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A escolha de um objeto de estudo com nome tão inusitado surgiu pelo contato
com as fachadas de cacos de azulejos coloridos nas cidades de Abaetetuba e
Belém, ambas no estado do Pará. O interesse veio a se aprofundar no registro
fotográfico desses exemplares na capital paraense a título de catalogação para
o Laboratório de Memória e Patrimônio Cultural – Lamemo da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará e em consequência
da necessidade de complementar as pesquisas divulgadas em monografias,
artigos e dissertações na área de arquitetura.
Residências "Raio que o parta" nos bairros Cidade Velha, Umarizal e Telégrafo
Fotos Laura Costa, 2017/ Karina Pamplona, 2014/ Laura Costa, 2017
Contudo, não se pode fazer uma relação de causalidade entre crise econômica
e o Raio que o parta, uma vez que o maior número de construções RQP datam
de uma época de reaquecimento da economia. Em entrevista (8), um
proprietário de casa “Raio que o parta” afirmou que a própria família quebrava
os azulejos para formar os mosaicos e desenhos. Ronaldo Marques de
Carvalho e Cybelle Salvador Miranda, (9) falam de aproveitamento de sobras
de construções e Andréia Loureiro Cardoso (10) levanta a hipótese de o “Raio
que o parta” ter sido influência de murais criados pelo artista plástico Ruy
Meira, que incorporou os mosaicos de azulejos em algumas de suas obras,
como a residência do artista em Mosqueiro e a do casal Benedito e Maria
Sylvia Nunes. Esta integração artística viria a repercutir nas arquiteturas
populares do período, conforme atesta Barcessat et al:
"O uso de painéis artísticos na obra arquitetônica pode ser considerado como
tentativa de integrar arte e arquitetura, como pregava a Bauhaus. No Brasil,
Niemeyer influenciou muitos jovens arquitetos após utilizar o painel de azulejo
na fachada da Igreja de São Francisco em Pampulha"(11).
"Os próprios raios, que ilustravam os mosaicos, são imagens que ficavam das
colunas, platibandas e outros elementos pontiagudos e inclinados, apreciados
na arquitetura modernista. Esta atitude nascia da observação e cobiça do
elemento, ao ponto de chegar a reproduzi-lo (já que não podia ser adquirido),
para satisfazer o desejo compulsivo de possuir o objeto" (12).
Métodos de aproximação
Partimos dos estudos prévios sobre o Raio que o parta a fim de compreender
sua origem e características, comparando as percepções dos autores sobre a
manifestação. Ao mesmo tempo, a pesquisa identificou um sensível número de
apagamentos das fachadas RQP nos últimos anos, levando-nos a investigar os
condicionantes para tal, tendo em vista que tal perda está associada ao uso do
imóvel e a ausência de vínculo entre esta e o morador.
A pesquisa identificou 90 casas raio que o parta distribuídas nos três bairros.
Na Cidade Velha, onde se iniciou a ocupação de Belém e tem parte de sua
área tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –
Iphan, é o local com menor número de casas RQP (27 unidades), embora o
número de apagamentos observados no período entre 2012 e 2014 (1 unidade)
seja o menor dos três bairros estudados, o que se reflete no posicionamento da
maioria dos entrevistados, os quais afirmam não pretender modificar a fachada.
No Umarizal encontramos 34 casas RQP, apesar da ideia inicial de haver
poucos exemplares em virtude da expressiva especulação imobiliária e
mudança no estrato social, que passou de “bairro periférico, de paisagem
degradada, onde proliferavam as valas, capim, enchentes e aningal,
dificultando o ir e vir das pessoas” (18) a uma das áreas com o metro quadrado
mais caro de Belém. Apesar do maior número de fachadas dentre os três
bairros, o número de apagamentos (5 unidades) é também elevado, sendo
essas modificações feitas principalmente com aplicação de pintura sobre o
painel de azulejos.
O Telégrafo, que faz fronteira com o Umarizal, tem perfil social de menor poder
aquisitivo que este e o número de fachadas Raio que o parta é menor (29
unidades), mas apresenta maior número de apagamentos (6 unidades), em sua
maioria resultantes de modificações que reformularam totalmente a fachada. É
o bairro com maior risco de perda do RQP não somente em função dos
apagamentos já realizados, como do anseio da maioria dos moradores em
modificar a fachada.
Na Cidade Velha (bairro no qual foram realizadas 8 entrevistas, sendo uma não
gravada), 25% dos entrevistados já tinham conhecimento da expressão “Raio
que o parta” em arquitetura e 25% forneceu uma época aproximada de
construção do imóvel – nestes casos, a casa fora construída por volta das
décadas de 1940 a 1950 e concebida com a estética RQP pela primeira
geração com a qual o morador atual mantém vínculo familiar. Esses moradores
afirmaram que a casa foi realizada com acompanhamento projetual, embora
não tivessem a cópia do projeto ou soubessem de quem foi a autoria.
"Eu adoro, acho lindo, acho diferente. Tanto que o pessoal lá da Escola de
Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará, todas as vezes que eles vem
aqui [...], eles batem fotos porque eles acham diferente a fachada"(19).
Sua vizinha, da casa n. 40, revela que sua opinião a respeito da fachada
mudou, remetendo-nos à mudança de paradigma (20):
A maioria dos entrevistados desse bairro (67%) revelou não gostar da fachada
de sua casa. A moradora da residência n. 33 (rua Ferreira Pena) afirma não
gostar porque “acho ela muito feia, muito arcaica [...]. Deixei assim por causa
do meu pai”. A moradora da casa n. 1469 na rua Boaventura da Silva também
disse não gostar porque “é antiga”. Por outro lado, na casa n. 87 (Passagem 12
de novembro), a entrevistada diz gostar da casa porque é a única casa antiga e
todos da passagem admiram. Em outras palavras, a mesma qualificação
(antiga) é usada para valorizar ou desvalorizar o imóvel, de acordo com o juízo
atribuído pelo indivíduo.
O vínculo familiar com a primeira geração que idealizou o RQP nem sempre
garante a afeição por essa estética. A moradora da residência n. 961, na rua
Curuçá (que à época estava à venda) conta que construiria outra casa no lugar,
mesmo tendo sido obra de seu pai, “porque quando ele fez era o bacana, era o
moderno, entendeu? Só que hoje ele está ultrapassado”. A falta de vínculo
também não exclui o gosto: a atual proprietária do imóvel n. 136 da rua Rosa
Moreira, que não possui parentesco com a primeira geração e adquiriu a casa
totalmente modificada interna e externamente, afirma que a compraria com a
fachada original (que mostramos em imagem capturada pelo Google Street
View) e não a modificaria.
Entre 2012 e 2014, dos 90 imóveis levantados por esta pesquisa nos três
bairros, 12 já perderam as características do RQP – seja pelo encobrimento
dos azulejos através de pintura ou reboco ou da reformulação total da fachada.
Esse processo de perda do RQP revelou-se mais acelerado no Telégrafo, que
apesar de concorrer com o Umarizal em número de imóveis RQP apagados,
existem outros que estão na iminência de perderem suas características, de
acordo com o relato de seus atuais moradores. Em ambos os bairros, a maioria
dos entrevistados pretende modificar a fachada no intuito de eliminar os painéis
de azulejos, usando termos como “antigo” ou “velho” para justificar sua opinião.
Essas conclusões reforçam as ideias propostas por Aloïs Riegl (22), quando
fala do valor absoluto e valor relativo: para ele o termo “valor” é tratado como
um evento histórico, não permanente:
Outro conceito utilizado por Riegl que pode ser associado às impressões dos
moradores acerca das fachadas Raio que o parta é o “Valor de Novidade”: para
a vontade artística, quanto mais degradada a obra estiver, menos valor lhe é
atribuído, da mesma forma como alguns moradores se sentem ao afirmar que,
se a casa RQP estivesse em melhores condições, sentiriam mais apreço:
"A multidão sempre foi seduzida pelas obras cujo aspecto novo estava
claramente afirmado; [...] Ao olhar da multidão, só o que é novo e intacto é
belo. O velho, o desbotado, os fragmentos de objetos são feios"(24).
Considerações finais
Robert Venturi (32) afirma que os arquitetos têm muito a aprender com as
paisagens populares em vez de se debruçarem apenas em perseguições
teóricas. Em outras palavras, saber absorver o conteúdo histórico e simbólico
dessa linguagem artística na arquitetura isento de preconceitos para extrair
valiosas lições de como nos relacionamos com a paisagem. Para ele, não há
nada de errado em dar às pessoas aquilo que querem em termos estéticos, e
neste caso, elas queriam participar da modernidade – muito provavelmente
construindo ou remodelando suas casas com os profissionais disponíveis
(engenheiros, desenhistas e mestres de obra) ou com as próprias mãos,
executando os desenhos durante a própria obra. Infelizmente, a visão negativa
não se limita aos profissionais, mas inclusive àqueles que convivem
diariamente com a arquitetura intuitiva do Raio que o parta, resultado da visão
que relativiza o valor de acordo com a novidade.
notas
5
Maria Barcessat et al e Andréia Loureiro Cardoso afirmam que a autoria da
expressão é atribuída ao professor de arquitetura Donato Melo Jr., embora seja
questionada por outros docentes do período. A postura acadêmica, assim
como a denominação pejorativa do fenômeno, reflete a intenção de ridicularizá-
lo, por ser predominantemente vernacular. BARCESSAT, Maria et al.
Arquitetura de Belém de 40 a 80. Trabalho de Conclusão de Curso. Belém,
FAU-UFPA, 1993; CARDOSO, Andréia Loureiro. A valoração como patrimônio
cultural do “Raio que o parta”: expressão do modernismo popular, em
Belém/PA. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, Iphan, 2012.
10
11
13
14
15
TUTYIA, Dinah. Rua Dr. Assis: uma incursão pela paisagem patrimonial
transfigurada da Cidade Velha, Belém do Pará. Dissertação de Mestrado.
Belém, PPGAU-UFPA, 2013.
16
HALL, Sean. Isto significa isso – Isso significa aquilo. São Paulo, Rosari, 2008.
17
18
20
21
22
RIEGL. Aloïs. O culto moderno dos monumentos: sua essência e sua gênese.
Goiânia, Editora da Universidade Católica de Goiás, 2006.
23
24
25
26
27
LARA, Fernando. Op. cit., p. 173.
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29
30
31
32
VENTURI, Robert. Aprendendo com Las Vegas. São Paulo, Cosac & Naify,
2003.
agradecimentos
sobre as autoras
Laura Caroline de Carvalho da Costa é arquiteta e urbanista (UFPA, 2013),
bacharel em Design (UEPA, 2010), mestre em Arquitetura e Urbanismo
(PPGAU-UFPA, 2015) e professora do Instituto Federal do Pará.
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