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O IN T E R C ES S O R

­­­Jesus

A Oração Sacerdotal
(17:1–26)

O capítulo 17 pode ser descrito como o pon- maior oração de J­esus registrada nos Evangelhos,
to culminante do discurso de despedida, no qual é evidente que suas palavras foram proferidas
­Jesus estivera animando seus discípulos em face em alto e bom som (17:1; veja Mateus 11:25–27).
das dificuldades que eles enfrentariam após a sua Embora J­esus estivesse falando com seu Pai, os
partida. Embora a inclusão de orações nos discur- discípulos puderam ouvi-lo e obter assim um en-
sos de despedida fosse comum na literatura ju- tendimento mais amplo da missão de J­ esus e, con-
daica e helenística1, a oração de J­esus em João 17 sequentemente, da missão deles também. Em seus
é única por causa do seu autor e por causa do ce- comentários sobre o escopo geral da oração, B. F.
nário em que ela foi proferida2. Quem fez a oração Westcott disse que ela “foi, ao mesmo tempo, uma
foi ­Jesus, o Filho de Deus, que veio ao mundo em oração, uma confissão e uma revelação”4.
carne para sofrer e morrer a fim de salvar o mun- O registro joanino dessa oração se assemelha
do. Ele estava prestes a passar por esse sofrimento aos relatos sinóticos da oração do Senhor no Get-
e morte, para depois ressuscitar e retornar para o sêmani, porém não são idênticos. Os relatos das
Pai. Nesse cenário, ­Jesus orou para que o propósito orações de J­esus enfatizam sua obediência (“…
para o qual ele tinha sido enviado se cumprisse na não seja como eu quero, e sim como tu queres”;
sua morte e através de seus seguidores, resultando Mateus 26:39) e especialmente sua agonia (como
em glória a Deus. na descrição: “o seu suor se tornou como gotas de
Os Evangelhos Sinóticos mencionam com sangue”; Lucas 22:44). João 17 se assemelha a esses
frequência ­Jesus orando3. Exceto nas ocasiões do relatos ao enfatizar a obediência de ­Jesus ao Pai.
Getsêmani e da cruz, o conteúdo de cada oração Por exemplo, ­Jesus afirmou: “Eu te glorifiquei na
raramente é registrado. Além da oração de João 17, terra, consumando a obra que me confiaste para
o Evangelho de João registra outras duas orações fazer” (17:4). No entanto, este texto não menciona
do Senhor: uma na ressurreição de Lázaro (11:41, nada sobre seu sofrimento.
42) e outra quando era chegada a sua hora (12:27, Há semelhanças entre João 17 e “a oração mo-
28). No túmulo de Lázaro, a oração de J­ esus visou delo” em Mateus 6:9–13 e Lucas 11:2–45. 1) “Santi-
beneficiar os que estavam presentes, como indicam ficado seja o teu nome” (Mateus 6:9; Lucas 11:2) é
suas palavras: “…assim falei por causa da multi- semelhante às referências de ­Jesus a “o teu nome”
dão presente, para que creiam que tu me enviaste” em João 17:6, 11, 12, 26. 2) O rogo “venha o teu rei-
(11:42). O mesmo é aplicável a respeito de 12:27 e no” (Mateus 6:10; Lucas 11:2) pode ser outra forma
28 e João 17. Neste segundo caso, que constitui a de expressar o pedido “Pai… glorifica a teu filho”
(17:1). 3) O pensamento “não nos deixes cair em
1
Andreas J. Köstenberger, John, Baker Exegetical Com-
mentary on the New Testament. Grand Rapids, Mich.: Baker
Academic, 2004, p. 483. 4
B. F. Westcott, The Gospel According to St. John. Cam-
2
George R. Beasley-Murray, John, Word Biblical Com- bridge: University Press, 1881; reimpressão, Grand Rapids,
mentary, vol. 36. Waco, Tex.: Word Books, 1987, p. 293. Mich.: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1950, p. 237.
3
Veja Mateus 11:25–27; 14:23; 19:13; 26:36–44; 27:46; Mar- 5
Na conhecida “oração modelo” ou “oração do Pai Nos-
cos 1:35; 6:46; 14:32–39; 15:34; Lucas 3:21; 5:16; 6:12; 9:18, 28, 29; so”, J­esus não orou de fato a Deus; ele proferiu essa oração
10:21, 22; 11:1; 22:41–45; 23:34, 46. como um modelo de como seus discípulos deveriam orar.

1
tentação” (Mateus 6:13; veja Lucas 11:4) se reflete Oração de ­Jesus”12.
em “eu os guardava” e “protegi-os” (17:12). 4) “Li- Embora o papel de intercessor de J­esus como
vra-nos do mal” (Mateus 6:13) é quase idêntico a Sumo Sacerdote seja mais evidente após sua ascen-
“que os guardes do mal” (17:15). são, ele estava claramente desempenhando o papel
Apesar das semelhanças, existem algumas di- de intercessor nessa oração (quer estivesse ou não
ferenças. 1) Em João 17, J­ esus não mandou aos seus atuando na função de Sumo Sacerdote). ­Jesus pro-
discípulos “vós orareis assim” (Mateus 6:9; veja feriu a oração a caminho da cruz; e, como interces-
Lucas 11:2). 2) As palavras de J­esus em João 17:5 sor, focou o sacrifício que iria oferecer: ele próprio.
enfatizam que ele é um dos membros da Trinda- Mesmo enquanto orava por si mesmo, sua oração
de, o Filho de Deus encarnado. 3) O vocativo “Pai” visava realizar algo pelos outros. ­Jesus consagrou-
(17:1, 5, 11, 21, 24, 25) descreve a relação única en- se para o sacrifício pelo qual ele foi glorificado e,
tre o Filho e o Pai, ao passo que os filhos de Deus ao mesmo tempo, consagrou aqueles pelos quais
se dirigem a ele como “Pai Nosso” (Mateus 6:9). seu sacrifício seria feito.
4) A confissão de pecado, como em Lucas 11:4, está Esta oração de intercessão não foi somente pe-
visivelmente ausente no texto de João, pois J­esus los discípulos imediatos de J­esus, mas por toda a
demonstrou perfeita obediência à vontade do Pai comunidade de crentes. J­esus orou para que seus
(17:4). discípulos fossem consagrados para a missão que
Os estudiosos já sugeriram uma gama de desempenhariam no mundo e para que os futuros
títulos para a oração de J­esus em João 17, na ten- discípulos fossem dedicados ao serviço de Deus.
tativa de captar sua essência. Uma dessas suges- Ele orou para que seus seguidores por fim esti-
tões é que “seria mais apropriado denominar esta vessem com ele, contemplassem sua glória e per-
oração de ‘A Oração do Senhor’”6 do que aquela manecessem no mesmo amor que o Pai tem pelo
registrada em Mateus 6:9–13 e Lucas 11:2–4. Desde Filho. Considerando que a ênfase geral da oração
a época de David Chytraeus (1530–1600), essa ora- é o que ­Jesus estava prestes a realizar em favor dos
ção de J­esus tem sido comumente chamada de “a outros, parece razoável chamar o capítulo 17 de
oração sacerdotal”7, embora Cirilo de Alexandria “­Jesus, o Intercessor”.
(ca. 376–444) já tivesse insinuado essa designação Não há evidências apontando para a localida-
em seu comentário de João8. É um nome propício, de em que a oração sacerdotal foi proferida. Com
pois ­Jesus desempenha o papel de mediador como base na declaração de ­Jesus no fim de 14:31, po-
nosso Sumo Sacerdote; ele orou por outros e tam- demos concluir que ele e os discípulos deixaram o
bém por si mesmo. D. A. Carson observou, porém, cenáculo e que as instruções registradas nos capí-
que nela a “linguagem sacrificial não é forte” e que tulos 15 a 17 foram dadas antes de atravessarem o
o papel de J­ esus como Sumo Sacerdote é visto mais vale de Cedrom, a caminho do Getsêmani. Parece
“em termos de sua intercessão pós-ascensão [veja improvável que as palavras solenes da oração de
Romanos 8:34; Hebreus 7:25; 1 João 2:1]”9. Outros ­Jesus tenham sido ditas enquanto o grupo cami-
comentaristas preferem um título como “A Oração nhava pelas ruas da cidade. Westcott argumentou
de Consagração”10. C. K. Barrett concluiu que nem que só um lugar parece adequado para a oração:
esse título nem o anterior “fazem jus a todo o con- “os átrios do templo”. Ele observou:
teúdo que ela abarca”11. Carson optou pelo título
“reconhecidamente mais genérico”, a saber: “A Em nenhum outro lugar, ao que parece, os esbo-
ços da futura Igreja espiritual poderiam ser traça-
dos de forma mais adequada do que no santuário
6
V. Wayne Barton, The Gospel of John. Grand Rapids, da velha Igreja. Em nenhum outro lugar, é claro,
Mich.: Baker Book House, 1960, p. 78. nosso Sumo Sacerdote poderia oferecer mais ade-
7
F. F. Bruce, The Gospel of John. Grand Rapids, Mich.: quadamente sua obra, seu próprio ser e os crentes
Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1983, p. 328. ao Pai, do que no único lugar em que Deus esco-
8
Cirilo de Alexandria, Comentário sobre João 11.8. lhera para estabelecer o seu Nome.13
9
D. A. Carson, O Comentário de João. Trad. Daniel de Oli-
veira e Vivian Nunes do Amaral. São ­Paulo: Shedd Publica-
ções, 2007, p. 553. Embora seja impossível identificar a localização
10
Westcott, p. 236; Edwyn Clement Hoskyns, The Fourth exata, podemos ter certeza de que 14:31 indica que
Gospel, 2a. ed. Londres: Faber and Faber, 1947, p. 494; Bruce,
p. 328.
11
C. K. Barrett, The Gospel According to St. John, 2a. ed. Fi- 12
Carson, pp. 550, 553.
ladélfia: Westminster Press, 1978, p. 500. 13
Westcott, p. 237.

2
J­ esus e os discípulos foram para um novo lugar. É a ­Jesus ­Cristo, a quem enviaste. 4Eu te glorifiquei
razoável supor que ­Jesus proferiu sua oração nos na terra, consumando a obra que me confiaste
átrios do templo. para fazer; 5e, agora, glorifica-me, ó Pai, contigo
Os estudiosos muito comentam sobre a es- mesmo, com a glória que eu tive junto de ti, antes
trutura da oração sacerdotal. De uma perspectiva que houvesse mundo.
geral, Andreas J. Köstenberger observou: “Estrutu-
ralmente, a oração encerra o discurso de despedi- Versículo 1. Com as palavras estas coisas (uma
da, formando o envelope externo que corresponde referência a todo o discurso de despedida registra-
ao preâmbulo de 13:1–30, na outra extremidade.”14 do nos capítulos 14 a 16), João enfatizou que a ins-
Com relação aos detalhes da oração, Guy N. Woods trução de ­Jesus aos discípulos estava concluída. A
sugeriu o seguinte esboço. ­Jesus orou para que… seguir, J­ esus passou a falar da comunhão com o Pai.
Essa transição foi feita por um gesto observável:
Deus e Seu Filho fossem glorificados (17:1, 2); levantou os olhos ao céu. Essa era a postura carac-
Seus discípulos tivessem a vida eterna (17:3–5); terística de quem orava (11:41; veja Salmos 123:1, 2;
eles conhecessem a verdade e nela cressem Mateus 14:19; Marcos 6:41; 7:34; Lucas 9:16). Essa
(17:6–12); postura não foi praticada unicamente por J­esus,
eles tivessem alegria num mundo antagônico sendo também aceita entre outros judeus. (O pu-
(17:13, 14); blicano de Lucas 18:13 “não ousava nem ainda le-
eles fossem guardados do mal (17:15, 16); vantar os olhos ao céu”.) ­Jesus dirigiu-se a Deus
eles fossem santificados e cumprissem sua como Pai, uma palavra que ocorre seis vezes nessa
missão (17:17–19); oração (veja 17:1, 5, 11, 21, 24, 25). Esta forma de
eles fossem todos um (17:20–23); tratamento indica de imediato a base sobre a qual
eles participassem de sua glória (17:24–26).15 essa oração se firma: a relação íntima entre o Pai e
o Filho.
O esboço mais amplamente adotado é o pro- Era nesse momento, e não antes, conforme de-
posto por Westcott16, no qual ele dividiu a oração clarado em 2:4, que era chegada a hora de ­Jesus
em três seções principais: 1) o Filho e o Pai (17:1–5); (veja 7:6, 8, 30; 8:20). Nessa ocasião, reconhecendo
2) o Filho e seus discípulos imediatos (17:6–19) e a soberania de Deus, ­Jesus declarou: é chegada a
3) o Filho e a igreja (17:20–26). Vamos aderir às di- hora. Desde a chegada dos gregos, ­Jesus predisse
visões principais propostas por Westcott, porém que sua hora era chegada (12:23; 13:1). Essa “hora”
os títulos dos assuntos dessas divisões serão os se- (w‚ra, hōra) era o tempo marcado para a sua morte,
guintes: 1) ­Jesus Ora por Sua Glorificação (17:1–5); ressurreição e ascensão ao céu – a hora da sua glo-
2) ­Jesus Ora por Seus Discípulos Imediatos (17:6– rificação (veja 12:23, 27, 28, 31, 32). Era chegada a
19) e 3) ­Jesus Ora por Seus Futuros Discípulos hora do Filho do Homem ser glorificado, por isso
(17:20–26). ­Jesus orou para que sua glorificação acontecesse.
Embora J­ esus estivesse orando por si mesmo, essa
­JESUS ORA POR SUA GLORIFICAÇÃO oração nada tem a ver com uma oração feita em
(17:1–5) benefício próprio. O pedido de ­Jesus foi singular:
Glorifica a teu Filho.
1
Tendo J­ esus falado estas coisas, levantou os Quando ­Jesus orou para que Deus o glorificas-
olhos ao céu e disse: Pai, é chegada a hora; glori- se, ele estava dizendo, com efeito: “seja feita a tua
fica a teu Filho, para que o Filho te glorifique a ti, vontade” porque “toda obra pela qual a sua von-
2
assim como lhe conferiste autoridade sobre toda tade se cumpre é para a sua glória”17. Ele não pe-
a carne, a fim de que ele conceda a vida eterna diu para Deus “salvá-lo dessa hora” (12:27); pelo
a todos os que lhe deste. 3E a vida eterna é esta: contrário, ­Jesus orou para que o propósito de Deus
que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e ao determinar a hora de sua morte e exaltação se
cumprisse. O que motivava ­Jesus a querer ser glo-
14
Köstenberger, p. 483. rificado não era interesse próprio; pois ele não bus-
15
Guy N. Woods, A Commentary on the Gospel According to
John, New Testament Commentaries. Nashville: Gospel Ad-
vocate Co., 1981, p. 352. 17
Clinton D. Morrison, “Mission and Ethic: An Interpre-
16
Westcott, p. 237. tation of John 17,” Interpretation 19. Julho de 1965: p. 261.

3
cava sua própria glória (veja 8:50); ele queria que colhe quem será salvo e então dá esses indivíduos
o Filho glorificasse o Pai. Ao contrário da maioria a ­Jesus, para que a salvação seja totalmente deter-
das pessoas, J­esus só “procurou a glória que vem minada por Deus, independentemente da vonta-
do Deus único” (5:44). F. F. Bruce observou acerta- de humana. Embora seja verdade que Deus sabe
damente: “A cruz, como bem sabe [­Jesus], deve ser desde a eternidade o que os indivíduos farão, isso
o veículo dessa glória, e ele ora para que a aceite de não significa que ele exerce domínio sobre eles e
modo a trazer glória a seu Pai, por sua vez”18. os compele a crer em J­esus. A verdade sobre isto
Versículo 2. A conjunção assim como dá conti- ganha luz em 17:6, onde ­Jesus identificou os que
nuidade ao pensamento de glória iniciado no ver- lhe foram dados como os que “guardaram a sua
sículo 1. O fato de o Pai ter lhe conferido [e¡dwkaß, palavra” (veja 17:12). Em outra passagem, ­Jesus
edōkas, aoristo] autoridade implica uma ação exe- mencionou dar a sua carne “pela vida do mun-
cutada no passado, durante seu ministério terreno. do” (6:51), acrescentando que ir até ele com fé era
Essa autoridade conferida por Deus é sobre toda o pré-requisito para obter essa vida (6:40; veja os
a carne, isto é, sobre toda a raça humana com o comentários sobre 6:35–47).
propósito de conceder a vida eterna aos que o Pai Versículo 3. Embora muitos estudiosos inter-
deu ao Filho. As palavras “vida eterna” ocorrem pretem este versículo como um comentário paren-
com frequência no Livro dos Sinais e atingem o tético, ele é, de fato, o desenvolvimento natural das
ponto culminante no Livro da Glória19, ocorrendo ideias de glorificar a Deus em 17:1 e de dar a vida
somente aqui e no versículo 3. eterna em 17:2. Deus é glorificado por todos os que
A todos os que (pa◊n o¢, pan ho; um plural neu- sabem o que ele realizou em ­Jesus por meio da
tro, literalmente, “todos os quais”) o Pai deu deno- cruz: E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti,
ta a soma total das pessoas, enquanto o pronome o único Deus verdadeiro. A “vida eterna” consis-
aujtoi√ß (autois; literalmente, “a eles”20) refere-se aos te no conhecimento do “único Deus verdadeiro”,
membros individuais desse total (veja os comentá- no entanto, visto que Deus se revelou por meio
rios sobre 6:36–40). O Pai conferiu a ­Jesus autorida- do Filho, o conhecimento de Deus só pode ser al-
de sobre toda a carne com o propósito de conceder cançado pelo conhecimento de ­Jesus ­Cristo. Este
a vida eterna aos indivíduos que o Pai lhe deu. conhecimento não é um mero desenvolvimento
No entanto, essa autoridade para conceder a vida cognitivo (embora inclua um entendimento inte-
eterna não poderia ser exercida sem que ­Jesus fos- lectual). Ele envolve um relacionamento pessoal.
se glorificado. Portanto, convinha que ­Jesus fosse; Essa implicação está de acordo com o sentido he-
pois, sem a sua partida, ele não poderia conceder braico da palavra “conhecer”, que implica relação
a vida eterna a todos os que o Pai lhe deu. (Veja íntima com outro ser e não somente apreensão in-
mais acerca da “vida eterna” nos comentários so- telectual. O Pai e o Filho têm um relacionamento
bre 5:24.) íntimo; e, pelo conhecimento de Deus, os crentes
Uma dificuldade teológica potencial surge com podem desfrutar da intimidade de ter o Pai e o Fi-
a declaração de J­ esus de que a “vida eterna” deve- lho fazendo morada neles (veja 14:23).
ria ser concedida a todos os que [o Pai] lhe deste. Até esta altura do Evangelho de João, deu-
Leon Morris disse: “Mais uma vez, temos aqui o se grande ênfase ao ato de crer; agora a ênfase
pensamento da predestinação divina”21. Segundo muda para conhecer. A palavra ginw¿skw (ginōskō,
esse conceito, Deus, em sua soberania divina, es- “conhecer”) é usada sete vezes neste capítulo, en-
quanto “crer” (pisteu/w, pisteuō) é usada apenas
18
Bruce, p. 329. três vezes – e ocorre noventa e oito vezes em todo
19
N. Trad.: Há uma visão acadêmica muito difundida de o livro. Aqui, o verbo (ginw¿skwsin, ginōskōsin,
que o Evangelho de João pode ser dividido em quatro partes:
prólogo (João 1:1–18), o Livro dos Sinais (1:19 a 12:50), o Livro “conheçam”) está no presente subjuntivo, signifi-
da Glória (ou Exaltação) (13:1 a 20:31) e epílogo (capítulo 21). cando que para obter a vida eterna é preciso “con-
20
A palavra grega autois (“a eles”) não é traduzida na tinuar a conhecer”. Esse conhecimento é mais do
maioria das versões; após pan ho (“todos os que”), ela é con-
siderada redundante. Outra possível tradução de autois seria que meramente aprender sobre Deus e seus cami-
“a cada um”. nhos. “‘Conhecer’ a Deus neste Evangelho… sig-
21
Leon Morris, The Gospel according to John, rev. ed., The nifica conhecê-lo vivendo num relacionamento de
New International Commentary on the New Testament.
Grand Rapids, Mich.: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1995, reverência, crença e lealdade a ele, de modo que
p. 636. nesta vida se conheça a ele como Pai e ao Filho

4
como Salvador e Senhor.”22 “Significa mais do que já possuía. ­Jesus voluntariamente abriu mão da
conhecer o caminho da vida. [Conhecer] é vida.”23 glória que ele tinha com o Pai antes da criação e
Versículos 4 e 5. O objetivo de ­Jesus ao pas- antes de vir em carne para ser o sacrifício pelos
sar pela terra foi glorificar a Deus. Aqui ele disse pecados do mundo. Tendo quase consumado a
que havia completado a missão para a qual Deus sua obra, ­Jesus orou para que reassumisse a glória
o enviara: Eu te glorifiquei na terra. Mais do que que desfrutara antes de “tornar-se em semelhança
nunca, o fato de J­ esus se fazer carne revelou a na- de homens” (veja Filipenses 2:5–11). Por meio da
tureza do próprio Deus. Este foi o seu propósito ao cruz, ­Jesus seria glorificado. Após o cumprimento
vir à terra. Ele anunciou em 4:34 que tinha vindo de sua obra nesta terra, ele retornaria à glória que
para fazer a vontade daquele que o enviara e para tinha quando estava com o Pai antes que houvesse
realizar a obra do Pai (veja 5:36). A obra que o Pai mundo.
lhe havia confiado tinha como foco a cruz, como
revelou ­Jesus na primeira vez em que anunciou ­JESUS ORA POR SEUS
que era chegada a sua hora (12:23). Embora J­esus DISCÍPULOS IMEDIATOS (17:6–19)
falasse como se a sua obra na terra já tivesse sido
consumada, morrer na cruz era o único ato de obe- Razões para Orar por Eles (17:6–11a)
diência que lhe faltava realizar. Um dia antes de
fazer seu sacrifício, ao se consagrar para isso em 6
Manifestei o teu nome aos homens que me des-
oração, ele antecipou a conclusão da obra da cruz. te do mundo. Eram teus, tu mos confiaste, e eles
O fato de falar disso como se já o tivesse consu- têm guardado a tua palavra. 7Agora, eles reconhe-
mado mostra seu total comprometimento com a cem que todas as coisas que me tens dado pro-
maior obra que Deus lhe confiara. vêm de ti; 8porque eu lhes tenho transmitido as
Agora (literalmente, “e agora”) que o minis- palavras que me deste, e eles as receberam, e ver-
tério terreno de ­Jesus estava chegando ao fim, ele dadeiramente conheceram que saí de ti, e creram
orou: glorifica-me, ó Pai, contigo mesmo, com a que tu me enviaste. 9É por eles que eu rogo; não
glória que eu tive junto de ti, antes que houves- rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste,
se mundo (veja 1:1, 2). Assim como em 17:1, J­ esus porque são teus; 10ora, todas as minhas coisas são
orou para que o Pai o glorificasse; mas a glorifi- tuas, e as tuas coisas são minhas; e, neles, eu sou
cação pela qual ele orou desta vez era superior glorificado. 11aJá não estou no mundo, mas eles
àquela pela qual ele orou anteriormente. Na pri- continuam no mundo, ao passo que eu vou para
meira oração, J­ esus rogou que sua morte planejada junto de ti.
resultasse em sua glorificação e na glorificação do
Pai; nesta segunda oração, ele pediu para retornar Até esta altura, ­Jesus tinha orado por si mes-
à glória eterna (veja 13:32) que ele tinha com o Pai mo, além de fazer um pedido especial: sua glorifi-
antes da criação. Esta é outra forma de expressar cação. A partir daqui ele direcionou a atenção para
a exaltação de J­ esus à destra do trono do Pai (veja os seus discípulos. Antes de rogar especificamente
Atos 2:33; 7:55; Hebreus 12:2). J. H. Bernard disse: por eles (17:11b–19), ­Jesus apresentou várias ra-
“A glória do Verbo Eterno é distinguível da glória zões para isso e explicou por que o Pai honraria
do Verbo Encarnado”24. esses pedidos.
A oração de ­Jesus testifica sua pré-existência Versículo 6. Em primeiro lugar, ­Jesus rogou
(veja 1:1; 8:58; 16:28). Ela também pressupõe que pelos discípulos, porque foi a eles que ele mani-
a encarnação de ­Jesus, embora não o obrigasse a festou o nome do Pai. Embora alguns estudiosos
deixar de lado sua divindade, implicou de fato atribuam um sentido literal a “nome” do Pai, neste
em que ele perdesse por um tempo a glória que contexto, o termo representa a natureza ou o ca-
ráter divino. “Manifestei” traduz literalmente o
aoristo ejfane/rwsa (efanerōsa). O nome de Deus
22
Floyd V. Filson, The Gospel According to John, The Lay-
man’s Bible Commentary, vol. 19. Richmond, Va.: John Knox incorpora seu caráter; e J­esus revelou o nome de
Press, 1963, p. 127. Deus, possibilizando aos homens conhecerem
23
Morris, p. 637. o Pai em um nível pessoal. Todo o ministério de
24
J. H. Bernard, A Critical and Exegetical Commentary on the
Gospel According to St. John, The International Critical Com- ­Jesus, incluindo sua morte iminente, pode se resu-
mentary. Edinburgh: T. & T. Clark, 1928, vol. 2, p. 563. mir na sua revelação do Pai. Isso ecoa a declaração

5
de João no prólogo, segundo a qual ­Jesus “expli- Versículos 7 e 8. Em quarto lugar, ­Jesus orou
cou” o Pai; isto é, ele mostrou com autoridade e pelos discípulos porque eles reconheceram que
de modo visível quem Deus realmente é em toda a todas as coisas que o Pai havia dado a ­Jesus pro-
sua Pessoa (veja os comentários sobre 1:18). ­Jesus vinham do Pai. Em 16:30, os discípulos admitiram
manifestou o Pai em palavras e ações. Embora os que ­Jesus sabia todas as coisas, embora o nível de
discípulos não entendessem grande parte do que entendimento deles ainda não fosse tão completo
ele ensinou nem dimensionassem a grandeza de quanto supunham. Agora eles haviam “reconhe-
muitos de seus atos, eles tinham aprendido mais cido” por experiência própria que tudo o que foi
sobre a natureza de Deus do que qualquer judeu dado a J­esus de fato provinha do Pai. No decor-
que os antecedeu. rer do ministério de J­esus, os discípulos ouviram
Em segundo lugar, ­Jesus orou por seus discí- as palavras do Filho, testemunharam suas muitas
pulos porque eles eram do Pai e o Pai os confiou maravilhas e desenvolveram a percepção espiritu-
a ­Jesus. O fato de o Pai conferir os discípulos ao al. Eles entenderam mais claramente a Pessoa de
Filho é subentendido em 17:2 e declarado em 17:6. ­Jesus, a dádiva da salvação que ele veio trazer, o
O Pai pôde dar os discípulos a J­ esus porque estes, significado de sua mensagem e feitos, e o relacio-
assim como o restante da humanidade, pertenciam namento entre ele e o Pai. Pode ser que ainda não
ao Pai. Como já observamos em 6:37, os discípu- entendessem plenamente por que o Messias tinha
los que Deus deu a J­esus são os que foram até ele de morrer ou como era a natureza do reino que ele
(veja os comentários sobre 6:36, 37). Na última par- pretendia estabelecer, mas vieram a crer que ­Jesus
te de 17:6, ­Jesus deixou claro que aqueles que lhe era o mensageiro enviado pelo Pai e que suas pa-
foram dados pelo Pai eram os que guardaram a lavras provinham do Pai. Novamente, a relação de
palavra de Deus. A afirmação sobre os discípulos dependência entre J­ esus e o Pai é expressa em 17:7
terem sido dados do mundo lembra o que J­esus (veja 5:19–30).
disse antes: “dele [do mundo] vos escolhi” (veja os Em quinto lugar, J­esus orou pelos discípulos
comentários sobre 15:18, 19). Os discípulos foram porque eles receberam suas palavras e aceitaram
selecionados por J­esus e aceitaram o seu convi- a autoridade divina nelas impressa. J­ esus explicou
te para “deixar o mundo” e segui-lo. Da mesma que “as coisas” que ele recebeu de Deus (17:7) fo-
forma, Deus deu a ­Jesus discípulos “do mundo”. ram “as palavras” que o Pai lhe deu. A expressão
Anteriormente, João disse que o mundo não “co- “as palavras” (ta÷ rJhm/ ata, ta rhēmata) não se refere
nheceu” J­esus (1:10). Apesar dos muitos sinais à totalidade do ensino de ­Jesus, como exprime a
que J­esus realizou (sete dos quais João registrou), palavra logos (17:6; veja os comentários sobre 15:2,
a maior parte do mundo não reconheceu que ele 3, 7, 8), e sim a ditos específicos que compunham
era (e é) a revelação do Pai (veja 12:37). Alguns ho- o seu ensino. Esses ensinamentos foram dados a
mens (a‡nqrwpoi, anthrōpoi), porém, creram nele, ­Jesus por Deus, e ­Jesus os deu aos seus discípulos.
reconhecendo que ele e seus ensinos vinham de Os discípulos, sendo poucos e bem diferentes dos
Deus. ­Jesus disse que esses indivíduos eram do Pai líderes religiosos judeus, “receberam” essas pala-
e foram dados ao Filho. vras. Frederic Louis Godet chamou a atenção para
Em terceiro lugar, J­esus orou pelos discípulos o resultado do ministério de J­ esus: “A colheita pa-
porque eles tinham guardado a palavra do Pai. rece escassa, sem dúvida: onze operários galileus
­Jesus havia ordenado aos discípulos que guardas- após três anos de trabalho! Mas isso é suficiente
sem sua palavra (veja os comentários sobre 14:15, para ­Jesus: pois nesses onze ele contempla o pe-
22–24) e aqui ele afirma que eles tinham guardado nhor da continuação da obra divina na terra”25.
a “palavra” de Deus (lo/goß, logos), a qual, no sin- Mesmo que não tenham entendido todas as pala-
gular, corresponde à sua revelação como um todo. vras de ­Jesus, a confiança nele os levou a aceitar
­Jesus, a Palavra (veja os comentários sobre 1:1), era suas palavras. Eles aceitaram as palavras de ­Jesus
a personificação dessa revelação – em tudo o que como orientações essenciais à vida e, por isso, eram
foi, disse e fez. Se os discípulos guardassem a pa- dignos da intercessão de J­ esus.
lavra, estariam dispostos a receber o Filho. Como Em sexto lugar, ­Jesus orou por seus discípulos
homens carnais, faltava-lhes a obediência perfeita;
todavia, se dispuseram a se entregar a J­ esus, o qual 25
Frederic Louis Godet, Commentary on John’s Gospel.
revelou o verdadeiro caráter de Deus. Grand Rapids, Mich.: Kregel Publications, 1978, p. 891.

6
porque eles verdadeiramente conheceram que velmente à mensagem dos discípulos, sua oração
­Jesus saiu do Pai e creram que o Pai o enviou. pelos discípulos foi indiretamente pelo mundo.
Fundamentados no que ouviram e viram, os dis- ­Jesus foi enviado ao mundo em uma missão; ago-
cípulos “conheceram”, ou vieram a conhecer “ver- ra ele estava enviando seus discípulos ao mundo
dadeiramente” (aÓlhqw◊ß, alēthōs), que ­Jesus “tinha para dar continuidade à sua missão (17:18). Eram
vindo do” Pai. Apesar de ainda nutrirem algumas esses discípulos os que mais necessitavam de suas
ideias equivocadas sobre J­esus e manifestarem orações.
uma fé superficial, ­Jesus reconheceu o conheci- ­Jesus expressou a comunhão do Pai com o Fi-
mento básico deles respeito dele estava correto. lho quando disse: todas as minhas coisas são tuas,
Eles sabiam que J­esus tinha vindo de Deus. Além e as tuas coisas são minhas (17:10). Os discípulos
disso, eles “creram” que o Pai o enviara. Há pouca pertenciam ao Pai porque ­Jesus disse: são teus
distinção entre este ponto e o anterior. A relação (17:9; veja v. 6). Visto que o Pai os deu a J­ esus (17:2,
entre fé e conhecimento é muito estreita, porém 6, 9), eles pertenciam a ­Jesus. Morris comentou: “O
não são características idênticas. Morris comentou que pertence a um pertence ao outro”27. Qualquer
que a alegação de que “conheciam” tem como foco pessoa poderia estar inclusa na primeira parte da
a origem divina do Filho, enquanto a alegação de declaração: “Todas as minhas coisas são tuas”; mas
que “creram” se concentra na missão do Filho26. a segunda metade “e as tuas coisas são minhas”,
­Jesus foi enviado pelo Pai para cumprir uma tarefa é exclusiva e salienta um relacionamento especial
específica. A conexão entre crer e conhecer já foi desfrutado somente pelo Filho em virtude de sua
feita anteriormente no Evangelho de João (veja os divindade.
comentários sobre 6:68, 69). Em sétimo lugar, na última parte de 17:10, ­Jesus
Versículos 9 a 11a. ­Jesus continuou a orar por orou por seus discípulos porque ele havia sido
seus discípulos. Em vez de usar a palavra “orar”, a glorificado por meio deles. O verbo dedo÷ xasmai
RA traduz o verbo e˙rwta¿w (erōtaō) por rogar (17:9; (dedoxasmai, “sou glorificado”) está no tempo per-
veja os comentários sobre 16:23, 24). J­ esus fez uma feito, apontando para algo que ocorreu no passado
distinção clara entre seus discípulos e o mundo. com efeito contínuo. Durante seu ministério, ­Jesus
Seu pedido não era pelo mundo, mas isso não sig- já havia sido glorificado pelos discípulos. Glorifi-
nifica que ele não estava preocupado com o mun- car a J­ esus (ou ao Pai) era reconhecê-lo por quem e
do. O Pai amou o mundo a ponto de enviar seu o que ele era, mas os discípulos realmente fizeram
Filho ao mundo (3:16); de fato, ­Jesus é “o Salvador isso? Pouco antes de orar, J­esus advertiu que se
do mundo” (4:42; veja 3:17; 12:47). Como registram dispersariam e o abandonariam (16:32).
os Evangelhos Sinóticos, ­Jesus ensinou que deve- No discurso de despedida, os discípulos ti-
mos orar pelos inimigos (Mateus 5:44); ele próprio nham interrompido ­ Jesus com perguntas que
orou por seus inimigos (Lucas 23:34). No contex- pareciam demonstrar pouco entendimento do pro-
to desta oração, mais adiante, ele pediria que os pósito e da missão do Senhor. ­Jesus reconheceu a
apóstolos fossem um “para que o mundo creia que fé dos discípulos em se disporem a confessar quem
tu me enviaste” (17:21, 22) e “conheça que tu me ele era (veja 6:69) e aceitar a verdade sobre ele ter
enviaste” (17:23). Esses versículos evidenciam que sido enviado por Deus (16:30). A fé dos apóstolos,
a salvação do mundo depende daqueles que o Pai mesmo superficial nessa conjuntura, era melhor
dá a ­Jesus “do mundo”. do que não ter fé alguma – e essa era uma caracte-
­Jesus não podia orar pelo mundo, pois fazer rística do mundo. Comparados com o mundo, os
isso seria orar para que o mundo continuasse em discípulos percorreram um longo caminho de fé.
sua mundanidade e rejeição a Deus. A única ora- ­Jesus olhou para que esse pequeno grupo e viu ho-
ção que J­esus podia oferecer ao mundo era para mens que creram nele e que cumpririam a missão
que as pessoas do mundo deixassem de se opor que lhes seria confiada. Até os nossos dias, a fé dos
a Deus e ao Filho – em resumo, deixassem de ser apóstolos em J­ esus continua a glorificá-lo.
“o mundo” e cressem na mensagem dos discípu- Em oitavo lugar, J­ esus orou por seus discípulos
los. Considerando que J­ esus desejou que o mundo porque logo os deixaria. A obra de ­Jesus na terra
deixasse de ser “o mundo” e respondesse favora- estava quase terminada; por isso ele pôde empre-

26
Morris, pp. 641–42. 27
Ibid., p. 642.

7
gar o tempo presente dizendo: Já não estou [eijmi÷, priado para os próximos versículos, 17–19, em que
eimi] no mundo (17:11a). Embora ­Jesus logo já não ­Jesus rogou pela consagração de seus discípulos.
estaria na terra, seus discípulos permaneceriam no A santidade do Pai foi o que permitiu que J­esus e
mundo. E porque J­ esus estava orando diretamente os discípulos se consagrassem. A ênfase em “Pai
ao Pai, ele pôde dizer: eu vou para junto de ti. As- Santo” foi a maneira de João dizer: “…sereis san-
sim como convinha a J­esus deixar o mundo, con- tos, porque eu sou santo” (Levítico 11:44). A san-
vinha aos seus discípulos permanecer no mundo. tidade de Deus no Antigo Testamento enfatizava
Quando os doze já não desfrutassem da presença sua transcendência, sua total separação do pecado
física e da proteção de J­ esus, eles teriam o Espírito e seu esplendor, enquanto no Novo Testamento a
Santo prometido para ajudá-los a enfrentar o mun- ênfase é dada ao seu amor e cuidado revelados em
do com todo o seu ódio (15:18—16:4). ­Jesus ­Cristo.
O pedido guarda-os em teu nome parece con-
Pedidos Específicos da Oração de J­ esus ter uma força instrumental (“pelo teu nome” ou
(17:11b–19) “poder”) ou uma força locativa (“para você”, “em
seu caráter”). A força instrumental se reflete na
11b
Pai santo, guarda-os em teu nome, que me tradução: “protege-os pelo poder do teu nome”.
deste, para que eles sejam um, assim como nós. Bruce observou: “O nome de Deus no [Antigo
12
Quando eu estava com eles, guardava-os no Testamento] denota não só o seu caráter… como
teu nome, que me deste, e protegi-os, e nenhum também o seu poder”29. Nota-se um paralelismo
deles se perdeu, exceto o filho da perdição, para com o Salmo 54:1: “Ó Deus, salva-me, pelo teu
que se cumprisse a Escritura. 13Mas, agora, vou nome, e faze-me justiça, pelo teu poder”. A RA,
para junto de ti e isto falo no mundo para que conforme observa acima, salienta a força locativa
eles tenham o meu gozo completo em si mesmos. da expressão. “Guarda-os em teu nome” poderia
14
Eu lhes tenho dado a tua palavra, e o mundo os ser interpretado como “mantenha-os leais a ti” ou
odiou, porque eles não são do mundo, como tam- “mantenha-os em total fidelidade ao teu caráter”30.
bém eu não sou. 15Não peço que os tires do mun- Essas duas perspectivas podem estar implícitas,
do, e sim que os guardes do mal. 16Eles não são como defende Raymond E. Brown31. De acordo
do mundo, como também eu não sou. 17Santifica- com Carson e Beasley-Murray, o contexto favore-
os na verdade; a tua palavra é a verdade. 18Assim ce a segunda perspectiva, que se relaciona melhor
como tu me enviaste ao mundo, também eu os com a próxima frase: [o nome] que me deste32.
enviei ao mundo. 19E a favor deles eu me santifico Carson disse que o “nome” de Deus se refere a
a mim mesmo, para que eles também sejam san- todo o caráter revelado de Deus, “e o nome que me
tificados na verdade. deste pressupõe que Deus supremamente se revela
em ­Jesus”33. A seguir, ele apresentou este resumo:
Depois de apresentar ao Pai as razões que o le- “Em suma, ­Jesus ora para que Deus guarde seus
varam a orar por seus discípulos, ­Jesus fez dois pe- seguidores em firme fidelidade à revelação que o
didos específicos por eles. Ele orou para que seus próprio ­Jesus tem mediado a eles”34.
discípulos fossem guardados (17:11b–16) e consa- ­Jesus declarou que o propósito de os discípu-
grados (17:17–19). los serem guardados é que eles sejam um, assim
Versículos 11b e 12. ­Jesus prefaciou seu pedi- como nós (veja 17:21–23). À primeira vista, pode
do de proteção aos discípulos com o vocativo Pai parecer que os discípulos não eram um e que ­Jesus
Santo, que só ocorre aqui no Evangelho de João. estava orando para que eles se tornassem um; to-
George R. Beasley-Murray observou que o termo davia, a oração era para que eles permanecessem
“combina as duas noções de transcendência e inti- sendo um, assim como o Pai e o Filho são um. É
midade características da atitude pessoal de J­esus
para com Deus e do seu ensino sobre Deus”28.
29
Bruce, p. 332.
30
Carson, p. 562.
­Jesus começou sua oração em Mateus 11:25 de ma- 31
Raymond E. Brown, The Gospel According to John (xiii–
neira semelhante: “Graças te dou, ó Pai, Senhor xxi), The Anchor Bible, vol. 29A. Garden City, N.Y.: Double-
do céu e da terra”. O vocativo “Pai Santo” é apro- day & Co., 1970, p. 759.
32
Carson, p. 562; Beasley-Murray, p. 299.
33
Carson, p. 563.
28
Beasley-Murray, pp. 298–99. 34
Ibid.

8
uma unidade em amor, objetivo, vontade, propó- trairia ­Jesus. João Calvino observou que “seria er-
sito, trabalho e comunhão íntima, fundamentada rado inferir com isto que a queda de Judas deveria
na união do Pai com o Filho. A oração e pedido ser imputada a Deus e não a ele mesmo, pois isto
por unidade eram pelos discípulos de ­Jesus (veja lhe foi imputado necessariamente por profecia”36.
1 Coríntios 1:10) e não pelo mundo religioso em Woods disse: “…quando ele caiu, confirmou-se o
geral. No entanto, se preocupava a ­Jesus os discí- ato que a escritura previra. Judas voluntariamente
pulos serem um, quanto não deve preocupá-lo a executou o ato que cumpriu a predição”37. Judas,
atual divisão religiosa em geral! por livre vontade e não por decreto divino, esco-
Nessa fala com o Pai sobre os discípulos, J­ esus lheu fazer o que fez. Por causa dessa traição, ele foi
disse que, durante seu ministério, ele os guardava destinado à destruição. Como todos os discípulos,
em teu nome. Esse nome era o nome que o Pai lhe Judas foi escolhido, instruído, protegido e adverti-
deu (veja os comentários sobre 17:11) – isto é, a re- do; porém, ao contrário dos onze, ele escolheu trair
velação do Pai. J­ esus protegeu seus discípulos e os ­Jesus. Seu caso é um exemplo claro do que é ensi-
manteve a salvo; porém, assim que partisse da ter- nado em outras partes das Escrituras: é possível ao
ra, eles precisariam dos cuidados especiais do Pai. indivíduo cair da fé (veja 2 Pedro 2:20–22).
Nenhum dos que foram confiados aos cuidados Versículo 13. ­Jesus previu sua partida iminen-
de ­Jesus se perdeu, exceto Judas, cujos esquemas te para ir para junto do Pai dizendo: Mas, agora,
­Jesus bem conhecia (6:64, 70; 13:10, 11, 18, 21, 22). vou para junto de ti. Embora estivesse a caminho
Não foi por culpa de J­ esus que Judas se perdeu. do Pai, ­Jesus ainda estava no mundo; e, estando
Essa culpa é explicada de duas maneiras: Judas era no mundo, ele afirmou isto para o bem dos discí-
o filho da perdição, e sua apostasia foi prevista na pulos. “Isto” pode se referir à parte inicial da ora-
Escritura. A expressão “o filho da perdição” pode ção ou, mais provavelmente, a todo o discurso de
se referir ao caráter de Judas, ao seu destino ou a despedida. Em ambos os casos, J­esus orou: para
ambos35. A mesma expressão no grego, “o filho da que tenham o meu gozo completo em si mesmos.
perdição”, ocorre no final de 2 Tessalonicenses 2:3, Ele havia dito aos discípulos: “Tenho-vos dito es-
em paralelo com “o homem da iniquidade”. Essas tas coisas para que o meu gozo esteja em vós, e o
locuções descritivas aparentemente indicam o ca- vosso gozo seja completo” (15:11; veja 16:22, 24).
ráter maligno desse indivíduo, mas também suge- Para experimentar a total alegria de ­Jesus, os discí-
rem a sua destruição final (2 Tessalonicenses 2:8). pulos deveriam permanecer no amor do Pai, con-
Um significado duplo semelhante parece estar tinuando a obedecer a ele (veja 15:10, 11). A oração
contido nesta passagem de João. Judas era o filho de ­Jesus estava sendo dita em voz alta (veja 11:42),
da perdição; isto é, ele possuía o caráter descrito por isso os discípulos podiam ouvir a intercessão
pela palavra “perdição” (aÓpw÷ leia, apōleia), literal- em favor deles. Mais tarde, quando enfrentassem
mente, “destruição”. Por livre escolha, por causa várias provações em seus ministérios pessoais,
da maldade em seu coração, ele procurou destruir a garantia que ­Jesus estava lhes dando seria con-
os propósitos de Deus. Seu destino, como o de to- firmada em suas mentes ao se recordarem des-
dos os malfeitores, é a destruição final. ­Jesus foi fiel sas palavras. Poucas horas antes de J­esus sofrer
à tarefa que lhe foi confiada de cuidar dos discípu- a humilhação e a morte, ele falou de gozo, isto é,
los, mas Judas fez uma escolha diferente do que alegria. Ele pôde falar de alegria com segurança
­Jesus desejava para ele. porque sabia qual era a sua missão e que seu sacri-
A isenção de culpa de J­esus pela perdição de fício traria alegria – não só para os apóstolos, mas
Judas também se explica porque a apostasia de para todos os que nele cressem.
Judas foi prevista na “Escritura” – uma provável Versículos 14 a 16. ­Jesus continuou a orar, di-
referência ao Salmo 41:9 (veja os comentários so- zendo: Eu lhes tenho dado a tua palavra (17:14).
bre 13:18), e não ao Salmo 109:8 (veja Atos 1:20). O tempo perfeito de de÷dwka (dedōka) reflete que
O texto não significa que Judas traiu ­Jesus para ­Jesus havia comunicado e ainda estava comuni-
que a Escritura se cumprisse, como se Deus tivesse cando a palavra de Deus aos discípulos. Essa “pa-
predestinado desde toda a eternidade que Judas
36
João Calvino, O Evangelho Segundo João. Trad. Valter
35
A LXX se refere a “povo da destruição” (Isaías 34:5) e Graciano Martins. São José dos Campos, SP: Fiel, 2015, p. 145.
“filhos da transgressão” (Isaías 57:4). 37
Woods, p. 359.

9
lavra” nada mais era do que a revelação de Deus. João disse em 1 João 5:19 que “o mundo inteiro jaz
O termo “palavra” no singular (veja 17:6) refere-se no Maligno” (veja 1 João 2:13, 14; 3:12; 5:18). J­ esus
a toda a mensagem revelada e é a soma total de suplicou ao Pai que os discípulos fossem mantidos
todas as “palavras” de 17:8. Os discípulos de ­Jesus longe de Satanás, assim como ele os havia ensinado
creram nessa palavra e a ela obedeceram (17:6). a orar por livramento (Mateus 6:13). Anteriormen-
Por isso, já não eram do mundo, assim como ­Jesus te no Evangelho de João, ­Jesus tinha mencionado
não era. ­Jesus nunca foi do mundo; ele veio de “o príncipe deste mundo” (12:31; 14:30; 16:11). Sa-
Deus e entrou no mundo (1:10, 14). Ele disse que tanás é o príncipe deste mundo e é o mal do qual
seus discípulos não eram do mundo. Durante seu ­Jesus rogou que seus discípulos fossem guardados.
tempo com J­esus, eles souberam quem era J­esus Isso mostra que J­ esus reconheceu o poder de Sata-
e depositaram a fé nele e no Pai que o havia en- nás e, por isso, orou pela proteção de seus discípu-
viado. Porque se opuseram ao mundo, o mundo los após sua partida. Eles tinham uma tarefa que
os odiou. Se fossem do mundo, o mundo os teria só poderia ser realizada se eles permanecessem no
amado, pois o mundo ama os seus. No entanto, os mundo e não fossem “do mundo”. Diante disto,
discípulos de ­Jesus não eram do mundo e por isso 17:16 repete a afirmação de 17:14: Eles não são do
foram odiados (veja 15:18, 19). A revelação na qual mundo, como também eu não sou.
os discípulos creram e à qual obedeceram conde- Versículos 17 e 18. O primeiro pedido que
nou o mundo; se as pessoas do mundo se opuses- ­Jesus fez por seus discípulos foi para que eles fos-
sem à mensagem de Deus, então seria natural que sem guardados ou protegidos (17:11b–16). O se-
condenassem os mensageiros. gundo pedido foi para que fossem consagrados ou
O rogo de J­ esus ao Pai não era para que este os santificados (17:17–19). Ele rogou: Santifica-os na
tirasse do mundo, como aconteceria em breve com verdade. “Santificar” (aJgia¿zw, hagiazō) significa
­Jesus, e sim que os guardasse do mal (17:15). Em- “consagrar”, “separar” ou “reservar algo para pro-
bora os discípulos não fossem do mundo, por um pósitos sagrados”. Esse verbo é “constantemente
tempo o lugar deles era no mundo. Assim como usado na Septuaginta para expressar a dedicação e
­Jesus foi enviado ao mundo com uma missão, ele consagração de pessoas e coisas a Deus”38. O mes-
enviaria seus discípulos ao mundo para dar con- mo termo foi usado para Jeremias com respeito
tinuidade à sua obra na terra (17:18). Moisés (Nú- ao trabalho que Deus lhe conferiu como profeta
meros 11:15), Elias (1 Reis 19:4) e Jonas (Jonas 4:3, (Jeremias 1:5) e também a Arão e seus filhos com
8) oraram para serem tirados do mundo, mas Deus respeito ao trabalho deles como sacerdotes (Êxodo
não atendeu o pedido deles. O papel de cada um 29:1). Além da oração de J­esus (17:17, 19), hagiazō
desses homens de Deus era permanecer no mun- só ocorre mais uma vez neste Relato do Evange-
do e cumprir a tarefa que Deus lhes designou. Da lho. Em João 10:36, ­Jesus é aquele a quem o Pai
mesma forma, os discípulos tinham uma missão a “santificou e enviou ao mundo” – ou seja, ­Jesus
cumprir; e era somente através do contato com o foi separado pelo Pai para cumprir sua missão
mundo que eles poderiam cumprir a meta que lhes no mundo (veja os comentários sobre 10:34–36).
foi dada por J­esus. Não estava no plano de Deus Ele orou para que o Pai também “santificasse”
que os doze fossem tirados do mundo. Como re- seus discípulos. “A santificação [ou consagração]
presentantes de J­ esus, eles deveriam dar continui- é mais do que a separação da pecaminosidade do
dade à sua obra depois que ele partisse para estar mundo – isso já está subentendido (v. 16). Significa
com o Pai. dedicação e capacitação para o serviço a Deus.”39
Tendo em vista que os discípulos deveriam Os discípulos foram consagrados no sentido de es-
permanecer no mundo, e que o mundo odiaria a tarem “limpos” (13:10; 15:3); eles já “não eram do
eles e à mensagem que proclamariam, ­Jesus reno- mundo” (17:16). Os discípulos pertenciam a Deus,
vou o pedido de proteção de 17:11. Desta vez, ele
orou especificamente para que fossem guardados 38
Marvin R. Vincent, Word Studies in the New Testament.
“do mal” (e˙k touv ponhrouv, ek tou ponērou). Este S.l.p.: Charles Scribner’s Sons, 1887; reimpressão, Grand Rap-
vocábulo pode se referir ao “mal” num sentido ids, Mich.: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1946, vol. 2, p.
abstrato, ou pode ser usado como um substanti- 266.
39
Wilbert F. Howard, “The Gospel According to St. John”,
vo para se referir ao “maligno”, o diabo. É quase in The Interpreter’s Bible, ed. George Arthur Buttrick. Nashville:
certo que a referência aqui seja o segundo caso. Abingdon-Cokesbury Press, 1952, vol. 8, p. 749.

10
e Deus os deu a ­Jesus (17:6). Assim como J­ esus foi autōn). Quando J­esus disse que era “a favor deles
consagrado para sua missão pelo Pai (10:36), J­ esus [dos discípulos]” que ele se santificava a si mesmo,
orou pela consagração dos seus discípulos para a ele deveria estar se referindo à sua morte. A morte
missão que lhes seria conferida (17:17). Ser consa- sacrificial de ­Jesus é um tema ao qual ­Jesus se re-
grado é estar preparado para uma tarefa específi- feriu em outros versículos deste Evangelho (10:11,
ca. Discípulos consagrados significava discípulos 17, 18; 18:11; 19:30), e este versículo (17:19) se as-
preparados para cumprir sua missão. semelha a outras passagens sobre a expiação (veja
No Antigo Testamento, a consagração era fei- Mateus 26:26–28; Marcos 14:22–24; Lucas 22:19,
ta através da observância de rituais e cerimônias. 20; 1 Coríntios 11:24, 25). A linguagem aqui em-
Aqui ­ Jesus deixou claro que o instrumento da pregada por ­Jesus se alinha com o significado de
consagração dos discípulos era “a verdade”. J­ esus “consagrar” no Antigo Testamento quando denota
explicou o significado de “verdade” na próxima “sacrificar” (veja “consagrarás” em Deuteronômio
frase: a tua palavra é a verdade. A verdade é a to- 15:19, 21). João Crisóstomo disse que o significado
talidade da revelação de Deus de si mesmo, perso- de “eu me santifico a mim mesmo” é “eu ofereço a
nificada em ­Jesus e por ele comunicada (veja 17:8, ti um sacrifício”40. Quando ­Jesus disse que se santi-
14). Os discípulos foram purificados (limpos) por ficou em favor dos discípulos, ele se referia ao seu
meio da palavra que J­esus lhes anunciou (15:3). E duplo papel de sacerdote e vítima. Como sacerdo-
eles seriam santificados pelo mesmo meio. Mais te, foi o que ele fez – e não o que lhe fizeram os ini-
tarde, o Espírito Santo forneceria aos apóstolos to- migos – no oferecer a si mesmo que o santificou. O
dos os recursos espirituais necessários para cum- “eu” de ­Jesus (ejgw÷ , egō) é enfático. Ninguém mais
prirem sua missão; todavia, ­Jesus afirmou que o poderia dizer: “eu me santifico a mim mesmo”.
instrumento da obra que eles realizariam era a ver- ­Jesus, por livre vontade, fez pelos discípulos e pelo
dade, a palavra que proclamariam em seu nome. mundo inteiro o que ninguém poderia fazer por
Os discípulos de ­Jesus seriam separados do mun- si mesmo. Ao longo de sua vida, J­esus decidiu se
do por Deus para servir a ele, desde que cressem entregar ao serviço de Deus; e esse serviço se con-
e vivessem em harmonia com a verdade, a “pala- sumou quando ele deu voluntariamente a própria
vra” do Pai. Só quem aceita a verdade e vive em vida pelo mundo (6:51). Como vítima, ­Jesus foi o
conformidade com a verdade pode ser consagrado sacrifício aceitável por ser “cordeiro sem defeito
ou dedicado ao serviço de Deus. e sem mácula” (1 Pedro 1:19). Ele foi excepcional-
A oração de J­ esus pela consagração de seus dis- mente eficaz como um sacrifício perfeito pelo peca-
cípulos tinha o propósito de alcançar o mundo per- do. Na adoração no templo, o sacerdote consagrava
dido através da proclamação da verdade. Assim o sacrifício; e o sacrifício de J­ esus foi ele mesmo.
como J­esus fora enviado ao mundo pelo Pai para Além disso, J­esus decidiu consagrar-se a si
cumprir sua missão, ele enviaria [seus discípulos] mesmo, a fim de que os discípulos fossem santi-
ao mundo para dar continuidade ao seu trabalho. ficados na verdade. Ao contrário de 17:17, aqui
­Jesus era aquele a quem o “Pai santificou e enviou a palavra “verdade” (ajlh÷qeia, alētheia) não con-
ao mundo” (10:36) para apresentar a revelação do tém o artigo: o termo não indica “a verdade”, mas
Pai ao mundo. J­ esus orou pela consagração de seus “verdadeiramente” ou “realmente”. Uma possível
discípulos, para que eles futuramente cumpris- tradução seria: “verdadeiramente santificados”.
sem a missão para a qual ­Jesus veio ao mundo. A ­Jesus consagrou-se a si mesmo para levar a notícia
certeza da missão dos discípulos se revela no uso salvadora a um mundo perdido, e essa consagra-
do tempo aoristo na frase: “também eu os enviei ção resultou na consagração dos discípulos ou na
[ajpe÷steilaß, apesteilas] ao mundo”. J­ esus falou de dedicação deles à mesma tarefa.
algo que aconteceria no futuro como se já tivesse
acontecido. O envio real dos apóstolos só é regis- ­JESUS ORA POR SEUS
trado após a ressurreição do Senhor (20:21). FUTUROS DISCÍPULOS (17:20–26)
Versículo 19. O Pai separou J­ esus para seu ser-
viço exclusivo (10:36), e J­ esus estava decidido a se Não rogo somente por estes, mas também por
20

separar para esse serviço. Por isso, ele disse: eu aqueles que vierem a crer em mim, por intermé-
me santifico a mim mesmo. Essa determinação a
consagrar-se era a favor deles (uJpe÷r aujtwv n, huper 40
João Crisóstomo, Homilias sobre o Evangelho de João 82.1.

11
dio da sua palavra; 21a fim de que todos sejam um; unidade pela qual ele orou não era organizacional,
e como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti, também mas espiritual, e é comparada à própria unidade de
sejam eles em nós; para que o mundo creia que Deus na qual o Pai e o Filho compõem uma unici-
tu me enviaste. 22Eu lhes tenho transmitido a gló- dade espiritual de natureza.41” ­Jesus já havia orado
ria que me tens dado, para que sejam um, como para que seus apóstolos fossem unidos como o Pai
nós o somos; 23eu neles, e tu em mim, a fim de e o Filho são unidos (17:11). Ao repetir esse pedido
que sejam aperfeiçoados na unidade, para que para os seus futuros discípulos, ele definiu melhor
o mundo conheça que tu me enviaste e os amas- a natureza dessa unidade. J­ esus desejou que os fu-
te, como também amaste a mim. 24Pai, a minha turos crentes fossem “todos um” – como és tu, ó
vontade é que onde eu estou, estejam também Pai, em mim e eu em ti. O Pai está no Filho a ponto
comigo os que me deste, para que vejam a minha de ­Jesus poder dizer a Filipe: “Quem me vê a mim
glória que me conferiste, porque me amaste antes vê o Pai” (14:9). As obras que o Filho realiza são
da fundação do mundo. 25Pai justo, o mundo não as obras de fato realizadas pelo Pai (14:10). O filho
te conheceu; eu, porém, te conheci, e também es- está no Pai. Ele depende completamente do Pai, o
tes compreenderam que tu me enviaste. 26Eu lhes Filho nada pode fazer por iniciativa própria, mas
fiz conhecer o teu nome e ainda o farei conhecer, somente o que ele vê o Pai fazer (veja 5:19–30). O
a fim de que o amor com que me amaste esteja Pai e o Filho são pessoas distintas (veja os comen-
neles, e eu neles esteja. tários sobre 1:1), mas são um em mente, propósito,
amor e ação (veja os comentários sobre 10:30).
Versículos 20 e 21. O versículo 20 introduz a Semelhantemente, os crentes, embora sejam
última seção da oração de ­Jesus por consagração indivíduos distintos, devem ser um como o Pai e o
e desenvolve o tema da unidade introduzido em Filho são um. ­Jesus orou para que seus seguidores
17:11b. Esta é a única oração explícita de ­Jesus por tivessem unidade espiritual. E J­esus pediu mais:
todos os futuros discípulos. Enquanto orou por também sejam eles em nós. Esta é uma alusão à
seus apóstolos, ­Jesus também contemplou além da linguagem da “unidade” presente na metáfora da
obra que eles realizariam e orou: Rogo… também videira em João 15. “Os cristãos estão ‘no’ Pai e
por aqueles que vierem a crer em mim, por inter- ‘em’ seu Filho, tão identificados com Deus e dele
médio da sua palavra. Essas palavras implicam o dependentes para a vida e a produção de frutos,
sucesso dos apóstolos. ­Jesus mencionou “aqueles que eles próprios se tornam o locus da vida e da
que vierem a crer” no tempo presente, como se obra do Pai neles.”42 ­Jesus orou para que isso, por
os futuros crentes já fossem uma realidade. Esses sua vez, gerasse uma consequência: que o mundo
crentes não poderiam vir a crer sem as palavras creia que tu me enviaste. ­Jesus havia dito aos seus
dos apóstolos, mas os apóstolos só pregariam a discípulos que o amor deles uns pelos outros seria
mensagem salvadora após a morte e ressurreição a prova de que eram seus discípulos (13:34, 35). Da
de ­Jesus e a descida do Espírito Santo. Por três ve- mesma forma, J­esus idealizou que essa demons-
zes, J­esus fez referência à “tua palavra”, ou seja, tração de unidade seria observada por todos, seria
a palavra do Pai (17:6, 14, 17). Aqui, ele disse que tão surpreendente e tão diferente “deste mundo”
a “palavra” dos discípulos era o meio pelo qual que sua inteligibilidade só poderia ser explicada
muitos iriam crer nele futuramente (veja Romanos pelo fato de que J­ esus realmente era o enviado do
10:14). Essa “palavra” é a mensagem que J­ esus co- Pai. O efeito dessa unidade é levar o mundo a crer
municou aos seus seguidores (17:14), e se refere a que J­ esus é divino e “o Salvador do mundo” (4:42).
todo o evangelho de Deus em C ­ risto. A unidade pela qual J­esus orou jamais é alcança-
Assim como fizera dois pedidos pelos discípu- da pela doutrina e mandamentos de homens, mas
los imediatos, ­Jesus também fez dois pedidos pelos somente pela adesão cuidadosa ao que foi origi-
futuros discípulos. Primeiramente, ele rogou que nalmente pregado pelos discípulos de ­Jesus e para
seus futuros discípulos fossem todos um (17:21– sempre preservado nos escritos inspirados.
23). A seguir, rogou que seus futuros discípulos es- Versículos 22 e 23. A oração de J­ esus pelos fu-
tivessem com ele (17:24). Em poucas horas, J­esus
morreria na cruz; nesse momento em que sua obra 41
Homer A. Kent Jr., Light in the Darkness: Studies in the
na terra estava para ser concluída, ele almejou pri- Gospel of John. Winona Lake, Ind.: BMH Books, 1974, p. 191.
mordialmente a unidade entre os discípulos. “Essa 42
Carson, p. 569.

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turos discípulos começou com um rogo por uni- Versículo 24. No segundo pedido, ­Jesus rogou
dade. Em seguida, o Senhor elucidou a natureza que seus discípulos estivessem com ele. A expres-
dessa unidade ao declarar: Eu lhes tenho trans- são os que me deste refere-se a todos os discípulos
mitido a glória que me [“a mim mesmo”; o pro- (assim como “lhes” em 17:22), e inclui os primei-
nome é enfático] tens dado. É difícil determinar ros discípulos e aqueles que creriam através da
o significado total dessa frase. Tudo indica que o mensagem por eles proclamada. Esses discípulos
pronome “lhes” se refere aos primeiros apóstolos são os mesmos a quem ­Jesus se referiu em 17:2 di-
de ­Jesus, mas também a todos os futuros discípu- zendo: “a todos os que lhe deste”. O versículo 24
los que viriam a crer por conta da obra apostóli- também ecoa o conteúdo do versículo 2, que fala
ca. ­Jesus partilhou com todos os seus seguidores da autoridade de ­Jesus para conceder vida a todos
a glória que recebeu do Pai. Todavia, a natureza os que o Pai lhe deu. Em 17:24, ­Jesus falava da sua
dessa glória não está claramente definida. Depois vontade de que aqueles que lhe foram dados es-
de expor uma série de pontos de vista sobre o sig- tivessem onde ele estava e contemplassem a sua
nificado exato da “glória” que ­Jesus transmitiu, glória. A palavra traduzida por “vontade” é qe÷ lw
Beasley-Murray fez esta observação: “…em todas (thelō, literalmente, “farei”), e significa mais do que
as interpretações, ‘glória’ é evidentemente o dom um desejo. Visto que a vontade de ­Jesus coincide
do Redentor-Revelador, o Filho de Deus, que por perfeitamente com a do Pai (4:34; 5:30; 6:38), ele
sua encarnação, morte e ressurreição traz à huma- pode dizer “farei”.
nidade a soberania salvadora de Deus”43. A glória Empregando o verbo no tempo presente, mas
de Deus resume-se, então, na revelação de J­ esus e se referindo ao futuro, ­Jesus havia dito que ele “já
na obra redentora que ele veio fazer, a qual culmi- não estava no mundo” (17:11). A “glória” que ­Jesus
na na cruz. Em virtude do dom dessa glória, os fu- queria que os discípulos vissem nele é a que lhe fora
turos discípulos podem ser um, disse ­Jesus, como conferida pelo Pai antes da fundação do mundo.
nós o somos. Esta é uma referência clara a 17:5, onde ­Jesus orou
­Jesus não orou somente para que os discípulos para lhe ser restaurada a glória que ele tinha com o
fossem um, mas também para que fossem aperfei- Pai antes que houvesse mundo. Os primeiros dis-
çoados na unidade. A base da unidade de todos cípulos tinham visto fisicamente a glória de ­Jesus
os que vêm a crer em J­esus é que ­Jesus está ne- (1:14) manifestada por meio de sinais miraculosos
les (eu neles), e eles também estão em J­esus (veja (veja, por exemplo, 2:11); e veriam a sua glória che-
15:4). Além disso, o Pai está no Filho (tu em mim) gar ao ápice na terra quando ele morresse e ressus-
e o Filho também está no Pai (veja 14:10). Se o Pai citasse. Em tudo isso, porém, não veriam a glória
está em J­esus e ­Jesus está nos crentes, então o Pai que ­Jesus possuía “antes da fundação do mundo”.
também está nos crentes; consequentemente, a Hoje, os discípulos de J­ esus, até certo ponto, podem
unidade dos crentes é como a do Pai e do Filho. contemplar “a glória do Senhor” (2 Coríntios 3:18);
A unidade que une o Pai e o Filho é uma unida- mas um dia “quando ele se manifestar, seremos se-
de de propósito e amor perfeito, e este é o objeti- melhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como
vo final que ­Jesus almeja para os seus discípulos ele é” (1 João 3:2). Somente na vida futura os discí-
– uma unidade completa. Em 17:21, o propósito da pulos terão a experiência espiritual de ver J­ esus na
unidade dos discípulos é “que o mundo creia que plenitude de sua majestade e esplendor. A glória
tu me enviaste”. Aqui ­Jesus acrescentou mais um que os discípulos de ­Jesus verão é a glória que foi
propósito para o mundo: que conheça que tu… os conferida a ­Jesus pelo amor do Pai e por ele antes
amaste, como também amaste a mim. É um pen- da fundação do mundo. Novamente, o versículo
samento fascinante. À medida que os discípulos contém os pensamentos sobre a preexistência de
são aperfeiçoados na unidade, o mundo não só ­Jesus (1:1) e o grande amor do Pai pelo Filho (3:35;
é convencido de que Deus enviou J­esus para sal- 5:20). É porque o Pai ama o Filho que os que de-
var a humanidade, mas também compreende que positam colocam a fé no Filho estarão um dia com
Deus ama os que creem em J­ esus como ama seu Fi- ­Jesus e contemplarão a sua glória. E mais: os cren-
lho e está disposto a partilhar esse amor com todo tes serão amados pelo Pai (17:23) e, ao que parece,
e qualquer indivíduo que vier até ele. participarão da glória que foi restaurada a J­ esus.
Versículos 25 e 26. Os dois últimos versículos
43
Beasley-Murray, p. 302. do capítulo 17 podem ser considerados uma espé-

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cie de resumo de toda a oração de ­Jesus. ­Jesus não sente em seus corações. Esse amor seria demons-
fez nenhum pedido nos versículos 25 e 26, mas de- trado mutuamente entre os discípulos.
clarou o que ele havia feito e os propósitos desses A obra contínua de ­Jesus consistia em estar
feitos. Por outro lado, esses versículos estão conec- “neles”. Em 17:23, J­ esus declarou que esse era o es-
tados ao versículo anterior, no sentido de que o pe- tado ideal dos seus discípulos. Aqui, como na fra-
dido de ­Jesus dá continuidade ao tema do amor do se anterior, “neles” pode significar “dentro deles”
Pai por ele e ao ato de J­ esus tornar conhecido o Pai. ou “entre eles”. Em ambos os casos, à medida que
Em 17:11, J­esus se dirigiu a Deus como “Pai San- Deus se tornasse conhecido aos discípulos, maior
to”, e em 17:25, como Pai justo. ­Jesus reconheceu seria o entendimento dos discípulos sobre a pre-
que o Pai é “justo” ao diferenciar o mundo, que sença permanente de ­Jesus.
o rejeita, de ­Jesus e dos discípulos, que o aceitam.
­Jesus veio ao mundo para tornar conhecido o Pai, ­Jesus, O Enviado
mas a grande maioria rejeitou essa graciosa oferta. No afã de esclarecer aos seus ouvintes qual era
Embora ­Jesus tenha dito que o mundo não conhe- a sua identidade e propósito, ­Jesus enfatizou que
ceu o Pai, sua missão não fracassou. J­ esus conhecia foi o Pai que “o enviou”.
o Pai, e um pequeno número de homens e mulhe-
res reconheceu que ­Jesus era o enviado de Deus. 1. J­ esus declarou claramente que ele foi enviado
Alguns vieram a conhecer o Pai em ­Jesus. Esses pelo Pai (6:57; 7:29; 8:42; 10:36).
2. Ele disse: “Aquele que me enviou está comi-
discípulos tinham um relacionamento com Deus e, go…” (8:29).
por isso, se diferenciavam do mundo. 3. Ele transmitiu as palavras do Pai que o enviou
­Jesus havia manifestado o nome do Pai (veja os (3:34; 7:16; 12:49; 14:24).
4. Ele fez a vontade ou as obras daquele que o
comentários sobre o 17:6), e afirmou que continu- enviou (4:34; 5:30, 36; 6:38, 39; 9:4).
aria a fazê-lo. O objetivo da obra ou trabalho con- 5. O mundo é chamado a crer naquele que foi en-
tínuo de ­Jesus era duplo: que o amor do Pai pelo viado (6:29; 11:42; 17:8, 21, 23, 25).
6. ­Jesus disse: “Ninguém pode vir a mim se o
Filho estivesse neles e que o próprio ­Jesus estives- Pai, que me enviou, não o trouxer…” (6:44).
se neles. ­Jesus não orou para que o Pai amasse os 7. Ele disse que o Pai que o enviou deu testemu-
discípulos com o mesmo amor que tem pelo Filho, nho dele (5:37; 8:18).
pois os discípulos já eram objetos do amor de Deus 8. Ele disse: “E quem me vê a mim vê aquele que
me enviou” (12:45).
(17:23). ­Jesus estava pedindo que o amor do Pai 9. Aceitar ou rejeitar ­Jesus é aceitar ou rejeitar
pelo Filho estivesse “neles”, ou seja, “dentro deles” aquele que o enviou (5:23, 38; 12:44; 13:20).
(para que os discípulos fossem pessoas amorosas) 10. ­Jesus disse que iria para aquele que o enviou
(7:33; 16:5).
ou “entre eles” (isto é, que o amor de ­Jesus fos- 11. Ele prometeu que a vida eterna viria por meio
se demonstrado em suas relações interpessoais). do conhecimento daquele que foi enviado
Dado o duplo sentido presente em muitas expres- (5:24; 17:3).
12. Ele disse que assim como o Pai o enviou, ele
sões empregadas por João, “neles” provavelmente estava enviando seus discípulos (17:18; 20:21).
comunica as duas ideias. Sendo assim, à medida 13. ­Jesus advertiu seus seguidores de que eles se-
que Deus continuamente se fizesse conhecer a eles, riam rejeitados por aqueles que não conhecem
aquele que o enviou (15:21).
os discípulos seriam tão transformados que o amor 14. Ele disse que ele e aquele que o enviou são
de Deus pelo Filho seria exatamente o amor pre- verdadeiros (7:18, 28; 8:16, 26).

Autor: David Lipe


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