão da geração na definição [do patriarcado] é confusa. É um elemento contingente e
seria melhor se fosse omitido.”37. Com esta reserva, a abordagem do patriarcado neste livro
deve muito ao feminismo contemporâneo e à sua crítica sobre o silêncio masculino sobre o
tema no século XX.
Pais poderosos são também maridos, de modo que parece ao mesmo tempo lógico e
prático estender a noção de patriarcado ao poder dos maridos. Examinaremos suas várias

9
prerrogativas legais e/ou reais: na tomada de decisão na família, enquanto “chefe de
família”, no controle das atividades e da mobilidade de suas mulheres, na poliginia e nos
duplos padrões sexuais. Também examinaremos a discriminação contra as filhas e os
sacrifícios especiais exigidos das mulheres por razões sexuais masculinas, tal como o
esmagamento dos pés das meninas na China imperial, eufemisticamente chamado de
“enfaixe do pé”, ou a mutilação genital. Mas o patriarcado, neste livro, não terá sua relação
com a família afrouxada de modo a se tornar sinônimo de subordinação, discriminação ou
desvantagem social das mulheres em geral. A discriminação de gênero e a desigualdade de
gênero devem ser vistos como conceitos mais amplos do que o de patriarcado, com sua
tradição familiar e conotações históricas. Uma erosão significativa e até mesmo o
desaparecimento deste último não acarreta necessariamente o fim da discriminação e da
desigualdade de gênero e realmente não o promoveu, como veremos.
Um segundo tópico principal deste livro refere-se ao papel do casamento e do não-
casamento na regulação do comportamento sexual e nos ligações sexuais em particular. O
viver sozinho e as ligações sexuais informais, como na coabitação ou em qualquer outra
forma, não são invenções recentes. Elas já estavam amplamente disseminadas no noroeste
da Europa e na América Latina e no Caribe ao tempo de Le Play e Westermarck. Este último
até mesmo observou, há mais de um século atrás que “a proporção de não casados vem
crescendo gradualmente na Europa”38. Historicamente, as taxas de casamento realmente
tanto subiram quanto desceram e as taxas atuais de não casamento, nascimento
extramarital e coabitação informal do Atlântico Norte não são, de modo algum, únicas na
história moderna, como a análise global irá mostrar.
Os costumes atuais e os debates na Europa, nas Américas e na Oceania enfatizam a
idéia de que a Sociologia da Família contemporânea não pode negligenciar a revolução
sexual dos anos sessenta e setenta. O casamento deveria ser visto não (apenas) como uma
instituição sui generis, mas como o elemento mais importante de uma ordem sócio-sexual
em mutação. Prestaremos especial atenção à posição sexual dos adolescentes em todo o
mundo, uma vez que a adolescência é a entrada normal naquela ordem, de um modo ou de
outro.
A terceira parte do livro trata do passado, do presente e das perspectivas futuras da
fecundidade e do controle da natalidade, com suas implicações para o envelhecimento e
para as mudanças geopolíticas. Assim, ela relata também o começo do declínio da
população na Europa, o rápido envelhecimento do Japão e a emergente escassez de
crianças em algumas regiões do mundo, em decorrência de um esforço global de controle
de natalidade extremamente bem sucedido.
Tentaremos entender, de modo particular, a relação entre a intimidade sexual dos
casais individuais de um lado, e, de outro, as ondas de mudança na fecundidade, nacionais,

10
continentais e intercontinentais. Isto nos conduzirá às questões referentes à política, aos
movimentos sociais, aos estados e às organizações supranacionais. Novamente, teremos
que estar muito cônscios dos múltiplos níveis e dimensões da política do patriarcado, assim
como daquela do casamento e da sexualidade.
Estes três temas serão perseguidos através de um século, de 1900,
aproximadamente, até 2000 e além. Contudo, nem a tradição morreu em 1900 nem a
modernidade começou em 1901. Mudanças consideráveis no patriarcado já haviam ocorrido
até 1900, embora não tantas como esperava Westermarck ou temia Le Play e as origens
dos padrões coletivos de controle da natalidade retrocedem ao século XVII. Embora,
geralmente, se faça funcionar o relógio investigativo perto de 1900, a pré-história não pode
ser interpretada como pré-história, como se fosse alguma “primordialidade”
Os temas deste livro cruzam disciplinas acadêmicas e o autor tentou seguir as trilhas
dos primeiros, mais do que as fronteiras destas últimas. A área de pesquisa é indicada pela
Sociologia, Direito e Demografia, mas o ferramental e as experiências da Antropologia, da
História e da Ciência Política também foram acionados, porque a tarefa não envolve apenas
as estruturas normativas da família, mas sua operação real e seus limites, através do mundo
e durante um século ou mais.

Buscando o mundo
A História tem suas ironias mesmo no pequeno mundo acadêmico. O funcionalista
parsoniano – usualmente um credo do moderado conservadorismo/liberalismo da
complacente corrente predominante americana – William Goode falava sobre “revolução
mundial” no início dos anos sessenta. É verdade que a revolução mundial a que Goode se
referia não desfraldava a bandeira vermelha. Era feita de industrialização e de urbanização,
enquanto forças sociais “afetando toda sociedade conhecida”. Em contraste com a
presumida universalidade desta “revolução” estaremos aqui à procura de algo que soa muito
mais anódino, por “globalidade”.
Globalidade, no sentido usado aqui, refere-se a conectividade, variabilidade e
intercomunicação de fenômenos sociais, em oposição à banalidade, singularidade e
orientação em um único sentido de forças universais. Isto é, refere-se às conexões entre
diferentes forças e eventos em diferentes partes do globo, à variabilidade mundial de
processos causais, tanto das formas institucionais quanto dos resultados; ao significado da
comunicação entre atores em diferentes continentes.
Neste sentido, há uma História global e uma Sociologia global da família. É global
também em um sentido literal de circunferência planetária. Goode deixou de fora a América
Latina e o Caribe, o Oeste não árabe da Ásia e a Ásia do Sul. Para um bom americano, a
Europa estava subsumida, juntamente com o Novo Mundo, no “Complexo Cultural

11
Ocidental”, e foi dada uma extensão original aos Urais, sem permitir que o legado da
Revolução de Outubro pesasse significativamente sobre ele. A Guerra Fria colocou seus
limites ao que tinham escrito os americanos de mente aberta. Historicamente, sua
subsunção da Europa à rubrica “ocidental” velou importantes diferenças históricas entre as
famílias da Europa oriental e ocidental, assim como os aspectos especiais dos
assentamentos de além-mar.
39
O trabalho coletivo de Burguière et al. , apesar de todos os seus recursos de
especialização regional, não consegue uma imagem planetária por causa de sua visão
parcial da América Latina e uma total negligência da Ásia ocidental não árabe e do Sudeste
da Ásia.
Como pode um pesquisador solitário, sem colegas especialistas para ajudá-lo,
alcançar globalidade empírica? Por meio de um quadro analítico e muito trabalho. Qualquer
análise séria da família, comparativa em termos globais, teria que começar com famílias de
famílias, com sistemas familiares. Caso contrário, a miríade de diferentes famílias individuais
seria impossível de ser administrada. Mas, quais famílias de famílias, qual tipologia de
famílias? Parece haver três alternativas principais. Uma seria estrutural, distinguindo
aspectos da estrutura institucional, possivelmente vinculada à tipologia de Le Play. Outra
focalizaria a base normativa dos diferentes sistemas familiares na história. Grande parte
desta base seria religiosa – cristã, muçulmana, hindu, confucianista, budista, etc., ou
racionalista secular.
Embora ambas sejam factíveis, este estudo optou por um terceiro tipo de guia, um
mapa geocultural. Uma bússola puramente estrutural não parece ser a mais adequada para
apreender e explicar as mudanças culturais de longo prazo nas três dimensões temáticas.
Os sistemas religiosos, assim como outros sistemas de valores vastos e profundos, diferem
não apenas em suas concepções de família, mas também em seu interesse normativo por
ela e em seu significado normativo para ela. O mais importante é que as práticas religiosas
das instituições sociais podem variar fortemente de lugar a lugar. Um casamento cristão na
África, por exemplo, é bem diferente de um na Europa, e uma família muçulmana no Punjab
está longe de ser idêntica a uma de Java. Além disso, processos de secularização mudaram
a relevância da religião para os sistemas familiares.
“Geocultura” é um termo cunhado por Immanuel Wallerstein40 em analogia com
geopolíticas, para o “lado de baixo”, o “quadro cultural” do sistema mundial. Mas, uma vez
em domínio público, a noção pode ser usada para outros propósitos além da análise do
sistema mundial. Em nosso contexto, o termo é atraente para indicar uma âncora geográfica
e cultural das normas e das instituições. Entender os sistemas familiares como geoculturas
significa tratá-los como instituições ou estruturas que tiram suas cores dos costumes e das
tradições, da história de uma área particular, uma cobertura cultural que pode permanecer

12
após a mudança estrutural, institucional, deixando marcas na nova instituição. Geoculturas,
neste sentido, podem ser grandes ou pequenas, e seus limites não são auto-evidentes,
embora eles devam ser relacionados aos padrões do poder político, por causa da
importância do poder na sustentação e na mudança das instituições sociais. Por outro lado,
estamos aqui procurando uma ferramenta, um instrumento heurístico que nos ajude a lidar
com a complexidade das formas de família no planeta. A tarefa é estudar o patriarcado, a
ordem sócio-sexual e a fecundidade, por todo um século e não proporcionar a tipologia dos
sistemas familiares modernos.
A partir destas considerações, achei útil distinguir cinco sistemas familiares principais
e dois outros intersticiais, mas também importantes, no mundo moderno. Os principais
derivam de sistemas de valores específicos, de origem religioso-filosófica, modelados pela
história da área. Os intersticiais adquiriram seu caráter de encontros entre diferentes
sistemas de valores. Estes sistemas familiares podem ser e serão subdivididos de vários
modos, mas, em termos práticos, o número deles tem quer pequeno e grande a área de
cobertura Os principais sistemas familiares são:
- o da África (subsaariana)
- o Europeu (incluindo as colonizações do Novo Mundo)
- o do Leste Asiático
- o da Ásia do Sul
- o da Ásia Ocidental/ Norte da África.
Os sistemas familiares intersticiais de peso global são:
- o do Sudeste Asiático, do Sri Lanka às Filipinas e com a Indonésia em seu centro,
onde os rígidos patriarcados do confucianismo, do Islã e do catolicismo foram suavizados
pela despreocupação budista com assuntos de família e pelos costumes malaios.
- o da América Crioula: emerge da história socioeconômica americana dos cristãos
europeus que tocavam plantações, minas e propriedades rurais com o trabalho servil dos
escravos africanos e dos índios. Paralelamente à cultura branca, superior, estritamente
patriarcal, esta história desenvolveu um padrão particular de família, comum a pretos,
mulatos, mestiços e a índios desenraizados. Embora mais distinto no Caribe, o padrão pode
ser visto por todas as Américas, dos guetos afro-americanos dos Estados Unidos às
periferias andinas da América do Sul.
Por trás dessas divisões, estão certas descobertas que serão mostradas
posteriormente, como por exemplo, o fato de que, na influência sobre as dimensões
familiares sob estudo, as geoculturas territoriais tendem a prevalecer sobre as divisões
religiosas, tal como entre muçulmanos, cristãos e animistas na África ou entre hindus e
muçulmanos na Ásia do Sul.

13
Há divisões importantes que perpassam as áreas, e que, algumas vezes, têm que
ser desenhadas diferentemente para diferentes períodos ou diferentes propósitos. Na África
é sempre significativo seguir uma diagonal do noroeste ao sudeste, embora o mosaico
étnico do continente torne quase impossível uma padronização nítida. Na Europa,
remontando ao início da Idade Média, há uma histórica divisão familiar leste-oeste, ao longo
de uma linha que vai de Trieste a São Petersburgo; mas pode-se também encontrar lógica
para uma divisão entre o noroeste e o resto, ou para uma distinção entre a Europa ocidental
versus o Novo Mundo. Enquanto no Leste da Ásia a primeira divisão é, claramente, entre
China e Japão, na Ásia do Sul a divisão geocultural norte-sul, não política, não religiosa é
decisiva, juntando o norte do centro indiano-hindu, extremamente patriarcal, com o
Bangladesh muçulmano e o Paquistão versus um sul onde as maneiras patriarcais, tanto
hindus quanto muçulmanas, são mais amenas, em termos comparativos. Mas serão
exibidos muitos retratos nacionais em cada área, tanto por causa das produções nacionais
do poder quanto pelo fato de que muitas fontes foram geradas nacionalmente.
Embora eu não seja um entusiasta da ficção criminal, ao contrário de muitos colegas,
particularmente daqueles dos Estados Unidos, subscrevo uma de suas regras: não revele
seus dados antecipadamente.

14
PARTE 1

Cap. 1: O Patriarcado: saídas de cena e desfechos.


Pai nosso que estais no céu...
(Mateus, 6: 7-15)
A autoridade paterna é o mais necessário e o mais legítimo de todos os poderes sociais.
(Le Play 1866: 189)

O patriarcado tem duas dimensões intrínsecas básicas: a dominação do pai e a


dominação do marido, nesta ordem. Em outras palavras, o patriarcado refere-se às relações
familiares, de geração ou conjugais, ou seja, de modo mais claro às relações de geração e
de gênero. Embora o patriarcado, sob várias formas, modelasse também assimetricamente
as relações entre pai e filho, assim com as relações entre sogra e nora, o núcleo do poder
patriarcal consistiu, acima de tudo, no poder do pai sobre a filha e no do marido sobre a
mulher. O poder do pai sobre seu filho, via de regra, era uma versão suavizada daquele
sobre a filha e o poder da sogra era delegado pelo sogro e/ou pelo marido.
A análise será desenvolvida como uma narrativa, uma história sobre a situação
mundial em 1900 e suas mudanças ou invariâncias através do século. Subjacente à análise,
há uma concepção de patriarcado, entendido como um agregado de variáveis. O pai de
família da lei romana tinha três poderes básicos: potestas – incluindo o “direito de vida e
morte” sobre seu filho durante toda a sua vida; o manus, sobre sua mulher e o dominium
sobre sua propriedade. Quando o manus começou a se tornar obsoleto, no início da era
imperial ou cristã, como é conhecida hoje, a mulher permaneceu sobre o potestas de seu
41
pai.
O agregado usado aqui, inspirado pelo feminismo moderno pela história e pela
antropologia comparativas, cobre o patriarcado de um modo mais específico. No que diz
respeito às relações paternas e parentais com os filhos, examinaremos as regras
formalizadas de obediência e deferência filiais e observaremos as regras genealógicas
básicas de herança, isto é, se há apenas uma linhagem paterna (patrilinear), se os filhos
adultos têm permissão para decidirem sobre seus casamentos e se a expectativa é de que
permaneçam na casa paterna após a união. O poder das sogras (prospectivo) estará aqui
subsumido grandemente ao patriarcado parental.
Com relação às relações entre marido e mulher, os principais aspectos são: a
presença ou ausência da assimetria sexual institucionalizada, tal como na poliginia e nas
regras diferenciais para o adultério; a hierarquia de poder marital, expressa pelas normas de

15
chefia marital e de representação familiar; e a heteronomia, ou seja, o dever de obediência
da mulher e o controle do marido sobre sua mobilidade, suas decisões e o seu trabalho.
A evidência da África Ocidental em particular tem mostrado que a hierarquia e a
heteronomia podem variar independentemente uma da outra. Em termos históricos, teremos
que confiar principalmente na evidência da institucionalização, nas normas sociais e legais e
nos padrões observados de comportamento. Pesquisas recentes vêm tornando possível
uma compreensão mais específica das formas patriarcais de casamento, coletando, em
grandes amostras, respostas a questões sobre espancamento, visitas a amigos, vizinhos e
parentes, decisões sobre as compras diárias e sobre a comida a ser preparada, sobre
contracepção, etc. e sobre a divisão do trabalho doméstico. O principal impulso desta
análise vem da pesquisa no Terceiro Mundo 42.
Posteriormente, observaremos a possibilidade de discriminação contra as filhas
através do infanticídio, dos maus tratos, da negligência, dos sistemas de herança assim
como os sacrifícios especiais exigidos das mulheres, como a infibulação ou clitorectomia, a
compressão ou enfaixe do pé e o sati (imolação da viúva).
O patriarcado, neste sentido geral de poder assimétrico e masculino do parentesco,
tem diversas variantes de organização: descendência, padrões matrimoniais, nomenclatura
de parentesco. Elas são os focos centrais da Antropologia clássica de meados do século
XX, um campo que será aqui deixado quase sem exploração. Mas é preciso esclarecer que
nos sistemas matrilineares de parentesco – onde a ancestralidade e a herança passam da
mãe para os filhos – um poder equivalente ao patriarcal habitualmente está investido no tio
materno. O patriarcado, no sentido usado aqui, de fato está frequentemente acompanhado
de um outro princípio de hierarquia: o da seniority 3 institucionalizada, – no sistema de
gênero associado à geração - na superioridade do mais velho sobre o mais novo, entre
irmãos ou, de modo geral, entre ocupantes da mesma posição. Os ritos funerários chineses
clássicos e os códigos penais da China imperial constituem ilustrações extremamente
elaboradas deste complexo institucional do patriarcado associado à seniority.
O patriarcado tem também um outro aspecto extrínseco importante: sua relação com
os demais poderes existentes. Em algumas sociedades, particularmente nas africanas, mas,
em princípio, também na China imperial, o poder patriarcal era o poder supremo e
elaboraram-se práticas religiosas para a veneração dos ancestrais e para o contacto com
seus espíritos. As regras do confucianismo ortodoxo, mais precisamente, os códigos penais
da China imperial, colocavam o dever filial acima da lealdade ao estado e às suas leis, de
modo a, explicitamente, endossar ou permitir, respectivamente, a cobertura dos crimes

3
NT: Embora os dicionários brasileiros registrem o termo sênior, não há nenhum termo para
a qualidade ou condição de sênior (seniority) razão pela qual se manteve a expressão no inglês.

16
cometidos pelos pais ou por outro membro graduado da família. Os códigos penais imperiais
tinham duas exceções a esta regra: a traição e a rebelião43.
Em outras sociedades, o patriarcado está explicitamente subordinado à autoridade
da Igreja ou aos rituais religiosos institucionalizados perante Deus e, em adição, ou
alternativamente, o monarca ou o estado. O tsar russo manteve alguns destes traços
patriarcais até o fim do tsarismo, mas, na Europa Ocidental as revoluções já tinham tornado
claramente antiquados os modelos patriarcais da monarquia desde os tempos de John
Locke e da “Revolução Gloriosa” inglesa. Com Hobbes, Locke e Rousseau, uma nova teoria
política da família desenvolveu-se na Europa Ocidental44. Luis XVI era ainda denominado “o
pai do povo”, mas Danton expressou o auto retrato familiar da Revolução: “Foi o povo que
nos gerou; não somos seus pais, somos seus filhos!”45. O culto vitoriano da família tinha
implicações patriarcais, como a maioria dos cultos familiares. Mas a metáfora política era a
da representação e não a de um modelo de governo. “A Inglaterra”, disse o Primeiro Ministro
Disraeli em 1872, “é um país doméstico (...) A nação é representada por uma família – a
Família Real” 46.

17
1 Modernidades e sistemas familiares. O patriarcado por volta
de 1900
No começo de nossa história, todas as sociedades importantes eram claramente
patriarcais. Não havia uma única exceção. A opinião amplamente predominante entre os
detentores do poder foi muito bem expressa pelo então Ministro da Justiça, P.W.A. Cort van
der Linden, um esclarecido e aristocrático liberal holandês, que declarou no Parlamento em
1900: “Em minha opinião, o caráter de casamento, todavia, é incompatível com uma
igualdade por princípio entre homem e mulher”. 47.
O mundo, porém, não era igualmente patriarcal. O poder dos pais, irmãos, maridos e
filhos adultos, embora virtualmente predominando em toda parte, realmente diferia entre as
classes e culturas. Além disso, nossa história não começa com “Era uma vez um patriarcado
tradicional” Tal noção é geralmente vazia, ignorando a grande variedade de “tradições” e
suas mutações históricas. E é particularmente inadequada para captar a situação em 1900,
quando uma grande onda mundial de mudança familiar varria as verdades pétreas dos
arquivos históricos. De fato, a Feira Mundial de Paris de 1900 foi também a ocasião de um
(terceiro) congresso internacional sobre as condições e os direitos das mulheres48.
Mais importante ainda, ou, pelo menos, mais significativo, foram as mudanças legais
que ocorreram na instituição familiar no último quartel do século XIX, em alguns países. O
Japão e a Alemanha publicaram novos códigos civis em 1898 (Meiji Minpo) e em 1900
(Bürgerliches Gesetzbuch, aprovado em 1896). As leis sobre a propriedade das mulheres
casadas tinham propiciado capacidade econômica legal, ou, ao menos, proteção para as
mulheres49 no mundo do direito consuetudinário, começando no Mississipi em 1839,
marcando importante vitória em Nova York em 1848, espalhando-se pelos assentamentos
da Austrália e da Nova Zelândia e culminando com a lei inglesa de 1882. Leis semelhantes
foram aprovadas nos países nórdicos entre 1874 (Suécia) e 1889 (Finlândia)50. Mais
sugestiva da mudança dos tempos tenha sido talvez a nova legislação protegendo os
ganhos da mulher casada, tal como a primeira Lei Inglesa sobre a Propriedade da Mulher
Casada, de 1870, 51, proteção esta também incorporada nas leis nórdicas subseqüentes.
Mudanças na legislação penal podiam ser também altamente pertinentes. Um
exemplo é o Código Penal Sueco de 1864, que aboliu as disposições anteriores sobre
violência e insultos aos pais, ofensas que, anteriormente, poderiam ser punidas com a
morte. As violações do quarto mandamento desapareceram do código, embora fosse
explicitado que em casos de agressão, o fato de ser dirigida aos pais seria considerado
52
“circunstância agravante” . Implicitamente, com o mesmo código desapareceu o antigo
direito de o marido espancar sua mulher. Os espancamentos conjugais verdadeiramente

18
sérios eram punidos com multas duplas, de acordo com a lei medieval 53. Ao invés disso,
começou a surgir uma legislação protetora das crianças. A este respeito, um evento chave
na Europa foi a Lei Britânica de Prevenção da Crueldade e de Melhor Proteção das
Crianças de 1889, inspirada por um notório caso de maus tratos em N.York no começo dos
anos 70 do século XIX, no qual a criança só pôde ser resgatada legalmente com a ajuda de
uma lei contra a crueldade para com os animais 54. A polarização de classe enfraquecia a
solidariedade patriarcal até mesmo na França, onde, em 1889, foi aprovada uma lei que,
inspirada pela imagem de pais proletários, alcoólatras e brutais, tornava possível a retirada
do poder paterno em caso de maus tratos de crianças. 55
A legislação colonial sobre a família também tinha começado, embora mais através
do oferecimento de opções e de tentativas de estigmatização do que por interferência
efetiva, apesar da pressão exercida por zelosos missionários cristãos. A Índia britânica, até
1900, tinha visto uma série de leis de grande simbolismo, proibindo o sati (imolação das
viúvas) em 1829 e o infanticídio (em 1870), permitindo o recasamento de viúvas (1856), o
casamento entre castas (1872) e tentando elevar a idade ao casar (1891)56. Na África
britânica, casamentos ingleses eram oferecidos, sem muito sucesso embora, desde a
Ordenação de Casamento da Costa do Ouro, de 1884 57. Contudo, os desafios do século XIX
ao patriarcado estabelecido fora da Europa e dos assentamentos europeus aumentaram
também nas sociedades pré-coloniais. As mulheres siamesas (hoje seriam chamadas
tailandesas) receberam crescente liberdade de casamento nos anos sessenta do século
XIX58. Em 1884, a Coréia da dinastia Choson impôs uma limitação ao casamento precoce e
deu permissão ao recasamento das mulheres 59. Na China, na fase mais tardia da dinastia
Ching, - durante os Cem Dias de Reforma sob o Imperador Kuang Hsu, em 1898, após o
desastre da Guerra Sino-Japonesa de 1895, e antes do retorno da conservadora Imperatriz-
Viúva Tzu Hsi e da desastrosa Rebelião Boxer –, o eminente intelectual reformista do
império moribundo, Kang You-wei presenteou o Imperador com um “Memorial com um
pedido para o banimento do enfaixe dos pés das mulheres”, com o argumento conjuntural
de que o enfaixe dos pés “enfraquecia hereditariamente a raça” e impedia o “crescimento da
força militar”60.
A maioria das mudanças sociais e legais contribuía para o enfraquecimento do
patriarcado. Nem todas, porém. O Minpo Meiji foi antes uma generalização do patriarcado
samurai para a população comum e em 1875, a codificação egípcia das normas familiares
Hanafi (uma das quatro maiores escolas de jurisprudência no Islamismo sunita,
predominante no Império Otomano) - iniciativa que introduziu o moderno conceito árabe de
Direito de Família, o “Estatuto Pessoal” (al-ahwal al shakhsiyya) – parece ter significado o
enrijecimento do patriarcado muçulmano61. O Código Civil Napoleônico adotado na América
do Sul hispânica (e na Espanha em 1884) dificilmente conteria qualquer emancipação do

19
patriarcado e a afirmação da supremacia do casamento civil (sobre o eclesiástico) na
Argentina, Chile e Uruguai na década de 1880 não teve implicações feministas. Em 1891, a
Suprema Corte Argentina declarou: “Durante a vigência do casamento, as mulheres, em
geral, não têm capacidade civil e estão sob a tutela e o poder dos maridos”62.
A estabilização social no final do período vitoriano na Inglaterra, após as convulsões
da Revolução Industrial, representou o fortalecimento da instituição patriarcal do casamento
– se não do poder patriarcal dentro do casamento – e da família. “Na virada do século”,
escreve o historiador John Gillis em uma obra primordial, “o clero poderia congratular-se
consigo mesmo pelo retorno das pessoas aos altares (...) As pessoas não apenas estavam
se casando mais convencionalmente, como também mais cedo e mais frequentemente.” A
participação feminina no mercado de trabalho tinha começado a cair após 1870. “Os jovens
estavam de novo submetidos à autoridade adulta, tanto dentro quanto fora da família (...) os
adolescentes permaneciam por mais tempo no lar, só o deixando para se casar” 63.
Os movimentos feministas, frequentemente apoiados por socialistas e radicais
homens, tinham ascendido nas Américas, na Oceania e na Europa, de modo pioneiro na
Inglaterra e com mais forte crescimento na Escandinávia. Em 1888, foi fundado um
Conselho Internacional de Mulheres em Washington, DC o qual, em 1900 já tinha gerado
onze conselhos nacionais, da Noruega à Nova Zelândia, do Canadá à Argentina. Mais
poderosas eram as novas cruzadas morais femininas intercontinentais: a Liga Mundial
Feminina Cristã pela Temperança, de origem estadunidense (1848) formidável força moral
na vida política e social na América do Norte, e, mais ainda, na australasiana; a Federação
para a Abolição da Regulamentação Estatal do Vício, de origem britânica (1875) e dirigida
contra a tolerância com a prostituição e contra a sua regulamentação.64. As questões sobre
as mulheres estavam bem posicionadas na agenda dos modernistas indianos e, em 1893,
Annie Besant mudou-se para a Índia: uma britânica convicta de suas opiniões sobre
anticoncepção, futura líder de teosofia a partir de uma base em Madras e futura Presidente
anual do Partido do Congresso indiano. As mulheres tinham conquistado direitos políticos na
Nova Zelândia, no interior da Austrália e em partes dos Estados Unidos à oeste do
Mississipi, ou seja, nas periferias das colônias anglo-saxônicas de além-mar.
O padrão europeu ocidental de casamento após a puberdade há muito conformara
uma base social para as culturas jovens locais de entretenimento e galanteio e também,
como no charivari4 uma força ocasional de sanção moral e de ridículo. Este espaço social

4
Charivari: No Glossário de sua “História da Família” Burguière et al. definem o charivari
(música grosseira) como “uma demonstração de discordância, zombeteira e por vezes violenta
organizada pelos jovens ou outros vizinhos para ridicularizar e recriminar a conduta social desviante,
particularmente os casamentos não convencionais: recasamentos de viúvos, um casamento

20
juvenil estava disseminado por toda a Europa do Norte e ocidental, mais sob o controle dos
pares na Escandinávia e na Alemanha, menos na França65. Durante a década de 1830 a
juventude emergiu na Europa, como categoria sociopolítica, com o movimento nacionalista-
republicano Jovem Itália de Giuseppe Mazzini e logo originou uma Jovem Europa ligada em
rede. Perto de 1900, os movimentos de juventude, na Europa e nas colônias européias de
além-mar, estavam obscurecidos pelos movimentos classistas, com suas ações e com sua
economia política, mas havia uma presença social importante de jovens no movimento
trabalhista e os termos “juventude” e “jovem” terminaram por se espalhar como gritos de
guerra para além da Europa e das suas ramificações: Jovens Otomanos, Jovens Turcos,
Jovens Tunisianos, Jovem Índia, ou seja, entre a juventude masculina.
Sociologicamente, a família teve que adaptar-se às migrações em massa de longa
distância, da Europa às Américas e à Oceania, da China; através do Mar do Sul da China,
mas também atravessando o Pacífico. Famílias indianas moveram-se pelo Oceano Índico,
para a África do Sul e do Leste; para o Caribe e para Fiji. A migração do campo para a
cidade tinha adquirido enormes proporções na Europa. A proletarização em massa, seja por
causa do crescim ento populacional, da mudança técnica ou por causa da força superior da
propriedade da terra e a emergência de uma “classe de trabalhadores em serviços” de
tamanho considerável, até 1900 já tinham mudado radicalmente as premissas das relações
familiares nas regiões mais importantes da Europa, nos Estados Unidos e em outros
assentamentos europeus. Os mesmos processos estavam, no mínimo, começando a afetar
o Japão, alguns centros industriais da Índia e os novos centros mineiros, tais como a África
do Sul e o Chile. Nas Américas, nos Estados Unidos, em Cuba e, particularmente, no Brasil,
o término da escravidão fez com que a recém emancipada população negra se defrontasse
com novas opções familiares marcadas por severos constrangimentos socioeconômicos.
A seguir, faremos uma breve volta ao mundo de perto de 1900, examinando as
principais discussões públicas referentes às relações de gênero e de geração e avaliando a
força relativa do patriarcado nas diferentes regiões. Faremos paradas de acordo com o
nosso padrão mundial de sistemas familiares, previamente identificado, mas vamos
observar também os diferentes caminhos para a modernidade, cujos contornos e efeitos,
nesta época, já estavam claramente visíveis.

Choques e Continuidades na Europa


Até 1900, o sistema familiar europeu, tanto em suas variantes principais, ocidental,
oriental quanto em outras, em diferentes graus, tinha sido colocado sob pesada pressão por

exogâmico ou um casamento com grande disparidade social entre os noivos.” (Burguière et al, A
History of the Family. Cambridge, Polity Press, 1996: Vol.II, p. 539).

21
uma revolução sócio-demográfica que começou no século XVIII. Demograficamente, esta
pressão está registrada em um movimento de maior crescimento populacional, sustentado e
de longo prazo. A ameaçadora pauperização deste novo proletariado foi limitada por uma
outra inovação histórica mundial: A Revolução Industrial e pela migração em massa
extracontinental. Por volta de 1900, no noroeste da Europa, estas convulsões sociais tinham
não apenas solapado o contexto da família européia: a propriedade agrária, como também
já tinham começado a repovoá-lo de um modo urbano-industrial.
Em segundo lugar, no final do século XIX, no mundo todo, a família européia era o
contexto e o alvo de textos poderosos sendo os mais influentes e antipatriarcais, o de John
Stuart Mill, Sobre a Sujeição das Mulheres (1869), Casa de Boneca de Henrik Ibsen, O
Socialismo e a Mulher de August Bebel (ambos de 1879). O mais poderoso tratado
patriarcal foi a encíclica Rerum Novarum, do infalível Papa Leão XIII que, em 1891,
proclamou: “Assim como o agrupamento político (...) a família é verdadeiramente uma
associação [veri nominis societas est] que é governada por seu próprio poder [potestate
propria] que, neste caso é o do pai [paterna]” 66.
Mudanças sociais profundas, dramáticas e agudo conflito ideológico, extremamente
articulado, afetaram a família européia. Em termos relativos, antes dos desafios do século
XIX havia um sistema moderadamente patriarcal. O valor supremo estava investido em um
Deus transcendental e não nos ancestrais patrilineares. Enquanto a opinião dos pais sobre
os assuntos referentes ao casamento era importante nas classes superiores, assim como no
sul e, sobretudo, na parte leste do continente, a livre escolha do cônjuge era uma norma
religiosa central da Igreja Católica desde o Concílio de Trento, da Contra-Reforma. As duas
maiores codificações do Iluminismo – o Código Prussiano de 1794 e o Código Napoleônico,
Francês, de 1804 - os dois principais países fora das normas tridentinas, a Prússia enquanto
protestante, e a França, enquanto guardiã explícita do patriarcado gaulês, em desafio à
Igreja – supuseram que os papéis principais eram desempenhados pelas próprias partes, ao
mesmo tempo em que outorgaram poderes de veto aos pais. Ambas exigiam o
consentimento parental para o casamento mesmo de filhos legalmente maiores 67. A prática
européia do casamento adulto e do domicílio separado dava aos protagonistas uma base
social de autonomia. A monogamia era a norma e as mulheres podiam movimentar-se em
lugares públicos, heterossexuais, embora normalmente não assumissem posições de
pública autoridade.
A libertinagem sexual das classes superiores no século XVIII não fora um privilégio
exclusivamente masculino. Lady Montagu 68 nos conta sobre a sociedade da corte de Viena:
“há um costume estabelecido de que toda senhora tenha dois maridos, um que carrega o
nome e outro para cumprir suas obrigações”. O casamento era um ato sagrado, um
sacramento, mas não uma obrigação sagrada. De fato, no Catolicismo, ele era de modo

22
muito claro, moralmente secundário ao celibato de padres, monges e freiras. Fora de uma
pequena minoria constituída por linhagens de classe superior, o parentesco geralmente era
fraco, aberto e limitado, usualmente sem organização, com laços e direitos de herança
bilaterais (materno tanto quanto paterno) e usualmente não se estendendo mais de dois
passos de ego, sem ultrapassar avós, netos, sobrinhas, sobrinhos, tios e tias e primos
irmãos.
No Iluminismo escocês, primeiro em Hume69 e depois enfatizado em Millar70 emergiu
a idéia de que a posição da mulher era um indicador de progresso social. Uma distorção
evolucionista, “moderna”, foi impressa na antiga noção feudal européia de cavalaria, que
não assumiu nenhuma igualdade entre os sexos. Hume71 colocou-a desta forma:

(...) a natureza deu aos homens superioridade sobre as mulheres, dotando-os de


força maior, tanto de espírito quanto de corpo (...) As nações bárbaras demonstram esta
superioridade reduzindo suas fêmeas a mais abjeta escravidão. Mas o sexo masculino
em um povo polido descobre sua autoridade de um modo mais generoso, embora menos
evidente, através da civilidade, do respeito, pela complacência, em uma palavra, através
da galanteria.

Os poderes do pai e do marido – o patria potestas e o manus mariti estavam


firmemente institucionalizados, sustentados pela lei da Igreja e pelo ensino religioso, pela lei
secular e pelos costumes aldeãos, sob a sanção do ridículo público72. A contra revolução
antiiluminista foi agressivamente patriarcal: “A autoridade paterna é a fundação da
moralidade e da sociedade” afirmava, em 1800, o Journal des Débats, importante arauto do
conservadorismo francês73.
Da perspectiva do interesse pelo patriarcado, o quadro da família européia e de suas
relações com as tremendas mudanças sociais do continente nos séculos XVIII e XIX, torna-
se quase o inverso do retrato da família feito pelos sociólogos funcionalistas de meados do
século XX, aonde as revoluções urbana e industrial conduziam a revoluções familiares
(conjugais). Como veremos, contudo, através das experiências do Japão e do Leste Asiático
em geral, esta conclusão não autoriza a adoção da mesma correlação de mudança social,
econômica e familiar com as setas causais viradas ao contrário, com a família nuclear do
noroeste proporcionando as pré-condições para a revolução industrial. A longo prazo,
apesar das enormes mudanças nos padrões de propriedade, trabalho e residência, emerge
um quadro de continuidade adaptativa, mas que não chega a ser de “equilíbrio moderno”. A
relativa estabilidade do patriarcado europeu de 1600 a 1920/50 contrasta com as
importantes mudanças nos últimos cinqüenta ou oitenta anos do século XX.
Em outras palavras, temos aqui duas questões de pesquisa. Dadas as profundas
mudanças econômicas e sociais, como pode ser explicada a continuidade básica do
moderado patriarcado europeu por volta de 1900? Em segundo lugar, como poderíamos
considerar e avaliar as forças do conflito e da mudança institucional?

23
Por volta de 1900, a família européia tinha sido submetida à pelo menos três
tremendas mudanças institucionais e econômicas, que, grosso modo, iniciaram-se no
noroeste e rumaram para o sudeste. A primeira delas foi a proletarização, o crescimento das
classes não proprietárias, que dependiam da venda de seu trabalho. A proletarização afeta
o patriarcado, uma vez que o pai proletário não tem propriedades para transmitir a seus
filhos e porque seu poder de pai está subordinado ao poder superior dos proprietários da
terra ou do capital. Até o século XIX, na Saxônia, uma área de ponta da industrialização
alemã, os proletários cresceram de 24 % da população total em 1550 a 58% em 1750 e a
71% em 1843. A maior parte deste aumento foi no meio rural. O proletariado rural aumentou
sua participação na população total de 22 a 25% entre 1550 e 1843 74.
Em segundo lugar, a urbanização desafiava quaisquer autoridades tradicionais
incluindo o patriarcado, pela sua exibição da heterogeneidade, suas ofertas de opções, na
medida em que escapava do controle social. Grandes culturas do mundo tiveram, por
milênios, uma urbanização que envolvia entre um oitavo e um sexto de suas populações,
sendo que o termo “urbano” designava povoações concentradas com 2000 habitantes ou
mais. Entre 1800 e 1900 a urbanização pan-européia, neste sentido, pulou de 16 a 41% da
população 75.
E, por último, a industrialização desafia o patriarcado e qualquer arranjo familiar
existente, principalmente pela separação em grande escala entre o lugar de trabalho e a
residência, enfraquecendo deste modo, o controle paterno. Embora as estatísticas gerais de
emprego, tenham sido, via de regra, incapazes de distinguir a produção fabril da produção
manufatureira proto-industrial e doméstica, não há dúvidas sobre a Europa ter visto uma
revolução industrial marcante no decorrer do século XIX. A agricultura, que nas sociedades
pré-industriais desenvolvidas e estratificadas usualmente ocupava de 75 a 85% da
população 76 por volta de 1900, em toda a Europa, Rússia incluída, passou a ocupar apenas
56 % da população. O emprego industrial, em sentido amplo (manufatura, mineração,
construção, infra-estrutura, transporte) em torno de 1900 constituía bem um quarto da força
de trabalho italiana, um terço da francesa, quase dois quintos da alemã e metade da força
de trabalho britânica77.
Deveríamos acrescentar um quarto desafio, sociopolítico, que estava se cristalizando
no último quartel do século XIX, como sempre, também ao longo do eixo noroeste-sudeste,
embora com uma forte qualificação da Europa Central. Este desafio era o do estado-nação,
principalmente na conformação da escolarização pública obrigatória78. Esta, por algum
tempo, retirava as crianças de sob o domínio do pai, o que, algumas vezes, provocou
conflitos amargos com os patriarcados religiosos militantes da Igreja Católica, supra-estatal,
e do Fundamentalismo Calvinista Holandês, abaixo do estado.

24
A reprodução do patriarcado europeu em face dos desafios da proletarização, da
urbanização e da industrialização apoiou-se em quatro componentes-chave. O primeiro
79
deles foi o desenvolvimento da “economia do salário familiar” A família do proletário do
início do período industrial, assim como aquela do artesão proto-industrial desenvolveu uma
estratégia de sobrevivência baseada na reunião das contribuições, viessem ou não de
salários, de todos os membros da família, tanto dos filhos quanto da mãe/esposa. O pater
familias não era mais um proprietário de terras, que alocava trabalho e transmitia a
propriedade, mas era ainda o cabeça de um empreendimento familiar que demandava muito
esforço. Embora não tivesse mais nenhuma propriedade significativa para prometer ou
distribuir, ele controlava o importante acesso ao emprego. Detinha também uma outra
sanção poderosa: podia expulsar de casa os mal pagos jovens desobedientes, em uma
cidade que habitualmente se ressentia de uma grande falta de habitações. Esta economia
do salário familiar patriarcal sobreviveu à chegada da escolarização pública obrigatória: ela
foi postergada para depois da escolarização.
Em segundo lugar, o patriarcado do tipo europeu proporcionava nichos de baixo
status para muitos proletários que não cabiam na economia de salário familiar. O celibato
não era pecado e as crianças nascidas fora do casamento, embora, claramente, de classe
baixa, não eram nem uma desgraça nem uma ameaça à ordem estabelecida. Algumas
regiões da Europa, como muitas comunidades alpinas e como o norte do longínquo Portugal
puderam desenvolver estes padrões de desvio sem desafiar o pio Catolicismo regional nem
ser por ele desafiadas, de alguma maneira mais significativa.
Em terceiro lugar, os padrões normativos e a natureza do seu centro de poder eram
extremamente importantes. A aristocrática sociedade de corte do século XVIII, tinha
abandonado muitas normas familiares em prol da libertinagem sexual generalizada.
Contudo, este tipo de sociedade dependia crucialmente da benevolência real, que assim
tornava o favor cortesão muito mais importante do que a administração da propriedade
familiar. A tosa definitiva da plumagem aristocrática pela Revolução Francesa e a ascensão
do capital burguês reafirmaram as normas familiares européias de modo poderoso e
profundo. A libertinage do século XVIII passou a ser percebida como aberração que levaria
à catástrofe social. O novo modo de produção ascendente, o capitalismo industrial, não era
apenas um sistema de racionalidade mercantil. Tinha uma pesada âncora social na família
patriarcal, tal como foi tão bem retratado por Thomas Mann em Os Buddenbrooks 80.
O homem de família provedor, administrador de sua propriedade, tornou-se a norma
do século XIX. É bem verdade que ele era burguês, mas não era ancien régime, nem de
uma religião estranha ou de alguma etnia exótica. Ele era a persona do sucesso moderno e
da respeitabilidade universalista, muito apoiado pela lei religiosa e pela opinião pública.
Enquanto a secularização das escolas criava conflitos religiosos nos países católicos e

25
calvinistas, conflitos estes que tinham que ser equacionados sob alguma forma de modus
vivendi, a escolarização pública em massa estava geralmente comprometida com a
inculcação de valores patriarcais nos alunos, tais como obediência, disciplina, deferência,
para a sustentação das normas patriarcais existentes e não para a sua subversão. Tal fato
impediu qualquer conflito entre as exigências do estado-nação e os antigos modos de ser
pai e mãe.
Para os trabalhadores “respeitáveis”, assim como para as tendências dominantes do
sindicalismo e do socialismo europeus o homem de família era o herói normativo. Deste
modo, a normatividade patriarcal foi trazida da aldeia camponesa ao bloco da classe
trabalhadora urbana através de uma ponte cultural construída sobre um cataclismo social.
Finalmente, em quarto lugar, foi a industrialização que tornou possível a reprodução
em grande escala das normas patriarcais. A industrialização européia, única em seu
sucesso e extensão, criou uma grande classe trabalhadora a partir dos proletários. E, ao
final do século XIX, com o declínio da importância relativa da indústria têxtil e de vestuário,
esta classe trabalhadora estava se tornando crescentemente masculinizada. As mulheres
casadas geralmente tendiam a evitar o trabalho fabril com suas demandas totalitárias 81 .
Esta classe trabalhadora, embora não sendo altamente qualificada, logo adquiriu recursos
suficientes para, mais ou menos, seguir as normas familiares da classe dominante. No fim, a
proletarização não significou pauperização, marginalização e dissolução familiar, tendências
muito presentes nas grandes cidades européias do século XIX, através das uniões
informais, dos nascimentos ilegítimos e das crianças abandonadas. Estas últimas foram um
fenômeno importante da Europa católica, de Moscou e de São Petersburgo, cujas
instituições, em seu momento de pico no século XIX receberam em um ano, 26 mil
crianças82 Na Lombardia, nas primeiras sete décadas do século XIX, cerca de 400 mil
83
crianças foram abandonadas, uma boa metade delas em Milão.
Perto de1900, o homem de família provedor da classe trabalhadora que se
estabeleceu como aspiração normativa das classes trabalhadoras européias tinha emergido
de facto. Esta nova família da classe trabalhadora foi mais impressionante no país de
industrialização mais convulsiva e dramática, mas, também, mais bem sucedida e extensa –
a Inglaterra. 84.
Porém, a família burguesa embora poderosa, não era uma norma auto-evidente. A
Europa, afinal, era um continente de revoluções e de guerras normativas e civis. Por razões
que ainda permanecem obscuras, a grande Revolução Francesa e a sua herança não
representaram um desafio. Pelo contrário, a tradição napoleônica deixou como legado, um
patriarcado militante, através do notório parágrafo 213 do Código Civil de 1804,
estabelecendo a “obediência” da mulher ao marido, cláusula esta inserida por insistência
pessoal do imperador85 e um poder paterno [puisance paternel] de grande abrangência. A

26
tradição revolucionária republicana viu-se, assim, com uma descendência puramente
patrilinear ameaçada pela influência do clero sobre as mulheres e defendendo, por muito
tempo que “a tradição da família francesa é o respeito pelo chefe [le chef] da família”86 O
“direito de correção” do pai incluía a possibilidade de enviar os filhos desobedientes às
prisões e penitenciárias do Estado, dando continuidade, deste modo, a uma instituição pré-
revolucionária (lettres de cachet), após o interlúdio jacobino. Na segunda metade do século
XIX, cerca de mil crianças por ano, principalmente parisienses, eram punidas desta
forma87.O feminismo francês era muito fraco e estava confinado a um pequeno círculo da
haute burgeoisie protestante e aos franco-maçons dissidentes88, ou seja, a ambientes
republicanos marginais.
Os desafios ideológicos ao patriarcado europeu vieram de duas fontes. A primeira
delas foi o radicalismo protestante, cuja primeira grande manifestação foi o tratado de John
Stuart Mill sobre A Sujeição das Mulheres, que se tornou, instantaneamente, uma bíblia
feminista, publicada no mesmo ano em todo o (antigo) Império Britânico e traduzida para o
francês, o alemão, o sueco e o dinamarquês 89. O ponto principal de Mill era o de que a
subordinação de gênero tinha se tornado um dos principais obstáculos ao progresso
humano. A igualdade de gênero não significaria apenas “um indizível ganho na felicidade
privada da metade liberada da espécie”, mas implicaria também em “um aumento da
reserva comum do poder de pensar e de agir e em uma melhoria nas condições gerais de
associação entre homens e mulheres. 90“.
O dramaturgo norueguês Henrik Ibsen teve como origem, um ambiente social
semelhante ao de John Stuart - embora sem o seu formidável pai –, preocupando-se muito
com questões sobre a moral individual. A peça de Ibsen, Casa de Boneca colocava a
questão do amor e da convenção como ápice da escolha dramática. Nora, que, finalmente,
abandona um casamento convencional por um futuro incerto, logo se tornou a heroína
global dos radicais.
A segunda fonte de desafio ao patriarcado foi o socialismo ateu. Já os assim
chamados socialistas utópicos dos anos 30 e 40 do século XIX, os sansimonistas e os
fourieristas franceses, tinham uma orientação feminista. Mas a primeira conexão importante
entre o movimento trabalhista socialista e a causa das mulheres foi es tabelecida por August
Bebel, que logo se tornaria o líder do movimento trabalhista mais desenvolvido do mundo –
a democracia social alemã. O tratado de Bebel Die Frau und der Sozialismus (A Mulher e o
Socialismo) apareceu em 1879 e rapidamente tornou-se o mais lido texto socialista depois
do Manifesto Comunista. Mais do que o arrazoado de Mill, esta é realmente uma obra de
história social. Sua linha crítica e sua política combatem a dupla dependência da mulher: do
mundo dos homens e das relações de propriedade. A primeira a aproxima dos interesses do
movimento burguês de mulheres; a segunda, do movimenta trabalhista masculino.

27
Bebel, Ibsen e Mill eram minoria em seu tempo. A opinião predominante foi mais bem
expressa pelo formidável historiador protestante prussiano e conservador Heirich von
Treitschke, um dos alvos favoritos de Bebel : “A verdadeira vocação da mulher será sempre
a casa e o casamento. Ela deve ter e educar crianças.”91
Contudo, o mais vigoroso contra-ataque ao individualismo liberal de esquerda ou
socialista veio do sagrado guardião do patriarcado europeu: o papa. A encíclica de 1891 de
Leão XIII pretendia confrontar de modo direto os tempos modernos, como indicado já em
sua abertura e em seu título, Rerum Novarum, “Das coisas novas”. Ela continha uma
mensagem social referente à industrialização capitalista que, desde então, vem inspirando o
catolicismo social. Em retrospecto, sua ênfase patriarcal igualmente forte, parte de sua
polêmica contra os socialistas, tende a ser esquecida. A base sagrada do poder paterno era
algo que a encíclica queria inculcar profundamente nos fiéis 92.
As preocupações legais e políticas do patriarcado europeu incidiam sobre a
capacidade legal e os direitos das mulheres casadas e solteiras. As mulheres
consensualmente unidas eram consideradas incorporadas aos seus maridos e; na lei
continental civil, estavam totalmente sujeitas ao poder de seus maridos. As solteiras,
independentemente da idade, estavam tradicionalmente sob a tutela do pai, na lei
escandinava até 1857, na Dinamarca e na Suécia, até 1858. A instituição de um guardião
matrimonial foi abolida na Suécia em 1872. Por volta de 1900, no noroeste da Europa, as
mulheres casadas tinham recentemente obtido o direito de administrar seus próprios
rendimentos e propriedades – na Inglaterra, em 1870 e 1872. É verdade que a lei sueca de
1874, a esse respeito, era originalmente insignificante e protetora em contraste com a lei
norueguesa de 1888, que conferiu às mulheres casadas plena maturidade econômica e
legal, assim como a lei dinamarquesa de 1899 93. A França e os países latinos do código
napoleônico eram ainda exceções, assim como a Rússia e a Europa oriental. Apenas em
1907 as mulheres francesas casadas conquistaram, realmente, o direito legal de dispor de
seus próprios salários94.E só então os filhos legalmente adultos e homens ficaram livres da
obrigatoriedade de ter o consentimento de seus pais para o casamento, embora um homem
abaixo dos 30 anos e uma mulher abaixo dos 25, tivessem ainda de solicitar, formal e
95
respeitosamente, o conselho dos pais Contudo, a lei francesa, até 1965, manteve a
determinação - à qual recorria, até, pelo menos, 1962, a mais alta corte de lei privada da
terra (Cour de Cassation) – de que a mulher casada teria que ter a permissão de seu marido
para trabalhara fora de casa96
No centro da normatividade da família européia cerca de 1900, estava o novo Código
Civil do Reich Alemão. O propósito fundamental do código era unificar a lei alemã em
concordância com a proclamação do Reich em 1871. Sua preparação esteve principalmente
nas mãos de juízes e juristas da burocracia ministerial provenientes do círculo da liberal

28
Bürgertum alemã. Após a publicação de um primeiro esboço em 1888, ele foi revisto por
uma segunda comissão e então, finalmente, por uma comissão especial do Reichstag. O
governo político central não parece ter tomado alguma parte ativa no processo97. No debate
parlamentar final, August Bebel, líder dos socialdemocratas, esteve muito envolvido, não
sem algum sucesso ocasional98.O código foi adotado em 1896 e posto em vigor a partir de
1º de janeiro de 1900. Ele foi precedido por algumas reformas parciais significativas, tais
como a remoção do requisito do consentimento paterno para o casamento de filhas acima
de 25 anos e de filhos acima de 24 (em 1875) e a introdução da maioridade legal para as
mulheres (em 1884).
No direito de família, o Código substituiu o termo poder paternal (väterliche gewalt)
pelo termo poder parental (elterliche), que, de acordo com interpretação autorizada 99, foi, em
princípio, investido em ambos os pais. Mas sem maiores comoções o Código evoluiu no
sentido de regular como esta autoridade parental deveria ser exercida pelo pai 100.
Posteriormente, a mãe foi incluída com um papel secundário, com o poder sendo transferido
a ela em caso de morte do pai, mas em caso de um desacordo no casal, o parágrafo 1634
deixava claro que prevaleceria a visão do pai.
“Ao marido pertence a decisão em todos os assuntos da vida conjugal em comum”,
rezava o parágrafo 1354, mas que também declarava: “A mulher não tem a obrigação de
acatar a decisão de seu marido quando esta constituir um abuso de seu direito”. E. a
despeito deste parágrafo anterior, o parágrafo 1355 afirmava que a mulher tinha o dever e o
direito de “dirigir o lar comum”101. Contra o primeiro parágrafo mencionado, os
socialdemocratas colocaram a alternativa: “Em todos os assuntos referentes à vida conjugal
em comum, os esposos são iguais.” Já os liberais de esquerda (Freisinnigen) se
considerariam satisfeitos com a simples exclusão do parágrafo. Nenhuma das propostas
teve qualquer chance e, na terceira e última leitura no Reichstag, o parágrafo sobre o poder
marital foi aprovado sem maiores debates102.
Por volta de 1896, a sujeição da mulher, tinha, contudo, deixado de ser auto-evidente
na Europa, mesmo no Parlamento alemão. O porta-voz da Comissão de Direito e principal
autor do esboço do código, Prof. Planck, um funcionário público prussiano de alto escalão,
aceitava a posição das mulheres como medida “do nível cultural total” de um povo. Em sua
opinião, o esboço do código melhorava consideravelmente a situação feminina. Ele
enfatizava, entre outros aspectos, a capacidade econômica igual das mulheres
(Geschäftsfähigkeit) e o novo conceito de poder parental103.
O trabalho da esposa fora de casa não ficava dependente da aprovação do marido,
como ocorria não apenas na lei francesa da safra napoleônica, mas também no Código Civil
Suíço de 1907 104. Porém, conservadora em excesso até mesmo para os anos 1890, era a
regra da propriedade matrimonial, que mantinha o regime prussiano-saxônico de

29
“comunidade administrativa” (verwaltungsgemeinshaft), significando que toda a riqueza do
casal seria administrada pelo marido105
Um esboço de proposta de que os filhos entre 21 – a idade da maioridade legal – e
25 anos, devessem ter o consentimento de seus pais para o casamento foi submetido a um
caloroso debate, que girou muito mais em torno da regra geral sobre o consentimento
parental para o casamento do que da idade específica da maioridade matrimonial. Os
conservadores luteranos e os nacionalistas liberais, apoiados pelo centro católico,
argumentaram em favor do consentimento parental e, ao final, foram vitoriosos, contra as
intervenções espirituosas de Bebel 106 .
Para seu tempo, o patriarcado alemão era relativamente moderado e judiciosamente
regulado. Ele ajustava-se tão bem neste caráter moderado que um parágrafo do anteprojeto,
sobre a “obediência” devida pelos filhos aos pais – uma regra geral na lei continental
européia dos séculos XVII e XVIII e trazida ao mundo moderno, inclusive fora da Europa,
pelo Código Napoleônico - foi derrubado nos trabalhos posteriores da comissão107 e não
reapareceu nas duas últimas discussões parlamentares108. Mas ele estava flanqueado
pelas regras estritas de exclusivismo masculino, isto é, por uma lei prussiana de 1851 que
proibia a participação das mulheres nos comícios políticos e sua filiação à associações
políticas e pela contínua exclusão das mulheres da educação superior. Um punhado de
mulheres conseguiu acesso especial à educação universitária e em 1900, Baden, no
sudoeste liberal foi o primeiro estado do Reich a permitir que as mulheres se matriculassem
como alunas comuns. Na Prússia hegemônica isto só ocorreu em 1908, onze anos após a
entrada das mulheres na Universidade de Viena 109 e no mesmo ano em que foi levantada a
interdição à atividade política feminina110. Em 1900, as mulheres não tinham direito a voto
em nenhum lugar da Europa.
Até 1900, pouca coisa tinha acontecido ao patriarcado da Europa do Leste, de longe
muito mais patriarcal do que o Ocidente, com parentesco patrilinear, domicílios patrilocais e
transmissão de herança apenas para os filhos ou outros parentes masculinos. A área era
ainda predominantemente rural, embora desenvolvimentos industriais tivessem com eçado
no último terço do século XIX. O direito de família tsarista deixava os assuntos referentes ao
casamento para as autoridades religiosas e a Igreja Ortodoxa condenava os casamentos
arranjados que ainda eram freqüentes mesmo no campesinato comum. Na Rússia, a prática
estava enraizada entre os servos e sua emancipação em 1861 não parece ter provocado
muitas mudanças nos assuntos familiares. O decreto de emancipação explicitamente
reafirmou que os costumes e as tradições locais sobre as normas de residência deveriam
ser seguidos111. A Grande Reforma de 1861 manteve a comuna camponesa, agora como
uma instituição de chefias masculinas das famílias, responsável pela propriedade coletiva da
terra e pelos pagamentos de indenização aos senhores e investida com o poder de refazer

30
as partilhas entre os domicílios, de acordo com as necessidades das famílias. Fora do
campesinato, o Código Civil Russo de 1864 concedeu às filhas, o direito de herdar a décima
quarta parte da propriedade imóvel de seus pais, e um oitavo de suas propriedades móveis.
Uma viúva poderia reivindicar um sétimo de propriedade imóvel de seu finado marido e um
quarto de sua propriedade móvel 112.
Algumas mulheres e feministas destacaram -se no movimento revolucionário próximo
ao final do século. Muitas vezes, elas tinham tido, educação de nível universitário na Suíça,
como Vera Figner e Alexandra Kollontai 113 A Suíça, ou seja, os cantões de Zurique, Berna e
Genebra, foi pioneira em proporcionar educação superior para as mulheres,
frequentemente, mais para estrangeiras do que suíças. A estudante russa de Medicina,
Nadezhda Suslova foi a primeira mulher européia a receber um grau acadêmico regular em
1867-68 114.
Nos Bálcãs, era significativa a presença da família patriarcal extensa entre eslavos,
sérvios, montenegrinos, croatas, búlgaros e albaneses; era a zadruga, na qual mesmo um
marido adulto poderia estar sob o controle de seu pai ou de seu irmão mais velho 115
Legalmente, os assuntos familiares na Europa Oriental estavam, basicamente, sob
jurisdição religiosa, inclusive aqueles referentes às minorias religiosas do Império Russo,
embora este último tivesse também obtido uma lei geral sobre o casamento em 1894. Na
Grécia, a tradição legal dava continuidade às tradições romano-bizantinas. Aos elementos
básicos da lei religiosa na Europa Oriental, foi acrescido um conjunto de variantes
territoriais, refletindo as diferentes trajetórias histórico-políticas de áreas que estavam, em
1900, sob um único monarca.
Houve também uma série de variações ao tema comum do patriarcado. A Sérvia
tinha endurecido a lei romana e sua concepção de poder marital, o manus mariti, tomando
como seu modelo o Código Civil Austríaco de 1811 e acrescentando ao status do marido
tanto velhos conceitos sérvios, como o de stareschina (o mais velho da casa) quanto alguns
napoleônicos, como o de autorisation marital. A Bulgária, por outro lado, apesar de seu
patriarcado ortodoxo, incluiu um regime de casamento baseado na separação de
propriedades e na ausência de impedimentos à capacidade econômica da mulher, assim
como uma regulação simétrica do divórcio116.

Na Fronteira: a governança do gênero nos assentamentos


europeus.
Os europeus que foram colonizar as Américas, a Australásia ou o norte e o sul da
África – embora estas duas últimas regiões não sejam muito discutidas aqui – levaram
consigo normas familiares, legais, religiosas e costumeiras, principalmente ocidentais. Mas
os colonos dificilmente eram representativos de seus países de origem. Como tendência,

31
havia maiores proporções de aventureiros, desajustados e dissidentes entre eles, em suma,
inovadores institucionais. Também as condições das colônias de além mar eram diferentes.
A antiga aldeia familiar ou a pequena comunidade foi deixada para trás e abriu-se uma
desconhecida extensão de terra. Os vizinhos eram poucos e distantes. Nesta seção
estamos tratando apenas dos assentamentos europeus baseados no genocídio e na
limpeza étnica. Mais tarde, trataremos dos padrões familiares nas sociedades onde os
nativos mantiveram uma presença predominante. Por muito tempo, como regra, houve muito
mais homens do que mulheres, complicando a demografia da família. A autoridade real e a
eclesiástica não desapareceram, mas estavam muito distantes, em última instância, além-
mar.
Contudo, esta susceptibilidade à mudança institucional não deve ser confundida com
a modernidade do século XX, como se permitiu afirmar um dos grandes historiadores
mundiais da família: “A família americana [dos Estados Unidos] provavelmente nasceu
moderna, porque os povoadores coloniais aparentemente apropriaram-se da privacidade e
da intimidade mal desceram dos barcos .”117. Isto, por um detalhe. Alguns dos colonos eram
o que chamaríamos hoje de fundamentalistas cristãos, tais como os puritanos da Nova
Inglaterra, e os africânderes calvinistas holandeses, isto é, militantemente patriarcais. Por
exemplo, as pressões por mudança na Nova Inglaterra, tiveram que se defrontar primeiro
com sermões fulminantes e estatutos draconianos, incluindo a pena de morte por pecados
contra o Quarto Mandamento 118 Na conquista espanhola da América, padres e monges da
Igreja Católica acompanharam os conquistadores nos desembarques e nos primeiros
campos de batalha.
Na medida em que o tempo passava e divergiram as condições socioeconômicas,
com a distância imposta pelos oceanos e pelas gerações, emergiam também tendências
compensatórias da ortodoxia tradicional. Ao lado dos aventureiros, dissidentes, refugiados
que continuavam a afluir, estavam consolidadas agora novas comunidades, cidades, e elites
locais, com duas ou, até mesmo, múltiplas gerações, com aspirações de respeitabilidade.
Na América Hispânica, o patriarcado foi reforçado em 1776, pela assim chamada
Sanção Pragmática real, tornando o consentimento paterno requisito para um casamento
(branco) válido. Esta manobra do absolutismo Bourbon esclarecido procurava atingir,
socialmente, as uniões informais e interétnicas e golpear, ideologicamente, a Igreja
Espanhola, que, ao contrário da Portuguesa e da Francesa, permanecera muito leal ao
Concílio de Trento e à sua regra estrita de livre escolha do cônjuge119. A independência não
afrouxou as normas do patriarcado nem na América do Norte nem da do Sul, uma vez
acalmadas as convulsões revolucionárias imediatas. As codificações dos diferentes estados
americanos sobre as normas familiares tendiam antes a enrijecer aquelas existentes 120. Os
comentários legais oficiosos da metade do século XIX nos Estados Unidos enfatizavam o

32
casamento como uma instituição ou um status mais do que como um contrato121 Os
recentes Códigos Civis da América Latina, tal como o chileno de 1958 – redigido por um dos
grandes intelectuais do subcontinente – Andrés Bello – seguia o Código Napoleônico na
proclamação do dever de obediência da esposa a seu marido. Entre as ondas de imigração
em massa do final do século passado, a família patriarcal, os parentes e as comunidades
etno-religiosas eram apoios cruciais tanto nas abarrotadas cidades de rude industrialização
capitalista quanto nas propriedades agrícolas. Sob o novo regime de trabalho livre no Brasil,
a migração foi promovida especialmente para as colônias de café em São Paulo e para a
agricultura mais intensiva e diversificada do Sul.
Porém é verdade que, com todas estas qualificações e contradições, na segunda
metade do século XIX, o patriarcado estava sendo atacado e erodido de modo mais
poderoso do Novo Mundo do que no Velho. A descontinuidade política da independência
americana bem como a autonomia legislativa das colônias britânicas tornaram mais fácil
abrir a porta para novos argumentos legais desconsiderando os antigos costumes
precedentes. As igrejas confessionais tinham sido desvinculadas do estado nos EUA e os
vínculos entre a Igreja e os estados independentes da América Latina, embora
estabelecidos em toda parte, desde o começo estiveram perpassados por controvérsias.
Afinal de contas, a Igreja era colonial e não nacionalista. No fim do século XIX, toda a
autoridade institucional dos Novos Mundos tinha submergido no influxo de imigrantes,
homens e mulheres jovens, de diferentes nacionalidades, linguagens, religiões e costumes.
Embora raramente houvesse um desafio frontal, as instituições existentes dificilmente
poderiam barrar esta célere correnteza humana.
Neste tumulto de mudança caminhava uma nova força social emergente: as
mulheres organizadas. As mulheres coloniais tinham tido sempre importantes funções
econômicas e um valor extra de escassez. O controle social sobre elas tinha sido sempre
mais difícil do que nas aldeias da Velha Europa. Com a ampliação das diferenças nos
assentamentos de além-mar entre povoadores estabelecidos e os rudes novos imigrantes,
as mulheres eram frequentemente encaradas como sustentáculos importantes, até mesmo
cruciais, das normas, como portadoras da “civilização” e das boas maneiras assim como dos
seus efeitos nos homens solteiros quanto sobre elas mesmas. Por esta e, possivelmente,
por outras razões, o acesso das mulheres à educação tendeu a ser muito mais fácil no Novo
Mundo. Começando no oeste, em Iowa, em 1855, as mulheres estado-unidenses
conseguiram acesso aos estudos universitários no terceiro quartel do século XIX. Por volta
de 1880, as mulheres representavam cerca de um terço dos estudantes das faculdades e
universidades americanas122. A liderança, porém, pertencia ao mais novo dos Novos
Mundos. Em 1893 cerca de metade dos estudantes universitários da Nova Zelândia era
mulher 123.

33
Mas era o tamanho do estoque, mais do que as datas que era impressionante. Os
quadros comparativos que tenho são de cerca de 1920 ou dos anos seguintes. Nos anos de
1920 as mulheres constituíam 36% da população de estudantes universitários dos Estados
Unidos, de 23 a 25% no Chile e em Cuba e 15% na Argentina 124.O único país europeu em
igualdade com o Chile era o Reino Unido, possivelmente, mesmo um pouco à frente, mas,
claramente, atrás dos Estados Unidos. A maioria dos países europeus tinha entre 10 e 15%
de estudantes mulheres, com a Alemanha e a Suécia no limite inferior e Holanda e Itália no
superior; a Espanha sublinhava a distância entre os dois mundos hispânicos, com 4% de
estudantes mulheres em 1920. A Alemanha alcançou os níveis chilenos dos anos vinte
apenas após a II Guerra Mundial, na Alemanha Oriental em 1950 e, na Alemanha Ocidental,
em 1970 125
O protestantismo anglo-saxão, desvinculado do Estado 5, foi significativo no apoio da
educação feminina no Novo Mundo. Isto pode ser comprovado pelo seu papel na América
Latina, predominantemente católica. Na Argentina de meados do século XIX, o presidente e
também professor Sarmiento, tomou por modelo a educação dos Estados Unidos e também
trouxe professores estado-unidenses para a Argentina. Maria Abella de Ramirez, uma figura
chave do feminismo na região do Prata (Argentina e Uruguai) graduou-se em 1894 em uma
destas “escolas normais” (escolas para formação de professores)126 No Chile, a principal
escola para moças, o Colégio de Santiago, foi criada por missionários metodistas em 1881.
O novo e igualitário sistema educacional cubano de 1901, sob ocupação americana, foi
impulsionado pela realização de um curso de verão para mil professores cubanos pela
Universidade de Harvard 127.
Na Argentina, Chile, Uruguai e Cuba, estas mulheres pioneiras, embora
frequentemente filhas de franco-maçons e geralmente educadas fora do circuito católico,
não eram grupelhos isolados como na França, ou como, por diversas razões, no coração do
domínio ibérico das Américas. Isto não ocorreu no Brasil, com seu sistema escolar elitista e
subdesenvolvido, na hispanidade acuada do Peru nem tampouco no México, que estava
mudando em outros aspectos, mas onde a pequena imigração e os amargos conflitos com
os Estados Unidos significaram também que as tradições da Nova Espanha permaneceram
mais poderosas do que na longínqua periferia do Cone Sul.
O protestantismo desvinculado do Estado dotou as mulheres do Novo Mundo de uma
força moral pública que não seria permitida nem por nenhum catolicismo do Novo Mundo e,
tampouco, por nenhum protestantismo de estado do Velho Mundo; embora a Noruega, na
periferia noroeste da Europa tivesse cultivado certas similaridades consideráveis.

5
N.T: no inglês disestablished Anglo-Saxon Protestantism

34
O catolicismo sempre privilegiou o clero masculino acima da congregação e as
soluções para a atividade feminina, estavam ou estreitamente circunscritas à caridade
enquanto atividade pública, que foi uma dimensão relevante da América católica do final do
século XIX, ou confinadas dentro dos muros dos conventos, para onde era canalizada uma
grande parte da dissidência e do ativismo feminino. O pecado era mais sério para os
protestantes do que para os católicos, uma vez que os primeiros não dispunham da solução
conveniente do confessionário.
Embora certamente ferindo os sentimentos e os interesses masculinos, as cruzadas
morais feministas do Novo Mundo puderam basear-se não apenas na teologia protestante,
mas também na “sociedade educada” das comunidades consolidadas. Frequentemente
houve um importante componente etno-religioso. As ativistas eram protestantes britânicas e
seus alvos masculinos tinham maior probabilidade de ser católicos não-britânicos,
irlandeses, eslavos e italianos.
O primeiro movimento mundial poderoso de mulheres foi a União das Mulheres
Cristãs pela Temperança, fundada em 1847, emergindo do meio-oeste americano. Por volta
de 1900, ela tinha duzentos mil membros nos Estados Unidos. Seu papel histórico principal
não foi a desastrosa e curta proibição legal do álcool, mas a promoção de uma agenda
feminista. Seus principais sucessos ocorreram na Nova Zelândia e na Austrália, para onde o
movimento espalhou-se em 1885. Foi este movimento que conseguiu dar o direito de voto
às mulheres, na Nova Zelândia em 1883 e na nova Comunidade da Austrália em 1901 128..
Exceto por uns poucos estados americanos a oeste do Mississipi, Austrália e Nova Zelândia
eram os únicos lugares do mundo onde as mulheres tinham cidadania política no começo do
século XX. O mérito pertence, acima de tudo, à força das combatentes protestantes contra o
álcool. Quando e onde quer que a espinha dorsal do patriarcado cristão tradicional tenha
sido dobrada, estas mulheres moralistas tiveram a capacidade de atrair os defensores
masculinos das instituições herdadas, através da barreira de gênero. Nos países católicos,
os eleitorados republicanos, masculinos e seculares, tinham boas razões para temer a
influência do clero sobre uma grande parte de um eleitorado feminino, mas até 1929, no
Equador, nenhuma elite política católica e masculina conseguiu superar seus instintos
patriarcais para permitir o direito de voto às mulheres.
Com relação ao Direito de Família, o Novo Mundo também sobrepujou o Velho. A
questão principal era, no direito costumeiro, a “morte legal” das mulheres casadas,
absorvidas por seus maridos, e nos países de lei civil napoleônica, o patria potestas, o
supremo direito do marido e do pai. Era também objeto de discussão a questão sobre em
que extensão o casamento seria um contrato e em que extensão seria uma instituição
social. O catolicismo sustentava ser ele um sacramento, uma instituição sagrada. O

35
protestantismo o considerava uma “coisa mundana” (Lutero), mas como instituição de
importância social, superior aos interesses individuais e prevalecendo sobre eles.
Nos anos 1840, o movimento de mulheres ganhou ímpeto nos Estados Unidos. No
centro das exigências femininas estavam os direitos econômicos das mulheres casadas,
mas havia também outras questões. Uma delas, muito importante nas décadas que
prepararam a Guerra Civil foi a abolição da escravidão. O abolicionismo era extremamente
defendido tanto pelos homens quanto pelas mulheres da classe média protestante do norte,
preocupada com questões morais.
O evento que acabou se tornando um marco histórico feminista, a Convenção de
Seneca Falls e a Declaração6 de 1848, foi planejado como parte da campanha pela reforma
{da lei} da propriedade marital no estado de Nova York. A declaração emprestou sua
linguagem da Declaração de Independência, sustentando, como fundamento para uma lista
de exigências igualitárias, incluindo o direito ao voto, “estas verdades como auto-evidentes”,
129
“de que todos os homens e mulheres são criados de modo igual” .
Embora a ascensão de um movimento de massa de mulheres, reforçado pelo acesso
feminino em massa à educação superior, tenha sido um evento relevante na história do
patriarcado, não houve outros grandes avanços nos direitos das mulheres nos Estados
Unidos, antes da virada do século. No período imediatamente subseqüente à Guerra Civil,
rompeu-se a aliança entre o feminismo e o abolicionismo. As mulheres foram deixadas fora
da política eleitoral, salvo em umas poucas áreas remotas, como o Wyoming e os estados
ainda mantinham barreiras à entrada das mulheres em profissões como o Direito130. No
retrocesso racista entre a Guerra Civil e o fim da Reconstrução, foi atribuída uma nova
ênfase ao casamento enquanto status, em oposição ao seu caráter contratual, como base
racional legal para uma onda de leis matrimoniais racistas, contra os casamentos inter-
raciais131.Embora o direito costumeiro, em contraste com o direito civil europeu, geralmente
relute em regular as relações internas da família e nelas interferir, os estados americanos
aprovaram leis que proclamavam explicitamente a subordinação da esposa, leis estas que,
em alguns casos, permaneceram nos códigos até os anos 1970132.
Quando no início dos anos 1870, a brilhante feminista de N.York, Victoria Woodhull
publicamente levou o contratualismo britânico à sua conclusão lógica, provocou um
escândalo:

Eu tenho o direito inalienável, constitucional e natural de amar quem eu queira,


de amar por muito ou pouco tempo, como puder; de mudar de amor todos os dias se me
agradar e, neste direito nem vocês, nem lei nenhuma que possam elaborar, têm o direito
133
de interferir. .

6
NT : “Declaração dos Sentimentos” elaborada como Relatório da Convenção sobre os
Direitos da Mulher ocorrida em Seneca Falls em 19-20 de julho de 1848.

36
Mais de um século se passaria antes que tal afirmação integrasse a opinião
dominante em N.York
O patriarcado dos Estados Unidos já estava claramente limitado no final do século
XIX em um outro aspecto. Os juízes tinham começado a reconhecer os interesses das
crianças, que estas poderiam ser molestadas pelos pais e que seus interesses eram
relevantes nos casos de guarda, cujo número estava aumentando com a ampliação das
possibilidades do divórcio judicial. Na prática, isto evoluiu para a preferência pela mãe nas
disputas pela guarda 134.
A lei baseada em códigos, feita pelo legislador, geralmente é mais difícil de mudar do
que as leis feitas pelos juízes. O Código Civil Argentino de 1869, ao mesmo tempo em que
se abstinha de instar a mulher a obedecer a seu marido, em contraste com o Código
Uruguaio do ano anterior e do Chileno de 1858 135, mantinha-a ainda, sem rodeios, sob a
patria potestad (o termo legal espanhol para o poder familiar masculino), como suas irmãs
em toda a América Latina que tivessem pais ou maridos vivos. As mulheres viúvas e
separadas podiam obter o poder “semelhante ao paterno” sobre seus filhos nos códigos
pós-coloniais do final do século XIX, da Argentina ao México136 . O Código Mexicano de
1884 concedeu às filhas, a maioridade legal e o direito de se casarem aos 21 anos, embora
não o de escolher sua própria residência antes dos 30 anos, quando solteiras. Seu
liberalismo positivista concedeu aos casais o direito de escolher o seu próprio regime de
bens, mas também retirou de cada criança o direito legal à partilha igualitária dos quatro
quintos da propriedade. Uma mudança anterior já tinha liberado os pais de atribuir um dote
às filhas 137.
No Cone Sul das Américas, especialmente no Chile e na Argentina, os debates sobre
a subordinação da mulher no direito de família e as exigências de mudança ganharam
algum ímpeto nos últimos dez ou quinze anos do século XIX, mas apenas para se perderem
completamente nos labirintos legislativos masculinos. A mudança demoraria a ocorrer.

A dualidade da Sociedade Crioula: Famílias coloniais Indo e Afro-


americanas após as revoluções.
O que estou chamando aqui de sociedade crioula foi o produto de contactos
desiguais e de profunda interpenetração entre, de um lado, uma classe dominante de
colonizadores europeus e, de outro, uma classe dominada de não europeus, ambas
socialmente significativas. Socialmente significativa quer dizer que não estamos nos
referindo a pessoas à margem do sistema social em questão, tais como administradores
coloniais ou soldados, em postos temporários, ou figuras coloniais ocasionais como
visitantes, mercadores e fugitivos ou, ainda, como aqueles expulsos para reservas ou outras
periferias distantes. Profunda interpenetração refere-se aqui aos intensos efeitos recíprocos

37
de uma destas duas ou mais classes sobre a outra, especialmente sobre suas relações
sociais mais íntimas: seus sistemas de família e de gênero. As sociedades crioulas, neste
sentido, criaram sistemas familiares duais, algumas vezes triangulares – branco, não
branco, misto – diferentes entre si, mas cada um deles crucialmente modelado pelos outros.
Na história moderna, há dois tipos principais de sociedades crioulas. Sociedades que
são encontradas principalmente, mas não exclusivamente, nas Américas. À primeira delas
cujas fronteiras são menos nítidas, podemos chamar de indo-americana, a partir de sua
localização principal, emergindo de contactos longos, extensos e assimétricos entre os
europeus e os índígenas americanos, isto é, entre colonizadores e nativos. A outra, derivada
dos contactos traumáticos entre o trabalho cativo importado e os povoadores-proprietários, é
principalmente afro-americana, produto da caça aos escravos e de seu comércio na África e
pela escravidão de plantation nas Américas. A primeira envolveu, historicamente, trabalho
forçado e ambas envolveram relações que foram tipicamente de exploração e dominação,
de um modo ou de outro. Já a família caribenha hindu, produto também de trabalho servil
importado para a plantation e significante principalmente em Trinidad e nas Guianas, parece
ter sido menos afetada.
O sistema familiar indo-crioulo é principalmente um produto da conquista e da
colonização espanholas, embora houvesse tendências neste sentido no Canadá francês,
originando les Métis. Como já observou uma vez Magnus Morner, um historiador sueco da
região: “A conquista espanhola da América foi uma conquista de mulheres.” A sociedade
típico-ideal indo-crioula compreendia os “brancos”, povoadores e dominadores coloniais, um
segmento claramente minoritário, mas não marginal, de população mestiça que
historicamente foi crescendo, tornando-se gradualmente muito importante e um grande
conjunto de comunidades indígenas locais cujos hábitos familiares foram consideravelmente
afetados – em extensão variável, embora - pela conquista e pelo desastre demográfico e
econômico-político que ela provocou e por suas relações tanto com os brancos quanto com
os mestiços 138.
Para um historiador global da fam ília, que está constrangido não apenas pelos limites
de sua competência, mas também pela necessidade de estabelecer prioridades dentre um
grande conjunto de populações e territórios, as sociedades indo-crioulas mais importantes
são aquelas que produziram grandes populações mestiças. Isto ocorreu com base em duas
condições: a presença de indígenas de alta cultura, apaziguados, e, em segundo lugar,
certa limitação do povoamento europeu. A primeira condição esclarece os vales, os altos
planaltos e as cercanias dos Andes e sua continuação ao norte, do atual Paraguai ao
México central. Embora fosse esperada sua influência sobre a alta sociedade branca, tal
como observada nos centros da Cidade do México e de Lima, sua plena florescência, no
sentido mestiço, seria encontrada nas periferias desta vasta área, na América Central

38
(exceto Costa Rica), na Colômbia, no Equador e no antigo Alto Peru, isto é, na Bolívia e no
Paraguai de hoje.
A escravidão, no sentido de trabalho não-livre, é antiga e assumiu várias formas,
incluindo algumas muito importantes para o funcionamento de sistemas sociais em grande
escala139. Sua operação, por exemplo, no mundo muçulmano do século XVI ao XVIII, teria
chamado a atenção de um de um estudioso mundial de famílias naquele período. Contudo,
aqui estamos interessados com um tipo de escravidão específico e socialmente devastador
– a escravidão de plantation. Sua implementação em grande escala originou-se nas
Américas e, no geral, permaneceu específica a esta área 140.
A sociedade afro-crioula à qual me refiro foi criada pela escravidão de plantation.
Três regiões relevantes das Américas foram modeladas por ela e caracterizadas por uma
sociedade afro-crioula. Do norte ao sul, a primeira delas é o sul dos Estados Unidos, onde o
algodão e o tabaco foram os principais produtos do trabalho escravo. A segunda, o Caribe,
ou Índias Ocidentais conforme a denominação inglesa mais popular, incluindo partes da
Venezuela e da Colômbia, menos da América Central, centrada em suas montanhas e
voltada mais para o Pacífico do que para o Atlântico. A Jamaica britânica e a Cuba
espanhola foram os centros da escravidão caribenha de plantation de cana de açúcar.
Finalmente, o Brasil, da Bahia até o Rio de Janeiro, mas com seu centro clássico nas
plantations de cana de açúcar da Bahia, no Nordeste 1417.
Em sua formação familiar, as famílias indo-crioulas e as famílias afro-crioulas
partilhavam características comuns: entre os europeus dominantes, a sociedade crioula
representou o fortalecimento e o enrijecimento do patriarcado. As mulheres brancas eram
impedidas de qualquer trabalho produtivo enquanto contassem com um provedor masculino
e seus escravos ou servos. A preocupação crioula branca com a “pureza de sangue” exigia
a presença explícita de damas de companhia8 e controle parental. O resultado foi um padrão
familiar europeu, pouco comum, de segregação e hierarquia dos sexos.
A escassez e a inacessibilidade das mulheres brancas foram compensadas, no lado
escuro da sociedade crioula, pelas normas e práticas prevalecentes, se necessário pela
violência, da acessibilidade sexual das mulheres negras, índias, mestiças e mulatas. Para
os escravos, o casamento era frequentemente proibido e, em qualquer situação, fortemente
encorajada a parceria informal. A predação sexual masculina tornou-se quase
institucionalizada entre os brancos dominadores. Dentro das fronteiras raciais, tal fato

7
NT: A cana de açúcar começou a ser cultivada em São Vicente (São Paulo) e em
Pernambuco, de onde se estendeu à Bahia e ao Maranhão. Em Pernambuco, no Recôncavo e no
Maranhão, sua cultura obteve extraordinário êxito, assim como no Rio de Janeiro.
8
NT: chaperoning.

39
proporcionou modelos de papel para as raças e classes dos homens dominados. E,
ademais desses modelos vindos de cima, que prêmio do talento masculino outro que não as
façanhas sexuais haveria para os escravos homens, que não apenas não tinham
propriedade como também não tinham comunidade e família próprias? Para as mulheres
não-brancas, as relações sexuais com homens brancos ou, pelo menos, de pele mais clara
não envolvia necessariamente violência e exploração masculina. Em termos de
oportunidades sociais e econômicas de vida, o dito colonial cubano, “melhor amante de um
branco do que mulher de um negro”142 tinha a sua racionalidade. A resistência escrava
provocou altas taxas de mortalidade e baixas taxas de natalidade, o que, no Caribe e no
Brasil, principalmente nas plantations canavieiras, conduziu a um continuado declínio natural
da população escrava, sustentável somente por importação contínua 143. Entre mulatos,
negros livres e mestiços, a família crioula tinha como características distintivas, sua
instabilidade e informalidade, sua sexualidade ativa e pouco controlada, suas uniões
instáveis e informais, o absenteísmo masculino e a matrifocalidade. A família branca,
patriarcal e patrilinear, ritualmente formal, tinha seu oposto na informalidade solta e
matrilinear dos crioulos de cor.
A catastrófica conquista colonial, com a imposição subseqüente da cristandade,
quebrou a coluna vertebral das principais culturas indígenas, geralmente patriarcais,
patrilineares e, não raramente, polígamas. Por outro lado, tais culturas realmente se
reproduziram socialmente como comunidades transformadas e subjugadas. Elas não foram
destruídas socialmente como os escravos da África ou os novos sistemas sociais
intersticiais, como os mundos mestiço e mulato, mantidos fora da dicotomia britânico-
americana de brancos e não brancos. Tampouco os indígenas foram integrados à América
Latina, permanecendo longe do padre e, mais ainda, da autoridade secular, ainda que
submetidos a eles. As famílias indígenas tenderam a apresentar, no mínimo, uma
informalidade oficial e superficial, com a coabitação não oficial amplamente disseminada,
alterações em suas linhagens tradicionais e, algumas vezes, poligamia de uma ou de outra
forma.
A conceitualização do sistema familiar crioulo constrói-se aqui sobre certo número de
trabalhos com abordagens e preocupações distintas e separadas, desenvolvidos em
diferentes partes das Américas e abordando diferentes partes dela. Tópicos e áreas-chave
têm sido as sociedades de senhores e escravos do Nordeste brasileiro 144; do sul dos
Estados Unidos, sobre a qual há uma imensa literatura145, das Índias Ocidentais 146
e a
147
sociedade do conquistador hispânico de modo geral e, mais especificamente, a mestizaje
e o triângulo das relações familiares entre o branco europeu – o mestiço – a família
indígena, do Paraguai (e do norte da Argentina), através dos Andes, até a Guatemala e o
México148.

40
Por volta de 1900, esta bifurcação crioula de raças e famílias foi seriamente
desafiada. A Revolução Francesa, através de uma série de revoluções convulsiva locais
provocou o fim da escravidão no Haiti. O abolicionismo britânico mudou totalmente os
parâmetros da Jamaica, a qual, por causa de baixa fecundidade e da propensão ao declínio
da população, era extraordinariamente dependente do tráfico de escravos. Em 1865, o
desenlace da Guerra Civil Americana colocou um fim à escravidão nos Estados Unidos e em
1888, a Lei Áurea no Brasil finalmente terminou com a última escravidão de plantation do
mundo. A família indo-crioula vivia um drama menor, mas que também exige reflexão
fundamental e redefinição. As convulsões das guerras de Independência finalmente
estavam conseguindo produzir alguma nova estabilidade nacional. Novas imigrações
estavam na agenda política e levas de imigrantes estavam chegando, embora sem
comparação com as áreas de povoamento genocida.
Via de regra, a elite branca da sociedade crioula manteve intacto seu sistema de
gênero-família, pelo resto do século XIX. Como sistema social específico, este nunca esteve
sob ameaça, quaisquer que fossem as fantasias da Ku Klux Kan. Um declínio econômico e
político, lento e requintado, sobreveio às “plantocracias” do sul dos Estados Unidos, do
Caribe e do Nordeste do Brasil, assim como às elites brancas como a neve da velha Nova
Espanha e dos outros centros do colonialismo hispânico. Algumas vezes, partir foi a melhor
ou a única opção: do Haiti, do Peru ou de Cuba. Mas ninguém queria, ou pelo menos,
ninguém jamais tentou submergir o patriarcado branco na informalidade dos mundos das
pessoas de cor. No Sul dos Estados Unidos, a transformação da plantation, cuidadosamente
maquinada em termos raciais e de gênero significou uma reprodução local bem calibrada
dos sistemas de raça, classe e gênero que incorporava os anômalos brancos pobres na
composição estritamente segregada da família e da sociedade brancas 149. No Brasil, que
nunca foi obcecado por nenhuma fronteira de cor, uma República elitista com trabalho livre
basicamente reproduziu as elites de proprietários de escravos do Império.
O lado de cor do sistema de gênero-família da sociedade crioula impôs, realmente,
um desafio ao patriarcado, enquanto sua flagrante violação. Este lado, porém, era o lado da
pobreza e da ilegitimidade no sentido social do termo e não apenas no técnico. O fim da
escravidão e das outras formas de exploração colonial não promoveu as populações de cor
e suas relações familiares específicas, exceto talvez, politicamente, no Haiti e no Caribe,
mas essa região toda estava se estagnando e tornando-se a primeira região de evasão
migratória das Américas. Embora isto fosse em parte um prenúncio do futuro da família
européia, em 1900, ninguém jamais pensaria no Haiti e na Jamaica como modelos para o
futuro.

41
Embates Coloniais
Por caminhos paralelos aos das comoções do capitalismo industrial e sua
desarticulação da velha ordem estamental na Europa, aos dos contactos entre a migração
em massa e o moralismo feminino desautorizado nos Novos Mundos da colonização e aos
dos desafios impostos às sociedades crioulas duais pela abolição da escravidão e pela
crescente consolidação de estados-nações não-indígenas, as sociedades afro-asiáticas do
final do século XIX e seus sistemas familiares foram confrontadas com um novo surto de
colonialismo e de imperialismo europeu e americano aparentemente incontrolável. Nenhuma
análise da família no mundo de 1900 pode ser válida sem levar em conta o impacto desta
ocorrência.
O funcionamento e o impacto reais do colonialismo foram complexos e contraditórios.
Noções nacionalistas de conquista, ocupação, opressão, exploração e humilhação racista
são todas verdadeiras, porém, parciais, como clichês, estereótipos, caricaturas. Na segunda
metade do século XX, as motivações imperialistas de civilização, lei, paz, progresso se
revelaram todas ridiculamente ocas e hipócritas, mas elas não estiveram com pletamente
ausentes. Afinal, alguém tão nacionalista quanto Ghandi150 por muito tempo viu o domínio
britânico sobre a Índia como “um benefício para os dominados”. Hoje, no começo do século
XXI, quando ocorre um renascimento do imperialismo explícito e violento nos Estados
Unidos e no seu coro de satélites, é necessário que a capacidade crítica seja como uma
lâmina afiada dos dois lados para poder entender o que se passa e agir adequadamente em
relação a isso.
Analistas do colonialismo, inspirados pela Psicanálise, relacionaram o patriarcado e o
colonialismo através de concepções de dominação sexual. O exemplo clássico é o livro
Peau Noire, Masques Blancs151 (Pele Negra, Máscaras Brancas) escrito aos 27 anos de
idade por Franz Fanon, um médico negro da Martinica. Um resumo bem sucinto pode ser
extraído do escritor bengali Ashis Nandy 152:

A homologia entre a dominação sexual e a política, usada invariavelmente pelos


colonizadores ocidentais (...) legitimou lindamente os modelos europeus pós-medievais
de dominação, exploração e crueldade como naturais e válidos. O colonialismo produziu
um consenso cultural no qual a dominação política e socioeconômica simbolizavam a
dominação do homem e da masculinidade sobre a mulher e a feminilidade.”

Esta perspectiva capta um importante aspecto psicológico do colonialismo: sua


rapacidade sexual em relação às mulheres colonizadas, seu medo sexual do macho
colonizado, seu desprezo pela “efeminada” classe média bengali, seu respeito por “raças
marciais” como os Sikhs do Punjab ou os Gourkas, seu paternalismo arrogante na
percepção de “raças infantis”. Contudo, esta conceitualização pan-sexista do colonialismo
moderno não se sustenta por, ao menos duas razões que são pertinentes à nossa história.

42
A primeira delas, empiricamente muito importante, mas, teoricamente, secundária, é
sua falha em distinguir entre o que chamamos aqui de sociedades crioulas, baseadas na
interação extensa e decisiva entre colonizadores e colonizados e, de outro lado, aquilo que
poderíamos chamar de sociedades coloniais propriamente ditas ou simples, nas quais o
governo colonial é simplesmente imposto sobre uma sociedade conquistada. Para a análise
da família, esta distinção é crucial. Nas sociedades coloniais simples, o sistema familiar do
colonizado não é esmagado, como ocorreu na escravidão de plantation, e a zona de
sexualidade extra-familiar e de uniões sexuais informais é marginal e relativamente
insignificante em termos numéricos, e não grande e central como foi no Caribe e em outras
regiões semelhantes das Américas. As tendências neste sentido, nas precoces colônias
holandesas do Cabo Sul-Africano, do Ceilão e das Índias Ocidentais, no decorrer do século
XIX foram revertidas entre os Boers, frigidamente racistas e foram também tragadas pela
extensão colonial da Indonésia Holandesa. Contudo, o concubinato colonial permaneceu
importante o bastante para ser reconhecido como tema de políticas no início do século
XX153.
Em segundo lugar, a psicologia sexual do colonialismo minimiza as instituições e os
efeitos institucionais, particularmente, a instituição da família e seus efeitos sobre o status
social das mulheres. O erro fatal desta perspectiva é que ela falha completamente ao levar
em conta alguns efeitos normativos notáveis do colonialismo. No geral, a dominação colonial
moderna, assim como a moderna ameaça de subjugação colonial, na medida em que
realmente induziram qualquer mudança normativa, tenderam a fortalecer a posição das
mulheres, das crianças e dos jovens, à custa dos mais idosos e dos homens adultos. Para
podermos entender porque este foi o caso, temos que ver o colonialismo como o contacto
assimétrico entre dois sistemas sociais de relações de família e de gênero.
Com relação ao patriarcado, o poder colonial e sua penetração mediaram o contacto
do sistema familiar europeu patriarcal, de dominação masculina com outros tipos ainda mais
patriarcais e misóginos de família, desconsiderando-se exceções marginais e menores,
como as sociedades matrilineares da África Ocidental, na atual Kerala e nas montanhas da
Sumatra. Para os dominadores ocidentais, todos homens, é claro, este excedente de poder
masculino nas colônias não oferecia nenhum problema, nem se constituía em uma
preocupação em si mesmo, embora houvesse algumas práticas “horrendas”; o sati , a
imolação da viúva na pira funerária de seu marido, era a que atraía maior atenção. Além
disso, o poder colonial nos séculos XVIII e XIX, via de regra estabelecia-se pelo alinhamento
com algum potentado local, ou aspirante a potentado, contra os demais. Os britânicos logo
desenvolveram a doutrina do “governo indireto” elevando-a a condição de fine art 9, à qual

9
NT: Mantido como no original em inglês.

43
os franceses, instintivamente mais “diretos” e “assimilacionistas” só aderiram efetivamente,
em grande parte, na virada do século154 .
Contudo, os dominadores coloniais eram também homens com um sentido de
missão, e um mandato de mudança social. Desde o Iluminismo os europeus educados
tinham a idéia de que um aspecto significativo da civilização européia era o tratamento
“galante” prestado às mulheres, em contraste com as maneiras dos povos menos
civilizados. Como James Mill155 colocou no primeiro volume de sua História da Índia
Britânica: “Entre os povos rudes, as mulheres, normalmente, são degradadas. Entre os
refinados, elas são exaltadas.”156 Além disso, os europeus colonizadores tinham uma linha
de frente doméstica com crescente influência. No século XIX, as tropas de colonizadores
eram constituídas, em sua maior parte, pela cristandade militante, encabeçada por uma
vanguarda de missionários, destemidos, bem informados e normativamente agressivos. Seu
zelo era dirigido não apenas contra os falsos deuses dos pagãos como também contra seus
abomináveis pecados contra o patriarcado monogâmico cristão. Nas colônias, os
missionários não foram apenas pregadores vociferantes de uma religião estranha, mas
também, em considerável extensão, educadores, enfermeiros, doutores e assistentes
sociais.
As famílias colonizadas nunca compuseram uma nação. O poder colonial penetrou
através das fissuras dos mortais conflitos internos da elite, dos estados multiculturais e dos
sistemas sociais interétnicos beligerantes. A histórica batalha de Plassey, em 1757 que, em
retrospecto, foi o que decidiu o governo britânico da Índia, na verdade foi um incidente
menor e confuso, cujo resultado foi determinado pela aliança secreta entre os britânicos e
um dos aspirantes bengali ao poder e à riqueza. O contexto geral foi o de um triângulo
desbalanceado de poderes, o nababo mogol de Bengali, formalmente o governador, em
nome do sultão mogol em Delhi e sua extensa parentela, em freqüentes conflitos entre eles,
os banqueiros e agiotas bengaleses, dos quais o Nababo tornara-se crescentemente
dependente, e, em terceiro lugar, a Companhia Britânica das Índias Orientais, à qual o
sultão de Delhi tinha concedido extensos privilégios comerciais.
Entre os colonizados, houve sempre uma parte significativa da elite local que via, ou
tinha aprendido a ver o governo colonial como rota para a mudança social, incluindo-se
muito aí a mudança na família. O epítome é o caso de Rammohan Ray (1772-1833), um
brâmane bengali com um registro de serviços ao Império Muçulmano Mogol por várias
gerações. O imperador mogol dera a Ray – ou Roy, em algumas transliterações - o título de
rajá. Ele tornou-se importante administrador para os novos governantes, a Companhia
Britânica das Índias Orientais, à qual teve acesso emprestando dinheiro aos jovens
funcionários britânicos 157, acrescentando o inglês à sua educação em sânscrito, árabe,
persa, bem como o bengali. Ray foi muitas coisas, um estudioso dos Vedas, um reformador

44
religioso deísta e o fundador da primeira organização da Índia moderna para a mudança
social, a Brahmo Samaj, em 1828. Contudo, no contexto deste livro, o lugar de Ray está
garantido pela sua propagação da reforma em profundidade da família 158, à qual logo
voltaremos.
A crítica colonial gerou uma defesa anticolonial das práticas locais. A Índia do século
XIX está cheia de exemplos, mas estes também podem ser encontrados na reafirmação do
véu na Argélia, após o golpe ultranacionalista de 13 de maio de 1958 e, no Irã, após o xá .
Contudo, como veremos, de modo geral, o nacionalismo trouxe à baila as reivindicações de
direitos das mulheres.
Mas o governo colonial não foi apenas político e normativo; envolveu também
mudanças e políticas sócio-econômicas e seus efeitos tanto inesperados quanto esperados.
Estas políticas incluíram redefinições da propriedade, a introdução de colheitas mercantis,
freqüentemente através do cultivo coercivo (muito desenvolvido pelos holandeses nas Índias
Orientais), trabalho forçado (disseminado na África), mineração, alguma industrialização e
uma nova infra-estrutura de portos e estradas. Além disto, o colonialismo engendrou
oportunidades educacionais, limitadas, porém, significativas e um novo mercado de trabalho
de escritório. De várias formas, a situação e as opções da nova geração colonial de crianças
e homens e mulheres diferiam daquelas das gerações pré-coloniais. Tal fato pode ter
corroído o poder dos pais, mas os efeitos sobre as posições relativas das mulheres em
relação os maridos e das irmãs em relação aos irmãos, foram mais complexos. Na medida
em que as mulheres tiveram autonomia econômica como lavradoras de subsistência - caso
muito freqüente na África - ou tiveram alguns direitos específicos nas sociedades
matrilineares, suas perspectivas tenderam a se estreitar pela promoção colonial do cultivo
mercantil masculino e pelas noções européias de direitos do pai/marido..
O colonialismo teve também efeitos importantes no desenvolvimento geral da
população. Os deslocamentos sociais no rastro da conquista colonial, os horrorosos ataques
punitivos que se seguiram à resistência e à rebelião, os efeitos mortais da primeira onda de
trabalho forçado provocaram um declínio da população no Camarões alemão, nos Congos
Belga e Francês, nas últimas duas décadas do século XIX e uma desaceleração ou, talvez,
até mesmo uma parada, no crescimento populacional de toda a África subsaariana . Mais
tarde, o poder colonial chegou a contribuir positivamente para o crescimento populacional
através de políticas de vacinação, de higiene e de saneamento e através do
desenvolvimento econômico.
O colonialismo do século XIX impulsionou três relevantes sistemas familiares
mundiais: o indiano ou, em termos atuais, o da Ásia do Sul, o africano e o do Sudeste
Asiático, intersticial de civilizações. Nós os examinaremos a s eguir.

45
Ásia do sul: as elites e os outros.
No final do século XIX, a maior parte da Ásia do sul atual, correspondia à Índia
colonial britânica, embora houvesse ainda alguns estados importantes no subcontinente,
deixados quase independentes, como Hyderabad, Mysore e Rajputana. O vasto complexo
social que, neste estudo, com a liberdade a que se permite um sociólogo global, foi
chamado de sistema familiar da Ásia do Sul, estava dividido pela religião (hindu,
muçulmana, sikh, jain, parse, e até mesmo cristã e judaica), por castas, por uma divisão
lingüística e um gradiente cultural norte-sul e pelos costumes regionais e locais. No
conjunto, contudo, esta complexa configuração de formação e de operação da família era
fortemente patriarcal e misógina. Os casamentos eram geralmente arranjados e as meninas
tinham que estar casadas antes da chegada da puberdade, ou seja, eram casamentos de
crianças e, freqüentemente, de crianças pequenas. A poligamia era legítima, mas ocorria
entre uma pequena minoria, como por exemplo, entre certas categorias de brâmanes. Com
o casamento, a residência passava a ser com a família do noivo e a herança era patrilinear -
com algumas exceções tal como na famosa casta superior dos naires na atual Kerala e
entre alguns povos no Assam. Meninas e mulheres eram consideradas extremamente
inferiores aos homens e não tinham espaço de autonomia exceto como prostitutas ou
artistas profissionais. Pelo contrário, a reclusão feminina, ou purdah, era a norma entre as
castas superiores.
Sobre esse tema comum houve diversas variações religiosas, de casta, regionais e
locais. O subcontinente também hospedou diversas etnias divergentes de importância
marginal para a área. A regra geral era a de que os hindus tendiam a ser mais patriarcais e
sexistas do que os fiéis das outras religiões; as castas superiores muito mais do que as
inferiores e os “arianos” nortistas mais do que os "dravidianos" sulistas.
O patriarcado hindu estava guardado no relicário de uma tradição legal de 2500 anos
tendo como autoridade máxima o Código de Manu, dos séculos em torno do nascimento da
era cristã. As diferentes relações de homens e mulheres com os deuses davam forma e cor
particulares às relações entre o masculino e o feminino. O casamento é um ato sagrado, um
modo de se pagar as dívidas com os ancestrais. Para os homens, há a alternativa de
renúncia ascética, funcionalmente equivalente ao monasticismo cristão, mas não há nada
semelhante para as mulheres. Uma mulher que não se casa quebra uma regra sagrada e é
convenientemente punida.
Após o nascimento, o ser humano tem três dívidas: com os deuses, com os sábios e
com os ancestrais. O casamento e a procriação pagam a última, mas as duas primeiras
requerem, respectivamente, rituais e sacrifícios especiais e aquisição de conhecimento.

46
Porém estas tarefas podem ser realizadas apenas pelo homem; a única forma de vida
virtuosa para uma mulher é a devoção a seu marido. Manu disse:

“O marido deve ser constantemente venerado como um deus por uma esposa
fiel, mesmo se ele for destituído de caráter, procurar prazeres alhures ou se for
desprovido de boas qualidades... A mulher alcança o paraíso não por virtude de alguma
penitência austera, mas como resultado de sua obediência e de sua devoção a seu
marido (...) Uma mulher alcança o paraíso não em virtude de alguma severa penitência
159
mas como resultado de sua obediência e devoção ao marido”
Em suma, para a mulher piedosa, o único caminho para o céu é a adoração de seu
marido. O casamento é o faquirismo da mulher.
Esta hierarquia normativa conjugal de alta intensidade é a base da indissolubilidade
do casamento hindu e da morte física e social da viúva. O Islã, ao contrário, não exclui as
mulheres do acesso direto a Deus e considera o casamento como um contrato secular,
embora a maior parte do patriarcado árabe nos tempos do Profeta partilhasse também da
divina lei dos muçulmanos. Durante os séculos em que foram governados por senhores
muçulmanos, muitos indianos converteram-se ao islamismo, mas, com a possível exceção
da difusão da reclusão feminina, as normas familiares dos governantes não parecem ter
afetado muito os não convertidos. Ao contrário, as regras de castas tenderam a acompanhar
os convertidos e seus descendentes tanto no islamismo quanto na cristandade.
Entre o norte e o sul do subcontinente indiano, há uma divisão de costumes
matrimoniais, que acabou por adquirir um significado persistente na Índia do século XX. No
núcleo do norte da Índia mogol, há uma forte regra hindu de exogamia de parentesco e de
aldeia, enquanto o costume muçulmano, ao contrário, favorece o casamento entre primos
cruzados. As implicações disto foram reveladas vividamente por Irawati Karvé160 que
escreveu um estudo clássico e brilhante sobre as variações regionais do parentesco e da
família na Índia.

O casamento precoce, fora da aldeia nativa, com um completo estranho, é uma


crise terrível na vida de uma menina (...). Centenas de canções populares testemunham
a agonia de uma garota quando deixa para sempre a casa de seus pais. O marido é uma
figura apagada, as pessoas reais são os sogros (...) que, ao menor gesto, estarão
prontos para apontarem seus defeitos (...) É só quando a menina se torna mãe de um
filho homem que vai se sentir completamente à vontade na casa de seu marido.
No sul da Índia, por outro lado, as alianças matrimoniais ocorrem, habitualmente,
entre famílias aparentadas, obedecendo a certas regras específicas de troca e,
freqüentemente, entre primos cruzados. As línguas dravídicas, segundo Karvé, não têm
designações que diferenciem os parentes por afinidade dos pais e irmãos. O contraste
norte-sul estabelecido por esta autora talvez envolva algum estereótipo branco-e-negro, mas
é uma bela peça de Verstehen. Eis como ela resume o casal do sul da Índia: "O homem do
Sul pode ser mais natural em sua atitude com a mulher. Ele é o primo cruzado, o
companheiro de brincadeiras de sua futura mulher e não seu senhor ou mestre.." Mas ainda

47
é a Índia, continua Karvé 161: "Há também compulsão neste tipo de casamento, na medida
em que há completa ausência da escolha irrestrita do parceiro.”.
Na obra de Karvé, "Norte" designa a população hindu do que é hoje o Paquistão e
Bangladesh, bem como os estados atuais do Punjab, Haryana, Uttar Pradesh, Bijar e
Bengala ocidental. O "Sul" compreende Kerala, Karnataka, Tamil Nadu, Andhra Pradesh.
Entre estas regiões, Karvé colocou uma zona central heterogênea, indo do Rajastão, a
noroeste, através de Gujarat e de Maharashtra (a presidência colonial de Bombaim) até
Orissa, indicando a proximidade do Rajastão e de Gujarat com o padrão nortista, a de
Maharashtra com o sulista e a fragmentação étnica em Orissa. Enquanto os pólos estão
claros, com seus núcleos duros, respectivamente, no Punjab e na costa malabar de Kerala,
as áreas intermediárias algumas vezes são mapeadas diferentemente 162.
Kerala, principalmente nos antigos estados principescos de Travancore e de Cochin,
163
tinha uma estrutura familiar fortemente divergente. Tanto o "núcleo” , a casta superior dos
naires - tradicionalmente guerreiros, mas que, com a paz colonial, foram se tornando
gradualmente servidores civis e profissionais-, quanto a casta maior, os "intocáveis" ezhavas
ou thiyas164 são matrilineares e matrifocais. A chefe da família é a mulher mais velha,
embora também haja um papel importante para o homem mais velho. Ao menos entre os
naires, as mulheres têm considerável autonomia sexual, uma vez que seus maridos não
vivem com elas, mas com as famílias extensas de suas respectivas mães e tampouco têm
direitos sobre seus filhos. Uma pequena parte disto já seria demasiado para o patriarcado
britânico aceitar e, no primeiro quartel do século XX, o poder colonial interferiu em favor dos
maridos e dos pais; mas aqui, estamos ainda em 1900 165.
No século XIX, o impacto colonial sobre este mundo esteve confinado principalmente
a uma elite pequena, urbana, de casta superior, de classe média e alta, isto é, a uma parte
das castas superiores, que eram as mais estritas praticantes do santificado patriarcado. A
Índia sob a conquista, era uma civilização sofisticada, complexa, altamente estratificada,
com tradições urbanas e proto-industriais bem desenvolvidas, impostas sobre um grande
campesinato, com ou sem direitos sobre a terra, que trabalhava um solo freqüentemente
rico e fértil. O governo colonial, quando muito, teve um efeito marginal sobre a grande
maioria da população. Nos dois primeiros terços do século XIX, parece ter ocorrido um
declínio urbano na Índia. O crescimento dos três centros da Índia britânica, Calcutá, Madras
e Bombaim não compensaram plenamente o declínio das cidades mogois de Agra, Delhi,
Ahmedabad, Lucknow, e outras. Por volta de 1900, parecia que a Índia era tão urbana como
fora em 1800, isto é, com perto de 11% de sua população nas cidades 166.
A Índia tinha sido um centro industrial de um mundo pré-industrial (anterior a 1800),
exportando um tecido de algodão característico para a Inglaterra; mas após as guerras
napoleônicas na Europa, rapidamente perdeu terreno para a sua senhora colonial, com sua

48
tecelagem mecanizada alimentada pelo algodão cru americano 167. Na última parte do século
XIX, a Índia estava recuperando-se, vagarosamente, deste golpe. As tecelagens de juta em
Calcutá, de propriedade dos britânicos, e as tecelagens de algodão, em Bombaim, de
propriedade dos indianos, tornaram-se os novos centros industriais e, por volta de 1900, a
indústria indiana de algodão era uma das principais do mundo embora a produtividade do
trabalho fosse muito mais baixa do que a do Japão 168. Ao contrário dos casos da Europa ,
da América do Norte e do Japão, a força de trabalho da indústria têxtil indiana era
predominantemente masculina, o que restringiu mais ainda o impacto familiar desta
industrialização muito delimitada, com suas redes de recrutamento de trabalho baseadas no
parentesco169.
O domínio britânico realmente afetou o campo indiano, com suas avaliações da
propriedade, suas coleções de impostos, seus estímulos à colheita comercial, etc., mas as
velhas normas familiares, muito arraigadas, parecem ter sido pouco ou nada afetadas por
estas mudanças sócio-econômicas. A população cresceu após a consolidação do governo
colonial, de 1830 a 1890, apesar da mortalidade mais alta ter reduzido o crescimento
populacional e baixado a expectativa de vida 170.
Contudo, entre a elite e intelectual e entre os funcionários urbanos de escritório de
Bengala, a interação anglo-indiana foi intensa e importante a mudança cultural. Os
dominadores coloniais encontraram na Índia uma elevada cultura antiga que deu origem aos
estudos britânicos do sânscrito, através do trabalho de Willian Jones (1746-94), à Sociedade
Asiática de Calcutá, de 1785, e ao Sanskrit College de Calcutá. No nível da elite intelectual,
o que aconteceu foi uma atração mútua dos bretões pela antiga civilização indiana e dos
bengaleses pela (moderna) civilização britânica. Na segunda metade dos anos 1830, esta
atração mútua de civilizações tinha sucumbido à assimetria de poder. Em 1835, Thomas
Macaulay, que não conhecia nenhuma língua não-européia, pôde escrever em um memorial
oficial sobre a educação indiana: "Uma única prateleira de uma boa biblioteca européia vale
171
mais do que toda a literatura nativa da Índia e da Arábia.” Neste mesmo ano, o inglês
substituiu o persa como língua oficial da administração e das cortes bengalesas.
Rammohan Roy (ou Ray) foi o primeiro intelectual bengalês ilustre atraído pela
civilização britânica e cristã. Ele era típico do ambiente do início do século XIX, mais
enquanto estereótipo do que no sentido estatístico. Brâmane, bengalês da categoria Kulin,
ele casara-se três vezes antes dos 9 anos de idade172, fora educado em árabe, sânscrito e
persa antes de aprender o inglês. Em 1811, sua cunhada foi queimada viva, à força, na pira
funerárias de seu irmão, fato que o tornou inimigo jurado do sati. Roy, mesmo sendo um
ambicioso estudioso dos Vedas em sânscrito, em 1823 contribuiu para o debate entre
civilizações em favor da educação em inglês e contra a educação em sânscrito173.

49
No decorrer do século XIX, como resultado da interação entre a elite indiana,
principalmente a bengalesa, e a elite britânica dominante, ambas bifurcadas (a indiana,
entre os modernistas e os tradicionalistas; a britânica entre os dominadores pragmáticos e
os civilizadores, missionários cristãos, cada vez mais) surgiu uma série de legislações
indianas sobre a família. Seu mandato raramente ultrapassou as classes médias e
superiores anglicistas de Calcutá a e de outras cidades coloniais e importantes.
O primeiro alvo deste tipo de mudança foi o sati, o costume da casta superior hindu,
da viúva atirar-se na pira funerária de seu marido. Este era um ritual conseqüente da
natureza assimetricamente sacramental do casamento hindu, indissolúvel e irreiterável para
a mulher, deixando apenas à viúva sobrevivente a opção de se tornar uma pária social. Os
portugueses tinham-no proibido em Goa, em 1510 e diversos estados indianos procuravam
impedi-lo. Tampouco ele era perdoado pelos muçulmanos mogóis, mas a prática sobreviveu
particularmente em Bengala, o coração da Índia britânica174. A Companhia das Índias
Orientais, em 1813, tornou-o ilegal, quando forçado e se envolvesse uma viúva com menos
de dezesseis anos de idade 175. Em 1829, após a agitação de Rammohan Roy, o governador
britânico Bentinck proibiu o ritual, sem muito sucesso, mas com algum efeito. A média anual
de 580 satis na presidência de Bengala, entre 1815 e 1828, realmente caiu 176.
O status e o papel possível das viúvas estavam no centro da campanha seguinte dos
reformadores indianos encabeçada agora por um sucessor de Roy, Isvarachandra
Vidyasagar. Por causa da regra do casamento pré-púbere das meninas e a idade
freqüentemente muito mais alta dos noivos, a morte social como viúva sobrevinha a um
grande número de mulheres enquanto elas eram ainda jovens ou até mesmo crianças pelos
padrões atuais. A campanha pela reforma conduziu à lei de 1856, permitindo que as
mulheres hindus se recasassem, mas o preço social permaneceu alto. Alguns poucos
homens que ousaram casar-se com uma viúva foram expulsos de seu grupo de parentesco
e de sua casta177. Em 1872, peça de legislação semelhante da elite, a Lei Especial de
Casamento, tentou legitimar casamentos entre castas permitindo o casamento civil entre
hindus budistas, sikhs e jains, mas só teve alguma influência de fato sobre os grupos
intersticiais etno-religiosos estranhos à tendência dominante da sociedade colonial. Entre os
hindus de casta superior, a lei não teve legitimidade e a permissão legal de casamento
intercastas permaneceu no alvo móvel nos reformadores da legislação indiana durante a
primeira metade do século XX· . Por outro lado, o recasamento das viúvas era tolerado entre
as castas inferiores, desconsiderando tanto a lei védica quanto a intervenção colonial178.
O infanticídio feminino era outro antigo costume misógino, praticado acima de tudo no
noroeste, entre os rajputs e outros. Em 1870, ele tornou-se objeto de uma legislação
deslegitimadora embora muito pouco efetiva. As razões de sexos nos atuais estados
nortistas do Punjab, Haryana e Rajastão em 1901 eram, respectivamente, 120,116 e 110. A

50
média era então de 101 nos estados indianos do sul, de Maharashtra, Andhra Pradesh,
Tamil Nadu, Karnataka e Kerala 179.
A última e mais controvertida lei de reforma do século XIX - embora todas as peças
legislativas mencionadas tenham tido proponentes e oponentes indianos - foi a Lei da Idade
do Consentimento de 1891, que estipulou em 12 anos a idade mínima feminina para o
casamento. Nesta época, o nacionalismo moderno tinha emergido na Índia e seus líderes,
B.G. Tilak, Lajpat Rai, e outros, foram os primeiros a opor-se, vigorosamente, à lei. As
questões sobre o status da mulher deveriam esperar até após a independência, se é que
devessem mesmo ser debatidas, posição que até mesmo o cosmopolita reformador político
religioso Swami Vivekananda, celebrizado no Parlamento Mundial das Religiões em
Chicago, em 1893, passara a negar180. Os nacionalistas opunham-se à "ocidentalização"
das mulheres indianas, ao "embrutecimento e a degeneração do caráter feminino"
decorrente do fato de que homens e mulheres "encontravam-se, conversavam sempre,
comiam e bebiam juntos” e, desta forma, perdiam seu caráter indiano e espiritual 181 . Por
outro lado, apesar do barulhento neopatriarcado nacionalista, a primeira grande
manifestação do nacionalismo indiano - dirigida contra a proposta de Lord Curzon, em 1905,
de dividir a Bengala a fim de cravar uma cunha entre hindus e muçulmanos - foi também a
ocasião para o primeiro aparecimento em massa (em pequena escala) das mulheres
indianas em um protesto público182.
Na Índia, como em todo lugar, o governo colonial e esteve freqüentemente dividido
entre, de um lado, sua política realista de alinhamento com qualquer poder local que
estivesse preparado para colaborar e, de outro, suas próprias concepções sociais e
religiosas, concepções estas impulsionadas vigorosamente pelas missões cristãs e por seus
dirigentes. Assim, enquanto A Lei do Consentimento reverenciou estas últimas, no famoso
caso Rukmubai, a Corte colonial atendeu à primeira, ordenando a uma jovem, casada contra
a sua vontade, que ficasse com seu marido183.
À guisa de conclusão, em 1900, o sistema familiar da Ásia do Sul fora afetado pelo
colonialismo apenas na sua franja de elite urbana. Nela, os debates do século tinham sido
muito vivos, mas, com um novo discurso nacionalista emergindo e defendendo
explicitamente todos os velhos costumes locais, é difícil dizer se os reformadores marcaram
alguns pontos duradouros no debate público. Mas para aqueles que tinham tanto os
recursos quanto a vontade, ao menos havia agora nos códigos legais, um questionamento
da legitimidade do patriarcado indiano pré-moderno. A educação das meninas e das
mulheres também avançou, via de regra impulsionada pelos missionários cristãos, mesmo
na intelectual Calcutá 184. Em 1883, duas mulheres bengalesas obtiveram seus bacharelados
na Universidade de Calcutá, o que permite uma boa comparação com o Reich alemão que,

51
até 1895, não permitia que as mulheres prestassem o exame final da escola secundária - o
Abitur - que as qualificaria para a entrada na universidade 185.

África: o amanhecer do choque colonial


A família africana subsaariana constitui a principal alternativa não apenas para o
sistema familiar europeu, mas também para o eurasiano, como nos ensinou Jack Goody. A
"questão" dos índios americanos tinha sido grandemente resolvida pelo genocídio. A família
africana é a “principal" alternativa não apenas no sentido da incidência quanto da
diferenciação estrutural, como a poligamia em larga escala e não apenas da elite, com o
preço da noiva pago à família do noivo em lugar de um dote feminino e de uma herança
feminina, como um conjunto de sistemas familiares onde a terra era abundante e o trabalho
mais escasso, onde a terra é em grande parte trabalhada por mulheres com enxadas e não
por homens com arados, onde a fecundidade é mais importante do que a legitimidade186 .
Dentro desses parâmetros distintos, mas muito gerais, a família africana não é
facilmente subsumível a uma rubrica, não apenas por causa do mosaico étnico do
continente, extremamente rico e variegado, mas principalmente porque ela inclui algumas
das principais variantes do poder familiar masculino, em um contexto social no qual a família
e o parentesco eram extremamente importantes em 1900. Tentando resumir em poucas e
grossas pinceladas as principais linhas de diferenciação, podemos distinguir duas divisões
principais.
Uma delas é a descendência, que claramente divide os sistemas familiares, e, de
fato, as sociedades, em patrilineares e matrilineares. Bem antes da modernidade, mas após
a antiguidade romana, o parentesco europeu tinha sido principalmente bilateral, com
parentes simétricos tanto do lado da mãe quanto do lado do pai, traços que parecem derivar
das tribos germânicas e da igreja cristã187. Na Europa, nos tempos modernos, apenas as
linhagens e dinastias aristocráticas e a grande zadruga extensa da Rússia e dos Bálcãs
tinham uma orientação patrilinear. Estas tradições agora virtualmente desapareceram
embora a Rússia a nordeste, e a Islândia, a noroeste, ainda usem o patronímico - por
exemplo, filho ou filha de Pedro - como norma para denominar os filhos. Mas fora da Europa
cristã, a bilateralidade foi antes rara, dada a dificuldade de organizar um parentesco extenso
tendo-a por base. Na história registrada, portanto, a patrilinearidade foi a regra e, a
matrilinearidade, a exceção.
Na África pré-colonial, o parentesco era extraordinariamente importante, em virtude
da ausência da religião como um corpo organizado - salvo na Abissínia cristã - e de estados
institucionalizados e duradouros. A matrilinearidade significa que a geologia e a herança são
transmitidas através das mães e avós. Embora o poder do parentesco seja mantido
usualmente por um homem, pelo irmão mais velho da esposa sobre a família conjugal, a

52
matrilinearidade torna o papel do marido ambíguo e difícil e, de fato, o sistema sempre
permite importantes papéis para mulheres. Os Axânti, principal povo de Gana, por exemplo,
têm um sistema de co-chefia feminina, Ohema, traduzido pelo seu primeiro registrador
britânico como "Rainha-mãe"188. Alguns povos africanos importantes são matrilineares: o
grupo de povos Akan, que predominam em Gana, e que estão presentes também na Costa
do Marfim, e muitos povos em uma vasta área da África central, incluindo os Bakongo do
Congo e os Bemba da Zâmbia189. A maioria dos povos da África ocidental, do sul e oriental
são patrilineares, nos quais a descendência e a herança estão concentradas no lado do pai.
(o padrão europeu de parentesco bilateral existe, basicamente, como uma tendência em
certos povos em certos períodos). A patrilinearidade simplifica os assuntos do patriarcado e
do poder masculino.
A outra divisão é a conjugal, que assume uma amplitude de variação única na África.
Por volta de 1900, o espaço normativo das mulheres casadas estava estreitamente
circunscrito, virtualmente, no mundo todo fora da África, com algumas poucas exceções
marginais aqui e lá, embora pitorescas, como as mulheres naires na costa malabar da Índia,
ou alguns nichos entre os muito ricos e os muito aristocráticos na Europa e na América do
Norte. A África por contraste, tinha toda uma escala, indo da forte subordinação explícita e
da vigilância estrita, quando não reclusão, até a ampla disseminação do empreendedorismo
econômico e da guarda parental. O padrão africano de poligamia de massa, ao contrário da
poligamia de elite do mundo árabe e da Ásia, geralmente, tende a incluir alguma autonomia
conjugal, na medida em que as esposas não estão trancadas sob a guarda de um eunuco,
mas têm sua própria residência individual e um papel econômico crucial.
Quanto às relações conjugais, há uma fratura continental principal, uma divisão
diagonal. Em termos gerais, esta fratura coloca as áreas costeiras da África ocidental,
incluindo os grandes povos patrilineares Ioruba e Igbo, contra o resto da África,
particularmente, contra a África oriental e do sul. A África do norte, acima do Saara, será
tratada como parte do mundo árabe islâmico da Ásia ocidental. Já a África central
equatoriana tende a formar uma área heteróclita no meio de ambas, do mesmo modo que a
zona central de diferenciação regional do parentesco indiano, já descrita.
Ao longo da costa ocidental africana, houve uma tradição pré-colonial de autonomia
feminina sob soberania masculina, que se manifesta no comércio autônomo e em outras
atividades econômicas, embora o comércio importante de escravos, ouro, marfim e da noz-
de-cola, estivesse principalmente em mãos masculinas. 190. Em contraste, há povos entre os
quais as mulheres estão sujeitas, de modo muito rígido, à superioridade dos homens e ao
controle masculino, como entre os Luo no Quênia, os Shona e os Ndebele no Zimbábue e o
os zulus na África do Sul. Os povos matrilineares usualmente permitem alguma autonomia
feminina, mas muitas das sociedades matrilineares da região parecem manter as mulheres

53
em posições muito subordinadas, como principais provedoras da subsistência, mas
excluídas de todas as tomadas de decisão importantes191 embora o poder das mulheres
ilustres, no Congo, pareça ter flutuado historicamente192. O poder público nas sociedades
matrilineares usualmente está em mãos masculinas 193 .
O povo Kikuyu ou Gikuyu do Quênia tem um notável mito patriarcal da criação, que
parece indicar uma tensão subjacente ao patriarcado Kikuyu. No começo, Gikuyu, o
fundador do povo ganhou uma bela mulher com quem teve nove filhas. O Divisor do
Universo então, concedeu-lhe nove homens jovens que se casaram com suas filhas. As
filhas estavam dominando os homens, tratando-os injustamente, e por isso, os maridos se
rebelaram, primeiro engravidando suas mulheres e, depois, atacando seu domínio. As
mulheres, fortes, mas agora debilitadas, tiveram que render-se e desde então o homem e é
o chefe da família Kikuyu 194.
Não nos preocuparemos aqui com o modo como os sistemas familiares africanos
foram afetados pela caça aos escravos195 ,uma vez que este comércio, que tinha sido a
base econômica de muitos governos africanos no Daomé e no delta do Niger, estava se
extinguindo vagarosamente no decorrer do século XIX. Aquele século, contudo, parece ter
visto a exportação de cerca de 3 milhões de escravos através do Atlântico196 . A conquista
colonial foi extremamente rápida, movida pelas rivalidades entre imperialismos. Em 1879,
nove décimos da África eram governados por africanos; duas décadas mais tarde, a
esmagadora maioria estava sob domínio europeu 197. Apenas a Etiópia pode resistir com
sucesso, derrotando a armada italiana em 1896.
Perto de 1900, o poder colonial tinha tido pouco impacto sobre a família africana,
mas já havia marcas visíveis. As invasões armadas, os regimes de trabalho forçado que
logo foram estabelecidos, e a desarticulação social generalizada que os seguiu, levou
praticamente ao estancamento o crescimento populacional de meados do século. Este só foi
retomado nos anos 1910198 e, no leste da África, provavelmente, apenas por volta de 1925-
30199 . É praticamente impossível obter-se dados exatos para as populações em seu
conjunto, mas existem indicadores do preço em mortes cobrado pelo início do governo
colonial de grupos específicos de trabalhadores sob contrato, na construção da estrada de
ferro no Congo e em Camarões, e nas plantações deste último país. Eles mostram taxas de
mortalidade anuais entre 10% e 20% dos trabalhadores 200. Em alguns casos, a conquista
colonial assumiu proporções genocidas. No Congo do rei Leopoldo, estima-se que a
população foi reduzida à metade entre 1880 e 1920, uma perda de, talvez,
aproximadamente 10 milhões de pessoas 201. Os Hereros da atual Namíbia perderam quatro
quintos de seu povo para os alemães 202. A repressão alemã à rebelião de Maji Maji na
Tanganica (atual Tanzânia) em 1905-6, parece ter causado centenas de milhares de
mortes203.

54
A mineração em grande escala e a migração masculina de trabalho começaram no
sul da África: por causa dos diamantes, em Kimberley em 1868, por causa do ouro, na
Witwatersrand, em 1886. Os cultivos mercantis tinham começado a substituir o comércio de
escravos na África oriental, primeiramente, pelo cultivo de palmeiras-de-óleo e logo também
por cacau, amendoim, café e algodão. A extração da borracha natural era uma operação
importante e cruelmente coerciva no Congo do rei Leopoldo. A mineração, o cultivo
comercial e as novas técnicas agrícolas, como a introdução do arado, tiveram o efeito geral
de oferecer oportunidades aos homens, mas não às mulheres, que permaneceram
encerradas na economia tradicional de subsistência204. Nas fazendas de cacau da Costa do
Ouro, as mulheres tornaram-se trabalhadoras em terras controladas exclusivamente por
seus maridos205. Mesmo o trabalho doméstico urbano (para os colonizadores brancos) na
África do Sul era esmagadoramente masculino206. O controle masculino das mulheres na
África rural, as proibições brancas de mulheres solteiras nas cidades coloniais da África do
Sul e a escolha da mulher da família africana combinaram-se na produção de trabalho
doméstico masculino para os coloniais 207
As novas opções para os homens jovens foram recebidas pelos patriarcas com a
elevação do preço da noiva e/ou, como entre os Mossi, da região onde é hoje Burkina Faso,
com resistência bem sucedida à sua monetização208. Qualquer que tenha sido o efeito de
longo prazo da mercantilização da economia africana sobre o preço relativo da noiva - e já
foi argumentado 209, que teria sido o encurtamento do período de poupança e de espera para
os pretendentes homens - o efeito de curto prazo do trabalho colonial assalariado e da
taxação das habitações10 foi a elevação significativa deste preço. Em Buganda, por volta de
1900, o preço da noiva quintuplicou poucos anos após a introdução do imposto britânico
sobre a cabana210. Um desenvolvimento semelhante ocorreu no Congo de Leopoldo 211
As duas grandes religiões catequisadoras da Eurásia, o islamismo e o cristianismo
estavam ambas espalhando-se rapidamente através da África no século XIX. O Islã fez suas
maiores conquistas na primeira metade do século, inicialmente, nas savanas da África
oriental, entre os Hausa, os Bambara e outros, e também, mais tarde, no Sudão e na região
dos grandes lagos. O crescente poder e cumplicidade dos europeus favoreceram as
missões cristãs que se tornaram muito ativas e bem-sucedidas a partir de meados do século
- embora os franceses, no Senegal e em alguns outros lugares, assim como os britânicos,
no norte da Nigéria, tivessem se acomodado muito bem com o Islã, a ponto de, nesta última
região, ter sido barrada a entrada de missionários cristãos212. Em contraste com o seu papel
basicamente antimodernista na Europa, o cristianismo tornou-se a principal força de

10
NT: o autor refere-se à “tax hut” instituída pelos britânicos em várias regiões africanas, mas
especialmente na África do Sul.

55
modernização na África, acima de tudo, por causa de sua grande contribuição à educação.
Como na Europa, as igrejas protestantes de todas as denominações, eram muito ativas,
particularmente na oferta de educação para as moças213.
Mais tarde voltaremos aos efeitos do cristianismo e do Islã sobre a família africana.
Por enquanto, devemos salientar uma diferença importante entre as primeiras elites
colonizadas na África e suas equivalentes de Bengala, referidas acima, as gerações de
Rammohan Roy e de Isvarachandra Vidyasagar. Enquanto a elite cosmopolita bengalesa
criticava muito abertamente o patriarcado e a misoginia de Bengala, requerendo da
autoridade colônia, mudanças na legislação, a nova elite africana cristianizada inclinava-se
na direção oposta.
Se havia algum grupo na África britânica que se assemelhava aos babus de Calcutá,
eram os "crioulos" de Freetown, os descendentes dos escravos coloniais libertos de 1787 e
dos povoadores africanos negros posteriores. Na virada do século, alguns deles vieram a
desempenhar um importante papel no sul da Nigéria. Deste grupo de elite, muito
anglicizado, pré-nacionalista, saiu a primeira defesa, com alguma autoridade, da família
africana. Em 1888, o bispo Sawyer, da "Diocese da Pastoral Nativa" argumentava que a
Bíblia não continha nenhum ataque à poligamia e de fato, a perdoava no Velho Testamento.
No Congresso Pan-Anglicano de 1908, outro “crioulo”, o reverendo James Johnson, mais
tarde, bispo auxiliar, argumentou que enquanto o infanticídio, o canibalismo e a feitiçaria
eram práticas repulsivas que seguramente tinham que ser suprimidas, as formas de
casamento nativas não deveriam ser atacadas e os polígamos não deveriam ser excluídos
da igreja 214.
A mutilação genital das meninas, como seria de se esperar, foi considerada como
"repugnante perante a justiça natural, a equidade e a boa consciência", quando o chamado
"teste de repugnância"11 foi formulado na colônia de Serra Leoa e amplamente
disseminado215 - mas não era tão visível quanto a incineração das viúvas ou a amarração
dos pés e não se tornou uma questão pública até o final dos anos vinte e início dos anos
trinta do século XX, quando provocou uma vigorosa reação anticolonial entre os Kikuyu 216
no Quênia e,depois, só bem mais tarde no século XX. Com formas variadas de severidade,
esta prática é disseminada na África em um amplo cinturão que vai do Senegal (embora não
entre seu grupo étnico principal, os Wolof) através do norte da Nigéria e da atual República
Centro Africana até o cabo Horn, com uma extensão oriental norte-sul, da Tanzânia ao

11
N.T: O “teste de repugnância” foi um requisito legal utilizado pelos colonizadores britânicos
para a avaliação das normas e costumes nativos e decidir sobre sua manutenção. Para serem
aprovados, costumes e leis não deveriam ser repugnantes “à justiça natural, equidade e boa
consciência” nem contrários à qualquer lei colonial.

56
Egito, incluindo os coptas217. A ocorrência da pior forma, a infibulação - envolvendo a
excisão de todo o clitóris, dos pequenos e dos grandes lábios e a costura da parte
remanescente dos grandes lábios -, está concentrada entre os povos pastoris ou agro-
pastoris em um cinturão menor e mais estreito, do Chade até a Somália e a Eritréia 218.
Os missionários, algumas vezes, propiciavam abrigo para mulheres maltratadas
fugitivas e pregavam a monogamia a ouvidos não receptivos. Mas o poder colonial, em si
mesmo, tendia a sustentar o patriarcado através de sua política de manutenção e de, no
caso dos britânicos, particularmente no norte da Nigéria, reforço simbólico dos chefes
tradicionais. Como foi colocado pelos lordes Milner e Lugard: "A política britânica é governar
as raças subjugadas através de seus próprios chefes." 219Porém, os funcionários coloniais
podiam colidir com os missionários. Em 1908, por exemplo, certo coronel Lambskin acusou
o cristianismo, introduzido com muito sucesso entre o povo Baganda, na Uganda, de deixar
“as mulheres em liberdade para perambular o quanto quisessem, resultando em intercurso
sexual promíscuo e imoralidade", que seria, consequentemente, a principal causa da
prevalência da sífilis na região 220. Os franceses respeitavam menos as tradições pré-
coloniais reais, mas também fizeram uso dos chefes locais221, e, por volta de 1900, a
"assimilação" republicana estava recuando em favor de uma maior utilização dos poderes e
costumes locais, da "autonomia" 222.
Também os assuntos de família eram regulados pelas leis e pelas práticas
costumeiras, sob a ocupação colonial, tanto de facto quanto no método britânico de governo
indireto, enquanto questões de princípio, sujeitas ao "teste de repugnância". Foram os
britânicos, porém, que, um pouco antes de 1900, promulgaram um conjunto de ordenações
matrimoniais coloniais, cujo conteúdo exato variava da jurisdição de um governador colonial
a outra. O propósito principal era oferecer uma alternativa inglesa ou meio inglesa, ao
casamento consuetudinário, alternativa esta, monógama em princípio, difícil de dissolver e
com herança inglesa. Na prática, conforme se recorria à Ordenação do Casamento - e isto
se tornou um símbolo de status em Buganda e em algumas outras áreas - ela era
combinada com a lei de casamento costumeira, cujos direitos e obrigações geralmente
preponderavam 223. Em alguns casos, como na Ordenação Rodesiana de 1901, o intuito
principal era apoiar os direitos das mulheres dentro do sistema consuetudinário. Houve
silêncio sobre a poligamia, mas estipulou-se que nenhuma mulher deveria ser casada contra
a vontade e previu-se um procedimento de compensação judicial ao qual ela poderia
recorrer224.
Em 1900, a África acabara de ser conquistada. Seus sistemas familiares eram pólos
distintos daquele dos conquistadores. A modernidade colonial brutal, mas multifacetada,
apenas alvorecia na África. Muita coisa se quebrou e está pouco claro ainda de que modo
estes fragmentos serão reunidos novamente.

57
Os interstícios do Sudeste Asiático.
Assim como em termos políticos modernos, também em termos de família, o
Sudeste Asiático é uma área intersticial entre padrões principais: de um lado, as civilizações
sul-asiáticas: budista, hindu e muçulmana; de outro, a chinesa, leste-asiática. A área é
afetada por todas elas e também pelas antigas colonizações européias: portuguesa,
espanhola, holandesa, ao mesmo tempo em que mantém uma tradição regional vigorosa e
diversificada, dos javaneses e outros malaios até os tailandeses, birmaneses e cingaleses.
Por volta de 1900, os holandeses dominavam as "Índias Orientais"; os espanhóis tinham
recém perdido as Filipinas, não para os filipinos, mas para os americanos; Vietnã, Laos e
Camboja estavam sob o domínio francês; Birmânia, Ceilão e Malaca, incluindo Cingapura,
sob o britânico; enquanto o Sião manobrava para evitar ser engolido pelos crocodilos
imperiais.
Via de regra, esta foi uma área de tolerância, onde o patriarcado foi menos duro do
que nas civilizações asiáticas nucleares do leste, do sul e do oeste da Ásia. O budismo, a
principal religião do Ceilão, da Birmânia, da Tailândia, do Laos e do Camboja aninhara as
regras familiares no calor suave da informalidade e da despreocupação terceiro-mundista. A
cultura malaia, da península de Malaca até a atual Filipinas, pré-missionários e pré-colonial,
atribuíra direitos de propriedade às mulheres - o preço da noiva geralmente era pago a ela
mesma - e era mais comum que o novo casal morasse na aldeia da mulher. Assim como o
europeu, o parentesco malaio é geralmente bilateral 225,. A sexualidade era regulada de
modo relativamente frouxo e o divórcio era muito freqüente e fácil de obter por iniciativa da
esposa tanto quanto do marido226. Os limites rígidos do Islã, que varreu o arquipélago malaio
nos séculos XV e XV, estavam cercados pelo adat (costume) malaio. O cristianismo, que
chegou às Molucas com os portugueses, capturou as Filipinas com a conquista espanhola
de 1571 em diante, e que era, especialmente no século XIX, impulsionado pelos
missionários holandeses, teve também que adaptar-se aos costumes malaios.
Mesmo no quase patriarcal Vietnã - que pertence, em grande parte, à civilização
chinesa do leste da Ásia, - o confucianismo ortodoxo do norte da China foi suavizado pelo
costume local, em parte vindo do sudoeste budista em parte de uma comunhão normativa
mais antiga com a Birmânia e com o Sião 227. Eram as esposas dos camponeses que faziam
o pequeno comércio e mantinham o controle sobre os rendimentos. Descrevendo uma
relação marital, a ordem lingüística vietnamita é começar com a mulher. Nas culturas Baba e
Peranakan, dos mercadores chineses nos assentamentos do Estreito de Malaca, o lugar
central da matrona está expresso nas fotografias de família do início do século X228.

58
A relativização do patriarcado, contudo, não deve ser interpretada como algum tipo
de igualdade de gênero. As complexas culturas da região eram todas muito hierárquicas,
com rituais primorosamente elaborados de classificação superior e inferior. Os "reinos
índicos” de Java e de Bali eram famosos por serem permeados por uma desigualdade
cultivada. Nesta obsessão com o ranking, é evidente por si mesmo que as mulheres, via de
regra, eram consideradas inferiores aos homens. Mas há práticas e instituições específicas
que, pelos modestos padrões mundiais de 1900, podem justificar a designação usada em
por um advogado tailandês sobre sua própria sociedade ao final do século XX: "Um sistema
patriarcal feminista"229.
Tanto no costume malaio quanto no budismo, o casamento, embora sendo uma
norma - particularmente para os malaios – é, também, secular e informal, com paredes
baixas e porosas para o exterior. Além disto, em contraste com os sistemas familiares
eurocristãos e das outras religiões asiáticas, o casamento budista e o malaio acrescentam
pouco à inferioridade geral da mulher. Nem no adat malaio nem, por exemplo, na lei
cingalesa, as mulheres casadas eram absorvidas por seus maridos, mas mantinham uma
capacidade adulta de engajar-se no comércio e de administrar a propriedade 230. O divórcio
era fácil também para as mulheres. No século XIX e na primeira metade do XX, o mundo
malaio (não-cristão) tinha, de longe, as mais altas taxas de divórcio do mundo. Em Java, no
último terço do século XIX, por exemplo, perto da metade de todos os casamentos
terminava em divórcios231. Mas, como regra, o divórcio terminava em novo casamento,
sendo norma também, o recasamento da viúva 232.
O parentesco bilateral concedia também ao pai da esposa o direito de interferir,
direito este reconhecido pela lei do reino de Kandy, no Ceilão, e no código de Rama I no
Sião233. Um perceptivo jesuíta espanhol do século XVII, Alcina, anotou a possibilidade de a
esposa obter recursos com sua família de origem, nas Filipinas pré-cristãs 234. A fragilidade
geral do parentesco mais amplo em boa parte do sudeste asiático diminuiu o peso do
patriarcado. Os arranjos de casamento em Java, por exemplo, habitualmente envolviam
apenas duas famílias nucleares 235, e, na Birmânia, havia uma evitação positiva da família
indivisa, ou seja, da norma do leste, do sul e do oeste da Ásia 236.
Enquanto as mulheres do Sudeste Asiático estavam, desta forma, sob alguns
aspectos, em melhor situação do que suas irmãs européias, sob outros aspectos, sua
posição era mais fraca. Seus pais tinham a última palavra na escolha do cônjuge. A maior
abertura na seleção do parceiro ocorria na Birmânia e no Sião (em grandes áreas), onde a
jovem habitualmente tinha o poder de veto e podia, até mesmo, impor seu desejo a seus
pais 237. Java, como um todo, tinha a mesma norma da Índia: as meninas tinham que estar
casadas antes ou quando alcançassem a puberdade, ou seja, a norma dos casamentos
infantis. Ceilão, Birmânia, Sião e Filipinas, por outro lado, tinham o costume do casamento

59
mais adulto. Em 1901, a idade média à primeira união era de 18 anos do Ceilão e de 21
anos (em 1903) nas Filipinas 238.
A poligamia era geralmente legítima na região, embora praticada principalmente na
elite. Em Java, por exemplo, ocorria o tratamento explícito das mulheres como objetos
sexuais, podendo ser oferecidas como presentes. As mulheres podiam também ser
vendidas como escravas, como na Birmânia e em outros lugares239. A lei do Sião distinguia
três categorias de esposas: a esposa principal, a esposa secundária e a esposa escrava240.
O Sião estava sentindo a aproximação e intromissão da competição colonial:
acabara de perder sua suserania sobre o Camboja e o Laos para a França, sobre a parte sul
da península de Malaca para a Inglaterra e estava prestes a se tornar o único estado
independente na região. Os governantes do país estavam conscientes da necessidade de
modernização para manter os predadores na baía. Como em muitos outros países em
situação semelhante, nesta época, intelectuais reformistas levantaram a questão da posição
das mulheres, considerada seja como um atraso do país ou como uma alavanca para
soerguê-lo. Em 1907, um escritor tailandês, Thianwan, publicou uma série de artigos sob o
slogan "Para o avanço das mulheres" pedindo por educação e pelo fim da escravidão de
prostituição e da poligamia 241. Ao contrário de Qasim Amin, seu contemporâneo egípcio e
alma gêmea, Thianwan não pregou principalmente para os surdos e hostis, mas teve
alguma ressonância no palácio real do rei Chulalongkorn e de uma de suas esposas,
Saowapha.
Uma das questões da modernização centrava-se na poligamia. Em 1912, o novo rei
Vajiravudh ordenou a redação de uma nova Lei de Casamento que ensejou o debate sobre
se a poligamia deveria ser banida ou, pelo menos, colocada discretamente fora da proteção
da lei, como no padrão francês de amante. O príncipe Svati, mais tarde, Juiz Principal,
estava a favor de qualquer uma das opções, argumentando que a poligamia "estava
trazendo a desgraça ao país". O próprio rei apresentou um memorando em favor da
regulamentação da poligamia, não por defendê-la como costume antigo ou como uma boa
instituição - ao contrário, o rei tinha piedade, explicitamente, da "esposa secundária", a
esposa vendida pelos pais e condenava o seu tratamento como se fora um bem móvel.
Seus argumentos a favor da manutenção da poligamia como uma instituição legítima do
casamento eram pragmáticos: era uma prática profundamente enraizada que a lei deveria
respeitar, e a lei não deveria ser usada para "decepcionar o mundo". A poligamia significava
também que todas as crianças eram legítimas e cuidadas, em contraste com a produção
européia de crianças "ilegítimas". Em terceiro lugar, ele abriu a possibilidade de proteção
legal para as "esposas secundárias". O debate não terminou em 1913, com o memorando
242
do rei, mas a poligamia siamesa não foi legalmente banida antes de 1935. .

60
O contexto colonial, por volta de 1900, era tão diversificado quanto as tradições
culturais da região. A Indochina recentemente caíra sob dominação francesa e a Birmânia
sob a inglesa. A Inglaterra tinha também recentemente conquistado o controle sobre todos
os sultanatos de Malaca. O Ceilão abrigava importantes entrepostos coloniais desde a
entrada dos portugueses no oceano Índico. Os holandeses suplantaram os portugueses na
metade do século XVI e, desde as guerras da Revolução Francesa, a ilha era governada
pelos britânicos. No decorrer do século XIX, os holandeses estenderam seu domínio das
"Índias Orientais”, primeiro ganhando pleno controle sobre Java, depois avançando para
Bornéu (Kalimantan), Célebes (Sulawesi), Nova Guiné ocidental (Irian Jaya) e Sumatra para,
finalmente, na primeira década do novo século, vencer a dura guerra contra Aceh, no norte
da Sumatra. Bali foi completamente conquistada em 1906. Por outro lado, nas Filipinas
acontecia a primeira revolta moderna anticolonial. O levante contra a Espanha estava
ganhando terreno quando foi seqüestrado pela armada americana e as Filipinas anexadas
aos EUA. No primeiro romance anticolonial do mundo, Noli me tangere (Não me toques, de
1887), de José Rizal, a sexualidade predatórias de frades e padres espanhóis desempenha
importante papel 243. Enquanto isto, os portugueses ainda mantinham o pé em Timor Leste.
O impacto do colonialismo sobre a família não era muito profundo no Sudeste
Asiático, por volta de 1900. Mas havia duas exceções. A mais evidente foi a conquista
católica da maior parte das Filipinas e as incursões cristãs em algumas pequenas ilhas
indonésias. Por causa disso desapareceu o padrão malaio de divórcio muito freqüente 244.
Mas mesmo nas Filipinas, onde a igreja colonial estava firmemente implantada, o
casamento cristão estava enxertado em normas pré-coloniais, como o preço da noiva e em
rituais 245, assim como nas "Índias" andinas.
Outra exceção foi a mistura étnica, embora parte dela fosse conseqüência mais das
relações comerciais do que do poder colonial, tal como a difusão dos migrantes chineses -
historicamente huashang246 (mercadores) -através de toda a região, dando origem a
casamentos interétnicos muito disseminados, particularmente, nas Filipinas e no Sião. O
forte componente chinês nas Filipinas deu à categoria mestiço uma conotação diferente
daquela da Íbero-América. No Ceilão, as relações de intimidade eurasianas tinham criado
uma categoria social especial, pré-britânica, de burghers. No conjunto, até que o século XX
estivesse bem avançado, os poderes coloniais da Ásia sustentaram de modo positivo, as
uniões informais eurasianas através das restrições severas das possibilidades de
casamento do pessoal de graduação inferior, seja nas Forças Armadas, na administração,
ou na empresa privada. Nas Índias Orientais Holandesas dos anos 1880, cerca de metade
da população européia masculina era solteira e vivia com "governantas" asiáticas247.
Contudo, em contraste com a América crioula, esta sexualidade informal inter-racial foi um
fenômeno menor na Ásia e não teve nenhum efeito significativo nas relações familiares

61
regionais. Nos anos 1890 havia 62.000 civis "europeus" nas Índias Orientais Holandesas, a
maioria deles eurasianos, constituindo menos de 0,5 % da população de Java e Madura.
Numericamente, os chineses eram muito mais importantes, chegando a 1.200.000 em 1930.
Desde 1848, quando foram permitidos os casamentos entre cristãos e não-cristãos, o
governo colonial holandês autorizou a formalização das uniões eurasianas, e, na virada do
século XX, encorajava-as vivamente248.
A força do colonialismo era crescente. De um ponto de vista feminino, desde que
houvesse alguma preocupação com a família, sua direção era positiva, mas de extensão
limitada. No sudeste da Ásia, como nos outros lugares, os poderes coloniais abstinham-se
de qualquer tentativa geral de transformação das normas familiares dos colonizados,
embora os britânicos tivessem tentado na Birmânia, com base na falsa premissa de que não
havia direito birmanês 249.Os missionários cristãos eram decerto, mais ambiciosos e, com a
expansão do controle colonial estavam espalhando-se pelas Ilhas Exteriores das Índias.
Mas o seu efeito religioso e familiar foi muito limitado fora das Filipinas e do Vietnã, onde um
décimo da população tinha se tornado católica por volta de 1920 250.
A nova economia colonial de cultivo mercantil, de plantations, de mineração e de
extração de óleo, deve ter tido importantes efeitos nos padrões familiares, mas sua
complexidade desafia um tratamento rápido e não especializado. As plantations tinham
outras implicações étnicas, trazendo um grande número de chineses para as Índias
Holandesas e a Malaca britânica, assim como tâmeis para o Ceilão e também para Malaca.
O novo sistema de cultivo forçado de lavouras comerciais, cultuurstelsel, extremamente
lucrativo, que os holandeses tinham imposto a Java desde os anos trinta do século XIX, e
que no seu auge, proporcionou ao estado holandês, um terço de seus rendimentos251, era
de fato um sistema cruel de exploração que, ocasionalmente, produzia até mesmo fome.
Mas pelo fato de ter sido imposto às aldeias existentes e às suas estruturas locais de poder
e de distribuição de trabalho, as mudanças na família que dele pudessem decorrer
dificilmente seriam importantes.
A política pública colonial passava por mudanças na região por volta de 1900. Nas
Filipinas, os americanos estavam substituindo os espanhóis. Entre outras coisas, isto
significou um impulso para a educação, cada vez mais em inglês, e a legalização do
divórcio. Na Holanda acontecia uma reação contra a exploração colonial. Ela foi provocada
inicialmente por um romance que pode ser considerado o primeiro romance holandês
moderno, Max Havelaar, escrito por um antigo funcionário civil colonial, Eduard Dowes
Dekker, sob o pseudônimo de Multatuli ("Eu sofri muito"). Publicado em 1860, pinta um
quadro pavoroso de ambição, de corrupção e de injustiça. Em 1899, um proeminente
conselheiro político holandês C.Th. van Deventer publicou um famoso artigo no jornal mais
importante da Holanda daquele tempo. Sob o título "Uma dívida de honra", van Deventer

62
argumentava que os holandeses estavam em dívida para com os indianos (os indonésias de
hoje) por toda a riqueza que eles haviam extraído das Índias. Em 1901, o novo governo
holandês, dirigido pelo calvinista fundamentalista Abraham Kuyper, proclamava a "política
ética" para as Índias. A preocupação com o bem-estar dos colonizados era anunciada agora
como a pedra angular da política holandesa.
O enquadramento geral, porém, não tinha sofrido mudanças: o poder colonial e a
empresa colonial, agora em rápida expansão. A guerra colonial contra Aceh, território
muçulmano da Sumatra foi impulsionada com vigorosa brutalidade. Mas a ética colonial não
era apenas retórica: houve um novo esforço de investimentos em saúde e educação entre
outros. Os investimentos em educação, particularmente, pesaram significativamente nas
relações familiares. O interesse no bem-estar da população resultou em uma série de
estudos sociais nos quais um dos focos era o risco de pauperização da parte eurasiana da
população "européia". Um outro foco foi o casamento precoce, o que conduziu a uma
cláusula ineficiente da lei criminal contra o intercurso sexual com menores252.
Como em toda parte, o colonialismo europeu e os missionários cristãos europeus
coloniais do Sudeste Asiático representaram um impulso para a educação formal,
particularmente, para a educação das mulheres (da elite). O primeiro efeito palpável parece
ter vindo das escolas paroquiais holandesas co-educacionais do século XVIII no Ceilão, que
teve entre suas conseqüências, a formação de uma escola de poesia feminina. Os
missionários britânicos e americanos continuaram seus esforços no século seguinte e, por
volta de 1900, havia no Ceilão diversas mulheres médicas253, uma espécie então ausente
dos países da Europa central. Em 1911, cerca de um décimo das mulheres do Ceilão eram
alfabetizadas 254, um recorde asiático, abaixo apenas do Japão.
Fora do Ceilão, as elites masculinas locais, eram geralmente menos abertas à
educação feminina. Este era claramente o caso das Índias Holandesas, onde os problemas
da educação, do casamento infantil, da poligamia e da norma absoluta de casamento em
geral, foram trazidos a público por uma notável jovem javanesa com status de princesa,
Raden Adjeng Kartini (1879-1904), cujas cartas à esposa do funcionário holandês colonial
para a educação e para outras damas holandesas, foram publicadas postumamente por um
alto funcionário colonial holandês.
Em 1913, patrocinadores holandeses criaram em Java, o Fundo Kartini de promoção
da educação feminina e, em 1964, Kartini foi proclamada pahlawan nasional (heroína
nacional) da Indonésia. Kartini criticou a reclusão das jovens de classe superior, a hierarquia
por sexo e idade entre irmãos, a coerção do casamento, a poliginia muçulmana, e
expressou um profundo anseio por educação. Ao final, foi pressionada a recusar uma bolsa
de estudos na Holanda e obedeceu a seu amado pai, casando-se com um homem muito
mais velho, porém, sério. Morreu logo após o nascimento de seu primeiro filho 255.

63
Ameaças imperiais
Os principais estados não-europeus coetâneos do primeiro surto da modernidade
européia nunca foram propriamente colonizados - China, Japão e o centro Otomano do
mundo islâmico. Alguns outros - Sião, Pérsia - sobreviveram por habilidade diplomática e
sorte na rivalidade entre imperialismos; outros ainda, por capacidade militar - de modo mais
claro, a Abissínia, que derrotou a invasão italiana em 1896, - ou por uma inacessibilidade
geral e ausência de perspectivas de lucro, como o Afeganistão. Mas nos últimos dois terços
do século XIX todos esses estados estavam tomados pela modernidade norte atlântica e
sob aguda ameaça imperialista.
Para o iluminismo europeu – para Voltaire em primeiro lugar e também para o
grande filósofo G. W. Leibniz - a China fora objeto de inspiração, como uma civilização
avançada, caracterizada pela sabedoria e pela tolerância. Nos debates suecos sobre
liberdade de imprensa nos anos 1760, a China era invocada como modelo a seguir 256. Adam
Smith era mais crítico do isolacionismo da China, onde, ao final do século XVIII instalou-se a
estagnação agrária e, consequentemente, uma superpopulação malthusiana. Os efeitos
políticos internacionais apareceram após um intervalo de tempo. Em 1793 e 1816, as
missões britânicas à corte imperial foram dispensadas, respectivamente, de modo
condescendente e brusco. Foi a Guerra do Ópio, de 1840-42, pela qual a Inglaterra obrigou
a China abrir-se para a venda sem barreiras do ópio da Índia, que mostrou que as rodas da
história tinham girado. Um conjunto de outros poderes imperiais caiu sobre a China,
forçando oportunidades de comércio e inúmeras outras concessões. Em 1853, uma frota
americana apareceu na baía de Edo. O Japão foi sugado pelo redemoinho. No ocidente, os
otomanos nunca estiveram isolados, mas se mantiveram na defensiva durante todo o século
XVIII. A breve conquista do Egito por Napoleão, em 1798, abalara o principal império
muçulmano e, a independência grega em 1830, - assegurada apenas pelos esforços
concertados dos principais poderes e europeus – deu início a um recuo secular frente aos
europeus.
Esta série de intrusões e derrotas aparentemente infindável demonstrou a
superioridade da civilização européia e levou à extensas buscas da razão por trás dela.
Foram enviadas delegações e missões de estudos à Europa e à América do Norte e
convidados especialistas estrangeiros. Traduziu-se uma grande quantidade de literatura
ocidental. Elaboraram-se profundas reflexões autocríticas. A maior parte do interesse estava
naturalmente focalizada na procura pelas bases do poder econômico e militar ocidental.
Contudo, logo se desenvolveu a convicção de que este poder apoiava-se em fundações
sociais mais amplas e complexas, que seriam muito diferentes daquelas das sociedades
chinesa, japonesa e otomana. Quando se procurava por estas fundações sociais, ficavam

64
nítidos os padrões diferenciais de relações familiares e de gênero. Por isto, a família e a
posição da mulher vieram ocupar um lugar significativo nas preocupações asiáticas sobre
como lidar com os desafios e ameaças do poder euro-americano.
A posição das mulheres, de muito maior respeito na Europa, sua visibilidade pública
e a liberdade dos jovens de se casarem segundo sua escolha, foram traços anotados pelos
primeiros visitantes asiáticos ou compiladores do conhecimento sobre a Europa. Que
homens e mulheres comessem juntos em público, que as mulheres aparecessem em teatros
e outros lugares públicos, isto tudo agradava e divertia Mehmet Efendi, enviado otomano à
França em 1720-21257. "O costume deles é valorizar as mulheres e desconsiderar os
homens. Os casamentos ficam ao sabor de acordos mútuos" afirmou um memorial chinês
ao imperador sobre os costumes europeus dos anos 1750258. Da Paris dos anos 1820, Rifa
'a al Tahtawi, um imã jovem e esclarecido relatava a um grupo de estudantes egípcios: "(...)
Os homens são escravos das mulheres, independentemente de serem bonitas ou não, e
lhes são totalmente devotados.”.
O primeiro embaixador japonês nos EUA, em 1860, ficou atônito com a presença de
senhoras de família em uma recepção na Secretaria de Estado americana e com a cortesia
masculina para com as mulheres. "O modo como as mulheres são tratadas aqui é
semelhante ao modo como os pais são respeitados em nosso país", escreveu um dos
visitantes japoneses em seu relatório259. Diplomata chinês em várias capitais da Europa,
desde 1877, Li Suchang, escreveu em seu livro de notas: "No ocidente, os jovens também
pedem o consentimento de seus pais para se casarem, mas eles mesmos escolhem seus
futuros consortes.” 260
Dois dos principais sistemas familiares geoculturais do mundo estavam enfrentando
este desafio imperialista, mas ainda não colonial: o sistema do Leste Asiático, com suas
importantes variantes chinesa e japonesa (a Coréia foi conquistada pelos japoneses e o
Vietnã pelos franceses); e o sistema Oeste Asiático/ Norte Africano Islâmico, também
subdividido em primeiro lugar, entre sunitas e xiitas.

Leste Asiático: a família nas modernidades reativas.


Na segunda metade do século XIX as elites políticas e intelectuais da China, do
Japão e da Coréia tornaram-se conscientes da fraqueza de seus países frente ao cerco dos
poderes estrangeiros, determinados a não deixá-los em paz. O zeitgeist imperialista
prevalecente na Europa e nos Estados Unidos com relação aos antigos estados asiáticos foi
perfeitamente expresso pelo Edinburgh Review em 1852: "Os japoneses sem dúvida, têm
direito exclusivo à posse de seu território", concedia o jornal britânico graciosamente, "mas
eles não devem abusar deste direito privando as outras nações da participação em suas
riquezas e virtudes."261.

65
A questão era como obter riqueza e força, agora que os velhos métodos tinham se
tornado deficientes. No Leste Asiático, a ausência de qualquer forte religião transcendental à
qual recorrer levou este autoquestionamento a uma rejeição extraordinariamente radical da
cultura anterior por uma parte importante da elite intelectual. Essa rejeição ocorreu
primeiramente no Japão nos anos 1870 e 1880, atingindo seu ápice com uma proposta, por
um vice-ministro, de que a educação básica no Japão fosse em inglês, e continuou duas
décadas depois na China. Na Coréia essa tendência foi mais fraca e no Vietnã convolveu-se
no novo poder colonial, embora isto significasse uma ampla abertura para as missões
cristãs e o abandono da escrita vietnamita popular, assim como da escrita chinesa da alta
cultura, em favor das letras romanas.
Em toda parte a aculturação logo foi freada por um novo nacionalismo conservador
assim como pelo peso das antigas tradições, mas a confrontação cultural foi tremenda.

O caminho japonês
Os japoneses foram os primeiros, os mais rigorosos e os mais bem-sucedidos a
embarcar em uma rota de modernização reativa. Um novo regime estava surgindo da
complexa e irônica convulsão política interna à elite, conhecido como Meiji Ishin, a
Restauração Meiji - restaurando o imperador como o único eixo do governo e restaurando o
prestígio do país. O Juramento da Carta, emitido em nome do imperador Meiji em 1868,
proclamava: "Costumes maléficos do passado devem ser abandonados e tudo deve estar
baseado nas leis justas da natureza. O conhecimento deve ser buscado em todo o mundo,
de modo a fortalecer os fundamentos do governo imperial.”.
Desde o início, o novo regime viu-se em um contexto internacional ameaçador,
confrontado com a tarefa urgente de “enriquecer o país e fortalecer o exército". A ênfase
desta tarefa poderia ser posta ou na primeira parte, no treinamento para a participação em
uma corrida spenceriana, industrial, pelo progresso ou, na segunda parte, armamento para a
guerra. Com a primeira, haveria uma orientação para “o iluminismo e a civilização", na
segunda, uma concepção instrumental do conhecimento seria combinada com a ênfase no
cultivo da lealdade e da devoção nacionais. Na primeira década do período Meiji, prevaleceu
a primeira orientação, mas por volta da terceira década, a ênfase política estava claram ente
na segunda parte da tarefa.
Sem ser explicitamente o assunto mais importante da disputa, as relações de família
e de gênero eram uma parte central do programa de “restauração” ou reforma,
estrategicamente localizada em ambos os períodos. Reconhecia-se que "as mulheres
também são pessoas"262.
Um dos componentes do vasto e abrangente conjunto de decisões políticas para o
esclarecimento e a mobilização nacionais foi a lei de 1872 sobre a educação elementar

66
compulsória, que também incluía as meninas, a fim de formar "boas esposas e sábias
mães”, uma frase originalmente cunhada por Nakamura Massanao, um progressista Meiji
com influências cristãs 263 264
Levou algum tempo para que ela fosse efetivamente
implementada, mas em 1890, 30% das meninas elegíveis estavam na escola. Por volta de
1910, a escolarização tinha se tornado virtualmente universal 265. No mesmo ano foi proibida
a compra e venda de filhas para a prostituição em seqüência a um escândalo público e
internacional.
Para os mais importantes intelectuais do iluminismo Meiji, a posição das mulheres
era um tema importante ao qual devotaram grande atenção. Eles estavam entre os
primeiros viajantes ao exterior e entre os primeiros aprendizes entusiásticos do inglês e de
outras línguas européias. O primeiro entre seus iguais foi Fukuzawa Yukichi (1835-1901),
um erudito do "ensino do holandês" que tinha estado na primeira missão oficial no exterior
em 1860. Fukuzawa era um escritor prolífico e muito influente sobre inúmeros tópicos
políticos e sociais266. Com relação à família, estava envolvido principalmente na luta pela
monogamia. Em seu relatório de 1866 sobre as condições no Ocidente, ele enfatizou: "Está
de acordo com o Caminho do Céu, que deva haver um único marido e uma única esposa na
267
casa. Isto constitui o que é chamado a família.” .Embora o concubinato fosse o principal
alvo crítico do grupo - o que implicou na tradução do The Subjection of Women de J. S. Mill
e causou o assassinato de Mori Arinori , ministro da educação progressista em 1889 -
Fukuzawa lutou também contra o casamento arranjado pelos pais contra a vontade de suas
filhas e a favor da autonomia da esposa e do direito à propriedade assim como do
recasamento das viúvas 268
No começo dos anos 1880, houve também vozes femininas ouvidas em público,
atacando o patriarcado e a atrofia que causava ao crescimento das mulheres: “filhas criadas
em caixas". Em primeiro lugar entre elas esteve Kishida Toshiko, que obteve uma
plataforma através de um partido liberal de vida curta269. Em meados dos anos 1880, o céu
político sobre o Japão estava escurecendo.
Os "Seis Meiji", como se autodenominava o grupo de Fukuzawa, eram também
basicamente nacionalistas. Embora no começo eles pensassem "que não havia nada do
270
qual pudéssemos nos orgulhar vis-à-vis o Ocidente.” , houve sempre uma marca
instrumental em seu feminismo e uma correlação entre suas posições e os ventos das altas
políticas, que estavam movendo-se para longe da "Paz iluminada" (significado do nome
imperial Meiji) em direção ao fortalecimento e ao teste do exército.
A primeira grande vitória doméstica das forças neoconservadoras foi a Ordem
Imperial sobre Educação de 1890, que significava, de um modo mais direto, que se atribuía
à ética neoconfuciana um papel importante no currículo escolar. Isto é importante em nosso
contexto pela fundamentação do "estado famíliar" imperial japonês (kazoku-kokka). O

67
imperador, o estado e a família foram colocados juntos em um sistema que seria enérgica e
amplamente propagado nas décadas seguintes. Na linguagem desta declaração do trono,
particularmente solene:

Nossos ancestrais imperiais fundaram o império sobre uma base ampla e


duradoura. Nossos súditos, sempre unidos na lealdade e no dever filial, de geração a
geração têm ilustrado a beleza disto (...) Vós, nossos súditos, sede filiais a seus pais,
afeiçoados a seus irmãos e irmãs; como maridos e mulheres estai em harmonia e como
amigos sede verdadeiros (...)."271.
A família Meiji estava resumida normativamente em um Código Civil, cujo anteprojeto
começou nos anos 1870, no período do iluminismo, sob a direção efetiva de um consultor
legal francês importado, Gustave Boissonade e de um japonês, Kumano Binzo, que tinha
sido estudante de Direito na França. Um novo e codificado sistema legal era a pré-condição
para uma revisão dos tratados desiguais do Japão com as potências estrangeiras. Os
legisladores foram assim instados a se apressarem e seu trabalho levou à promulgação do
Código em 1890.
Este código, contudo, logo conhecido como o Velho Código, defrontou-se com a
barreira da crítica neoconservadora. O ataque foi encabeçado por Hozumi Yatsuka, reitor da
escola de direito da Universidade Imperial de Tóquio, importante proponente do conceito de
família imperial-estado:”A lealdade [ao imperador] e o dever filial perecerão com a instituição
do código civil”, escreveu Hozumi, “(...) O espírito no qual este código foi redigido provocará
o repúdio da religião nacional e a destruição de nosso sistema de casa. As palavras casa e
chefe da casa aparecem brevemente, mas o projeto obscurece os verdadeiros princípios da
lei e sendo assim, é pior do que se fosse letra morta. Ah! Estes homens estão tentando
instituir um código civil centrado em extremo individualismo “272.
O “Velho Código" foi submetido a uma revisão quase imediata, sob a presidência do
primeiro-ministro Ito Irobumi e o comitê logo incluiu o novo ministro da educação. Nenhum
deles pertencia ao campo neoconfuciano, mas a maré era definitivamente favorável a este
último, em meados dos anos 1890, após a vitoriosa guerra contra a China.
Na versão final do código (§ 57) o conceito samurai de ie "Casa" era, ao mesmo
tempo, o ponto de partida para os preceitos familiares, o fundamento deles e sua razão de
ser. A casa é definida como "o grupo familiar unido sob a chefia de uma pessoa -”.
Normalmente, ela seria constituída pelo chefe patriarcal, sua esposa, seu filho mais velho
casado e sua mulher e, algumas vezes, outros filhos casados, filhos solteiros, e os filhos da
segunda ou da terceira geração. A chefia é herdada pela primogenitura masculina, mas em
caso de não haver filhos homens, uma filha poderia tornar-se a chefe (§ 970), embora o
padrão usual fosse o de que, com o casamento, seu marido passasse a fazer parte da casa
e se tornasse o chefe (§ 736).

68
Como na maioria dos países, as regras gerais ocultavam profundas diferenças
regionais. O Japão do final do século XIX continha também áreas com ultimogenitura
masculina, outras com a sucessão pelo marido da irmã mais velha, mesmo se esta tivesse
um irmão mais jovem, ou com o chefe idoso mudando-se da casa após o casamento de seu
filho mais velho. A família extensa - mais freqüentemente da variante "tronco", com apenas
um filho casado, do que da variante "indivisa" - era mais freqüente no nordeste, onde
constituía a maioria dos domicílios, do que no sudeste e no Japão central, onde a família
extensa constituía uma grande minoria de talvez um terço dos domicílios 273.
Pela norma, as mulheres passavam a fazer parte da casa de seus maridos pelo
casamento. Na verdade, porém, muitas vezes elas somente entravam no registro sócio-legal
de uma família importante após o nascimento de um filho homem 274. Embora seja possível a
aquisição individual da propriedade, a propriedade da casa pertence ao chefe, que tem o
dever de manter seus membros. O chefe tem o poder de veto sobre a residência dos
membros da casa. Seu consentimento é também necessário para o casamento (§ 750). Nos
comentários oficiosos sobre a lei ficou estabelecido que o não consentimento não invalidaria
o casamento, mas poderia significar a remoção {do nome} do registro público da família, um
tipo de excomunhão social275.
O consentimento parental para o casamento era também necessário, a menos que "o
homem tivesse completado seu trigésimo ano ou a mulher seu vigésimo-quinto ano" (§ 772).
Esta formulação da norma foi tirada de um projeto do código civil alemão, que mais tarde foi
cancelado por ser muito patriarcal. A idade mínima de casamento era de 18 anos para
noivos e de dezesseis anos para as noivas (§ 765). A idade média ao casar, em 1886, era
muito mais alta do que a mínima: as mulheres no início dos vinte anos, os homens no final
deles 276. A tradição samurai de casamentos arranjados com a ajuda de intermediários
disseminou-se entre as pessoas comuns na era Meiji 277.
Um casamento somente poderia ser monogâmico (§766), mas o concubinato é
indiretamente reconhecido e regulado pelas referências à sua descendência, que poderia
fazer parte da casa apenas com o consentimento do chefe (§ 735). O filho reconhecido de
uma concubina, ou shoshi, parece ter direitos de herança iguais ou semelhantes aos da
criança legítima, enquanto outras crianças ilegítimas ficam abaixo das irmãs das categorias
anteriores mesmo se forem do sexo masculino (§ 970).
As influências francesa e alemã tinham levado à introdução de uma série de
elementos contratuais na instituição familiar. O poder parental, investido no pai (§ 877),
poderia ser perdido por decisão da justiça, em virtude de abuso (§ 896). O marido era o
administrador da propriedade de sua mulher, mas tinha que ter seu consentimento para
contrair empréstimo ou alienar sua propriedade (§801-2) e a lei explicitamente permitia
outros arranjos de propriedade por contrato mútuo à época do casamento (§793). De fato,

69
os legisladores japoneses não consideraram ser necessário ou desejável introduzir, entre os
efeitos do casamento (§§788-92), qualquer insistência francesa sobre a obediência da
esposa. O divórcio por consentimento mútuo era concedido sem comoções no Japão
secularizado, mas as pessoas abaixo dos 25 anos de idade tinham que ter a permissão
parental (§§808-9). Maus-tratos ou insultos graves por qualquer uma das partes, ou por
seus ascendentes, ou a estes, bigamia e adultério da esposa eram motivos válidos para o
278
divórcio judicial (§813) .
A ênfase da versão final do código na família extensa, patrilinear, patrilocal assim
como as cláusulas que exigem o consentimento do chefe da casa tanto quanto dos pais, são
o que expressam mais claramente o patriarcado japonês Meiji. As relações conjugais, talvez
por que menos importantes, são menos hierárquicas do que na lei napoleônica da Europa
latina e da América Latina - para não mencionar a subordinação sérvia - e permite mais
autonomia individual do que a tradição da lei consuetudinária inglesa antes das reformas no
final do século XIX279 .
O patriarcado samurai adaptado coalesceu com o estado modernizador, inclinado à
expansão nacional, e com a industrialização capitalista emergente em um sistema único e
abrangente de hierarquia, devoção e dominação masculina. O patriarcado na fam ília
alimentou o estado e por ele foi alimentado através do vigoroso impulso ao culto do
imperador, cujos ancestrais seriam os mais remotos ancestrais dos japoneses280281. A nova
indústria têxtil era em grande parte, tocada por trabalhadoras jovens contratadas - contratos
estes com duração de um a cinco anos, realizados por seus pais-,alojadas e vigiadas nos
dormitórios fabris 282.

China: As saídas bloqueadas do passado.

A China tradicional concebia-se como o centro do mundo, o “Reino do Meio", e foi,


sem dúvida, a fonte e o centro de uma antiga civilização. O Japão, em contraste, foi o ramo
lateral da civilização chinesa e, em conseqüência, um tomador cultural da primeira, um
precedente histórico do qual estavam bem cientes os tomadores Meiji do Ocidente. Mas o
governo desta orgulhosa civilização auto-suficiente era mais frágil. Ao invés da imagem de
uma linhagem imperial – reproduzida por tanto tempo, na verdade, através da legitimidade
do concubinato - recuando à deusa do sol, a historiografia chinesa lidava com a ascensão e
queda cíclica de dinastias. A dinastia governante no século XIX não era nem mesmo
chinesa (Han) e sim, manchu, uma etnia não totalmente assimilada, com linguagem e
costumes próprios.
Por outro lado, a China, que prometia mercados muito maiores e mais lucrativos do
que os japoneses, sofreu o primeiro embate do assalto ocidental. Custou um longo tempo ao

70
país para encontrar um novo equilíbrio; pelo menos um século. Quanto tempo o comunismo
irá perdurar na China, só o futuro pode dizer, mas nenhum regime antes dele conseguiu
lidar com os modernos desafios da China. O extraordinário radicalismo, para não dizer
iconoclastia, e a criatividade dos seus intelectuais modernistas do começo do século XX,
não conseguiram nunca uma base social suficiente e uma expressão política adequada.
Tampouco produziu a China um neo-conservadorismo coeso e clarividente do tipo Meiji. Sob
as violentas vicissitudes que se seguiram, a família chinesa prosseguiu, penosamente, mais
ou menos como antes.
O patriarcado estava, como vimos acima, bem no coração da civilização chinesa. A
relação pai e filho era o laço social fundamental e o dever filial, hsiao, a essência da
obrigação moral. Ao contrário do conceito romano legal de patria potestas, o poder paterno,
hsiao, é um conceito ético que denota a obrigação de obediência incondicional do filho 283.
Hierarquias elaboradas de geração, gênero e idade permeavam a sociedade e a cultura
chinesas do Leste Asiático.
As normas de parentesco estavam resumidas nas regras de luto, distribuídas em
cinco graus básicos, mas com quatro subdivisões para o segundo grau, que prescreviam
diferentes durações, vestimentas e conseqüências: a morte de um pai é de primeiro grau, da
esposa, de grau 2a, do filho, 2b, um primo-irmão é de terceiro grau. O código criminal
também aplicava essa hierarquia, acrescentando uma distinção de idade à hierarquia
fúnebre de gênero e geração. O irmão mais moço que batesse em um mais velho, seria
punido, - por dois anos e meio de servidão penal mais 90 vergastadas de bambu - enquanto
que o irmão mais velho que batesse em um mais novo não sofreria nenhuma punição 284.
A família chinesa ideal era a “família indivisa" patrilinear, com um patriarca, filhos
casados e filhos imaturos ou netos. Sob condições de alta mortalidade e de pobreza
generalizada, esta não era, certamente, uma prática universal. Tem sido objeto de
controvérsia entre especialistas quanto a prática diferia da norma, mas parece claro que
uma família maior do que a nuclear era um fenômeno muito importante na China do início
do século XX e, pelo menos em algumas regiões, o padrão predominante 285.
A patrilinearidade significava que as filhas não pertenciam realmente à família. Criá-
las era um fardo, uma vez que teriam que levar um dote para as famílias de seus futuros
maridos. O infanticídio feminino era freqüente 286 e as meninas podiam ser vendidas para
prostituição pelos pais pobres ou podiam ser doadas como futuras esposas secundárias
para serem criadas por seus futuros sogros287
Os casamentos eram arranjados entre as famílias e noivados infantis eram
freqüentes, mas a idade real de união era mais tardia do que na Índia, nos últimos anos do
segundo decênio de vida, para as mulheres 288.

71
Em sentido estrito, o patriarcado chinês não era poligâmico. A bigamia já era punida
com 90 vergastadas de bambu pela lei Ching 289. Mas também não era monogâmico. Nas
classes superiores, o concubinato era legítimo e freqüente. Ele diferia do europeu,
particularmente do sistema latino de amante, sob dois aspectos. Primeiro, a concubina vivia
na casa do patriarca e o ciúme da esposa era uma ofensa. Em segundo lugar, os filhos da
concubina eram tão legítimos quanto os da esposa. Por outro lado, institucionalmente, a
concubina tinha uma posição social inferior e mais fraca do que a da esposa.
O casamento na China era um arranjo secular, e o divórcio era fácil, seja por acordo
mútuo ou por parte do marido, mas não era muito freqüente 290. Como o conceito chinês de
divórcio significava literalmente "expulsar a esposa”, não estava previsto o divórcio de
iniciativa da mulher. Os sete fundamentos para o divórcio moralmente justificado, de
iniciativa do marido, variavam desde a falha em servir seus pais até a loquacidade e o
ciúme291. Embora essas razões fossem amplas o bastante para permitir a qualquer marido a
oportunidade de se livrar da esposa, o patriarcado chinês é minuciosamente regulado e não
um cheque em branco para o poder masculino, como a instituição muçulmana do talaq, o
repúdio marital. Uma esposa não pode ser expulsa sob certas condições, sendo a mais
importante delas o fato de não ter família para a qual retornar. Além disso, não era permitido
a um novo-rico divorciar-se da mulher com quem se casara quando pobre292. E ainda mais,
a China teve a instituição única do divórcio obrigatório por espancar ou amaldiçoar os
293
sogros, por adultério incestuoso, por venda da esposa para a prostituição, etc. .
Não havia a expectativa moral de que as viúvas não se recasassem, mas o código
Ching apenas dizia que elas não deveriam ser forçadas ao recasamento294.
Ao menos em termos normativos, o patriarcado parece ter-se tornado mais rígido nas
últimas dinastias, a Ming (1368-1662) e a Ching (1644-1911) 295 Contudo, no século XVIII e
no início do XIX, parece que se desenvolveram algumas tendências pró-femininas, como a
crítica da poligamia, a ênfase no valor do papel doméstico da mulher, a abertura da cultura
instruída a algumas mulheres da elite 296
Na virada do século XX, a China tradicional estava claramente em agonia. A guerra
com o Japão pela supremacia sobre a Coréia, tinha terminado em desastre para a China em
1895. Os japoneses adquiriram "concessões" de portos territoriais na China, assim como os
poderes ocidentais. Taiwan teve que ser cedida ao Japão e a Coréia tornou-se satélite
japonês. Essas décadas finais da dinastia Ching foram tempos intelectualmente
efervescentes embora, após tudo, ineficientes.
O mais destacado intelectual desses anos difíceis foi Kang You-wei (1858-1928).
Embora suas preocupações maiores fossem a sobrevivência e a preservação da China, as
relações de gênero e de família tinham um lugar importante em seu pensamento e ação,
assim como ocorria com seus equivalentes japoneses. A este respeito, no nível prático

72
imediato, Kang estava particularmente preocupado com o tortuoso enfaixe dos pés das
mulheres. Em 1883, ele organizou a primeira sociedade contra o enfaixe dos pés da China,
em sua cidade natal de Guangzhou (Cantão) 297.
A sociedades contra o enfaixe dos pés espalharam-se entre os círculos progressistas
da China oriental no final do século XIX e no início do século XX, não apenas com o
propósito de propaganda, mas de modo mais prático, para proporcionar soluções de
casamento para as mulheres que não tivessem os pés enfaixados. Mesmo nestes círculos,
a presunção do arranjo parental podia ser mantida. Como a Sociedade contra o Enfaixe dos
Pés de Hunan dispôs no primeiro parágrafo de seus estatutos: "O propósito da organização
dessa sociedade é criar oportunidades para seus membros arranjarem casamentos para
suas filhas, de modo que as meninas que não tiveram seus pés enfaixados não se tornem
párias sociais.”298
O enfaixe dos pés na China adquiriu a mesmo notoriedade do sati na Índia e, bem
mais tarde, da mutilação genital na África, mas também possibilitando interpretações e
avaliações conflitantes 299. Como observou Kang: "Não há nada que nos faça mais objeto de
ridículo do que o enfaixe dos pés (...)”. Ele também acreditava que isto fatalmente
enfraquecia a nação: “Olho para europeus e americanos, tão fortes e vigorosos porque suas
300
mães não tiveram seus pés atrofiados e, por conseguinte, tiveram rebentos fortes.” Os
missionários protestantes alinharam-se contra a prática na segunda metade do século XIX e
a causa eventualmente encontrou seu cruzado em Mrs. Archibald Little, uma escritora
feminista britânica casada com um mercador britânico na China. Em 1895, ela fundou em
Xangai a Sociedade do Pé Natural, um comitê de senhoras européias voltado para as
classes superiores chinesas. Apenas em 1902, após a humilhante derrota do Levante Boxer,
o pé natural finalmente ganhou apoio imperial, embora os manchus nunca tivessem adotado
este costume. Os japoneses, que tampouco o tinham adotado, o baniram de sua nova
colônia de Taiwan.
Kang Yu-wei, com seu perfil de erudição, circunspecção, horizonte cosmopolita e
comprometimento com a mudança correta, era ímpar entre seus contemporâneos. Em seu
"O livro do mundo único", publicado postumamente, uma utopia evolucionista da rota da
atual Idade da Desordem até aquela da Paz Completa e Igualdade, ele incluía uma visão de
igualdade homem-mulher, governada por "contratos de intimidade" temporários, com as
crianças sendo cuidadas pela sociedade no seu todo, em um mundo onde as fronteiras
nacionais tinham desaparecido 301.Mas ele não causou grande impacto em sua despedaçada
sociedade.
Uma das mais radicais discípulas de Kang, Tan Su-tung, associou as relações de
gênero a uma agenda geral de mudança social, demandando a criação de 4 tung (boas

73
conexões): entre a classe superior e a inferior, entre a China e os países estrangeiros, entre
homem e mulher, entre si mesmo e os outros302.
Após a guerra sino-japonesa, um número crescente de estudantes chineses estava
indo ao Japão para aprender a modernidade. Para maior humilhação nacional, o Japão
tornou-se o principal condutor das idéias modernistas de mudança social e cultural na
China. Uma expoente feminina pioneira foi Qiu Jin, que, quando de seu retorno à China, em
1906, tornou-se proeminente porta-voz dos direitos em geral das mulheres, na família e na
sociedade, mas com o objetivo específico de ir contra o enfaixe dos pés e a favor da
educação das meninas. Em 1907, ela foi executada como revolucionária 303
Pouco de positivo restou de tudo isto no âmbito da experiência contemporânea,
embora o império chinês fosse dissolvido em 1911. O imperador Kuang Hsu, com idéias
reformistas, foi efetivamente expulso do poder em 1898, subjugado pela formidável ex-
concubina, a Imperatriz-Viúva Tzu Hsi, que, em 1900, apostou nos Boxers e acabou
esmagada por uma força imperialista européia combinada. As posteriores tentativas de
reforma manchus nunca foram muito longe.
Nas cidades, com a indústria e o comércio exterior, começaram a aparecer fissuras
no costume tradicional304, mas essas fissuras eram pequenas em comparação com a vida
nas aldeias devastadas, mas normativamente não perturbadas pelas vicissitudes políticas. É
simbólico o projeto de um novo código familiar, iniciado em 1907, terminado em 1911, pouco
antes da revolução republicana e nunca aprovado. A reelaboração do esboço continuou até
o código do Kuomintang de 1930, cujo alcance dificilmente ultrapassou as partes chinesas
dos portos sob tratado. A China - como a Coréia, neste sentido - em 1900 era ainda
basicamente confuciana, sob ataque modernista disperso.

O Islã sob pressão


O mundo islâmico, em contraste com o indiano e o chinês, desenvolveu-se em
simbiose conflitante com a Europa, não apenas com os outros "povos do livro", isto é,
judeus e cristãos, mas também com a cultura da Grécia antiga, que as Idades Médias
Européias tinham reexportado para a Europa. Enquanto em termos de contato real havia
mais de uma afinidade com Europa, sob outro aspecto, a divisão era profunda. O Islã era o
rival direto do cristianismo em um sentido que tanto o hinduísmo politeísta e o confucianismo
secular nunca foram. Islamismo e cristianismo eram ambos monoteístas, monopolistas e
dotados de verdades últimas e sagradas.
O Islã é um sistema legal tanto quanto uma religião, e o direito de família, ou Direito
do Estatuto Pessoal, é o coração do sistema legal. Em 1900 esse direito estava congelado
havia cerca de 1000 anos, desde a fundação das principais escolas de lei islâmicas nos

74
séculos VIII e IX 305. Tampouco o severo patriarcado do Islã medieval tinha sido mitigado
pelo costume, embora as incursões na Ásia central, do seljuques no Irã e dos mamelucos no
Egito, tivessem quebrado algumas práticas misóginas do mundo árabe 306.
As mudanças neste complexo normativo, sagrado, arcaico e muito ramificado
estavam ligadas de modo a serem morosas e difíceis, particularmente na população em
geral. Como sempre, para as elites destas sociedades altamente estratificadas, havia mais
graus de liberdade.
A família muçulmana da Ásia oriental e do norte da África era patrilinear e patrilocal,
com tendência fortemente endogâmica. Havia um esforço para os casamentos com primos -
irmãos paternos, que eram bastante freqüentes, embora, raramente, uma norma estatística.
A família patriarcal e indivisa, incluindo mais de um filho casado, era um ideal alcançado ou
do qual se podia se aproximar, em extensões variáveis, ao longo do ciclo de vida familiar.
Os casamentos eram arranjados e os casamentos ou noivados infantis eram comuns.
Geralmente as meninas estavam casadas na puberdade e a lei otomana previa nove anos
como idade mínima de casamento.
A escola de direito Hanafi, que prevaleceu no Império Otomano, era a única das
escolas do direito islâmico, xiitas tanto quanto sunitas, a conceder a uma moça o direito de
pedir a anulação de seu casamento infantil, desde que este não houvesse sido sexualmente
consumado. A lei muçulmana geralmente sustentava que as meninas não deveriam se
casar contra sua vontade, mas esta aquiescência estava sempre presumida. A poligamia
era sancionada religiosamente, mas, como no resto da Ásia, e em contraste com a África
subsaariana, era principalmente um fenômeno da elite, compreendendo apenas uma
pequena porcentagem dos homens: por exemplo, 4% na Argélia, em 1903 307. O divórcio era
fácil para os maridos - apenas um repúdio unilateral, cuja única restrição legal era a de que
seria irreversível se tivesse sido verbalizado ou ocorrido três vezes 308, - e muito difícil ou
virtualmente impossível, para as mulheres contra a vontade de seus maridos. A escola de
direito Maliki, predominante no Mahgreb, é a única que reconhece a possibilidade de
divórcio judicial por causa de maus-tratos pelo marido309. As mulheres divorciadas, assim
como as viúvas, podiam casar-se novamente.
Contudo, a lei islâmica não permitia a dominação masculina livre de quaisquer
constrangimentos. Seu regime de propriedade deu às mulheres poderes não insignificantes
e, de fato, sob alguns aspectos, maiores do que aqueles concedidos pelo direito europeu
ocidental do início do século XIX. As filhas tinham direito de herdar metade da parte dos
filhos; na lei xiita, elas herdariam tudo se não tivessem irmãos. Porém, este direito era
freqüentemente desrespeitado com relação a terras e camelos. De acordo com a norma do
mahr, a doação que o noivo tinha que fazer na assinatura do contrato de casamento, assim
como a parte estipulada para ser paga posteriormente, seria paga à noiva e não a seu pai.

75
Na prática, esta disposição era freqüentemente violada, mas era também seguida310. No
casamento, marido e mulher tinham propriedades separadas e as transações econômicas
entre eles, ao menos nas classes urbanas proprietárias, eram reguladas por contratos
formais. Este regime de propriedade deu a muitas mulheres a possibilidade de estabelecer
um acordo de divórcio com seus maridos. As mulheres casadas tinham sua própria
capacidade legal, o que torna os velhos registros das cortes otomanas fontes fascinantes de
história da família 311.
A segregação de gênero e a reclusão das mulheres eram regras gerais do domicílio
islâmico e o véu era a norma entre as mulheres das classes média e superior urbanas. Este
era um antigo costume da Ásia ocidental cujas origens remontam à Assíria do século XIII
AC312. Se lady Montagu, a extremamente curiosa e bem informada esposa de um
embaixador britânico em Istambul no século XVIII, merece crédito, o velamento podia e era
usado como cobertura para intrigas eróticas bastante disseminadas. Como observou lady
Montagu 313: "Esta mascarada perpétua lhes dá [às senhoras otomanas] inteira liberdade de
seguir suas inclinações sem o perigo da descoberta.”.
Este mundo, que tinha sido culturalmente florescente e militarmente vigoroso estava
claramente decadente no século XIX. Em termos militares, o império Otomano tinha estado
na defensiva desde após o malsucedido cerco de Viena em 1683. Culturalmente, esta vinha
sendo uma área estagnada desde os tempos de Ibn Kaldhoun, isto é, desde o século XIV.
Politicamente, ela era composta pelas terras do vasto e frouxamente articulado Império
Otomano, que incluía o atual Iraque ao leste, a Arábia Saudita ao sul, a Argélia ao oeste, a
Sérvia e a Bósnia ao norte além de tudo o que estivesse dentro desses limites. Os
Otomanos eram limítrofes de dois outros governos muçulmanos, a Pérsia Qajar, ao leste e
Makhzen - atual Marrocos -, ao oeste, ambos também em má forma.
O nacionalismo e o imperialismo europeus abalaram os fundamentos deste mundo.
Este abalo começou seriamente em 1830, quando o nacionalismo alimentado e suportado
militarmente pela Europa tornou a Grécia independente do sultão e quando se iniciou uma
nova expansão colonial com a conquista francesa da Argélia. E assim continuou até o fim da
primeira guerra mundial, durante a qual, o nacionalismo árabe apoiado pelos britânicos
alcançou as porções sudeste do Império que se desmoronava, para ser envolvido em
"mandatos" coloniais britânicos e franceses. Após a guerra, um estado-nação turco secular
surgiu das ruínas otomanas.
No mundo islâmico, o Egito tornou-se a fronteira da modernidade. De acordo com o
protocolo, ele era parte do Império Otomano a cujo sultão pagava um tributo anual, mas,
para propósitos práticos, ele era independente no século XIX, até sua ocupação pelos
ingleses em 1882. O Egito fora invadido por Napoleão em 1798, como parte do conflito
anglo-francês. O exército francês esforçou-se muito para demonstrar sua amizade ao Islã -

76
apesar de tê-la manchado com a profanação da mesquita de el Azhar, imediatamente após
o ataque à cidade - e suas relações com população do Cairo parecem ter sido amigáveis.
Um grande cronista egípcio, Abd-al-Rahman al-Jabarti registrou a ocupação francesa. Uma
das coisas que anotou foi o mau comportamento das mulheres que acompanhavam o
exército francês, passeando com seus rostos descobertos, sem acompanhante e, até
mesmo, à cavalo. Pior ainda, este comportamento espalhou-se entre algumas mulheres
muçulmanas que as cercavam. Quando os franceses tiveram que se retirar em 1801,
diversas mulheres, que tinham tido contato com eles, foram mortas imediatamente314.
Embora não tivesse deixado nenhuma manifestação duradoura de modernidade, a
invasão francesa sacudiu o ancien régime do Egito e logo após a partida dos franceses, o
poder foi tomado por um comandante otomano de descendência albanesa, Muhammad Ali,
que colocou o país no caminho da mudança, o que incluiu o envio de um grupo de
estudantes a Paris em 1826. Muhammad Ali era um inovador enérgico, porém, autocrático,
que manobrou para obter do sultão otomano a garantia de seu domínio hereditário sobre o
Egito, mas nenhum de seus sucessores teve sua feroz habilidade.
Contudo, entre a elite urbana, as maneiras francesas e européias começaram a
ganhar influência mesmo em assuntos de família e de intimidade, alimentada por uma
corrente contínua, porém estreita, de educação francesa. O casamento por amor romântico
e os obstáculos existentes em seu caminho, tornaram-se um dos temas principais do novo
teatro do Cairo. Embora a ópera a e o teatro praticassem a segregação de gênero,
começaram a aparecer locais de encontros para os jovens. O grande reformador religioso
muçulmano Mohamed Abduh, o mufti (o mais alto juiz) do país, sustentou ser permitido que
o contacto pré-marital deveria ser permitido pela lei islâmica. A igreja copta concordou e o
patriarca, em 1895 instruiu seus sacerdotes a se assegurarem de que não estavam casando
ninguém contra a vontade (dele ou dela). No decorrer do século XIX, o limite de idade para o
casamento das meninas parece ter subido315, embora o censo de 1907 dificilmente possa
ser considerado confiável. O comércio de escravas circassianas, concubinas favoritas dos
homens da classe superior, foi proibido em 1877. Em Istambul, a primeira proibição deste
tráfico foi proclamada em 1847 e, novamente, em 1856 316.
Até 1900, não tinha havido nenhuma reforma moderna da antiga lei Sharia em
qualquer país muçulmano. O império Otomano empreendera um grande projeto de
codificação do direito civil islâmico em 1869-76, que obteve uma adaptação egípcia em
1875, mas que não incluía nenhuma mudança no direito de família. Ele é ainda a base do
direito civil na Palestina e na Jordânia317. As primeiras reformas modernas do direito de
família foram promulgadas em 1917, no fim do império Otomano. Elas elevaram a idade
feminina mínima de casamento para 17 anos e permitiram uma cláusula no contrato de

77
casamento dando à mulher o direito de solicitar o divórcio na justiça se seu marido tomasse
outra esposa318.
Na questão do consentimento, a lei islâmica não quebrou facilmente. Em 1904,
ocorreu uma famosa causa legal. Uma mulher legalmente adulta, de origem social elevada,
casou-se com um bem sucedido jornalista nacionalista, contra a vontade de seu pai. Este
contestou o casamento com base no fato de que os dois não tinham status iguais, o que
deveria ocorrer, de acordo com a lei islâmica. O pai ganhou a causa319.
Nos anos 1891, um pequeno movimento feminista poderia ser vislumbrado na elite
egípcia, embora, nesta tendência, as mulheres árabes muçulmanas fossem pouco visíveis.
O primeiro periódico para mulheres em árabe foi fundado na Alexandria em 1892, por uma
mulher cristã síria, a penetrante poeta e ensaísta feminista Aisha Ismat al-Taymuriya, uma
turco-circassiana que escreveu artigos sobre as barreiras à educação feminina320. A figura
chave da elite de feministas cairotas nos anos 1890, era uma francesa, Eugénie Le Brun
Rushdi, casada com um egípcio e convertida ao islamismo 321.
O mais notório tratado feminista de todo o império foi escrito por um por um juiz
egípcio de origem curda e educação francesa, Qasim Amin. O contexto intelectual era
semelhante ao do leste da Ásia isto é, uma literatura internacional de cunho mais ou menos
darwinista social sobre o que provocaria a fraqueza ou a força das nações. O livro de
Samuel Smiles "Auto - ajuda" (Self Help) estava despertando grande interêsse em ambos os
extremos da Ásia e foi traduzido para o árabe em Beirute, em 1880, nove anos após sua
tradução japonesa322. "A riqueza e a força de um estado", escreveu Smiles, "depende muito
menos da forma de suas instituições do que do caráter de seus homens"323.. O mundo
competitivo de Herbert Spencer, imensamente popular no Japão, entrou também no trabalho
de Qasim Amin. Entre os intelectuais francófonos circulava uma obra francesa intitulada Do
que depende a superioridade dos anglo-saxões?- publicada em Paris, em 1897 e no Cairo,
em árabe, dois anos mais tarde. A resposta era caráter e educação324.
Se a fraqueza de um país, na feroz luta pela sobrevivência, dependia do caráter de
seus homens, o olhar crítico focalizava diretamente a principal agência de formação do
caráter, a família. No final do século XIX, este tema tinha se tornado bem conhecido nos
círculos progressistas da elite, tanto no Cairo quanto em Istambul, no influente círculo
literário de Namik Kemal 325.
O que destacou Amin (romanizado como Emin, por seu tradutor alemão) no mundo
Otomano foram duas coisas. A primeira foi um programa articulado, prudente e
circunspecto, como seria de se esperar de um juiz sofisticado, de “Liberação das Mulheres”
(Liberation of Women), título de seu primeiro livro sobre o assunto326. Ele focalizou a
promoção da educação feminina, mas também incluiu a abolição do véu, o casamento
conjugal e foi crítico da poligamia e do divórcio unilateral. A segunda foi que Amin era o mais

78
articulado muçulmano secular do império. Guardando uma posição respeitosa em relação
ao Islã e sempre se referindo ao Corão e à Sharia, Amin sustentou que uma nova ordem
social tinha que estar baseada mais na ciência e no uso utilitário do que ter como parâmetro
a tradição: "O progresso científico leva ao progresso moral”, como afirmou ele em seu livro
subseqüente A Nova Mulher, em 1901327.
Qasim Amin foi muito atacado e não teve nenhum impacto direto. Ele morreu em
1908. Mas tornou-se um ícone do feminismo egípcio, celebrado anualmente 328.
A tentativa de reforma otomana, Tanzimat (palavra que significa reforma,
reestruturação), de meados do século XIX, centrou-se nas relações estado-cidadão, como a
igualdade religiosa perante a lei, e no desenvolvimento econômico. Não houve nenhuma
tentativa de mudança das relações familiares, embora, na elite urbana, tenham realmente
emergido ideais de casamento de companheirismo, como observamos anteriormente.
Geralmente os muçulmanos, as meninas muçulmanas em particular, estavam muito pouco
presentes na pletora de escolas estrangeiras que proliferou nas últimas décadas do império.
Estas escolas, apesar habitualmente comporem o corpo funcional com missionários, eram,
freqüentemente, cuidadosas com relação à religião ou não-confessionais. Pode-se detectar
uma suspeita religiosa muçulmana, mas nem o estado nem o clero muçulmano ofereceram
qualquer alternativa educacional 329.
A Pérsia tinha tido desde cedo contatos esporádicos com Europa - as famosas
Lettres Persanes de Montesquieu tinham um leve vínculo com a realidade – e, no início do
século XIX, estes contactos foram intensificados, principalmente com os ingleses - contra a
crescente ameaça russa - através também da Bengala britânica. Contudo, esta curiosidade
precoce e a tentativa de modernização não resultaram em muita coisa e a Pérsia seguiu os
otomanos à distância330. O espaço público da cidade de Teerã permaneceu basicamente
fechado às mulheres, ao menos até os anos 1930, enquanto que o número expressivo de
cristãs e judias, sob vigilância menos rígida do que suas irmãs muçulmanas, tornou mais
fácil certa abertura para as mulheres em Istambul e no Cairo, uma vez que estas já
participavam da vida urbana desde o final do século XIX331
Na parte ocidental do mundo islâmico, o sultanatos de Marrocos permaneceu
extremamente tradicional até sua conquista colonial no século XX; a reforma da Tunísia foi
impedida pelo endividamento do governador turco de então e sua conseqüente
subordinação à França. A corrupção e a irresponsabilidade financeiras levando à
dependência dos credores externos, apoiados no poder militar imperialista assombravam os
governos islâmicos do século XIX tanto quanto a China imperial tardia. Naquele tempo, as
conseqüências eram bem mais sinistras do que tornar-se dependente dos créditos do Fundo
Monetário Internacional, como hoje.

79
Resumindo a situação no interior do Islã por volta de 1900: em suas metrópoles
cosmopolitas e multiculturais de Istambul e do Cairo, começara na elite a discussão sobre
uma nova família. O casamento romântico tinha emergido como tópico cultural – embora
dificilmente como prática - e, pelo menos entre os intelectuais progressistas, a educação
feminina tinha se tornado um programa. No Cairo, a primeira geração de mulheres
feministas estava emergindo e, em Istambul, em 1901, a futura proeminente feminista Halide
Edip Adivar foi a primeira muçulmana turca a graduar-se na Escola Americana para Moças.
Contudo, não tinha havido mudança institucional além da possível elevação da idade
ao casar para as meninas. O véu era ainda de rigueur entre as mulheres urbanas
respeitáveis e a segregação de gênero comandava o entretenimento respeitável, a ópera, o
teatro e os restaurantes. O patriarcado muçulmano e medieval foi submetido à crítica e
reformadores religiosos, como Mohamed Abduh, mufti do Egito, estavam tentando vincular o
Islã à ciência moderna. Embora levantasse a questão da segregação de gênero, Abduh
estava pouco preocupado com assuntos de família. As cortes e o clero permaneceram
obstinadamente patriarcais. No que diz respeito às relações de gênero e de família, em
1900, o mundo muçulmano do Oeste Asiático e do norte da África, estava ainda nas
vésperas da modernidade.

2- O mundo do patriarcado por volta de 1900


O mundo por volta de 1900 era um mundo patriarcal. Os direitos dos pais
governavam o mundo dos filhos, incluindo o dos filhos adultos, pelo menos, enquanto
solteiros. Nas sociedades matrilineares, o tio materno mais velho era o equivalente funcional
da autoridade masculina geracional. As esposas estavam institucionalmente subordinadas a
seus maridos, virtualmente em toda parte, embora, na costa oeste africana elas comumente
tivessem autonomia econômica. Os casamentos eram normalmente arranjados pelos pais
em todo lugar, com exceção da área do Atlântico Norte do noroeste da Europa e na América
do norte (e nas ramificações européias da Oceania). Entre as principais populações
ameríndias, entre as elites crioulas das Américas, na Europa mediterrânea, nos Bálcãs, na
Rússia, e por toda a Ásia e a África, o casamento era primeiramente um assunto parental,
principalmente para a noiva. Na população comum crioula, onde eram comuns as uniões
sexuais não maritais, o poder masculino era mais falocrático do que patriarcal.
A poliginia era normativamente permitida por toda a África e a Ásia, com exceção do
Japão, que tinha acabado de bani-la. Em muitos ambientes burgueses e aristocráticos da
Europa e da América latinas, a tomada de uma amante era quase institucionalizada. O
divórcio era um privilégio unilateral masculino na China e nos países muçulmanos, e nos
outros lugares, difícil. A reclusão feminina era uma norma muçulmana e do norte da Índia, e
a movimentação feminina "respeitável" no espaço público era restrita em toda parte, salvo,

80
talvez, na costa oeste da África. Contudo, as restrições variavam extremamente. No
noroeste da Europa e na América do Norte, espaços sexualmente ambíguos estavam
usualmente fora dos limites para mulheres desacompanhadas; estes incluíam restaurantes,
teatros e outros locais de entretenimento, assim como as ruas após o escurecer. Em uma
vasta faixa de terra, das planícies gangéticas do extinto império Mogol até a costa atlântica
de Makhzen ou Marrocos, esperava-se, em termos normativos, que as mulheres das
classes superiores conservadoras somente saíssem de casa (e dos aposentos femininos)
em ocasiões extremamente raras, tais como o casamento, a morte do pai e o próprio
funeral. Provavelmente haveria algumas outras ocasiões, mas cada vez que deixassem a
casa, elas tinham que estar cobertas e usando o véu.
Muitas sociedades cobraram tributos especiais das mulheres. Como filhas, elas
tinham poucos ou nenhum direito de herança. Como seres sexuados, eram sujeitas a
mutilação genital em muitas partes da África. Nas principais regiões da China, seus pés
eram quebrados e enfaixados em tributo ao senso masculino de beleza feminina. O
espancamento da esposa era legítimo na maior parte do mundo. As viúvas estavam
socialmente mortas na Índia, e até mesmo impedidas de se recasarem na China.
Mesmo se em geral patriarcal ou dominado pelos homens, o mundo de 1900 era
altamente diferenciado. Os pólos eram o sistema familiar do noroeste da Europa -
prevalecente também na América do norte e na Oceania européia - de um lado, e a China
do outro. Normas sobre livre escolha do casamento, que, por certo, não excluíam a pressão
parental, formação de um novo domicílio com o casamento e um sistema de parentesco
mais solto, formado tanto pelo lado materno quanto pelo paterno, fizeram com que a família
do noroeste europeu permanecesse menos patriarcal, em termos relativos. Na Suécia, as
mulheres casadas estavam ainda legalmente sob a "guarda" (målsmanskap) de seus
maridos e o novo código civil alemão, que entrou em vigor com novo século, estabelecia,
como regra geral, que "Ao marido pertencem as decisões em todos os assuntos da vida
conjugal em comum". A tradição da lei consuetudinária, de não terem as mulheres casadas
nenhuma existência individual legal foi rompida na Inglaterra apenas em 1882, com o Ato de
Propriedade da Mulher Casada. Quanto mais alguém se aventurasse para o sul e para o
leste, a partir do noroeste da Europa, incluindo a própria Europa, mais rígidas seriam as
regras patriarcais que iria encontrar.
A China e os outros herdeiros do Leste Asiático da civilização chino-confuciana -
Coréia, Vietnã, Japão (este, porém, já em vigorosa movimentação) - tinham as mais
elaboradas ideologias e rituais do patriarcado, com o "dever filial" ou o respeito pelo pai,
como a suprema norma familiar. Mas o parentesco patrilinear, de pai para filho, e a
residência patrilocal eram a regra em toda a Eurásia, dos Bálcãs até a Coréia e no Japão,
assim como na maior parte da África e entre as maiores populações indígenas da América.

81
O Sudeste Asiático, pelo contrário, como a maior parte da Europa ocidental, tinha
parentesco bilateral e nem sempre se esperava que os novos casais fossem residir com o
pai do marido. A família crioula popular estava inscrita em um círculo de poder sócio-
econômico masculino, assimetria sexual com dominação masculina e freqüente violência
masculina, mas sempre teve um foco materno, nas mães e seus filhos.
Esse mundo todo iria mudar no século XX, mas não de modo evolutivo ou regular.

NOTAS
1
Therborn, 1993
2
Locke, 1945:27.
3
Mitchell, 1966.
4
Guiddens:1992:154.
5
Lewis, 2001
6
Beck-Gernsheim, 1998.
7
Akerlof, 1998:308.
8
Roudinesco, 2002.
9
Goode, 1963.
10
Goode 1963: v
11
Goode, 1963:1
12
Goode, 1963: 8, com acréscimo do itálico.
13
Goode, 1963:169, itálico omitido.
14
Goode, 1963:11, itálico omitido.
15
Goode, 1963:17
16
Goode, 1963: 10 ss
17
Goode, 1963: 15
18
Goode, 1963: 10-11
19
Goode, 1963:18 ss.
20
Goode, 1993
21
Becker, 1991
22
Becker, 1991:118
23
Becker, 1991: 119
24
Todd, 1990
25
Le Play, 1855:18
26
Le Play, 1866:297
27
Cf. Skinner, 1997
28
Kaser, 2000
29
Le Play, 1855: 18-19
30
Le Play 1866, 1871
31
Le Play 1982
32
Westermarck, 1891
33
Westermarck, 1899
34
Westermarck, 1903: 544
35
Westermarck, 1891/1903: 549-50
36
Sobre outras relações entre pais e filhos, ver Therborn, 1993
37
Walby, 1990: 20
38
Westermarck, 1903:541
39
Burguière et al.,1986
40
Wallerstein, 1991
41
Evans Grubbs 2002:20ss
42
Cf. Oheneba-Sakyi 1999; Blanc 2001; Jejeebhoy 2001
43
Bodde e Morris, 1967:41.
44
Abbott, 1981
45
Delumeau e Roche 1990: 256, 335

82
46
St John-Stevas, 1957:259.
47
Sevenhuisen, 1987: 235
48
Dhavernas, 1978: 75
49
Cf. a visão crítica de Sachs e Wilson, 1978: 7 ss
50
Blom and Tranberg, 1985.
51
Gravesen, 1957
52
Odén, 1991: 94 ss
53
Hafström, 1970:52
54
Therborn, 1993: 251
55
Delumeau e Roche, 1990: 376-77.
56
Lardinois, 1986b: 354 ss.
57
H.F. Morris, 1968: 35 ss.
58
Hahang, 1992: 58
59
Kwon, 1999:45
60
Diköter, 1995: 18
61
Botiveau, 1993: 17,194
62
Lavrín, 1995: 195-96
63
Gillis 1985: 232, 245,261
64
R. Evans 1979: 249 ss
65
Gillis, 1975; Shorter, 1977: caps. 4 e 6; Mitterauer 1986
66
Rodriguez 1964: 269
67
Glendon 1977: 29,31
68
Montagu 1994/1716-18: 22
69
Hume, 1742
70
Millar, 1771
71
Hume, 1742/n.a.: 77
72
Shorter, 1977: 220
73
MacMahon, 2001: 134
74
Tilly, 1984: 33
75
Bairoch 1997: II, 193 195
76
Bairoch 1997: I,597
77
Flora et al., 1987: tabelas nacionais;
78
Therborn, 1993: 248 ss.
79
Tilly e Scott, 1987,1978.
80
Mann, 1903
81
Tilly e Scott, 1987: 14ff; Beuys, 1980:391
82
Tilly et al., 1992:1889
83
Hunecke, 1994: 125
84
Johnson, 1976; Mitterauer e Seider 1982: 132ss; Barbagli, 1984: ch. III; Gillis, 1985: parte
III; Gillis, 1997, parte II.
85
Glendon, 1977: 182n
86
Dhavernas, 1978: 91, citando um senador de 1936.
87
Delumeau e Roche 1990:337
88
Evans, 1979: 126ss
89
R.Evans, 1979: 18-19
90
Mill, 1869/1970: 95
91
Beuys, 1980:390
92
Rodriguez, 1964: 268-70
93
Blom e Tranberg, 1985: 43,54,190
94
Dhavernas, 1978: 8ss
95
Coester-Waltjens e Coester, 1997: 16
96
Dhavernas, 1978: 103-4
97
Staudinger 1995: Livro I, Introdução, Parte IV
98
Berathung, 1896
99
Stauding, 1908: vol.IV, 824
100
Bürgerlisches Gesetzbuch {Código Civil Alemão}, 1907: §§1626ss
101
O inglês do século XXI não transmite a solenidade do alemão do final do século XIX sobre
aquilo que a esposa tinha que dirigir, das gemeinschaftliche Hauswesen.
102
Berathung, 1896: 197 ss, 366

83
103
Berathung, 1896: 191 ss, 366
104
Lalive e Kepler, 1968: 1072.
105
Staundinger, 1995: Livro IV, Introdução, 6-8
106
Berathung, 1896. 356 ss.
107
Staundinger, 1908: 799
108
Berathung, 1896
109
Albisetti, 1996: 51,53
110
R.Evans, 1979: 105,109
111
Mosely, 1959, 1976; Czap, 1976, Johnson, 1976; Kaser 2000: 124 e ss
112
Kaser, 2000:127
113
Cf. Alpern Engel, 1976
114
Albisetti, 1996: 46, 48, 48n
115
Byrnes, 1976; Kaser, 1995
116
Bergmann, 1926; Crusen et al., 1937: vol.IV)
117
Shorter, 1977: 238
118
Mintz e Kellogg, 1988: 17
119
Socolow, 1989: 211 ss.; Navarro, 1999: 47
120
Sachs e Wilson, 1978:76.
121
Grossberg, 1985: 21 ss
122
Stevenson, 1991: 121-22
123
R.Evans, 1979 : 61
124
Miller, 1991: 54
125
Fischer et al., 1985: 6,82
126
Cassina de Nogara, 1989: 31.
127
Miller, 1991: 50,52
128
Evans, 1979: 58 ss.
129
Evans, 1979: 46-47
130
Sachs e Wilson, 1978: 97 ss
131
Grossberg, 1985: 136 ss
132
Sachs e Wilson, 1978: 149.
133
Stevenson, 1991: 154 ênfases omitidas.
134
Grossberg, 1985
135
Bergmann e Ferid, 1955.
136
Arrom, 1985; Lavrin, 1995: cap.6.
137
Arrom, 1985.
138
Heydt-Coca, 1999
139
Patterson, 1982
140
Blackburn, 1997
141
Freyre, 1933/1970
142
Martinez-Alier, 1974:20
143
Higman, 1991
144
Freyre, 1933/1970; Kuznesof, 1991; Borges, 1992
145
por exemplo, Dollard, 1937/1957; Groves, 1994; Gutman, 1976; Wiatt-Brown, 1986; Morris,
1995; Patterson, 1998
146
Patterson, 1967; Martinez-Alier, 1974; Charbit, 1987; Stolcke, 1992, com uma comparação
com o Brasil; Barrow, 1996; Ortmayr, 1997.
147
Das e Jesser, 1980; Lavrín, 1989; McCaa, 1994.
148
Tumin, 1952; Fals Borda; 1962; Price, 1965; Gutierrez de Pineda, 1976; Angulo Novoa.
1980; Mayer e Boltom, 1980; Hawkins 1984; Deere, 1990; Potthast-Jutkeit 1997; Heydt-Coca, 1999;
Barrig 2001.
149
e.g. Janiewski, 1996.
150
Ghandi, 1948: 212.
151
Fanon, 1952
152
Nandy, 1983: 4
153
cf. Stoler, 1997
154
Suret-Canale, 1971: cap. III; Tobie,1991: 299ss; Conklin, 1997
155
Mill, 1817: vol. I, 279.
156
cf. Osterhammel, 1998: cap. XII.
157
Robertson, 1995: 18-19

84
158
Das e Mahapatra, 1996: 99ss.
159
Kapadia, 1966:253.
160
Karvé, 1953:130.
161
Karvé, 1953: 220.
162
Sobre a divisão norte e sul das famílias ver também Dyson e Moore, 1983; Kolendra,
1987, Goody, 1990: cap.8.
163
Karvé, 1953
164
Os ezhavas eram a camada superior da intocabilidade. Abaixo deles estavam as castas
escravas. Esta casta organizou um dos primeiros movimentos de casta bem-sucedidos pela reforma
social na Índia, começando no final do século XIX. Mais tarde, este movimento foi transportado para o
Partido Comunista, que era inusualmente forte em Kerala, alternando com o Partido do Congresso no
governo da Índia independente (Jeffrey, 1992: cap.8; Ramachandran, 2000: 100 ss.)..
165
Karvé, 1953:258 ss.; Jeffrey, 1992: cap.2.
166
Ramachandran, 1989: 60 ss.
167
Bairoch, 1997: volume II, 850 ss.
168
Litten,1984:255 n, o 257 n.
169
Litten, 1984,: 49-51,1 60-62.
170
Dyson, 1989:9; Bath, 1989.
171
Zastoupil e Moir, 1999: IX.
172
Robertson, 1995:15.
173
Roy, 1823/1999.
174
Lardinois, 1986 b: 353 ss.
175
Mani, 1993:273, 281.
176
Kapadia, 1966: 172.
177
Kapadia, 1966: 175.
178
Kolendra,1977:323 ss
179
Dyson e Moore, 1983:38.
180
Chakravarti 1990:73-78; Bose e Jalal, em 1997:109 ss.; Chowdhury, 1998: cap. 3, 5.
181
Chatterjee, 1990:242-43, citando Bhudev Mukhopadhyay em 1882
182
Ray, 1995.
183
Chakravarti, 1990:73.
184
Ray, 1995.
185
Albisetti, 1996:45
186
Cf. Boserup, 1970.
187
Goody, 2000:15.
188
Rattray, 1923:81ss.
189
Radcliffe-Brown e Forde, 1950.
190
Coquery -Vidrovitch, 1997:95
191
Jacobson 1967,1977; McGaffey, 1983.
192
Hilton, 1983.
193
Ver o epílogo em Appiah, 1992: o relato esclarecedor do funeral de seu pai, na sociedade
da corte real dos Axânti matrilineares em Gana.
194
Kenyatta 1938/1965: 3 ss.
195
Hilton, 1983.
196
Iliffe, 1995:131.
197
Oliver e Atmore, 1994: 100.
198
Caldwell, 1985.
199
Cordell e Gregory, 1987.
200
Caldwell, 1985:474-75.
201
Hochschild, 2000: 233.
202
Boahen 1989:95
203
Caldwell, 1985:472.
204
Boserup, 1970: cap.3.
205
Tashjian e Allman, 2002.
206
Coquery -Vidrovitch, 1997.
207
Barnes, 2002; Jackson, 2002.
208
Iliffe, 1995:236.
209
Kitching, 1983:229.
210
Haydon, 1960:92.

85
211
McGaffey, 1983:179.
212
Lugard, 1922/1965: a 592 ss.
213
Coquery -Vidrovitch, 1997:144 ss. 155-56.
214
Spitzer,1972:134-35 n.
215
Philips e Morris,1971:73 n.
216
Natsoulas, 1998.
217
Coquery -Vidrovitch, 1997:206-7.
218
Hicks,1996.
219
Lugard,1922/1965:194.
220
Musisi 2002:104.
221
Suret-Canale, 1971:75 ss.
222
Thobie e Meynier, em 1991: vol. 2, 299 ss.
223
Morris e Reid, 1972:216 ss.
224
Jeater,1993: o 74 ss.
225
Jones, 1994:220.
226
Reid, 1988/93: vol. 1, cap.4.
227
Gledhill,1968:206; Pham Van Bich, 1999:38 ss.
228
Museu Peranakan de Cingapura.
229
Hahang, 1992:27.
230
Goonsekere, 1979:135 ss.; Reid,1988: cap.4.
231
Jones, 1994:177.
232
Boomgaard, 1981:141.
233
Goonsekere, 1979:116; Kasensup, 1956:279.
234
Cannell, 1999:66.
235
Geertz, 1961:55.
236
Spiro, 1977:122.
237
Spiro, 1977:154; Hahang, 1992:46-47.
238
Xenos e Gultiano,1992:28-29.
239
Cady, 1958:61.
240
Wichiencharoen e Netisastra, 1968.
241
Barmé, 1999.
242
Wichiencharoen e Netisastra, 1968.
243
Para uma análise maravilhosa do romance e de seu destino nas traduções inglesas, ver B.
Anderson, The Spectre of Comparisons (London, Verso, 1998: cap. 10 e 11). Rizal, que é lembrado e
reverenciado como "o primeiro filipino", foi executado pelos espanhóis em 1896. Os frades lascivos do
romance de Rizal não eram apenas um tema padrão anticlerical de um país católico. Em seu início, o
moderno nacionalismo das Filipinas deveu muito a uma cisão e a um conflito peculiares dentro da
Igreja Católica. Por causa da escassez de padres comuns, as paróquias filipinas há muito vinham
sendo preenchidas por frades das ordens religiosas, principalmente pelos franciscanos e
dominicanos, fora da linha de comando episcopal normal. Como os bispos começassem a recrutar
padres nativos, a disputa eclesiástica adquiriu contornos étnicos. Com o apoio dos governadores
gerais espanhóis conservadores, os frades mantiveram vantagem. A contagem regressiva para o
levante dos anos 1890, começou com a execução, em 1872, de três padres filipinos, acusados de
sedição. Entre os que acreditavam em sua inocência estava o arcebispo, que se recusou a
excomungá-los e, pelo contrário, fez os sinos dobraram pelos executados..
244
Javillonar, 1979.
245
Cannell, 1999:63 ss.
246
Wang, 1991:4 ss.
247
Stoler, 1996:218.
248
Ricklefs, 1981:119, 147; Stoler, 1996, o 1997:199, 218-19.
249
Hla Aung, 1968; Huxley, 1988.
250
Marr, 1981:83.
251
Ricklefs, 1981:117.
252
Blackburn e Bessell, 1997.
253
Jayawardena 1986:117 ss.
254
Marecek, 2000:144.
255
Jayawardena, 1986:140 ss.; Tiwon, 1996:49 ss.

86
256
A China, de fato, tinha imprensa neste tempo, mas antes do tipo gazeta oficial do que
independente. Devo este ponto à minha colega de Uppsala, Marie-Christine Skuncke, historiadora da
literatura do século XVIII..
257
Osterhammel, 1998: 349.
258
Teng e Fairbank, 1954:20.
259
Miyoshi, 1979:76.
260
Li Suchang, 1988/1901: 20-21.
261
Beasley, 1990:28.
262
Seavers, 1983:15.
263
Seavers, 1983:22.
264
Outra parte desta política, digna de nota, foi a inclusão de cinco moças na importante
missão de representação associada a estudos de Iwakura nos Estados Unidos e na Europa em 1871-
73 (Sievers,1983:12)..
265
Noulte e Hastings, 1991:157-58.
266
Miyoshi, 1979:167 ss.
267
Hane, 1984:97.
268
Seavers, 1983: cap.2; Hane, 1984.
269
Seavers, 1983; Mackie,1998:129.
270
Fukuzawa, citado em Pyle, 1998: 101.
271
Pyle,1998:109.
272
Citado em Hirakawa, 1998:74-75.
273
Hayami e Ochiai, 1996.
274
Seavers, 1983:116.
275
Kono,1970:81.
276
Hayami e Ochiai, 1996: figuras 5 A-B.
277
Hendry, 1981:23.
278
O texto legal usado aqui é uma tradução inglesa contemporânea por J. Jönholm, um
advogado alemão em Tóquio, (1898).
279
A condenação genérica do código de família Meiji, "A esposa não tinha nenhuma
capacidade legal e estava listada como 'inc ompetente' no Código Civil", formulada por Hiroshi Oda,
professor da cátedra Sir Ernest Satow de Direito Japonês na Universidade de Londres (Oda,
1992:232) não se justifica absolutamente.
280
Pyle, 1998; Thomas, 1998:125.
281
Como escreveu Hozumi, o reitor neoconfuciano da Escola de Direito de Todai: "O
ancestral de meus ancestrais é a Deusa do Sol. A Deusa do Sol é a fundadora de nossa raça e o
trono é a casa sagrada de nossa raça." (Pyle, 1998:126).
282
Seavers, 1983: cap.4.
283
Hamilton, 1990
284
Bodde e Morris, 1967:38.
285
Fei,1939: cap.III; Wolf,1985; Zang,1993:41.
286
Fei,1939: 52.
287
Wolf e Huang,1980.
288
Fei,1939:53; Wolf e Huang,1980:135; Zang, 1993:38.
289
Chiu,1965:32.
290
Tai Yen-hui, 1978:90; Wolf e Huang, 1980:185.
291
Chiu, 1965:61ss.
292
Chiu, 1965: 70-71.
293
Tai Yen-hui, 1978.
294
Bernhardt, 1996:52.
295
Hamilton,1990; Bernhardt,1996.
296
Spence,1990:146; Dikötter,1995:14 ss.
297
Wang, 1998:35.
298
Buckley, 1993: documento 74.
299
Mais informações em Ebrey, 2003: cap.9.
300
Croll, 1990:51.
301
Ono, 1989:42-43; Wang, 1998:34 ss.
302
Teng e Fairbank,1954:157.
303
Buckley, 1993: documento 74 b.
304
Dikötter, 1995: 18-19).

87
305
Makdisi, 1971:2.
306
Keddie, 1991.
307
Goode,1963:104.
308
Baron, 1991:285.
309
Pearl, 1979:108-9.
310
Keddie, 1991; Barakat, 1993:110.
311
e.g., Marcus, 1989: cap.5.
312
Keddie,1991:3.
313
1994/1717:71.
314
al-Jabarti, 1979/1798-1801:320-21, 366
315
Baron, 1991:281-82.
316
Eyrumlu, 2001:345.
317
Botiveau, 1993: cap.4.
318
Botiveau,1993:145,195n.
319
Baron, 1991.
320
Taymuriya,1991: 125 ss.
321
Badran e Cooke, 1990: XXX-XXI romano
322
Mitchell, 1988:108; Beasley, 1990:89.
323
O livro de Samuel Smiles, Self-Help with Illustrations of Conduct and Perseverance (Auto-
Ajuda com Exemplos de Conduta e Perseverança), que apareceu pela primeira vez em Londres, em
1859, foi um tratado pedagógico de individualismo liberal tremendamente bem sucedido, cheio de
exemplos anedóticos sobre uma grande variedade de áreas: invenção industrial e
empreendedorismo, arte, ciência, façanhas militares dos comandantes imperiais britânicos, etc. Ele
foi escrito principalmente para os jovens das ambiciosas classes trabalhadora e média vitorianas. Na
introdução, sugere-se também algo que hoje chamaríamos uma "teoria do desenvolvimento",
menosprezando a importância das instituições, das leis e da nacionalidade e enfatizando, ao
contrário, a assiduidade, a energia e a virtude dos indivíduos da nação. Foi esta teoria do
desenvolvimento que atraiu leitores asiáticos e norte-africanos..
324
Mitchell, 1988:110, 198 n.
325
Enqinün, 2000.
326
Emin, 1899/1928.
327
Sharabi, 1970:92 ss.; Hourani, 1983:164 ss.; Baron, 2000:148 ss.
328
Badran e Cooke, 1990:352.
329
Davison, 1990: cap.9.
330
Fazlhashemi, 1999; Eyrumlu, 2001.
331
Eyrumlu, 2001:339 ss.

88

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