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CENTRO UNIVERSITÁRIO SÃO MIGUEL

CURSO DE GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL

MARIA EDUARDA PORTELA DA SILVA

A RELAÇÃO ENTRE ESTADO E SOCIEDADE CIVIL NA


CONSTRUÇÃO DO COMITÊ DE GESTÃO COLEGIADA DA
REDE DE PROTEÇÃO SOCIAL DE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES VÍTIMAS E TESTEMUNHAS DE
VIOLÊNCIA NO MUNICÍPIO DO RECIFE.

RECIFE
2020
MARIA EDUARDA PORTELA DA SILVA

A RELAÇÃO ENTRE ESTADO E SOCIEDADE CIVIL NA


CONSTRUÇÃO DO COMITÊ DE GESTÃO COLEGIADA DA
REDE DE PROTEÇÃO SOCIAL DE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES VÍTIMAS E TESTEMUNHAS DE
VIOLÊNCIA NO MUNICIPIO DO RECIFE.

Monografia apresentada ao Centro


Universitário São Miguel - UNISÂOMIGUEL,
como requisito para a obtenção do título de
graduado em Serviço Social.
Professora Orientadora: Dra. Rosiglay
Cavalcante Vasconcelos.

RECIFE

2020
SILVA, Maria Eduarda Portela da

A RELAÇÃO ENTRE ESTADO E SOCIEDADE CIVIL NA


CONSTRUÇÃO DO COMITÊ DE GESTÃO COLEGIADA DA
REDE DE PROTEÇÃO SOCIAL DE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES VÍTIMAS E TESTEMUNHAS DE VIOLÊNCIA
NO MUNICIPIO DO RECIFE.

Trabalho de conclusão de curso (Graduação em


Serviço Social) – UNISÃOMIGUEL, Campus Conde da Boa
Vista, Recife, 2020.
Orientador (a): Prof.ª Dra. Rosiglay Cavalcante
Vasconcelos.
MARIA EDUARDA PORTELA DA SILVA

A RELAÇÃO ENTRE ESTADO E SOCIEDADE CIVIL NA


CONSTRUÇÃO DO COMITÊ DE GESTÃO COLEGIADA DA
REDE DE PROTEÇÃO SOCIAL DE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES VÍTIMAS E TESTEMUNHAS DE
VIOLÊNCIA NO MUNICIPIO DO RECIFE.

Monografia apresentada ao Curso de


Serviço Social da UniSãoMiguel, como
requisito parcial para obtenção do grau.

Trabalho aprovado com conceito _____ em ____/____/________.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________
Prof.°
Professor Examinador

____________________________________________________
Prof.°
Professora Examinadora

____________________________________________________
Prof.°
Professora Examinadora
RESUMO
ABSTRACT
LISTA DE TABELAS
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO........................................................................................................ 9
2. O SISTEMA DE PROTEÇÃO SOCIAL À CRIANÇA E ADOLESCENTE NA
CONTEMPORANEIDADE...........................................................................................9
2.1 Direitos Humanos e Cidadania na Sociedade capitalista...................................9
2.2 O sistema de proteção social à crianças e adolescentes.................................18
3. AS POLÍTICAS DE PROTEÇÃO ÀS CRIANÇAS E ADOLESCENTES NA
SOCIEDADE BRASILEIRA.......................................................................................24
3.1 A atuação do Estado na política de atendimento às crianças e aos
adolescentes no Brasil........................................................................................... 24
3.2 A Política de proteção social a criança e ao adolescente na sociedade
Brasileira.................................................................................................................31
4. O ESTADO E A SOCIEDADE CIVIL NA CONSTRUÇÃO DO COMITÊ
COLEGIADO DA REDE DE PROTEÇÃO SOCIAL À CRIANÇA E AO
ADOLESCENTE VÍTIMA OU TESTEMUNHA DE VIOLÊNCIA NO MUNICÍPIO DE
RECIFE......................................................................................................................34
4.1 A Violência contra crianças e adolescentes e o Munícipio do Recife...............34
4.2 O comitê colegiado da rede de proteção social à criança e ao adolescente
vítima ou testemunha de violência no município de recife.....................................36
REFERÊNCIAS......................................................................................................... 39
1. INTRODUÇÃO

2. O SISTEMA DE PROTEÇÃO SOCIAL À CRIANÇA E ADOLESCENTE NA


CONTEMPORANEIDADE.

2.1 Direitos Humanos e Cidadania na Sociedade capitalista.

A Declaração universal dos direitos Humanos de 1948 é responsável pela


expansão das garantias e direitos para os indivíduos da sociedade. Essa
declaração, no que se dispõem os seus princípios, também serviu como base para o
que se pode considerar, hoje, como um sistema de garantia de direitos às crianças e
aos adolescentes.
Considerando que é fundamental a proteção dos direitos do homem por
meio de um regime de direito, para que ao homem não seja imposto, em supremo
recurso, à revolta contra a tirania e a opressão, a declaração universal é
compreendida como um:

ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações, a fim de que
todos os indivíduos e todos os órgãos da sociedade, tendo-a
constantemente no espírito, se esforcem, pelo ensino e pela educação, por
desenvolver o respeito desses direitos e liberdades e por promover, por
medidas progressivas de ordem nacional e internacional, o seu
reconhecimento e a sua aplicação universais e efetivos tanto entre as
populações dos próprios Estados membros como entre as dos territórios
colocados sob a sua jurisdição. (Declaração Universal dos Direitos
Humanos, 1948).

Nesse sentido, os princípios e ideias contidas nesta declaração contribuíram


para expansão da concepção de cidadania no contexto social em que foi
conquistada. Considerando que ela serve com fundamento e direcionamento para a
Declaração dos Direitos da Criança de 1959, no qual, a questão da garantia de
direitos e o reconhecimento deste segmento social vai se expandindo.
Proclamando que a criança tenha uma infância feliz e possa gozar, em seu
próprio benefício e no da sociedade, os direitos e as liberdades enunciados, a
declaração de direitos da criança afirma a necessidade de reconhecimento destes
direitos, por parte da sociedade, as autoridades locais, governos nacionais e as

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organizações voluntárias, salientando a importância da participação desses âmbitos
no cumprimento dos princípios contidos na respectiva declaração.
Como bem consta no seu princípio 2, essa declaração afirma que é direito
da criança desfrutar de proteção que lhe será garantida como também, de
oportunidades e facilidades através da lei e outros meios, na perspectiva de
viabilizar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, de forma sadia
e normal e em condições de liberdade e dignidade.
Com isso, a compreensão de que a criança e ao adolescente apresentam a
condição de ser humano em processo de desenvolvimento, é de significativa
importância no momento de assegurar e fornecer condições para tal
desenvolvimento de maneira íntegra.
Nesse sentido, atualmente, é válido afirmar que essas Declarações expande
a concepção de cidadania para os indivíduos da sociedade, em especial para as
crianças e adolescentes. Levando em consideração o contexto histórico-social em
que ela foi conquistada, quando a garantia de direitos e liberdades que
correspondem ao pleno exercício de sua cidadania ganhou uma nova dimensão.
Considerando a importância deste documento para a ampliação da
cidadania da criança e do adolescente, é válido refletir sobre o terreno histórico-
social em que se formula a concepção de cidadania, uma vez que, nem sempre ela
apresentou um caráter universal.
Deve-se levar em consideração que essa reconfiguração é efeito desse
processo de formação histórico-social, no que diz respeito ao entendimento sobre
garantia de direitos e cidadania. No qual, os primeiros exemplos de cidadania
remetem-se à Grécia Antiga. Mas, para tal análise, é necessário compreender a
relação estabelecida entre cidadania, democracia e conquistas de direitos em todo
esse processo histórico-político e social.
Segundo Wood (2010), os gregos não inventaram a escravidão, mas, em
certo sentido inventaram o trabalho livre. Compreendendo que a escravidão atingiu
um nível sem precedentes na Grécia clássica, particularmente em Atenas, não havia
no mundo antigo nada de novo sobre o trabalho não livre e a relação mantida entre
senhor e escravo.
Isso por que, o trabalhador livre, considerado cidadão, era dotado de
liberdades jurídicas e livre de toda e qualquer exploração por coação direta dos

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donos de terra ou do Estado. Uma condição encontrada nesta formação social é que
ela era pautada na distinção estabelecida na relação entre as classes apropriadoras
e as produtoras. Segundo Wood (2010) essa formação única está no centro de
grande parte do que caracteriza a Polis grega especialmente a democracia
ateniense.
No que se refere a questão do trabalho e seus impactos culturais, Wood
(2010) afirma que os historiadores das antiguidades dão propriedade absoluta à
escravidão. E, a partir dessa associação, se foi gerando um desprezo geral pelo
trabalho na cultura grega antiga
Nessa linha de raciocínio, como bem traz Wood (2010) embora diversas
formas de trabalho livre tenha sido uma característica comum em muitos lugares na
maioria dos tempos, a condição desfrutada pelo trabalho livre na democracia de
Atenas não teve precedente e, sob muitos aspectos, permaneceu em inigualável
desde então. Ou seja, é de fácil percepção que a escravidão sendo considerada
como categoria de trabalho não livre, se distingue das outras categorias por se
mostrar na condição de servidão ou dívida. E a partir disso, existência da escravidão
acaba por definir de forma explícita, não a liberdade do cidadão, mas sim aqueles
que se encontravam na condição de escravos.
A indiferença frente a mão de obra livre, no que se refere ao alcance de suas
consequências, é bem perceptível mesmo com aspecto singular deste contexto
social. Isso porque, Segundo Wood (2010) não seria exagero afirmar, por exemplo,
que a verdadeira característica da polis como forma de organização de Estado é
exatamente essa, a união de trabalho e cidadania específica da cidadania
camponesa.
O processo de apropriação, nas sociedades pré-capitalistas, em que os
camponeses eram tidos como principal classe produtora, assumia a estrutura do que
se conhece como propriedade politicamente constituída, como bem traz Wood
(2010) apropriação conquistada por vários mecanismos de dependência política e
jurídica, por coação direta - trabalho imposto sobre a formação de dívida,
escravidão, relações tributárias, imposto, corveia e outras.
Esse modelo de expropriação já existia na Grécia antiga antes mesmo da
estruturação da polis. No entanto, a Grécia vai surgir com uma nova forma de
organização social coligando proprietários e camponês em uma única unidade cívica

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e militar. Explicita Wood (2010) que a própria ideia de comunidade cívica e de
cidadania, como algo diferente de um aparelho estatal de uma comunidade de
governantes superpostos era a característica da Grécia e da Roma; e indicava uma
relação inteiramente nova entre apropriadores e produtores.
Nesse sentido, o cidadão camponês caracteriza uma ruptura com as demais
civilizações que o precedeu e até mesmo o Estado grego na idade do bronze. A
polis grega atribuiu uma nova configuração, no que se refere, ao padrão geral desse
contexto social mantido na relação entre governadores e produtores e, em especial
a distinção entre os Estados apropriadores das comunidades e os camponeses
expropriados. Segundo Wood (2010) na comunidade cívica, a participação do
produtor - especialmente na democracia ateniense - significava um grau sem
paralelos de liberdade dos modos tradicionais de exploração, tanto na forma de
obrigação por dívida ou de servidão quanto na de impostos.
Portanto, compreende-se que a democracia acontecia por meio da condição
de participação ativa dos cidadãos nos assuntos políticos que se referiam a polis,
entendendo por cidadãos aqueles que não fossem mulheres, homens estrangeiros e
livres de toda e qual exploração ou prestação de trabalho a outros, ou seja, a
cidadania ativa somente era configurada aos homens proprietários.
Logo, interpreta-se que o sistema político democrático da Grécia antiga, no
que se refere ao seu caráter substantivo, era concretizado mediante a participação
daqueles que eram considerados cidadãos, onde a cidadania por sua vez,
apresentava um conceito e perspectiva restritos, uma vez que, só homens
proprietários poderiam participar nos assuntos políticos referentes a polis grega.
O sistema de produção capitalista e sua democracia moderna, apresenta
algumas divergências no que diz respeito à antiga democracia grega. Fazem parte
do modelo capitalista a desigualdade social e a exploração econômica, mas
também, a liberdade e igualdade cívica.
Segundo Wood (2010) na sociedade capitalista, os produtores primários são
sujeitos a pressões econômicas independente de sua condição política.
Diferentemente da cidadania democrática de Atenas, em que os pequenos
produtores estavam livres das extorsões econômicas em que os produtores da
sociedade capitalista estão submetidos.

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Mas, é importante considerar que esse novo modelo socioeconômico tem
em sua essência a questão a apropriação de mais-valia da classe trabalhadora. Não
pelo fato de seus privilégios jurídicos, nem tampouco a sua condição cívica, mas
pelo fato dos trabalhadores não serem detentores de propriedades, onde
consequentemente, eles precisam vender a sua força de trabalho para garantir os
mínimos meios de subsistência.
E, no que se refere às crianças e aos adolescentes, é importante salientar
que nesse período, eram atribuídas para esses as mesmas condições precárias
para o trabalho, no qual muitas vezes eram exercidas as mesmas funções e os
salários eram menores.
Assim, os trabalhadores estão submetidos não só ao poder de expropriação
capitalista como também, ao processo de maximização de lucros. E, pertinente a
isso, Wood (2010) explicita que:

A separação da condição cívica da situação de classe nas sociedades


capitalistas tem, assim, dois lados: de um, o direito de cidadania não é
determinado por posição sócio econômica - e, neste sentido, o capitalismo
coexiste com a democracia formal -, de outro, a igualdade cívica não afeta
diretamente a desigualdade de classe, e a democracia formal deixa
fundamentalmente intacta a exploração de classe. (WOOD, 2010. P 173)

Com isso, sobre a cidadania moderna trazida por Coutinho também está
estreitamente articulada com a democracia. E, na perspectiva de compreender essa
articulação estabelecida entre a democracia e a cidadania moderna, cabe aqui
conceituar este novo ponto de vista sobre essas respectivas categorias.
(COUTINHO, 1994. p. 41)
Para Coutinho (1994) democracia é sinônimo de soberania popular. Ele a
considera como a presença ativa das condições sociais e institucionais que
possibilitam ao conjunto dos cidadãos a participação ativa na formação do governo
e, em consequência, no controle da vida social.
Partindo dos pressupostos de Marx, Coutinho (1994) também aponta que a
democracia pode ser sumariamente definida como a mais exitosa tentativa até hoje
inventada para superar a alienação na esfera política. Isso porque, com base no
pensamento de Rousseau, compreende-se que a democracia se apresenta como
um espaço da construção coletiva da Esfera pública.

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E com isso, a reprodução social da classe trabalhadora só poderia acontecer
a partir da reabsorção dos bens sociais, representando a democracia, por meio do
acesso a cidadania. Para Coutinho, a cidadania moderna é:

Cidadania é a capacidade conquistada por alguns indivíduos, ou (no caso


de uma democracia efetiva) por todos os indivíduos, de se apropriarem dos
bens socialmente criados, de atualizarem todas as potencialidades de
realização humana abetas pela vida social, em cada contexto
historicamente determinado. (COUTINHHO,1994. p. 42)

Com base nisso, é importante considerar a expressão “historicamente”


trazida por Coutinho nessa conceituação, tendo em vista o fato de que a soberania
popular, a democracia e a cidadania devem ser consideradas como processos
eminentemente históricos, como conceitos e realidades aos quais a história atribui
permanentemente novas e mais ricas determinações. (COUTINHO, 1994. p. 42)
Partindo dessa concepção, compreende-se que, diferentemente do conceito
de cidadania na Grécia antiga, no capitalismo, o direito à cidadania não é
determinado pela condição socioeconômica. E, somente nesse sistema, foi possível
permanecer intacto as relações estabelecidas entre o capital e o trabalho, no mesmo
momento em que ia acontecendo a democratização dos direitos.
Cabe salientar que a concepção e a realidade da cidadania na modernidade
estão organicamente relacionadas com a ideia de direitos, dado que os direitos são
fenômenos sociais, resultado de um longo processo histórico-político.
Segundo COUTO (2010) esses direitos começaram a ser defendidos a partir
dos séculos XVII e XVIII, na luta contra o absolutismo. Naquele período, as classes
burguesas em ascensão lutavam contra o poder absoluto dos reis e do Estado
absolutista, fator esse que desencadeou total insatisfação dessa classe perante ao
modo em que era exercido o poder e, por meio dos direitos civis, tentavam pôr
limites ao poder do rei e do Estado absolutista.
Mas antes de analisar o processo dessas conquistas de direitos é relevante
levar em consideração, no que se refere às crianças e adolescentes, que nesse
período ainda estava em um processo da descoberta da infância, tendo em vista que
as vidas cotidianas das crianças estavam misturadas com os adultos e como bem
traz Ariès (1986) havia um sentimento demasiado de indiferença em relação a
infância, atrelado a insensibilidade da sociedade em frente a essas crianças e
adolescentes.

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Ainda sobe o processo de conquista de direitos é necessário levar em
consideração, os dois paradigmas que compreendem a ideia desse movimento.
Couto (2010) traz que, o primeiro é definido pelo jusnaturalistas, que compreendem
o campo do direito como algo inerente à condição humana, fundado numa lógica
apriorística, onde a natureza humana, por si só, é detentora de direitos. Ou seja,
essa perspectiva postula o pensamento de que os direitos são intrínsecos aos
indivíduos e que independem das experiências concretas.
Já a segunda perspectiva, pelas palavras de Couto (2010) é representado
pela ideia de que os direitos são resultados do movimento histórico em que são
debatidos, correspondendo a um homem concreto e suas necessidades, delimitado
pelas condições sociais, econômicas e culturais de determinada sociedade. Nesse
sentido, é importante considerar que, os direitos são estabelecidos em determinados
períodos e condições, e se referem a um homem concreto que vive essas condições
e esse período.
Para melhor analisar o campo dos direitos, Couto (2010) os divide em
gerações. Compondo a primeira geração de direitos, os direitos civis são
conquistados e tem sua efetivação no século XVIII, sucedido pelos direitos políticos
no século XIX. Objetivados a impor limites da atuação do Estado absolutista no
exercício de seu poder, esses direitos eram exercidos, individualmente, pelos
homens, e Couto (2010) explicita essa questão, pois é o homem, fundado na ideia
da liberdade, que deve ser seu titular dos direitos civis, exercendo-os contra o poder
do Estado, ou, no caso dos direitos políticos, exercê-los na esfera de intervenção no
Estado.
Nesse sentido, é importante levar em consideração a concepção de
liberdade, dado que, naquele período o Estado absolutista para as classes
burguesas, interferia demasiadamente em suas liberdades individuais. Portanto,
para Potyara (2009) trata-se de chamar de liberdade negativa [...] liberdade que
nega qualquer interferência do estado ou do governo dos assuntos privados,
especialmente no mercado. Com isso, deve-se levar em consideração que, a
liberdade é considerada um dos princípios matriciais que se encontram no eixo da
relação entre o Estado e a sociedade, bem como a relação da esfera pública e
privada. (POTYARA, 2009)

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No final do século XIX, com o desenvolvimento da economia capitalista e a
formação de monopólios, a existência das crises cíclicas do sistema capitalista e as
conquistas dos movimentos democrático naquele período, possibilitando a criação
de sindicatos e de partidos políticos, decorreu-se uma socialização política. Nesse
sentido, havendo uma ampliação das funções estatais, surge uma nova concepção
de liberdade, desta vez pautada no sentido positivo, no qual, segundo Potyara
(2009) essa liberdade positiva invocava a efetiva participação do Estado nos
assuntos da sociedade, para, inclusive, tornar as liberdades individuais possíveis.
E, é a partir da compreensão dessa liberdade positiva conferindo a efetiva
participação do estado nos assuntos da sociedade, fazendo-o capaz de tornar as
liberdades individuais possíveis, que vai resultar na conquista democrática dos
direitos sociais. A concretização desses direitos se dá a partir do século XX, no qual
vai ser mediada pelas políticas públicas.
Segundo Potyara (2009) estas políticas, por serem públicas (e não
propriamente estatais ou coletivas e privadas), têm dimensão e escopo que
ultrapassa os limites do estado, dos agregados grupais, das corporações e,
obviamente, do indivíduo isolado. Isso por que, o termo “público”, que também
qualifica a política, tem um intrínseco sentido de universalidade e de totalidade
orgânica. E, com isso as políticas públicas não podem ser entendidas como políticas
estatais ou de governo, nem tão pouco como de iniciativa privada, independente de
precisarem dessas esferas, aliadas a sociedade civil, para a sua realização.
Nessa perspectiva teórica, compreende-se que a liberdade tida como um
princípio matricial entre Estado e sociedade não deve ser moldada com princípios
que neguem a participação ativa do Estado nos assuntos da sociedade. Sendo
assim, é necessária uma associação a outro princípio matricial: a igualdade
substantiva (e não só formal), que implica a equidade e justiça social. (POTYARA,
2009)
Com isso, para sua realização é de significativa importância a participação
ativa do Estado na constituição e no reforço das esferas públicas, também
conhecidas como espaços de todos, em que a liberdade positiva seja inerente no
processo de participação política da sociedade civil. Isso porque, é de
responsabilidade cívica o exercício da autonomia de agência e de crítica e para a
prática responsável de direitos e deveres.

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Compreende-se que, a Esfera pública é considerada um espaço que tem
seu fundamento histórico-social na relação estabelecida entre Estado e sociedade,
relação essa permeada por conflitos e negociações em que aparecem como
demandas distintas e se dispõem em determinações baseadas nos próprios
parâmetros públicos que reconfiguraram as políticas e, consequentemente, a
garantia de direitos.
No entanto, apesar de todos esses avanços pertinentes a proteção social
dos indivíduos, e de fácil percepção que as crianças e adolescentes ainda não
tinham recebido a prioridade necessária, no que diz respeito a sua condição de
vulnerabilidade por ainda ser um ser humano em desenvolvimento.
Isso por que, por muito tempo, não se tinha o conhecimento acerca dessa
condição expressa na realidade social das crianças e adolescentes. Ao analisar, os
princípios do que se pode considerar proteção social, às crianças e adolescentes
recebiam os mesmos tratamentos que homens adultos.
Potyara (2008) aborda sobre as primeiras ações da assistência social,
quando ela traz que, em 1351, na Grã-Bretanha sobre o reinado de Eduardo III, a
Peste Negra aliada ao desafio econômico de enfrentar uma crônica escassez de
braços para trabalho nas fazendas, implicando o aumento de salário, vai resultar no
estabelecimento da relação entre assistência social e trabalho.
Diante disso, segundo Potyara (2008) em 1388, as poor law act (Lei dos
pobres) consistem nas primeiras expressões da assistência social institucional.
Essas leis procuravam não só fixar os salários, mas também evitar que a mobilidade
dos trabalhadores entre paróquias propicia a elevação do mesmo.
Visando extinguir a “vagabundagem” e a mendicância expressivas naquele
contexto social, essas leis apresentavam uma perspectiva mais punitiva que
protetiva, e, mesmo assim não tão eficiente e eficaz para o alcance de seu objetivo,
visto que, esse tipo de controle social não foi o suficiente para eliminar a
“vagabundagem” e a mendicância daquele período.
Posteriormente, segundo Potyara (2008), atitudes menos draconianas em
relação aos “vagabundos” inválidos para o trabalho foram adotadas, a partir dos
anos de 1530, sob o reinado de Henrique VIII. Nesse contexto, o Estado viu-se no
entendimento de que deveria se responsabilizar sobre eles, no qual, receberam
permissões para mendigar em determinados locais. Potyara (2008) traz que, além

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disso, as paróquias foram autorizadas a recolher dinheiro de voluntários para assisti-
los minimamente. Em compensação, crianças desocupadas de cinco a quatorze
anos de idade eram separadas de seus pais e internadas em asilos, enquanto os
“vagabundos” válidos eram implacavelmente punidos.
Levando em consideração entendimento sobre “vagabundo” válido ou pobre
válido, como aquele que é forte ou apto para trabalho, a indução compulsória dele
ao trabalho, assim como a cobrança de contrapartida do beneficiário da assistência,
sobre a forma de prestação de serviços, tornou-se, em 1576, um procedimento
previsto em lei. (POTYARA, 2008)
A partir dessas iniciativas, vai se surgindo uma organização nesse sistema
assistencial. Potyara (2008) traz que para além da mera repressão, já se observava
uma tentativa de gestão administrativa dos grupos a serem atendidos. Os
“vagabundos” passaram a ser classificados em pobres impotentes (idosos, enfermos
crônicos, cegos e doentes mentais), que deveriam ser alojados em asilos ou
hospícios; pobres capazes para o trabalho ou mendigos fortes, que deveriam ser
colocados para prestar serviços, e aqueles capazes para o trabalho, no entanto se
recusavam a fazê-lo, considerados como corruptos.
E, nesse contexto, aborda Potyara (2008) além destes, havia crianças
dependentes (órfãs ou abandonadas), que eram entregues a qualquer habitante que
quisesse empregá-las em serviços domésticos ou não cobrasse nada (ou muito
pouco) pelo seu sustento. Ou seja, as crianças ficavam de fora de qualquer
assistência, mínima que fosse, no que se refere ao atendimento de suas
necessidades básicas.
Em vista disso, é fácil compreender que o processo de formação da
proteção social à crianças e adolescentes é tardio, levando em consideração a
condição que era atribuída a este segmento social, uma vez que, a compreensão da
vulnerabilidade social e carência de proteção para tal grupo levou muito tempo para
ser reconhecida, fator esse que implica diretamente na composição desse sistema
de proteção social.

2.2 O sistema de proteção social à crianças e adolescentes.

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A Política de proteção social à criança e adolescente ganha um novo
dimensionamento, quando a sociedade os reconhecem como um segmento social
diferenciado, quando o Estado passa a institucionalizar leis para tal proteção. Na
sociedade Brasileira, a Constituição Federal de 1988, foi responsável por
impulsionar a legitimação dos direitos fundamentais a esta categoria social, sendo
considerada uma das principais norteadoras da construção da Política Proteção
Social a crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.
No contexto social pós Constituição de 1988, foram se institucionalizando
muitas outras legislações que compõem, atualmente, esta Política de Proteção
Social. A Lei 8.069/90, também conhecida como o Estatuto da Criança e do
Adolescente, sendo considerada um dos importantes avanços no que diz respeito a
garantia de direitos a este segmento social, dispõe sobre a proteção integral à
criança e ao adolescente.
E, com os avanços apresentados por essa política de proteção social no que
se refere a garantia de direitos de maneira articulada e integrada, é de significativa
importância levar em consideração o Art. 227° da Constituição Federal de 1988:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao


adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde,
à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão.

A partir disso, reafirma-se a responsabilidade do Estado na garantia dos


direitos fundamentais às crianças e adolescentes, mas também é necessário
compreender a relevância do papel contributivo que a sociedade civil deve
desempenhar, no que se refere à garantia desses direitos fundamentais às crianças
e aos adolescentes.
Sobre o sistema de garantia de direitos, Arcìa (1999) faz algumas
considerações sobre a sua estruturação no que se refere aos seus três eixos que se
fundamentam numa articulação entre os espaços públicos e os
instrumentos/mecanismos a serem mobilizados na consecução dos objetivos do
atendimento, vigilância e da responsabilização.
O eixo da Promoção tem como objetivo a deliberação e a formulação da
política de atendimento de direitos. Esse eixo prioriza e qualifica como direito o

19
atendimento das necessidades básicas da criança e do adolescente, por meio das
políticas públicas.
Com relação ao eixo de Defesa dos direitos, sua principal finalidade e a
responsabilização do Estado, da sociedade e da família, pelo não atendimento,
atendimento irregular ou violação dos direitos individuais ou coletivo das crianças e
dos adolescentes. Na perspectiva de assegurar garantia da exigibilidade dos
direitos, esse eixo atua por meio de ações judiciais, medidas administrativas e
mobilização social.
Já o eixo de controle social é aquele responsável pela vigilância do
cumprimento dos preceitos legais constitucionais e infraconstitucionais. Se trata do
controle externo não institucional da ação do poder público, por meio da participação
da sociedade civil.
Como bem traz Arcìa (1999) é este o espaço da sociedade civil articulado
em “fóruns” e em outras instâncias não institucionais semelhantes (frentes, pactos) -
contrapartes essenciais para existência dos conselhos de direitos, integrados pelas
organizações representativas da sociedade civil.
A partir disso deve se levar em consideração a significativa importância do
eixo de controle social para a formulação e o desenvolvimento da política de
proteção social a crianças e aos adolescentes. Isso porque, além de ser considerado
um espaço de criação de instrumentos a serem idealizados ou utilizados de acordo
com as demandas da sociedade civil, ele também é o eixo que configura a
mobilização dessa sociedade para o monitoramento dos orçamentos público, bem
como o funcionamento dessa política.
Nesse sentido, é de significativa importância levar em consideração não só a
atuação do Estado na Proteção social às crianças e adolescentes vítimas ou
testemunhas de violência, mas também a participação ativa da sociedade civil como
um todo, tendo em vista o seu importante papel político em ações voltadas para a
garantia de direitos.
Isso porque, para se chegar ao sistema atual de proteção social à criança e
adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, foi-se necessário um longo
período de lutas e conquistas da sociedade civil, ou seja, a classe trabalhadora tem
fundamental importância no processo de conquistas dos direitos sociais que
correspondem à tal sistema de garantias,

20
Partindo disso, tomando como perspectiva para análise, é de significativa
importância a compreensão acerca da relação Estado-sociedade como um meio de
articulação e conflitos político-econômicos, se manifestando na esfera privada e
pública, do poder clientelista/autoritário e do movimento pelos direitos de cidadania
nas relações de hegemonia que se desenvolveram de acordo com os blocos de
poder. (FALEIROS, 2011. p. 33)
É importante considerar as diversas perspectivas aderidas pela a atuação
estatal, no que se refere a relação estabelecida com a sociedade civil. No entanto,
compreende-se que a perspectiva e concepção trazida por Gramsci apresenta
importantes contribuições para essa relação.
Segundo Montaño e Duriguetto (2010) a alteração efetuada por Gramsci não
implica a negação da centralidade descoberta por Marx da base material como fator
ontológico primário da sociabilidade. Gramsci, concentra o seu debate na sua
contribuição para o enriquecimento teórico-analítico do modo como a esfera
econômica determina a produção e a reprodução da superestrutura no contexto
histórico em que se operou uma maior complexificação do estado. (MONTAÑO;
DURIGUETTO, 2010)
Leal ao método de Marx, Gramsci concentra os seus estudos acerca de um
Estado e um contexto social-histórico repleto de novas determinações que não se
encontravam em sua plenitude no período em que Marx se preocupou em analisar
essas duas esferas. Por isso, segundo Montaño e Duriguetto (2010) para Gramsci, o
Estado “integral” ou “ampliado” se forma na construção de uma sociedade política
(Estado stricto sensu ou Estado-coerção) e uma sociedade civil (esfera da disputa
de hegemonia e do consenso).
A partir disso, deve-se considerar que é com o reconhecimento da
socialização política decorrente da organização tanto da classe operária, quanto do
capital, que Gramsci vai amplificar a teoria do Estado Marxista. Considerando a
conquista do sufrágio universal, do fascismo e do nazismo como movimentos de
expressão de hegemonia da política burguesa, segundo Montaño e Duriguetto
(2010) Gramsci visualiza uma complexificação das relações de poder e da
organização de interesses, que fazem emergir uma nova dimensão da vida social, a
qual denomina de sociedade civil.

21
Para Gramsci, essa nova esfera social designada como espaço em que se
organiza e representa os interesses de diversos grupos sociais, vai-se confrontar um
projeto societário, na qual as classes e suas frações lutaram para conservar ou
conquistar hegemonia. (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010)
E, é nesse movimento que Gramsci identifica a ampliação do papel do
Estado, quando ele agrega novas funções em seu escopo, englobando as lutas de
classe, mas, mantendo ainda a sua função de coerção social. Isso, por meio do que
Gramsci (2012) Traz como “fórmula de hegemonia civil”, isto é, a maior autonomia
da sociedade civil em relação à atividade estatal, [...]

O grupo dominante é coordenado concretamente com os interesses gerais


dos grupos dos subordinados e a vida estatal é concebida como uma
contínua formação e superação de equilíbrios instáveis (no nome da lei)
entre os interesses de grupos fundamental e os interesses dos grupos
subordinados, equilíbrios em que os interesses do grupo dominante
prevalecem, mas até em um determinado ponto, ou seja, não até o estreito
interesse econômico-corporativo. (GRAMSCI,2012. p. 24-42)

Com isso, é importante lembrar que a sociedade é composta por aparelhos


ideológicos, destinados a disseminar tal hegemonia, que se coligam, direta e
indiretamente, na perspectiva de representar os diversos interesses daqueles que os
compõem.
Ou seja, a sociedade civil Gramsciana se integra ao Estado, que por sua vez
é composto pelos interesses e conflitos das classes sociais resignadas nas
estruturas econômicas. Isso porque, a sociedade civil vai se expressar na
articulação dos interesses de classe pela inserção econômica, mas também pelas
complexas mediações e ideopolíticas e socioinstitucionais. (MONTAÑO;
DURIGUETTO, 2010)
Portanto, compreende-se que a dinâmica gramsciana traz diversos conceitos
e categorias, no que se refere, a análise do papel do Estado e da sociedade civil. E,
a partir dessa análise, é válido salientar a importância que se deve ter o projeto
societário voltado para a transformação social. Fato esse, que só é possível por
meio da organização das classes subalternas e a formação de uma contra
hegemonia. Na medida em que, o projeto societário estatal se fundamenta na classe
hegemônica, ou seja, a classe dominante.
A partir dessas análises, compreende-se a importância da participação ativa
da sociedade civil frente a formação de um sistema de proteção social. Ainda mais,
no que se refere à crianças e adolescentes, tendo em vista que, a formação de uma
22
política de proteção social capaz de assegurar o direito ao pleno exercício de sua
cidadania, se desenvolveu de maneira tardia.
Fato esse decorrente do valor histórico atribuído às crianças, onde, por
muito tempo era considerado natural o descaso e insensibilidade com esse grupo
social. Segundo Ariès (1986) essa indiferença era uma consequência direta e
inevitável da demografia da época. Persistiu até o século XIX, no campo, na medida
em que era compatível com o cristianismo, que respeitava na criança batizada alma
imortal.
E, essa questão reflete diretamente na construção de uma política social
integralizada para às crianças e adolescentes. Onde, segundo Faleiros (2011) os
discursos e as práticas referentes às políticas para infância distinguem os desvalidos
dos válidos, tanto econômica como sócio politicamente. Em que, os primeiros eram
desvalorizados no que se refere a força de trabalho, e o atendimento de suas
necessidades básicas seria por meio da subsistência. Validando, contraditoriamente,
o projeto de direção da sociedade, de vida intelectual que aos segundos caberia.
(FALEIROS, 2011. p. 34)
Neste sentido, por muito tempo a cidadania da criança e do adolescente não
se tinha um sentido voltado para o direito, mas sim, fundamentada na concepção da
repressão e do autoritarismo, aliados a concessão limitada de mínimos sociais, visto
que, as primeiras políticas protecionistas para este segmento social demonstravam
um conflito de perspectiva, no que diz respeito, aos meios de execução que
caminhavam entre a coação e punição e o diálogo e medidas educativas.
Por isso, é importante considerar que uma política voltada para a cidadania
das crianças e os adolescentes deve implicar outro tipo de relação com o Estado,
tendo como principais fundamentos o Direito e a participação ativa da sociedade,
aliados a autonomia da criança e a Responsabilidade do estado em garantir e
assegurar seus respectivos direitos como cidadão.

3. AS POLÍTICAS DE PROTEÇÃO ÀS CRIANÇAS E ADOLESCENTES NA


SOCIEDADE BRASILEIRA.

3.1 A atuação do Estado na política de atendimento às crianças e aos


adolescentes no Brasil.

23
O Estatuto da criança e do adolescente de 1990, é compreendido como o
maior avanço político na proteção social, no que se refere a garantia de direitos, da
criança e do adolescente na sociedade brasileira. Considerando que, esse Estatuto,
no que estabelece os seus artigos, dispõe sobre a proteção integral à criança e ao
adolescente.
Fundamentada após a ampliação do campo social e da garantia de direitos
trazidas pela Constituição de 1988, a Lei 8.069/90, no que preconiza o seu art. 3°,

A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais


inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata
esta Lei, assegurando-se lhes, por lei ou por outros meios, todas as
oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico,
mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
(Lei 8.069, 1990)

A partir disso, as crianças e adolescentes passam a ser compreendidas


como sujeitos de direitos, sujeitos esses, carentes de uma proteção social
qualificada e integral, capaz de assegurar condições para o seu processo de
desenvolvimento. Com isso, as crianças e os adolescentes passam a desfrutar
dessas garantias, sem nenhum tipo de discriminação seja por idade, sexo, raça,
etnia, religião e entre outras.
E, em consonância com o art. 227 da Constituição Federal de 88, o Estatuto
da criança e do adolescente, no que diz respeito ao seu art. 4°, afirma que é dever
do Estado e da sociedade civil em geral, assegurar, com absoluta prioridade, a
efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Nessa perspectiva, nenhuma criança e adolescente deverá ser alvo de
qualquer forma de negligência, discriminação, exploração ou violência, sendo
punido, segundo o art. 5° desse Estatuto, qualquer atentado, por ação ou omissão,
aos seus direitos fundamentais.
Sendo dever de todos prevenir e combater as ocorrências de ameaça ou
violação dos direitos da criança e do adolescente, a política de atendimento
direcionada a este segmento social, como dispõe o art. da Lei 8.609/90, far-se-á
através de um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais,
da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.

24
Essa política de atendimento tem em sua composição, políticas sociais
básicas; serviços, programas, projetos e benefícios de assistência social de garantia
de proteção social e de prevenção e redução de violações de direitos; serviços
especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial e muitos outros
instrumentos e mecanismos para a proteção social.
E, no que se refere a participação ativa, tanto do Estado quanto da
sociedade civil, o art. 88 deste Estatuto, dispõe de duas normas que competem a
essa questão. Quando nos seus parágrafos II e Vll, ela traz que:

II - Criação de conselhos municipais, estaduais e nacional dos direitos da


criança e do adolescente, órgãos deliberativos e controladores das ações
em todos os níveis, assegurada a participação popular paritária por meio de
organizações representativas, segundo leis federal, estaduais e municipais;
[...] VII - mobilização da opinião pública para a indispensável participação
dos diversos segmentos da sociedade.

Nessa perspectiva, é válido salientar a significativa importâncias da


participação dessas duas esferas no processo de proteção social e na garantia de
direitos, tendo em consideração que, essa política de proteção social, só é possível,
hoje, devido a um grande processo de mobilização da sociedade civil e da
reconfiguração da atuação do Estado frente à essas garantias.
Isso porque, ao levar em consideração o processo social-histórico e político
de formação de uma proteção social destinada às crianças e aos adolescentes, é
necessário refletir que esse processo, pautado em conflitos de projetos societários e
reconfigurações da figura Estatal, impacta diretamente no retardamento de uma
política organizada na perspectiva do direito.
Com isso, para a análise desse processo de formação sobre as relações
políticas correspondentes a questão da criança e do adolescente, é necessário
considerar que existiram divergentes tipos de agentes formuladores de política, que
possuíam significativas parcelas de poder em seu respectivo contexto social. Dado
que, o atendimento à criança e ao adolescente, por muito tempo, carregava uma
relação público/privada tracejada na filantropia e benevolência, resultantes da
questão do patrimonialismo no Brasil. (FALEIROS, 2011. p.34)
Portanto, ao analisar essa política de atendimento deve-se levar em
consideração o terreno histórico-social em que ela vai se desenvolver, uma vez que,
a sociedade Brasileira tem culturalmente enraizado em seus valores a exploração e
opressão de um ser pelo outro, situação que essa que se potencializa para as

25
crianças e aos adolescentes, considerando a sua condição de ser em processo de
desenvolvimento.
A Roda dos expostos pode exemplificar as medidas que eram tomadas
frente às crianças nesse período, isso porque, na perspectiva de ocultar a desonra e
amparar a miséria tão expressiva neste contexto social, a Roda através do
mecanismo de torturas, condena os expostos em condições físicas, morais e sociais.
E, pertinente a isso, Homens influentes e coligados ao governo, como Manuel
Vitorino, apresentavam repúdio à esta prática para com as crianças. (FALEIROS,
2011. p. 37)
Situações de violência, maus tratos e violação de direitos eram comum e
naturalizadas nesse contexto social. Sob o pretexto de ocultar o que era considerado
desonra e amparar a miséria, era frequente os mecanismos de tortura para com as
crianças e os adolescentes.
No início do século XX, período contextual da Proclamação da república, a
política direcionada às crianças pobres eram assim caracterizadas, a repressão e o
paternalismo estavam profundamente imbricados em seus princípios, bem como traz
Faleiros (2011) não só na visão liberal, mas na correlação de forças com hegemonia
do bloco oligárquico/exportador. Pertinente a isso, questiona-se se de fato havia
uma lei ou instituição capaz de proteger este segmento social na sociedade
Brasileira.
O que se verifica é, uma ausência da participação Estatal em relação à
criação de uma legislação direcionada à infância, capaz de proteger as crianças dos
riscos sociais. O que se constata em evidência, nesse período, é a iniciativa privada
atuando por meio de ações assistencialistas, fomentando um tipo de relação
contraditória entre a esfera pública e a privada.
A família padrão nos anos 20 era constituída pelos pais e cinco filhos e, de
acordo com Faleiros (2011) os problemas de carência social já se vinculam, na
primeira metade do século, à profunda desigualdade social então existente, com
consequências graves para as crianças. Diante disso, era comum ver crianças
trabalhando para contribuir na renda familiar.
Deve-se levar em consideração que antes mesmo do serviço social ser
implantado na sociedade, já existiam diversas expressões da questão social, e ela
se remonta no cenário urbano. Iamamoto (1982) traz que a questão social nos

26
grandes centros urbanos-industriais deriva, assim, do crescimento do proletariado,
da solidificação dos laços de solidariedade política ideológica que perpassam o seu
conjunto. E, isso vai contribuir para a construção e a possibilidade objetiva e
subjetiva de um projeto condizente com a dominação burguesa
Nesse sentido, uma proteção arquitetada em valores assistencialistas, o
sistema de atendimento era composto pela: Santa casa, Maternidade, Instituto de
Proteção e Assistência à Infância, Casa dos Expostos, para atender ao abandono
material. Percebe-se a ineficiência desses aparelhos em corresponder às
necessidades sociais da primeira infância, aliados a repressão policial que também
estava em alta nesse contexto, uma vez que as desigualdades sociais e a
pauperização se expandia cada vez mais, implicando diretamente na intensificação
da condição de vulnerabilidade das crianças e adolescentes. (FALEIROS, 2011. pg.
39)
Ou seja, o caráter repressivo e filantrópico no que se pode considerar uma
proteção social destinada às crianças e aos adolescentes, nesse contexto social,
impactavam justamente na questão dos métodos e estratégias empregues no
atendimento a esse segmento social, visto que, se eram concedidos alguns mínimos
sociais que auxiliassem essas crianças a garantir as suas demais necessidades por
meio do trabalho.
E, nesse período de revolução industrial no Brasil, o poder aquisitivo dos
salários é de tal forma ínfimo que para uma família média, mesmo com trabalho
extenuante da maioria de seus membros, a renda obtida ficarem nível insuficiente
para a subsistência. (IAMAMOTO, 1982. Pg.129)
Por isso, o encaminhamento das crianças ao trabalho era comum e até
“legal” nesse período, dado que a omissão do Estado frente a essa questão, aliado a
defesa do trabalho precoce por parte do setor industrial, repudiam qualquer tipo de
mobilização contra o emprego indiscriminado da mão-de-obra infantil.
Conforme Faleiros (2011) foi a partir das iniciativas ou pressões de
higienistas, advogados e religiosos que algumas instituições foram se constituindo
desde o Império, numa articulação e aliança entre o público e o privado [...] essa
articulação se traduziria, de forma sistemática, através do Ofício Geral da
Assistência. No entanto, ela somente se executa sob modo assistencialista, por meio

27
de um auxílio cedido pelo governo, que vai caracterizar em uma política de ajuda ao
âmbito privado.
Percebe-se com essas iniciativas, um princípio de organização institucional
frente essa questão, dado que os higienistas e juristas se tornam atores e/ou
agentes que iriam articular as forças no que diz respeito às políticas direcionadas à
infância considerada pobre, desvalida, abandonada, pervertida, perigosa ou
delinquente. (FALEIROS, 2011. pg 42)
Em meados dos anos 20 são aprovadas leis que asseguram uma parcela
importante do que se conhece como “proteção ao trabalho”, a lei de férias, acidente
de trabalho, trabalho feminino, seguro doença, e, no que se refere a crianças e
adolescentes tem-se o código de menores em 1927.
Segundo Iamamoto (1982) a precária aplicação dessa legislação se limitará,
nos dois principais centros urbanos, alguns setores principalmente não-industriais,
como ferroviários, marítimos e portuários, de grande participação estatal. Mas no
que diz respeito ao reconhecimento da “questão social”, o Estado ainda nega a sua
participação.
No ano de 1927 vai se consolidar as leis de assistência e proteção aos
menores, por meio da constituição do Código de Mello Mattos. Na perspectiva de
instituir a proteção às crianças e aos adolescentes, esse código dispõe em seu
primeiro artigo sobre O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinquente,
que tiver menos de 18 annos de idade, será submettido pela autoridade competente
ás medidas de assistencia e protecção contidas neste Codigo.
No decorrer das disposições previstas nesse código, visualiza-se com
facilidade a perspectiva repressiva e de controle justaposta na proteção que era
fornecida nesse período contextual.
O art. 61 deste código traz que Si menores de idade inferior a 18 annos
forem achados vadiando ou mendigando, serão apprehedidos a apresentados á
autoridade judicial, a qual poderá.
Ainda sobre o art. 61:
I. Si a vadiagem ou mendicidade não fôr habitual: a) reprehendol-os o os
entregar ás pessoas que os tinham sob sua guarda, intimando estas a
velar melhor por eIles; b) confial-os até A idade de 18 annos a uma
pessoa idonea, uma sociedade em uma instituição de caridade ou de
ensino publico ou privada. II. Si a vadiagem ou mendicidade fôr habitual
internal-os até á maioridade em escola de preservação.

28
Vê-se que a natureza de controle social e conservação da ordem, onde são
aplicadas as devidas medidas a aqueles que por ventura descumprissem as
normalidades impostas nesse artigo.
A atuação por parte do Estado na questão da infância, vai se fazer mais
presente visto que, verifica-se um processo de legitimação da proteção à este grupo,
embora a questão do assistencialismo e da correção ainda ocupassem espaço neste
contexto social.
Diante disso, a intervenção Estatal ainda não era capaz de universalizar os
direitos, visto que a exclusão de algumas crianças ao acesso, à conservação dos
mecanismos de inserção da mão-de-obra infantil aliados a articulação contraditória
com o setor privado, vai-se permanecer o controle social e a repressão no
atendimento às necessidades deste segmento social.
O espaço político de atuação do Estado é transferido e assumido por
instituições médicas e jurídicas que vão se reajustando a novas formas de
intervenção por meio da superação das medidas de detenção em celas comuns. No
entanto, o caráter repressivo ainda se fazia presente.
Foi com o Governo Vargas e consideráveis avanços nas questões político-
sociais, mostrando um projeto para a sociedade mais intervencionista, onde os
problemas econômicos e sociais passam a ser questões nacionais, no que se refere
a uma perspectiva de intervenção política no contexto brasileiro.
Percebe-se uma preocupação com a questão da educação para as crianças
e os adolescentes nesse período. Isso por que, sobre a educação, na perspectiva de
defesa da nação, a constituição da nacionalidade deveria ser a culminação de toda a
ação pedagógica. E, com isso é criado o Conselho Nacional de Educação em 1931
e, em 1932, vai ser estabelecido inspeção nas escolas por parte do governo federal.
(FALEIROS, 2011. Pg. 50)
E, na perspectiva de retornar as relações estabelecidas entre o Estado e a
Igreja, nos anos 30, vai se ter uma introdução facultativa do ensino religioso nas
escolas particulares e públicas, afim de articular uma nova integração dos espaços
público, privado e religioso.
A questão da estratégia do trabalho precoce de menores também recebe
destaque nessa conjuntura, dado que, os industriais deste período, conseguiram que
se modificasse o Código de Menores em favor da anulação das proibições acerca do

29
trabalho antes dos 14 anos. E, ficava bem claro a resistência de grande parte dos
industriais em relação às Leis que foram impostas para proteger as crianças das
condições subumanas de trabalho, já que não se diferenciava das condições
atribuídas aos adultos, se distinguindo apenas nos salários, onde as crianças
recebiam bem menos pelas inúmeras horas trabalhadas.
Somente em 1943, com a consolidação das Leis do Trabalho que vai se
regulamentar uma proteção ao trabalho do menor, proibindo-o até 14 anos (exceto
nas instituições beneficentes ou de ensino), e restringe-o entre 14 e 18 anos. E, a
partir disso, vai se instituir um Sistema Nacional de Proteção a esse segmento social
por meio da relação estabelecida entre a esfera pública e privada, já que o foco
principal nesse período estava voltado para as questões do trabalho e educação.
(FALEIROS, 2011. p. 53-54)
O poder público atuaria através dos Órgãos: Conselho Nacional de Serviço
Social; Departamento Nacional da Criança; Serviço Nacional de Assistência a
Menores (SAM) e a Legião Brasileira de Assistência (LBA). Esses elementos, no que
se refere ao atendimento, ainda tinham como principais diretrizes clientelistas e de
controle social, dando ênfase ao SAM, que segundo Faleiros (2011) a sua
implantação tem mais a ver com a questão da ordem social que dá assistência
propriamente dita [...] além de incentivar a iniciativa particular de assistência a
menores e estudar as causas do abandono.
Uma proteção social ainda organizada numa projeção de ajustamento social
das crianças e dos adolescentes, no qual, por muitas vezes eram considerados
delinquentes e, consequentemente, ameaças ao processo de conservação da
ordem. Ou seja, a política da infância, nesse período do governo Vargas, que apesar
de seu discurso desenvolvimentista, era demarcada por princípios repressivos,
assistencialistas e de conservação da ordem social, impactando diretamente na
reprodução social das crianças e adolescentes.
Somente após a queda deste Governo, que se pode identificar uma
reconfiguração no delinear político e social. Entre os anos de 1945 e 1960, percebe-
se uma grande ênfase para a restauração econômica. Uma questão muito
importante nesse período foi o estabelecimento do salário mínimo familiar que, com
bem traz Faleiros (2011) vai ser formar o eixo central da relação Estado e
trabalhadores.

30
Mas no que se refere a proteção a crianças e aos adolescentes não se viu
muitos feitos nesse período, já que a prioridade em questão era a situação
econômica. Apenas a partir dos anos 60 que se verifica uma reorganização dessa
política, indicando seguir diferentes perspectivas de atendimento.
O surgimento da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Lei 4.513/64),
é resultado de inúmeros conflitos e críticas aos métodos e efeitos dos modelos
organizacionais anteriores a ele, esse novo órgão público vai se tornar a principal
referência na proteção às crianças e aos adolescentes.
Nessa perspectiva de se contrapor aos organismos anteriores, em especial a
SAM, a Funabem estabelece como suas principais competências: a realização de
estudos, inquéritos e pesquisas para desempenhar a missão assumida; promoção
de articulações entre as esferas privada e pública; aperfeiçoamento e treinamento
da equipe técnica, além dos sistemas de fiscalização e mobilização da opinião
pública. (VOGEL, 1995. p.290)
No que se refere a herança histórica deixada pelas antigas organizações
públicas ou privadas, nessa questão, ficou sob encargo da Funabem reconfigurar a
imagem que a sociedade tinha sobre as metodologias e estratégias de atendimento
às crianças e aos adolescentes. Mas, é importante considerar que essa política vai
se moldando de acordo com os requisitos do contexto social-político em vigência.
Por se tratar de um Órgão público sob domínio Estatal, e essa política voltada para o
“bem-estar” do menor se estrutura sob égide do sistema autoritário, em virtude da
conjuntura de Ditadura Militar de 1964.
Portanto, a partir da análise dessa Lei 4.513/64, era possível identificar a
presença de preceitos assistencialistas no decorrer dessa legislação, podendo
exemplificar pelo art. 6º no qual fixa como uma de suas principais assegurar
prioridade aos programas que visem à integração do menor na comunidade, através
de assistência na própria família e da colocação familiar em lares substitutos.
Complementando com as terminologias utilizadas em seu art. 14 que trata sobre a
implantação da política assistencial do menor adaptando-se às peculiaridades
locais.
É de fácil compreensão a configuração do atendimento às crianças e aos
adolescentes, uma vez que, se manifesta de uma maneira ainda voltada para a
conservação da ordem. Dado que, segundo Vogel (1995) o processo de

31
marginalização surgia, pois, como responsável pela desagregação da família, ou
pelo que se chamava, com certo eufemismo a disfunção familiar.
Também é importante considerar que o repasse dos recursos destinados ao
funcionamento dessa política, seja de origem pública ou de privada, era desigual ao
inúmeros município e estados do Brasil, onde, a região Sudeste era a mais
privilegiada com esses recursos. (FALEIROS, 2011. p.59)
Outro momento a se levar em consideração sobre o processo de formação
da política de atendimento às crianças e aos adolescentes é a reformulação do
código de Menores em 1979. Trazendo uma diferente perspectiva, salientando que
os menores são sujeitos de direito enquanto estiverem em situação irregular.1
Mas no que diz respeito à disposição e reestruturação deste código, fica
evidente, a partir do seu art. 2° não só uma transferência da responsabilidade
Estatal para as famílias dessas crianças e adolescentes, mas também uma posição
de ajustamento social que era justificado na incapacidade dos pais ou responsáveis
em relação a proteção e cuidado aos menores.
E, embora os avanços organizacionais tivessem influência na contínua
reformulação dessa política, ainda não foi o suficiente para suprir as necessidades
sociais das crianças e dos adolescentes, uma vez que a situação da miséria cada
vez alarmante se configura na ineficiência dessa política assistencial.
Portanto, só se pode falar em garantia de direitos e a construção de uma
política de proteção social às crianças e aos adolescentes, no contexto social pós
promulgação da Constituição Federal de 1988. Isso porque, essa Constituição
amplia as garantias no campo social, e, nesse sentido é uma importante influência
para o principal avanço político da proteção social a infância e a adolescência, o
Estatuto da Criança e do adolescente (ECA).
Estabelecido no ano de 1990, o ECA revoga o Código de Menores de 1979
e a lei de criação da Funabem, esse Estatuto transforma todo o ideário de uma
política assistencial para uma política pautada nos direitos correspondentes às

1
Entendendo por situação irregular o menor: I - privado de condições essenciais à sua subsistência,
saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de: a) falta, ação ou omissão dos
pais ou responsável; b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las; Il - vítima
de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável; III - em perigo moral,
devido a: a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes; b) exploração
em atividade contrária aos bons costumes; IV - privado de representação ou assistência legal, pela
falta eventual dos pais ou responsável; V - Com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação
familiar ou comunitária; VI - autor de infração penal.

32
crianças e aos adolescentes em suas diretrizes. Pois, com bem consta em seu art.
1° esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.
Portanto, sendo fruto dos movimentos sociais e reivindicações sindicais,
esse Estatuto ressignifica a proteção social conferida às crianças e aos
adolescentes, reconhecendo a sua condição de vulnerabilidade social, e além de
estar objetivado a garantir todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa
humana, também afirma a importância da participação da sociedade civil na
garantia, com absoluta prioridade, a efetivação desses direitos.

3.2 A Política de proteção social a criança e ao adolescente na


sociedade Brasileira.

A Lei 13.431/17, dispõe sobre o Sistema de Garantia de Direitos da criança e


do adolescente vítima ou testemunha de violência. Esta lei normatiza e organiza
esse sistema visando coibir e prevenir situações de violência, fundamentado nas
definições do art. 227 da Constituição Federal, da Convenção sobre os Direitos da
Criança e a Declaração dos Direitos da Criança
Conforme já foi colocado, o ECA contribuiu significativamente para a
reconfiguração da proteção social referente às crianças e adolescentes, no que se
refere a assegurar e prover condições para o exercício de sua cidadania. Isso
porque, foi a partir de sua regulamentação que se formou esse sistema de garantia
de direitos, na perspectiva assegurar às crianças e os adolescentes vítimas ou
testemunha de violência.
É com os avanços trazidos por essa lei que vai se resgatar o valor da criança
e do adolescente como sujeito de direito, ampliando os seus direitos gerais e
específicos, propondo uma nova gestão por meio da ação de um Sistema de
Garantia de Direitos que atende o cumprimento do art. 86 do estatuto da criança
adolescente, que dispõe sobre a atuação articulada entre ações governamentais e
não-governamentais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios.
Como bem consta no seu art. 2° desse sistema, deve ser assegurado às
crianças e os adolescentes a proteção integral e as oportunidades e facilidades para
viver sem violência e preservar sua saúde física e mental e seu desenvolvimento

33
moral, intelectual e social, e gozam de direitos específicos à sua condição de vítima
ou testemunha.
E, essa proteção integral far-se-á através dos três eixos do Sistema de
Garantias de Direitos, citados no capítulo anterior. Somente a partir de uma política
comprometida com a promoção, defesa dos direitos e o controle social por parte da
sociedade civil, será capaz de universalizar a proteção social às crianças e
adolescentes.
Isso por que, no que se refere ao eixo da promoção segundo Arcìa (1999)
ele é um espaço estruturador de uma organização social que busca garantir de
modo universal os serviços públicos básicos ao conjunto da população e de modo
prioritário crianças e adolescentes. Fator este previsto nas disposições do art. 87 do
ECA, sobre a linha de ação da política de atendimento.
E o Estatuto reconhece a todas as crianças e adolescentes um conjunto de
direitos fundamentais. E a maior parcela desses direitos dependem para sua
efetivação de uma ação participativa do estado por meio da construção e criação de
condições para que exista uma universalização do acesso à educação, saúde,
assistência, profissionalização e entre outras.

Outra questão a ser colocada é a importância de levar em consideração as


condições de vulnerabilidade social em que as crianças e adolescentes se
encontram, dado que são indivíduos em situação de desenvolvimento. Portanto,
como dispõe o art. 3° da Lei 13.431/17, os direitos e garantias fundamentais da
criança e do adolescente deverão receber prioridade absoluta em função da sua
condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
Levando em consideração os conceitos sobre violência exemplificados no
art. 4° desse sistema de garantia, a aplicação desta em consonância com os
princípios estabelecidos nas demais normas nacionais e internacionais de proteção
dos direitos da criança e do adolescente, deverá se fundamentar na perspectiva de
garantias dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, se apresentando
por meio da priorização do atendimento; da proteção de todo e qualquer tipo de
discriminação; da assistência profissional capacitada e de ter seus direitos
reparados quando forem violados.
Outro ponto abordado por esta política que cabe uma consideração, é sobre
o processo de Escuta Especializada. Sendo considerada o procedimento de
34
entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da
rede de proteção, de acordo com o art. 7° desta legislação, esse processo deve ser
limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade.
Já em seu art. 8°, dispõe sobre o depoimento especial e que ele tem por
finalidade a construção da prova perante autoridade policial ou judiciária. E, esses
procedimentos deverão ser realizados em local apropriado e acolhedor, com
infraestrutura e espaço físico que garantam a privacidade da criança ou do
adolescente vítima ou testemunha de violência.
Sobre isso, vale salientar a importância do eixo de defesa dos direitos às
crianças e aos adolescentes pois, segundo Arcìa (1999) é nesse que se concentra a
atuação contra a violação de direitos no qual é verificado no atendimento a casos
concretos. Ou seja, o tratamento aos casos concretos contra as crianças e os
adolescentes exigem a utilização de medidas de natureza jurídica e alcance social,
por meio da atuação das entidades correspondentes ao eixo de defesa.2
Nessa perspectiva, é relevante também sobre este sistema de garantias a
imprescindibilidade da articulação de suas respectivas políticas. Como bem traz o
seu art.14, sobre as políticas implementadas nos sistemas de justiça, segurança
pública, assistência social, educação e saúde deverão atuar de maneira articulada,
estruturada e eficaz no que se refere ao acolhimento e ao atendimento integral às
vítimas de violência.
Somente a partir de um atendimento comprometido com as disposições dos
parágrafos correspondentes ao art. 14, em especial, os l; lV e VI, no qual, a atuação
correspondente a esse sistema deve ser abrangente e integralizada, executada
através de um planejamento coordenado do atendimento e do acompanhamento,
atribuindo prioridade em razão da idade ou de eventual prejuízo ao desenvolvimento
psicossocial, garantida a intervenção preventiva, respeitando as especificidades da
vítima ou testemunha e de suas famílias.
Cabe a sociedade em geral contribuir para a potencialização do
funcionamento dessa política de proteção na medida em que, como bem consta no
seu art. 13, é de responsabilidade de qualquer pessoa que presencie ação ou
omissão, praticada em local público ou privado, que constitua violência contra
criança ou adolescente, comunicar o fato de imediato ao serviço de recebimento e
2
Poder judiciário (especialmente o juízo da Infância e da Juventude), Ministério Público, Secretarias da Justiça (órgãos de
defesa da cidadania), Secretaria da Segurança Pública (Polícias), Defensoria pública, Conselho tutelares, ordem dos
advogados do Brasil, centros de defesa e outras associações legalmente constituídas. (ARCÌA, 1999. Pg. 98)
35
monitoramento de denúncias, ao conselho tutelar ou à autoridade policial, os quais,
por sua vez, cientificarão imediatamente o Ministério Público.
Portanto, é com a participação ativa da sociedade civil nessa política de
atendimento que podemos identificar o eixo de controle social. É nesse espaço que
a sociedade civil se organiza e se articula em outras instâncias não-institucionais
como fóruns, pactos e entre outros organismos fundamentais para a existência de
Conselhos de Direitos constituídos pelas organizações representativas da sociedade
civil, ou seja, as organizações não governamentais, sindicatos e outras entidades de
atendimento de direitos.
Compreende-se como um espaço em que pode ser idealizado e desenvolvido
os instrumentos ou métodos que correspondem às necessidades provenientes da
sociedade civil no que diz respeito às políticas de atendimento às crianças e aos
adolescentes.
Em vista disso, o sistema de garantias de direitos às crianças e aos
adolescentes deve estabelecer como primazia esses três eixos nos espaços e
instituições que compõem a rede de proteção social, uma vez que, deve se levar em
consideração a situação de vulnerabilidade dessas crianças e adolescentes em
virtude da sua condição de pessoa em processo de desenvolvimento.
O decreto 9.603/18 regulamenta esse Sistema de Garantias de Direitos, e,
partilhando dos mesmos princípios, este decreto também salienta a importância da
integralidade e prioridade no que diz respeito ao atendimento de crianças e
adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.
O mesmo dispõe em seu art. 7° que os órgãos, os programas, os serviços e
os equipamentos das políticas setoriais que integram esses três eixos de promoção,
controle e defesa dos direitos da criança e do adolescente compõem o sistema de
garantia de direitos e são responsáveis pela detecção dos sinais de violência. E, que
é de responsabilidade do poder público assegurar condições de atendimento
apropriada para essas crianças e adolescentes.
No entanto, no que se refere a participação ativa da sociedade civil nesta
política pública, este decreto dispõe no seu art. 9° parágrafo I, sobre a criação de um
o comitê de gestão colegiada da rede de cuidado e de proteção social das crianças
e dos adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.

36
Devendo ser estabelecido principalmente no âmbito dos conselhos e direitos
das crianças e dos adolescentes, será atribuído a esse comitê o dever de articular,
mobilizar, planejar, acompanhar e avaliar as ações da rede intersetorial, além de
contribuir para a determinação dos fluxos de atendimento e o desenvolvimento da
integração de sua própria estruturação.
E os fluxos de atendimento, previstos no parágrafo II do art. 9°, deverão ser
executados de maneira articulada, no qual a cooperação entre os órgãos, os
serviços, os programas e os equipamentos públicos deverá ser priorizada,
estabelecendo um sistema de compartilhamento das informações, podendo assim,
assegurar e prover uma proteção social integralizada.
Em vista disso, o sistema de garantias de direitos às crianças e aos
adolescentes deve estabelecer como primazia esses três eixos nos espaços e
instituições que compõem a rede de proteção social, uma vez que, se deve
considerar a situação de vulnerabilidade dessas crianças e adolescentes em virtude
da sua condição de pessoa em processo de desenvolvimento.
Logo, compreende-se que somente é possível assegurar uma proteção social
integralizada a partir da garantia dos direitos que compõem esse sistema, seja no
seu sentido de sanar ou de prevenir, uma vez que, é por meio da participação ativa
tanto do Estado quanto da sociedade civil que se amplia a universalização dos
direitos.

4. O ESTADO E A SOCIEDADE CIVIL NA CONSTRUÇÃO DO COMITÊ


COLEGIADO DA REDE DE PROTEÇÃO SOCIAL À CRIANÇA E AO
ADOLESCENTE VÍTIMA OU TESTEMUNHA DE VIOLÊNCIA NO MUNICÍPIO DE
RECIFE.

4.1 Políticas públicas e a realidade da violência contra crianças e


adolescentes no município do Recife.

A discussão em relação a política de proteção social às crianças e aos


adolescentes vítimas ou testemunhas de violência no seu sentido de dispor sobre a
proteção integral a esses, criando mecanismos para coibir e prevenir a violência, no
contexto político-econômico neoliberal, se expande no que concerne aos índices de
criminalidade e violência contra crianças e adolescentes em todo o país, situação
37
que afeta diretamente o exercício da cidadania dessas crianças e adolescentes e,
consequentemente, o seu processo de desenvolvimento, que por sua vez, é um
direito que precisa ser assegurado pelo Estado.
No entanto, mediante a uma conjuntura neoliberal, é de fácil compreensão o
projeto societário e o modelo de política social a ser adotado pelo Estado, no que diz
respeito a sua participação efetiva na garantia de direitos a essas crianças e
adolescentes.
Tendo em vista as considerações que Demier traz sobre os conceitos
gramscianos aqui já trabalhados, deve-se considerar que além de as “crises
orgânicas” estarem aliadas ao problema da crise hegemônica da classe dominante,
essa crise também confere aos mais profundos movimentos orgânicos e
contraditórios da sociedade, não sendo uma simples derivação de uma crise
econômica particular. (DEMIER, 2018. p. 256)
Nesse sentido, o Estado na perspectiva de atender os interesses da classe
dominante, para que de tal forma possa conservar a sua hegemonia, vai atuar de
maneira limitada na proteção social às crianças e adolescentes uma vez que, vai se
dando ênfase à segurança pública expressa exclusivamente na conservação da
ordem pública, da integridade física e da propriedade do cidadão, quando na
realidade segurança pública tem de estar relacionada a outras necessidades que
correspondem a sua reprodução social, como a garantia dos direitos humanos e de
cidadania.
Desse modo, a prevenção e coibição da violência contra crianças e
adolescentes deve se dar através do fortalecimento e ampliação Rede de cuidado e
proteção de Crianças e Adolescentes vítimas ou testemunhas de violência tendo em
vista um planejamento das demais políticas públicas de forma articulada e integrada,
considerando que o funcionamento do Estado restringe-se apenas na a área penal,
isto é, no poder de coerção (Delegacia, Poder Judiciário, Ministério Público) se
tornando ineficiente no enfrentamento da violência.
No que se refere a situação da violência contra crianças e adolescentes no
Município do Recife, após análise de dados cedidos pela Secretaria de Defesa
Social (SDS) referente aos números de crianças e adolescentes vítimas de Crimes
Violentos Letais Intencionais 3e o número de crianças e adolescentes vítimas de
3
Os Crimes Violentos Letais Intencionais é a denominação elaborada pela Secretaria Nacional de
Segurança Pública, para categorizar os crimes de homicídio doloso, lesão corporal seguida de morte,
38
violência por crime cometido, relativo aos anos de 2014 a 2020 foi possível constatar
que uma significativa parcela dos índices indicados ainda apresenta números
preocupantes.

Tabela1: NÚMEROS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES (0 A 17 ANOS) VÍTIMAS DE


CVLI - MUNICÍPIO DO RECIFE - JAN 2014 A AGO 2020

Ano 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020*

Número de Vítimas 56 56 63 74 30 36 33
Fonte: Relatório nº 1062/2020/GACE/CI OUV Nº 596/2020 - Sistema INFOPOL/SDS

Referente a tabela 1, que analisa o número de crianças e adolescentes


vítimas de Crimes Violentos Letais Intencionais ainda é possível detectar a presença
de uma quantidade de casos preocupante. Embora esses casos não aumentem
significativamente ao longo do período analisado, esses números indicam uma
fragilização na proteção social das crianças e dos adolescentes vítimas ou
testemunha de violência.
Isso por que, levando em consideração os avanços que essa política teve,
inclusive com a legitimação do sistema de garantia de direitos, era de
responsabilidade do Estado prevenir, punir e erradicar a violência contra as crianças
e adolescentes no que concerne à sua atuação diante dessas situações de
violência, em uma atuação que devesse ocorrer de maneira articulada, com a
sociedade civil e as suas demais organizações, na perspectiva de garantir de uma
proteção social qualificada.

Tabela 2: NÚMEROS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES (0 A 17 ANOS) VÍTIMAS DE


VIOLÊNCIA POR CRIME COMETIDO - MUNICÍPIO DO RECIFE - JAN 2014 A AGO 2020

2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020

Ameaça 457 403 359 332 399 414 114


Ameaça por Violência Doméstica/Familiar 71 39 46 52 69 68 28

Calúnia por Violência Doméstica/Familiar 1 - 2 - 1 4 -


Cárcere de privado - - - - - - 2

como também roubo com resultado morte, esse último também designado como Latrocínio.
39
Constrangimento por Violência Doméstica/Familiar 2 2 1 2 - 1 1

Danos por Violência Doméstica/Familiar 4 1 - 3 3 3 3

Difamação por Violência Doméstica/Familiar - 2 - 3 5 3 -

Estupro 42 50 41 43 36 44 9

Estupro coletivo 1 1
Estupro de Vulnerável 184 179 179 177 224 216 84
Estupro de Vulnerável por Violência
53 60 47 41 42 37 65
Doméstica/Familiar

545 416 405 395 428 419 139


Lesão corporal
Lesão corporal por Violência Doméstica/Familiar 114 111 106 74 104 136 80

Maus tratos 73 54 49 95 105 80 31

Maus tratos por Violência Doméstica/Familiar 213 100 68 54 54 68 50

Perturbação do Sossego 7 2 8 2 6 7 5

18 12 4 11 17 28 10
Vias de fato

Outros crimes por Violência Doméstica/Familiar 7 3 10 7 4 2 3


Fonte: Relatório nº 1062/2020/GACE/CI OUV Nº 596/2020 - Sistema INFOPOL/SDS

No que está relacionado às análises realizadas sobre a Tabela 2, pode-se


identificar que entre os 18 crimes mais praticados contra as crianças e adolescentes
no Município do Recife tiveram, três que apresentam indicadores alarmantes. Alguns
períodos oscilaram entre aumento e diminuição dos crimes, no entanto, ainda assim
os índices apresentados indicam um enfraquecimento da Rede de proteção social a
este segmento social.
Os crimes de Ameaça, Estupro de Vulnerável e Lesão corporal se mostram
como os crimes mais comuns contra as crianças e os adolescentes. Refletindo
diretamente na condição de vulnerabilidade que permeia as suas realidades sociais,
e, esse fator acaba por tornar essas crianças e adolescentes potenciais vítimas
desses crimes, em virtude da organização e formação social, historicamente
pautada em valores repressivos aliados a ineficiência da articulação entre políticas
públicas que compõem o sistema de garantias de direitos implicando exatamente na
potencialização da condição de vulnerabilidade das crianças e adolescentes.
(FALEIROS, 2011. pg. 39)
Ainda sobre o crime de Lesão Corporal agora analisado juntamente ao crime
de Maus Tratos que ao expressarem uma quantidade significativa de casos
40
acontecidos entre o período analisado. Sendo considerados crimes de violência
física, é importante compreender que esse fenômeno está enraizado no processo de
formação histórico-social da sociedade em si, e também nas primeiras expressões
do que vinha a ser uma proteção social destinada às crianças e adolescentes.
Outra questão também constatada foi a quantidade de crimes cometidos por
violência doméstica/familiar. Entre os 18 crimes expostos na tabela 2, nove são de
natureza doméstica/familiar, sendo eles: Ameaça, Calúnia, Constrangimento, Danos,
Difamação, Estupro de Vulnerável, Lesão Corporal, Maus Tratos e Outros Crimes
por Violência Doméstica/Familiar.
Embora os números não aumentarem durante o período analisado, os
índices de casos dentro do ambiente doméstico/familiar ainda geram preocupação
no que se refere a proteção social às crianças e aos adolescentes. É colocado em
evidência que muitas vezes as famílias falham enquanto agentes responsáveis por
uma significativa parcela dessa proteção social.
E, é válido salientar, ainda sobre os casos de Violência Doméstica/Familiar,
uma subnotificação dos casos de violência contra crianças e adolescentes, tendo em
vista que é muito comum muitos núcleos familiares optarem por “resolver” as
situações de violência por conta própria, onde, muitas vezes os principais
agressores dessas crianças e adolescentes são seus genitores ou pessoas do
mesmo convívio doméstico/familiar.
Ou seja, a realidade do fenômeno da violência muitas vezes não é
identificada de fato, e essas duas situações implicam diretamente de que forma vai
se dar a proteção social às crianças e aos adolescentes, levando em consideração a
violação dos seus respectivos direitos, que deveriam ser assegurados tanto pelo
estado quanto pelas famílias.
E, no que concerne aos crimes de Cárcere de Privado, Estupro, Estupro
Coletivo, Perturbação do Sossego e Vias de Fato, são configurados como crimes
que designam uma relação direta com a política de proteção social às crianças e aos
adolescentes vítimas ou testemunhas de violência no seu sentido de coibir e
prevenir esse tipo de situação, atuando como uma política preventiva na medida em
que esses crimes tem ligação direta com a condição de vulnerabilidade expressa
pelas crianças e adolescentes.

41
Nesse sentido, a política de proteção às crianças e adolescentes em
situação de violência também engloba a sociedade civil como participante ativo na
proteção social a estes, uma vez que, esses crimes em sua grande maioria, são
cometidos por pessoas do círculo de convivência da vítima e, geralmente, essas
pessoas estão inseridas em seu ambiente doméstico/familiar.
Com isso, é de responsabilidade do Estado associado às demais instituições
da sociedade civil, inclusive as famílias, a realização de ações capazes de garantir a
proteção social e garantir os direitos correspondentes ao pleno exercício de sua
cidadania frente às condições adversas impostas pelo modo de produção
capitalistas.

4.2 O comitê colegiado da rede de proteção social à criança e ao


adolescente vítima ou testemunha de violência no município de
recife.

A respeito da participação ativa da sociedade civil na política de proteção


social as crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, como já foi
citado, o Decreto 9.603/18 dispõe em seu art. 9° sobre a criação de um comitê de
gestão colegiada da rede de cuidado e de proteção social das crianças e dos
adolescentes (CMRCPCA).

Por meio de uma atuação integralizada e coordenada, fica sob


responsabilidade dos órgãos, serviços, programas e equipamentos públicos que
compõem essa rede de cuidado, instituir, prioritariamente no espaço dos conselhos
de direitos das crianças e dos adolescentes, este comitê de gestão colegiada.

Tendo como suas principais finalidades propor às instâncias competentes


políticas concretas de prevenção de todas as formas de violência contra crianças e
adolescentes; proporcionar a integração das diversas políticas e planos municipais
destinados à promoção, proteção e defesa dos direitos de crianças e adolescentes,
o CMRCPCA projeta ampliar e fortalecer ações intersetoriais voltadas para o
enfrentamento de todas as formas de violência contra elas, como também articular e
fortalecer os mecanismos para o combate todas as formas de violência contra
crianças e adolescentes.
42
Além disso, é importante salientar seu objetivo de acompanhar e monitorar
as ações de enfrentamento das diversas formas de violência contra as crianças e os
adolescentes da na cidade do Recife. E, a relevância dessa finalidade se expressa
na necessidade de garantir a eficácia do funcionamento da política de proteção
social destinada às crianças e aos adolescentes, uma vez que, o seu processo de
formação histórico-social tardio atribui uma fragilização do atendimento, no que diz
respeito à prevenção e coibição da violência da criança e do adolescente.
Por meio da análise do documento sobre a 3ª reunião do Grupo de Trabalho
da construção do Regimento Interno do Comitê rede de cuidado e de proteção social
do Governo do Estado e Prefeitura do Recife, pode-se identificar o delinear desse
comitê e o posicionamento adotado, no que se refere ao atendimento das crianças e
adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.
Isso porque, esse comitê municipal se desenvolve nos princípios e
disposições do sistema de garantias de direitos e os três eixos (promoção, defesa e
controle social) norteadores dessa política, ou seja, deverá ter uma atuação voltada
para a garantia de direitos e o enfrentamento de todas as formas de violência contra
crianças e adolescentes de maneira integral e articulada.
A composição do CMRCPCA conta com representes do Conselho Municipal
de Defesa e Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente (COMDICA), como
também das políticas de Saúde, Educação, Assistência, Segurança, o Sistema
Judiciário, os Conselhos Setoriais e Tutelares, Fóruns e as Organizações da
Sociedade Civil.
E, no seu sentido de articular, mobilizar, planejar, acompanhar e avaliar as
ações dessa rede Intersetorial no que se refere a viabilização da proteção social
básica, é dever desse comitê colegiado potencializar a capacidade protetiva das
famílias e prevenir as situações de violência e de violação de direitos da criança e do
adolescente, como também direcioná-los à proteção social especial para o
atendimento especializado quando essas situações forem identificadas.
A partir do art. 3° desse documento de formação do Regimento Interno do
CMRCPCA, pode-se identificar que os objetivos desse comitê se configuram na
atuação da promoção e defesa dos direitos da Criança e do Adolescente. Como bem
consta no seu parágrafo l, deve-se propor às instâncias competentes políticas
concretas de prevenção de todas as formas de violência contra crianças e

43
adolescentes. Ou seja, é crucial considerar a necessidade da eficiência das políticas
públicas como também a prioridade do atendimento e a das crianças e adolescentes
em situação de violência devido a sua condição de vulnerabilidade social.
Até por que, com base no papel histórico-social que as crianças e
adolescentes tem, como foi colocado nos capítulos anteriores embasado nas
considerações de Ariès, no qual se perdurou por muito tempo uma indiferença pela
infância e adolescência, configurando a falta de proteção social por parte da primeira
instituição social.
Ou seja, são fatos históricos que ainda refletem significativamente tanto na
reprodução social das crianças e adolescentes, quanto na sua devida proteção
social, dado que essa situação acaba por contribuir para a generalização de sua
condição de vulnerabilidade social.
Ainda sobre o art. 3°, no que tange o seu parágrafo II também é de
responsabilidade desse comitê

Promover a integração das diversas políticas e planos municipais afetos


à promoção, proteção e defesa dos direitos de crianças e adolescentes
de forma a ampliar e fortalecer as ações intersetoriais voltadas para o
enfrentamento de todas as formas de violência contra elas.

Cabe considerar novamente a importância da legitimação desse comitê


pautado em uma perspectiva integralizada e coordenada para a prevenção e
coibição das situações de violência contra crianças e adolescentes. Considerando a
sua preocupação na ampliação e no fortalecimento das ações intersetoriais
contribuindo diretamente para uma proteção social comprometida com a garantia de
direitos.
Tendo em vista que essa política de proteção social às crianças e
adolescentes, apresentam um terreno social histórico pautado em valores
repressivos e de filantropia. Pois, como já foi aqui discutido, A natureza repressiva e
filantrópica que se perdurou por um longo período impactava diretamente na
questão dos métodos e estratégias empregues no atendimento a esse segmento
social, já que, onde se eram assegurados alguns mínimos sociais que subsidiaram
inúmeras vezes às crianças e adolescentes a trabalharem para poderem atender às
suas necessidades sociais básicas. (FALEIROS, 2011)

44
Era nítido uma ineficiência desses aparelhos em corresponder às
necessidades sociais da primeira infância, associada a repressão policial que
também ganhava destaque. Ou seja, o que acontecia de fato era mais uma
desproteção e um descuidado frente as crianças e adolescentes, tendo em vista que
por muito tempo foram negados direitos essenciais ao seu desenvolvimento.
Retornando ao regimento interno do CMRCPCA, no que se refere ao seu
parágrafo III do art. 3° também será atribuição desse comitê articular, fortalecer e
coordenar os esforços municipais para a eliminação de todas as formas de violência
contra crianças e adolescentes.
Levando em consideração que o fenômeno da violência é um aspecto
orgânico à formação social e histórica da sociedade brasileira, no qual, culturalmente
os seus valores se expressam na exploração e opressão de um ser pelo outro,
fortalecendo cada vez mais as situações de violência, ainda mais potencializadas no
que se refere à crianças e adolescentes.
Diante disso pode-se constatar a importância dos eixos de promoção e
Defesa de direitos, nos seus respectivos sentidos de criar uma organização social
capaz de garantir universalmente os serviços públicos básicos a sociedade
priorizando as crianças e adolescentes e assegurar a garantia da exigibilidade dos
direitos, seja de maneira preventiva ou reparadora, contribuindo essencialmente
para a prevenção e coibição das situações de violência.
E, no que está relacionado ao parágrafo IV, ainda sobre o art. 3° é conferido
ao comitê colegiado a responsabilidade de acompanhar e monitorar as ações de
enfrentamento das diversas formas de violência contra crianças e adolescentes da
na cidade do Recife. Configura-se na vigilância do cumprimento das disposições
legais constitucionais e infraconstitucionais desta política protecional.
É precisamente neste ponto que se identifica o eixo de controle social do
sistema de garantia de direitos, no que tange a responsabilidade conferida a
sociedade civil de se organizar e se articular em outras instâncias não-institucionais
como fóruns, pactos e entre outros organismos fundamentais para a existência de
um controle externo não institucional da ação do poder público.
Nesse sentido, deve-se considerar a perspectiva teórica gramsciana já
trabalhada neste estudo, na medida em que ela evidencia a imprescindibilidade da
participação ativa da sociedade civil nas questões públicas, por meio da sua

45
organização política, no qual ela vai se expressar diretamente na articulação dos
interesses coletivos de sua classe econômica, onde, o Estado, por sua vez, terá de
ampliar a sua atuação para atendê-los.
Dessa forma, é indispensável considerar a significativa importância do eixo de
controle social para a formulação e o desenvolvimento da política de proteção social
às crianças e aos adolescentes arquitetada na perspectiva do direito. Levando em
consideração que é nesse espaço a mobilização da sociedade para o
monitoramento dos orçamentos públicos, assim como o andamento da política de
atendimento.
Nesse sentido, é importante considerar o contexto político-social e
econômico que a sociedade brasileira está inserida atualmente, contexto esse que
tem seu projeto societário fundamentado no corte de investimentos para o campo
social, favorecendo o retrocesso de políticas sociais, como a de proteção social às
crianças e aos adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, promovendo a
defasagem da garantia dos direitos designados a esse segmento social, direitos
esses fundamentais ao seu processo de desenvolvimento, como também ao pleno
exercício de sua cidadania.
Embora essa política de proteção social às crianças e aos adolescentes
tenha se legitimado como uma política pública de direito, ela não está isenta dos
retrocessos impostos pela conjuntura neoliberal, ainda mais por estar localizada no
campo social, que é o alvo principal da redução de investimentos.
E, essa situação de retrocesso se potencializa mais ainda na dimensão
singular da realidade do Município do Recife, visto que, vai se identificar uma
fragilização no processo de fortalecimento da Rede de Cuidado e de Proteção Social
de Crianças e dos Adolescentes, que se expressa nos índices de violência contra
crianças e adolescentes que ainda se mostram preocupantes.
Ou seja, na medida em que uma política de proteção social às crianças e
aos adolescentes, no que diz respeito a sua legitimação e ao seu nível nacional, se
encontra passiva de uma fragilização e fragmentação do seu atendimento
intersetorializado, essa situação se potencializa mais ainda no que se refere ao
contexto social do município do recife e suas respectivas políticas públicas.
Em vista disso, afirmar a garantia de direitos às crianças e adolescentes
constitui-se também na necessidade de lutar pela construção de um projeto

46
societário livre de valores repressivos e de exploração, assim como todas as formas
de violência que se estruturam a partir desses elementos.
Portanto, cabe aqui enfatizar a significativa importância da participação ativa
da sociedade civil na efetivação desses direitos, dado que, foi a partir das suas lutas
por direitos no sentido de assegurar as garantias fundamentais, como também
combater às violências contra as crianças e adolescentes, compreendendo que
esses direitos não são como uma finalidade em si mesmo, mas inserções postas
nos limites e contradições de um contexto social que é organicamente desigual,
constituído a partir da repressão e exploração de um ser pelo outro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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REFERÊNCIAS

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