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A CASA DO ARQUITETO BICHARA GABY

NASCIMENTO, CLAUDIA HELENA CAMPOS (1); NASCIMENTO, MARINA


CAMPOS (2)

1. Universidade Federal de Roraima. Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Laboratório


de Práticas de Projeto e Pesquisa
Avenida Ene Garcez, 2413, Bloco V CCT Aeroporto Boa Vista/RR 69.310-000
E-mail: claudia.nascimento@ufrr.br

2. Secretaria de Estado de Educação do Pará


Travessa Aveiro, 100 – Conjunto Médici I – Marambaia – Belém/PA – 66.000-000
E-mail: marina.nascimento@yahoo.com

RESUMO
A produção arquitetônica é dependente do processo, meios construtivos e contexto em que se insere;
desta forma, entre o projeto e sua execução, entre o arquiteto e a consecução da obra, há a
interveniência do morador de forma intensa, nos projetos residenciais. É latente a consolidação da
linguagem arquitetônica que se manifesta quando o arquiteto modernista projeta e executa sua
própria residência. Desta forma o artigo visa apresentar a casa do arquiteto Bichara Lopes Gaby
como espaço de síntese do discurso estético e técnico, como ícone do seu momento de ápice
profissional, na década de 1980. Para tanto, o texto discorrerá percurso biográfico, para a
compreensão de seu processo genético de formação profissional, apresentando exemplares de sua
produção arquitetônica, com análise a partir de referenciais teóricos e históricos. As fontes
documentais primárias e entrevistas não estruturadas realizadas em 2017 e 2018, na casa do
arquiteto, despertaram para a representatividade de sua residência como suporte discursivo através
do documento arquitetônico do arquiteto e artista plástico.
Palavras-chave: Bichara Gaby; Arquitetura residencial; Pará.

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INTRODUÇÃO
Guardo dentro de mim, no meu museu particular, tudo
que vi e amei na minha vida (André Marlaux)

A consciência histórica de uma pessoa é a chave para garantir a coerência do


discurso. No caso de Bichara Lopes Gaby, é através de seu acervo pessoal que,
especialmente, poderemos discorrer sobre a sua produção como modernista. A casa de um
arquiteto é exercício máximo de liberdade, por conter os desejos daquele que a produz,
como um simulacro de si mesmo, onde os elementos se ajustam e são compostos como
síntese das reais e mais profundas necessidades, tanto práticas quanto simbólicas. A
morada do arquiteto é, muitas vezes, o espaço da experimentação, noutras, da
consolidação da produção arquitetônica onde este o definidor de todos os parâmetros e
limites, visto que a produção arquitetônica dependente do processo, dos meios construtivos
e do contexto em que se insere.

A arquitetura residencial se reflete como espaços de representação de seus


proprietários, sendo muitas vezes, através do traço do arquiteto, feita a configuração da
imagem pública daquele que a habita. Como exemplo temos a casa de Oscar Niemeyer
(Canoas/RJ), um dos poucos projetos residenciais que autorizara ampla divulgação
internacional, tendo provocado críticas contundentes por não refletir a modernidade, de
acordo com o posicionamento bauhausiano: diria Walter Gropius que "sua casa muito
bonita, mas não é multiplicável", em coro com Mies van der Rohe de ser "uma pequena e
bela construção, mas única" (HESS, 2014, p. 32). As casas dos arquitetos se destacam na
literatura, sendo profícuas e exemplares, especialmente no contexto da Arquitetura
Moderna.

A casa de Bichara Lopes Gaby é exemplar importante para discorrer sobre o


arquiteto, onde as várias opções e escolhas, acumuladas durante a vida produtiva, estão
sintetizadas em diálogo crítico, maduro e coerente. Edificada na década de 1980,
consonante com momento pessoal importante de consolidação profissional e de
reconhecimento público, "em sua obra, Gaby não nega os caminhos trilhados, ao contrário,
deixa visível a sua trajetória multifacetada. Nela reside e diferenciam os traços pelos quais
se reconhece o artista, a senha em que o espectador decifra e navega" (MOKARZEL, In
SECULT, 2001, p. 6). Para compreender a casa do arquiteto Bichara Gaby poderíamos
simplesmente fazer uma descrição de seus elementos, contudo, cremos que "o construtor
não encerra um vazio, mas uma determinada morada das formas, e, trabalhando sobre o
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espaço, modela-o do exterior e do interior, como um escultor" (FOCILLON, in ZEVI, 1977, p.
98).

O tema surgiu durante o processo de pesquisa, ao deparar com o fato expresso da


síntese discursiva que a sua residência encerra, em seu duplo sentido. A coleta de dados, a
partir de entrevista não estruturada e acesso a fontes documentais mantidas em sua
residência-atelier despertou para o estudo da casa, como suporte de seu percurso
arquitetônico e estético, como um todo. A casa do Gaby reflete sua intimidade, a qual
poucos têm acesso, representa um diálogo entre criador e criatura em vários momentos e
papéis, por isso tomada como signo importante e tida como a síntese para o trabalho.

A motivação para escritura deste artigo parte do reconhecimento do valor e


contribuição do Gaby para a cena cultural paraense, aliada à relação pessoal de mais de um
quarto de século, que fez despertar, para a ocasião deste evento, o desejo de creditar
devidamente sua obra, embora haja a firme convicção de que o recorte proposto para este
trabalho seja mínimo diante das dimensões possíveis de estudo do tema.

Para esse artigo, discorreremos sinteticamente sobre aspectos biográficos,


apresentando imagens que vão importar para esse discurso estético, técnico e material,
como trilhas de consolidação de sua linguagem arquitetônica. A escritura baseia-se nas
informações preciosas coletadas entre outubro de 2017 e janeiro de 2018, exclusivamente
para essa pesquisa. Os dados passaram pelo cruzamento com fontes bibliográficas para o
diálogo teórico e histórico e, em sequência, identificação das escolhas formais, materiais e
compositivas na edificação, objeto importante para a compreensão de sua obra estética e,
por conseguinte, revelador de capítulo importante da arquitetura moderna amazônica,
inserindo suas opções projetuais na tecitura de seu processo criativo.

PARA SER UM ARQUITETO


Bichara Lopes Gaby (Belém/PA, 1948) imputa às suas origens libanesas importância
fundamental. Neto do pioneiro migrante Youssef, que se instalou na cidade de Marabá/PA,
filho do comerciante Chicrala, tendo a figura maternal de sua tia Rosa como referência, será
esse o substrato da semeadura da árvore da vida do futuro arquiteto, dando os elementos
da escritura de seu futuro. Maktub, expressão de origem árabe que significa "está escrito",
antecipa o destino de todos, devidamente traçado e planejado para seu fim, se apresenta
como apanágio da vida de Gaby.

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Como um plano previamente traçado, a biografia de Bichara Gaby se apresenta em
etapas que levarão ao objetivo do amadurecimento expressivo, ilustrado em sua residência.
Uma primeira fase de buscas visando à concepção de um partido, uma definição de
intencionalidade, que levará ao seu caminho estético a partir do campo da Arquitetura e das
Artes Visuais, no cenário da modernidade paraense. Um segundo momento, de sua
formação como arquiteto pela Universidade Federal do Pará (UFPA), onde esse projeto de
arquiteto será conformado e quando, concomitantemente, as experiências em outros
campos da visualidade vão amadurecer sua expressão. Por fim, como profissional, o
arquiteto e seus projetos serão definidos através de estudos e experimentações formais e
estéticas, posicionando-o indelevelmente no campo das adjetivações que lhe são
merecidas, e que corresponderá às décadas de 1970 a 1980, onde suas concepções vão
assumir visibilidade nacional, tanto como arquiteto quanto como artista visual: momento em
que é edificada a sua casa-atelier, como alegoria dessa maturidade profissional e pessoal.

A definição de um partido
A formação ríspida, com infância e mais contemplativa que dinâmica e aos moldes
árabes (GABY, 2017), vão levar à apreciação estética da natureza na intimidade do jardim
de sua morada na rua Doutor Malcher, bairro de Nazaré, Belém/PA. Portanto à
aerodinâmica do besouro somam-se os traços dos azulejos portugueses e dos gradis do
ecletismo dos casarões, tornando repertório visual definidor de sua percepção estética
multifacetada. Traçado e projeto, em diálogo íntimo, farão parte essencial da projetação da
arquitetura de Gaby.

A infância cercada pela observação – o ecletismo do bairro de Nazaré, dos


elementos e técnicas constitutivas das construções, que revelavam em obras e demolições,
o estranho tijolo em "L" ou a artesania da produção da argamassa de barro e cal - que a
Arquitetura se revela como objeto. A partir do incentivo de seu pai ao reconhecimento da
percepção estética de Gaby que terá acesso a fotografias de catálogos de viagens, caixotes
de madeira e materiais de desenho, através dos quais experimentaria a construção formal
de maquetes e soluções projetuais para os problemas que seu olhar captava, com sensível
proporcionalidade (GABY, 2017). Com sua tia Rosa vivenciará no jardim eclético a
observação de estruturas das asas das mariposas e as diferentes texturas das plantas. A
natureza e Belém são base de sua inspiração, sintetizada em sua primeira escultura feita
entre os sete e nove anos de idade: um índio, a partir de um tronco de mangueira. Sua

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educação estética se faz, segundo Gaby (2017), devido às suas origens, mais observando
que agindo, pois, o pai que o criou trancado foi quem abriu as portas de um futuro criativo.

A adolescência o insere em experiências no campo da Arquitetura. Entre onze e


doze anos de idade já desenvolve respostas projetuais, como a casa-cogumelo e o projeto
para abrigo de cachorros, entendendo a ferramenta desenho como fundamental para dar
soluções a problemas (GABY, 2017). Em 1964 é forçado a empreender viagem para a
cidade de origem da família, Tiro, na fronteira do Líbano com Israel, devido à crise
econômica que abateu sobre a família em Belém. Contudo, a travessia do navio, a
referência da cidade bíblica e oriunda do Império Romano, além do edifício Brasília (de
propriedade da família), lhe trazem novidades em novo território, como as ruínas históricas
que se avizinhavam (Figura 1). Assim, o adolescente reconhece ali tudo que lhe constituía
geneticamente e a linha do destino se entrelaça nas referências de suas origens.

Ao retornar a Belém, em 1965, dá continuidade ao ensino secundário no Colégio


Moderno e, como estudante, Gaby afirma que iria fazer Arquitetura, muito embora ainda não
estivessem disponíveisl vagas a alunos externos. Neste período estava sendo criado o

Figura 1: Bichara Gaby nas ruas da cidade libanesa de Baalbek, meados da década
de 1960.
Fonte: acervo de Bichara Gaby.

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curso de adaptação profissional de Arquitetura na UFPA.

Em 1964, quando o Curso de Arquitetura foi criado (...) Engenheiros e leigos


faziam a arquitetura na cidade, apropriando-se do repertório modernista,
criando uma arquitetura de fachada, muitas vezes aplicada a edificações de
partido neoclássico (Raio-que-o-parta). Belém passa a ser interligada ao
centro-sul do país pela Rodovia Belém-Brasília, reforçando seu papel de
pólo da região. Desordem urbana, falta de profissionais de arquitetura e
urbanismo, política desenvolvimentista de JK, criando os primeiros
conjuntos habitacionais foram fatores que contribuíram para gerar a
motivação e a criação do Curso em Belém. O prestígio adquirido pelos
arquitetos modernistas construtores de Brasília deu visibilidade profissão.
(MIRANDA et all., 2015, p. 20)

Olhar arguto, capacidade inventiva estimulada desde a infância e atenção aos


detalhes favoreceram sua inserção profissional, para a qual Gaby se preparou através do
livro de desenho técnico de Thomas Frank, permitindo iniciar, em 1967, a trabalhar como
desenhista projetista de móveis hospitalares na J.S Cia.Ltda. (GALERIA, 1977).

Modernidade em Belém
A modernidade na arquitetura paraense não se inicia com o surgimento do curso de
Arquitetura da UFPA, mas já se fazia presente no locus em que se insere Gaby, sendo
importante para delimitação do conjunto de referências às quais sua vivência aporta. Se

Figura 2: Ônibus modelo Zepelim, de Belém, década de 1950.


Fonte: acervo revista Life.
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partirmos das vicissitudes que caracterizaram a região Amazônica até a construção da
Belém-Brasília, no período da decadência econômica da borracha, temos potencialmente
um cenário desolador dessas primeiras décadas do século XX, contudo podemos perceber,
para além do discurso das elites econômicas, uma efervescência que será perceptível
especialmente na literatura paraense: Dalcídio Jurandir, Bruno de Menezes, entre outros
descreverão uma Belém culturalmente rica e dinâmica. Os fluxos da modernidade se farão
também no campo das artes plásticas, além da introdução de equipamentos e serviços
próprios de uma cidade futurista (Figura 2). Belém já portava ares modernos contudo não
refletia uma produção estética propriamente moderna, tanto que a segunda exposição de
Ismael Nery, em 1922 no Grande Hotel de Belém, não foi marcante, só assumindo
contribuição de forma mais expressiva, propriamente, a partir da década de 1940.

O modernismo vai ter um percurso lento a partir de 1943. Os Salões Oficiais de


Belas Artes do Estado do Pará irá abrir as portas para a pintura e escultura modernas, como
opção entre modalidades: se clássica ou moderna. A conexão com a arquitetura ocorrerá
em 1948, com um projeto considerado moderno para a Ação Católica (SOBRAL, 2002, p.
39) e, posteriormente, pela inserção de painéis em relevo de Carmem Souza e João Pinto.
Nesse período, a modernidade se expressará pelo uso do concreto armado e se consolidará
em linguagem Art Decó na construção do Central Hotel (1938) e Avenida Hotel (1940), de
Salvador Souza, edifícios residenciais Piedade (1947) e Renascença (1948), de autoria do
engenheiro-construtor Judah Levy assim como o edifício Dias Paes (1938), e o Edifício dos
Correios e Telégrafos (1940), inserindo a linguagem purista entre os casarões da Belle
Époque, ao longo da atual avenida Presidente Vargas, na área central, culminando
apoteoticamente com o conjunto edilício Manoel Pinto da Silva (década de 1950), o arranha-
céu amazônico de 25 andares, a uma quadra da residência dos Gaby.

Fora deste eixo, da década de 1930 aos anos 1970, pululam edificações de afinidade
modernista: Escola Vilhena Alves (J.Gama Malcher, 1939) e, especialmente, residências
projetadas por Judah Levy, Camillo Porto Oliveira, Agenor Penna de Carvalho, Laurindo
Amorim, Alcyr Meira, Ruy Meira e Roberto de La Rocque Soares. A modernidade
arquitetônica, em diálogo com as artes plásticas, a partir da linguagem abstrata do chamado
Grupo do Utinga, se estabelecia pelo elo comum Ruy Meira, em conjunto com Benedicto
Mello, João Pinto, Joaquim Pinto, Osvaldo Pinho e Arthur Frazão (SOBRAL, 2002).

A primeira exposição de artes visuais abstrata, com obras do artista plástico José de
Moraes Rego, ocorreria apenas em 1959, com ares de evento social no hall de entrada do

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Clube do Remo – projeto do engenheiro-projetista Camillo Porto de Oliveira com fachada em
composição mussiva de linhas cubistas do engenheiro-projetista Alcyr Meira. Essa
conjunção não favoreceu a aceitação da estética, tendo sido “um escândalo para a
sociedade. Pode-se, no entanto, considerar que esta foi um sucesso, se levarmos em conta
o número de trabalhos vendidos inclusive duas obras para o governo do Estado” (SOBRAL,
2002, p. 56). O modernismo tateante nas artes plásticas, como perceptível, vai ser bem
aceito pela elite belenense, porém em pequenas doses, através de incorporações
decorativas (MIRANDA et alli, 2015) e poucas obras descentralizadas (SOBRAL, 2002, p.
41).

O curso de Arquitetura se abrigará, até 1970, num chalé de ferro, produzido no


sistema Danly, que trazia diferencial em relação à então chamada construção civil em metal,
de aspecto "pesado e pouco arquitetural" (VAUTHIER, In GOMES DA SILVA, 1986, p. 73),
como uma amostra da contribuição da arquitetura no diálogo tecnológico, plástico e “com
exemplares residenciais e para várias outras funções, funcionando de forma eficiente quanto
às questões climáticas em países europeus, mas também da África, América Central e do
Sul” (GOMES DA SILVA, 1986, p. 76-77).

O contato com as modernidades amazônicas, em suas várias formas, vai ser cenário
vivencial de Bichara Lopes Gaby.

Projetos de arquiteto
Entre 1967 e 1972, Bichara Lopes Gaby cursou Arquitetura. "Desde o primeiro
concurso até o período da Reforma Universitária (1970) o vestibular contava com provas
específicas para o Curso de Arquitetura, as quais eram elaboradas pelos professores do
Curso, sendo o Desenho a prova inicial para avaliar a 'predisposição' para a profissão
(MIRANDA et alli, 2015, p. 49) e, assim, Gaby foi aprovado em terceiro lugar pela
capacidade de dar soluções criativas às questões propostas (GABY, 2017).

Dominando processos técnicos representacionais e com enorme sensibilidade


estética, não foi difícil seu destaque entre os contemporâneos, tanto colegas quanto
professores, mas nem sempre esse reconhecimento lhe foi favorável. "Viveu Rodin na
solidão antes de alcançar a fama. E esta ao chegar, veio acentuar a solidão. Pois a fama
não é definitiva, mas a síntese de todos os mal-entendidos que se acumulam em torno de
um nome novo" (RILKE, R. M., In PICHON-RIVIÉRE, 1999, p.19). Desta forma, não foi,
como se haveria de supor, Milton Monte a sua maior referência, mas os arquitetos Roberto

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de La Rocque Soares, Hélio Oliveira Veríssimo e Paulo Cal, além de outros, engenheiros,
como Arnaldo Prado (Cálculo) e Azamor (Instalações), criando um espaço entre a
Arquitetura e a tecnologia construtiva importantes para a fruição da criatividade do Gaby.

Relatos de egressos das turmas dos anos 70 referem à existência de


conflitos entre os alunos quanto à filiação a tendências estrangeiras
modernistas, e a produção de uma arquitetura que refletisse a integração
local ao ambiente cultural. Tal contexto sugere que muitos arquitetos
tenham optado por produzir, especialmente na Arquitetura residencial,
simulacros do colonial, que poderia ser visualizado no bairro da Cidade
Velha, mas vinha indiretamente vinculado arquitetura californiana, usada
como modelo para a vertente neocolonial. A “arquitetura dos arcos abatidos”
contagia a cidade nos anos 70 e 80, sendo comum seu emprego hoje na
arquitetura popular ou espontânea. (MIRANDA et alli, 2015, p. 53)

O caminho da experimentação se contrapunha ao dos discursos. Gaby trilha o


primeiro, permitindo-se ao diálogo que não fosse excludente de possibilidades criativas. La
Rocque se torna importante, ao reconhecer o talento e disposição estética do discente.
Através do mestre Hélio, vai reconhecer nas aulas de História da Arte e da Arquitetura sua
história pessoal, em especial, as vivências da viagem ao Líbano. Com Paulo Cal, a
proximidade de diálogos e produção, permitindo interfaces e abertura de perspectivas
integradoras com outras áreas de conhecimento e pessoas.

O momento pessoal de Gaby foi de grande complexidade no período universitário,


dividindo seu tempo entre o curso de Arquitetura, o Núcleo de Preparação de Oficiais da
Reserva (NPOR) e o trabalho remunerado, tanto de desenhista projetista quanto de
produção artesanal. O contato humano na UFPA também seria mediado por
posicionamentos jocosos em torno do seu nome de batismo, o que fez com que assumisse
a alcunha de Bechara Gaby nesta época, que o induziria a impor sua personalidade a partir
de sua produção, ocultando a timidez.

Os embates estéticos, como anteriormente relatados, entre os reprodutores de


modelos exógenos afins modernidade consolidada do International Style ou de modismos de
época, e os de postura crítica e criativa, gerava tensões também entre discentes e docentes.
Com importantes arquitetos recém-habilitados com sólida formação técnica, além de muitos
egressos inexperientes, neófitos na função didática (MIRANDA et all, 2015, p. 60), o diálogo
nem sempre era favorecido, especialmente quando se tratava de apresentar a

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desconstrução de paradigmas. A primeira relação conflituosa se estabeleceu justamente
com o professor Milton Monte, cuja opção estético-projetual

na primeira fase de sua carreira (...) usava como referências a revista


argentina “Mi Casita” que continha apenas desenhos com cotas gerais de
modelo de casas térreas, que traziam o estilo californiano e “Arquitetura e
Construções” por Luís Muzi (...), com desenhos e fotografias de edifícios
modernos e californianos de dois pavimentos (MIRANDA et alli, 2015, p. 75).

Gaby propõe um elemento de cobertura para um exercício de projeto de uma praça,


e o professor ironiza denominando de chapéu mexicano e avaliando negativamente a
proposta. Bichara Gaby solicita uma avaliação por uma comissão e consegue a sua
aprovação, contudo destaca que o professor, à época, não possuía a clareza de uma
arquitetura adequada ao clima nem da importância do uso de matéria-prima natural e local,
além do fato de que sua expressão arquitetônica ser, até então, marcada por elementos de
pura gratuidade plástica quer por incorporação de painéis de cacos de azulejos, quer por
formas em concreto armado. Contudo, defendendo o mestre, afirma que este foi
aprendendo ao longo do tempo, convivendo com outras ideias (GABY, 2017), especialmente
a partir do Curso de Especialização em Arquitetura nos Trópicos na UFPA entre 1986 e
1987, onde

o arquiteto Milton Monte destaca-se nesse contexto pela introdução da


linguagem vernácula, com experimentação de materiais e formas, tendo
obtido reconhecimento latinoamericano de sua produção (...) A influência da
troca de experiências entre os professores que cursaram a Especialização
com os professores que ministraram o curso reflete-se no incremento,
especialmente nos anos 80 e 90, na produção da arquitetura paraense
voltada ao uso de materiais regionais como a telha de barro e a madeira,
em coberturas com amplos beirais, estruturas, fechamentos e
revestimentos. (MIRANDA et all, 2015, p. 71-72)

Podemos nos apropriar novamente das palavras de Pichon-Rivière para


compreender o estado do ser criativo: "o artista, então, tanto plástico como o poeta, é um
ser em antecipação, que se torna vítima de verdadeiras conspirações organizadas contra a
mudança, contra o novo, contra o inédito" (PICHON-RIVIÉRE, 1999, p. 20). Com
experiência projetual que inicia-se antes mesmo de sua diplomação, Gaby traz bagagem
estética em vários campos, sempre de forma pioneira, como da criação da primeira história

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em quadrinhos paraense no jornal Folha do Norte, por convite de João de Jesus Paes
Loureiro.

O arquiteto e seus projetos


Gaby viaja para São Paulo logo após a conclusão de seu curso, em 1972, levando
no currículo exposições coletivas de artes plásticas e premiações que incluíam o de
representação do Estado do Pará na Pré-Bienal de São Paulo, em 1970, a de de editor e
ilustrador nos jornais Folha do Norte e O Liberal, além de trabalhos para uma importante
editora belenense, GRAFISA; na arquitetura a experiência como projetista das empresas
Freire Melo e Bellesi & Segre, em Belém. Seu sonho era desenvolver o seu talento,
alcançando seu intento principal de ser ilustrador da Abril SA Cultural e Industrial, o que
alcança a partir de 1973. Também é na capital paulista que trabalhará como projetista nas
empresas Bonilha & Sankovisk Ltda. e Construtora Adolfo Lindemberg SA, sempre
incorporando a questão do regionalismo em suas obras (GALERIA, 1977).

Ao retornar a Belém, em 19741, inicia carreira artística com sua primeira exposição
individual na Galeria Angelus, no Teatro da Paz, e no Salão Aberto em Artes, em Manaus,
promovido pela Fundação Cultural do Amazonas (Manaus, 1976). Sem descuidar da sua
formação, participa de capacitações (GALERIA, 1977) que irão impactar na sua atuação
como arquiteto, sobre temas que somente entrariam na grade curricular obrigatória da
formação dos arquitetos da UFPA a partir dos anos 1980, como paisagismo e ecologia
(MIRANDA et all, 2015, p. 92). Nestes primeiros anos, desenvolve dezenas de projetos,
tanto residenciais quanto para instituições (Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal,
Governo do Território do Amapá), onde o elemento regional vai ser importante marca, seja
na adequação ao clima, no uso de materiais, na temática ou mesmo com a incorporação de
painéis artísticos nas obras arquitetônicas (GALERIA, 1977). Nesse período monta escritório
de projetos arquitetônicos com Dina Maria Cesar de Oliveira, que também se tornaria
destaque nas artes visuais paraense da geração 1980.

Marcando o ano de sua terceira exposição individual, 1977, Gaby inicia-se no


carnaval, um campo onde outros arquitetos paraenses já haviam iniciado a lavra, como
Fernando Pessoa e Neder Charone, incorporando esse universo criativo ao seu mundo,
acumulando prêmios a partir de 1979, como arquiteto da escola de samba Rancho Não
Posso Me Amofiná e de outras agremiações. Surgem celeumas na mídia, contrapondo-o

1 Esta primeira fase marcada, além dos aspectos profissionais, pelo nascimento de sua primeira filha Cinthya
Coelho Gaby (1975), filha de Adelaide Couto Coelho.
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com outros jovens arquitetos-carnavalescos atuantes da época, embora seja inegável a sua
contribuição como aquele que inseriu no carnaval paraense qualidades estéticas
compatíveis aos grandes desfiles brasileiros (OLIVEIRA, 2006), reconhecido no
tricampeonato do Rancho. Também merece destaque a produção de figurinos para o
Concurso Rainha das Rainhas, onde inovou, especialmente quanto estrutura das fantasias,
associando o seu domínio plástico e técnico, com destaque na revista O Cruzeiro, na época.

No contexto do carnaval paraense surgiriam algumas obras de extrema importância


para o arquiteto Bichara Gaby, que lhe garantiriam o reconhecimento de sua contribuição
estética para a cena das artes visuais paraense e, por conseguinte, para a arquitetura.
Como projetista, vai ser responsável por um número considerável de obras, especialmente
residenciais, e a casa de espetáculos O Lapinha, consolidando a linguagem nesse universo
de experimentações formais e plásticas.

A edificação
A década de 1980 corresponde à consolidação pessoal2 e profissional do arquiteto
Bichara Lopes Gaby, pela inserção de seu discurso no cenário do que seria chamado de
arquitetura regional, onde precursores-peregrinos como Bratke e Porto vão ser importantes
influências, especialmente para a geração formada na UFPA nesse período. No cenário
local, alguns arquitetos se destacarão, como Milton José Pinheiro Monte, João Castro Filho
e José Raiol e, claro, Bichara Gaby.

Castro e Raiol coordenam entre 1986 e 1987 o curso de especialização Arquitetura


nos Trópicos, na UFPA, que

visava ampliar o debate acerca de uma 'arquitetura amazônica' adaptada ao


meio e sustentável, enquanto resultado da interpretação das características
ambientais e culturais locais, alinhando-se aos debates época que
abordavam temas como a cultura do lugar, o regionalismo crítico, a
modernidade apropriada e a sustentabilidade (SARQUIS, 2012, p. 118).

O mesmo autor destaca que a produção monográfica desse curso visava, em sua
maioria, estudar as questões de conforto ambiental a partir de elementos (vedações,
aberturas e cobertura, com especial atenção aos beirais) e para o desempenho térmico de
materiais tradicionais.

2 A partir do casamento com Anésia Meira de Macedo (após Anésia Macedo Gaby), também arquiteta, nascem
Karimme Macedo Gaby (1982), Samya Macedo Gaby (1984), Kalil Macedo Gaby (1987, arquiteto) e Gabriel
Macedo Gaby (1995, cursando arquitetura).
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A despeito do desenvolvimento acadêmico desses temas, "apenas os profissionais
Bichara Lopes Gaby e Milton Monte continuaram desenvolvendo projeto segundo pesquisas
formais e funcionais vinculadas ideia de consciência ambiental, com ênfase em materiais
tradicionais (como a madeira, a telha e o tijolo cerâmicos)" (SARQUIS, 2012, p. 121) sendo
portanto nesse ponto, que se insere a contribuição mais significativa de Gaby para a
arquitetura moderna amazônica: partindo da visão integral do fazer arquitetônico, vai
desenvolver seus projetos aliando a experimentação de materiais e métodos construtivos,
visando maior qualidade, tanto técnica quanto estética, incorporando o fator socioeconômico
e cultural, sem comprometimento dos avanços necessários à arquitetura.

Werner Haftmann afirmou, em 1959, que “o artista plástico é uma espécie de irmão
gêmeo do arquiteto-artista (...) os grandes gênios da nossa arquitetura ocidental foram
escultores, de Phidias a Bruneleschi, de Michelangelo a Bernini” (HAFTMANN, 1959; in
LOPES, 2009, p. 48), aceitando a tendência brasileira de integração entre as artes plásticas
e arquitetura, como característica apresentada deste a edificação do Ministério da Educação
e Saúde. No diálogo amazônico também estarão presentes as obras de Gaby para o Banco
do Brasil (Manaus/AM e Pedreira-Belém/PA, 1980-1982) e PARATUR (Reduto-Belém/PA)
onde serão incorporados elementos de representação artística, como painéis (Figura 3) e

Figura 3: Finalização do painel da agência do Banco do Brasil no bairro da Pedreira,


Belém/PA, década de 1980. À direita, Bichara Lopes Gaby.
Fonte: acervo Bichara Gaby.

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esculturas de sua assinatura. O uso de painéis de relevo em concreto foi bastante comum
na modernidade em Belém, desde sua gênese na década de 1940, especialmente sob a
assinatura dos artistas Carmem Souza e João Pinto (SOBRAL, 2002).

Figura 4: Residência do Alencar; Porto Artur, Mosqueiro-Belém/PA.


Fonte: PARATUR.

Figuras 5 e 6: O Lapinha (1985-1986): construção da cobertura e aspecto geral.


Fonte: Acervo Bichara Lopes Gaby.
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O Congresso Internacional de Críticos, ocorrido em 1959 na nascente Brasília,
também registrará a posição de Mário Pedrosa, afirmando que “não se pode considerar a
síntese das artes como uma colaboração eventual entre arquitetos, escultores e pintores.
Esta formulação só tem sentido se a estendermos a um plano social e cultural de ordem
geral, se bem que qualitativo” (PEDROSA, 1959; in LOPES, 2009, p. 397). Assim, o convívio
entre linguagens e, em especial, o contexto carnavalesco, vai permitir a produção de
importantes edificações que se tornariam referenciais, como a residência do Alencar (Figura
4), na Praia do Porto Artur (Mosqueiro-Belém/PA, c. 1985), mansão de Luizinho Drumond
(Utinga-Belém/PA, c. 1985) e da casa de espetáculos O Lapinha (Figuras 5 e 6), no bairro
da Cremação-Belém/PA, em co-autoria com José Raiol, este último projeto que projetou seu
nome para além dos estereótipos.

Em Belém, a pouca produção arquitetônica vinculada ideia de regionalismo,


após a formação da primeira turma do curso de especialização, pode estar
relacionada a certa resistência pela maioria dos ex-alunos em aceitar a
arquitetura regional como único caminho para a viabilidade construtiva local,
amparando apenas no estudo do clima e na aplicação de materiais e
técnicas tradicionais, desvinculando do intercâmbio com tecnologias
contemporâneas. Isso deriva de um posicionamento acadêmico, por vezes,
limitado a um regionalismo mais tradicionalista, contribuindo para que a
continuidade do curso fosse comprometida e para que os arquitetos locais
não fossem seduzidos pela possibilidade de alinhamento a uma arquitetura
restrita discussão regional, passando a vê-la como questão superada
(SARQUIS, 2012, p. 122).

Portanto é no mínimo paradoxal que o discurso sobre a produção arquitetônica sob


essa vertente, no limiar das décadas de 1980-1990, tenha sido abortada ao mesmo tempo
em que o projeto do O Lapinha (RANGÉ, 1988) e o Apart-Casa (MIRANDA et all, 2015, p.
179) tenham alcançado repercussão e visibilidade nacionais no campo das discussões
projetuais. Contudo o discurso regionalista vai seguir com força e reconhecível nas obras de
Gaby, Castro e Raiol, especialmente, durante as décadas seguintes.

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Figura 7: Universidade da Amazônia -Belém/PA.
Fonte: UNAMA.

Este período, em 1980, é autorizado o funcionamento do curso de Arquitetura e


Urbanismo, no qual Bichara Gaby passa a atuar como docente desde sua criação. O
reconhecimento do curso se faz cinco anos após (CFE/MEC, 1985), cabendo ao Centro de
Estudos Superiores do Pará (CESEP), instituição precursora da Universidade da Amazônia
(UNAMA). Essa instituição será canteiro de várias intervenções (Figura 7), tanto de ordem
arquitetônica quanto estruturais, que irão garantir o reconhecimento desta como
universidade, a partir da vistoria do MEC, em 1993. O princípio da co-responsabilização,
comum na sua prática nos barracões carnavalescos, vai ser incorporada sua prática
profissional, primeiramente como coordenador do Escritório Técnico de Engenharia e
Arquitetura (ETEA) e, após, na Prefeitura do Campus-sede da Universidade da Amazônia
que, durante essa gestão, vai ser ampliada a mais dois campi, sendo um de sua autoria, o
da avenida Senador Lemos.

Apropriar não é uma boa palavra. A questão deixar que esse saber
participe. A gente não vai lroubar o saber, botar na nossa cabecinha e
devolver. Mas projetar de tal maneira que aquilo que ele sabe possa
realmente aparecer; que o operário possa investir no que faz de uma
maneira mais humana (...) então a dimensão ética, também uma dimensão
política. (FERRO, Sérgio, in ARANTES, 1999, p. 258)

É muito próxima à postura do grupo Arquitetura Nova, porém mais fina que o
"brutalismo caboclo" denominado por Sérgio Ferro (ARANTES, 1999, p. 256), garantindo
que o conhecimento tradicional seja utilizado e valorizado no processo.

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A CASA
Trabalhar com amor construir uma casa como se o seu
bem amado fossse morar nela (Gibran Kalil Gibran)

A casa do arquiteto, projetada e construída nesse período de ápice profissional e


pessoal, vai agregar, como uma síntese, todo o seu percurso até então. Ela está localizada
no bairro do Marco, em Belém, na travessa Barão do Triunfo. Centralizada no terreno e
cercada de jardins, possui edícula ao fundo, para cumprir a função de atelier para a
produção artística. A edificação principal se desenvolve em dois pavimentos, sendo o
segundo restrito às funções íntimas, contudo com um ambiente que se projeta sobre as
salas, como um mezanino.

Não é uma volumetria fácil e a espacialidade é bastante funcional, contudo não há


gratuidade nas formas e elementos (Figura 9). Existe um convite à apreciação, provocador.

Figura 8: Vista posterior da casa.


Foto: Autores, 2017.
A arquiteta-artista Rosângela Marques Britto, assim descreve sua ambiência.

Lembro-me do que senti na primeira visita ao atelier do artista. Um sentir


inusitado, uma perda temporária de equilíbrio, um deslocamento a um outro

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universo, construção e semeado com diversos elementos expressivos da
natureza raízes, sementes, troncos universo amazônico fragmentado por
uma diversidade de materiais. Passado o momento do olhar de descoberta
dos materiais e a busca deste novo contexto plástico sendo construído e
desvelado pelas mãos do artista, do arquiteto, do artesão, que num toque de
maestria e muita dedicação ao fazer, conhecer e exprimir da arte
desvela/aprisiona elementos expressivos da natureza semeando outras
naturezas construídas (BRITTO, in SECULT, 2001)

A casa do arquiteto Bichara Gaby, construída por ele para abrigar sua família, não
será, como faz supor a crítica produção arquitetônica amazônica, uma bricolagem de
elementos vernaculares, cuja rusticidade se imponha. É uma casa amazônica, urbana, com
lote não tão pequeno, porém não se caracterizando como uma mansão, mas que vai
responder de forma mais eficiente às vicissitudes climáticas que o projeto do O Lapinha
(RANGÉ, 1988), permitindo a inserção de elementos avarandados sob planos de telhados
em telhas cerâmicas, sem flertar com a gratuidade de arcos ou outros clichês.

Com os anos 1990, a sensação de esvaziamento da pauta regionalista contribuiu para que
algumas atitudes resultassem em projetos cujo partido estrutural não se sustentasse exclusivamente
na aplicação de materiais construtivos locais; aspecto recorrente em obras de Milton Monte, João
Castro Filho e José Raiol; abrindo espaço para o emprego de tecnologias e materiais
contemporâneos, adotados em função das especificidades da realidade ambiental e representando
uma atitude projetual que ia muito além do vernacular (SARQUIS, 2012, p. 122.)

Há na casa do Gaby, uma recorrência dual de elementos que são, ao mesmo tempo,
nobres e rústicos. O contraste do piso em granito com o guarda-corpo da escada em metal,
traz referência de memória Art Decó, como Antoní Gaud do qual confessa predileção. Em
contraponto, as toras de acariquara que possuem função estrutural, se projetam
desalinhadamente sobre o vão da sala, com pé direito duplo (Figura 9), em pleno diálogo
com a expressão do artista-arquiteto.

É recorrente o uso de materiais como pedras, madeiras e cerâmicas, porém o uso do


ferro também pode ser encontrado, como é comum em suas obras, com esmero de
serralheria, assim como o do concreto armado, como pode ser observado nos exemplos da
casa Alencar e do Lapinha, anteriormente citados. O diálogo entre os espaços de múltiplas
funções a definição destes se faz pelo uso, assinatura, de elementos de caráter estético,
como obras de arte, acabamentos e materiais específicos.

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Figura 9: Exemplos da utilização de materiais contrastantes, de forma não-usual.
Foto: Autores, 2018
O conforto ambiental é quase perfeito, se não fosse pelo fechamento de alguns vãos,
anteriormente vazados, por tijolos de vidro, a pedido de sua esposa na época, por questão
de conservação e limpeza. A preocupação com o conforto dialoga tanto com a questão dos
materiais e amplos beirais quanto com a consciência ambiental que o configura.

As esquadrias em madeira se estabelecem em diálogo formal e funcional de acordo


com a necessidade. A casa, cercada por jardins tropicais, fornecem parte dos insumos que
o artista desenvolve em suas obras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebemos elementos comuns, que configuram como assinatura do arquiteto Bichara Lopes
Gaby, na linguagem e na postura projetual, que se inter-relacionam. Tanto a escolha formal quanto a
material vão induzir as escolhas projetuais e soluções técnicas que se constroem.

É clara a consolidação das referências e dos processos vivenciais de Gaby em sua casa,
assim como esta reflete sua forma de interrelação com o seu mundo, através da presença de sua
produção artística.

Portanto a construção de sua residência, na década de 1980, representaria um


momento de consolidação do processo pessoal e profissional do arquiteto sendo, o
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contexto, o elemento motivador para a sua edificação, onde seria possível a existência de
um espaço que agregasse as relações mais íntimas: de família e de produção, tanto como
arquiteto quanto de artista plástico. O presente trabalho se propõe apresentar o documento
arquitetônico e os subtextos que constituem sua edificação - da escolha da localização às
opções construtivas -, em diálogo com o percurso pessoal e profissional do arquiteto,
cruzando as referências expressas na própria arquitetura, especificando as soluções
técnicas e construtivas que sejam capazes de estabelecer a relação entre obra e criador.
Por fim, este trabalho deseja, a partir do estudo de caso da residência do arquiteto Bichara
Gaby, apresentar, como uma micro-história, o próprio artista, num mergulho na privacidade
do lar e de sua vida, que se entrecruza com a sua produção arquitetônica.

REFERÊNCIAS
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Editora Cosac Naify, 1999.

BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. A formação do homem moderno vista através da


arquitetura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999.

BRUAND, Yves. Arquitetura Contemporânea no Brasil. São Paulo: Editora Perspectiva,


1990.

CFE/MEC. Parecer nº. 395/85: Reconhecimento do curso de Arquitetura e Urbanismo,


ministrado pelo Centro de Estudos Superiores do Pará. Disponível em
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cd009447.pdf. Acesso em jan. 2018.

CONCURSO ÓPERA PRIMA 1991. Revista Projeto, nº. 142, jun. 1991. p. 64-65.

GALERIA Theodoro Braga. Gaby. (catálogo de exposição de Bichara Gaby). Belém: Galeria
Theodoro Braga-Theatro da Paz, 1977.

GOMES DA SILVA, Geraldo. Arquitetura do Ferro no Brasil. São Paulo: Nobel, 1986.

HESS, Alan. Oscar Niemeyer Casas. São Paulo: Editora Gustavo Gilli, 2014.

LOPES, Maria Zmitrowicz. O Congresso Internacional de Críticos de 1959 e Aspectos


da Modernidade no Brasil. Universidade de São Paulo (disseratação em Estética e História
da Arte). São Paulo, 2009.

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MIRANDA, Cybelle Salvador; MARQUES DE CARVALHO, Ronaldo; TUTYIA, Dinah Reiko.
Uma Formação em curso: esboços da graduação em Arquitetura e Urbanismo. Belém:
UFPA, 2015

OLIVEIRA, Alfredo. Carnaval Paraense. Belém: SECULT, 2006.

PICHON-RIVIÈRE, Enrique. O Processo de Criação. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

RANGÉ, Jacques. Arquiteturas no Brasil/anos 80. São Paulo: Projeto, 1988.

SARQUIS, Giovanni Blanco. Diálogos contemporâneos na arquitetura belenense (1979-


2007). Universidade Presbiteriana Mackenzie (tese de doutorado em Arquitetura e
Urbanismo): São Paulo, 2012.

SECULT. Sementes da Amazônia (catálogo de exposição de Bichara Gaby). Belém:


SECULT, 2001.

SOBRAL, Acácio de Jesus Souza. Momentos iniciais do abstracionismo no Pará. Belém:


Instituto de Artes do Pará, 2002

ZEVI, Bruno. Saber ver a Arquitetura. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 1977.

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