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Mais que resíduos, mais que biogás.

A frase “da cana tudo se aproveita” já deixou de ser jargão para se tornar realidade
disponível para todas as usinas do setor. Antes tratados como resíduos, a vinhaça, a
torta de filtro, a palha e o bagaço, hoje são na verdade subprodutos utilizados como
fertilizantes e como insumos de outras indústrias como a do próprio etanol (de
segunda geração), da celulose, dos plásticos e a do biogás.
Dentre esses usos, a produção de biogás vem ganhando destaque ao longo dos últimos
anos e já se tornou comum vermos notícias de grandes empresas que buscam tornar
seus produtos e processos mais verdes, substituindo o uso de combustíveis e
derivados fósseis por biogás ou biometano. Indústrias automobilísticas como a
Volkswagen (1) e a Scania (2), de fertilizantes como a Yara (1), de alimentos como a
Liane e suplementação animal como a fábrica de levedura da Yes (3) até mesmo as de
combustíveis fósseis como a Petrobras (4) são exemplos pioneiros nessa busca por um
mercado livre de carbono.
O biogás é a mistura de gases obtida pela degradação biológica da matéria orgânica na
ausência de oxigênio. De forma simplificada, podemos dizer que tudo o que apodrece
pode gerar biogás. Por ser um processo natural extremamente adaptado, ele ocorre
nas mais diversas condições. Claro que a aplicação industrial desse processo exige
muito mais do que deixar o resíduo degradando em um lugar, mas falaremos disso
depois.
Essa mistura é composta principalmente de metano (CH 4) e dióxido de carbono (CO2),
geralmente saturado em água e apresentando outros contaminantes (principalmente
H2S). Sendo assim, o biogás precisa ser primeiramente purificado (remoção de água e
H2S) para ser utilizado seja diretamente em caldeiras (baixa eficiência e
aproveitamento energético) ou em motogeradores. Após um processo conhecido
como upgrade (remoção do CO2), o biogás torna-se o biometano – um gás semelhante,
substituto e intercambiável com o gás natural – que pode substituir os combustíveis
fósseis como gasolina, GLP e diesel.
Neste ponto já é possível falar das muitas possibilidades de arranjos para o biogás. Por
ser armazenável e gerar energia despachável, ele pode ser combinado com energias
intermitentes como a solar e a eólica e viabilizar ainda mais o uso destas. No caso de
combustíveis, já que o biometano é um excelente substituto ao diesel, em uma
dobradinha com o etanol tornaria uma frota de veículos leves e pesados carbono
neutra.
E falando em substituição ao diesel, o momento também é ideal para o biogás. Já
existem disponíveis tratores (5) e caminhões de diferentes especificações (6) (7),
alinhando potência e desempenho dos veículos à diesel com a economia e a pegada
zero carbono do biometano.
Entretanto, não é apenas no seu produto principal que o biogás é revolucionário. O
coproduto da biodigestão, o digestato – material que passou pelo processo de
biodigestão anaeróbia – apresenta muitas características positivas. O composto
biodigerido apresenta os mesmos teores de nitrogênio, fósforo e potássio que o
resíduo original, ou seja, não há perdas no seu poder fertilizante; o que é consumida
no processo de biodigestão para gerar o biogás é a matéria orgânica compostável, que
seria degrada e perdida no campo de qualquer maneira. A diferença aqui é que
quando a degradação ocorre no campo, esse processo primeiramente retira nutrientes
do solo, atrasando o desenvolvimento das plantas. Ao contrário, quando o digestato é
aplicado, ele já começa imediatamente a fornecer nutrientes para a cultura e pode
acelerar o crescimento. O digestato tem ainda um maior potencial de agregar
nitrogênio ao solo (8), e promover sua recuperação e a fixação de carbono (9).
Em meio a esse clima de empolgação, é preciso uma breve pausa para reflexão.
Precisamos olhar para o passado e aprender com as suas lições. Não é a primeira vez
que o biogás aparece em cena: tanto na década de 1980 (à época da crise do petróleo
e do projeto da Emater/PR, que instalou mais de 3.000 pequenos biodigestores no
país) quanto no início nos anos 2000 (em virtude do mercado de crédito de carbono)
vimos projetos nessa área surgirem e poucos seguirem adiante. O que seria diferente
dessa vez? Destacamos aqui alguns pontos.
Primeiramente, o quadro geral da necessidade de diminuição da dependência da
matriz fóssil, tanto em termos econômicos e de disponibilidade (veja crise do gás na
Europa) quanto no aspecto ambiental. Fontes renováveis de energia nunca foram tão
buscadas e necessárias.
Em segundo lugar, o ambiente regulatório favorável, que definiu de maneira clara as
características do biometano e sua equivalência e intercambialidade com o gás natural,
além do novo marco regulatório do gás natural no Brasil que cria um mercado
dinâmico com mais investimento e infraestrutura.
Por último e não menos importante, a existência de tecnologias para a produção de
biogás já adaptadas e comprovadas para os subprodutos da cana, torta, vinhaça e
palha. E é aqui que a escolha do produtor faz toda a diferença. Como citado
anteriormente, por se tratar de um processo natural, o biogás pode ser produzido em
qualquer condição, assim como qualquer fruta deixada de lado irá fermentar. Porém,
do mesmo modo que a fermentação industrial é muito diferente de uma fruta
esquecida, assim é a biodigestão em escala. Para garantir o atingimento do potencial
de produção de biogás do setor, garantir os contratos de fornecimento e viabilizar os
projetos é preciso tecnologia! Precisamos de processos que tenham monitoramento e
controle das variáveis industriais como qualidade e quantidade de alimentação de
resíduos, temperatura, pressão, agitação e retirada de biogás dos biodigestores para
que assim não sejamos simplesmente passageiros de um processo que funciona ou
não independente da nossa intervenção.
Se o presente é bom, o futuro próximo é ainda melhor para o biogás. Sua semelhança
com o gás natural permite que utilizemos o biogás como matéria-prima para a
indústria química, substituindo hidrocarbonetos e derivados por alternativas verdes e
renováveis. Hidrogênio (10), combustível de aviação, metanol, DME e vários outros
produtos podem ser produzidos a partir do biogás.
Muito mais do que resíduos, torta de filtro, palha e vinhaça são matérias-primas para a
geração de biogás – e muito mais que biogás, um novo mundo de produtos verdes e
derivados de hidrocarbonetos que apenas a escala da indústria da cana no Brasil e a
tecnologia industrial de produção de biogás disponível é capaz de realizar.

1 - https://www.udop.com.br/noticia/2022/04/27/joint-venture-raizen-geo-biogas-
investe-em-biometano.html
2 - https://forbes.com.br/forbesagro/2022/10/raizen-fecha-contrato-para-fornecer-
biometano-a-fabrica-da-scania-em-sp/
3 - https://www.novacana.com/n/industria/usinas/cocal-detalha-projeto-biogas-
parceria-geo-energetica-planos-futuro-250122
4 - https://www.cnnbrasil.com.br/business/petrobras-e-raizen-assinam-acordo-para-
avaliar-potenciais-negocios-em-biometano/
5- https://summitagro.estadao.com.br/sustentabilidade/trator-movido-a-biometano-
chega-ao-brasil/
6 - https://estradao.estadao.com.br/caminhoes/iveco-apresenta-o-hi-way-movido-a-
biometano-e-gas-natural-no-brasil/
7 - https://epbr.com.br/agronegocio-impulsiona-lancamento-de-motores-a-
biometano-no-brasil/
8 - https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/elsc.201100085
9 - https://cibiogas.org/noticias/o-papel-do-digestato-na-recuperacao-de-solos-e-
fixacao-de-carbono/
10 - https://globorural.globo.com/Noticias/Agricultura/Cana/noticia/2022/05/brasil-
produz-hidrogenio-verde-partir-da-cana-de-acucar-em-feito-inedito.html

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