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MASSADAS, Júlia. Princípios do Direito Ambiental. Rio de Janeiro: FGV, 2023.

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forma que é proibida a reprodução no todo ou em parte, sem a devida autorização.
SUMÁRIO
EVOLUÇÃO E PRINCÍPIOS DO DIREITO AMBIENTAL........................................................................... 5

SURGIMENTO E EVOLUÇÃO DO DIREITO AMBIENTAL EM NÍVEL INTERNACIONAL .................. 5


INCORPORAÇÃO PELA CRFB/88 COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL ..................................... 11
FONTES DO DIREITO AMBIENTAL .................................................................................................. 13
PRINCÍPIOS DO DIREITO AMBIENTAL ............................................................................................ 13
Princípio do meio ambiente ecologicamente equilibrado e direito à sadia qualidade de
vida e ao acesso equitativo aos recursos naturais .............................................................. 13
Princípio da equidade intergeracional .................................................................................. 15
Princípios da natureza pública da proteção ambiental e da obrigatoriedade da
intervenção do poder público ................................................................................................ 16
Princípios do poluidor-pagador e do usuário-pagador ...................................................... 16
Princípios da precaução e da prevenção .............................................................................. 19
Princípio da precaução ...................................................................................................... 19
Princípio da prevenção ...................................................................................................... 26
Princípios da informação e da participação ......................................................................... 29
Princípio da função socioambiental da propriedade .......................................................... 30
Princípio da proibição do retrocesso ambiental ................................................................. 30
Princípio da cooperação: nacional e internacional ............................................................. 31

PROFESSORA-AUTORA ........................................................................................................................ 33

JÚLIA MASSADAS .............................................................................................................................. 33


Formação acadêmica .............................................................................................................. 33
Experiência profissional .......................................................................................................... 33
EVOLUÇÃO E PRINCÍPIOS DO DIREITO
AMBIENTAL

Cada vez mais, o direito ambiental vem ganhando espaço como disciplina autônoma e fator
de preocupação da sociedade, de órgãos reguladores e de empresas no seu processo produtivo.
Todavia, se hoje a importância da preservação ambiental e da limitação de atividades econômicas é
tida como senso comum, cumpre lembrar que nem sempre a questão foi vista dessa forma.
Nesse sentido, o presente curso tem por objetivo abordar a evolução do direito ambiental em
nível internacional, assim como no Brasil, isto é, o surgimento, as fontes, o conceito, a incorporação
constitucional como direito fundamental, os princípios basilares e a autonomia nos dias atuais.

Surgimento e evolução do direito ambiental em nível


internacional
O modelo de organização social pós-revolução industrial viabilizou a exploração de recursos
naturais em escalas cada vez mais amplas. Mediante novas formas de produção em massa, uma
sociedade de consumo se consolidava, contexto no qual a preocupação com os impactos ambientais
não era uma prioridade.
Todavia essa busca desenfreada por desenvolvimento econômico, afirmação sociopolítica e
obtenção de recursos a todo custo ocasionou uma série de desastres, os quais entraram para a história
devido aos seus impactos irreparáveis para a humanidade e para o meio ambiente. Entre eles,
podemos citar as explosões de bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki (Japão, 1945); a
contaminação por dioxina em Seveso (Itália, 1976); o derramamento de petróleo em Amoco Cadiz
(França, 1978); o vazamento de gás em uma fábrica de pesticidas em Bhopal (Índia, 1984); o
desastre nuclear de Chernobyl (Ucrânia, 1986); o derramamento de petróleo no Golfo do México
(2010), entre tantas outras tragédias que poderiam ser mencionadas.
No Brasil, temos a nossa própria parcela de graves incidentes, tais quais a poluição decorrente
de indústria química no município de Cubatão, conhecido como o “Vale da Morte”; a tragédia
social e ambiental decorrente do rompimento de barragens em Mariana (2015) e Brumadinho
(2019) – divisor de águas na gestão ambiental brasileira, levando a um maior rigor na imposição da
Política Nacional de Segurança de Barragens, com a proibição de construções baseadas no método
a montante e previsão de multas de até R$ 1 bilhão em caso de descumprimento de normas de
segurança (Lei nº 14.066, de 30 de setembro de 2020).
Toda essa conjuntura é representativa de um momento histórico que Ulrich Beck
convencionou chamar de “sociedade de riscos”, isto é, uma transição da sociedade industrial clássica
(sociedade de classes), em que a preocupação era com a igualdade para um modelo de sociedade em
que o “desigual” dá lugar ao “inseguro”. Dessa forma, haveria uma mudança na fundamentação social,
que passa a dar mais lugar para o medo. Em outras palavras, trata-se de uma sociedade apoiada
fundamentalmente na busca por soluções para os riscos que se fazem cada vez mais presentes.

Enquanto a utopia da igualdade contém uma abundância de metas


conteudístico-positivas de alteração social, a utopia da segurança continua
sendo peculiarmente negativa e defensiva: nesse caso, já não se trata de
alcançar efetivamente algo “bom”, mas tão somente de evitar o pior. O sonho
da sociedade de classes é: todos querem e devem compartilhar do bolo. A meta
da sociedade de riscos é: todos devem ser poupados do veneno 1.

Segundo Giddens2, a sociedade de risco descrita por Beck seria aquela em que “cada vez mais
se vive em uma fronteira tecnológica que ninguém compreende inteiramente e que gera uma
diversidade de futuros possíveis”. Sociedade essa baseada em grande influência da ciência e da
tecnologia e baseada no “fim da natureza” e no “fim da tradição”. Segundo o autor: “o fim da
natureza não significa um mundo onde o meio natural tenha desaparecido. Significa que atualmente
são raríssimos os aspectos do mundo físico que não sofreram intervenção humana” 3. Isto é, passa-
se a ter um novo tipo de preocupação. Em vez de nos preocuparmos com que a natureza pode
causar a nós, passamos a nos preocupar com o impacto das nossas ações sobre a natureza 4.

1
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2 ed. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: 34,
2011, p. 59-60.
2
GIDDENS, Anthony; PIERSON, Christopher. Conversas com Anthony Giddens: o sentido da modernidade. Trad. Luiz Alberto
Monjardim. Rio de Janeiro: FGV, 2000, p. 142.
3
Ibid., p. 141.
4
Ibid., p. 141-142.

6
Evidentemente, a noção de perigo já existia em outras culturas tradicionais até mesmo na
Idade Média. Todavia a ideia de “risco” parece ser uma concepção mais moderna. Não se trata de
uma sociedade mais perigosa do que outros modos de organização social preexistentes, mas de uma
sociedade com fortes intenções de controlar o futuro. “A ideia de ‘sociedade de risco’ pode dar a
entender um mundo em que se tornou mais perigoso, mas não é necessariamente assim. Trata-se,
antes, de uma sociedade cada vez mais preocupada com o futuro (e também com a segurança),
donde a noção de risco” 5. Nesse sentido, “risco”:

[s]e refere a um mundo que estamos explorando e ao mesmo tempo


procurando normalizar e controlar. “Risco” sempre tem, basicamente,
conotação negativa, já que se refere à possibilidade de evitar um resultado
indesejável; mas também pode ser visto positivamente, no sentido de
tomar iniciativas ousadas diante de um futuro problemático. Os que
assumem riscos com sucesso, seja nas explorações, nos negócios ou no
alpinismo, são alvo de admiração 6.

Tal desejo de controle é fruto de uma mudança de percepção que se deu na modernidade,
ocasião na qual as pessoas passaram a ter maior consciência geral a respeito dos impactos da
tecnologia e do escopo transformativo da ação humana. Desse modo, o poder explicativo das
chamadas “cosmologias religiosas” a respeito dos fenômenos do mundo se esvaziou, abrindo espaço
para as noções de risco e acaso. Desse modo, passou-se a ter um conhecimento construído com base
empírica e pensamento lógico, tendo-se uma denominada reflexividade social moderna7, isto é, um
exame e uma reforma constante das práticas sociais à luz de novas informações sobre as elas, o que
leva a uma alteração constitutiva do seu caráter 8, a partir do que se ocasiona uma “contínua geração
de autoconhecimento sistemático” 9.
Todavia, considerando-se a existência de um frequente desencaixe entre o conhecimento
típico desse sistema de peritos e a atuação dos leigos, a confiança destes naqueles adquire maior
importância em tais ambientes de risco visando à garantia de segurança enquanto proteção contra
perigos 10. A reflexividade baseia-se no reconhecimento da hipercomplexidade da sociedade em que
vivemos, para a qual os instrumentos regulatórios tradicionais se mostram insatisfatórios. O

5
Ibid., p. 142.
6
Id.
7
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Trad. Raul Fiker. São Paulo: Unesp, 1991, p. 49.
8
Id.
9
Ibid., p. 55.
10
Ibid., p. 64.

7
reconhecimento de que não se podem prever todas as ameaças que podem ser causadas pelo
desenvolvimento de uma autorreflexão da sociedade a respeito de si mesma, além de um constante
monitoramento de atividades sociais, sujeitas à revisão diante de novas evidências a partir do avanço
técnico-científico 11. Desse modo, o direito reflexivo é tido como:

[a] capacidade de um sistema tematizar sua própria identidade, de perceber


como, em seu meio operam outros sistemas e relações de interdependência. É
a relação que um objeto tem consigo mesmo. Cada sistema – ou subsistema
– coloca-se a si mesmo no papel de outros sistemas para ver, dessa perspectiva,
seu próprio papel, institucionalizando mecanismos aptos a viabilizar uma
recíproca autolimitação das possibilidades de ação e tendo em vista seus
respectivos valores, seus interesses e suas necessidades. A reflexividade caminha
no sentido de viabilizar a autonomia regulada dos sistemas, permitindo a
maximização de sua racionalidade interna mediante adequados
procedimentos de formação do consenso e tomada de decisão coletiva12 .

No âmbito desse contexto sociopolítico e cultural e diante dos acontecimentos históricos


mencionados, foi-se ampliando nas décadas de 1960 e 1970 a conscientização a respeito da
necessidade de existência de um marco legal que visasse à prevenção de danos ambientais, isto é, da
necessidade de a própria sociedade, de forma reflexiva, impor limites à sua atuação sobre o meio
ambiente e os danos daí decorrentes.
Nos países desenvolvidos, passou-se a desenvolver cada vez mais uma nova percepção de que
atividades humanas poderiam causar riscos para o meio ambiente, os quais nem sempre poderiam
ser antevistos ou evitados. Isso, em conjunto com o exponencial exercício de atividades perigosas,
capazes de ocasionar desastres ambientais e para a saúde humana, tais quais organismos
geneticamente modificados ou clorofluorcarbonetos (CFCs), por exemplo. Em outros termos,
passou-se a ter também maior preocupação com as incertezas científicas relacionadas aos efeitos das
atividades econômicas desenvolvidas e da necessidade de o direito se adaptar às limitações do
conhecimento humano, fatores que somados levaram ao desenvolvimento de movimentos
ambientalistas, os quais pressionavam por medidas de proteção ambiental e da saúde humana 13.

11
GUERRA, Sérgio. Discricionariedade, regulação e reflexividade: uma nova teoria sobre as escolhas administrativas. 4 ed. rev.
atual. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 244-245.
12
Ibid., p. 241.
13
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Principle 15: Precaution. In: VIÑUALES, Jorge E. (Ed.). The Rio Declaration on
Environment and Development: a commentary. Oxford: Oxford University Press, 2015, p. 405-406.

8
Tal contexto teve o seu ápice na Conferência de Estocolmo de 1972, que resultou na
Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano 14. A referida
declaração previu diversos princípios de tutela ambiental, assentando o início de uma previsão de
desenvolvimento sustentável e responsabilidade humana sobre o meio ambiente.
O referido cenário internacional também influenciou o panorama no Brasil. O movimento
ambientalista da década de 1970, assim como a crescente conscientização popular e o maior acesso
a informações referentes a riscos à saúde e ao meio ambiente provocados por atividades econômicas
tiveram forte influência na adoção de medidas de proteção ambiental no País. Nesse sentido, a
década de 1970 foi marcada pela ampla produção legislativa e regulamentar em matéria ambiental.
Apesar de alguns avanços, cumpre observar que a efetivação de pautas ambientais no Brasil
veio com certo atraso com relação a países desenvolvidos, nos quais o movimento ambientalista já
tinha efeito desde a década de 1960.
O início da ditadura militar foi um importante fator inibidor do avanço de causas
ambientais – um entrave para a promoção de objetivos de manutenção da ordem, da
industrialização e do desenvolvimento econômico no País 15. Com uma lógica de que quanto mais
poluição se produzisse, maior seria o desenvolvimento econômico – isto é, de que o controle sobre
os níveis de poluição trazia uma série de ônus aos países subdesenvolvidos –, o governo militar
trouxe empresas estrangeiras para fabricar produtos nocivos ao meio ambiente no Brasil. Dessa
forma, na era do milagre econômico brasileiro, “importava-se poluição” e se entendia ser a
pobreza o único problema ecológico existente 16.

14
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração de Estocolmo sobre o Ambiente Humano de 5-16/nº 6/1972. Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Declaracao%20de%20Estocolmo%201972.pdf. Acesso em: maio 2023. A
Declaração prevê no seu art. 14 que: “O planejamento racional constitui um instrumento indispensável para conciliar as diferenças
que possam surgir entre as exigências do desenvolvimento e a necessidade de proteger e melhorar o meio ambiente”. No seu
princípio 18, estabelece ainda que: “Como parte de sua contribuição ao desenvolvimento econômico e social deve-se utilizar a
ciência e a tecnologia para descobrir, evitar e combater os riscos que ameaçam o meio ambiente, para solucionar os problemas
ambientais e para o bem comum da humanidade”.
15
SAMPAIO, Rômulo Silveira da Rocha. Direito ambiental: doutrina e casos práticos. Rio de Janeiro: Elsevier; FGV, 2011, p. 72.
16
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2 ed. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: 34,
2011, p. 52. O autor faz referência ao entendimento adotado pelo então ministro do planejamento brasileiro, João Paulo
dos Reis Veloso, na Conferência do Meio Ambiente de Estocolmo de 1972. Genebaldo Dias também ressalta que no
âmbito da Conferência: “Os nossos representantes afirmaram que o país não se importaria em pagar o preço da
degradação ambiental, desde que o resultado fosse o aumento do Produto Nacional Bruto (PNB). Um cartaz anunciava:
‘Bem-vindos à poluição, estamos abertos para ela. O Brasil é um país que não tem restrições. Temos várias cidades que
receberiam de braços abertos a sua poluição, porque o que nós queremos são empregos, são dólares para o nosso
desenvolvimento’. A iniciativa fora autorizada pelo general Costa Cavalcanti, então ministro do Interior”. DIAS,
Genebaldo Freire. Os quinze anos da educação ambiental no Brasil: um depoimento. Em Aberto, ano 10, n. 49, jan./mar.
1991, p. 4. Tais questões foram trabalhadas de forma mais profunda em FRAGA, Júlia Massadas Romeiro. Precaução e
direcionamento de condutas sob incerteza científica. 2019. 214 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Escola de Direito do
Rio de Janeiro, Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, 2019.

9
Nesse contexto, o cenário internacional era de forte pressão pela promulgação de uma
declaração do meio ambiente. Ao mesmo tempo, países em desenvolvimento como o Brasil temiam
a perda da sua soberania sobre os seus recursos naturais 17.
No Brasil, a necessidade de afirmação de soberania sobre os recursos naturais, além da
política desenvolvimentista, ainda dependente economicamente de concessões, tecnologia,
especialização e financiamentos que eram privilégios de países desenvolvidos, obrigou o
desenvolvimento de uma regulação ambiental.
Diante da pressão social e diplomática para que os governantes tomassem um
posicionamento diante de catástrofes, doenças e mortes cada vez mais frequentes decorrentes da
industrialização brasileira, foi promulgada a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA) em
1981 ainda sob a égide da ditadura militar no Brasil 18 .
Segundo Sampaio, em outras palavras, para desfrutar dos benefícios de um mundo em franco
processo de globalização, era necessário fazer concessões em temas caros às economias ricas, como
a elaboração normativa, ainda que no âmbito nacional, em matéria ambiental. É assim, então, em
um misto de resistência aos acordos multilaterais ambientais de um lado e dependência econômica
de outro, que o Brasil chega a Estocolmo com um ordenamento jurídico ambiental ainda frágil,
mas não menos promissor19.
Embora a legislação ambiental brasileira já estivesse sendo desenvolvida desde as décadas de
1960-70, e a própria Declaração de Estocolmo sobre o Ambiente Humano de 1972 tenha trazido
diversos avanços – inclusive em termos de busca por uma conciliação entre desenvolvimento e
proteção ambiental –, foi somente a partir da década de 1980 que se teve uma transformação no
que diz respeito à percepção dos riscos, inclusive por meio de uma abordagem precaucional 20.
Na década de 1980, a política ambiental brasileira sofreu uma mudança drástica em
contraposição à pauta prioritariamente desenvolvimentista do período anterior.
Em 1981, a PNMA 21, instituída pela Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981 22, já positivou
uma preocupação com a “compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a
preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico” (art. 4º, I), além da
necessidade de “preservação e restauração dos recursos ambientais com vistas à sua utilização
racional e disponibilidade permanente” (art. 4º, VI).

17
SAMPAIO, Rômulo Silveira da Rocha. Direito ambiental: doutrina e casos práticos. Rio de Janeiro: Elsevier; FGV, 2011, p. 76.
18
Ibid., p. 72.
19
Ibid., p. 124-125.
20
A referida abordagem diz respeito à adoção dos denominados princípios da precaução e da prevenção, os quais serão
abordados nos tópicos que se seguem.
21
A referida legislação será abordada a fundo em tópico específico.
22
BRASIL. Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos
de formulação e aplicação, e dá outras providências. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1980-1987/lei-
6938-31-agosto-1981-366135-publicacaooriginal-1-pl.html. Acesso em: maio 2023

10
Esse entendimento foi consolidado com a promulgação da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) 23, que elevou a tutela do meio ambiente ao patamar de
direito fundamental (vide item 1.3, abaixo).
No âmbito internacional, o cenário permaneceu como de constante evolução e sistematização
de pautas ambientais com a publicação do Relatório Brundland (Nosso Futuro Comum) pela
Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento em 1987; a Declaração do Rio de
1992, positivando pela primeira vez a expressão “desenvolvimento sustentável”24; e o Protocolo de
Kyoto de 1997, que visava à redução da emissão de gases causadores do efeito estufa para travar o
avanço do aquecimento global.

Incorporação pela CRFB/88 como um direito fundamental


No seu art. 225, a CRFB/88 prevê que:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente


equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de
vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo
e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao poder público:


I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo
ecológico das espécies e ecossistemas;
II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do
País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de
material genético;
III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus
componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a
supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização
que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;

23
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: maio 202. No mesmo sentido, cf. art. 216 da CRFB/88: “Art. 216.
Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (...)”.
24
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento. Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20do%20Rio%201992.pdf. Acesso em: maio 2023.

11
IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade
potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente,
estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;
V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas,
métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de
vida e o meio ambiente;
VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a
conscientização pública para a preservação do meio ambiente;
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que
coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies
ou submetam os animais a crueldade.

Nesse sentido, conforme o observado por Milaré 25, a Constituição reconheceu a natureza de
direito difuso do meio ambiente. Nesse sentido, enquanto “direito público subjetivo”, o mesmo pode
ser exercido inclusive em face do próprio Estado, que tem por dever a sua proteção, na medida em
que a tutela ambiental é um pressuposto até mesmo de outro direito fundamental: o direito à vida.
A Constituição trouxe ainda uma visão de um desenvolvimento econômico sustentável,
conforme se vê em:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e


na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme
os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...)
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado
conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos
de elaboração e prestação.

A partir desse olhar, o legislador originário buscou tutelar os diversos fatores envolvidos na
proteção ambiental, inclusive por meio da previsão de áreas a serem especialmente protegidas. Dentro
do contexto da promoção de um desenvolvimento sustentável, limitou-se o exercício da livre iniciativa,
exigindo-se autorizações especiais para determinadas atividades de maior impacto ambiental, como a
imposição de estudo prévio de impacto ambiental e licenciamento da atividade pelo órgão ambiental
competente. Tal busca pela compatibilização entre a proteção ambiental e o desenvolvimento
econômico é que consolidou o que se convencionou denominar “Estado Socioambiental de Direito”26.

25
p. 167.
26
Sobre o tema, cf. SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Princípios do direito ambiental. 2. ed. São Paulo: Saraiva,
2017, p. 37 e ss.

12
Fontes do direito ambiental
Além da Constituição Federal, o direito ambiental possui como fontes as constituições
estaduais, as leis, os atos internacionais firmados pelo Brasil, as normas administrativas originadas
de órgãos ambientais competentes e a jurisprudência. Além disso, como já sinalizado nesta apostila,
os movimentos populares – assim como os eventos de grandes proporções que muitas vezes os
desencadeiam – exercem papel fundamental na intepretação de normas e nas mudanças no âmbito
do direito ambiental ao longo do tempo 27.
No mesmo sentido, descobertas científicas como as atinentes ao aquecimento global funcionam
frequentemente como catalisadores de mudanças no cenário internacional, levando a novos tratados e
convenções, tais quais o Protocolo de Quioto. Ademais, a doutrina também é uma fonte material que
exerce grande influência sobre mudanças legislativas e interpretativas de normas já existentes28.

Princípios do direito ambiental


Entendidas as fontes do direito ambiental, cumpre analisar as suas normas que visam tutelar
o meio ambiente nas suas diversas esferas. Desse modo, antes de adentrarmos no estudo nos
diferentes nichos existentes, é preciso compreender os princípios que norteiam a sua interpretação.

Princípio do meio ambiente ecologicamente equilibrado e direito à sadia


qualidade de vida e ao acesso equitativo aos recursos naturais
Diante do dever de tutela de direitos de terceira geração e de promoção de um meio ambiente
ecologicamente equilibrado, direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos, o questionamento a
respeito dos limites das inovações tecnológicas, da ciência e do desenvolvimento de uma forma geral é
inerente. Conforme o já mencionado nesta apostila, a partir da difusão da preocupação com danos
causados ao meio ambiente, a sociedade compreendeu que era preciso rever não apenas os impactos em
si, mas a própria lógica do progresso científico e tecnológico “sem amarras”, em face de constantes
ocorrências de danos sérios e potencialmente irreversíveis, verdadeiras tragédias humanas e ambientais 29.

27
Cumpre destacar que algumas das fontes citadas são consideradas fontes formais; e outras, fontes materiais do direito
ambiental. Tendo em vista a complexidade do assunto, não temos por objetivo aprofundá-lo aqui. Sobre o tema, cf. SHECAIRA,
Fábio P.; STRUCHINER, Noel. Teoria da argumentação jurídica. Rio de Janeiro: PUC-Rio: Contraponto, 2016, p. 49 e ss.
28
ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 21 ed. São Paulo: Atlas, p. 57-60.
29
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Trad. Raul Fiker. São Paulo: Unesp, 1991, p. 184.

13
Diante dos avanços da ciência e da tecnologia e das ameaças decorrentes de um poder que, se
desenfreado, pode transformar-se em uma desgraça para a própria humanidade, Hans Jonas propôs
um imperativo ético adequado ao novo agir humano 30. Trata-se do denominado princípio da
responsabilidade. Diferentemente de uma visão mais voltada à conduta privada, esse imperativo se
mostra mais adequado à política pública e prevê o seguinte: “[a]ja de modo a que os efeitos da tua
ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra” 31. Ou,
dito de forma diferente, “[a]ja de modo que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a
possibilidade futura de tal vida” 32 , isto é, “[n]ão ponha em perigo as condições necessárias para a
conservação indefinida da humanidade sobre a Terra” 33.
Com base nessa lógica, além do já mencionado princípio do desenvolvimento sustentável, a
CRFB/88 positivou o direito de todos a um meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 1º,
III, c/c arts. 5º, caput, e 225). Nas palavras de Milaré 34:

O reconhecimento do direito a um meio ambiente sadio configura-se,


na verdade, como extensão do direito à vida, quer sob o enfoque da
própria existência física e saúde dos seres humanos, quer quanto ao
aspecto da dignidade dessa existência – a qualidade de vida –, que faz
com que valha a pena viver.

Sendo assim, o referido princípio demonstra uma preocupação com a qualidade de vida
humana e equidade de acesso aos recursos naturais pela geração presente, bem como com o
asseguramento desses direitos para as gerações futuras, conforme se verá no próximo tópico.

30
JONAS, Hans. O princípio da responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Trad. Marijane Lisboa e
Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto: PUC-Rio, 2006, p. 21.
31
Ibid., p. 47.
32
Ibid., p. 47-48.
33
Ibid., p. 48.
34
MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 11 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 261.

14
Princípio da equidade intergeracional
O já mencionado processo de conscientização ambiental desencadeado a partir da segunda
metade do século XX levou à positivação de direitos de gerações futuras em diversos instrumentos legais
internacionais. Conforme o indicado por Kiss35, cada geração detém a titularidade de direitos de se
beneficiar e desenvolver o patrimônio natural e cultural. Nesse sentido, deve-se preservar o meio
ambiente para que as gerações futuras possam usufruir dos bens naturais de forma sustentável, mantendo
uma qualidade e vida adequada. Desse modo, passa a ser preciso assegurar a conservação e, se possível,
até mesmo a melhoria desse patrimônio, resguardando-se os recursos renováveis, os ecossistemas e os
processos de suporte à vida; do que se depreende a cautela com relação a ações que possam ocasionar
efeitos desastrosos ou irreversíveis. Isso, a partir do entendimento de que a proteção do meio ambiente
será mais eficiente se realizada de forma preventiva do que pela recuperação de danos já causados ou por
medidas paliativas, afastando ao máximo a degradação ambiental e prejuízos irreversíveis 36.
Dessa forma, a tutela de direitos das gerações futuras pode ser conceituada enquanto uma
proteção de “direitos aos recursos naturais necessários para garantir, por um período indeterminado,
direitos econômicos, sociais e culturais básicos”37, abrangendo a conservação de recursos essenciais para
a sobrevivência humana, de elementos culturais básicos da nossa civilização e da diversidade biológica
existente 38. A partir disso, pode-se observar que a precaução é um instrumento fundamental na tutela
de direitos de gerações futuras na medida em que busca afastar danos ao meio ambiente, preservando-o
para o futuro 39. Isso, baseado no entendimento de que os recursos naturais não possuem natureza
jurídica de res nullius ou res communes (bens sobre os quais não há direitos reais), mas de res omnium.
Isto é, que são bens de todos, havendo uma responsabilidade intergeracional para preservá-los, pois
todos os seres humanos das gerações presentes e futuras têm o direito de acessá-los40 .

35
KISS, Alexandre. Os direitos e interesses das gerações futuras e o princípio da precaução. In: VARELLA, Marcelo
Dias; PLATIAU, Ana Flávia Barros (Orgs.). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 1 e 5. A título
exemplificativo de instrumentos internacionais que preveem a preservação de direitos de gerações futuras, o autor
destaca a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a Declaração do Meio Ambiente e
Desenvolvimento do Rio e o próprio conceito de desenvolvimento sustentável da Comissão Mundial de Meio
Ambiente e Desenvolvimento (WCED). Segundo a Declaração do Rio (princípio 3): “O direito ao desenvolvimento deve
ser exercido de modo a permitir que sejam atendidas equitativamente as necessidades de desenvolvimento e de
meio ambiente das gerações presentes e futuras”. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração do Rio sobre o
Meio Ambiente e o Desenvolvimento. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/
Carta%20do%20Rio%201992.pdf. Acesso em: maio 2023.
36
KISS, Alexandre. Os direitos e interesses das gerações futuras e o princípio da precaução. In: VARELLA, Marcelo Dias;
PLATIAU, Ana Flávia Barros (Orgs.). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 1 e 5.
37
Ibid., p. 7.
38
Ibid., p. 8.
39
Ibid., p. 11.
40
ARAGÃO, Maria Alexandra de Sousa. O princípio do poluidor pagador: pedra angular da política comunitária do ambiente.
Coimbra: Coimbra, 1997, p. 30.

15
Princípios da natureza pública da proteção ambiental e da
obrigatoriedade da intervenção do poder público
Conforme o sinalizado por Milaré 41, a proteção ambiental deixou de ser um “luxo” ou uma
“utopia” para se tornar parte da nova ordem pública, sendo vedado ao poder público ou aos
particulares a transigência em matéria ambiental. Mais do que isso, levando-se em consideração essa
natureza de patrimônio público do meio ambiente (art. 2º, I, da Lei nº 6.938/81), este é classificado
como um bem de uso comum do povo. Nesse sentido, trata-se de um valor que deve ser
necessariamente tutelado para a garantia da fruição da coletividade.
O art. 225 da CRFB/8842 estabelece um dever inalienável do poder público de atuar para a
tutela do meio ambiente. Em outras palavras, o poder público tem o dever de agir para garantir a
sua proteção (primazia e indisponibilidade do interesse público).
Em casos de dúvidas, deve-se privilegiar ainda a proteção do meio ambiente (in dubio, pro
ambiente). Ademais é possível coagir até mesmo na esfera judicial todos os entes da Federação a
cumprir com o seu dever constitucional de tutela dos bens naturais. É esse o princípio que autoriza
inclusive o acionamento do poder público em caso de omissões 43.

Princípios do poluidor-pagador e do usuário-pagador


O princípio do poluidor-pagador é uma decorrência do princípio da responsabilidade aplicado
à esfera ambiental e visa à internalização das externalidades socioambientais negativas por parte dos
agentes econômicos. Nas palavras de Milaré:

Busca-se, no caso, imputar ao poluidor o custo social da poluição por


ele gerada, engendrando um mecanismo de responsabilidade por dano
ecológico, abrangente dos efeitos da poluição não somente sobre bens e
pessoas, mas sobre toda a natureza. Em termos econômicos, é a
internalização dos custos externos 44.

41
MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 11 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 264-265.
42
“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade
de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”
43
Um exemplo nesse sentido foi o ajuizamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 708 pelos
partidos políticos PSOL e PSB por alegadas omissões do governo federal na implementação de uma política ambiental. Conforme
o atestado pelo ministro Luís Roberto Barroso no referido julgado: “O quadro descrito na petição inicial, se confirmado, revela a
existência de um estado de coisas inconstitucional em matéria ambiental, a exigir providências de natureza estrutural. Vale
reiterar: a proteção ambiental não constitui uma opção política, mas um dever constitucional”.
44
MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 11. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 271. Grifos no original.

16
O referido princípio foi positivado na Declaração do Rio de 1992, que atesta:

Princípio 16. As autoridades nacionais devem procurar promover a


internalização dos custos ambientais e o uso de instrumentos econômicos,
tendo em, vista a abordagem segundo a qual o poluidor deve, em princípio,
arcar com o custo da poluição, com a devida atenção ao interesse público
e sem provocar distorções no comércio e nos investimentos internacionais.

Internamente, foi ainda positivado pela Lei nº 6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio
Ambiente) no seu art. 4º, VII, que estabelece como um dos seus objetivos a “imposição, ao poluidor
e ao predador, da obrigação de recuperar ou indenizar os danos causados e, ao usuário, da
contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos” 45. Um dos exemplos que
pode ser dado nesse sentido é o do pagamento pelo lançamento de efluentes.
Cumpre esclarecer, todavia, que não se trata de “licença para poluir”. A aplicação dessa norma
não objetiva autorizar a poluição mediante pagamento de um preço, mas, sim, prevenir danos
ambientais, tornando a conservação do meio ambiente mais vantajosa e menos custosa do que a sua
devastação. Evidentemente, a sua incidência somente se dá diante de impactos toleráveis, que ainda não
atingiram o patamar de dano jurídico. Caso contrário, será cabível a responsabilização na esfera cível.
Esse tema tem ganhado grande proporção internacional, especialmente em litígios climáticos, em
que, por vezes, não resta claro o limite de responsabilidade que pode ser atribuído a uma empresa,
principalmente considerando a sua atuação em diversos países e jurisdições distintas. Nesse sentido,
desponta como paradigmático o caso de condenação da empresa Shell, na Corte Holandesa46, ao dever
de reduzir as suas emissões de carbono na atmosfera. O grupo foi obrigado a reestruturar o seu processo
produtivo a nível global, o que afetou inclusive os seus fornecedores em outros países47.

45
BRASIL. Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos
de formulação e aplicação, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6938.htm.
Acesso em: maio 2023.

District Court, The Hague, No. C/09/571932/HA ZA 19-379. J.26/05/2021.


47
Em vista da preocupação cada vez maior com a tutela de direitos humanos e a adoção de parâmetros ESG nos processos
produtivos, o tema da responsabilidade da cadeira de fornecedores de empresas multinacionais com atuação em diversos
países é algo que vem sendo cada vez mais endereçado pela regulação internacional. Em 2021, a Lei da Cadeia de
Fornecimento alemã (Gezetz über die unternehmerischen Sorgfaltspflichten zur Vermeidung von Menschenrechtsverletzungen in
Lieferketten, coloquialmente referenciada como “Lieferkettensorgfaltspflichtengesetz” ou LkSG) passou a impor obrigações de
due diligence para a prevenção de violações de direitos humanos nas cadeias de fornecedores em diversos países (inclusive
no Brasil). No mesmo sentido, a União Europeia apresentou uma diretiva sobre “Corporate Sustainability Due Diligence”, que
prevê a responsabilização de empresas por danos ambientais e violações de direitos humanos no seu processo produtivo
a nível global. Isso se aplica à corporação, ainda que tenha sido diretamente praticado por um dos seus fornecedores e
não diretamente pelo grupo econômico em si. A UE enquanto bloco e vários países da Europa nas suas legislações nacionais
também já adotam a “Responsabilidade Alargada do Produtor” (RAP) nas suas políticas de gerenciamento de resíduos
sólidos, com responsabilidade estendida a toda a cadeia de geração do resíduo.

17
Já o princípio do usuário-pagador visa aplicar a mesma lógica também ao usuário de bens
naturais. Desse modo, esse deve arcar com uma contribuição pela utilização de recursos naturais
para fins econômicos, uma vez que aqueles constituem patrimônio da coletividade. Como no caso
de cobrança pelo uso da água, por exemplo.
Isso quer dizer que

o poluidor que paga, é certo, não paga pelo direito de poluir: esse
“pagamento” representa muito mais uma sanção, tem caráter de punição e
assemelha-se à obrigação de reparar o dano. Não confere direito ao
infrator. De outro lado, o usuário que paga, paga naturalmente por um
direito que lhe é outorgado pelo poder público competente, como
decorrência de um ato administrativo legal (que, às vezes, pode até ser
discricionário quanto ao valor e às condições); o pagamento não tem
qualquer conotação penal, a menos que o uso adquirido por direito assuma
a figura de abuso, o que contraria o direito 48.

Nas palavras de Milaré:

ao invés de coibir a geração de externalidades negativas no processo


produtivo, incentivar-se-iam as positivas por meio de normas
promocionais. Seria como que uma consequência do princípio do
poluidor-pagador, ou melhor, do usuário-pagador: aquele que preserva ou
recupera os serviços ambientais, geralmente de modo oneroso aos próprios
interesses, tornar-se-ia credor de uma retribuição por parte dos
beneficiários desses mesmos serviços, sejam pessoas físicas ou jurídicas, seja
o Estado ou a sociedade como um todo 49.

Nesse sentido, conforme o assinalado pelo ministro Herman Benjamin, do Superior Tribunal
de Justiça (STJ), no REsp 769.753/SC (2009):

é pacífica a jurisprudência do STJ de que, nos termos do art. 14, § 1º, da


Lei nº 6.938/1981, o degradador, em decorrência do princípio do poluidor-
pagador, previsto no art. 4º, VII (primeira parte), do mesmo estatuto, é
obrigado, independentemente de culpa, a reparar – por óbvio que às suas
expensas – todos os danos que cause ao meio ambiente e a terceiros

48
MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 11. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasi/l, 2018, p. 274.
49
Id.

18
afetados por sua atividade, sendo prescindível perquirir acerca do elemento
subjetivo, o que, consequentemente, torna irrelevante eventual boa ou má-
fé para fins de acertamento da natureza, conteúdo e extensão dos deveres
de restauração do status quo ante ecológico e de indenização 50.

Atualmente, fala-se ainda em um princípio do protetor-recebedor (art. 6º, II, da Lei


nº 12.305, de 2 de agosto de 2010 – Política Nacional de Resíduos Sólidos), que, de modo
antagônico, visa conceder incentivos à proteção ambiental. Isto é, em vez de simplesmente punir
comportamentos nocivos ao meio ambiente, buscou-se promover condutas positivas e responsáveis
do ponto de vista ambiental. Tal lógica já vem sendo empregada a partir de normas como a Política
Nacional de Pagamentos por Serviços Ambientais (PNPSA – Lei nº 14.119/2021), que utiliza
instrumentos monetários ou não monetários, diretos ou indiretos para promover a melhoria dos
serviços ecossistêmicos prestados e a preservação ambiental a partir de um estímulo positivo (e não
negativo, como as condenações por danos ambientais). Isso significa o reconhecimento e a
valorização das externalidades positivas geradas por um empreendimento (preservação ambiental) e
não só a punição em decorrência de externalidades negativas geradas (multas, embargos, paralisação
de atividades, etc.)51.

Princípios da precaução e da prevenção


Conforme o já sinalizado nesta apostila, as mudanças sociais e a pressão popular por uma nova
forma de produção, com maior preocupação ambiental levaram a diversos tratados internacionais e à
positivação de normas internas que visassem afastar os riscos de ocorrência de danos ao meio
ambiente, tendo em vista a grande proporção e os altos impactos que eles costumam ter. Nesse
cenário, foram positivados os princípios da precaução e da prevenção.
Ambos estão conectados a esse protótipo de promoção de um desenvolvimento sustentável,
que visa propiciar padrões de crescimento que assegurem as necessidades da geração atual e de
gerações futuras, tutelando os seus direitos. A seguir, vamos compreender o significado e as
diferenças entre eles.

Princípio da precaução
Diversos autores consideram o princípio da precaução como um dos principais
instrumentos de realização do desenvolvimento sustentável e de justiça intrageracional e
intergeracional, como a “essência” e a estrutura basilar do direito ambiental e de uma nova

50
Grifos no original.
51
Estados como o Rio de Janeiro e São Paulo também já têm adotado a PSA como mecanismo financeiro de recompensa
positiva pela tutela do meio ambiente.

19
dimensão da gestão do meio ambiente. Para alguns, essa norma já conquistou a posição de
direito costumeiro e o status de princípio fundamental do direito ambiental em nível global.
Além do elevado status concedido pela doutrina, está atualmente presente em quase todos os
tratados e nas declarações intergovernamentais firmados nos últimos anos 52.
Em linhas gerais, observa-se que o princípio da precaução 53 tem por objetivo regular os
“novos riscos” ambientais. Conforme a nomenclatura adotada por Aragão 54, a referida norma
deveria promover a regulação dos denominados riscos globais, retardados e irreversíveis, que,
por serem normalmente riscos futuros, afetam gerações que ainda não nasceram 55. Os riscos
globais a que se aplica seriam aqueles em larga escala, “com magnitudes sem precedentes,
abrangendo as vastas regiões do Planeta” 56. Os denominados “riscos retardados”, por sua vez,
seriam aqueles cujo desenvolvimento é lento, “ao longo de décadas ou séculos, que levam
gerações a materializar-se, mas que assumem, a certa altura, dimensões catastróficas em virtude
da extensão e da irreversibilidade” 57. Já os riscos irreversíveis seriam aqueles que, se
concretizados, têm “consequências permanentes ou, pelo menos, tão duradouras que podemos
considerá-las irreversíveis à escala humana” 58.

52
FRAGA, Júlia Massadas Romeiro. Precaução e direcionamento de condutas sob incerteza científica. 2019. 214 f. Dissertação
(Mestrado em Direito) – Escola de Direito do Rio de Janeiro, Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, 2019, p. 1. Disponível em:
https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/27338/DISSERTACAO%20FGV_Julia%20Massadas%20Romeiro%2
0Fraga.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: maio 2023.
53
O problema existente é que se o denominado “princípio da precaução” é abundante em previsões normativas, as suas
definições são divergentes entre si e levam a uma interpretação e a uma aplicação volátil, impondo maiores ou menores
restrições às atividades econômicas. Sobre as diferenças terminológicas, interpretativas e de classificação da sua natureza
normativa, cf. FRAGA, Júlia Massadas Romeiro. Precaução e direcionamento de condutas sob incerteza científica. 2019. 214 f.
Dissertação (Mestrado em Direito) – Escola de Direito do Rio de Janeiro, Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, 2019.
54
ARAGÃO, Alexandra. Princípio da precaução: manual de instruções. Revista do Centro de Estudos de Direito do Ordenamento,
do Urbanismo e do Ambiente (RevCEDOUA), v. 11, n. 2, 2008, p. 21. Disponível em: https://www.researchgate.net/
publication/269603897_Principio_da_precaucao_manual_de_instrucoes. Acesso em: maio 2023.
55
Id. Segundo Beck: “Riscos não se esgotam, contudo, em efeitos e danos já ocorridos. Neles, exprime-se sobretudo um
componente futuro. Este baseia-se em parte na extensão futura dos danos atualmente previsíveis e em parte numa perda
geral de confiança ou num suposto ‘amplificador do risco’. Riscos têm, portanto, fundamentalmente a ver com antecipação,
com destruições que ainda não ocorreram, mas que são iminentes, e que, justamente, nesse sentido, já são reais hoje”.
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2 ed. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: 34, 2011, p.
39. Grifos no original.
56
ARAGÃO, Alexandra. Op. cit., 2008, p. 21. Segundo a autora: “As acções conjugadas da evolução científica e tecnológica e
da intensificação da produção industrial e agrícola, com a aceleração do consumo e a globalização do mercado dos
produtos e serviços, conduzem a uma massificação dos riscos, que se tornam riscos planetários. Por isso, a necessidade
de convocar a aplicação do princípio da precaução é também mais frequente agora”. Beck também ressalta que os riscos
“possuem uma tendência imanente à globalização” na modernização. BECK, Ulrich. Op. cit., p. 43.
57
ARAGÃO, Alexandra. Op. cit., 2008, p. 21.
58
BECK, Ulrich. Op. cit., p. 22.

20
Trata-se de uma inversão do paradigma que se tinha anteriormente, o qual presumia a permissão
do desenvolvimento de atividades econômicas quando não houvesse evidências claras a respeito dos seus
impactos59 . Diante do contexto histórico e cultural que teve o seu crescimento a partir da década de 1970
– conforme o já mencionado nesta apostila –, passou-se a ter uma preocupação especial com a adoção de
medidas contra danos em potencial, ainda que a causalidade entre a atividade e o dano ainda não esteja
comprovada e que sequer saibamos se tais danos de fato vão concretizar-se no futuro60 .
Nesse sentido, a falta de certeza científica deixou de justificar a inércia diante de riscos potenciais,
especialmente aqueles que tenham o potencial de acarretar danos irreversíveis ou catastróficos. Isso, a partir
de uma visão da prevalência da proteção do meio ambiente e da saúde e segurança da sociedade. Em outras
palavras, a insuficiência de evidências científicas a respeito de possíveis danos não permite que se ignorem
os riscos da sua existência. Conforme o destacado por Foster61, ainda que a ciência não seja capaz de
apresentar provas conclusivas em nenhum dos sentidos – existência ou inexistência de danos –, medidas
devem ser tomadas para conter os possíveis efeitos prejudiciais resultantes das atividades em questão.
Segundo Solange Teles da Silva, a precaução consistiria em uma “ética das relações entre o homem,
o meio ambiente, os riscos e a vida”62, tendo por fundamento o reconhecimento dos limites do
conhecimento científico. Para a autora, se, por um lado, a pesquisa científica e as inovações tecnológicas
trazem promessas, por outro, trazem também ameaças ou, pelo menos, um perigo potencial. Nesse
sentido, algumas indagações podem ser feitas, tais quais: tudo o que é tecnicamente possível deve ser
realizado? Há necessidade de se refletir sobre os caminhos da pesquisa científica e das inovações
tecnológicas. O princípio da precaução surge, assim, para nortear as ações, possibilitando a proteção e a
gestão ambiental, em face das incertezas científicas63. Nesse sentido, as indagações que devemos fazer não
devem ser calcadas somente naquilo a que o ser humano seja capaz de se adaptar, mas também ao que este
deveria ser obrigado a se adaptar64.

59
COONEY, Rosie. The precautionary principle in biodiversity conservation and natural resource management: an issues paper
for policy-makers, researchers and practitioners. Gland e Cambridge: IUCN, 2004, p. ix.
60
SUNSTEIN, Cass R. Laws of fear: beyond the precautionary principle. Cambridge [u.a.]: Cambridge University Press, 2005,
p. 4. Sobre o surgimento do princípio da precaução cf. MORRIS, Julian. Defining the precautionary principle. In: MORRIS,
Julian (Ed.). Rethinking risk and the precautionary principle. Oxford: Butterworth-Heinemann, 2000, p. 1 e ss; BOEHMER-
CHRISTIANSEN, Sonja. The precautionary principle in Germany: enabling government. In: O’RIORDAN, Timothy; CAMERON,
James (Eds.). Interpreting the precautionary principle. London: Earthscan, 1994, p. 33-34; e TRINDADE, Antônio Augusto
Cançado. Principle 15: precaution. In: VIÑUALES, Jorge E. (Ed.). The Rio Declaration on Environment and Development: a
commentary. Oxford: Oxford University Press, 2015, p. 405 e ss.
61
FOSTER, Caroline E. Science and the precautionary principle in international courts and tribunals: expert evidence, burden of
proof and finality. [u.a] Cambridge University Press, 2011, p. 18 e 29.
62
SILVA, Solange Teles da. Princípio da precaução: uma nova postura em face dos riscos e incertezas científicas. In: VARELLA,
Marcelo Dias; PLATIAU, Ana Flávia Barros (Orgs.). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 78.
63
Ibid., p. 79.
64
JONAS, Hans. O princípio da responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Trad. Marijane Lisboa e
Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto: PUC-Rio, 2006, p. 206.

21
As principais perguntas que devemos fazer enquanto sociedade são as seguintes: que tipo de
desenvolvimento desejamos? Quais riscos estamos dispostos a assumir? Quais limites devem ser
impostos às atividades econômicas? Até que ponto devemos aguardar que danos graves ou irreversíveis
ao meio ambiente ou à saúde humana ocorram para que tomemos uma atitude a respeito?
O dever de precaução, nas palavras de Wedy:

[p]ode ser aplicado quando os dados científicos do risco da atividade a ser


realizada são insuficientes ou contraditórios. O risco de perigo, nesse caso,
pode ser meramente potencial, ou seja, configura-se com a possibilidade
verossímil de nocividade da atividade, embora não se possa qualificar e
nem quantificar os efeitos do risco 65.

Todavia cumpre lembrar que, conforme as definições trazidas por Giddens: “[r]econhecer
a existência de um risco ou conjunto de risco é aceitar não só a possibilidade de que as coisas
possam sair erradas, mas que esta possibilidade não pode ser eliminada” 66. Ou seja, é necessário
aceitar que é utópico o arquétipo de “risco zero”, haja vista que, em qualquer atividade, sempre
haverá um risco residual que deverá ser suportado pela coletividade ou pelos indivíduos. Desse
modo, não é a completa eliminação desses riscos, mas o seu gerenciamento que se mostra
fundamental 67. Esse gerenciamento visa definir os limites de riscos, indicando como
circunstância ideal aquela em que o nível de periculosidade de uma atividade seja aceitável em
comparação às suas necessidades 68.
A precaução se insere justamente nesse contexto que visa afastar riscos de danos que não
podem ser adequadamente estimados no estágio atual do desenvolvimento científico, mas que, se
concretizados, trariam consequências extremamente graves ou irreversíveis para o meio ambiente
ou para a saúde humana.
No Brasil, os Decretos nº 99.280, de 6 de junho de 1990, nº 2.652, de 1º de julho de 1998
e nº 2.519, de 16 de março de 1998, promulgam, respectivamente, a Convenção de Viena para a
Proteção da Camada de Ozônio e o Protocolo de Montreal sobre Substâncias que Destroem a
Camada de Ozônio; a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima e a
Convenção sobre Diversidade Biológica, internalizando o PP. A Lei de Crimes Ambientais (Lei nº

65
WEDY, Gabriel. O princípio constitucional da precaução como instrumento de tutela do meio ambiente e da saúde
pública. Rio de Janeiro: Fórum, 2009, p. 48.
66
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Trad. Raul Fiker. São Paulo: Unesp, 1991, p. 123.
67
LOPEZ, Teresa Ancona. Princípio da precaução e evolução da responsabilidade civil. 2008. Tese para Concurso de Professor
Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 22
68
Ibid., p. 34.

22
9.605, de 12 de fevereiro de 1998) prevê ainda como crime (art. 54)69 e infração administrativa
ambiental a desobediência do dever de precaução (art. 70) 70. Além disso, o princípio da precaução
pode ser extraído do art. 225 da CRFB/88 e está previsto na Convenção sobre Mudança do Clima
(art. 3º, item 3); na Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, art. 1º) e nos
princípios e nas diretrizes para a implementação da política nacional da biodiversidade (Decreto nº
4.339, de 22 de agosto de 2002, art. 12.1.2 do Anexo I) 71.

69
“Art. 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde
humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora: Pena - reclusão, de um a
quatro anos, e multa. § 1º Se o crime é culposo: Pena - detenção, de seis meses a um ano, e multa. § 2º Se o crime: I - tornar
uma área, urbana ou rural, imprópria para a ocupação humana; II - causar poluição atmosférica que provoque a retirada,
ainda que momentânea, dos habitantes das áreas afetadas, ou que cause danos diretos à saúde da população; III - causar
poluição hídrica que torne necessária a interrupção do abastecimento público de água de uma comunidade; IV - dificultar
ou impedir o uso público das praias; V - ocorrer por lançamento de resíduos sólidos, líquidos ou gasosos, ou detritos, óleos
ou substâncias oleosas, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou regulamentos: Pena - reclusão, de um a
cinco anos. § 3º Incorre nas mesmas penas previstas no parágrafo anterior quem deixar de adotar, quando assim o exigir
a autoridade competente, medidas de precaução em caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível”. BRASIL. Lei nº
9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades
lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm.
Acesso em: maio 2023.
70
Art. 70. Considera-se infração administrativa ambiental toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo,
promoção, proteção e recuperação do meio ambiente. Id. Sobre o tema, cf. WEDY, Gabriel. O princípio constitucional da
precaução como instrumento de tutela do meio ambiente e da saúde pública. Rio de Janeiro: Fórum, 2009, p. 34-35.
71
LEITE, José Rubens Morato (Coord.). Manual de direito ambiental. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 97. A Lei de Biossegurança
prevê no seu art. 1º: “Esta Lei estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização sobre a construção, o cultivo,
a produção, a manipulação, o transporte, a transferência, a importação, a exportação, o armazenamento, a pesquisa, a
comercialização, o consumo, a liberação no meio ambiente e o descarte de organismos geneticamente modificados – OGM
e seus derivados, tendo como diretrizes o estímulo ao avanço científico na área de biossegurança e biotecnologia, a
proteção à vida e à saúde humana, animal e vegetal, e a observância do princípio da precaução para a proteção do meio
ambiente”. BRASIL. Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005. Regulamenta os incisos II, IV e V do § 1º do art. 225 da Constituição
Federal, estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos
geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, reestrutura a
Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança – PNB, revoga a
Lei nº 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória nº 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5º, 6º, 7º, 8º, 9º,
10 e 16 da Lei nº 10.814, de 15 de dezembro de 2003, e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11105.htm. Acesso em: maio 2023. Grifos acrescidos. E nas
diretrizes da política nacional de biodiversidade, tem-se a seguinte previsão: “12.1.2. Consolidar a regulamentação dos usos
de produtos geneticamente modificados, com base na legislação vigente, em conformidade com o princípio da precaução
e com análise de risco dos potenciais impactos sobre a biodiversidade, a saúde e o meio ambiente, envolvendo os
diferentes segmentos da sociedade brasileira, garantindo a transparência e o controle social destes e com a
responsabilização civil, criminal e administrativa para introdução ou difusão não autorizada de organismos geneticamente
modificados que ofereçam riscos ao meio ambiente e à saúde humana”. BRASIL. Decreto nº 4.339, de 22 de agosto de 2002.
Institui princípios e diretrizes para a implementação da Política Nacional da Biodiversidade. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4339.htm. Acesso em: maio 2023.

23
Entre as diferentes definições possíveis para a referida norma, destacamos a positivada na
Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Eco-92 ou Rio 92):

Princípio 15. De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da


precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com
suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis,
a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão
para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a
degradação ambiental 72.

A Comissão Mundial para a Ética do Conhecimento Científico e Tecnológico (Comest) da


Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) esclareceu ainda
o referido conceito normativo, indicando que: “[q]uando atividades podem conduzir a dano
moralmente inaceitável, que seja cientificamente plausível, ainda que incerto, devem ser
empreendidas ações para evitar ou diminuir aquele dano” 73.
A Comest estabeleceu os parâmetros para essa interpretação:

“Dano moralmente inaceitável” refere-se a dano para os seres humanos ou


para o ambiente, que seja uma ameaça à vida ou à saúde humanas, ou que
seja sério e efetivamente irreversível, ou injusto com as gerações presentes e
futuras, ou imposto sem a adequada consideração dos direitos humanos
daqueles afetados. O juízo de plausibilidade deve estar fundado em análise
científica. As análises devem ser contínuas, de modo que as ações escolhidas
sejam submetidas à revisão. “Incerteza” pode aplicar-se, mas não necessita
limitar-se, à causalidade ou aos limites do dano possível. “Ações” são
intervenções empreendidas antes que o dano ocorra que buscam evitar ou
diminuir esse dano. Deve-se escolher ações que sejam proporcionais à
seriedade do dano potencial, com consideração de suas consequências
positivas e negativas, e com uma avaliação tanto da ação como da inação. A
escolha da ação deve ser o resultado de um processo participativo 74.

72
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento. Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20do%20Rio%201992.pdf. Acesso em: maio 2023.
73
UNESCO. The precautionary principle. World Commission on the Ethics of Scientific Knowledge and Technology (Comest).
Paris: United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization, 2005, p. 14. Disponível em:
https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000139578. Acesso em: maio 2023.
74
Id.

24
O princípio da precaução imporia, portanto, aos governos e às autoridades locais o dever de
antecipar e evitar a ocorrência de degradação ambiental, sendo exigida a fiscalização das atividades
econômicas ainda que não se tenha conhecimento científico a respeito de se estas levam ou não a
ocorrência de efeitos danosos 75.
O seu núcleo conceitual consistiria, portanto, na reversão da presunção geral em favor do
desenvolvimento 76. Dessa forma, a precaução privilegiaria a prudência, em favor de monitorar,
evitar ou mitigar ameaças potenciais incertas, o que é uma noção ampla e suscetível de suportar
uma variada gama de medidas operacionais77 conforme o seu modo de aplicação.
Por fim, cumpre ressaltar o que o princípio da precaução (PP) não é, conforme a
interpretação da Unesco:

O PP não é baseado no “risco zero”, mas almeja alcançar riscos ou perigos


menores ou mais aceitáveis. Não é baseado na ansiedade ou emoção, mas
é uma regra de decisão racional, baseada na ética, que visa utilizar o melhor
dos “sistemas das ciências” de processos complexos para tomar decisões
melhores. Finalmente, como qualquer outro princípio, o PP não é em si
um algoritmo de decisão e, portanto, não pode garantir a consistência entre
os casos. Assim como nos processos judiciais, cada caso será um pouco
diferente, tendo seus próprios fatos, incertezas, circunstâncias, decisores, e
o elemento de julgamento não pode ser eliminado 78.

75
SINGH, C. P. The precautionary principle and environment protection. Journal of the Indian Law Institute, v. 52, n. 2, abr./jun.
2010, p. 470.
76
COONEY, Rosie. The precautionary principle in biodiversity conservation and natural resource management: an issues paper
for policy-makers, researchers and practitioners. Gland e Cambridge: IUCN, 2004, p. 5.
77
Id. O Supremo Tribunal Federal (STF) já se posicionou sobre o seu entendimento sobre o conceito do princípio da
precaução no RE 627.189/SP, que tratava dos campos eletromagnéticos em linhas de transmissão de energia elétrica. Além
disso, o princípio da precaução também foi abordado em decisões importantes como a da ADI 3.937/SP, que versava sobre
a proibição de amianto crisotila, e na ADI 5.977/SP, que estabeleceu a proibição de caça.
78
UNESCO. The precautionary principle. World Commission on the Ethics of Scientific Knowledge and Technology (Comest). Paris:
United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization, 2005, p. 16. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/
ark:/48223/pf0000139578. Acesso em: maio 2023. No mesmo sentido, Solange Teles da Silva indica que a precaução não deve
perseguir a utopia do “risco zero”, mas servir de base de ação quando a ciência não for capaz de apresentar uma resposta clara e
precisa. Segundo a autora: “Se o princípio não deve submeter-se ao fantasma securitário, perseguindo o sonho utópico do ‘risco
zero’, seria irresponsabilidade, por outro lado, adotar a atitude do apostador, ou ainda pior, a do cínico. Entre esses dois extremos,
nossos sistemas jurídicos devem retomar o caminho da prudência”. SILVA, Solange Teles da. Princípio da precaução: uma nova
postura em face dos riscos e incertezas científicas. In: VARELLA, Marcelo Dias; PLATIAU, Ana Flávia Barros (Orgs.). Princípio da
precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 85. Tais discussões foram aprofundadas em FRAGA, Júlia Massadas Romeiro.
Precaução e direcionamento de condutas sob incerteza científica. 2019. 214 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Escola de Direito
do Rio de Janeiro, Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, 2019.

25
Princípio da prevenção
Entendido o contexto de preocupação com a mitigação de danos ao meio ambiente,
cumpre agora tratar de uma norma que visa regular riscos previsíveis.
Enquanto a precaução incide nos casos em que o risco é tão significativo que não se
pode exigir comprovação científica antes de se adotar uma ação corretiva, a prevenção é
aplicável quando se tem uma maior clareza científica sobre os potenciais efeitos de uma
atividade e as probabilidades de ocorrência de danos.
Em outras palavras, conforme o já estudado, o princípio da precaução deve ser aplicado
nos casos em que uma dada atividade possa ocasionar danos duradouros ou irreversíveis ao
meio ambiente ou em que os benefícios dela sejam desproporcionais aos seus impactos
negativos. A norma se pauta no reconhecimento de que nem sempre seremos capazes de prever
ou comprovar os riscos envolvidos nas atividades humanas antes que eles ocorram. Diante
disso, ela nos obrigada a agir a despeito dessa ausência de comprovação científica, visando à
mitigação de riscos e à preservação do meio ambiente para o futuro 79.
A prevenção, por outro lado, deve ser aplicada nos casos em que tais riscos sejam
conhecidos ou cientificamente previsíveis, obrigando a atuação estatal para o seu controle e a
sua mitigação 80. Nesses casos, o conhecimento científico já está em um estágio mais avançado
com relação ao tema em questão, sendo possível obter informações mais precisas sobre a
periculosidade da atividade e os riscos envolvidos 81. Em outras palavras, no âmbito de
incidência do princípio da prevenção, o perigo já estaria estabelecido, havendo probabilidade
de acidente (dano), enquanto, no caso da precaução, há mera probabilidade de que uma dada
hipótese venha a se confirmar 82.
Sendo assim, a prevenção visa justamente inibir a ocorrência de danos ocasionados por
atividades já sabidamente perigosas, enquanto a precaução procura evitar o “risco do risco”:
risco de perigo potencial, de atividades potencialmente perigosas, mas sobre as quais não se
tem comprovação acerca da sua periculosidade 83 . Em outras palavras, a prevenção teria por
finalidade evitar o perigo concreto, isto é, aquele já comprovado cientificamente. Desse modo,

79
Cf. WOLFRUM, Rüdiger. O princípio da precaução. In: VARELLA, Marcelo Dias; PLATIAU, Ana Flávia Barros (Orgs.). Princípio
da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 18; e KISS, Alexandre. Os direitos e interesses das gerações futuras e o
princípio da precaução. In: VARELLA, Marcelo Dias; PLATIAU, Ana Flávia Barros (Orgs.). Princípio da precaução. Belo
Horizonte: Del Rey, 2004, p. 11.
80
Ibid., p. 18.
81
LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patryck de Araújo. Direito ambiental na sociedade de risco. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2004, p. 70.
82
LOPEZ, Teresa Ancona. Princípio da precaução e evolução da responsabilidade civil. 2008. Tese (Concurso de Professor
Titular de Direito Civil) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008, p. 89.
83
LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patryck de Araújo. Op. cit., p. 71.

26
este seria “aplicado para impedir que sejam praticadas atividades que já se sabem causadoras
de danos, por fontes de informações científicas reconhecidas” 84. Por outro lado, a precaução
buscaria evitar o perigo abstrato – verossímil, porém não comprovado cientificamente 85 .
Dessa maneira, o princípio da prevenção visa evitar o risco conhecido, e o princípio da
precaução visa evitar o risco potencial. O princípio da prevenção tem por finalidade a adoção de
ações ou de inações para evitar eventos previsíveis; já o princípio da precaução visa gerir riscos em
princípio não prováveis por completo. O princípio da prevenção visa inibir o dano potencial sempre
indesejável, e o princípio da precaução visa impedir o risco de perigo abstrato 86.
Desse modo, “enquanto o princípio da prevenção lida com uma probabilidade concreta, a
precaução vai além, cobrindo a mera possibilidade, mesmo a descoberto de base científica”87. A
prevenção lida, portanto, com a certeza – ou quase certeza – de que a atividade causará danos, enquanto
a precaução lida com uma incerteza a respeito dos seus potenciais efeitos 88. Nesse sentido, o objetivo na
aplicação do princípio da prevenção é o de se evitar que o comportamento lesivo se reitere 89 .
Para citar um exemplo, podemos considerar o consumo de cigarros. Atualmente, já resta
cientificamente comprovado que a utilização dessa substância tem o potencial de causar o
desenvolvimento de câncer no pulmão, além de outros malefícios para a saúde das pessoas. Nesse
sentido, são cabíveis medidas de prevenção para mitigar esses danos. Já o estabelecimento de uma
margem de segurança para a liberação de medicamentos, por outro lado, seria um bom exemplo da
aplicação do princípio da precaução 90 .
Enquanto a prevenção está relacionada à intervenção prévia à ocorrência de danos em
relação a riscos conhecidos; a precaução pressupõe uma prontidão das autoridades públicas para
intervir antecipadamente diante de ameaças potenciais, incertas e hipotéticas. Isso porque se os
riscos forem suficientemente sérios – ainda que estes sejam apenas conjecturas, temores ou
suposições –, a precaução demandará uma ação para evitar a sua ocorrência 91.

84
WEDY, Gabriel. O princípio constitucional da precaução como instrumento de tutela do meio ambiente e da saúde pública. Rio
de Janeiro: Fórum, 2009, p. 47.
85
Id.
86
Ibid., p. 48.
87
Ibid., p. 49-50.
88
Ibid., p. 51.
89
Ibid., p. 55.
90
Ibid., p. 52-53.
91
FOSTER, Caroline E. Op. cit., p. 18.

27
No caso da precaução, trabalha-se com evidências inconclusivas – abaixo do standard
científico para que se considere que uma hipótese está provada –, incerteza radical a respeito dos
efeitos de uma atividade. Já no âmbito da prevenção, os riscos e os danos são conhecidos e podem
ser estimados. Em casos de incerteza, a precaução seria, portanto, aplicável. Já nos casos de gestão
de riscos, como em um licenciamento ambiental 92, a prevenção.
Nesse sentido, conforme o indicado por Beltrão 93, o pressuposto da prevenção seria uma
“razoável previsibilidade” dos danos decorrentes de determinados impactos, enquanto o
pressuposto da precaução seria justamente a imprevisibilidade de tais danos em razão da “incerteza
científica dos processos ecológicos envolvidos” 94.
O princípio da precaução exige que não sejam produzidas intervenções no meio ambiente
sem que se saiba se estas serão adversas para o meio ambiente (perigo abstrato)95. Já o princípio da
prevenção se aplica a “impactos ambientais já conhecidos e que tenham uma história de informação
sobre eles” (perigo concreto) 96.
Dessa forma, “a prevenção e a preservação devem ser concretizadas por meio de uma
consciência ecológica razoável e proporcional (para se evitarem os excessos e atos desnecessários e
inadequados), a qual deve ser desenvolvida através de uma política de educação ambiental”97.
Dessa forma, conforme o elucidado por Aragão 98, embora os princípios da prevenção e
da precaução sejam ambos manifestações modernas de uma ideia antiga – de defesa da
prudência ambiental e da sustentabilidade, presente, desde sempre, nas grandes culturas e
civilizações antigas –, eles se distinguem tanto pelas condições de aplicação, como pela natureza
das medidas evitatórias que promovem.
Por fim, cumpre ressaltar que, caso as medidas de precaução e prevenção se mostrem
insuficientes, a reparação integral do dano deverá ser efetivada por meio da responsabilização na
esfera cível, nas suas três esferas: reparar, indenizar e não fazer (vide item 8.5).

92
Onde os impactos ambientais são sabidos e podem ser mensurados por meio de estudos de impacto ambiental. Nesse
sentido, o licenciamento ambiental da atividade cumpre o papel de dar publicidade a esses riscos de forma cientificamente
embasada e possibilitar a prevenção da sua ocorrência, além de controle e fiscalização por parte do órgão ambiental
competente. Sobre o tema, cf. ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 6 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 36.
Nesse sentido, já se posicionou o STJ: “Incumbe a todo e qualquer servidor público zelar pela legalidade, integridade,
honestidade, lealdade, publicidade e eficácia do licenciamento ambiental, instrumento por excelência de prevenção contra
a degradação do meio ambiente e de realização, in concreto, do objetivo constitucional do desenvolvimento
ecologicamente equilibrado” (STJ, REsp 1555131/RJ, rel. min. Herman Benjamin, j. 19/05/2016).
93
BELTRÃO, Antônio F. G. Manual de direito ambiental. São Paulo: Método, 2008, p. 35.
94
Id.
95
GUERRA, Sidney; GUERRA, Sérgio. Curso de direito ambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 136.
96
Id.

97
Id.
98
ARAGÃO, Alexandra. Op. cit., p. 16.

28
Princípios da informação e da participação
Enquanto decorrência do princípio democrático na seara ambiental, destaca-se ainda a
exigência de inclusão da população nos processos de tomada de decisão. Uma vez que, conforme o
já mencionado, o meio ambiente é bem de uso comum do povo, a coletividade possui o direito de
se manifestar sobre aspectos relevantes envolvendo a sua gestão.
Nas palavras de Kiss e Shelton: “[a] participação pública é baseada no direito das pessoas que
podem ser afetadas a terem uma palavra a dizer sobre a determinação do seu futuro ambiental”99.
Quando se trata de democracia participativa ecológica, três elementos-chave alicerçam a
participação pública no âmbito da gestão ambiental: i) participação pública na tomada de decisões;
ii) acesso à informação; e iii) acesso à justiça 100.
A Lei de Crimes e Infrações Administrativas Ambientais (Lei nº 9.605/98) prevê tal direito
no seu art. 70, § 2º, ao estabelecer que: “qualquer pessoa, constatando infração ambiental, poderá
dirigir representação às autoridades relacionadas no parágrafo anterior, para efeito do exercício do
seu poder de polícia”.
Além disso, o próprio licenciamento ambiental não pode prescindir de publicidade e garantia
de acesso à informação e à manifestação com relação ao empreendimento em questão por parte da
comunidade, o que é efetivado pela realização de audiências públicas; pela publicação de obtenção de
licenças no Diário Oficial e em jornais de grande circulação; bem como pela necessidade elaboração
de um Relatório de Impacto Ambiental (Rima), que descreve os impactos do empreendimento de
forma mais simplificada, para conferir maior acessibilidade a leigos nas questões técnicas envolvidas,
entre diversos outros instrumentos administrativos que poderiam ser citados 101.
Ademais, a própria estruturação do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama) já assume
a participação popular como um importante pilar, garantindo o diálogo com a sociedade na
construção de normas, critérios e padrões relativos ao controle e à manutenção da qualidade
ambiental, especialmente por meio da presença de representantes da comunidade, associações civis,
etc. nos conselhos e nos órgãos colegiados de defesa do ambiente como o Conselho Nacional do
Meio Ambiente (Conama) 102.

99
KISS; SHELTON. Guide to international environmental law, p. 102 apud SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago.
Princípios do direito ambiental, p. 151.
100
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Op. cit., p. 159.
101
Um exemplo de aplicação desse princípio que pode ser citado é o ajuizamento da ADPF 623 – ação ajuizada pelo Partido
dos Trabalhadores (PT) contra decreto do governo federal que modificou as regras de composição do Conama, com a
alegada redução da participação da sociedade civil. Conforme o indicado pela ministra Rosa Weber na ocasião: “tais regras
obstaculizam, quando não impedem, as reais oportunidades de participação social na arena decisória ambiental,
ocasionando um déficit democrático, procedimental e qualitativo, irrecuperável”.
102
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Op. cit., p. 170-171.

29
Princípio da função socioambiental da propriedade
Conforme o descrito por Milaré 103, o dever de preservação ambiental tem como uma das suas
facetas a limitação do direito de propriedade, isto é, embora a Constituição preveja o direito
fundamental à propriedade, este deve ser modulado pelo bem-estar social e pela defesa do meio
ambiente, não podendo ser visto como ilimitado.
Isso porque, nos moldes do art. 182, § 2º, da CRFB/88, a propriedade deve cumprir uma
função social, o que inclui o dever de preservação do meio ambiente – bem de toda a sociedade –,
para a presente e as futuras gerações. Tal função socioambiental da propriedade não configura mero
limite negativo ao exercício do direito de propriedade. Ao contrário, traz também obrigações positivas
ao proprietário no exercício do seu direito, de modo que se promova a conservação ambiental.
Com base nesse princípio, as normas ambientais preveem deveres de recomposição de
vegetação em áreas de preservação permanente e reserva legal, ainda que não tenha sido o atual
proprietário ou possuidor o responsável pelo desmatamento, pois se trata do caráter propter rem da
obrigação. Sendo assim, a CRFB/88 não admite direito adquirido em exploração de áreas que não
cumpram com a sua função social e ambiental 104.
Nesse sentido, já se posicionou o STJ: “a propriedade privada deve observar sua função
ambiental em exegese teleológica da função social da propriedade, respeitando os valores ambientais
e direitos ecológicos” (STJ, REsp 1775867/SP, rel. min. Og Fernandes, j. 16/05/2019).

Princípio da proibição do retrocesso ambiental


Outro princípio de extrema relevância é o de vedação ao retrocesso em matéria ambiental.
Trata-se de um princípio implícito – e não previsto constitucionalmente –, mas que já conta com
ampla aceitação no meio acadêmico e na jurisprudência pátria. Determina que se mantenha “o piso
de garantias constitucionalmente postas ou se avance na proteção do meio ambiente” 105.
Tal questão esteve especialmente em voga após a promulgação no novo Código Florestal (Lei
nº 12.651, de 25 de maio de 2012), ocasião na qual foram ajuizadas as Ações Diretas de
Inconstitucionalidade nº 4.901, nº 4.902 e nº 4.903, as quais alegavam que as normas previstas na
legislação representavam um retrocesso na esfera de proteção ambiental, sendo, portanto,
inconstitucionais.

103
MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 11 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 276-277.
104
Ibid., p. 278. No mesmo sentido, o Código Civil prevê no seu art. 1.228, § 1º: “O direito de propriedade deve ser exercido
em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o
estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico,
bem como evitada a poluição do ar e das águas”.
105
MILARÉ, Édis. Op. cit., p. 279.

30
Todavia, ao apreciar a matéria em 2018, o STF declarou a constitucionalidade da ampla
maioria dos dispositivos, restando o novo código em conformidade com as previsões constitucionais
e dentro da esfera de determinação de políticas públicas por parte do legislador.
Na ocasião, a Corte entendeu que o princípio de vedação ao retrocesso não poderia ser
utilizado para afastar arranjos democraticamente estabelecidos:

O engessamento das possibilidades de escolhas na formulação de políticas


públicas, a impedir a redistribuição de recursos disponíveis entre as diversas
finalidades carentes de satisfação na sociedade, em nome de uma suposta
“vedação ao retrocesso” sem base no texto constitucional, viola o núcleo
básico do princípio democrático e transfere indevidamente ao Judiciário
funções inerentes aos Poderes Legislativo e Executivo (STF, ADC 42, rel.
min. Luiz Fux, j. 28/02/2018)

Nesse sentido, observa-se que o princípio em questão – assim como todos os demais – deve
ser ponderado pelos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, isto é, com o devido
sopesamento dos princípios e dos direitos fundamentais em conflito, de modo a buscar uma solução
que maximize as suas previsões e os restrinja o mínimo possível. Devem ainda ser balizados pelos
pressupostos da proibição do excesso e da proteção insuficiente do meio ambiente 106.
Em outras palavras,

A utilização do princípio da vedação ao retrocesso em matéria ambiental,


assim, deve ser reservada a situações nas quais o núcleo do direito
fundamental esteja claramente sendo violado com a inovação legislativa, a
caracterizar situação de manifesta proteção insuficiente de interesse que
goza de especial tutela por parte do sistema jurídico 107.

Princípio da cooperação: nacional e internacional


Tendo em vista que os danos ambientais frequentemente não se limitam aos limites
territoriais de um único país, uma importante preocupação é com a gestão de recursos naturais por
meio de tratados e acordos bilaterais e multilaterais 108.

106
MILARÉ, Édis. Op. cit., p. 281-282. Vide art. 19, § 3º, do Decreto Federal 6.514, de 22 de julho de 2008.
107
MILARÉ, Édis. Op. cit., p. 283.
108
MILARÉ, Édis. Op. cit., p. 283.

31
A própria CRFB/88 estabelece no seu art. 4º, IX, que a “República Federativa do Brasil rege-
se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: (...) cooperação entre os povos para o
progresso da humanidade”.
Nesse sentido, diversas convenções e acordos internacionais foram firmados para a garantia
de tutela do meio ambiente; o intercâmbio de tecnologias; o compartilhamento de experiências
científicas; e o apoio financeiro entre os países 109.
Entre eles, o Princípio 24 da Declaração de Estocolmo de 1972 convencionou:

Todos os países, grandes e pequenos, devem ocupar-se com espírito e


cooperação e em pé de igualdade das questões internacionais relativas à
proteção e melhoramento do meio ambiente. É indispensável cooperar para
controlar, evitar, reduzir e eliminar eficazmente os efeitos prejudiciais que as
atividades que se realizem em qualquer esfera, possam ter para o meio
ambiente, mediante acordos multilaterais ou bilaterais, ou por outros meios
apropriados, respeitados a soberania e os interesses de todos os estados.

A mesma lógica é aplicada no âmbito nacional entre os entes federativos. O art. 23, parágrafo
único, da CRFB/88 prevê que: “Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a
União e os estados, o Distrito Federal e os municípios, tendo em vista o equilíbrio do
desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional”.
A Lei Complementar nº 140, de 8 de dezembro de 2011, incorporou o referido princípio no
ordenamento pátrio 110 no seu art. 1º, que visa fixar normas para a:

cooperação entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios


nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum
relativas à proteção das paisagens naturais notáveis, à proteção do meio
ambiente, ao combate à poluição em qualquer de suas formas e à
preservação das florestas, da fauna e da flora 111.

109
Ibid., p. 284.
110
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Op. cit., p. 227.
111
BRASIL. Lei Complementar nº 140, de 8 de dezembro de 2011. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
lcp/lcp140.htm. Acesso em: maio 2023.

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PROFESSORA-AUTORA
Júlia Massadas
Formação acadêmica
 Doutoranda em Direito da Cidade pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (Uerj).
 Mestre em Direito da Regulação pela Escola de Direito do Rio de
Janeiro (FGV Direito Rio).
 Graduada cum laude em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Experiência profissional
 Atuou como pesquisadora visitante no Max Planck Institute for Comparative Public Law
and International Law.
 Atuou como professora substituta da Faculdade de Direito e do Instituto de Relações
Internacionais da UFRJ.
 Ex-bolsista do DAAD/Universität zu Köln e do Semester at Sea/University of Virginia.
 Embaixadora da FGV Direito Rio perante os Institutos Max Planck.
 Advogada atuante na área de Direito Ambiental.
 Professora convidada do LL.M em Direito da Infraestrutura e da Regulação da FGV
Direito Rio e do FGV Online.

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