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Revista Sobre Ontens, Abril-Junho, v.

2, 2020

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Revista Sobre Ontens, Abril-Junho, v.2, 2020

Sobre Ontens, Abril-Junho, 2020


www.revistasobreontens.site
ISSN 2176-1876
Os Artigos presentes nesse número foram recebidos entre Março à Maio de 2020, aprovados e
publicados na edição Abril-Junho.

Editorial

EDITORES
Prof. André Bueno [UERJ] (Coordenador da Revista)
Prof. Dulceli Tonet Estacheski [UFMS]
Prof. Everton Crema [UNESPAR]

COMISSÃO CIENTÍFICA
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Prof. Carlos Eduardo Costa Campos [UFMS]
Prof. Gustavo Durão [UFRRJ]
Prof. José Maria Neto [UPE]
Prof. Leandro Hecko [UFMS]
Prof. Luis Filipe Bantim [UFRJ]
Prof. Maria Elizabeth Bueno de Godoy [UEAP]
Prof. Maytê R. Vieira [UFPR]
Prof. Nathália Junqueira [UFMS]
Prof. Rodrigo Otávio dos Santos [UNINTER]
Prof. Thiago Zardini [Saberes]
Prof. Vanessa Cristina Chucailo [UNIRIO]
Prof. Washington Santos Nascimento [UERJ]

COMISSÃO EDITORIAL
Prof. Aristides Leo Pardo [UNESPAR]
Prof. Caroline Antunes Martins Alamino [UFSC]
Prof. Jefferson Lima [UDESC]

Periódico produzido e promovido pelo

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SUMÁRIO
ESTADÃO, USP E OS INTELECTUAIS FRANCESES: A COMEMORAÇÃO DO CINQUENTENÁRIO DA
UNIVERSIDADE E LEMBRANÇA INTELECTUAL PAULISTA DE FERNAND BRAUDEL NO
SUPLEMENTO ‘CULTURA’ por Alicy de Oliveira Simas .................................................................. 5
FLORIANÓPOLIS E OS IMPACTOS DO “MILAGRE ECÔNOMICO” NAS PÁGINAS DE “O ESTADO”
(1970-1980) por Daniel Henrique França Lunardelli ................................................................... 17
SOBRE A COMPETÊNCIA HISTÓRIA NA BNCC E O ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA AFRICANA E
AFRO-BRASILEIRA: CONSIDERAÇÕES por Jéssica Pereira Couto ................................................. 48
_Toc43379446OS BENZIMENTOS COMO OFÍCIO DE FAMÍLIA: ENTRE PERMANÊNCIAS,
RUPTURAS E A BUSCA POR UMA PRÁTICA “TEMPORAL” por Juliani Borchardt da Silva ........... 65
HISTÓRIA DAS MULHERES E NOVOS PROTAGONISMOS: A EMANCIPAÇÃO FEMININA EM
“PIGMALEÃO” (1913) E “TOTALMENTE DEMAIS” (2015/2016) por Marcos de Araújo Oliveira 85
INVENÇÃO DO SEXO/GÊNERO E A CRÍTICA DO SUJEITO DO FEMINISMO por Maria Cristina
Kirach e Rosemeri Moreira.......................................................................................................... 98
O PERCURSO DAS PESQUISAS NO BRASIL SOBRE OS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA por
Mariana de Sá Gaspar e Maria Paula Costa .............................................................................. 110
INDUSTRIOSOS EM PIRATARIA: OS GREGOS DO MUNDO ANTIGO por Nelson Rocha Neto .... 120
“A ÁFRICA TEM BEM MAIS HISTÓRIAS DO QUE A GENTE PENSA”: UMA PERSPECTIVA DE
ENSINO DE HISTÓRIA A PARTIR DO DIÁLOGO COM OS PRÓPRIOS SUJEITOS por Willian Felipe
Martins Costa ............................................................................................................................ 131

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INDUSTRIOSOS EM PIRATARIA: OS GREGOS DO MUNDO


ANTIGO
Nelson Rocha Neto

Resumo: O presente texto consiste numa breve apresentação a respeito


da pirataria na Grécia Antiga como prática histórica determinante na
formação da política, economia e sociedade. Portanto, compreenderemos
a pirataria grega através da mitologia, da produção literária e dramática,
analisando a ambiguidade do restrito conceito que oferecia ascensão
social pela promessa de riqueza que a rapina marítima proporcionava. As
constantes guerras impuseram as cidades-Estado alicerçarem a pirataria
como instrumento de controle dos limites territoriais, financiarem
tecnologias e romperem com as ideias pré-concebidas. Logo, a troca de
experiências entre os povos mediterrânicos, intermediados pelo
madeirame das embarcações, resultou na fundação das pólis, na
organização do comércio, nas inquietações do pensamento
historiográfico, na coletividade e na instrumentalização estatal da pirataria
tornando-se um fenômeno social amplamente difundido. Portanto, a
industriosidade da pirataria grega articulou nos detentores do poder
aparatos repressores que sufocaram os “párias”, carregando a empresa
talassocrática para além das ingerências do conto argonáutico.
Palavras-chave: História Antiga. Pirataria. Sociedade.

Résumé: Cet article consiste en une brève présentation sur le piratage


dans la Ancienne Grèce en tant que pratique historique décisive dans la
formation de la politique, de l'économie et de la société au monde
ancienne. Par conséquent, nous comprendrons la piraterie grecque par
moyens de la mythologie, la production littéraire et dramatique, en
analysant l'ambiguïté du concept restreint qui offrait la promesse de
richesse d`une ascension sociale laquelle la proie maritime fournissait. Les
guerres constantes ont obligé les Cités-États à établir le piratage comme
un instrument pour contrôler les limites territoriales, financer les
technologies et rompre avec les idées préconçues. Par conséquent,
l'échange d'expériences entre les peuples méditerranéens, intermédiaire
par le bois des navires, a abouti à la fondation de la polis, à l'organisation
du commerce, aux préoccupations de la pensée historiographique, à la
collectivité et à l'instrumentalisation étatique de la piraterie, devenant un
phénomène social répandu. Par conséquent, l'industrie de la piraterie

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grecque s'est articulée dans les dispositifs répressifs des détenteurs du


pouvoir qui ont étouffé les «parias» exclus, transportant la société
thalassocratique au-delà des interférences du conte des argonautes.
Mots-clés: Histoire Ancienne. Piraterie. Société.

Durante o mundo antigo uma palavra grega considerada extensa e áspera


descrevia exclusivamente a ação do pirata: katapontistés [aquele que se
lança ao mar]. Conceito não muito usual na literatura grega, embora
utilizado para especificar piratas em oposição a bandidos ou saqueadores
em geral. Logo, os termos gregos leistés e peiratés serviram como
sinônimos para denominar o salteador que esquadrinhava novos desafios.
[De Souza, 1992]. Conjuntamente a concepção heróica da pirataria foi
questionada desde os tempos homéricos, fazendo distinção entre heróis e
piratas, levantando debates sobre a sua legalidade. Antes do colapso da
Idade do Bronze uma tormenta dos “povos do mar” no Mediterrâneo
Oriental, por volta de 1200 a.e.c., rebentou sociedades tribais que
perpetravam saques pelo mar. Devido às más colheitas ou períodos de
escassez pesqueira, estes agricultores e pescadores contrabalanceavam o
prejuízo desapossando embarcações, mas retornavam geralmente para os
seus ofícios de origem. Apercebermo-nos destes indícios do contributo da
pirataria sazonal ou episódica, não apenas na Europa, mas em toda a costa
litorânea asiática ao longo da Antiguidade.

Na encruzilhada das rotas marítimas, a ilha de Creta edificou a sua história


com os povos das outras margens, vínculos às vezes pacíficos, às vezes
hostis. O emblemático mar Mediterrâneo revelou o caminho que permitiu
os encontros, as representações, a vereda de união e separação entre as
sociedades, pois “Creta foi a diretriz da região da Grécia na época do
Bronze. Em meados do segundo milênio, Creta conheceu o apogeu da
chamada Talassocrassia minoense, ou seja, o poder marítimo de Creta
influenciava toda a região”. [Funari, 2004, p. 15]. A impetuosidade minóica
e dos povos circundantes despertou ao longo dos séculos adaptações dos
poemas e relatos que influenciaram toda a Grécia com ensinamentos
sobre as viagens e o exílio, também propagou o temor horrífero da guerra
marítima, o estandarte da busca por escravos e espólios, temas associados
às ideias de infortúnio e sofreguidão. Quase todos narram os feitos de
piratas, escravos, naufrágios, guerras e morte, preservando a memória de

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um passado que remonta aos tempos em que o Mediterrâneo era o mar


de todos os perigos.

Destarte, o papel social delinquencial do bandoleirismo configura como


um modo de poder pessoal. Raramente converteu-se para um modelo
institucionalizado de supremacia estatal. O bandoleiro reflete a
autoafirmação do indivíduo na condição de “protesto individual”. Assim, o
tronco da descendência do poder individual adquirido pelo homem
anterior ao Estado baseia-se no carisma, na força bruta e nos laços
pessoais. Segundo o Estado, as formas de poder pessoal antagonistas
foram consideradas espúrias e um regresso à anarquia pré-estatal. Ao
esboçarmos as “reservas arcaicas” da pirataria na sociedade grega antiga,
encontraremos vestígios em graus díspares de preponderância e natureza
do Estado perante a sociedade. A anarquia como antecessora da formação
do Estado foi estereotipada no episódio em que Teseu chefiou a
unificação mítica da Ática e fundou o Estado. Embora este reconheça que
uma sociedade de delinquentes obedeça às suas próprias leis, a justiça
deve ser o valor ético motriz para a concórdia das sociedades humanas
civilizadas, distinguindo-os das sociedades primitivas. [Shaw, 1992].

Em meados do século XIII ou XII a.e.c. uma agitação abateu-se sobre


Micenas, persuadindo o seu rei a se aventurar além-mar. Supostamente,
os assentamentos micenianos progrediram para outras regiões ao longo
da costa, impulsionados provavelmente pelas condições climáticas
adversas, moléstias e fome. A pilhagem de outras culturas como, por
exemplo, minoanos e hititas pelo mar Egeu, projetou a organização das
tropas micenianas. [Mersey, 2005]. Dentre as inúmeras contendas
travadas pelos aqueus dos tempos palacianos, a que se preservou na
memória foi protagonizada por gregos e troianos, cujos embates foram o
resultado das tentativas gregas em subjugar o Mar Negro devido à
localização estratégica da cidade troiana na entrada do Helesponto
[Dardanelos], a porta para o domínio e a vigilância de toda a navegação
desde o Ponto Êuxino. [Domínguez; Pascual, 2006].

Inicialmente, a pirataria era um isolado modelo parasitário de sustento


cujo aquirimento de propriedades e benefícios provinham rigorosamente
da usança do abuso da opressão e intimidação. Do mesmo modo esta
circunstância do bandoleirismo quanto “economia de violência” era
frequentemente difundida na Antiguidade. Contudo, os gregos

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conservavam idealizações “moderadas” ou ponderáveis a respeito da


pirataria, uma atividade de carreira razoável. Platão e Aristóteles
declaravam que o banditismo era um dos ramos dos “modos de vida”
essenciais do homem, ato interligado com o cultivo da terra, o pastoreio e
a caça. Porém, Platão atribuiu ao bandoleirismo um imoral tipo secundário
de modo de vida alicerçado na caça. Essa natureza irresoluta transitou
entre o mundo arcaico e o novo Estado emergente. Segundo as leis
atribuídas ao estadista Sólon, o Estado resguardava em seus domínios
setores de influência autônoma, com a prudência de direcionar a eclosão
da violência por elas designadas para outros territórios. Atenas, amparada
pelo porto do Pireu, favoreceu suas “sociedades de piratas” organizadas
com o intuito de combater outras povoações. O “conceito virtuoso” da
pirataria foi reconhecido pelo historiador Tucídides, que embora crítico do
ofício, “admitia que no seu tempo existiam comunidades gregas para as
quais a pirataria era uma ocupação totalmente respeitável, que, longe de
ser vergonhosa, era portadora de uma reputação honrada”. [Shaw, 1992,
p. 253]. Também, Xenofonte reconhecia a legitimidade da pirataria
quando esta fazia parte de uma guerra, portanto esta “era um
instrumento normal da política, que os gregos usavam em pleno e com
frequência”. [Finley, 1984, p. 55].

A inscrição datada mais antiga do vocábulo peiratés encontra-se grafado


no decreto em homenagem ao estratego Epikhares na cidade de
Rhamnous, na Ática. Este registro imputa ao general às providências
defensivas realizadas durante a guerra cremonidiana e a negociação do
resgate de prisioneiros vítimas da piratagem. Igualmente, na ilha de
Amorgos, há uma descrição sobre uma incursão noturna pirata, a captura
dos habitantes e como dois cidadãos persuadiram Sokleidas, o capitão dos
piratas. [De Souza, 1992]. Segundo Heródoto, a guerra persa foi
deflagrada como obra de piratas, cujas depredações alastravam-se entre
os gregos da Ásia e cidades helespontinas. Portanto, justifica a
engenhosidade dos sâmios com sua frota de marinheiros
consideravelmente ameaçadora, uma das protagonistas dentre as ligas
comerciárias gregas que edificaram três importantes obras helenísticas ao
longo do século VI a.e.c.: o santuário Heraião, o Aqueduto de Eupalinos e
“um quebra-mar que serviu de base para a construção de um porto”, o
Pitagorião. [Hughes-Warrington, 2002, p. 185]. Deste modo, Tucídides
contextualiza a presença dos piratas e o seu prestígio pré-conflito
peloponésio:

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 “[...] os helenos de antigamente, bem como os bárbaros


estabelecidos no litoral do continente ou nas ilhas, ao
intensificarem com suas naus as relações marítimas passaram a
praticar a pirataria [...] Atacando cidades desprovidas de muralhas e
constituídas, de fato, de um agrupamento de povoados, eles as
pilhavam, obtendo assim a maior parte de seus recursos, pois
aquela atividade ainda não era considerada desabonadora, e até
proporcionava um renome de certo modo lisonjeiro. [...] Também
no continente aqueles homens se saqueavam mutuamente [...] o
costume daqueles povos continentais de portar armas é uma
sobrevivência de seus antigos hábitos de pilhagem”. [Tucídides,
2001, p. 4].

Nas estreitas águas do Mediterrâneo floresceram entrepostos


multiculturais, modelos de confrarias como as fenícias, gregas, cretenses,
cilícias, etc., forjadas por pioneiros marinheiros-comerciantes-piratas que
açoitaram os mares entre a Europa e a Ásia, transportando mercadorias e
despojando as populações costeiras. Também, as narrativas imortalizadas
pelos aedos, poetas-cantores que registravam as memórias das suas
sociedades em uma pátria de águas, projetavam atos que envolviam a
pirataria num cenário de deuses conflitantes que manifestavam a
predileção ou descontentamento por algum herói. Habitavam as
profundezas marítimas, morada encantatória dos deuses e dos mitos, pois
“o pirata não enfrentava apenas marinheiros e soldados. Tinha que se
haver com criaturas mais coriáceas, dragões, tritões, quimeras ou sereias,
talvez lêmures ou harpias”. [Lapouge, 1998, p. 30].

Cabe-nos aqui uma breve reflexão sobre o mito, cujos homens


transmitiam as maneiras de racionalizar e justificar os eventos, fenômenos
e etc., lançando mão de incidentes ou agentes sobre-humanos para
interpretá-los. A princípio este conceito não se relacionava a alguma ideia
falaciosa ou ficcional, denotava expressões como: ‘palavra’, ‘discurso’,
‘conversação’, ‘história/narrativa’. Para os aedos, personificados em
Homero, não se distinguia a história verídica da falsa. Porém, ao longo do
tempo o vocábulo foi atrelado a ideia de ficção em oposição à veracidade
dos fatos. Embora compreendamos o mito como uma produção do
imaginário coletivo, associado a uma realidade distinta por um elemento

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de singular consideração dentre o grupo social, para os povos da


Antiguidade este era incontestável, admitido literalmente. O relato mítico
conduzido pela poesia épica enfraqueceu somente por volta do século VI
a.e.c., no clarear do espírito investigativo, científico e pela miscelânea
cultural difundida ao longo das guerras greco-persas. [Ferreira, 2012].

Contudo, os primórdios do rompimento com a transmissão de uma única


interpretação a respeito das origens mitológicas gregas podem ser
encontrados nos pioneiros “escritos em prosa” que procuravam englobar
os díspares pontos de vista do passado para além dos significados
fantásticos. Esta tentativa foi atribuída aos logógrafos dos séculos VI e V
a.e.c., que examinavam o contexto social, racionalizando sobre as origens
de toda Hélade ao mesmo tempo da propagação da filosofia e da ciência.
Tendo o seu nascimento na Jônia e dialogando com as outras áreas do
saber “os logógrafos compilam o que ouvem da tradição oral, da poesia
épica, dos costumes locais, dos relatos de viajantes e de marinheiros”.
[Tétart, 2000, p. 11].

Na alvorada da pirataria, a fábula dos Argonautas ilustra o descobrimento


de novas rotas marítimas, a busca de riqueza e do aparato tecnológico.
Conforme a narrativa lendária micênica, Argos foi a embarcação que
transportou cerca de cinquenta dos maiores heróis de toda Grécia nos
anos antecedentes a Guerra de Tróia. Seu comandante, Jasão da Tessália,
nomeou Argonautas a tripulação cuja nau levava o nome de seu piloto e
construtor, com o intuito de explorar a Cólquida [atual República da
Geórgia] sob a incumbência de encontrar o “velo de ouro”. Para o
historiador Apiano de Alexandria, a lenda referente ao “velocino de ouro”
estava relacionada com a veracidade. Segundo o mito heleno, o Reino da
Cólquida era abundante em “areias douradas”, cujos habitantes svans
desenvolveram uma técnica de extração de ouro fixado nos cascalhos
utilizando vasos específicos de madeira e couro de ovelha. Encontramos
menções a viagem dos Argonautas nos clássicos poemas e peças teatrais:
A Odisseia de Homero, Medeia de Eurípedes e As Argonáuticas de
Apolônio de Rodes. Porém, de acordo com as produções literárias e
científicas, o mito do “tosão dourado” não estava apenas relacionado à
abundância de metais preciosos encontrados na Cólquida. Suas
interpretações apontam quatro hipóteses: retratação do conhecimento da
extração de ouro; anúncio referente ao poder simbólico governamental;

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marca distinta da magnificência tecnológica e ostentação de uma


ovinocultura de pedigree distinto. [Okrostsvaridze, 2014].

Provavelmente as canções-poemas oriundas do país da “areia


resplandecente” eram difundidas em toda Hélade e a fama da suposta
riqueza do rei Eetes despertou a cobiça dos Argonautas. Assim, na região
oriental do Mar Negro propagava-se a cultura dos povos colcos ao longo
da Idade do Bronze. Portanto, sua urbanização e desenvolvimentos
tecnológicos utilizados para a fundição de metais datam de séculos
anteriores ao estabelecimento grego em sua costa e domínio da técnica
europeia. Durante os séculos, historiadores gregos e romanos como
Estrabão, Plínio – o velho e Apiano de Alexandria opinaram sobre o
principal objetivo dos Argonautas: obter as técnicas de mineração do ouro
incutido aos cascalhos dos rios da Cólquida, do qual, seu resultado final
assemelhava-se a lã de um cordeiro. Provavelmente a narrativa
argonáutica remonta a primeira grande expedição marítima aqueia de
característica pirática.

As expedições marítimas e de rapinagem permitiram aos helenos difundir


sua cultura pelo Mediterrâneo, além de absorver e integrar influências
orientais. Decerto os antigos não concediam ao ouro a mesma cobiça do
homem moderno. Porém, remetia-o ao lendário rei Midas da Frígia, aos
aposentos reais ou a alquimia. Ao longo dos séculos o reluzente dourado
oriental dissipou a crença de que a terra era de propriedade divina.
Embora o feitiço do cabedal tenha exercido domínio dentre os piratas, o
fator humano sempre foi sua opulenta prosperidade: “capturavam os
homens, as mulheres e as crianças para vendê-los, por exemplo, na ilha de
Delos, que tinha o papel de mercado de escravos”. [Lapouge, 1998, p. 31].
Este ato remete-nos ao IV canto da Ilíada, quando Homero descreve a
convocação inflamada pelos Átridas para com seus exércitos e o destino
aos cativos troianos: “Nada afrouxeis, que Júpiter, Aquivos, traidores não
defende: os que infringiram. O pacto e a fé serão de abutres cevo; Ílio
assolada, filhos seus e esposas. Breve em nossos baixéis
transportaremos”. [Homero, 2009, on-line].

Ao longo do período arcaico os gregos obtiveram êxitos em cidades


asiáticas, beneficiados pelo comércio. Desta forma, o fluxo de culturas
procedentes da contiguidade dos marinheiros e negociantes com o Egito e
a Mesopotâmia, enriquecia as narrativas, tradições e conhecimentos

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técnicos reproduzidos pelos povos. [Funari, 2004]. Segundo a tradição


épica, este contato foi possível após a conquista da cidade lendária de
Tróia, cujos registros arqueológicos apontam para a cidade turca de
Hissarlik. Seus pilares econômicos eram três: “lã, moluscos e cavalos. Era
provavelmente uma sociedade rica, com muitas classes abastadas e
protegida por um exército bem equipado. [...] os ataques se reproduziam
como um aspecto constante.” [Mersey, 2005, p. 86-87].

Durante as contendas havia a necessidade de invocar a glória dos heróis


da guerra troiana. A fama do saqueador Aquiles, do pirata Odisseu ou do
vingador Agamêmnon consolidador do desejo da desforra que ecoou até o
limiar das guerras médicas. Uma destas consequências foi a origem do
vilarejo de Tenea, em Corinto. Segundo Aristóteles, os teneanos eram
originários dos prisioneiros de guerra carregados pelas embarcações de
Agamêmnon. Um grego asiático que contemplou a migração para Corinto
assegurava que havia um santuário de Apolo em Tenea. [Frazer, 1898].
Dessa forma o viajante Pausanias se referiu ao pequeno povoado de
Tenea "cujos moradores dizem que são troianos, e dizem que os gregos os
fizeram prisioneiros de guerra em Tenedos, e que o próprio Agamêmnon
lhes deu o lugar que ocupam hoje, e por isso honram especialmente ao
deus Apolo." [Pausanias, s/d, on-line]. Assim, encontramos ao longo da
história assentamentos populacionais que se constituíram pacificamente
por nativos que se aliaram aos piratas. Noutras vezes estas chusmas
piráticas se impuseram pela violência subjugando os habitantes
autóctones, transferindo povoados e absorvendo culturas.

Por volta da segunda metade do século VI a.e.c., a pirataria grega


conservou o seu regulamento durante a regência do tirano de Samos,
Polícrates, “possuía cem navios de cinquenta remos e mil homens de
equipagem” [Heródoto, 2006, p. 243], apoderando-se dos domínios do
mar Egeu. Suas investidas contra as povoações de Melita e de Lesbos
originaram avultados espólios. Edificou Samos com magnificência através
do mecenato, incomum neste tipo de confraria. Também professou a
guerra pirática e manobras militares no Egito. Contudo, diante de tanta
prosperidade Polícrates acabou apresado, morto e crucificado como pirata
pelo sátrapa Orestes de Sardes por volta de 552 a.e.c. [Levi, 1991]. Assim,
Heródoto guardou a memória do tirano: “[...] Polícrates ali pereceu
miseravelmente e de uma maneira indigna de sua alta categoria e de sua
grandeza d’alma; [...] Orestes fê-lo perecer de uma maneira que não

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tenho ânimo para narrar, crucificando-o em seguida”. [Heródoto, 2006, p.


286].

Decerto Polícrates, à custa da violência e poderio naval, imputou a Samos


o desbravar da grandiosidade talassocrática grega posterior aos tempos
do folclórico rei Minos. Os pesquisadores J. Labarbe e Reinach
interpretaram o comportamento de Polícrates ao lançar o seu anel de
apreço ao mar como “uma espécie de rito de casamento com o mar,
próprio de uma talassocracia”. Além da renúncia apotropaica, este
artefato também poderia estar ligado a uma maldição. Subsiste, no
entanto, a explicação de que o anel representava a autoridade política do
seu possuidor. [Silva, 1995, p. 61]. No tocante a talassocracia, cada
governante divergia sobre a sua concepção, porém grande parcela
concordava a respeito de um governo baseado na expansão e domínio
ultramarino em um mundo helênico unificado à força. Acalorados debates
tomaram conta da Ática durante o século de Péricles a respeito do
regresso a ruralidade do tempo pré-pisistrático contra a política
talassocrática. Assim, durante o século V a.e.c., o ofício da pirataria
ocupou as populações litorâneas sob regulamentos e instrumentalização
política com o intuito de prejudicar os adversários pontualmente.
Patrulhar as águas significava interceptar piratas estrangeiros e a
manutenção da própria marinharia, persuadindo-a de atos de piratagem
dentro do território grego. [Levi, 1991]. O poeta Ésquilo ponderou sobre
as críticas resignadas e detratoras das expedições navais, referindo-se aos
ataúdes como a debilitada adesão aqueia frente às glórias concedidas pela
política expansionista: “Todos se lembram bem dos que partiram e
pressentem que ao lar de cada um, em vez dos homens idos, voltarão
apenas urnas fúnebres e cinzas”. [Ésquilo, s/d, on-line].

Ademais, o Mediterrâneo constituiu um valhacouto de piratas cujos


conflitos os detentores do poder procuravam supervisionar. Três
elementos sustentaram-nos: violência, estratagema marítimo e aquisição
territorial, distinguindo-os do banditismo terrestre. Na ilha de Ciros, uma
base de piratas do Egeu, localizava-se a ossada de Teseu que despertou
um movimento político ateniense para o seu translado como pretexto
para o controle populacional. Também na região da Lócrida, havia uma
epígrafe sobre a regulamentação da pirataria entre duas cidades. [Levi,
1991]. Portanto, a época dos heróis sobrevivia apenas em relatos
passados e a imortalidade humana perpetuava-se em maior grau

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coletivamente. Todavia, o pirata-mercenário Arquíloco de Paros nos


deixou fragmentos poéticos denunciadores da individualidade pirática no
século VII a.e.c., ironizando os seus comandantes: “Não gosto de um
general muito alto, nem com as pernas abertas, nem de um orgulhoso
com os seus caracóis nem todo enfeitado: que o meu seja pequeno e de
pernas arqueadas, bem firme nos seus pés e todo coração”. [Finley, 1984,
p. 29]. Aliás, desde os tempos antigos as tripulações marítimas foram
sentenciadas pelos deuses à maldição eterna prenunciadora dos espectros
da morte. Imediatamente, a mortalha do pirata converteu-se na própria
água. As glórias dos descobrimentos homenageavam apenas os heróis,
pois aos piratas restavam as reformulações políticas, religiosas e sociais da
empresa talassocrática em naus de escura proa.

Referências
Nelson Rocha Neto é graduado em História e especialista em História
Cultural pela Universidade Tuiuti do Paraná.
E-mail: nelsonrochaneto@gmail.com

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