Você está na página 1de 208

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE CAPA E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA

Ramon Silva Oliveira


REITOR
Valter Joviniano de Santana Filho PROJETO GRÁFICO
Carlos Gabriel Paiva Galvão
VICE-REITOR
Ramon Silva Oliveira
Rosalvo Ferreira Santos

EDITORA DA UNIVERSIDADE
FEDERAL DE SERGIPE

COORDENAÇÃO DO PROGRAMA EDITORIAL Cidade Universitária “Prof. José Aloísio de Campos”


CEP 49.100-000 – São Cristóvão - SE.
Maíra Carneiro Bittencourt Maia
Telefone: 3194 - 6922/6923. e-mail: editora@ufs.br

COORDENAÇÃO GRÁFICA DA EDITORA UFS


Luís Américo Silva Bonfim

CONSELHO EDITORIAL DA EDITORA UFS


CC BY NC SA

Alisson Marcel Souza de Oliveira


Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual
Ana Beatriz Garcia Costa Rodrigues
Esta licença permite que outros remixem, adaptem e criem a partir
Carla Patrícia Hernandez Alves Ribeiro César deste trabalho para fins não comerciais, desde que atribuam o devido
crédito e que licenciem as novas criações sob termos idênticos.
Cristina de Almeida Valença Cunha Barroso

Fernando Bittencourt dos Santos


FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA
Flávia Lopes Pacheco CENTRAL – UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
Jacqueline Rego da Silva Rodrigues

Joaquim Tavares da Conceição


Análise fílmica e suas ressonâncias [recurso eletrônico] :
Luís Américo Silva Bonfi m entre imagens da história, literatura e psicanálise / (orgs.)
Mauro Luciano de Araújo, Tatiana Guenaga Aneas. – São
Maíra Carneiro Bittencourt Maia (Presidente) Cristóvão, SE : Editora UFS, 2021.

Ricardo Nascimento Abreu 208 p. : il.

Yzila Liziane Farias Maia de Araújo e-ISBN -- 978-65-86195-38-5

REVISÃO 1. Crítica cinematográfica. 2. Filme cinematográfico –


História e crítica. 3. Cinema e literatura. I. Araújo, Mauro
Gabriela Amorim Santana
Luciano de. II. Aneas, Tatiana Guenaga.

IMAGEM DE CAPA - Diferença e repetição A532 CDU 791(049.3)


Laís Alves de Oliveira Lima

© 2021 Autores. Direitos para esta edição cedidos à Editora UFS. Proibida a reprodução total ou parcial por qualquer meio de impressão, em forma idên-
tica, resumida ou modificada, em Língua Portuguesa ou qualquer outro idioma. Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
de 1990, adotado no Brasil em 2009.
folha
PREFÁCIO 5 CAP. 5 - ¿CÓMO REPRESENTAR
LO AUSENTE? EL ANALISIS DE LA
TEMPESTAD DE TATIANA HUEZO
CAP. 1 - PARA UMA ANÁLISE
DE AGRIPINA É ROMA-MANHATTAN, Aleksandra Jablonska 97

BELO QUASE -FILME DE HÉLIO OITICICA


CAP. 6 - CAMINHOS DA DOR: O LUTO
Rubens Machado Jr. 9
EM BAJO CALIFORNIA E LAKE TAHOE

Josette Monzani e Patrícia Costa Vaz 116


CAP. 2 - HERANÇAS CULTURAIS NO
CAMPO FÍLMICO - OUTROS ELEMENTOS
EM SERRAS DA DESORDEM, CAP. 7 - A ALEGORIA HISTÓRICA

DE ANDREA TONACCI EM TRÊS FILMES DE VIAGEM


DE MANOEL DE OLIVEIRA: PALA-
Mauro Luciano de Araújo 36
VRA E UTOPIA, UM FILME FALADO
E CRISTOVÃO COLOMBO – O ENIGMA

CAP. 3 - SERTÃO DE ACRÍLICO AZUL William Pianco 130


PISCINA: UM CINEMA DE POESIA NO/
DO SERTÃO NORDESTINO
CAP. 8 - CINEMA DE MULHERES –
Diogo Cavalcanti Velasco 55 BREVES PROPOSTAS DE ANÁLISE

Ana Catarina Pereira 152

CAP. 4 - FILMAR NO INSTANTE DO


PERIGO: ANACRONISMO E DISTOPIA CAP. 9 - LITERATURA E CINEMA:
EM ERA UMA VEZ BRASÍLIA VI O LIVRO, MAS NÃO LI O FILME

Tatiana Hora Alves de Lima 73 Mirian Nogueira Tavares 171


Em um livro intitulado Analisi del Film, Francesco
Casetti e Federico di Chio dividem metodologica-
mente esta tarefa que, para muitos, é um exercício
de maturação. Compreensão relativa. Eles o fazem
da seguinte maneira: para os autores, a análise
fílmica passa pelo procedimento de 1) decomposição
e recomposição, 2) pela observação dos compo-
nentes cinematográficos, 3) das representações, 4)
da narração, e, por fim, da 5) comunicação. É difícil
explorar cada uma dessas etapas sem deixar outras
de lado – melhor dizendo, é difícil segui-las, com
rigidez. A análise fílmica geralmente aparece como
um estudo que revela o que está ali por trás, à frente,
no meio, por dentro do que se vê na imagem cinema-
tográfica. É um método que desdobra, que suga o que
se guarda, por fim, estabelece uma relação direta com
o processo de decupagem do filme. Phillipe Dubois,
em uma entrevista que pode ser vista no youtube
feita pela Universidade Federal do Ceará1, revela que
a análise serve diretamente, também, à produção –

1 – Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wFpS8qtw4So


e não somente aos estudos frios e secos que dissecam teorias das imagens, história das artes, psicaná-
o texto com finalidade da compreensão histórica e lise, e, claro, pela história dos acontecimentos.
crítica, e com finalidade de interpretação. Se a análise Estes campos interdisciplinares compõem um tipo
serve ao produto, tanto quanto à crítica, prova- de terreno de onde partiram as análises de filmes
velmente não é muito erro dizer que ela também é contemporâneos, dando sombra e alimento, um
um tipo de alongamento muito proveitoso de uma espaço para quem estuda o cinema e audiovisual.
maneira de se decupar. Assim, percebemos a teoria
junto à prática, do fazer audiovisual, que alonga
Numa primeira parte deste livro a seguir, abarcou-se
em discussões aquilo que a história confirma como
o território chamado nacional, e uma provável teoria
discurso do filme. A análise, portanto, seria uma
sobre ele. O antigo “nacional” (ou nacional-popular),
maneira de se compreender a práxis fílmica.
hoje, como já internacional para o olhar global. No
texto do professor Rubens Machado o filme de Hélio
Neste livro a análise aparece sob faces que ilustram Oiticica surge como uma elucidação do que a arte,
bem como ela pode nascer e se desenvolver. Ela é na década em que se confirmou um império das
doada ao leitor pelo(a) “analista” como uma espécie imagens, conseguiu traduzir. Uma espécie de pêndulo
de recorte epistemico sob a forma de um discurso... entre a periferia e o centro (metrópole), “agit-props
E, digamos, geralmente este discurso aparece bem obscuros”, uma vanguarda que, conscientemente,
óbvio no texto que analisa. Afinal, quais perspec- ensaiava um modo distinto de se falar sobre nossas
tivas históricas podemos encarar numa análise do experiências nas cidades. Estes impérios, primeiro
filme? Jacques Aumont e Michel Marie2 deram um Roma, depois América do Norte, eram comentados
panorama riquíssimo dos campos que as análises
fílmicas devem, e dos que elas prolongam. Passam
pelas estruturas da linguagem, pelas narrações, 2 – AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. A análise do filme. Lisboa: Texto&grafia,
2004.

6 PREFÁCIO
não pela capacidade intelectual dos artistas, principal- Estas composições de análise, todas, de início,
mente – eram sentidos por eles, expressos, aparentemen- discorrem sobre temas políticos. O texto que vai
te. A análise então, como empiria das formas, descola com mais ânimo a isso é o de Tatiana Hora. Traz ao
as imagens da criação e as coloca dentro dos discursos. conhecimento Adirley Queiroz, cineasta da peri-
feria de Brasília, já bastante premiado. Política de

Literatura e filme, sempre em conjunção no método fato – Brasília e a distopia brasileira. Uma prisão ao

analítico. Há, logo depois, um debate sobre a ar livre, como disse Clarice Lispector, mas um lugar

questão do texto fílmico e o método estruturalista. que provoca experiências captadas por Adirley. A

A dificuldade na adoção da recepção (comunicação) política também é vista na posição do feminino, no

em um estudo analítico. O artigo de Mauro Luciano corpo em evidência como agente, agora, no México.

então propõe, a partir de algo do textual-imagético, O texto de Aleksandra Jablonska chama Tatiana

nas heranças culturais de uma notação à outra, Huezo, cineasta pouco conhecida no Brasil. A autora

o evidente conflito entre o ambiente Sertão e a da análise usa da interdisciplinaridade, porém, com

Floresta (selva). Assim, cria a ponte para a análise pés fincados na teoria do cinema – algo relevante

ilustrada de Diogo Velasco em “Sertão de Acrílico quando se traz o lastro desse histórico audiovisual.

Azul Piscina”, prolongamento da estética da fome


nos filmes da safra atual do novo cinema nordestino. Continuando no México, Josette Monzani e Patricia
Motivações estilísticas que compõem impressões Vaz distendem a descrição fílmica na entrada da
sertanejas num nomadismo do papel do viajante. psicanálise. Uma abertura na concepção de morte,

7 PREFÁCIO
para persistir o horror mencionado no texto anterior.
As autoras seguem uma vereda proporcionada pelo
diagnóstico, analisando filmes de Carlos Bolado e
Fernando Eimbicke. William Pianco, logo após, dota
o olhar para a compreensão da alegoria histórica
no cineasta e autor português Manoel de Oliveira. O trocadilho que vem em seguida (Vi o livro, mas não
li o filme), da professora Mirian Tavares, é elucida-
tivo. A proposta continua: uma essencial observação
No andar das teorias, a proposta é um debate esten-
do filme como arte e, porque não dizer diretamente,
dido sobre a metodologia da análise. Nota-se, no
imersão no campo da literatura. Para tanto, no âmbito
texto de Ana Catarina, mais uma vez o caminho da
da literatura comparada, Mirian se vê numa volta
psicanálise, desta maneira, a nos fazer questionar:
ao formalismo de Eisenstein, Pudovkin, passando
seria a análise fílmica de narrativas, também, deve-
por teóricos franceses como Jean Mitry, Christian
dora de um estudo “psico-analítico”? Laura Mulvey,
Metz, até chegar na teoria contemporânea do filme
as ressonâncias lacanianas se apresentam como
direcionamentos de outro tipo de olhar sobre a (Vanoye, Bordwell, Jost, etc.). Todos passam pela

instituição patriarcal de criação de imagens. Há que literatura. O texto poderia bem tomar o lugar desta
se mencionar que, ainda que Mulvey tenha se afas- introdução, pois faz o colhimento total de alguns dos
tado da psicanálise com sua gramática-diagnóstico, mais destacados motivos deste livro. Aliás, se formos
deve muito a este ambiente nas discussões sobre diretamente ao ponto, os fracassos e êxitos de uma
as imagens como signos e o cinema como receptor. análise fílmica devem ao que se elaborou por muito
Desde as fantasias de uma mágica da imagem, aos tempo no que se entende por “escrita” do filme.
fantasmas do real obscuro atuais.

8 PREFÁCIO
12

“Vinde a New-York, onde ha logar p’ra todos,


Patria, se não esquecimento, — crença,
Descanso, e o perdoar da dor immensa”Sousândrade, 1873-188..., O Guesa.

1 – O presente texto é versão expandida e modificada de três anteriores:


“Agrippina é Roma-Manhattan, um quase-filme de Oiticica” in: ALVES, Cauê
1(org.)
– O Oiticica:
presenteatexto é versão
pureza expandida
é um mito. e modificada
Itaú Cultural, de três
São Paulo. anteriores:
2010. Disponível“Agrippina
em: é
Roma-Manhattan, um quase-filme de Oiticica” in: ALVES, Cauê
<http://issuu.com/itaucultural/docs/oiticica>; “The Resonant Time of Hélio (org.) Oiticica: a pureza
éOiticica
um mito. Itaú Cultural,
Quasi-Film” São Paulo.
in: LERNER, 2010.
Jesse; Disponível
PIAZZA, em:(orgs.)
Luciano. <http://issuu.com/itaucul-
Ism, Ism, Ism /
tural/docs/oiticica>; “The Resonant Time of Hélio Oiticica
Ismo, Ismo, Ismo: Experimental Cinema in Latin America. Oakland: UniversityQuasi-Film” in: LERNER,
Jesse;
of PIAZZA,Press,
California Luciano.
2017;(orgs.) Ism, Ism,
“Agripina Ism / Ismo, Ismo, Ismo:
é Roma-Manhattan, um beloExperimental
quase-filme Cinema
de HO”, Ars, vol. 15 nº 30, São Paulo, PPGAV &amp; CAP/ECA-USP, 2017. SuaRoma-
in Latin America. Oakland: University of California Press, 2017; “Agripina é
Manhattan, um
elaboração tevebelo quase-filme
o apoio de HO”,
do Projeto Ars, vol. 15
coordenado nº Los
pelo 30, São Paulo,
Angeles PPGAV &amp;
Filmforum
CAP/ECA-USP, 2017. Sua elaboração teve o apoio do Projeto
- Getty Foundation, “Experimental Media in Latin America”, PST: LA/LA, Pacificcoordenado pelo Los
Angeles Filmforum
Standard - Getty
Time: Latin AmericaFoundation, “Experimental
in Los Angeles (2014-2017).Media in Latin America”, PST:
LA/LA, Pacific Standard Time: Latin America in Los Angeles (2014-2017).

2 –– Formou-se
Formou-seem emArquitetura
Arquiteturae Urbanismo
e Urbanismo pelapela
USP,USP,
ensinou Estética
ensinou e História
Estética e História
da Arte
ArtenanaFAU-FEBASP.
FAU-FEBASP. Pós-graduado
Pós-graduado em artes-cinema pela ECA-USP,
em artes-cinema onde é onde
pela ECA-USP,
hoje
é hoje professor
professortitular pelopelo
titular Departamento
Departamento de Cinema, RádioRádio
de Cinema, e Cinema, lecio- lecio-
e Cinema,
nando história,
história,análise
análiseeecrítica.
crítica.Estágio
Estágioem emdoutorado
doutorado nana
PARIS
PARIS3; pós-doutor
3; pós-doutor na
na UNICAMP. Conselheiro eleito em diversas gestões da
UNICAMP. Conselheiro eleito em diversas gestões da SOCINE, onde cria SOCINE, onde cria oo semi-
seminário
nário Cinema Cinema
como como
arte,arte, e vice-versa.
e vice-versa. Lidera
Lidera grupo
grupo de pesquisa
de pesquisa CNPq,
CNPq, História
História da experimentação no cinema e na crítica. Estuda as estéticas
da experimentação no cinema e na crítica. Estuda as estéticas cinematográficas cine-
matográficas brasileiras,
brasileiras, história da história
crítica, da crítica,cidade-cinema,
relação relação cidade-cinema, vanguardas
vanguardas artísticas e
artísticas e audiovisuais. Além de cineclubista colaborou e editou
audiovisuais. Além de cineclubista colaborou e editou em revistas como Cine- em revistas
como Cine-Olho,
Olho, Infos Brésil,Infos Brésil, L’Armateur,
L’Armateur, praga, Sinopse,praga, Sinopse,
Rebeca. Rebeca.Organizou
Escreveu Escreveu entre
Organizou entre outros, Walter Benjamin: Experiência
outros, Walter Benjamin: Experiência histórica e imagens dialéticas, histórica e imagens
ed. Unesp
dialéticas, ed. Unesp
(2015). Curadoria dos(2015). Curadoria
projetos dos projetos
Marginália Marginália 70: o experi-
70: o experimentalismo no Super-8
mentalismo
brasileiro, Itaú no Cultural
Super-8 (2001-2003),
brasileiro, Itaú Cultural (2001-2003),
e Experimental Media ine Latin
Experimental
America, Los
Media
Angeles in Filmforum/Getty
Latin America, LosFoundation
Angeles Filmforum/Getty
(2014-2018). Foundation (2014-2018).
“ Vinde a New-York, onde ha logar p’ra todos,
Patria, se não esquecimento, — crença,
Descanso, e o perdoar da dor immensa ”

SOUSÂNDRADE, 1873-188..., O Guesa.

Não faz maior sentido entregar-se a discussões sobre Manhattan — num quadro mais geral das manifestações
ser ou não ser inacabada a realização de Hélio Oiticica audiovisuais e artísticas, assim como na história do
rodada na Wall Street de 1972, levando-se em conta cinema. Muitos realizadores neste primeiro momento do
o filme que temos visto desde 1992 em quase todas surto superoitista praticavam bastante conscientemente
as retrospectivas do artista mundo afora, como uma a exibição em espaço privado, casa de amigos, ateliês,
criação experimental concebida a partir da prática galerias ou salas de projeção fora da programação insti-
superoitista brasileira daquele início de década. tucional, de trechos de filme em rolinhos alternados, ao
Consideramos nesta análise a relação do artista com
acaso de um ritual espontâneo do encontro, da conversa.
determinada matriz de experiência, contemplando
Alguns montaram e remontaram suas filmagens em
um diálogo profícuo do filme não só com o cinema
versões diversas, usando às vezes rolos maiores, a
anterior de seu país, também de sua cultura, política,
trilha sonora quase sempre improvisada no ambiente.
arte e literatura reativadas desde o século pregresso.
Um filme da esfera de convívio de Hélio Oiticica, como
o Nosferato no Brasil (1971), de Ivan Cardoso, foi proje-
Nosso horizonte aqui é o de favorecer trabalhos futuros tado em versões diversas quanto à sua duração e “trilha
na direção sobretudo de análises comparativas inter- sonora”. A ideia de filme acabado neste gênero de prática
nacionais e brasileiras circunstanciando a importância amadora, decerto variando muito caso a caso, nos obriga
desta experiência de um realizador em exílio artístico — a observar parâmetros técnicos, estéticos ou culturais
não propriamente em Nova Iorque ou nos EUA mas em específicos e propositalmente diferentes.

10 CAP 1
Em perspectiva de crítica imanente, ou seja, de tomar a de análise. Análises viraram ora abruptas “interpreta-
obra em sua própria medida, a análise da fita procuraria ções”, ora “comentários” salpicados de pseudo-erudição,
sua singularidade artística proporcionada pela experiência ora “análises” formais de estarrecedora aridez espiritual.
estética que dela podemos ter. O desafio do analista diante
de filmes muito singulares é a dificuldade de praticar o O motivo central dessa transformação me parece social,
ensaio, tentativas de aproximação também singulares. É é histórico e merece estudo. Talvez acusando certa fadiga
diferente da análise fílmica em geral, quando os padrões de pensar a sério o filme pelo viés mais exigente, talvez
de gênero cinematográfico, estilo, modo de produção e o artístico mesmo, desde a vaga industrialista dos anos
circulação, se condizem e permitem o êxito de métodos de 1980-1990 (que poderia ser chamada de pós-moderna
procedimento analítico semelhantes. Filmes radicalmente ou neoliberal), a resistente fórmula do cinema como
diferentes, experimentais, de vanguarda ou “de artista” simbiose Arte & Indústria não parece mais nos afetar
supõem igualmente uma análise comparativa diferente. Não como dantes. O fato intrigante é que a crítica de arte,
tem sentido análise comparada sem prévia ou simultânea bem como a de cinema não conseguiu analisar obras
análise fílmica das obras singulares compreendidas em com a mesma desenvoltura no Brasil desde a ditadura.
sua singularidade. A comparação aliás é instrumento Cotejamentos internacionais sugerem situações bastante
poderoso na busca da singularidade de experiências. comparáveis: da busca de sentido chegamos ao
refinamento do consumo, do julgamento circunstanciado
Acredito que a análise fílmica tem perdido terreno cada ao jogo apreciador, do nuançamento especulativo à
vez mais nas últimas décadas. E não só porque teria se categorização apaziguadora, da interrogação substantiva
desviado da sua perspectiva mais crítica, se perdido de à afirmação convencionada, da subversão à subvenção3.
seu horizonte mais questionador, interrogando as dife-
rentes obras audiovisuais — mas ainda porque simples-
3 – Rainer Rochlitz tenta refletir sobre esta transformação histórica da crítica
mente começa a desaparecer. Ou ser substituída por
em Subversion et subvention: Art contemporain et argumentation esthétique.
outra coisa que parece mas não é bem o que já se chamou Paris: Gallimard, 1994. 238 p.

11 CAP 1
Comparando-se, hoje em geral no crítico de plantão, e Entretanto, inextricável ao analista que é insensível à
no esforço ensaístico do pesquisador, mais encontramos intensidade singular da obra, por intermédio do positi-
à guisa de análise poucas linhas de grande platitude vismo da sua nova escritura fetichista e seus conceitos
e pouca ação crítica, mais comentários, e não raro de grife, as obras permanecem interrogando, como que
apoiados na palavra dos realizadores. O crescimento arremedando e zombando remotamente a desfaçatez
dos estudos universitários desde então carece de do brilho pedante de suas “aproximações”. A experi-
maior agudeza crítica ao tomar objetos que fogem do ência fruidora singular, como noção central do debate
instrumental teórico de sua especialidade, seja cinema
estético, talvez viva um eclipse progressivo na escrita
ou arte; o que explicaria a parca fortuna crítica em
“ensaística” contemporânea. Lidamos hoje arrogante-
geral do filme de artista, ou do cinema experimental.
mente com os filmes analisados, impondo-lhes a luz
Recorre-se a alguma teoria social ou filosofia,
de conceitos que ofuscam sua força singular. Se são
preferindo-se brandir conceitos prêt-à-porter, com valor
de fato bons filmes teriam no fundo continuado, como
de troca no meio acadêmico — em vez de analisar o
continuam, insubmissos à presepada rotuladora dos
que a obra ela mesma nos proporcionaria de expe-
acadêmicos: as boas obras persistirão nos desafiando
riência singular, e nos exige como esforço interpretativo,
e aos nossos conceitos, dado que são vocacionalmente
construção conceitual a ela subordinada. Admira-nos
ver hoje em dia o quanto nos textos universitários realizadas para surpreendê-los em sua pretensão, a

brilham muito mais que as obras os conceitos; os quais menos que sejam obras de simples ilustração do já
deveriam aliás supostamente elucidá-las, iluminá-las. conceituado, tendendo ao academicismo artístico.

Sabemos que épocas de crise como a nossa requerem Há uma história a ser escrita sobre a adesão dos artistas
uma aflitiva busca de novos conceitos perante os fatos brasileiros ao uso do cinema, com câmeras leves e
inexplicados pelas armações conceituais caducadas. acessíveis, muito ao modo “amadorístico”, produções

12 CAP 1
concentradas bem no período que corresponde ao romântica como realista, se recuamos mais (coisa
agravamento da ditadura militar depois do AI-5, rara na pesquisa crítica), seu discurso pode nos fazer
em 1968, e se prolongando até a abertura política. pensar no romantismo de um remoto passado literário
Sua concentração na década de 1970 precede os do país, com mais de um século; e no realismo, certas
estertores do regime militar, desde os seus momentos tradições regionalistas radicalizadas pelo nosso maior
mais negros, na primeira metade da década. A tensão arrojo moderno na música, mesmo no cinema. Ou
da pesquisa estética desse experimentalismo se dá na recentíssima tradição poética e visual concreta,
clara e forçosamente em espaço por vezes evasivo, neoconcreta, pop, tropicalista, contracultural...
outras vezes recluso, e por fim numa prática de
Poderiam (ou não) fazer a contrapartida mais ou me-
corpo a corpo com o espaço público algo enviesada,
nos consciente àqueles deslocamentos hegemônicos
irônica, características que parecem encontrar-se
da modernização conservadora expressa agora a cores,
em filmes e vídeos de diferentes poetas, artistas
em cada domicílio, na telinha da TV. Esta provocante
plásticos e uma geração nova de cineastas radicais.
confluência tripla de poetas, artistas e a inquietude
jovial empunhando câmeras talvez nos ajude a explicar
tanto cineasta em flor equiparando a fala dos seus
Além da proximidade verificável entre a experimen-
filmes à melhor poesia marginal; artista a decupar e
tação de cineastas e de artistas plásticos, um paralelo
pertinente contemplaria ainda o cotejo deste cinema ritmar suas fitas melhor que muito cineasta de carreira;
com a jovem produção poética dos anos 1970, ou ou poeta convertido a bom praticante da plástica
a chamada literatura de mimeógrafo. Por exemplo, cinematográfica. Enfim uma poética inquieta que
uma mesma atração pelo aqui-e-agora vividos na reverbera e precipita um novo olhar, em comparável
circulação cotidiana, numa diversificada inclinação inchaço do presente, levando à raia da consciência
localista que se revela ora sutil, ora explosiva, em física dos corpos, do mundo e também do meio es-
verve telúrica, ironizante, cifrada e estranha. Tanto pecífico de expressão, em auto-reflexividades várias.

13 CAP 1
As novas gerações de cineastas, sob a égide reconhe- formal dele; por exemplo nota-se a conjugação dessa
cida do manifesto de Glauber Rocha, “Estética da trivialidade amadorística com uma sensibilidade
Fome” (1965), ou da palavra de ordem dos inícios do do timing cênico nada banal, ou melhor, de uma
Cinema Novo, “Uma ideia na cabeça e uma câmara banalidade um tanto especial. Veja-se o Super-8
na mão”, convergiam na década de 1970 em seus RITUAL (1971), ou o ABERTURA I (1972) de Artur Barrio,
primeiros Super-8 ou 16mm para padrões diferentes, câmara de Renô, que parece compor os movimentos
incluindo uma voluntária informalidade. Enquanto já espontâneos com grande exatidão ao filmar. Em
os artistas em seus filmes frequentemente surpreen- gestos alegres vem o próprio Barrio, uma coca-cola
diam parecendo “profissionais”, seja pela consciência litro é aberta e servida como champanhe, em perfeita
do domínio cênico das imagens, os enquadres da ambiguidade entre a comemoração frugalmente
câmara, uso da decupagem — porque não dizer, solene e o tom de uma aberta caçoada bêbada — o
frequentavam com inesperada facilidade os efeitos de líquido ferruginoso aspergido pelo gramado abaixo
mise en scène ou da forma fílmica. É o caso de quase inocula alvuras de um monte de faixas de papel
todos os artistas ou poetas, Marcello Nitsche, Lygia higiênico jogadas há pouco como serpentinas: conviva
Pape, Torquato Neto, Anna Maria Maiolino, Nelson do evento, nosso olhar é convidado a brindar, obra de
Leirner, Ismênia Coaracy, Jomard Muniz de Britto, gestos fortuitos precisamente construídos.
Analívia Cordeiro. É verdade que de fato os artistas se
dividiam claramente nesta direção quando queriam A primeira vez que vi AGRIPPINA É ROMA-MANHATTAN
e, quando não, mimetizavam não o bom cinema, mas (1972), de Hélio Oiticica (1937-1980), não sabia o que
ao contrário, uma informalidade bastante amadora: estava vendo. Entrei ao acaso numa sessão e ele já
basta lembrar dos filmes de Artur Barrio. É claro que estava passando, eram curtas do Cinema Marginal
se mimetizavam procedimentos do mais espontâneo brasileiro numa mostra no Jeu de Paume, Paris, em
amadorismo convencional mas com um controle 1992. Só soube que filme era depois, revendo a sessão

14 CAP 1
com o programa em mãos, o que me tinha me deixado exterior, Hélio Oiticica4, sem suspeitar que fosse
uns dias curioso com aquela lembrança, tanto por justamente o único filme dele, do qual se tinha
ignorar seu nome, ou do realizador, mas sobretudo incerta notícia. Foi talvez a primeira projeção pública
pela evolução daquelas figuras meio fantasiadas pelas daquele ignoradíssimo Super-8 feito em Nova York
ruas de Nova York, indo de postura tão rígida e estacada havia vinte anos. Graças, segundo Bressane, ao
quanto os prédios ao redor, até à mais livre e solta, que boicote internacional sistemático do Cinema Novo

a inquietude da câmera dispersou pelo ar. Não sabia ao Marginal, liderado pelo “tenebroso xerife” Glauber
Rocha, a grande maioria das fitas dessa mostra
tampouco que estava diante da maior mostra jamais
parisiense igualmente nunca fora vista fora do país;
realizada sobre o Cinema Marginal, do qual eu já era fã
boa parte deles nem mesmo lá. A verdade é que,
e bom conhecedor desde os anos 70, quando editava
temerosos de confiar cópias únicas ao precário circuito
a revista Cine-Olho. Pude ver naquele panorama,
alternativo nacional, vários realizadores vieram a
mesmo para um ex-cineclubista “especializado” como
abrir exceção para o endereço da Place de la Concorde.
eu, vários filmes brasileiros inacessíveis, ou ignorados,
para sucessivas gerações, em consequência tanto do
período repressivo, ditatorial (1964-1985), quanto do Uma vez que muitos brasileiros passaram pelos EUA
nos anos 70, o que eu buscava rememorando aquele
surto mercadológico próprio dos anos 80; além da
filme não-identificado era, como tentaria algum
proverbial relação dificultosa do país com a memória.

4 – Além dos Parangolés, Metaesquemas, Ninhos e Cosmococas, instalações


Mas fiquei algum tempo me perguntando o que seria de slides do Quase-Cinema, programou-se uma imensa mostra de Cinema
Marginal, organizada pelos cineastas Neville d’Almeida e Júlio Bressane, sob o
aquilo que vi, aguardando os impressos semanais comando da curadora Catherine David, sem no entanto integrar seu catálogo:
Hélio Oiticica. Paris: Galerie Nationale du Jeu de Paume, 1992. A pedido de dois
do programa de filmes no quadro daquela que foi de seus poucos frequentadores, Denis Chevalier e Jean-Marc Manach, organizei
a primeira retrospectiva de um artista brasileiro no um dossiê sobre a mostra: “Brésil: Les ombres oubliées d’un cinéma inassouvi”,
L’Armateur n°3, Paris, sep.-oct. 1992.

15 CAP 1
perito, intuir meios para identificar o estilo daquela como do Bressane ou algum inopinado superoitista
ignota mise en scène, tão tensionada assim entre metido a besta. Tratava-se de um jeito de filmar conhe-
espontaneidade e rigor compositivo. Mas para quem cido, mise en scène manjada, embora de um especial
conhece os filmes do Ciclo Marginal, por exemplo frescor, e estruturação bem curiosa, talvez aí a sua mais
Rogério Sganzerla, Neville d’Almeida, Luiz Rosemberg desafiadora singularidade. Com notável força mínima
Filho, essa obra, mesmo inesperada não deixa muita de evidência, seu minimalismo muito particular,
dúvida sobre seu parentesco no plano do estilo ou aquela espacialidade unitária de AGRIPPINA É ROMA-
atmosfera. A câmera é talvez um pouco discrepante MANHATTAN nos vai configurar em três partes distintas,
da soltura desenvolta dessa tradição, discrepa apenas e cada uma com sua própria coordenada de tempo, um
naquilo que sugerirá estruturações maiores ou mais tríptico da onipresente protagonista. Em apenas dezes-
sistemáticas do olhar. Neste sentido particular de seis minutos silenciosos desenvolve variantes deri-
sistema talvez só possa ser aproximada de certos vadas do “Inferno de Wall Street”, poema escrito cem
momentos do experimentalismo superoitista — Lygia anos antes por Sousândrade (1832-1902), poeta mara-
Pape, Marcello Nitsche, Mario Cravo Neto, Ruy Vezzaro, nhense do qual Oiticica retira o motivo, inscrito num de
Paulo Bruscky — ou então antes, de Glauber Rocha e seus versos, “Agrippina é Roma-Manhattan”. Inferno de
do Júlio Bressane de O ANJO NASCEU (1969), CUIDADO Wall Street é passagem famosa do poema romântico
MADAME (1970) ou O REI DO BARALHO (1973). (tido ainda como pré-simbolista e proto-modernista)
em que o Guesa Errante, ou Sem Lar, figura lendária
dos índios colombianos “muíscas” (dos quais origi-
O que quero dizer aqui é que tive a impressão, com o na-se também da lenda de Eldorado), menino raptado
olhar treinado de cinéfilo ou pretenso crítico, de que e destinado à peregrinação e ao sacrifício em tributo
aquilo poderia ser perfeitamente um curta do Neville, a Bochica, o deus do sol, faz “um périplo transconti-

16 CAP 1
nental”, como um Candide selvagem do Século XIX 5. hoje nenhuma chegou a ingressar no terreno da análise
Work in progress de Sousândrade, O Guesa foi escrito fílmica, permanecendo só no comentário simpático e/
entre 1868 e 1902, tendo o poeta ele próprio peregri- ou metafísico, sob a alegação pouco sustentável de que
nado pelo seu país e o mundo, vivido em Nova York se trataria de uma obra inconclusa — ao lado, diga-se,
durante a década de 70, como aliás Oiticica, passado de um conjunto maior de obras inconclusas analisadas.
um século. Não há na fita propriamente um enredo Sua presença incontornável em inúmeras mostras do
em cada um dos três blocos de ação, mas o pouco que artista nas últimas décadas — projeção contínua em
acontece seria da ordem de uma imagem movente loopings, mais parecendo takes reunidos ao acaso — a
em tableaux dotados de uma só ação em cada parte, fita vem silenciosamente aludindo a alguma gestação
e uma possível ação proposta para o conjunto do ignorada de sua estada nova-iorquina.
tríptico, esta sim, ainda mais enigmática que cada uma
das três. Oiticica recusava o rótulo de artista plástico, Figura unificadora destes míticos centros imperiais,
podemos constatar o que mobiliza de um conjunto a Agrippina histórica, mãe de Nero, tiranizadora de
aberto de diferentes artes em cada obra. Tentaremos tiranos, femme fatale em mais de um sentido, no 1º
mostrar o quanto a parte do cinema participa viva- movimento desse tríptico circula como alma penada
mente de AGRIPINA, para além da mudez das dife- por uma Roma transfigurada na paisagem neoclás-
rentes críticas (arte, cinema, literatura etc.), já que até sica de Wall Street, como em visitação metafísica à
Bolsa de Valores. No 2º movimento, Agrippina saltaria
dos tempos romanos para os daquela Manhattan
5 – Ver: SOUSÂNDRADE, Joaquim de. “Canto Décimo (1873-188…)”. In: ______.
contemporânea. Se na 1ª parte sua figura solene e
O Guesa. Prefácio Augusto de Campos. São Paulo: Annablume (Sêlo Demônio
Negro), 2009, pp. 202-288. “The Wall Street Inferno (from O Guesa Errante)”. algo funesta em face daqueles paredões abissais,
Trad. Robert E. Brown. In: Poems for the millenium — The University of
California Book of Romantic & Postromantic Poetry, vol. 3. Berkeley: University
se deixava conduzir por um tipo latino de discreto
of California Press, 2009, pp. 655-663. garbo (mero chofer, ou seria Sousândrade mesmo,

17 CAP 1
em cicerone; talvez seu personagem, o Guesa?), na sedução de que fala Haroldo de Campos, então amigo
2ª parte ela circulará desnorteada. Vestida como a e interlocutor de HO, ao versificar Marilyn Monroe no
baliza que, em festejos públicos, guia o desfile à frente seu work in progress, já editado em parte nos anos
da banda, aqui ao contrário, num desalento nada 60, Galáxias. O poeta concretista tomava a figura de
acrobático, extravia-se num mesmo ponto vagueando Marilyn, igualmente de grande presença no romance
pelo cruzamento — dir-se-ia que perdeu de vista os PanAmérica (1967) de José Agrippino de Paula, relato
seguidores. Perdida, como se esperasse acasos nesse pop lembrado como precursor do Tropicalismo. Neste
zanzar, um ir e vir horizontal na calçada, pareceria romance plástico de Agrippino — ressonância inevi-
mesmo fazer o trottoir na esquina da metrópole: seu tável com o argumento de HO — um narrador vive os
corpo deixa o espectro tirânico original para se deixar EUA de Hollywood como se numa superação onírica do
tiranizar pela interação de uma lógica, por assim dizer, fetiche que acomete a população global; sintomático,
desenhada na circulação urbana ali designada. em obra coetânea e constelada não só a este trabalho
de Haroldo como, também naquele mesmo ano, o

Da anterior eminência tirânica à banalidade do trottoir, lançamento do Terra em Transe, de Glauber Rocha,

se translada a blonde de Roma a Manhattan. Estamos para não falarmos ainda por outro viés d’A sociedade

ainda, em todo caso, no Império. No império ameri- do espetáculo, de Guy Debord — obras com as quais

cano sempre, se tomamos a encenação hierática do configuraria fortes relações de contraste substancial.

começo como momento igualmente pop, num sentido


ampliado para a indústria hollywoodiana, a blonde Marilyn mesmo possui aparições notáveis nas calçadas
star de cinema, “Vênus vulgar”, a mulher reificada de Nova York para além das saias alçadas no vento,
como figura máxima dos mass media, o fator de soprado pelo respiradouro do metrô. Já em Páginas

18 CAP 1
da vida (O. Henry’s Full House, 1952) faz uma ponta Nosferato no Brasil (1971) encarnavam essa dualidade
brilhante como uma prostituta na esquina, recata- de garotas da turminha do convívio carioca e pin-ups
damente esfuziante ao acolher como se a um grande auráticas da ribalta6, que HO relê por sua ótica arte-vida.
conhecido a abordagem pretensiosa dum vagabundo
(Charles Laughton), sob o olhar do guarda em patrulha. Essa blonde Agripina-Cristiny na 3ª parte se eclipsará.
A figura metropolitana mítica e mundana na tradição Mesmo assim talvez ainda nos guie, magnetize nosso
dramática ocidental de personagens-prostituta olhar. É como se estivéssemos diante de um seu possível
exprime o caráter daquela vida subjugando-se à vislumbre, sem que a vislumbrássemos no entanto? Sua
função de troca mercadológica em metáfora crítica da tirania não mais precisaria corporificar-se, cedendo
vida moderna. Vinte anos antes dessa Vênus vulgar de lugar a um jogo de dados, porventura metafórico do
Cristiny Nazareth que encontramos na Wall Street de circunstante espírito especulativo da Stock Exchange,
1972, também se precedeu de dois ou três anos pelas de atividade local, a potência financeira transfigurada
Helena Ignês, que criou figuras bastante aproximáveis em seu caráter essencial, nova síntese da tiranizadora
em filmes de Rogério Sganzerla, Mulher de Todos de tiranos? Para tanto, a paisagem vertical de Wall

(1969), e sobretudo em Copacabana mon amour (1970). Street é trabalhada num entrecruzar totêmico que
afirma uma nova ordem cosmológica particular. As
Nesse último, a blonde-ícone do moderno cinema de
circunvoluções da câmera não deixam de se articular
vanguarda brasileiro faz uma profissional do trottoir
com a verticalidade monumental dos prédios — o
em esquinas de Copacabana. O ideal feminino nestas
Flatiron Building raramente se afigurou tão fálico. Os
Vênus de celulóide, entre o sublime e o vulgar, o mito
e o real, o empostado e o espontâneo, o ideal e o
sensual, o transcendido e o mundano, se faz presente 6 – Cf.: MACHADO Jr., Rubens; CAMPOS, Marina da Costa. Protagonismos
nesta Agripina-Cristiny de Oiticica. Sua matriz mais experimentais femininos no surto superoitista dos anos 1970. In: HOLANDA,
Karla; TEDESCO, Marina. (orgs.) Feminino e plural: mulheres no cinema
próxima vem das “ivamps” de Ivan Cardoso, que desde brasileiro. Campinas: Papirus, 2017.

19 CAP 1
dados são jogados a céu aberto, sobre chapas de aço Os primeiros movimentos do filme alternam-se em
de algum canteiro de obras, no qual os jogadores não verticais entre Agripina e arranha-céus, começando
parecem exatamente trabalhadores. Com o aspecto pela torre neogótica da Trinity Church, das igrejas
de migrantes latinos, como boa parte da mão-de-obra mais antigas e ricas dos EUA, ponto culminante de
nova-iorquina, mais parecem artistas que operários. Manhattan até meados do século XIX, massa escura
integrada à refulgente massa de concreto nova-ior-
quina. Esta simbiose de torres modernas com a celeste
Modulam-se diferentemente o tom, o compasso e a
vocação ascensional da torre gótica, arquétipo histó-
temporalidade das três cenas. O timing da primeira
rico da arquitetura de elevação vertical, resquício
cena parece apresentar-nos os personagens tanto
aqui pontuado na paisagem quase como ruína ao pé
quanto a arquitetura de Manhattan. Erguem-se de
dos arranha-céus, sementes caducas de um porvir
dentro de um automóvel, o condutor abre a porta,
herético, topos que se dissemina em imaginário
peremptório. Acompanhará Agripina, que pouco antes
mais amplo de Nova York, perpassando o cinema.
alinhava-se aos arranha-céus, percorridos de modo
Este topos metagótico de Manhattan retomou-se na
comparável aos corpos em movimentos panorâmicos
paisagem art-déco do Metropolis (1926), de Fritz Lang,
verticais da câmera, enquadres fechados erigindo
que concebera sua ficção após visita à cidade.
uma distinção algo totêmica das figuras. Esse enxergar
por verticais de corpo e edifícios vai estabelecendo
uma matriz de visibilidade importante ao longo do 1º Nos caminhos verticais do olhar pedestre, Hélio
Bloco, não indiferente para a apreciação dos Blocos desenha o skyline abissal da metrópole, cujas ruas
seguintes. Uma primeira consequência desse olhar demarcam-se desde o alto por vertiginosas nesgas
seria certa distinção mais isolada dos personagens, de céu, rasgadas em agudos triângulos invertidos,
que resistiria também nos restantes Blocos. Há nesta imprimindo recortes de ofuscante grafismo, fazendo
sugestiva matriz um componente típico de Nova York. pender pontiagudas ao chão como estalagmites

20 CAP 1
diáfanas, largos relâmpagos paralisados. Irmanada ao algo mais: como corpos sem vida, ela e seu condutor
abismo luminoso surge não mais seu inverso escuro, figuram algo que aquele Espaço Público dominado
o contratipo da torre neogótica, mas Agripina ereta, por atividade financeira parece secretamente
quase estática, percorrida pela câmera como um almejar como se tais corpos fossem mesmo as almas
recorte de forma humana que responde aos recortes inusitadas porém legítimas deste mundo pétreo. O
e contra-recortes do monumental que espera integrar cavalheiro latino que a acompanha nada tem dos
— a Wall Street que percorrerá entre abismada Césares que ela encantou avassaladoramente. Nem
e impávida, hierática. Compenetrada de alguma
de Nero, tirano-mor incendiário de Roma, que, além
transcendência move-se, como entidade solene e
de filho, foi seu projeto “demoníaco” de poder — e
majestática, conduzindo-se por escadarias. A força
finalmente assassino matricida, criatura superando
gráfica da cenografia, calcada nas fachadas neoclás-
criador. Nem súdito nem senhor, esse acompanhante
sicas — em lugar de palácios e panteões romanos,
de Agripina timbra aqui mais como um cândido inca,
edificações bancárias assemelhadas — é construída
ou atual imigração contingente ao Gigante do Norte,
pela câmera que percorre conjunções de arquitraves
conveniente e discretíssimo migrante, novos guesas
e capitéis, severas vibrações no paralelismo horizontal
errantes restituídos desde o poema visionário.
de degraus, conjugados às ranhuras verticais no fuste
das colunas. Tais enquadres conduzem nosso olhar
As figuras aqui delineadas por Hélio, no que toca ao
pela força tectônica das estruturas, afirmativas
aspecto arte-vida, central em seu percurso, a imersão
duma ordem ancestral reativada. Não há como no ambiente norte-americano, seus projetos recentes,
não lembrar alguma sugestão remota de figurino o lugar do cinema entre eles, fazem-nos repensar a
hollywoodiano, populares filmes históricos italianos, inscrição deste filme num arco pouco linear, que Celso
chanchada carioca ou desfile carnavalesco. Rediviva, Favaretto expôs em cada fase desde o concretismo, o
um século depois, Agripina é Roma-Manhattan. E caminho que leva o artista da bidimensionalidade ao

21 CAP 1
salto no espaço7. Rodrigo Naves observa entretanto Antonio Dias (o jogador de óculos), artista de projeção
naquela espacialização crescente tendência progres- comparável à de Hélio, pioneiro do pop no Brasil e autor
siva à “intimidade do mundo ou do corpo” em “dinâmica da série em Super-8 The Illustration of Art – I-X (1970-
formal introvertida”, interiorização problemática dum 1980); e Mario Montez (o outro jogador), criatura do
“sensorialismo radical”, quando seus contemporâneos underground local, mítico travestimento performático
voltavam-se ao embate, estranhamento com o espaço da homônima star do cinema mexicano em seu apogeu
público8; essa paradoxal “supressão de toda alteridade” (ou decadência?), alcunhada “Rainha do Technicolor”.
referia-se, claro, ao Hélio pré-NY. O crítico sugere-nos
ainda compreender sua progressão arte-vida enquanto
Sganzerla e Bressane, lembramos, assim como Neville,
resposta histórica, mais de viés político que estético9.
Miguel Rio Branco e Jorge Mourão, rodaram também
alguns títulos em NY nessa época; quando a barra
No quadro de figuras do filme, seus atores-personagens pesou, não foi só para a esquerda radical, uma diáspora
implicam repercussão simbólica: Cristiny Nazareth10 de artistas aconteceu. Além do cenário nova-iorquino
(Agripina) era uma das “ivamps” dos Super-8 de Ivan de Agripina algo da sua mise en scène, da fisionomia
Cardoso, a série Quotidianas Kodak (Rio, 1970-1975), a e gestualidade presentes naquelas figuras que vemos,
primeira vampira em Nosferato no Brasil (1971), vítima- não destoa desse continuum formidável de situações
-vitimadora em ritmo de “terrir”, ironia de Ivan reativando que esses poucos realizadores brasileiros legaram ao
a Chanchada carioca em tempo de trevas; o paraibano contemporâneo imaginário nacional. São ademais
figuras de um espectro latino carregado, a começar dos
traços nordestinos, tanto do Cavalheiro que no início
7 – A invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: Edusp, 1992.
8 – A forma difícil. São Paulo: Ática, 1996. pp. 243-246.
acompanha Agripina (David Starfish seria mesmo o
9 – O vento e o moinho. São Paulo: Companhia das letras, 2007. p. 208. seu nome?), como no fim o Antonio Dias. A presença
10 – Produzirá e dirigirá nos EUA o filme A Visit to Eros Volusia (1980) sobre a latina se potencializa com Mario Montez, que opera
célebre dançarina e coreógrafa carioca.

22 CAP 1
também uma simbiose da participação masculina Tendo estudado cinema a sério na estada nova-ior-
com a feminina da personagem título, espécie de quina, por esta mesma época Hélio andou dizendo
síntese escancarada dessas diversas aparições. A este que as virtudes da montagem não lhe interessavam.
lado moreno se junta a excelsa e sobranceira Cristiny. Diremos no entanto que o seu tríptico articula-se
Aliás, o que fazem mesmo esses tipos tão marcados por montagem. Não tanto entre planos mas entre
neste cenário nova-iorquino? Para cada bloco de ação blocos. Há vínculo entre os três blocos de ação, se
mudam não apenas os personagens presentes mas o os rememoramos em seus elementos de unidade
estatuto da ação e os parâmetros da mise en scène. própria, delineando diálogo fundamental das sínteses
Estamos sempre em Manhattan, a céu aberto, nas formais de cada um: o sentido resultante do tríptico
ruas de Wall Street. A dupla latina Dias & Montez, o muito se conjugaria de suas similitudes e diferenças.
Artista e a Travesti, personagens do último bloco, não O modo pelo qual se evitam cortes e decupagem
aparecem antes. O mesmo acontece com o Cavalheiro em favor do plano longo, composto, articulado a
latino do primeiro bloco, que não ressurge. Cristiny, movimentos de câmera, indicam afinidade não só
ao contrário, domina o primeiro e o segundo bloco, com o superoitismo experimental, mas o moderno
ausentando-se do último, deixando-o aos artistas dos Marginais, o bazinismo extremado da produtora
latinos. São todos tipos curiosos, dominam a cena Belair de Bressane11, Sganzerla e Helena Ignês, como
sem manifestar qualquer curiosidade com o entorno, também de boa parte dos cinemanovistas.
com o qual não interagem, imbuídos de sua mínima
atividade, parecem nada buscar do convívio dos 11 – Em filmes de Bressane como O anjo nasceu e O Rei do Baralho se desen-
volve uma sintaxe que foi pensada numa primeira recepção como montagem
poucos circunstantes ou de seus eventuais afazeres. não entre planos mas entre sequências (ou plano-sequências), como se elas
A exceção fica por conta da postura de Agrippina no fossem concebidas para se associar enquanto cartas de um jogo de baralho,
em liberdade paratática, um pouco no sentido proposto por Theodor Adorno.
segundo bloco, solitária e altiva, perambula por uma Cf. ADORNO, T. W. Parataxis – a lírica tardia de Hölderlin. In: ______. Notas de
larga esquina sugerindo alguma disponibilidade, num literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973. pp. 73-122. MACHADO Jr., R.
Observação sobre O anjo nasceu. Cine-Olho n°5/6, São Paulo, 1979. pp. 52-53.
ir e vir ligeiramente sôfrego ao vento. MESQUITA, Fernando. “A solidão lunar”, ibidem, pp. 62-74.

23 CAP 1
O Cinema Novo, epicentro estético no quadro da cine- (Buñuel no México inicia para Glauber o cinema tropi-
matografia brasileira, traz com desígnio vanguardista calista), contracultura e estéticas tardo-sessentistas.
a radicalidade do modernismo que havia transfor- O pós-68 cinemanovista fermenta ainda outra dissi-
mado a literatura, música e artes plásticas desde 1922. dência crítica, experimental e vanguardista, chamada
O teatro e a arquitetura modernizam-se duas ou três depois Cinema Marginal, confundido às vezes com o
décadas depois, juntando-se em seguida a canção movimento tropicalista, seu estrondo musical e teatral
popular, com a bossa nova, só depois o cinema, no em eclosão simultânea. O superoitismo experimental
início dos anos 1960. Por dois decênios pelo menos, começa em 1970 com boa participação de artistas
fortes reverberações até hoje, a invenção de formas plásticos, chegando com vitalidade aos inícios da
cinematográficas no país liga-se ou confronta-se com década seguinte, em multiplicidade estética dialogante
este movimento, que teve na Estética da Fome seu com tradições diversas, entretanto mais aproximável
manifesto principal. Três ou quatro fases marcaram seu ao cinema marginal e às estéticas da fome e do sonho.
desenvolvimento estético, sua relação com a sociedade:
o Golpe de 64, seu recrudescimento repressivo no final O singular em Agripina se constrói pelo timing entre
de 1968, e a lenta abertura política a partir de meados corpos e espaço. No contraste entre a matriz vertical
dos anos 1970. O pós-68 dos cinemanovistas cinde-se, dominante nos movimentos da câmera no 1º Bloco, e
tenta combinar duas tendências principais com a a horizontal do 2º Bloco, levando-nos de personagem
proposta Mercado é Cultura, justificando o apoio à hierático a mundano, do mítico ao ocasional, de
estatal Embrafilme, e Estética do Sonho (1971), em que espírito pétreo a presença carnal, da transcendência
Glauber atualiza e tenta contemplar sobrevidas daquele ao acaso, de Roma a Manhattan. Nesse diferir, a
radicalismo dentro das adversidades repressivas, exílio ressonância do termo “bloco” com seu sentido
e limites da via estatal, dialogando com o surrealismo próprio dos desfiles de Carnaval não parece aqui
(pensemos no manifesto Breton-Trotski), tropicalismo destoar, se pensamos na liberdade ou na autonomia

24 CAP 1
de funcionamento dos grupos de foliões entre si. seu aceno de primeiro esboço, enredo que se telegrafa
Cada Bloco de Agripina não configuraria exatamente por pinceladas iniciais. É algo que já se patenteava,
uma síntese, embora algo de sintético traga, seria embora distintamente, nas Quotidianas Kodak de Ivan
mais uma qualidade do esquema. Mais que isso, um Cardoso, aliás uma constante rastreável em todo o
esquema problemático, espécie de metaesquema superoitismo, porventura uma de suas características
que se reinventa distante do concretismo originário. mais amadurecidas — a arte do arremedo como
Essa quase forma, em paradoxal coagulação de alusão. Sua origem remonta à notória inclinação no
forma acabada, metaesquema invertido, pós-neo- cinema nacional ciente de seus limites, o carioca em
concreto, ao figurar as coisas do mundo, observáveis particular, a tendência ao pragmatismo e à irrisão,
e constituídas no real, trabalha com Blocos articu- de que a Chanchada é desde os anos 30 a principal
lantes gerando outra unidade, apresentando relações inventora 13; pelo menos até sua reinterpretação pel’O
dialéticas e processos de outro equilíbrio. O tríptico bandido da luz vermelha (1968). Nessa tradição falar
reconfigura seus elementos levando-os “até ao seu em arremedo supõe incorporar à elaboração artística
oposto e induz o retorno à sua configuração inicial, mesmo o sentido mais pejorativo, seja nos necessários
estabelecendo um ciclo sem fim”12. filmecos de que falam Glauber e Sganzerla, feios e
pobres mas ricos esteticamente; seja pelo protomini-
No caráter desse metaesquema construído em tableaux malismo modernista do telegráfico e do telefonema de
moventes se revelam apenas alusões a algo, não seu Oswald de Andrade; seja no viés identitário da preguiça
convencional desenvolver-se narrativo; um arremedo explorado sobretudo na literatura, em Macunaíma,
determinado da cena, não sua trama desenvolvida: só
interessará certo conjugar-se de um momento da ação,
13 – Cf. meu artigo “Passos e descompassos à margem”. PEREIRA, Miguel;
ROSA, Gian Luigi de (orgs.). Alceu: Revista de Comunicação, Cultura e Política,
v.8 nº15: Raízes e veredas do cinema brasileiro. Rio: PUC, 2007, pp. 164-172.
12 – CONDURU, Roberto. Metaesquema, metaforma, metaobra. 17° Encontro Disponível em: <http://publique.rdc.puc-rio.br/revistaalceu/media/Alceu_
Nacional da ANPAP, 2008, Florianópolis, p. 687. n15_MachadoJr.pdf>.

25 CAP 1
na figura do caipira que lhe antecede e sobrevive. O nantes extrapola-se, diversifica-se reativamente no
arremedo esquemático de Hélio mobilizaria com rigor 3º Bloco, numa arrematada simbiose. A verticalidade
construtivo um inventário de formas dispersas em sucedida pela horizontalidade do olhar acumulou-se
larga gestação histórica na cultura brasileira. em filigrana num quase sinal-da-cruz, já configu-
rado em meio ao 2º Bloco, quando alternam-se por
Assim como os desígnios expressos nos corpos, instantes a dominante horizontal por novas verticais
digamos que as solicitações gestálticas presentes no que religam-nos espacialmente à Manhattan especí-
espaço urbano implicam coordenadas gestuais do fica. Forma mais sintética que as contrapostas antes,
nosso olhar, incorporadas no movimento da câmera a novidade do 3º Bloco é um curvar-se combinado às
dotando o filme de coreografia própria. Principiamos matrizes anteriores propondo circulações da câmera
pela loquacidade visual das varreduras totêmicas, a em ciclos que descrevem o jogar de dados na chapa de
verticalidade do olhar solicitada no 1º Bloco, em Roma aço enferrujada. De Roma a Manhattan sobrepunha-se
(onde originalmente verticalidades serviam para em cruz um olhar esquematizado em prumos-
horizontalizar espirais narrativas, Coluna de Trajano). planuras, aqui finalmente articulado a redondas
Impõe-se depois, no 2º Bloco, o deslocamento circunvoluções. A mesma cruz que, com o cristianismo,
horizontal do passeio público, liberdade do ir-e-vir engoliu aquela Roma 15, suplantou-a por um ir-e-vir
em mesmo nível, fundante da metrópole moderna 14, moderno da nova Agrippina estadunidense (que era
vertida aqui numa amarra quimérica de Manhattan. O introduzida na abertura pela Trinity Church), se entre-
acúmulo dos dois sistemas de registro até aqui domi- cruzaria agora com Wall Street, mas em ciclo infernal.

14 – Modelos antigos imbricam-se na cidade moderna, a pólis grega e a civitas


romana: conceito dinâmico de cidade, a Roma mobilis expandiu-se almejando 15 – “Roma es la ciudad donde Dios ha desposado la Iglesia con el Imperio, o
concórdia estratégica entre diferentes, sem as matrizes étnicas da primeira. si se quiere, el ‘Imperio del más allá’ con el ‘Imperio del más acá’, la Urbe con el
CACCIARI, Massimo. A cidade. Amadora: Gustavo Gili, 2010. pp. 9-23. Orbe.” ORS, Eugenio d’. Mis ciudades. Madrid: Libertarias, 1990. p.130.

26 CAP 1
Em semelhante Roma ianque, como tirânica enti- “ambivalência crítica”17, o que o debate em curso,
dade antiga-contemporânea, essa Ultra-Agrippina não só no Brasil, vinha contemplando na atualização
não se apresentará na cena final. Não é necessário da conjuntura geopolítica e da oposição Periferia-
que se apresente, foi suplantada em suas atribuições. Centro18, imperialismo e condição colonizada. Aqui se
Aliás, apresentava-se já desterrada desde o 1º Bloco, faz por braços de nova população de trabalhadores
espectro-do-além, ainda que viçosa assombração ou artistas latinos de NY o jogo de dados como ritual
cinematográfica, figuração transcendental, antes imperioso — tirania transfigurada?
símbolo que alegoria; ou no 2º, quando cai na vida
e, libertando-se, submerge na circulação de quem se
A caligrafia de Hélio descrevendo com a câmera-
joga na metrópole, paradoxo do deslocar-se fazendo
ponto, enjaulada na dissipação das ruas, antes -gesto a verticalidade do olhar articulada ao circular

alegoria que símbolo — seu devir Agripina já tem algo envolvente das ruas poderia lembrar o percurso do
de caduco a partir das aparições iniciais16. Mas persiste enxergar forasteiro, de quem chega à cidade grande e
essa quintessência do imperialismo a que alude, e dá com a altura dos arranha-céus em meio às atrações
da colonização como seu jogo. Mesmo no desterro, rasteiras dos transeuntes. A sensibilidade pedestre
parece em busca do seu lugar. Persistirá ademais, no do provinciano estatelado com essa imponência das
discurso autointerpretativo de Hélio, povoando seus alturas — que parecem incólumes ao torvelinho da
textos e entrevistas de atenção relativa ao local-uni- circulação terrena — está no clichê de incontáveis
versal, no seu modo de tratar, sempre com alguma contre-plongées de arranha-céus. O caso popular de

17 – OITICICA, Hélio. “Brasil diarréia” [1973]. In: ______. Encontros. Rio de


16 – Desafio solicitado pela obra: futuros esforços aproximarem dela formu-
Janeiro: Azougue, 2009. pp.116-117.
lações de Walter Benjamin, como a imagem dialética, a mônada e a alegoria,
esta última em especial seguindo trilha aberta por Ismail Xavier: Alegorias
do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São 18 – WALLERSTEIN, Immanuel. O Capitalismo histórico. [1983] São Paulo:
Paulo: Cosac Naify, 2012. Brasiliense, 1985. p. 27.

27 CAP 1
um caipira chegando a São Paulo, no contraplano de Articular tais círculos aos edifícios percorridos em sua
Mazzaropi em close no Candinho (1953): o movimento alta extensão vertical traduz no filme determinado
de seus olhos girando em ansiedade exorbitante face localismo de Manhattan, “vanguarda da reprodução
ao ruidoso tráfego e a altura que avulta naqueles territorial”20. Basta acompanhar a história, tanto
prédios do Centro, como o do emblemático Banespa antes como depois do atentado às Torres Gêmeas21.
(flagrante emulação do Empire State Building). No 3º Traduzida artisticamente em livros como Bartleby,

Bloco de Agripina, derivando dos blocos anteriores o escriturário: uma história de Wall Street (1853), de
Herman Melville, uma cultura urbana da edificação que
a construção do olhar pelo ângulo-movimento da
o mundo financeiro produziu, se já está anunciada em
câmera se esquematizará num timing diferente. Em
meados do século XIX, o arranha-céu propriamente dito
ciclo contínuo, gestos circulares do nosso olhar indo
só nascerá em Manhattan por etapas, entre 1900-1910,
de um a outro jogador, o reiterado giro trocando de
corrida para o alto de que um primeiro arquétipo seria
corpos reproduz-se indefinidamente, como se espe-
o Flatiron22, desde então emblemático de NY, no estilo
culasse no jogo do capital financeiro ali sediado. As
reiteradas horizontais do 2º Bloco, nesse 3º resol-
vem-se no curso linear em círculo da câmera, multi-
20 – KOOLHAAS, Rem. Nova York delirante. São Paulo: Cosac Naify, 2008. p.115.
plicado, descrevendo o gesto de lançar dados; ele
21 – As “Torres Gêmeas constituem uma metáfora perfeita. Elas apontavam
pareceria voltar por vezes em sentido inverso, proli-
para aspirações ilimitadas; anunciavam grandes feitos tecnológicos; eram
ferando, fazendo que lembremos um entrelaçado de um luzeiro para o mundo.” WALLERSTEIN, Immanuel. “Os Estados Unidos e o
mundo: as Torres Gêmeas como metáfora”. Estudos Avançados, vol.16 n°46,
círculos perfazendo oitos deitados, sinal de infinito 19. São Paulo, IEA-USP, 2002, p.23.

22 – “Em 1902, o edifício Flatiron é um modelo” do processo urbano em curso,


por “sete anos ‘o edifício mais famoso do mundo’, ele é o primeiro ícone”
19 – Nos créditos das Quotidianas Kodak, de Ivan Cardoso, um símbolo do nesse ramo do “imóvel utópico”, em que a arte de construir é esta elevação
oito deitado vem como “logomarca” especialmente criada por Óscar Ramos, brutal rumo ao céu “de qualquer terreno que o incorporador consiga reunir”.
acumulando referência ao infinito e à liberdade do superoitismo. KOOLHAAS, op.cit., p. 112.

28 CAP 1
Beaux-Arts, tardio neoclassicismo eclético refundindo completa genitália masculina em riste. Outros registros
influências gregas e romanas com ideias renascentistas; rodados por Hélio na época, recentemente exibidos,
contemporâneo do Theatro Municipal do Rio. No confirmam seu interesse pela figura do Flatiron. A
seu conhecido estudo de Nova York, Rem Koolhaas pesquisa da silhueta por vários pontos-de-vista permite
nos explica que otimizando o custo do terreno numa diferenciar o apuro desse ângulo escolhido em Agripina,
área da cidade, para além do controle do arquiteto, seu escorço delineando melhor a figura da ereção
“o arranha-céu é o instrumento de uma nova forma peniana sugere-nos determinada latência simbólica
de urbanismo incognoscível. Apesar de sua solidez freudiana do fálico enquanto signo, e reforça o que o
física, ele é o grande desestabilizador metropolitano: circuito do olhar fílmico induzia em sua escritura. Se há
promete uma instabilidade programática perpétua” 23. rigor compositivo nesta construção fálica filigranada,
tratamos de um retour-à-l’ordre que pode ser criticado
ou glosado como um desenlace despirocado sob a
Com a multiplicação de círculos entrelaçados nesse 3º
égide da piroca. O fálico como lei, princípio ordenador
Bloco, ligados continuamente ao movimento vertical
que integra e comanda um universo dado, propõe
que busca a massa fálica dos arranha-céus, produz-se
uma cosmologia singular deste jogo a céu aberto,
embaixo a acumulação dos trajetos em roda descre-
cosmos ungido de enigmática significação política.
vendo os jogadores. Como esquema dessa caligrafia
memorável do olhar desenhar-se-á cabalmente a
Mas o que, afinal, restaria de Agrippina ao cabo do

23 – “A partir das demandas supostamente insaciáveis dos ‘negócios’ e do


filme? O que significaria aqui, e como dialogaria com
fato de que Manhattan é uma ilha (...) com rios de ambos os lados proibindo a personagem original? Que questões podem ser
uma expansão lateral”, é como se a cidade não tivesse escolha a não ser esse
erigir-se inarredável rumo ao alto: “apenas o arranha-céu oferece aos negó- postas e que formulação requerem? Se esse esquema
cios os amplos espaços de um faroeste criado pelo homem, uma fronteira no final se aparenta ao que se insinuava nos anteriores do
céu.” KOOLHAAS, op.cit., pp. 109-111.

29 CAP 1
tríptico, é como se víssemos por olhos agrippinianos no 3º é ela mesma, uma Roma-Manhattan como
a ação de seus sucessores? Sua presença tirânica pulverização, sublimação da tirania imperialista? Que
viu-se incorporada na nova situação? Que tirania é significação propor ao jogar dados, gesto arremate-
essa que se deixa tiranizar, depois se deixa substituir? arremedo: quê auguraria este Alea jacta est? Inscrito
Espécie de esquema decorrente dos dois Blocos no “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”, da
anteriores, configurados como tese e antítese desta escrita poética de Mallarmé, a ambiguidade atroz do
conseguida síntese? Ou sua ausência final livra-nos jogo de dados em Wall Street, entre o fazer artístico e o
por completo da forma tirânica, como se nos fazer financeiro pode contar com alguma significação
libertasse de um jugo histórico por intermédio de um política? Diante disso o que fazer? O que mesmo é,
novo jogo especulativo? A irrupção do movimento neste quadro, o próprio fazer? E que sorte poderá ter a
circular como invenção diante de uma tradição de arte dos latino-americanos24 nesse logradouro de men
verticais–horizontais não contraria o que nesta vinha at work, chapa de aço na rua em obras, inesperado
se estabelecendo? Conjugar à imponência da reta Magic Square? Praça pública pós-provincial ou
círculos derivantes sugere-nos, como nas metáforas metropolitana, pedestal de bolsas de valores cativos
reprodutoras (da vida, do capital, do poder), uma ou futuros alicerces escrotais virtualizando libertações,
reescrita da ordem tirânica em termos novos, de criações novas? Até que ponto poderíamos ignorar
superação, emancipatórios — ou simplesmente
completam a compreensão de um único processo 24 – Posteriormente Hélio disse que a arte latino-americana poderia ser iden-
tificada em duas partes: “(a) a arte colonizada (na qual eu incluo a assim
integrado, inescapável? A ruptura substancial entre os chamada arte primitiva e o pseudo-expressionismo), uma diluição total de
Blocos de Roma e Manhattan contempla a Agripina que modelos europeus, com uma implicação indígena, como a do artista regional;
(b) a tentativa de estabelecer um tipo de experimentação que se relaciona
depois se transfigura numa segunda ruptura neste 3º com as tendências da arquitetura e arte experimental de vanguarda, com pers-
Bloco, negação da negação; superação da superação? pectivas progressivas: ela coloca problemas e é mais ambiciosa (penso em
algumas experiências da arte mexicana, argentina e brasileira).” OITICICA, Hélio.
Se no 1º Bloco Agripina é Roma e no 2º Manhattan, Entrevista para Journal [1979]. In: ______. Encontros. Rio: Azougue, 2009, p. 222.

30 CAP 1
as determinações projetuais “heliocêntricas”, auto- era sintomático da atração pelo mergulho nas neuroses
interpretações de Hélio, que ao não ter exibido a obra da vida urbana que se modernizava ruidosamente no
em vida reforçaria a assertiva de obra inacabada? país. Recalcava-se de fato nas criações artísticas liber-
tárias, justo pela modernização conservadora que
Tal como vem sendo exibido o filme sugere sentidos trazia, uma nova cidade consumista, sobretudo depois
históricos exigentes, dialoga com a vida e a obra do Golpe de 64, já atravessada pelos media, tráfego,
do artista; carrega reverberações que não podem poluição. O Cinema Novo resistiu em penetrar neste
calar diante da experiência que temos da obra, e da universo, assim como a nossa melhor música resistiu
liberdade necessária da crítica imanente. Agripina ao pop e ao rock. Caso contrário não explicamos a
é insinuante em múltiplas direções. Tal imersão no explosão musical do Tropicalismo, bem como a urbe
universo estadunidense corresponde a um recalque convulsa do Cinema Marginal, ou a irônica filigrana
histórico ao qual cinema, arte, cultura brasileira do espaço público no experimentalismo superoitista
intensificavam atenções naqueles anos de crispação — dissonantes todos com a ordem posta, dando voz a
conjuntural. Seria preciso aproximar desta linha de certa vivência descalibrada do Progresso25.
tensão o paulista José Agrippino de Paula, que no
romance PanAmérica (1967, capa de Antonio Dias)
Em seu experimento cosmopolita, em suas ancoragens
trazia, em curiosa narrativa pop, uma viagem pelo
latino-americanas ou brasileiras, AGRIPINA traz algo
imaginário mundano da indústria cultural estaduni-
dense, como num desrecalque “onírico” da subjetivi-
dade encantada por Hollywood; incorpore-se aqui a 25 – Ver meus textos: Das vagas de experimentação desde o Tropicalismo:
Cinema e Crítica. In: IKEDA, M.; LIMA, D. (orgs.) Cinema de garagem 2014.
ambivalência sessentista da capitulação ao canto-da- Rio de Janeiro: Wset, 2014, pp. 79-93. As representações urbanas: Eclipses
-sereia imperialista, no livro subvertida em revelação e desrecalques do Brasil urbano em filmes dos anos 1960. In: GABRIELAN,
C.; HALLAK, F.; HALLAK, R. (orgs.) CineOP - 8ª Mostra de Cinema de Ouro
estética. Seu romance anterior, Lugar público (1965), Preto: cinema patrimônio. Belo Horizonte: Universo, 2013. pp. 46-49.

31 CAP 1
de comparável a Glauber em seu terceiro-mundismo, Nessa obra seminal do cinema de vanguarda exprime-se
seu filmar no desterro — Der leone have sept cabeças “instintivamente”, segundo Cavalcanti, a percepção
(1970), realizado no Congo, e Claro! (1974), em Roma. decepcionada de um olhar migrante porventura
Este último, tratando a cidade em que se expatriava inflacionado pela promessa cosmopolita.
especula num filme de anotações, como em diário
do exílio, sobre o cenário contemporâneo do antigo Tal simultaneísmo contraditório de Cavalcanti soará
Centro do Império, perscrutando em sua ruína histórica antípoda ao cosmopolitismo quimérico praticado no
alguma luz emancipatória para o enfrentamento dos seu país em contemporâneas chef d’oeuvres locais,
reveses políticos e tarefas do degredo. Seu filme mais como SÃO PAULO, A SINFONIA DA METRÓPOLE (1929),
próximo do manifesto que escrevera em 1971, Estética de Adalberto Kemeny e Rodolfo Rex Lustig26, calcada
do Sonho, Claro! conecta o período glauberiano do na Berlim de Walther Ruttmann; ou FRAGMENTOS DA
“Cinema Tricontinental” aos seus filmes posteriores. VIDA (1929), em que José Medina adapta conto da
Uma sessão única com o filme de Hélio nos atiçaria o Manhattan de O. Henry. Em estilos consolidados, lapi-
sentimento dessa força comum de criações que parecem dados na prática local, os parâmetros nova-iorquinos
lidar em seu tempo, e de angulações periféricas,
ou berlinenses do entreguerras são adotados sem
com semelhante gravitação em torno dos polos de
reconhecimento algum do viés ilusório desse gesto,
progresso, uma recalcada e (re)motivada atração
mas com entusiasmo característico do humor eufórico.
da metrópole. O contraponto paradigmático dessas
E o fervor desta idealidade metropolitana engendra
manifestações na história do cinema teria que recuar
uma cidade que mal repara em seus aspectos mais
meio século, encontrando Somente as horas (Rien que
les heures, 1926), o brasileiro Alberto Cavalcanti em
Paris, revertendo em vivência difícil a decantada aura 26 – Ver Cinema alemão e sinfonias urbanas do entreguerras. In: ALAMEIDA,
da Cidade Luz, desmitificada junto à visão simultânea Jorge de; BADER, Wolfgang (orgs.). Pensamento Alemão no Século XX, vol.
III: Grandes protagonistas e recepção das obras no Brasil. São Paulo: Cosac
dos excluídos, os párias da pulsação metropolitana. Naify; Goethe Institut, 2013.

32 CAP 1
específicos, sem o tempo de destilar qualquer vivência A aventura fracassada de uma Hollywood brasileira,
de espaços mal inaugurados: urbe ideológica — reve- que trouxe Cavalcanti ao Brasil como produtor na Vera
lando porém aspiração verdadeira. Metrópole essa que Cruz, veio gerar duas obras suas prospectivas de um
atraía desde os confins da Amazônia um Macunaíma, folclore urbano paulistano, Simão, o caolho (1952) e
o herói sem nenhum caráter (1928), da literatura MULHER DE VERDADE (1954), elogiadas por Sganzerla.
modernista de Mário de Andrade; ou o caipira repre- Gerou também O CANTO DO MAr (1953), que têm, por
sentado por Mazzaropi em CANDINHO, adaptado do sua vez, fonte de inspiração na mesma história sua,
de atração pela metrópole que sofre a mais distante
Cândido de Voltaire por Abílio Pereira de Almeida. A
província, para além do horizonte do mar, no En Rade
peregrinação desses anti-heróis brasileiros ganha um
(1927), que filmou na França logo após Somente as
desenvolvimento multifacetado no cinema, chegando
horas. Semelhante argumento sobre o mal-estar
à apoteótica romaria desmilinguida de ORGIA, ou O
da vida periférica faminta de oportunidades, pode
HOMEM QUE DEU CRIA (1970), de João Silvério Trevisan,
conectar estas películas à estreia de Glauber, O PÁTIO
e às raias do sublime nos filmes virulentos de Ozualdo
(1959), seu casal de namorados prostrado em náusea
Candeias como A OPÇÃO, ou AS ROSAS DA ESTRADA
diante do oceano. Desterrados no meio do nada, numa
(1981), ZÉZERO (1974) e O CANDINHO (1976) — esse
bonança do fim do mundo, como em LIMITE (1931), de
último homenageando Mazzaropi em glosa corroída. Mario Peixoto, se cotejam a outros tipos de párias, os
Todos esses personagens sugados pela gravitação da desterrados orbitários da metrópole, seja no abandono
metrópole, seu mito e economia, no caso São Paulo, da distância insondável, ou morando em sua periferia,
mesmo quando nela chegam, de fato, não chegam. O mesmo em seu próprio centro. Juntamente ao discurso
que dela esperam esvanece. É bem verdade que não ideológico da Metrópole teremos sua ausência, sua
os inspirou a nenhum deles a mesma formação douta negação, ou mesmo seu lado obscuro, as refutações
do antigo errante de Voltaire, ou de Sousândrade. diversas daquela sua mensagem de civilidade.

33 CAP 1
Dos primeiros flertes longínquos da remota metrópole Nitsche; ESPLENDOR DO MARTÍRIO (Rio, 1974), Sérgio
até a ressaca convulsa da violenta imersão em sua Péo; RELAX MÍSTICO (Rio, 1977), Giorgio Croce & Ragnar
dura realidade, um cataclismo urbano vai anunciar-se Lagerblad; O PALHAÇO DEGOLADO (Recife, 1977), e
cada vez mais áspero a partir da década de 60. Eclodirá INVENTÁRIO DE UM FEUDALISMO CULTURAL (Recife,
com os marginais. Ao longo da década seguinte vai 1978), Jomard Muniz de Britto; VITRINES (Curitiba,
exprimir-se nos lugares públicos determinada cifra 1978), Rui Vezzaro; EXPOSED (Salvador, 1978), Edgard
histórica da opressão — tal como se distingue na Navarro; GATO / CAPOEIRA (Salvador, 1979), Mário
produção independente ou no experimentalismo Cravo Neto; FABULÁRIO TROPICAL (Recife, 1979), e A
superoitista. Neste, desde o momento da captação ESPERANÇA É UM ANIMAL NÔMADE (Paris, 1980-1981),
das imagens registram-se parâmetros sensíveis de Geneton Moraes Neto; AMSTERDÃ ERÓTICA (Amsterdã,
motivação no acionamento da câmera e compor- 1982), Paulo Bruscky 27.
tamento de quem filma. Pode ser acompanhada ao
longo da década sua evolução circunstanciada pelo A cidade que cintila nestes filmes risonhamente difíceis
que seria mais empiricamente filmável nestas condi- negaria algo de um espaço-tempo existente, lugares
ções, sobretudo na apropriação dos espaços abertos, a de pseudo-cidadania, urbanidade administrada pela
descoberta de seu teor cotidiano-existencial, público, ditadura e meios de comunicação. Ampla gama de
político. Recorrente na produção mais radical, uma experimentos começa a pipocar ironicamente na
expressividade se constrói em glosa, ironia ou ataque
simbólico aos monumentos culturais dispostos no
27 – Ver a propósito meus trabalhos: Marginália 70: o experimentalismo no
espaço urbano. Verificam-se em provocações diversa- Super-8 brasileiro. São Paulo: Itaú Cultural, 2001. O Pátio e o cinema experi-
mente, da celebração crítica ao pesadelo poético, da mental no Brasil: apontamentos para uma história. In: CASTELO BRANCO, Edvar.
(org.) História, Cinema e outras imagens juvenis. Teresina: EDUFPI, 2009. A expe-
execração distanciada à esculhambação ditirâmbica, rimentação cinematográfica superoitista no Brasil. In: AMORIM, Lara; FALCONE,
em filminhos Super-8 como: SUPERFÍCIES HABITÁVEIS Fernando Trevas. (orgs.) Cinema e memória. João Pessoa: Ed. UFPB, 2013.
Disponível em: <http://cinepbmemoria.com.br/wp-content/uploads/2013/09/
— MEMORIAL 2 (São Paulo, 1974), Flávio Motta & Marcello Livro-Cinema-Mem%C3%B3ria-_-Vers%C3%A3o-Digital.pdf>.

34 CAP 1
forma controversa de agit-props obscuros. AGRIPINA É CINUSP. Agrippina é Roma Manhattan +
ROMA-MANHATTAN os antecipa, resume e ultrapassa. Debate, 2017: http://200.144.255.199/
Fala provocativamente de um Novo Centro do Império mostra/2017/11/brasil_em_transe/filme/
com recursos mínimos, pertinência visionária máxima, agrippina_e_roma_manhattan_debate
mobilizando passado, prefigurando futuro — reescreve
a seu modo a Estética da Fome, como se por inter-
médio da Estética do Sonho. De diferentes gerações de FILMS, Machine. Agrippina é Roma -
reflexão periférica sobre o centro, seus personagens Manhattan (Hélio Oiticica & Neville de Almeida,
circunstanciados insinuam-se por tradições que 1972). In: YOUTUBE: www.youtube.com/
atravessam o esforço “coletivo”, tenaz engajamento de watch?v=UCByOoBQCrs&ab_channel=MachineFilms2
Hélio na ideia sartreana que ele contemplava reitera-
damente a seu modo e carregava para um mundo em MUBI: https://mubi.com/pt/films/
latente irrupção. Sua obra parece elevar-se contudo agrippina-e-roma-manhattan
para além do universo que a formou.

PINTEREST: https://br.pinterest.com/
* REFERÊNCIAS (SEPARATRIZ ) pin/282812051580064141/

*Composição visual da abertura do capítulo gerada a RIO, MAM. In: FACEBOOK, 2020: www.facebook.
partir de cenas do filme AGRIPINA É ROMA-MANHATTAN, com/483328575052547/posts/3833178933400811/
de Hélio Oiticica. Imagens disponíveis em:

35 CAP 1
1 – Artigo que tenta, de passagem, um tipo de análise e prestar home-
nagem ao cineasta - in memoriam.
2 – Professor do curso de Cinema e Audiovisual da UFS – Universidade
Federal de Sergipe, Mestre em Imagem e Som pela UFSCar – Universidade
Federal de São Carlos, especialista em ética e epistemologia pela UFS,
publicou o livro Existencialismo e Crítica no Cinema pela EDUFS.
Levantamos aqui alguns problemas que, à primeira datada. Os ramos “metzianos”. Porém, quando há
vista, são próprios de qualquer análise fílmica, como um levantamento dos estudos de obras que estão, ou
o uso do texto fílmico, sua apreensão e aquelas ques- ecoam limites e estratos do campo da literatura, e de
tões que extrapolam tal objeto. Em palavras simples: obras literárias que podem fazer analogia às imagens
o ponto da sua recepção3 e uma imagem produzida e aquelas estruturas pertencentes ao filme - também
em significações a partir do filme e o que ele pode críticas e documentos da época em que o que se
representar dentro de um conjunto de obras. O filme chamou de texto fílmico se produziu - , percebe-se que
documentário, portanto, como mediação histórica e essa distinção metodológica entre análise e recepção
cultural, e conteúdo historiográfico. encarece uma visão fragmentada do próprio texto.

Certamente os estudos da recepção estiveram em, É como se o texto não fosse composto, também, a
digamos, outro campo, em outra esfera, e aparen- partir das leituras que se fazem dele, e não houvesse a
temente desenvolveram-se como um ramo distinto etapa de “criação pós-texto”. Esta deixaria a comple-
da análise. Associa-se aos estudos culturais, tal dife- xidade da apreensão à parte de um olhar mais identi-
rença – nos quais os textos adornam uma espécie de ficado com uma unidade do filme (ou o citado apego
percepção mais social daquele conteúdo que assis- ao texto, sua notação, sua objetiva organização em
timos. Ressaltar enfaticamente que a análise deve aos produção). Encarando o filme como uma notação,
estudos dos ramos “lingüístico” ou “narratológico” do ainda que da impressão de realidade – tal como
cinema, hoje em dia, parece ter um tom de pesquisa tentou a semiologia, herdeira das motivações feno-
menológicas - , a probabilidade da interpretação
associa-se ao que a crítica prometeu, caso que dá
3 – Seguindo textos de Janet Staiger, Barbara Klinger, Martin Barker, Thomas o ar necessário à junção, mesmo que específica, da
Austin, Edward Buscombe, como também dos vetores indicados pela revista
Screen, a chamada screen theory, e autores como Laura Mulvey, Colin MacCabe, análise e recepção em um estudo de caso. A recepção,
e, como influência, Roland Barthes.

37 CAP 2
neste momento, dá novos ares (e uma possibilidade Extraímos primeiramente duas seqüências do filme
mais ampla do significado procurado pelo analista) Serras da Desordem, do diretor AndreaTonacci5, isolando
ao que um dia foi a intencionalidade. assim alguns aspectos morfológicos comuns à análise,
para chegarmos à questão principal deste artigo.
Lembrando que o personagem deste filme, protago-
Fato é que tanto uma opção como a outra lidam
nista, pode encarnar o histórico papel do “outro” único
com o filme. Metodologicamente, o artigo a seguir
da cultura originária latino-americana, como também
tenta observar as ressonâncias que a imagem do
da pessoa que identifica-se como um brasileiro român-
filme possui justamente nas possíveis análises
tico – excluído, periférico, a identidade mítica forma-
críticas (usando o ramo de estudos da literatura,
dora do povo nacional, um simbolismo em questão.
da sociologia, da antropologia) acreditando que
análises e estudos confirmam o caráter amplo da
imagem e seu fenômeno que pode ser chamado de Vejamos as cenas destacadas:
cultural – mesmo que se prefira, aqui, chamá-lo de
uma ressonância da ordem do imaginário4. Há uma 1a sequência – o personagem indígena, Carapiru,
herança cultural das artes que toma a frente do texto chamado de Awá, tenta subir num cavalo sem cela
fílmico, nos mostrando o quanto é incipiente uma ajudado por alguns personagens do ambiente sertanejo
discussão que tente a completude da análise fílmica baiano, estância onde foi encontrado na sua andança
textual. E uma persistência da arte, numa análise, nômade de uma década – esta que é reconstituída
atualmente tem tido a psiqué tradicional como pelo filme. O personagem está ali em busca de refúgio.
horizonte de informação, de conteúdo.

5 – Na época que este artigo foi iniciado, Tonacci teve a gentileza de discutir
4 – Interessante notar a influência da psicanálise em estudos da recepção, alguns pontos pessoalmente numa espécie de entrevista. Infelizmente o diretor
como também se observa na teoria de Christian Metz. não teve oportunidade da leitura, deixando essa nossa conversa em memória.

38 CAP 2
2a sequência – A relação entre o personagem e o São duas seqüências em que o personagem demonstra
universo sertanejo é visualizada de uma maneira uma espécie de inadaptação, aprisionamento a um
parecida com a que existe também entre Carapiru e contexto maior, do qual obviamente ele, indígena,
a cidade de Brasília – na casa do sertanista6 Sydney não faz parte. Na proposta do filme, tanto na primeira
Possuelo. O personagem principal do filme não se quanto na segunda seqüência a presença da equipe
adequa ao universo fechado do condomínio, nem ao não diretamente evidenciada impõe-se como tônica.
ritmo e à vida urbana. Embora esta equipe de gravação não se evidencie, tal
como se percebe na discussão proposta por Bernardo
Teodorico7, há o dispositivo comum a todo o filme
6 – Sertanismo, aliás, ainda é um termo que produz confusão. Em determi- que se faz crer como ficção, no entanto, distancia
nada época empregava-se a qualidade àqueles que penetravam no interior
do Nordeste e parte do Centro-Oeste, até o Norte, em conformidade geral o espectador em seu nivelamento de um caso de
com a ampliação de terras para o plantio de monoculturas e para a criação
de gados (pecuária). Atualmente, principalmente a partir das investidas
de nomes como Marechal Rondon e diversos pesquisadores estrangeiros,
como Curt Nimuendajú, Theodor Koch-Grünberg, Hermann Meyer, Marquês
de Wavrin e principalmente dos irmãos Vilas Boas, sertanistas pertencem 7 – SOUZA, Bernardo Teodorico Costa. O Vai-e-vem em Serras da Desordem.
também à classe de etnógrafos ou etnólogos. Passagens. v. 1, n. 4, 2013.

39 CAP 2
documentário falseado. Segundo Bernardo, a equipe * O DRAMA LITERÁRIO E O MITO DE FUNDAÇÃO
que realiza as filmagens encontra-se em uma das
histórias do filme: a do próprio filme sendo gravado. Entende-se aqui a imagem como aspecto funda-
Continua, portanto, o método típico dos filmes de Jean mental da narrativa fílmica, podendo ela ser atrelada
Rouch, de uma parte do cinema vérité, cuja “verdade à palavra, ou a sentidos que se cruzam dentro de

no cinema é a verdade do cinema”. A instituição determinado contexto, como faz a teoria do cinema
que se aproxima à literatura mais “étnica”, a saber,
Cinema, portanto, sendo exposta, em outros termos.
por exemplo, na tentativa de Pasolini. Não somente
Máxima que nos destaca na contemporaneidade o
na concepção do cinema como prosa e poesia: mas
caráter expressivo de um questionamento histórico
do cinema como um relato empírico do mundo e da
do aparato de filmagem, da gravação da realidade,
História em seus conflitos culturais.
da chamada “impressão do real”, da escritura do
real, da técnica do cinema e audiovisual, dos, enfim,
modos de se tratar o filme para espectadores não É preciso aqui entrar numa introdução aos conflitos
de ordenamento mais amplo, ou seja, do social –
mais inocentes de que aquilo que se vê na tela, écran,
trocando a lupa da análise.
screen, seja tão verdade quanto o que se vê numa
narrativa da vida – ponto controverso...

* O HISTÓRICO
Guardemos a presença da equipe como importância
para compreendermos o papel da construção narra- Povo Awá e Sertanejos8. São dois confrontos de
tiva textual do filme após o conteúdo histórico, aquele territorialidades, comportamentos, construções de
mencionado em sua narrativa através dos usos da
imagem e seus repertórios carregados de motivos. 8 – Distinção de universos observada também com muita atenção e tempo
em um filme chave de Andrea Tonacci, Conversas no Maranhão (1983).

40 CAP 2
identidade apoiados no chão da sociedade, conhecidas forte, exemplo do militar caboclo que viria mais
no território nordestino do Brasil. Entre uma cultura tarde se ocupar da vestimenta. O diálogo entre
que praticamente extinguiu em memória e hábitos o essas esferas, numa ótica geradora de uma herança
modo de viver chamado “indígena” - que chamamos conflituosa, dá-se entre: o campo do mercantilismo
aqui com um pouco mais de precisão de: “cultura servil europeu, pró-colonialismo e monocultura na
dos povos originários” ou “povos tradicionais”9. colônia; e uma série de vidas anteriores à colonização,
Os grandes sertanejos foram na literatura, e são, essas chamadas tribos indígenas, que percebiam e
continuadores de uma criação da monocultura pertenciam ao território, a seu habitat nômade. Alfredo
animal e, por vezes, vegetal, com proporções Bosi, descrevendo de modo incisivo a construção
de alheamento ao que povos originários teriam mitológica através da literatura, exibe a dialética
construído através dos tempos dentro do território criada pela critica literária nos seguintes termos:
brasileiro. Genocídio étnico. Um “campesinato forte”
é visto em comentários de Euclides da Cunha sobre O mito é uma instancia mediadora, uma cabeça
o pequeno sertanejo herdeiro do camponês criador bifronte. Na face que olha para a História, o mito
de gado, porém, com a insensibilidade comum à reflete contradições reais, mas de modo a conver-
tê-las e a resolvê-las em figuras que perfaçam, em
vida dos povos originários, estes que são idealizados
si, a coicidentia oppositorum. Assim, o mito alen-
em exagero pelo mito do bon sauvage ou rejeitados cariano reúne, sob a imagem comum do herói, o
pela persistência do olhar consumador do exotismo colonizador, tido como generoso feudatário, e o
conhecidos anteriormente no romantismo. Afinal, colonizado, visto ao mesmo tempo como súdito
foi na escola do romantismo que se cunhou o ídolo fiel e bom selvagem (BOSI, 1992, p. 180).

mítico fundador de uma nação, o selvagem também

O mito alencariano alude à falta hipotética de algum


9 – CUNHA, Manuela Carneiro. Etnicidade: da cultura residual mas irredutível. conflito sangrento no histórico de tradições – o tradi-
In: ______. Cultura com Aspas. São Paulo: Cosac Naify, 2009. pp. 235-244.

41 CAP 2
cional acordo sob a cultura dos favores, de um perso- quesito que envolve o conflito “sertão” e “selva”10, no
nalismo cordial entre os marginalizados. Se o conflito ponto de vista do personagem Campelo, fazendeiro:
surge, é um dado histórico. Trata dos dois universos
– tanto a sociedade do sertanejo quanto a dos povos Da perspectiva do fazendeiro, o índio é uma
originais do território (no caso do filme citado, o Awá). ameaça que deve ser eliminada ou, na melhor
das hipóteses, um elemento exótico, no
Na literatura, o mito heroiciza o indígena, proporciona
mesmo nível de um animal ou qualquer outra
um tipo de fundação simbólica deste ícone imagético- “curiosidade do sertão”. Na brutalidade da
-textual que, no modernismo, chegaria a ganhar certa sua ação, pode-se entrever toda a violência da
conquista, aspecto que havia sido ocultado no
roupagem mais alegórica e desconjuntural. O filme de
relato da ocupação do sertão pelos primeiros
Andrea Tonacci parece dar um passo atrás de como se fazendeiros (MARTINS, 2011, p. 65).
encarou o mito de fundação, até mesmo, em alguma
medida na ironia, pelo modernismo paulista. Por tal
Estamos por enquanto no terreno da literatura, e já
inflexão tão profunda, não entramos aqui nestes deta-
observando alguns termos que julgam em medidas
lhes. Importante é mencionar que, especificamente
éticas o teor social do texto escrito, e não somente o
na literatura, também criadora de imagens e imagi-
significado apreendido, elencado, expresso no texto,
nários, houve uma fonte do conflito a ser filmado.
como há na crítica literária a algumas obras, tais como
o romance O Sertanejo, de Alencar. “Exótico”, portanto,
Quando traz à tona José de Alencar e seu romancea-
em sua própria terra por não ter construído estru-
mento de realidades, o pesquisador da USP Eduardo
turas fincadas e engenharias associadas à civilização,
Vieira Martins confirma um tipo de tradução encam-
pada pelo escritor romântico, justamente sobre este
10 – O caso do filme as Serras do interior central do país, identificadas pelo Mato
Grosso, Goiás, Tocantins até o Maranhão – o misto das paisagens é elemento
do território identificado como o que abriga os povos indígenas na atualidade.

42 CAP 2
vivendo no materialismo de um pensamento concreto, portanto. Continuando o conflito pouco citado pelas
o então chamado “índio antropológico” era expulso, mídias, estas que elaboram hoje o que se imagina
expatriado, exterminado, excomungado, expelido das sobre o real, o filme coloca como tema não somente
formas de pensamento trazidas da Europa11 – se não a deambulação desinteressada do personagem
conseguisse adequação. Algo que continua, em se principal. Ele absorve o herói icônico ecoado em
tratando das imagens, está na violência tratada por forte ressonância pela investida de uma literatura
Alencar em seu estilo criador de manejos e olhares romântica e subverte seus significados pouco a pouco,
sobre o que se entendeu e se entende por História no num formalismo modernista - e desconstrutivista.
Brasil. No livro do autor romântico, o sertanejo, asso-
ciado ao controle mediante violação arregimentada
Há, muito além da presença de povos tradicionais e
através das entradas ao interior do país, era capaz de
originários, um diálogo próximo com a vida indígena
aprisionar os “selvagens ferozes” em gaiolas, uma das
que persiste hoje – longe da paisagem da floresta e
violências que persistiriam no imaginário permeado
selva. A respeito do caráter exótico, na contemporanei-
por terror quase presente da tortura institucionali-
dade não há somente o olhar violento dos séculos XVI
zada, policialiesca, e que é “visto” no romance citado.
a XIX – há também um novo tipo de entrada sertanista,
A paisagem e geografia que confirmariam este tipo de
a motivada pela curiosidade, que provoca no encontro
tortura normalizada, a saber, seria o Sertão, as Serras.
inicial um tipo de conversa histórica diferente, na
chave do hibridismo e das misturas de percepções,
É também este o ambiente que efetiva a chacina no olho no olho. Este encontro também é notado poste-
início do filme Serras da Desordem – não por acaso,
riormente na aceitação de Awá pelos sertanejos, como
por Possuelo, em sua naturalidade – singularidade.
11 – A esta discussão, o livro que serve como fonte SHOHAT, Ella; STAM,
Robert. Crítica da imagem eurocêntrica: multiculturalismo e representação.
São Paulo: Cosac Naify, 2006.

43 CAP 2
A subversão textual de romances modernistas, ou ibérico no Brasil, também segundo o pesquisador
referentes ao movimento, como Macunaíma (Mário Eduardo Vieira, ela persistiria no imaginário segundo
de Andrade), Cobra Norato (poesias de Raul Bopp), as leis da notação escrita. Não se fala aqui em uma
Quarup e A Expedição Montaigne (Antônio Calado), paisagem distante de referências, como se observa na
Maira (Darcy Ribeiro)12, Ua: Brari (Marcelo Rubens critica literária que se assumiu pelos estudos cultu-
Paiva) e uma outra diversidade mais contemporânea rais em diversos países. Neste ponto cabe um prolon-

com escritores dos próprios povos se auto-codifi- gamento a respeito do imaginário local absorvido e
enunciado através de obras literárias e seus temas,
cando, mostra como o mito do herói indígena (ou
teores, envolvimentos. Principalmente, como ele
híbrido, confrontado com a cultura ocidental) não
persiste com seus signos muito bem delineados, quase
estaria mais naquela aventura positiva, afirmativa,
icônicos, em uma normatividade do entendimento
oficial, junto à criação de valores nacionalistas. Com
da história. A escrita, mesmo que ficcional, portanto,
isso haveria um ganho na abertura para um diálogo
como um documento de, se não “como era vista a
mais franco entre escritor, realizador e personagem.
sociedade” em determinado tempo, de “como ela era
interpretada” naquele tempo, ou “até onde se acredi-
* IMAGEM, PERSONAGEM
tava ser verossímil” - algo elaborado com certa crítica.
Como um esquema rígido, à maneira de um projeto,
Refletindo acerca de um invólucro social que torna
ou como uma derivação fenomenológica dos estudos
objetiva a perspectiva de um ponto de vista narrativo,
de signos nos estatutos da semiologia, o imaginário
o conflito social, neste sentido, adorna com seus signi-
não romperia com aquilo que foi imaginado – e, conve-
ficados o modo de produção da obra que quer narrar.
nhamos, é a “imaginação”, também, o verbo cinema-
Ainda sobre a violência de um processo de colonização
tográfico (imagem + ação) que se utiliza do drama-sen-
sório-motor como estrutura. A perturbação do real e
12 – Título que por coincidência possui um protagonista com o mesmo nome
do filme de Tonacci: Awá.
sua ambigüidade, ação freqüentemente atrelada a

44 CAP 2
uma geração recente, século XX, tira a localização trata do real, o texto se dissolveria como a escrita
precisa do significado apreendido. Mistos de gêneros se tumultua ao lidar com o improviso. Na ciência de
(genders), de gêneros (genres), de personalidades um cinema desconstrutivista ou “de arte”, ao qual
(hibridizações), de “etapas” históricas, de culturas, Tonacci teria seu nome associado, a ideia implicaria
de perspectivas, territórios e paisagens imaginadas também desativar a linguagem e reativar a percepção
(como as comunidades de Benedict Anderson), criam de certos mecanismos. Para ajudar a compreender
o que o real, junto ao realismo cinematográfico e todos esta linha de raciocínio, Jean-Patrick Lebel em seu
texto que pauta a ideologia da imagem, confirma a
os seus problemas que permitem fruições contempo-
linguagem cinematográfica como separada de outras,
râneas que envolvem o problema da biopolítica e da
ainda na década de 70, porém, condicionada à ficção
inscrição do corpo dentro do mecanismo de controle e
espetacular. Tonacci surpreende aqui no que se vê em
inscrição do campo fílmico instituído.
Serras (...), propondo a desilusão, pois, desconectando
o real através de uma ficção usada como pretexto:
No entanto, mesmo a noção de filme está, em inúmeros
escritos, atrelada ao texto e suas significações – ao
De um modo geral o facto de se exibir a “maqui-
modo de Metz, e de uma teoria já compartilhada naria” do cinema não implica necessaria-
por escritos da Cinéthique, que encaravam no texto mente um efeito de distanciação; isto só pode
fílmico também um material a ser decomposto e suceder em função do contexto deste processo,
determinado por outros elementos do filme.
codificado (ou classificado) -, fato que auxilia em
Inversamente, esta exibição pode contribuir para
determinados aspectos, tal como a linha condutiva reforçar a fascinação acrescentando à exercida
permanente que se afirma desde a escrita do roteiro pelo filme a que é produzida por aquela apare-
até mesmo à montagem: edição de blocos narrativos. lhagem “misteriosa”, “mágica” do cinema, ou,
simplesmente testemunhar um espanto ingênuo
Com cuidado, no entanto – principalmente quando
perante um novo brinquedo mecânico (é o que
o objeto é um documentário. No momento que se sucede com o “novo cinema”) (LEBEL,1972, p. 48).

45 CAP 2
Vamos por partes. Ao tempo que o texto escrito estaria desconectando-se de uma imaginação produzida e
documentando o real, ele o significa, dota de cultura, engrossada historicamente e, enfim, re-elaborando a
também o condiciona ao imaginário histórico como se pessoa em foco, vista como o “herói do filme”. Andrea
fosse ato mecânico e magicamente do instituído pelo Tonacci discorre a respeito desse uso que faz da imagem
cinema. Porém, a imagem, no filme, ao contrário do de Carapiru e de outros povos chamados indígenas -
que se concebe em uma criação conjunta, social – ela e também a respeito da instituição cinematográfica:
não condiciona. A imagem, efetivamente, é operada
através da linhagem dos afetos, e produz o estra-
Com o tempo eu percebi que essa tecnologia
nhamento necessário para que se encontre, no caso é mais um instrumento nosso de dominação
analisado, um outro “índio” histórico revitalizado pelo sobre a cultura do outro. Se a cultura do outro
filme: aquele, afinal, que se recusa a ser o romantizado não gerou esse instrumento de reprodução de
e mágico, simbolizado, em sua elaboração; que vive em imagens, somos nós que estamos ditando a ele
uma forma de ser, uma forma de representar.
anti-clímax narrativo; que, na mais profunda e fiel apre-
É como o domínio de uma língua de um povo
ensão, não é índio – nem pelo motivo do desencaixe sobre outro. Produzimos uma linguagem visual,
no imaginário concebido, muito menos pelo “título ou audiovisual, que é a dominante. E esses
étnico”, visto hoje como inadequado aos povos inte- povos, pelo menos os índios, não têm nada a ver
com isso (TONACCI, et al, 2011).
riores – e que tem um contato constante com o realiza-
dor-diretor das imagens. Seria um novo personagem,
na linha condutiva dos mitos de fundação (caso essa Percebe-se na fala de Tonacci os problemas aqui
chave ainda apareça na discussão sobre a cinemato- elencados: a mediação tecnológica do cinema, o
grafia “nacional” e criadora de imagens contempo- controle que se expõe nessa mediação, a associação
râneas). A relação próxima entre cineasta e persona- da imagem cinematográfica à língua (portanto à
gem-pessoa, este criado evidentemente também para literatura-cultura, problema que perpassa a língua
refletir uma relação, permite essa operação emotiva, cinema que cita Pasolini). Seria necessário para que

46 CAP 2
esta relação de dominação da máquina e de sua O outro aspecto desta imagem realizada através do
potência criativa fosse relativizada. Dois pressupostos: jogo entre aparato e personagem real é o histórico
discursivo, salientado aqui mas não dissociado entre
1 – evidenciar, portanto, o mecanismo de gravação durante
formatos narrativos. Se encaramos o encontro de
o filme, ainda que este dispositivo já tenha sido adaptado
Carapiru com a família sertaneja, nos frames que
à instituição cinematográfica;
destacamos no início deste artigo, na Bahia, como um
encontro de culturas extremamente distintas, o Sertão
2 – dar ao próprio sujeito filmado a possibilidade de guiar
(sertanejo) e a Selva (selvagem), o diálogo poderia ser
o filme (seja com a câmera, ou com a condução narrativa
visto como também impossível – uma cultura na língua
de seu improviso roteirizado).
portuguesa (linguagem dominadora), outra na língua
É, enfim, isso o que se vê em Serras(...). Guajá; uma na intenção herdada em conjunto para a
exploração da terra e dos animais, outra na afirmação
mais isolada e em simbiose com o ambiente; uma
No filme, Carapiru concorda ser ator de si mesmo, ence-
social, familiar, opressiva e patriarcal, outra ainda
nando friamente algo direcionado, servindo de modelo
para o diretor num jogo. Ao mesmo tempo, neste jogo, comunitária e sem caráter dominador; uma encarada

o ator-personagem representa algo irrepresentado, ou como mais elaborada pela civilização ocidental
seja, algo até então não visto sobre o acontecido após que se impõe aos povos, outra tida como primitiva.
a chacina real dos Awá-Guajás. Também porque diante Porém, apesar da quase impossibilidade, vê-se uma
da máquina de registro do filme, Carapiru atende ao cultura tocando a “outra”, analisando, observando,
chamado cinematográfico sem saber realmente o que vivenciando, absorvendo, entendendo suas qualidades
aquilo pode representar – para ele e para o espec- semelhantes e aceitando, aparentemente em paz, suas
tador (talvez mesmo nem para o diretor e a equipe). diferenças. Neste caminhar do jogo, o aquilo existiu da

47 CAP 2
imagem real (ou da impressão de realidade, conceito * DOCUMENTÁRIO ROMANESCO 13
adotado aqui momentaneamente), falseado, deriva-se
de um roteiro que tem intenções de apresentar o Em geral, romancear o gênero documentário seria
choque, uma crise. O “real” desta potência falsa nos também lidar com a dramatização, ou, artifícios do
tira da distinção, da ruptura, e nos põe em pé de drama na construção fílmica do real. Mas, princi-
igualdade, deslocando o provável distanciamento palmente, encarar a câmera-stylo (câmera caneta)
provocado pelo encontro de diferenças - essência da produtora de certos textos, certa linguagem, certa
reconstituição feita por Tonacci do encontro ocorrido mise-en-cadre ao se produzir um filme. Ismail
no passado, filmado como numa memória viva. Xavier, sobre Serras(...), fala do personagem com o
teor adotado aqui neste artigo:

Afinal, a que situação esse tipo de encontro, que de


Aí, o personagem já não é, ou é algo mais do que
lúdico passa ao íntimo, pertence? O paradoxo de distan-
o singular Carapiru. É a figura que remete a uma
ciamentos elaborado localiza qual cultura na afecção
condição geral do índio, aí mediada pelo aparato
provocada? A resposta para as duas perguntas parece do cinema que vale por outros aparatos de
ser nenhum(a). Para compreender o impacto da reali- controle, é também a figura que recolhe aquilo
dade deste jogo cabe a nós voltarmos ao romancea- que de si próprio o cineasta projeta ao compor

mento, ou ficcionalização textual escrita, e visualizar o deliberado espelhamento (XAVIER, 2008 apud
CAETANO, 2008, p. 19).
a difícil, se não inexecutável, obra escrita que conse-
guisse desenvolver o falseamento da reconstituição
proposta pelo quase-documentário em questão.

13 – A citar GAUTHIER, Guy. O documentário – um outro cinema. Campinas:


Papirus, 2011. pp. 120-122.

48 CAP 2
Se no romance a objetividade procurada estaria no mados da indústria cinematográfica dentro desse
realismo, e assim se caminhou até meados do século componente. A história, o narrar pungente, a força
passado (XX), no cinema esta técnica ganha mais vigor temática, tudo isso é literário, e adaptado ao filme – que
devido ao aparato de gravação, de “efeito janela”, da não parece querer se decidir entre um gênero de ficção
busca pelo realismo (real gravado). Polêmicas à parte ou de documentário. Alia-se, portanto, à narrativa lite-
a respeito desta noção, ali no quadro está “o que rária teleológica e condiciona esta à fragmentação da

existiu”, e isso é inevitável. Tonacci compõe a edição procura, do tateamento, da descoberta de uma subje-
tividade ainda vista como novidade. O personagem
segundo um discurso que segue uma condução narra-
real, no filme, permanece intacto ao seguir o roteiro.
tiva, estruturando planos em finalidade de uma tele-
ologia – ainda que abstrata, ou fluida em seu impro-
viso captado. Poderíamos descrever a história real Ainda que as relações entre o documentário e alguns
do filme como a reconstituição da vida de Carapiru, artifícios de criação literária sejam vistos como um
uma espécie de protagonista, herói romanceado (ao tipo de associação incongruente, tentando aliar duas
menos momentaneamente, em casos de análise). esferas a priori impermeáveis uma a outra, ao se
tratar de um filme e sua observação textualizada, algo
sedutor parece brilhar neste tal método.
Se a ficção dele, ali sendo real, não está de acordo
com algo que realmente aconteceu, o filme se torna
exatamente isso, um falseamento proposital – com A critica foi feita ao tipo de análise que previa essa
finalidade de encenação, contudo – de uma situação textualidade, e bem resumida por Arlindo Machado
conflituosa real. Awá é ator, no filme, ainda que não em seu ensaio “A crise da enunciação”, (MACHADO,
encarne nada alem dele próprio. Ser ator de si mesmo, 2007, p. 127) retomando o que foi mencionado à insti-
um actante, não seria um atributo, qualidade única tuição e ao aparato cinematográfico desconstruído
do guajá que encena. Vemos em diversos atores reno- para o cotejamento do espectador contemporâneo,

49 CAP 2
ou pós-moderno, aparentemente ávido por uma condicionamento da imageria ao longo dos tempos.
elucidação dos meios e instrumentos da construção Quando se fala em “paisagem” no filme, lembra-se
narrativa. Para ele, um vetor forte no cinema é o prin- logo, portanto, da imagem pictórica ou da foto-
cípio de imersão, artifício que em uma cultura da era gráfica. Porém, há o amálgama de significados que
eletrônica do vídeo e da cibercultura (respectiva- circunda o visível – passível também, ou talvez, aí
mente) seria desenvolvido pelos meios de produção sim, de significação para estabelecer modelos histó-
e técnicos. Há que se lembrar que este artigo trabalha ricos. Alongando a noção de uma prosa da paisagem,
uma espécie de tipo social, elaborado pela literatura, Anne Cauquelin (2007, pp. 155-156) diz que:
posteriormente pelo cinema, logo após pelos dispo-
sitivos contemporâneos de mediação.
Estão ali o que nomeamos como “lugares”, os
famosos topoi da retórica, os objetos necessá-
rios à constituição de um conjunto argumen-
Na verdade, a falta do envolto de um contexto histó-
tado. Seguimos a propensão de uma reminis-
rico nesta análise deixaria o “texto” fílmico distante da cência contínua, ao mesmo tempo em que
parole visual (mais uma vez uma evocação ao “cinema” pensamos estar diante de dados primitivos de
pasoliniano), da invenção objetiva determinada por sentidos. É que, por trás da constituição dessa
olhares dotados de singularidade, de uma paisagem paisagem concreta, sensível, atua uma tópica
particular: a dos panegíricos, compostos em
social que circunda e ecoa a imagem como um espectro
louvor à natureza. O laus – o louvor – é um exer-
que propicia – e exemplifica – o processo de criação. cício que, por meio de topoi específicos, canta a
bela e prazenteira natureza.

A questão envolve muito mais que o domínio cinema-


tográfico, pois entra também nos temas e estruturas Só lembrarmos dos dois lugares mencionados ao
gerais da literatura, da encenação dramática, nos início: o Sertão e a Floresta (ou Selva). Lugares total-
frames históricos e seus modos de operação, num mente antagônicos topograficamente. Mas, além da

50 CAP 2
cultura, ou melhor, dentro dela própria, o ambiente mesmo Cinema Novo (Macunaíma, Joaquim Pedro
simboliza a atuação do homem (personagem, herói). de Andrade, 1969; Como Era Gostoso Meu Francês,
Não que a “paisagem natural” tenha sido inteiramente Nelson Pereira, 1971; Pindorama, Arnaldo Jabor; 1971)
inventada por esta atuação – ainda que se perceba a assume a utopia abstrata que a paisagem pré-colo-
influência. Porém, o olhar incisivo sobre tais lugares nizada exemplificava. Em outro caminho, a Floresta
confirma a hipótese de esta construção da paisagem deu ao entusiasmo utópico – em tempo de guerrilha

ser algo criado, esquematizado. O que se coloca aqui no social – a paródia necessária do desencanta-
mento, no vetor que o eco romântico persistente em
como ponto que se desenvolve, também, é que no
evocação mitológica permitia. Andrea Tonacci, como
cinema estes ambientes estão além da vérité, ou da
diretor atrelado ao meio marginal paulistano14,
verità, pois o ambiente possui inevitavelmente esta
uma espécie de Cinema Novo tardio ou póstumo,
carga imaginária que é evocada através justamente
coloca como tema justamente o encaixe entre os dois
do que se imaginou sobre ele – o louvor de Cauquelin
universos – sertanejo e selvagem - , adotando a crítica
num vínculo com a contemplação (sight) da recepção.
consciente ao imaginário colonizador.

Se por um lado o Sertão teve uma carga revolucio- Afinal o “contexto” histórico de uma espécie de
nária na tríade cinemanovista do início da década de genética do controle através do olhar que percebe a
60 (Vidas Secas, Nelson Pereira dos Santos; Os Fuzis, paisagem herdada de um processo colonial, além de
Ruy Guerra; Deus e o Diabo na Terra do Sol, Glauber
ser parâmetro importante para identificação do regime
Rocha – todos exibidos em 1964) exemplificando a
estético e uma espécie de sistema de regras sociais
tese da colonialidade interior ao processo social que
se desenvolvia contemporaneamente ao contexto de
filmagem, a Floresta, encenada num outro contexto
14 – O diretor já havia proposto a paisagem selvagem em Blá, Blá, Blá, numa
da tentativa de industrialização “tropicalista” do associação à guerrilha distante do ambiente urbano.

51 CAP 2
propostas na relação entre autor (criador), obra e Awá, portanto, personagem do sonho porvir, é
espectador (leitor), é também uma ambientação que instantaneamente acomodado pela instituição
co-relaciona forças, poderes da ordem do significado, cinema da maneira disruptiva, a que nos colo-
tal como vimos aqui neste artigo. A conexão proposta caria, como espectadores, no papel de observa-
entre literatura e cinema sempre tangencia o tema dores do conflito entre imaginários que se evoca.
do “texto fílmico”, mas raramente entra nas ques- O conflito é social. O confronto, no filme, aliás,

tões da chamada teoria da enunciação no cinema. não aparece. Seria, talvez, para Tonacci, obsceno.

Fica, portanto, nas discussões temáticas, impor- ***


tantes, mas redutoras e problemáticas na medida Importante ressaltar num post scriptum: ainda que o
que coloca as “intenções conscientes” de determi- artigo persiga a imagem de uma herança cultural – nos
nado autor, ou mesmo da obra, no alvo da análise, termos que relatórios internacionais de comissões
à frente (ou atrás) do que se consegue retirar das que pesquisam os malefícios causados de uma
imagens. O que se entoa, na crítica, é uma incomuni- colonial heritage ao que se entende como Direitos
cabilidade entre os ambientes: que são contraditórios. Humanos (ou direitos fundamentais do homem) - ,
há outras perspectivas que atingem a poética do
filme, ou teoria da imagem e do filme, no que o social
Aplica-se a estética da fome ao ambiente sertanejo compreende. A localização dos debates em uma
da tríade citada agora há pouco. Porém, a estética do geopolítica mundializada atual, aliás, não parece
sonho já menciona uma riqueza do tropical (tropycos, conter o abatimento que a herança sócio-cultural
que fogem da tristeza). Um sonho, portanto, que trans- propõe. No entanto, entende-se algo com a história,
parece o não lugar da floresta à frente da seca, da fina- e a genealogia costumeiramente relaciona também
lização, extinção de vida provocada pelo sertanejo. algo do sentimento estético que os territórios (e aqui
se trata do latino-americano) evocam.

52 CAP 2
* REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALENCAR, José de. O sertanejo. In: Ficção completa e outros CUNHA, Edgar Teodoro da. Cinema e Imaginação - a imagem
escritos. V. 3. Rio de Janeiro: Aguilar, 1965. do índio no cinema brasileiro dos anos 70. 1999. Dissertação
(Mestrado em Antropologia Social). Universidade de São
BOSI, Alfredo. Um mito sacrificial: o indianismo de Alencar. Paulo. São Paulo, 1999.
In: Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das
CUNHA, Manuela Carneiro. Etnicidade: da cultura residual
Letras, 1992.
mas irredutível. In: Cultura com Aspas. São Paulo: Cosac
BRASIL, André. Carapiru-Andrea, Spinoza: a variação Naify, 2009. pp. 235-244
dos afetos em Serras da desordem. Devires – Cinema e
GAUTHIER, Guy. O documentário – um outro cinema.
Humanidades, Belo Horizonte, v. 5, n. 2, 2008.
Campinas: Papirus, 2011.

CAETANO, Daniel (org.) Serras da Desordem. Rio de Janeiro:


LEBEL, Jean-Patrick. Cinema e Ideologia. Lisboa: Editorial
Azougue editorial, 2008.
Estampa, 1972.

CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: MACHADO, Arlindo. A crise da enunciação. In: O sujeito na
Martins Fontes, 2007. tela – Modos de enunciação no cinema e no ciberespaço.
São Paulo: Paulus, 2007. pp. 125-130.
COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder, a inocência perdida:
cinema, televisão, ficção e documentário. Belo Horizonte: MARTINS, Eduardo Vieira. José de Alencar e a violência do
UFMG, 2008. Sertão. Floema – Ano VII, n. 9, p. 61-71, jan./jun. 2011.

53 CAP 2
METZ, Christian. O significante imaginário – psicanálise e ‘Serras da Desordem’ (2006) de Andrea Tonacci. Imagens
cinema. Lisboa: Horizonte, 1980. partir de cenas do filme disponíveis em:

SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Crítica da imagem eurocên-


trica: multiculturalismo e representação. São Paulo: Cosac BARBOSA, Neusa. Serras da Desordem | Crítica,
Naify, 2006. Dossiê. In: ABRACCINE, 2017. https://abraccine.
org/2017/01/22/serras-da-desordem/
SILVA, Juliano Gonçalves da. O Índio no Cinema Brasileiro
e o espelho recente. 2002. Dissertação (Mestrado em
MECCHI, Leonardo. Em cartaz: Serras da Desordem,
Multimeios). Universidade Estadual de Campinas, 2002.
de Andrea Tonacci (Brasil, 2006). In: CINÉTICA -
SOUZA, Bernardo Todorico Costa. O Vai-e-vem em Serras Cinema e Crítica: www.revistacinetica.com.br/
da Desordem. Passagens. v. 1, n. 4, 2013. serrasdadesordem.htm

ZEA, Evelyn Schuler; HIKIJI, Rose Satiko; SZTUTMAN


Renato; TONACCI, Andrea. Entrevista com Andrea MELLO, Marcus. Olhares: Um diário de Gramado. In:
Tonacci. Disponível em: <http://cinebeijoca.wordpress. CINÉTICA - Cinema e Crítica: www.revistacinetica.
com/2011/10/15/entrevista-com-andrea-tonacci/>. com.br/diariogramado06.htm
Visitado em: Out. 2011.
MENEZES, Gustavo. Serras da Desordem
* REFERÊNCIAS (SEPARATRIZ ) (2006). In: NÃO SÃO AS IMAGENS, 2016: https://
naosaoasimagens.wordpress.com/2016/07/21/
*Composição visual da abertura do capítulo gerada a serras-da-desordem-2006/

54 CAP 2
1 – Professor Adjunto do curso de Cinema e Audiovisual da UFS –
Universidade Federal de Sergipe, Doutor pelo programa de
Multimeios da Unicamp.
As imagens do cinema chegam até nós. Nós a pedimos, Entretanto, por mais que não exerçamos, majoritaria-
“isolados” no escuro, mas não as controlamos. mente, a atenção voluntária no cinema, a involuntária
Discordância do que acontece com as imagens do pode ser relativizada. Como primeiro teórico cinema-
mundo na prática cotidiana. No controle dos nossos tográfico, Munsterberg não imaginou que no cinema
olhos, determinamos quais são os seus movimentos, moderno poderíamos participar de uma menor orga-
o foco, o lugar para onde os dirigimos, a não ser que o nização do pensamento visual. O cinema clássico sim,
acaso, o extraordinário, rapte-os e se torne evento de construído no esquema sensório-motor, é um guia,
contingência. De modo contrário, no antierrático olho pois, com o seu modelo de domesticação da narrativa,
do espectador cinematográfico, o controle do outro organiza os motivos visuais, não compreende as visões
fabrica a imagem e indiscerne o acaso e o ordinário, periféricas ou os movimentos aberrantes dos olhos.
pois um circunscreve o outro dentro das camadas da Tudo é posto com uma dimensão de sentido clara para
moldura da tela. Diante do mundo dito real, as imagens o “contar uma história”, acompanhar um personagem,
vêm até nós com mais liberdade. centrado na lógica da narrativa de causa e efeito, do
encadeamento teleológico dos planos. Em contra-
partida, o cinema moderno libera esse olhar, resiste à
Munsterberg (1916, p. 72) vai perceber esta diferença organização por meio de motivos visuais do enredo, se
ao discorrer sobre os dois tipos de atenção, processos utiliza uma psicomecânica menos localizada no olhar
característicos do cérebro humano: a atenção voluntária que acompanha a imagem como encadeamento, mais
e a atenção involuntária. A primeira, de maneira clara, construída na busca de diferentes associações mentais,
nos diz sobre a projeção de nosso olhar para as coisas, a novo fundamento das imagens cinematográficas:
partir do que queremos, do nosso escopo, consonância
com as imagens cotidianas. A segunda é contrária,
Como diz Bergson, nós não percebemos a coisa
nos dirige e nos guia. No cinema, a atenção involun- ou a imagem inteira, percebemos sempre menos,
tária organiza o controle do que é mostrado para nós. percebemos apenas clichês, percebemos apenas

56 CAP 3
o que estamos interessados em perceber, ou ou a transformação dele em um processo mais sutil,
melhor, o que temos interesse em perceber, voltamos aos traços característicos do objeto. Sendo
devido a nossos interesses econômicos, nossas
assim, fazemos uma descrição, que substitui o objeto
crenças ideológicas, nossas exigências psicoló-
gicas. Portanto, comumente, percebemos apenas e se prolonga a um processo de descrever inesgotável,
clichês. Mas, se nossos esquemas sensório-mo- nos libertando de uma montagem encadeada onde
tores se bloqueiam ou quebram, então pode algo leva, necessariamente, ao seu posterior.
aparecer outro tipo de imagem: uma imagem
ótica-sonora pura, a imagem inteira e sem metá-
fora, que faz surgir a coisa em si mesma, literal- Esse encadeamento lógico, de clichês, comparado à
mente, em seu excesso de horror ou de beleza,
escrita, favorece a prosa. Ao contrário, o menor direcio-
em seu caráter radical ou injustificável, pois ela
não tem mais de ser “justificada”, como bem ou namento do olhar, o afrouxamento do enquadramento
como mal (DELEUZE, 2007, p. 31). compulsório, favorece a poesia, liberta as expectativas.
É sobre esse segundo tipo de cinema que pretendemos
dissertar aqui, tendo em vista a análise do filme de
Encontramos na noção de reconhecimento de Bergson
Karim Ainouz e Marcelo Gomes, “Sertão de Acrílico Azul
(apud DELEUZE, 2007, p. 59) um complemento dos
Piscina”, de 1999, um processo poético de descrição das
processos de atenção de Munsterberg. Segundo ele,
imagens sobre impressões sobre o Sertão Nordestino.
dois tipos de reconhecimento são possíveis. 1 - O
automático, característico da imagem-movimento, do
cinema clássico, e que está calcado em movimentos Dentro da história da cinematografia nacional, o espaço
de costume, em que um exemplo seria o de uma vaca do Sertão do Nordeste é palco para os mais diferentes
que reconhece o capim. 2 - O reconhecimento atento, tipos de cinema. Tivemos um cinema do Sertão-prosa,
que, sem movimento, possibilita as possibilidades assim como várias tentativas de um cinema do Sertão-
da imagem ótica e sonora pura, e afrouxa o processo poesia. O próprio lugar no interior do tempo histórico
de atenção involuntária. Com a falta do movimento, brasileiro é um lugar que se liga às pulsões criativas,

57 CAP 3
pois desde o começo de sua ocupação, se escreve, se confusa, e afirma que a diferença fundamental está
filma sobre ele. Celebra-se o Sertão nordestino como no que afirma ser a “geometria dos procedimentos”
locação decididamente nacional, representante da (1998, p. 136), relacionado ao aspecto formal do
nossa cultura, como espaço da descolonização da texto. No cinema, a sua poesia conteria algo análogo,
dominação eurocêntrica. Dentre suas manifestações justificando o que profissionais da época o atribuíam
poéticas, temos João Cabral de Melo Neto, na litera- como poético. Como exemplo, ele cita o filme “A Sexta
tura, para não falarmos do cordel como gênero literário, Parte do Mundo” (1928), de Vertov, que é construído
Ariano Suassuna no teatro, e, no cinema, uma infinidade sobre um princípio poético de solução formal. Então,
de manifestos de poesia, que tem como seu cume a trin- isto é o que vai delimitar como a possível poesia
dade seca protagonizada por “Sertão e o Diabo na terra cinematográfica, suas soluções formais, as repetições
do Sol” (Glauber Rocha, 1963), “Vidas Secas” (Nelson das mesmas estruturas, etc... De acordo com ele:
Pereira dos Santos, 1963), “Os Fuzis” (Rui Guerra, 1963).

Existe um cinema de poesia e um cinema de prosa,


* POESIA E PROSA NO CINEMA e nisso se encerra a diferença entre os gêneros.
Não se distinguem pelo ritmo, ou não exclusi-
vamente, senão pelo predomínio dos recursos
A separação entre poesia e prosa no cinema foi técnicos e formais no cinema poético sobre os
utilizada pela primeira vez pelos formalistas russos. recursos semânticos. E na composição, a solução
é proporcionada por uns recursos formais que
Viktor Sklovski, no texto “Poesia e prosa no cinema”,
substitui nele os recursos semânticos.
não vê uma linha clara de diferença entre esses
dois domínios na literatura. Ele relativiza o ritmo O cinema sem argumento é um cinema de poesia
como critério, pois acredita deixar a separação mais (SKLOVSKI apud ALBÈRA, 1998, p. 138).

58 CAP 3
Sobre a última frase, o exemplo que ele vai utilizar é Diferentemente do escritor, no caos das imagens signi-
“A Mãe” (1926), de Pudovkin, um filme que começa ficantes, a operação do cineasta é buscar nesse dicio-
com prosa e termina como poesia, justamente por se nário infinito esses im-signos que vão compor suas
perder da trama. As soluções vão se tornando mais imagens do filme. Sendo assim, ele, na realidade, realiza
formais do que semânticas, se perdendo da história. duas funções. A primeira, lingüística e a segunda, esté-
tica, a qual se expressa. Sendo assim, o cinema deveria
ser eminentemente artístico. E, por isso, ele vai afirmar
Pasolini (1981) vai retomar tais conceitos de prosa e
que mesmo o cinema de prosa tem poesia em sua
poesia no cinema, ainda tendo como referência a lite-
essência, mesmo que subrepticiamente. Com a forma
ratura. Assim como Sklovski, também postulava que
de comunicação transformada em um entretenimento
o cinema deveria ter mais tendências poéticas do que
das massas, as convenções narrativas se tornaram
de prosa. A diferença do tempo entre eles não deixou
preponderantes, e, assim, prosa mais que poesia.
de ser relevante para ambos perceberem que o cinema
seguiu mais o último gênero. A pergunta que o mesmo
faz é justamente porque ele seguiu esse caminho. Mas, de que forma o cinema se tornaria poesia fugindo
das convenções tanto narrativas quanto dos filmes de
arte, que formam sintagmas e estilemas que se repetem
O cinema é composto de seus im-signos, ou seja,
na tradição? Por meio da “subjetiva indireta livre”, que
imagens que carregam significados, assim como os ele chama de “língua técnica da poesia”. Ela se mani-
objetos do mundo, o mundo dos sonhos e da memória. festa por meio da indiscernibilidade entre o que e quem
Ele se comunica por eles. De que modo? Por meio das se expressa, visto que o cinema não pode se manifestar
imagens, que constitui a irracionalidade pré-humana, poeticamente por meio da língua, que Pasolini vai falar
a primeira forma de comunicação antes da linguagem que é universal, o mesmo para todos. Sendo assim, é
escrita. Afinal, cinema não é escrita, é pré-gramatical. só pela estilística que se concretiza tal manifestação:

59 CAP 3
A formação de uma língua de poesia cinema- elevando a sua obra a um cinema de Sertão poesia,
tográfica implica, por conseguinte, a possibili- que leva em consideração a libertação semântica para
dade de criar, pelo contrário, pseudo-narrativas
dar vazão a recursos formais e o afrouxamento do
escritas na língua da poesia, cuja subjetividade
será garantida pelo uso do pretexto da “subjetiva olhar por meio de imagens óticas e sonoras puras que
indireta livre”, onde o verdadeiro protagonista é o dão formas novas de descrição do espaço sertanejo.
estilo (PASOLINI, 1982, p. 151) .

Tentemos, então, achar uma possível equivalência * DESCREVENDO UM SERTÃO POESIA


entre os pensamentos de Sklovski e Pasolini. A solução
formal, grosso modo, teria um potencial criativo para A vontade artística independe do fetichismo técnico.
ambos. Entretanto, Pasolini vai afirmar que nem Assim corroborava Glauber Rocha, quando em 1965
sempre elas podem não se tornar cânones, o que não escreveu o manifesto “Estética da Fome”. Naquela
possibilitaria a vontade de arte maior na experimen- época, longe das possibilidades tecnológicas contem-
tação cinematográfica, o que levaria o cinema ao status porâneas, ele já propunha um cinema sem escrú-
de poesia. Para ele, a subjetiva indireta livre também pulos técnicos, o que refletiu diretamente no modo de
se tornou cânone no cinema de autor, no cinema produção nacional. O cinema novo utilizava essa prer-
moderno, depondo a favor de um burguesismo. Embora rogativa como pulsão estética e o Sertão Nordestino
seu postulado político com referência ao cinema como um dos espaços para abrigar os filmes metoní-
moderno seja relevante, o cinema de poesia tem em micos sobre questões sociais brasileiras.
seu viés estilístico, a experimentação, a possibilidade
da forma como expressão poética do cineasta. Vamos Nos anos 2000, depois de um salto de quase quarenta
ver de que maneira, então, essa experimentação formal anos, as possibilidades técnicas aumentam com as
acontece no filme de Karim Ainouz e Marcelo Gomes, novas tecnologias, do suporte químico para o eletrô-

60 CAP 3
nico, do analógico para o digital. Mesmo assim, a poesia visual do filme, mostram-se argumentos polí-
diversidade das formas de registro continua sendo ticos subreptícios longe de serem apenas ensaísticos.
subordinada à vontade de arte. Assim é a primeira
característica de um novo filme sobre o Sertão. A potência visual de arte dos autores vem justamente
na forma de ressignificar as imagens clichês do Sertão
Nordestino. Reproduzi-las de uma forma diferente do já
“Sertão de Acrílico Azul Piscina” não se subjuga a suas mostrado. Retomar o Sertão, com sua seca e seu povo
fervoroso da religião, devotos de padre Cícero, numa
formas de registro, principalmente pela utilização de
versão mais contemporânea, garantindo uma maior
vários deles, mas as potencializa em favor da esté-
subjetividade e propondo novas questões políticas
tica do filme. As diferentes bitolas e suportes (35 mm,
acerca do espaço. Isso tudo a partir desse hibridismo
16mm, super oito, vídeo e máquina fotográfica digital)
técnico, dos suportes diversos, incluindo fotos e a
só enriquecem esse embrião, esse curta “germe”, de um
partir de uma perspectiva que vai unir o moderno e o
projeto maior de Karim Ainouz e Marcelo Gomes reali-
arcaico de acordo com questões da virada do século.
zado depois de dez anos, “Viajo Porque Preciso, Volto
Lembramo-nos da frase de Glauber em que ele afirma que
Porque te Amo” (2009). Em 1999, os diretores saíram
toda estética é uma ética, toda estética é uma política.
para percorrer o Sertão Nordestino com um projeto Sendo assim, os diretores promovem uma nova política
diferente do cinema novo, ou pelo menos da arte enga- do Sertão Nordestino contemporâneo em que se propõe
jada revolucionária estimulada pela estética da fome uma nova ética do afrouxamento do olhar sobre ele,
glauberiana. Propôs-se um ensaio poético sobre o inte- configuração estética moderna, colocando os motivos
rior do Nordeste. Nos perguntamos se Glauber Rocha visuais pisados na história do espaço como aspectos
se reviraria em seu caixão ao ver o filme, o identificando descritivos de uma nova subjetividade sertaneja, que
como integrante do hall dos estetas, produtores de arte não oferece verdades, mas apenas promove impressões
pela arte. Mas acreditamos que não, pois diante da indiscerníveis entre o real e o imaginário de um viajante.
61 CAP 3
O filme, reiterando, é um ensaio visual, indexado como interstício torna-se irredutível e vale por si mesmo.
documentário, embora acreditamos que ele se apro- A primeira conseqüência é que as imagens não
se encadeiam mais por cortes racionais, mas se
xime mais do domínio do experimental. Entretanto,
re-encadeiam com base nos cortes irracionais.
podemos classificá-lo como documentário performá-
tico, se levarmos em conta a classificação de Bill Nichols
(2005). Mesmo assim, longe de querermos pensar em Ao escapar de um encadeamento lógico, “Sertão de
formatos, consideramos mais importante a fatura Acrílico Azul de Piscina” é constituído em blocos de
fílmica, ou a maneira pela qual podemos evidenciar sensações (ainda na nomenclatura de Deleuze), sem
no curta um material estético audiovisual vigoroso. fio narrativo explícito, o que lhe dá mais autonomia
aos planos e às séries imagéticas. As únicas ligações
existentes entre o primeiro e o último plano é: 1 - A
Vamos acompanhar o filme em seus fragmentos para
construção diegética temporal de dois dias, 2 - O
depois pensarmos no todo por meio de um método
espaço onde o filme é rodado e 3 - as temáticas cons-
analítico. Quando falamos em fragmentos, na verdade
tantes com as quais o filme se engaja. Dentro desse
vamos dividir o filme em séries, de acordo com o
todo, de várias seqüências de interstício, dos cortes
conceito de Deleuze (2007, p. 329), quando o mesmo fala
irracionais até o fim de cada série para o começo de
sobre características dos filmes do cinema moderno:
outra, vejamos como o filme se apresenta a nós.

A imagem moderna instaura o reino das “inco-


mensurabilidades” ou dos cortes irracionais: Série 1 – Sertão Trânsito
quer dizer que o corte já não faz parte de uma
imagem ou de outra, de uma seqüência ou outra
O curta-metragem abre com um longo plano geral
que ele separa e reparte. É nesta condição que
a seqüência se torna série, no sentido em que captado na boléia de um caminhão, principal meio de
acabamos de analisar. O intervalo liberta-se, o condução das estradas do Nordeste. A câmera mostra

62 CAP 3
a estrada quase deserta, de mão simples, com poucos Créditos imitando a fonte utilizada por caminho-
caminhões que a cruzam. Longe, vemos a linha do neiros, em geral, perto das placas. A trilha sonora
horizonte, na metade da tela. O plano seguinte revela, em tom melancólico que acompanha esses planos
por meio da altura da janela da boléia, a paisagem iniciais e as fotos corrobora o tom experimental
seca da vegetação sertaneja. Situa-se, assim, por onde do filme, num misto entre sons característicos do
a viagem imagética será realizada. Sertão e a sintetização eletrônica.

Após fade, fotos demarcam o ambiente de passagem Em seguida as fotos continuam:


em que nos encontramos:

1. Foto frontal do restaurante de estrada, com o 6. Dormitório de posto.


anúncio: “temos comida caseira”
7. Rede no posto, ligada entre a bomba
2. Interior do restaurante, mostrando a entrada e uma pilastra.
para os banheiros, com dois cartazes, um que
nos chama atenção, dizendo “viajo porque 8. Lanchonete.
preciso, volto porque te amo.”
9. Caminhão perto de uma única árvore.
3. Uma mulher idosa pousa na frente dos cartazes.

Os planos seguintes continuam mostrando os cami-


4. Uma criança pousa na frente dos cartazes.
nhões nas estradas, tendo como ponto alto a passagem

5. borracharia.

63 CAP 3
de um porco pela rodovia, que para e olha para a A reza volta e a imagem enquadra fotos no interior de
câmera. As imagens se sobrepõem por meio de falsos uma capela. Surge uma cacofonia de depoimentos de
raccord, às vezes entremeados de fundos pretos. pessoas, quase sobrepostos, falando das graças alcan-
çadas e que estavam ali para agradecer.
Série 2 - Romeiros

A trilha entoa um som de reza, prenunciando o tema Série 3 – Pátio da Ingreja


das imagens. Entretanto, o som não é sincronizado
com o que vemos, há uma disjunção. O que nos Em um plano geral vemos uma multidão de pessoas na
mostram são os caminhões de romeiros, mais uma frente da igreja. Percebemos uma movimentação em
vez caminhões, lotados de religiosos que acenam e volta delas, o mercado dos romeiros, com a venda de
que olham para a câmera. Eles estão fazendo a volta terços e apetrechos relacionados a religião ou não. Em
em torno da capela de Padre Cícero, em Juazeiro do especial, um plano posterior enquadra uma mulher
Norte, onde vão receber benção e agradecer graças que vende bonequinhas em baixo do guarda-sol. A
alcançadas. O filme, super oito, queimado, além de trilha sonora é uma música árabe.
um desfoque ou blur, conota uma imagem onírica, e
anuncia o calor do sertão, espaço solar. Série 4 – Padim Cícero

Uma mulher, vista em primeiro plano (filme granu- Ao fundo se vê a estátua branca de Padre Cícero. Como
lado e câmera com velocidade menor), pendurada se estivessem tirando fotos, a câmera se posiciona,
na carreta do caminhão, olha para a câmera e sorri, recebendo na objetiva a pose de pessoas que, em um
mostrando apenas dois dentes dianteiros. A trilha jogo imagético, parece estar recebendo as bençãos
volta a ter um tom melancólico, quase beirando o da estátua, caracterizando a relação metafísica com
melodrama, dando guia para o espectador. a imagem que as pessoas possuem. Várias delas se

64 CAP 3
sucedem nesse plano em contra-plongée. Até que, ao Série 6 – Forró
contrário, a câmera se posiciona atrás das pessoas, de
fronte à estátua, para mostrar o fotógrafo em baixo, O forró é um traço do Sertão. Ele é central nessa série
que captura essa imagem, posta como souvenir de fé, de imagens slow, que foca pessoas dançando em um
o “estive aqui” testemunhal fotográfico dos tementes. precário espaço. Duas mulheres, um casal e outro
com um bebê no colo dançam. O tom das imagens
O suporte retorna ao registro fotográfico, como se muda com o contraponto musical que, depois de
fossem reveladas as fotos mostradas pela câmera, acompanhar o forró da banda que ali toca, volta a
numa meta-imagem. Porém aqui, bidimensional no ter caráter melancólico. As pessoas passam, então, a
bidimensional, chapada e com profundidade de campo posar ao lado dos músicos. As fotos são novamente
reduzida, revela o potencial revelatório da imagem. utilizadas e focam uma das dançantes.
As fotos deflagram mais ainda aquele jogo imagético
deflagrado antes. Concretizada nas fotografias, o som
Série 7 – Nativa
das orações e pedidos ao Padre Cícero se eleva.

Série 5 – Modernização do Sertão Aqui temos o único depoimento do filme, que, na


verdade, é feito em uma só frase (“Nesse momento
A câmera volta à boléia do caminhão, que atra- que eu estou aqui assentada, significa muita coisa
vessa o interior de uma das cidades do interior do pra várias pessoas”), dessincronizada com a imagem,
Nordeste, centrando a câmera, com velocidade alte- onde o que se mostram são apenas fotos da mesma.
rada nas placas de comércio da cidade. O sentido Logo após, com câmera em slow motion, ela e mais
onírico continua com a deformação dos desfoques duas mulheres pousam para a câmera na frente de um
da câmera e um som de tempestade maquínica com colchão de chita. Percebemos as suas inquietações
tensão cada vez mais aumentada. diante do suporte, o que as levam a rir da situação.

65 CAP 3
Série 8 – Colchão de Chita Série 10 – Feira de Caruaru

O registro fotográfico volta a ser utilizado. As fotos Em contra-plongée, acima das barracas da feira, a
mostram um trabalhador que empurra palha para câmera se posta. O movimento de pessoas é constante
dentro do forro de chita. A imagem em movimento, e o ambiente é dominado por mercadorias. Os diretores
quando usada novamente, continua a mostrar o se preocuparam mais com eletroeletrônicos e com
mesmo trabalho. A música continua a soar melan- brinquedos, com o funcionamento dos mesmos. A
colia. Como ponto ápice dessa série, temos um plano trilha sonora volta a ter vez utilizando sons eletrônicos
longo de uma imagem do colchão de chita no chão, que dão sensações de futurismo ultrapassado.
presumivelmente para secar a palha de seu interior,
em conjunto com as cabras que os mesmos trabalha-
dores rebanham, deflagrando o arcaísmo da região. Série 11 – Modernização do Sertão

Série 9 – Montagem da Feira


A frase “O Futuro está a seu alcance” promove a
abertura para uma série de imagens sobre como a
Aqui mudamos de registro. A câmera utilizada é digital
e acompanha ambulantes, com seus carrinhos, se modernidade capital se aloca em ambiente sertanejo,
encaminhando para a montagem da feira, que acredi- nas suas cidades. Esta frase está pintada num muro
tamos ser a de Caruaru. A fotografia lembra o geome- de uma loja de antenas, o que é complementado
trismo do construtivismo russo, pelos grafismos com o plano posterior que foca numa loja chamada
geométricos formados com as madeiras, ripas dos de Taiwan import (1,99). Num ponto de ônibus, um
carrinhos, e as sombras que elas projetam no chão, skatista faz manobras em cima de uma frase religiosa.
em conjunto com o cruzamento delas em movimento. As cabras invadem o esqueleto da feira.

66 CAP 3
Série 12 – Piranhas por Teixeira (2009) ao buscar formas analíticas das
narrativas documentais. Basicamente, o seu método
A viagem chega a uma cidade abandonada, Piranhas, possui quatro passos:
ao som da canção que dispara versos: “Essa cidade
é uma selva sem você”. Planos vasculham a cidade a 1. Inventário de materiais de composição
procura de movimento, mas não encontram. Uma esca- (elementos que se valem do documentário na
construção/ criação filmica).
daria nos leva a um monumento em que está inscrito:
“Homenagem do povo do século XIX ao povo do século
2. Inventário dos modos de composição (agen-
XX”. Escutamos uma emissora de rádio em tom catas- ciamento dos materiais e sua combinatória em
trófico cordelesco sobre a virada do século. Enquanto função da montagem e criação de sentido).
isso, imagens da cidade fantasma são perpetuadas, até
3. As diversas funções da câmera ou modos de
que a câmera toma um barco no rio e vai-se embora.
enquadramento (objetiva indireta, subjetiva
direta e subjetiva indireta livre) implicados na
Os créditos finais são os seguintes: “Filmado nos estados construção da narrativa documental.

de Pernambuco, Paraíba, Ceará, Alagoas, Sergipe e


4. As modulações estilísticas que, finalmente, se
Bahia na virada do século XX para o século XXI”.
abrem para o campo mais abrangente da teoria
documental (TEIXEIRA, 2009, p. 624).

* IMPRESSÕES SERTANEJAS: ANALÍTICAS


DE UM VIAJANTE Materiais de composição

Após a descrição do filme, passo agora a analisá-lo ▶ Imagens captadas em primeira mão. Não há a utili-
no todo, tendo como guia metodológico o instaurada zação de imagens de arquivo.

67 CAP 3
▶ Fotografias de alguns “personagens”; a mulher que ▶ As Estátuas monumentos de algumas cidades do
dança forró, o trabalhador na fábrica artesanal de Sertão nordestino, Juazeiro do Norte e Piranhas, O
colchões, pessoas que posam para a foto sobre a padre Cícero e um obelisco feito na virada do século
estátua do Padre Cícero; de fragmentos do espaço XIX para o XX, respectivamente.
que a câmera registra; o posto de estrada (lancho-
nete, borracharia, bombas de gasolina onde se
▶ A escrita, frontlights e anúncios de lojas, frase no
amarram as redes, o interior da capela); mosaico
ponto de ônibus, em cartaz.
de fotografia, conjuntos de papéis que não ocupam
a tela em seu total espaço, de pessoas que vão
agradecer ou pedir graças, na capela. ▶ Rádio.

▶ Voz-off das pessoas, de curta duração, que oras são ▶ Cordel recitado no fim do filme sobre os anos de 89

rezas, graças, ora depoimentos. a 99 via rádio.

▶ Som ambiente, ás vezes anunciando um extracampo, Modos de composição


ora se justapondo ao campo.
▶ Encadeamento de imagens seriais, de acordo com o
▶ Música. As canções variam entre gêneros populares bloco do filme a que elas se dirigem, ligadas, inclu-
típicas do Sertão, o forró e o brega, uma música sive, ao acontecimento da cada um deles.
indiana, e composições experimentais (que adquirem
no máximo uma sobreposição de três camadas) ▶ Justaposição de fotos

68 CAP 3
▶ Coleção das diferentes imagens técnicas (bitolas de Na verdade, as imagens parecem estar presas na
16mm e super 8, vídeo digital e câmera fotográfica) memória desse olhar do viajante/turista, pois se
compõem na produção de um mosaico de clichês
▶ Blur da imagem e pedaços de películas veladas sertanejos, reais-irreais, que se encontram no
meio das suas impressões. Isso é ressaltado por
dois aspectos, pelo caráter onírico que as imagens
▶ Sobreposição de imagens visuais e sonoras
suscitam com um blur que as borra, parecendo sempre
fugir do centramento, querendo ir para outro lugar e
▶ Dissociação das imagens (o que se vê não é o mesmo a velocidade alterada, em slow motion, alterando a
que se ouve)
percepção normal do olho humano.

* FUNÇÕES DA CÂMERA OU O filme é entremeado de fotos, outro tipo de colagem


MODOS DE ENQUADRAMENTO que o viajante/turista utiliza como diário. São as únicas
imagens still do filme, e, em cada série, tem partici-
pação. Não seria talvez uma busca pelas impressões
A câmera no Sertão está sempre em movimento, ou no
por meio das fotos de viagem? Uma memória subjetiva
suporte da mão, ou na boléia do caminhão. Essa maneira
posta em filme buscando o retrocesso após a jornada?
de registro demonstra que, ao ser extensão do corpo
ou do meio de transporte, existe uma analogia entre o
dispositivo e o olhar de um viajante/turista, que desbrava Não nos parece ser, em nenhum momento, utilizado
o novo ambiente. Seu caráter de filme de viagem, que o uso da objetiva indireta (o que a câmera vê) ou da
busca os eventos, também corrobora esse argumento. subjetiva direta (o que a personagem vê) à maneira

69 CAP 3
clássica do documentário. Ele é inteiro composto de impelido por informar ao espectador como é a vida do
uma subjetiva indireta livre, em que temos uma indis- sertanejo. É um documentário moderno, no sentido em
cernibilidade entre o personagem (viajante/turista) e que segue sua narrativa fragmentada, desconectada,
os cineastas. As cenas que nos chamam mais atenção sem atitudes de registro sobre um real, mas fabulações
para este aspecto são: os acenos dados pelos tripu- sobre ele, dentro da memória de um viajante, o que
lantes do caminhão que rodeia a igreja em Juazeiro é confirmado pela subjetiva indireta única do filme.
do Norte, o olhar para a câmera de três dançantes do
show de forró e, de forma mais complexa, o contra- Ao invés de procurar as causas ou efeitos dos
ponto realizado quando pessoas fazem pose para a assuntos tratados no filme, ele vaga, perambula, se
câmera aos pés da estátua de Padre Cícero e a mesma movimenta por alguns lugares do interior nordes-
muda de posição, passa para o lugar do fotógrafo. tino, provendo ao espectador longas imagens óticas
sonoras puras, características do cinema moderno,
* MODULAÇÃO ESTILÍSTICA e as preenche muitas vezes com campos vazios ou
naturezas mortas. Não somos levados pelo filme ao
O filme é uma viagem poética que caminha do Sertão próximo fragmento, mas contemplamos, por isso, a
nordestino, da sua seca, para o rio São Francisco, região busca por um belo quadro poético na tela, as formas
líquida. Ele já quebra, assim, o estereótipo do trajeto de seus objetos, os movimentos antirrealistas ou a
Sertão-Mar, apesar de terminar em águas. Longe de ter formação de grafismos. A poesia do Sertão, então,
um encadeamento entre as imagens que pressupõem se faz, de maneira que o olhar descritivo sobre sua
verdades, traz em suas impressões oníricas mistos de paisagem (natural e social) seja alargada, sem guias
vazio e povoamento do Sertão-devir. Logo, ele não é para motes rotineiros nordestinos, mas novos-velhos
representativo de um documentário clássico, que é motes poeticamente ressignificados.

70 CAP 3
* REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBÈRA, François. Los Formalistas Rusos y El Cine. ROCHA, Glauber. A Revolução do Cinema Novo. Rio de
Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica S.A., 1998. Janeiro: Editora Cosac&Naify, 2004

DELEUZE, Gilles. A Imagem-Tempo. São Paulo: Editora TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. O Experimental no
Brasiliense, 2007. Cinema Brasileiro: a Propósito de O Cinema Falado,
de Caetano Veloso. In: PAIVA, Samuel et al. (orgs).
MUNSTERBERG, Hugo. The Photoplay: a Psychological Estudos de Cinema e Audiovisual – Socine XI. São
Study. New York: D. Appleton and Company, 1916. Paulo, Socine, 2010.

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas: ___________. Analisando Narrativas Documentais. In:
Papirus, 2005. FABRIS, Mariarosaria et al. (orgs). Estudos de Cinema
e Audiovisual – Socine X. São Paulo, Socine, 2009.*

PASOLINI, Pier Paolo. Empirismo Herege. Lisboa: Referências (separatriz )

Assírio e Alvim Cooperativa Editora e Livreira, 1982.

71 CAP 3
* REFERÊNCIAS (SEPARATRIZ )

*Composição visual da abertura de capítulo gerada ITAÚ CULTURAL, 2012: www.itaucultural.org.br/


a partir de imagens do filme ‘Sertão de Acrílico Azul brasil-3x4-sertao-de-acrilico-azul-piscina-integral
Piscina’, de Karin Ainöuz e Marcelo Gomes. Imagens
disponíveis em:
SERTÃO DESENCANTADO - Tudo que o sertão tem
de encantos e desencantos. Cinema - Temática
BEIRAS D’ÁGUA - Produção Audiovisual do Rio
Sertaneja, 2008: http://sertaodesencantado.
São Francisco: https://beirasdagua.org.br/item/
blogspot.com/2008/01/cinema-temtica-serta-
sertao-de-acrilico-azul-piscina/
neja_29.html

DAILY MOTION: www.dailymotion.com/video/


x7pxku2

72 CAP 3
1 – Doutora em Comunicação Social pela UFMG. Mestre em Comunicação
Social também pela UFMG (2013).
* ANACRONISMO E DISTOPIA

Numa cena de Era uma vez Brasília (2017), de Adirley O inimigo tá solto, o monstro está em tudo que é
Queirós, guerreiros usando adereços geek (com lugar: no Congresso, nos Ministérios, no Palácio.
O Congresso tem que ser nosso! Os ministérios...
roupa de samurai e máscara de Jason, os masca-
tem que ser tudo nosso... Aqui só tem os melhores
rados lembram os black blocs, um deles inclusive usa
e mais capacitados. Eu tenho certeza que na hora
uma máscara de proteção contra gases) lutam num da guerra ninguém aqui vai amarelar. Somos
cenário repleto de andaimes durante o 27° Torneio um povo forte, unido e organizado. O inimigo tá
Intergaláctico da Ceilândia, até que Marquim do Tropa2 entre nós. E trama na escuridão. Passa recados e
remessas à noite. O inimigo fala “dar-te-ei”, mas
chega andando com sua cadeira de rodas, interrompe
não dá nada pra gente. Temos que capturar eles!
a batalha e começa a discursar:

2 – Marquim do Tropa é interpretado pelo ator de mesmo nome, que aparece O inimigo ao qual Marquim se refere diretamente é
em outros filmes de Adirley Queirós. No curta-metragem Rap, o canto da
Ceilândia (2005), Marquim canta rap e conta que morava na Vila do IAPI, o presidente Michel Temer, conhecido pelo hábito
que foi desmontada após a Campanha de Erradicação das Invasões (CEI),
campanha realizada no governo de Hélio Prates da Silveira, em 1971, objeti-
de usar mesóclises em seus pronunciamentos, mas
vando expulsar os mais pobres das proximidades do Plano Piloto, e que deu são também as elites que apoiaram o impeachment
origem à Ceilândia, erguida a cerca de 30 km do Plano. Em A cidade é uma
só? (2011), Marquim é o DJ que trabalha para o auxiliar de limpeza Dildu na de Dilma Rousseff com a finalidade de intensificar
gravação de um jingle para sua campanha fictícia a distrital, numa campanha
a implantação de políticas neoliberais para retirar
que rememora a remoção das famílias doa Vila do IAPI e que inclui várias
propostas tendo em vista combater as desigualdades entre periferia e Plano direitos dos mais pobres e incrementar os lucros dos
Piloto. No filme Branco sai, preto fica (2014), Marquim testemunha sobre a
invasão violenta da Polícia Militar a um baile black na Ceilândia, quando mais ricos em tempos de crise econômica, a exemplo
levou um tiro que o deixou paraplégico em 1986; paralelamente, ele encarna
da Reforma Trabalhista e da Reforma da Previdência.
um ciborgue e se envolve numa catártica trama de ficção científica em que
fabrica uma bomba de ondas sonoras a ser lançada sobre o Plano Piloto. Lançado um ano após o impeachment da presidente,

74 CAP 4
a narrativa de Era uma vez Brasília cria uma distopia sobre terríveis tendências sócio-políticas que
poderiam, se continuassem, transformar o nosso
em que trabalhadores são constantemente vigiados
mundo contemporâneo em gaiolas de ferro
pela polícia e andam algemados no metrô. retratadas no universo dos porões da utopia4
(BACCOLINI; MOYLAN, 2003 p. 1-2).
A palavra distopia vem do grego dys (ruim) e tópos
(lugar)3, e quer dizer “lugar ruim”. Seguindo a tradição Em Branco sai, preto fica, a agente de Estado do futuro
de livros como Admirável mundo novo (1932), de informava ao viajante do tempo e “agente terceirizado”,
Aldous Huxley, e 1984 (1949), de George Orwell, e Dimas Cravalanças, que “a vanguarda cristã assumiu o
filmes como Alphaville (1965),de Jean-Luc Godard e poder”: o filme foi lançado no período que contava com
Fahrenheit 451 (1966), de François Truffaut, Adirley o Congresso mais conservador desde 1964. Era uma
Queirós investe mais uma vez, depois de Branco sai, vez Brasília dá continuidade às fabulações distópicas
preto fica (2014), na invenção de “mapas do inferno” sobre o contexto político do país e alerta sobre as
com Era uma vez Brasília. tendências catastróficas em curso no presente. Como
afirma Lyman Sargent (1994), a distopia fabrica uma
A imaginação distópica tem servido como veículo extrapolação do tempo presente que ativa um aviso
profético, o canário na gaiola, para escritores
que informa que, caso atitudes de resistência não
com um interesse ético e político em nos alertar
sejam tomadas, um futuro sombrio nos aguarda.

3 – Fátima Vieira (2010) informa que a expressão foi utilizada pela primeira
vez em 1868, pelo filósofo inglês John Stuart Mill num sentido oposto ao da
utopia (que vem do grego u-não e tópos-lugar, um não-lugar ou lugar irreal): se 4 – No original: “(…) the dystopian imagination has served as a prophet vehicle,
a utopia era boa demais para ser colocada em prática, a distopia muito terrível the canary in a cage, for writers with an ethical and political concern for warning
para se tornar realidade. Mill usou a expressão como sinônimo de cacotopia, us of terrible sociopolitical tendencies that could, if continued, turn our contem-
um neologismo inventado por Jeremy Bentham, que vem do grego kako, que porary world into the iron cages portrayed in the realm of Utopia’s underside”.
quer dizer algo desagradável.

75 CAP 4
Assim como Branco sai, preto fica, o filme Era uma O filme se utiliza do personagem (WA4) e do objeto (a
vez Brasília apresenta um viajante no espaço-tempo, nave) anacrônicos para criar uma temporalidade que
dessa vez o agente intergaláctico WA45. Viajando num produz comparações entre o passado e o presente,
“carro-nave”, WA4 veio do Planeta Sol Nascente (nome e projeta um horizonte pessimista (porém aberto)
da maior favela do Distrito Federal, localizada na para o futuro. No dicionário Robert consta que o
Ceilândia), onde foi detido por ter invadido um terreno anacronismo é “ação de situar um fato, um uso, um
com o objetivo de construir uma casa para sua família, personagem, etc., numa época distinta daquela a que
e então fora enviado ao Planeta Terra com a promessa eles pertencem ou convêm realmente” (RANCIÈRE,
de que teria de volta a sua liberdade caso cumprisse a 2011, p. 22). Em Rancière (2011), o anacronismo, em vez
missão de matar o presidente Juscelino Kubitschek no de um equívoco da narrativa histórica devido à falha
dia da inauguração de Brasília, em 21 de abril de 1960. para com a cronologia, torna-se um conceito potente
WA4 acaba chegando a Brasília no dia 17 de abril de para uma história que seja narrada não como sucessão
2016, data da votação do processo de impeachment de eventos e relações de causa e consequência, mas
de Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados. retratada como justaposição dos tempos.

Não existe anacronismo. Mas existem modos de


5 – WA4 é interpretado por Wellington Abreu, que assim se apresenta ao espec-
tador através de narração off: “meu nome é Wellington Abreu, eu sou do Planeta conexão que podemos chamar positivamente
chamado Karpenthall, que na sua linguagem quer dizer ‘o sol que nasce’, Sol de anacronias: acontecimentos, noções, signifi-
Nascente”. No filme A cidade é uma só?, ele interpreta o grileiro Zé Antônio, que
cações que tomam o tempo de frente para trás,
aparece frequentemente perambulando num carro pela Ceilândia em busca
de propriedades para negociar, e ele auxilia na campanha de Dildu a distrital que fazem circular o sentido de uma maneira
sonhando em enriquecer com a política. que escapa a toda contemporaneidade, a toda

76 CAP 4
identidade do tempo com “ele mesmo”. Uma uma catástrofe única. Na leitura de Michel Lowÿ
anacronia é uma palavra, um acontecimento,
(2005, p. 65) da tese benjaminiana, “o perigo de
uma sequência significante saídos do “seu”
tempo, dotados da capacidade de definir direcio-
uma derrota atual aguça a sensibilidade pelas ante-
namentos temporais inéditos, de garantir o salto riores, suscita o interesse dos vencidos pelo combate,
ou a conexão de uma linha de temporalidade com estimula um olhar crítico voltado para a história”.
uma outra. E é através desses direcionamentos,
desses saltos, dessas conexões, que existe um
poder de “fazer” a história. A multiplicidade das
linhas de temporalidades, dos sentidos mesmo No presente artigo, pretendo desvendar as alego-
de tempo incluídos em um “mesmo” tempo, é rias e destrinchar os anacronismos em Era uma vez
condição do agir histórico (RANCIÈRE, 2011, p. 49).
Brasília. A alegoria apresenta uma linguagem imagé-
tica, constituída por um fosso entre o ser visual e a
A temporalidade anacrônica de Era uma vez Brasília significação, e “cada pessoa, cada coisa, cada relação
produz relações entre as utopias desenvolvimen- pode significar qualquer outra” (BENJAMIN, 1984, p.
tistas de JK e dos governos Lula e Dilma com as 197). Ela carrega significados ocultos, múltiplos e é
“distopias” do Golpe de 64 e do pós-impeachment marcada pela ambiguidade. Em vez da unidade e da
de 2016. A narrativa distópica de Era uma vez Brasília momentaneidade da significação característica do
se propõe a “(...) apoderar-se de uma lembrança tal símbolo, na alegoria os sentidos são fragmentários,
como ela lampeja num instante perigo” (BENJAMIN pois “as alegorias são no reino dos pensamentos o
apud LOWY, 2005, p. 65). Segundo Benjamin (apud que são as ruínas no reino das coisas” (BENJAMIN,
LOWY, 2005, p. 65), “o inimigo não tem cessado de 1984, p. 200). Elas se desenrolam no transcorrer do
vencer” e o instante de perigo coloca em evidência tempo, porém um tempo espacializado, que cris-
que a história não é um progresso ininterrupto, mas taliza os acontecimentos enquanto simultâneos.

77 CAP 4
Nisso consiste o cerne da visão alegórica: a
exposição barroca, mundana, da história como
história mundial do sofrimento, significativa
apenas nos episódios do declínio. Quanto maior
a significação, tanto maior a sujeição à morte,
porque é a morte que grava mais profundamente
a tortuosa linha de demarcação entre a physis e a
significação (BENJAMIN, 1984, p. 188). * DISTOPIA DOCUMENTAL

Minha hipótese é de que Era uma vez Brasília parte Em vez de pousar no Congresso Nacional, a nave de WA4
da narrativa distópica e da temporalidade anacrônica desce na Ceilândia à noite numa oficina de desmanche,
para elaborar a história como futuro passado, tecendo onde queimam carros num terreno baldio. Ele tenta,
a relação entre um presente distópico e o passado sem sucesso, se comunicar com alguém pelo rádio. A
do autoritarismo no país. A distopia apresenta uma montagem justapõe a cena da chegada de WA4 a outra
visão da história em que o progresso é a catástrofe, e a cena em que ele está junto com Marquim do Tropa e
catástrofe presente já ocorreu: não se trata apenas de Franklin Ferreira no carro-nave, preparando-se para um
imaginar um futuro tenebroso a partir de tendências motim com a finalidade de tomar o Congresso Nacional.
negativas que transcorrem no presente, mas de Era uma vez Brasília incorpora na própria montagem o
projetar a imagem do passado no futuro. A distopia é anacronismo, justapondo momentos muito distintos
uma profecia do passado. Era uma vez Brasília dá a ver da trama sem traçar limites claros entre as duas cenas,
uma atmosfera de passividade e pessimismo através que parecem uma só: primeiro WA4 almejava matar JK,
de personagens enclausurados que não propriamente mas ele chega a Brasília no dia da votação do impea-
agem, mas estão sempre em vias de agir e, por outro chment na Câmara, então o personagem muda de
lado, o filme alude às lutas e derrotas passadas por objetivo e se alia aos insurgentes num plano de revolta
meio de uma obra que é um “aviso de incêndio”. na data da votação do impeachment no Senado. No

78 CAP 4
carro-nave, junto com Marquim e Franklin, WA4 ouve o A montagem que une os sons de arquivo e a encenação
pronunciamento de Dilma Rousseff no Senado: ficcional cria uma inusitada combinação que resulta
em algo como uma distopia documental. Voltemos à
O passado da América Latina, do Brasil, sempre definição de distopia: segundo Fátima Vieira (2010),
teve interesses de setores da elite econômica e a distopia é uma forma de ucronia, pois se situa não
política que foram tolhidos pelas urnas, e não apenas num determinado espaço, mas principalmente
existiam razões jurídicas para uma destituição
no tempo, projetando imagens pessimistas do futuro.
legítima. Conspirações eram tramadas, resul-
tando em golpes de Estado. O presidente Getúlio
Para Lyman Sargent (1994), as utopias são quaisquer
Vargas sofreu uma implacável perseguição, a formas narrativas que fabulam não-lugares situados
hedionda trama orquestrada pela chamada no espaço e no tempo, que são reconhecidamente
República do Galeão o levou ao suicídio. O presi- bons ou mau lugares, ou seja, muito melhores ou
dente Juscelino Kubitschek, que construiu esta
piores do que aqueles em que o autor e o espectador
cidade, foi vítima de constantes e fracassadas
tentativas de golpe. O presidente João Goulart, vivem, assemelhando-se a sonhos ou pesadelos. A
defensor da democracia, dos direitos dos traba- distopia de Era uma vez Brasília, por sua vez, apresenta
lhadores e das reformas de Base, superou o golpe um lugar entre a irrealidade de um cenário repleto de
do parlamentarismo. Mas foi deposto, e instau-
motins e com uma guerra intergaláctica, e, por outro
rou-se a ditadura militar em 1964. Durante 20
anos vivemos o silêncio imposto pelo arbítrio,
lado, imagens documentais da Praça dos Três Poderes
e a democracia foi varrida de nosso país. Hoje, no dia da votação do impeachment na Câmara, como
mais uma vez, ao serem contrariados e feridos também sons de arquivo de discursos dos deputados,
nas urnas os interesses de setores da elite econô- de Dilma e de Temer que documentam o momento em
mica e política, nos vemos diante do risco de uma
que o filme foi realizado: o Brasil no ano 0 pós-Golpe,
ruptura democrática, invoca-se a constituição,
para que o mundo das aparências encubra hipo- como informa a sinopse do longa-metragem.
critamente o mundo dos fatos.

79 CAP 4
O filme traz à tona um presente à imagem e seme- Vieira. O testemunho da personagem, no entanto,
lhança de futuro distópico. Como afirma Jameson se cruza com uma história inventada que ela conta
(2005), a imaginação distópica não prevê o futuro, mas sobre Corina, uma companheira do presídio que era
reestrutura a nossa experiência e impele o espectador prostituta e havia matado um “dono de gado e usina”
a se desfamiliarizar com o presente, pois este é o seu que não pagou pelo programa. “Ela cortou a cabeça
método de fazer apreender o presente como história. dele, abriu a barriga dele, enfiou a cabeça dele dentro,
Era uma vez Brasília apresenta uma montagem entre costurou, e tacou fogo”, narra a personagem. Era uma
imaginação distópica e documentação que promove vez Brasília também apresenta uma cena banal em
um estranhamento diante do presente e parece nos que Andreia conversa com seu filho enquanto ele lava
anunciar: estamos vivendo em tempos distópicos, um os pratos, relatando que teve filho quando era muito
futuro repleto de passado nos aguarda. nova, com apenas 16 anos. Segundo Adirley Queirós
(apud MESQUITA, 2017), o filme realiza uma etnografia
O filme apresenta personagens reais envolvidos em da ficção: o mote indicado aos atores era a “cidade-
ações fictícias: Wellington Abreu, Franklin Ferreira, -prisão”, criava-se um espaço da ficção onde eles deve-
Marquim do Tropa e Andreia Vieira. Andreia conta a riam adentrar, e então eles eram filmados ao modo de
Marquim, numa passarela sobre a linha do metrô, uma etnografia, impulsionados a recuperar memó-
que passou alguns anos na cadeia após ter matado rias e até mesmo alucinações que tiveram na prisão.
acidentalmente com um taco de sinuca um homem
que teria passado a mão nela no bar. Adirley Queirós
comenta em entrevista para o Catálogo do Forumdoc “Brasília é uma prisão ao ar livre”, dizia Clarice Lispector
de 2017 que aquela era a história verídica de Andreia (1999, p. 294) em sua crônica Nos primeiros começos

80 CAP 4
de Brasília. O espaço panóptico6 também é construído A diegese distópica radicaliza o controle que o Estado
na diegese de Branco sai, preto fica, com toques de exerce sobre as populações da periferia ao fabular
recolher e passagem interditada entre cidade satélite uma assimilação entre o espaço da cidade e a prisão.
e Plano Piloto, por onde só se passa apresentando um
passaporte. A distopia documental de Era uma vez Na cena que apresenta imagens documentais do dia
Brasília alia o testemunho de Andreia Vieira à ence- da votação do impeachment na Câmara, Marquim se
nação que mostra a polícia vigiando constantemente os encontra sentado em sua cadeira de rodas, vestindo
passos da personagem, criando um espaço panóptico uma máscara de metalúrgico, enquanto transcorrem
em que a prisão é o modelo de controle dos corpos feito discursos dos deputados em off. Um helicóptero
através da vigilância ininterrupta e do processo infinito. da polícia se aproxima cada vez mais de Marquim,
ouve-se o pronunciamento entusiasmado do depu-
tado Fernando Francischini (ex-delegado da Polícia
6 – O panóptico é uma construção criada por Jeremy Bentham, constituída
por uma torre central com largas janelas que tem na periferia uma edifi- Federal integrante da chamada “bancada da bala”),
cação na forma de um anel, dividido em celas com janelas por onde passa do Partido Solidariedade: “Eu voto pelo fim da facção
a luz vinda da torre central, de onde se pode vigiar todos os encarcerados.
Essa construção é a figura arquitetural a partir da qual Foucault (1987) reflete criminosa lulopetista. Fim pra pelegagem da CUT. Fim
sobre o dispositivo disciplinar. Para ele, a sociedade disciplinar prescreve
da CUT e seus marginais. Viva a Lava Jato, República de
a cada corpo o seu lugar através do poder onisciente e onipresente, incor-
rendo em classificações que traçam divisões a partir das quais se exerce a Curitiba, e a minha bandeira nunca será vermelha. Sim,
vigilância e o controle permanente. Em Vigiar e punir, Foucault narra como
se passa da disciplina-bloco, um dispositivo de exceção que rompia com a
presidente, SD Paraná vota sim!”. O filme evidencia a
comunicação e o tempo (a exemplo da cidade pestilenta), para a disciplina- presença do aparato, incluindo as sombras da câmera
-mecanismo nos séculos XVII e XVIII, que se expande por todo o corpo social
em procedimentos de vigilância mais sutis e rotineiros de um poder produ- e de integrantes da equipe na cena. Em entrevista
tivo, que torna os corpos úteis. Em Foucault, as escolas, os quarteis, as concedida à Tribuna de Minas, Adirley Queirós relata
fábricas, os hospitais, os manicômios, são parecidas com as prisões, pois são
amparados no mesmo dispositivo disciplinar, que divide, para melhor vigiar, que os helicópteros da polícia de fato se aproximaram
controlar e evitar “contágios”, os indivíduos em bons e maus alunos, soldados
da filmagem para investigar o que ocorria ali: “a
obedientes e desertores, operários produtivos ou improdutivos e/ou rebeldes,
pacientes doentes e sãos, normais e loucos, cidadãos comuns e bandidos. gente provoca aquele helicóptero, em certo sentido,

81 CAP 4
a gente queria provocar uma atenção7”. Através da a duração das cenas no interior da nave é extenuante,
encenação-provocação, é possível transcender os o silêncio e a solidão do personagem convivem com
limites da diegese, o filme se abre ao acaso e age a paisagem sonora de um presídio, com ruídos metá-
diretamente no mundo, interferindo no curso dos licos de chaves e portas sendo trancadas. Durante a
eventos. A montagem dos arquivos sonoros se une viagem no espaço-tempo, antes de se aproximar de
à mise-en-scène que interage com a interferência da sua chegada,WA4 parece “fora do tempo”, isolado e

polícia no curso da ação, fabricando uma atmosfera num fluxo para além de uma situação histórica precisa.

distópica a partir de elementos do real: o discurso


fascista, a vigilância da polícia, nada disso é inven- Adirley Queirós comentou em entrevista à revista Trip8
tado, tudo faz parte de um “real distópico”. que o seu cinema se inspira muito em dois ensaios do
cineasta Glauber Rocha: Eztetyka da fome e Eztetyka
do sonho. Da Eztetyka da fome, o diretor herda o inves-
A impressão de aprisionamento é transmitida no filme
timento no potencial político de um cinema produ-
não apenas através de procedimentos mais evidentes
zido com parcos recursos, realizando dois filmes de
como a presença de viaturas, guardas e pessoas alge-
ficção científica de baixo orçamento e com estruturas
madas, como também é fabricada por meio da clausura
mambembes. A aposta na violência das massas, que
do personagem WA4 na sua viagem feita pela nave.
Glauber defende na Eztetyka da fome ao afirmar
Adirley Queirós afirmou em entrevista que o cenário
que “a mais nobre manifestação cultural da fome é a
da nave simula algo próximo a uma cela de prisão, e
que Wellington Abreu passou horas confinado naquele
cenário no decorrer da filmagem. Os planos são longos, 8 – Nesta mesma entrevista, o cineasta afirma que buscou criar um lugar
pós-apocalíptico onde qualquer um que protestasse ou fizesse greve seria
preso, abordando o avanço do fascismo no país, algo que já se iniciava no
governo Dilma, quando foi aprovada a Lei Antiterrorismo. Disponível em:
7 – Fonte: <https://tribunademinas.com.br/noticias/cultura/25-01-2018/o-au- <https://revistatrip.uol.com.br/trip/uma-entrevista-com-adirley-queiros-dire-
diovisual-nao-consegue-ser-tao-absurdo-como-temer.html > tor-de-branco-sai-preto-fica-e-era-uma-vez-brasilia.>

82 CAP 4
violência” (ROCHA, 2004, p. 66), é também evocada nos de Pedro Torre, referente ao dia da inauguração da
filmes de Adirley Queirós, seja na explosão de Brasília capital. O narrador brada: “sob o troar da salva de
com uma bomba de ondas sonoras em Branco sai, preto 21 tiros da artilharia e os acordes do hino nacional, o
fica, seja na atmosfera apocalíptica criada em torno da presidente hasteou a bandeira brasileira na Praça dos
iminência de uma rebelião para tomar o Congresso em Três Poderes, a bandeira que vai tremular no céu de
Era uma vez Brasília. Da Eztetyka do sonho, o cineasta Brasília simbolizará o país que se tornou maior”. Em

herda o uso da imaginação como forma de desreali- seguida, ouvimos JK discursar:

zação de um mundo ao qual nos acostumamos: “arte


revolucionária deve ser uma mágica capaz de enfeitiçar Meu pensamento volta-se nesse instante para
as novas gerações que colherão o fruto do nosso
o homem a tal ponto que ele não mais suporte viver
trabalho, encontrando um Brasil diferente, um
nesta realidade absurda” (ROCHA, 2004, p. 251). Brasil integrado ao seu verdadeiro destino. A
data de hoje tornou-se histórica para o Brasil,
porque a gloriosa evocação do passado junta-se
* O DESMANCHE DO DESENVOLVIMENTISMO agora à epopeia da construção da nova capital
que acabamos de inaugurar. Saudamos assim a
Durante a viagem, WA4 fuma um cigarro e peram- um só tempo o passado e o futuro de nossa pátria
bula ansioso no interior da nave, enquanto transcorre através de dois acontecimentos que se ligam num
ideal comum que os animaram: o de fazer o Brasil
o som de arquivo do filme Brasília, ano 209 (1980),
afirmar-se como nação independente.

9 – O filme, encontrado em visita ao Arquivo Público do Distrito Federal, é


feito basicamente com imagens de arquivo e narração, constando nos
créditos que foi exibido na Rede Tupi de Televisão, não informando a
direção, mas sim a montagem de Pedro Torre. Brasília, ano 20 foi produ- construção da cidade (de 1957 a 1960), a Novacap encomendou dezenas
zido pela Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap), empresa de cinejornais que eram exibidos antes dos longas-metragens ficcio-
pública criada em setembro de 1956 e responsável pela construção e nais nas salas de projeção. Com a massificação dos aparelhos de TV, a
manutenção da capital federal e das cidades satélites. No período da Novacap passa a produzir filmes institucionais para o meio televisivo.

83 CAP 4
Em Brasília, ano 20, esta narração é montada sobre as acidente de carro que gerou muitas controvérsias11.
imagens de JK hasteando a bandeira nacional junto Como afirma Marcelo Coelho (1991), Brasília foi
a militares, ao som de uma marcha militar. O filme, erguida sob os argumentos da segurança nacional
produzido em pleno governo do general Figueiredo, (longe da costa e das aglomerações urbanas) e da
celebra os 20 anos da inauguração da capital forjando integração nacional (a ocupação do Planalto Central
continuidades entre o desenvolvimentismo da gestão se vinculava a um projeto de construção de estradas
de Juscelino e o da ditadura militar. Na definição que ligariam a capital às mais diversas partes do país),
de Bresser-Pereira (2013), o desenvolvimentismo é e a ditadura militar soube se apropriar desse legado.
uma forma de organização econômica e política do A montagem de Era uma vez Brasília se apropria de
capitalismo baseada numa intervenção moderada do forma irônica do som de arquivo de Brasília, ano 20,
Estado na economia e no nacionalismo econômico. que fala em “dois acontecimentos que se ligam num
O desenvolvimentismo da ditadura se somava ao ideal comum”, desenvolvimentismo, traçando compa-
terror de Estado, e o próprio JK fora perseguido pela rações entre Juscelino e os governos petistas, projetos
ditadura, perdendo seus direitos políticos no Golpe esses que, por sua vez, deram lugar a outras formas de
de 6410 e mais tarde, em 1976, acabou morto num

11 – O relatório da Comissão de Verdade de Minas Gerais apresentado


em dezembro de 2017 concluiu que há fortes indícios de que Juscelino
Kubitschek tenha sofrido um atentado político. Anteriormente, a Comissão
10 – Entre o governo JK (1956-1961) e a ditadura militar (que teve como Nacional da Verdade havia indicado que a morte teria sido acidental, já
primeiro presidente Castelo Branco, de 1964 a 1967), houve três presi- os relatórios das comissões do estado de São Paulo e da capital haviam
dentes: Jânio Quadros (31 de janeiro a 25 de agosto de 1961), Ranieri apontado que JK fora assassinado. Fonte: <http://www1.folha.uol.
Mazzilli (agosto a setembro de 1961), João Goulart (7 de setembro a 2 de com.br/poder/2017/12/1942867-comissao-da-verdade-de-mg-diz-que-
abril de 1964), mais uma vez Ranieri Mazzili (2 de abril a 15 de abril de 1964). -provavelmente-jk-foi-morto.shtml>

84 CAP 4
elogio ao progresso, seja o autoritarismo da ditadura oficina de desmanche na Ceilândia. A cenografia faz
militar, seja o neoliberalismo aliado às tendências alusão ao alto crescimento do setor automobilístico,
fascistas do período pós-impeachment. ícone do desenvolvimentismo, nos governos de JK
(exaltado como o presidente que abriu o caminho

A justaposição de sons de arquivo à encenação para a consolidação de uma indústria automobilís-

ficcional também foi um procedimento recorrente tica no país ao criar o Grupo Executivo da Indústria
em outro filme de Adirley Queirós, A cidade é uma Automobilística - GEIA12 e fomentar a construção
só? (2011), que montava sons de arquivo de filmes de rodovias) e Lula (que zerou o Imposto sobre
institucionais da Novacap, a exemplo de O bandeirante Produtos Industrializados – IPI- dos carros de até
(1957) e As primeiras imagens de Brasília (1957), 1000 cm³, proporcionando a compra de veículos
ambos de Jean Manzon, e Novacap ano 25 (1981), de financiados por indivíduos da chamada “nova classe
Dino Cazzola. O procedimento repetido em Era uma C”13); indústria que mais tarde teve fraca projeção
vez Brasília incorre numa condensação dos tempos, na gestão Dilma, e a presidente sofreu fortes
num trânsito entre passado e presente, que acontece represálias dos empresários (estes não pensaram
concomitantemente ao fluxo entre o documentário duas vezes antes de apoiar o impeachment da
e a ficção, elaborando uma historicização da cena e presidente, através de entidades como a Federação
uma ficcionalização da história.

A construção do espaço fílmico é fundamental para


12 – Mais informações em: <https://quatrorodas.abril.com.br/
a crítica ao desenvolvimentismo elaborada em Era noticias/a-pre-historia-da-industria-automobilistica-no-brasil/>

uma vez Brasília. Não por acaso WA4 viaja numa nave
13 – Mais informações em: <https://motorshow.com.br/
que tem a forma de um automóvel e pousa numa dilma-destruiu-o-legado-de-lula-no-mercado-de-automoveis/>

85 CAP 4
das Indústrias do Estado de São Paulo – FIESP14). A anacrônica, Era uma vez Brasília cria uma alegoria
FIESP, inclusive, soube se apropriar das manifesta- que ironiza as promessas e os fracassos das polí-
ções de junho de 2013, iniciadas pelo Movimento ticas desenvolvimentistas do passado e do presente.
Passe Livre (MPL), em São Paulo, contra o aumento
da tarifa do transporte público. Sob o lema “vem pra
Era uma vez Brasília se apropria dos códigos da ficção
rua”, apropriado pelos manifestantes de um jingle da
científica ao apresentar um carro-nave que viaja
FIAT, os protestos se espalharam por todo país, trans-
entre planetas e tempos. Como afirma Darko Suvin
formados numa atmosfera de insatisfação geral que
(1978), a existência de um novum, ou uma tecnologia
posteriormente foi capitalizada contra o governo
não-existente que produz um experimento corporal
Dilma15. Através do personagem e da cenografia
e é determinante na condução da narrativa, cons-
titui a essência da ficção científica. Segundo Jameson
14 – Em março de 2016, a FIESP chegou a estampar nos principais jornais do
país uma campanha a favor do impeachment de Dilma Rousseff. Sob os lemas
(2005), algumas fabulações da ficção científica
“impeachment já” e “chega de pagar o pato”, a entidade se apropriava do entu- produzem alegorias que articulam o corpo, o tempo
siasmo das manifestações de rua e pressionava deputados e senadores pela
aprovação do impeachment da presidente. Fonte: <https://brasil.elpais.com/ e a coletividade: são narrativas em que o corpo pode
brasil/2016/03/30/politica/1459289168_509972.html>

15 – Segundo Céli Regina (2017), se as manifestações de rua no decorrer da


década de 1980, durante o processo de redemocratização do país, eram mais tarde convertido em antipetismo. Como informa a autora, em 2013,
formadas em sua maioria por grupos de esquerda e de centro-esquerda, a a popularidade de Dilma passou de 65% que consideravam seu governo
partir de 2013 iniciou-se um crescimento da presença de setores da direita nas bom ou ótimo em março, para 30% em junho. A impopularidade de Dilma
ruas, algo intensificado nos anos de 2014 e 2015. As manifestações de junho cresceu durante a Copa do Mundo de 2014, evento associado a gastos exor-
de 2013 eram marcadas por uma fragmentação discursiva e pela presença dos bitantes e corrupção, tendo como ápice as vaias recebidas pela presidente
mais diferentes indivíduos, a exemplo de black blocs com sua tática de ação na ocasião da abertura da Copa, em 12 de junho de 2014. Após Dilma vencer
violenta e anarquista de destruição de símbolos do capitalismo, passando as eleições com uma diferença de apenas 3,28% dos votos, setores conser-
por professores e bancários exigindo maiores salários, médicos revoltados vadores da classe média (reunidos por organizações como Movimento Brasil
com a vinda de médicos cubanos e pessoas pedindo intervenção militar. Livre, Vem pra rua e Revoltados Online) ocuparam as ruas, inconformados
Clamando por reivindicações imprecisas a exemplo de “mais educação”, com a derrota de Aécio Neves: cerca de dois milhões de pessoas partici-
“mais saúde” e “mais segurança”, eles eram unidos pelo antipartidarismo, param de protestos em março de 2015 para pedir o impeachment de Dilma.

86 CAP 4
alcançar largas extensões temporais, transcendendo o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que
a vida individual e abrigando uma experiência tinha como um dos eixos o Minha casa, minha vida16, que
coletiva. A consequência dessa tríade entre corpo, favoreceu o incremento da especulação imobiliária.
tempo e coletividade nas alegorias da ficção cientí-
fica é a intersecção entre tempo existencial e tempo Nas análises Marcelo Coelho (1991), sobre o governo
histórico: este é o caso do personagem WA4, que ao JK, e de Bresser-Pereira (2013), sobre as gestões do
viajar no espaço-tempo viaja também pela história PT na presidência, uma conclusão permanece acerca
do país, e sua trajetória na trama é propulsora de do desenvolvimentismo: a realização do projeto
encadeamentos entre diversos momentos históricos desenvolvimentista depende fortemente da coalizão
que cristalizam uma totalidade signitificante. de classes, conciliando os interesses dos empresá-
rios industriais, dos operários e da burocracia estatal

A presença do personagem e da cenografia anacrônica


como alegoria que faz a sobreposição dos tempos na 16 – A locação onde se situa o container, um terreno onde estão sendo
crítica ao desenvolvimentismo também se faz valer construídos altos edifícios, é a alegoria que conecta as desventuras de dois
projetos desenvolvimentistas: o Programa de Metas de JK e o Programa de
em Branco sai, preto fica, em que o agente terceirizado Aceleração do Crescimento (PAC), criado em 2007 no governo Lula (quando
Dilma era ministra-chefe da Casa Civil). Este último visava o aprimoramento
de Estado, Dimas Cravalanças, viaja numa máquina do da infraestrutura das cidades e o desenvolvimento social através do programa
tempo que é um container de obras, chegando a um Minha casa, minha vida. Cunhado em 2009, o Minha casa, minha vida oferecia
subsídios para a compra de imóveis por indivíduos de classes mais baixas,
terreno com altos edifícios em construção: a máquina deste modo, “(...) as medidas do PAC além de gerar crescimento direto através
de construção de moradias e infraestrutura, gerou também o estímulo ao
do tempo tanto é Brasília, meta-síntese do Plano de
investimento privado no setor graças à expansão e acessibilidade ao crédito”
Metas de JK que prometia fazer o país avançar “50 anos (POSSENTI; PONTILI, 2015, p. 8). A promessa de ascensão social feita pelo
discurso desenvolvimentista é ironizada em Branco sai, preto fica numa cena
em 5”, quanto os governos Lula e Dilma, que atendiam a fortemente teatral e anti-naturalista em que Dimas percorre um cenário repleto
de metais enferrujados e grita, apontando uma arma invisível para a câmera:
interesses da construção civil e da classe média em prol
“prá prá, toma aí, paga pau do progresso, prá prá, toma aí, 225 prestação”,
do crescimento econômico através de iniciativas como numa referência às inúmeras prestações a serem pagas na compra de imóveis.

87 CAP 4
tendo em vista o crescimento da indústria, a ascensão * OS ALIENÍGENAS DA CEILÂNDIA
social dos trabalhadores e a expansão econômica.
Como afirma Miriam Cardoso (2013, p. 207), apesar
Num túnel na entrada de uma estação de metrô que liga
de o desenvolvimentismo ter se esgotado na década
a Ceilândia à região central de Brasília, Marquim está
de 1970, a ideologia do desenvolvimentismo persiste,
posicionado em sua cadeira de rodas, vestindo uma
pois “(...) inculca tão profundamente o crescimento
máscara de metalúrgico, quando passam os guerreiros
econômico como valor primeiro na sociedade que
(entre eles WA4 e Andreia Vieira) gritando num
nesta sociedade se passa em geral a acreditar que
instrumento que tem a forma de uma caveira. Numa
este é ‘o’ ‘seu’ ‘destino’ ‘promissor’, sempre deslo-
das últimas cenas do filme, eles aparecem gritando
cado para o futuro”. Esta política de conciliação de
classes é colocada em xeque pelo cinema de Adirley mais uma vez junto a uma semiesfera do Congresso

Queirós: desde A cidade é uma só?, em que o perso- Nacional. Esta cena é impregnada da memória
nagem ficcional Dildu, candidato a distrital, fracassa das manifestações de junho de 2013: num notável
em sua campanha que busca transpor o fosso entre protesto, os manifestantes ocuparam a cobertura do
Ceilândia e Plano Piloto; passando por Branco sai, Congresso Nacional17. As cenas são carregadas de
preto fica, em que Dimas se une aos homens perifé- certa melancolia perante uma luta que se arrefeceu,
ricos para explodir Brasília, indo de encontro à concil- uma batalha encaminhando-se para ser perdida.
iação proposta pelo Estado através da indenização
das vítimas da invasão policial no baile black; e, por
fim, Era uma vez Brasília alegoriza a possibilidade (e
17 – Mais informações nesta notícia: <http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/
a dificuldade) de resistência dos mais pobres às polí-
noticia/2013/06/manifestantes-ocupam-cobertura-do-congresso-nacional-
ticas neoliberais em curso, estimuladas pelas elites. -em-brasilia.html>.

88 CAP 4
Os guerreiros são alienígenas que participam de um figuras estranhas que alegorizam os excluídos. Em Era
Torneio Intergaláctico, WA4 vem do “outro planeta” uma vez Brasília, é como se os guerreiros alienígenas
chamado Sol Nascente que fica logo ali, a maior fossem uma faceta dos trabalhadores aprisionados
favela do Distrito Federal. Os alienígenas são da que aparecem nos vagões do metrô, é como se eles
Ceilândia. A periferia é outro planeta. A fabulação retornassem sob a forma de insurgentes atravessando
do espaço que transforma a exclusão entre periferia o túnel. Os alienígenas de Era uma vez Brasília são
e Plano Piloto numa separação entre planetas alegorias dos trabalhadores das cidades satélites que
diferentes se apropria dos códigos do gênero da têm a sua força de trabalho explorada no Plano Piloto
ficção científica para realizar a crítica ao presente. e que sofrem com a violência do Estado na periferia.
Segundo John Rieder (1982, p. 26), “na literatura
‘escapista’ de ficção científica, fantasias de liberdade
O espaço do metrô é de suma importância para a trama
e poder são transformadas novamente em pesadelos
também em outro filme de Adirley Queirós, Branco sai,
de impotência e confinamento ”. John Rieder rela-
18
preto fica. Nele, a bomba de ondas sonoras produzida
ciona o alienígena, tão frequente no imaginário da
por DJ Jamaika e Marquim, a ser lançada sobre Brasília,
ficção científica, à problemática da alienação: os
é acionada com a energia oriunda do metrô. O metrô,
alienígenas dão vida à alienação do eu em corpos
lugar de ligação entre dois mundos, a periferia e o
que não são apenas pertencentes aos indivíduos,
Plano Piloto, aparece nos dois filmes como um espaço
mas propriedades administradas por donos. Eles
do surgimento de resistências, cenário da ruptura com
são projeções do outro e encarnam outsiders consti-
determinado estado de coisas, máquina de destruição.
tuídos a partir de uma situação histórica específica,

O uso da máscara de metalúrgico por Marquim, um dos


18 – No original: “In the ‘escapist’ literatura of SF, fantasies of freedom and
power are transformed again into nightmares of impotence and confinement”. líderes de uma revolução porvir em Era uma vez Brasília,

89 CAP 4
não é sem intenção. A máscara de metalúrgico funciona O filme se relaciona não só com a história, mas também
como objeto anacrônico no filme, conectando o presente com a história do cinema, pois as greves do ABC foram
“instante de perigo”, marcado profundamente por uma tema de diversos filmes do cinema brasileiro: ABC da
dificuldade de agir, ao passado das lutas dos operários greve (1990) e Eles não usam black-tie (1981), ambos de
metalúrgicos do ABC paulista, que contribuíram de Leon Hirszman, Linha de montagem (1982), de Renato
maneira decisiva para a intensificação da crise do regime Tapajós, Greve! (1979), de João Batista de Andrade e
militar e o processo de redemocratização no país19. Peões (2004), de Eduardo Coutinho.

Quando os metalúrgicos do ABC paulista entraram


19 – Segundo Marco Aurélio Santana (2008), o movimento sindical teve um em greve em 1978, abrindo caminho para a para-
grande avanço de mobilização nos anos 1950, até ser reprimido com a instau-
ração da ditadura militar em 1964, que visava impedir a criação de uma “repú-
lisação que se seguiu em outras categorias, eles
blica sindicalista” no país. Os candidatos aos sindicatos eram escolhidos pelo rompiam com os limites estreitos estabelecidos
Ministério do Trabalho, tinham alguns direitos maiores que aqueles previstos pela lei antigreve, com o “arrocho salarial” e o
na CLT, e, na prática, o direito de greve não existia. No ano de 1968, a greve
silêncio geral ao qual havia sido forçada a classe
dos operários da siderúrgica Belgo-Mineira, em Contagem, conseguiu um
abono salarial de 10% e fez refluir o movimento sindical. Ao final de 1968, o trabalhadora. Com isso, eles impactaram alguns
Ato Inconstitucional n°5, no governo de Costa e Silva, promove o aumento dos pilares de sustentação política e econô-
da repressão, fechando o Congresso e decretando formalmente o estado de mica da ditadura militar (SANTANA, 2008, p. 296).
exceção. A partir de 1969, o general Médici endurece ainda mais o terrorismo
de Estado para conter a luta armada dos militantes de esquerda. Em 1974, a
ditadura amarga o fracasso do “milagre econômico” e Ernesto Geisel afirma o
compromisso com um processo lento e gradual de abertura política. No ano Lançado em tempos de Reforma Trabalhista e
de 1979, o movimento grevista iniciado no ABC paulista em 1978 irá conquistar
amplitude nacional. Em 12 de março de 1979, em plena transição para o
recrudescimento do fascismo, Era uma vez Brasília
governo de Figueiredo, mais de 50 mil metalúrgicos cruzaram os braços e inter- retoma de forma alegórica as lutas passadas para
romperam o trabalho das máquinas. Em 1° de abril de 1980, cerca de 200 mil
metalúrgicos do ABC entraram numa greve que se prolongou por 41 dias. Neste estabelecer tensões com as possibilidades de luta
mesmo ano, foi fundado o Partido dos Trabalhadores (PT). Luís Inácio Lula da no presente. Contudo, o passado não é convocado
Silva e outros líderes chegaram a ficar presos durante alguns dias, e em 1981
foram processados com base na Lei de Segurança Nacional. tendo em vista apontar para um horizonte utópico,

90 CAP 4
mas o filme sugere um futuro distópico que, mesmo anticlímax20, e o clima de apatia política característico
que se assemelhe tanto ao passado, não se encerra do contexto em que o longa foi lançado é transmitido
no pessimismo e se abre para outras possibilidades, por meio de uma atmosfera de clausura e da crise da
reivindicando o espectador para a ação. ação incrustada na própria narrativa cinematográfica.

* O ANTICLÍMAX O filme chega a ironizar os clichês do cinema de


gênero, como na cena em que ocorre uma perse-

A última sequência de Era uma vez Brasília prepara o guição de carro na Ceilândia. WA4, Franklin e

espectador para uma revolta na capital ao final do filme. Marquim esperam por alguém que não sabemos

Na oficina de desmanche, WA4 atira num veículo. Ele, quem é, e no momento da perseguição a cena é

Andreia, Marquim e Franklin observam atentamente, filmada a distância, num longo plano fixo, e eles

num longo plano fixo, o carro pegando fogo. Esta retornam sem que nada aconteça: sem a montagem

imagem, que parece o prelúdio de uma insurreição, em ritmo intenso, sem os movimentos de câmera

se aproxima de uma cena de Branco sai, preto fica, sinuosos, sem a ação característica deste tipo de

quando Marquim toca fogo num sofá em que ele havia cena no cinema blockbuster. Na última cena, WA4,

colocado diversos discos com músicas que lhe desper- Andreia e Marquim se encontram na passarela sobre

tavam uma nostalgia em relação aos tempos em que a linha do metrô. Ouvimos o pronunciamento de

dançava nos bailes no 5 da Norte. No entanto, dife- posse de Michel Temer:

rente de Branco sai, preto fica, quando desenhos feitos


à mão mostram a bomba de ondas sonoras destruindo
20 – Nesta entrevista ao portal Cinefestivais, Adirley Queirós afirma que
os monumentos de Brasília ao som de gritos e da em Era uma vez Brasília ele rompe o pacto com o espectador e não
propõe nenhuma catarse ao final do filme, estruturado como um longo
música Bomba explode na cabeça, de MC Dodô, não
anticlímax: <http://cinefestivais.com.br/adirley-queiros-fala-sobre-era-u-
há final catártico. Era uma vez Brasília é um filme de ma-vez-brasilia-seu-filme-de-anticlimax/>.

91 CAP 4
Boa noite a todos. Assumo a presidência do Brasil aplique a todos, inclusive aos mais poderosos. É
após decisão democrática e transparente do o que o Brasil mostra ao mundo. E o faz por meio
Congresso Nacional. O momento é de esperança de um processo de depuração de seu sistema
e de retomada da confiança no Brasil. A incerteza político. Temos um judiciário independente, um
chegou ao fim. É hora de unir o país e colocar ministério público atuante, e órgãos do execu-
os interesses nacionais acima dos interesses de tivo e do legislativo que cumprem seu dever. Não
grupos. Esta é a nossa bandeira. Tenho consci- prevalecem vontades isoladas, mas a força das
ência do tamanho e do peso da responsabilidade instituições sob o olhar atento de uma sociedade
que carrego nos ombros. Meu compromisso é o plural e uma imprensa inteiramente livre. Nossa
de resgatar a força da nossa economia. E reco- tarefa agora é retomar o crescimento econômico,
locar o Brasil nos trilhos. Há muitíssimos meses e restituir aos trabalhadores brasileiros milhões
atrás dez, onze meses, nós lançamos até eu, de empregos perdidos. Temos clareza sobre o
ainda até vice-presidente, lançamos um docu- caminho a seguir. O caminho da responsabilidade
mento chamado “uma ponte para o futuro”, que fiscal e da responsabilidade social. A confiança já
nós verificávamos que seria impossível o governo começa a reestabelecer-se. E um horizonte mais
continuar naquele rumo. E até sugerimos ao próximo já começa a desenhar-se.
governo que adotasse as teses que nós apon-
távamos naquele documento chamado “ponte
para o futuro”. E como isso não deu certo, instau- O discurso de posse de Temer é marcado pela refe-
rou-se um processo que culminou agora com a rência constante ao futuro: “recolocar o Brasil nos
minha efetivação como presidente da República.
trilhos”, “uma ponte para o futuro”, “temos clareza
O Brasil acaba de atravessar um processo longo
e complexo, regrado e conduzido pelo Congresso
sobre o caminho a seguir”, “um horizonte mais
Nacional e pela Suprema Corte Brasileira, que próximo já começa a desenhar-se”. O espaço fílmico
culminou em um impedimento. Tudo trans- se contrapõe ao discurso de Temer, a passarela sobre
correu, devo ressaltar, dentro do mais absoluto
os trilhos do metrô é o lugar “fora do radar”, rota de
respeito constitucional. O fato de termos dado
esse exemplo ao mundo verifica que não há fuga, cenário da ameaça de resistência, ponte para
democracia sem Estado de Direito, sem que se outro futuro. O último plano do filme mostra WA4,

92 CAP 4
Marquim e Andreia olhando atentamente para a o presente, a “retomada do progresso”21 evocada
câmera, provocando o espectador. Segundo Rafaella pelo discurso de Temer dá lugar à eterna volta. O filme
Baccolini e Tom Moylan (2003), a distopia crítica reivindica, num final aberto e ambíguo, não a evolução
carrega um impulso utópico, mantém a esperança incessante, mas um salto em direção ao passado na
para fora da obra, e traz um aviso de que é possível alusão à história dos vencidos, e se vincula a um salto em
escapar de um futuro pessimista, apresentando um direção ao futuro, num paradoxo entre a possibilidade e
final aberto e ambíguo. Este é o caso de Era uma vez a impossibilidade de ruptura com a catástrofe presente,
Brasília, que não apresenta o “fim da história”, nem expandindo-se para fora do filme, entre o documentário
proporciona um “happy end” escapista, mas impor- e a distopia, entre a ficção e o mundo.
tuna o espectador e o asfixia com a imobilidade,
para por fim lembrá-lo que a ameaça é real e está em
curso, enquanto pouco ou nada se faz para reagir à
iminência de um futuro repleto de barbárie. 21 – Na tese XIII de Sobre o conceito de história, Benjamin (apud LÖWY, 2005)
afirma que a representação da história fundamentada num progresso infi-
nito da humanidade é baseada num tempo quantitativo, homogêneo e
vazio, e que a crítica do conceito de progresso deve se elaborar a partir
A temporalidade anacrônica do filme busca romper da perspectiva de um tempo qualitativo, heterogêneo e pleno. Na leitura
de Michael Löwy (2005), o que se observa na história não é a continui-
com o tempo do progresso. O desenvolvimentismo dade de uma evolução, mas a existência de alguns momentos de liber-
dade dos oprimidos e interrupção da dominação. Na tese XIV, Benjamin
se renova e é o “ideal comum” a partir do qual o filme
defende que a história seja amparada numa concepção de um tempo
sobrepõe dois projetos situados em tempos distintos, saturado pelo “tempo-de-agora”, constituído por um salto dialético. Para
Löwy (2005, p. 120), “ (...)a revolução é a interrupção da eterna volta e o
o desenvolvimentismo de JK e o das gestões petistas, e surgimento da mudança mais profunda. Ela é um salto dialético, fora
do contínuo, inicialmente rumo ao passado, e, em seguida, ao futuro. O
duas catástrofes, o Golpe de 64 e o governo Temer. Em Era
‘salto do tigre em direção ao passado’ consiste em salvar a herança dos
uma vez Brasília, o passado da ditadura militar assombra oprimidos e nela se inspirar para interromper a catástrofe presente”.

93 CAP 4
* REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BACCOLINI, Rafaella; MOYLAN, Tom. Introduction: COELHO, Marcelo. O lugar das ilusões: Brasília e os
dystopia and histories. In: BACCOLINI, Rafaella; MOYLAN, paradoxos do desenvolvimentismo. Revista Lua Nova
Tom (org.). Dark horizons: Science fiction and the dysto- n°23, março de 1991.
pian imagination. Nova Iorque: Ed. Routledge, 2003.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir – o nascimento da
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.
Ed. Brasiliense: São Paulo, 1984.
JAMESON, Fredric. Archaeologies of the future: the
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Empresários, o governo desire called utopia and other science fictions. Nova
do PT e o desenvolvimentismo. Revista de Sociologia e Iorque: Verso, 2005.
Política v.21, n°47: 21-29, set. 2013.
LISPECTOR, Clarice. Nos primeiros começos de Brasília.
CARDOSO, Miriam Limoeiro. A ideologia persistente do In: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Ed. Rocco,
desenvolvimentismo. Entrevista realizada por Silene 1999.99.pp. XX-XX

de Moraes Freire e Mariela Natália Becher. Em Pauta


– teoria social e realidade contemporânea, Revista da LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio –
Faculdade de Serviço Social da Universidade Estadual uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”.
do Rio de Janeiro (UERJ) – Rio de Janeiro, 2013. São Paulo: Boitempo, 2005.

94 CAP 4
MESQUITA, Cláudia. Era uma vez Brasília: conversa ROCHA, Glauber. Revolução do cinema novo. São
com Adirley Queirós. Catálogo do 21° Festival do Filme Paulo: Cosac Naify, 2004.
Documentário e Etnográfico. Belo Horizonte, 2017.

SANTANA, Marco Aurélio. Ditadura militar e resistência


PINTO, Céli Regina Jardim. A trajetória discursiva das operária: o movimento sindical brasileiro do golpe à
manifestações de rua no Brasil (2013-2015). Revista Lua transição democrática. Revista Política e Sociedade,
Nova, São Paulo, 100: 119-153, 2017. n° 13 – outubro de 2008.

POSSENTI, Camila; PONTILI, Rosângela Maria. Influências SARGENT, Lyman Tower. The three faces of utopianism
do PAC no setor da construção civil, no período de 2007 a revisited. Utopian estudies, vol.5, n.1 (1994), p.1-37.
2012. Conferência Internacional de Gestão de Negócios. Publicado por Penn State University Press.
Cascavel, 2015.

SUVIN, Darko. On what is and what is not SF narration:


RANCIÈRE, Jacques. O conceito de anacronismo e a verdade with a list of 101 Victorian books that should be excluded
do historiador. In: SOLOMON, Marlon (org.). História, from SF bibliographies. In: Science fiction studies. V. 5,
verdade e tempo. Chapecó, SC: Argos, 2011. p.1, março de 1978.

RIEDER, John. Embracing the alien: science fiction in VIEIRA, Fátima. The concept of utopia. In: CLAEYS,
mass culture. Science fiction studies, vol.9, n°1 (Mar., Gregory. Utopian literature. Cambridge Collections
1982), pp.26-37. Online: Cambridge, 2010.

95 CAP 4
* REFERÊNCIAS (SEPARATRIZ )

*Composição visual da abertura de capítulo gerada a 2017. In: CENAS DE CINEMA: https://cenasdecinema.
partir de cenas do filme de ‘Era uma vez Brasília’ (2017), com/era-uma-vez-brasilia/
de Adirley Queirós. Imagens disponíveis em:

FILM AT LINCOLN CENTER. Once There Was Brasília.


ADRIOLI, Wallace. Era uma vez Brasília, a Art of the Real 2018 : https://www.filmlinc.org/films/
distopia do Brasil contemporâneo. 2017. In: once-there-was-brasilia/
MOVIEMENT.NET: https://revistamoviement.net/
era-uma-vez-bras%C3%ADlia-3e632d2e97fe FORA DE QUADRO. Era uma vez Brasília, de Adirley
Queirós (especial Janela de Cinema) : https://forade-
BARROSO, Cecilia. Era uma vez Brasília - Crítica. quadro.com/2017/11/19/era-uma-vez-brasilia-de-a-
dirley-queiros-especial-janela-de-cinema/

96 CAP 4
1 – Professora da Universidad Pedagógica Nacional, México.
* INTRODUCCIÓN

En México, el horror se instaló en la vida cotidiana de la cambios económicos han sido acompañados de nuevas
mayoría de sus habitantes poco a poco. En la década formas de guerra, informales y no convencionales, tal
de 1990 los feminicidios, primero en Ciudad Juárez, como éstas empezaron a configurarse en la ex Yugoslavia
una ciudad fronteriza del norte del país adonde fueron y Ruanda.2 Participan en ellas el crimen organizado, los
emigrando muchas familias en busca de empleo en para- militares, las fuerzas de seguridad oficiales, las
las maquiladoras, y después en otras zonas, fue atra- fuerzas de seguridad privadas, las mafias, las bandas

pando la opinión pública. Las muertes violentas de las y los mercenarios corporativos. Se trata de guerras
que no tienen principio ni fin y que no buscan la paz.
jóvenes obreras fueron noticia de primera plana de los
periódicos, objeto de algunas investigaciones y, crecien-
temente, tema de las películas que, en muchas ocasiones Dichas guerras se libran preferentemente en el

mezclaron los recursos de un documental con los de una territorio de América Latina y son indisociables
“de la dimensión represiva del Estado contra los
película de ficción. Entre ellas está Señorita extraviada
disidentes y contra los excluidos pobres, no-blancos.3
(2001) de Lourdes Portillo, Bajo Juárez: la ciudad
Segato cita a Mary Kalder para argumentar que la
devorando a sus hijas (2008) de Alejandra Sánchez y José
globalización de la economía ha contribuido a este
Antonio Cordero y Backyard: el traspatio (2009), dirigida
nuevo escenario de guerra informal, en que se busca
por Carlos Carrera, con el guion de Sabina Berman.
alcanzar el control territorial no por adhesión de los

A medida que la globalización de la economía fue


afectando nuestra vida y nuestro territorio, las formas 2 – Segato, Rita (2014), Las nuevas formas de guerra y el cuerpo de las mujeres,
Puebla, Pez en el árbol.
de violencia fueron extendiéndose y diversificando. La
antropóloga argentina, Rita Segato, señaló como los 3 – Idem, p. 24.

98 CAP 5
pueblos sino por su desplazamiento, usando técnicas desaparición de las personas- entre ellos el famoso caso
de violencia extrema, que crean un ambiente de de la desaparición de 43 estudiantes de la escuela Normal
terror permanente.4 Las nuevas formas de guerra se Rural de Ayotzinapa-, la trata de mujeres, la corrupción
han expandido justamente después de los años de de la policía y el ejército, las torturas, los asesinatos
las luchas, movilizaciones por establecer límites a las perpetrados por las fuerzas de seguridad.
formas más depredadoras de expoliación capitalista
de la vida, de la riqueza social y de los bienes comunes.5 ¿Pero cómo hablar de tanto horror? Algunos cineastas
muestran la violencia de manera explícita.6 Otros
prefieren dejarla fuera de campo, como los hizo David
Así como los feminicidios, la tragedia de los migrantes
Pablos en Las elegidas (2015), filme que aborda el
centroamericanos y mexicanos que cruzan el territorio
tema de la trata de las adolescentes con fines de la
nacional para adentrarse en los Estados Unidos, asaltados,
prostitución. Recientemente se estrenó en México, la
vejados, desaparecidos o asesinados, llegó rápidamente Tempestad (2016) de Tatiana Huezo, que trata el tema
al cine. De nadie (2005) de Tim Dirdamal, Los bastardos de la desaparición forzada y del encarcelamiento
(2009) de Amat Escalante, La jaula de oro (2013) de de personas inocentes en penales que son de la
Diego Quemada- Diez, para recordar algunos ejemplos. propiedad de las mafias de narcotraficantes. ¿Qué
Otros temas que se volvieron “cinematográficos” es la medios de expresión eligió la también directora del
Lugar más pequeño (2011)? ¿Cómo analizar su filme?

4 – Idem, p. 28.

5 – Por ejemplo, el levantamiento del EZLN en México, revueltas populares en 6 – Un ejemplo podría ser Heli (2013) de Amat Escalante y Días de gracia
Bolivia, movilizaciones en Brasil, Ecuador y Colombia. (2011) de Everardo Gout.

99 CAP 5
Desde que decidí dedicar gran parte de mi vida profe- Siguiendo las propuestas de la hermenéutica simbólica
sional al análisis de las películas mexicanas, y en he aceptado que las películas son interpretaciones y,
algunos casos, las latinoamericanas, fui tratando de como tales, no son algo accesorio a la realidad, sino
construir un método interdisciplinario que articu- el lugar de una “auténtica realización, ejecución,
lara las categorías de análisis estético y el narrativo, configuración o conjugación de lo real.7 De acuerdo con
con otras que provienen de las ciencias sociales. De esta perspectiva los seres humanos no están frente al
esa manera, por un lado, las preguntas por la expre- mundo, sino en él, por lo que no tienen acceso a cosas
sividad de las imágenes visuales y sonoras y por el en sí, a un mundo objetivo e independiente de ellos,
sentido del montaje, siempre se combinaban con sino a una realidad que es resultado de su actividad
la deconstrucción de la estructura narrativa de las cultural, actividad por medio de la cual le dan sentido
obras, con el análisis de las figuras de los narra- y significado a cuanto interviene en sus vidas.
dores y narratarios, el del papel actancial de los
personajes, así como la construcción del tiempo Voy a analizar la película Tempestad (2016) de Tatiana
y espacio en el filme. Por el otro lado, siempre he Huezo desde la perspectiva descrita.
tratado de situar los filmes en los contextos sociales,
políticos y culturales en que fueron realizados e inter-
El campo vacío, el silencio y el acusmaser en la
rogar los modos en que las películas referían estos
construcción del pacto con el espectador.
contextos, de manera literal, metafórica y simbólica.

Ciertamente, nunca he pensado que los filmes sean 7 – Garagalza, Luis (2005), “Hermenéutica del lenguaje y simbolismo”. En:
“espejos” o “representaciones” de una realidad externa. Solares, Blanca y M.C. Valverde (eds.), Sym-bolon, México, UNAM, CRIM: 28.

100 CAP 5
Al inicio de la película aparecen los créditos sobre metálicas y de rejas), situada en el campo o en las
una pantalla negra. Mientras ello ocurre se escuchan afueras de una ciudad (ruido de perros y de los grillos)?
golpes en un objeto metálico, ladridos de perros, y el
ruido de los grillos. La pantalla permanece en negro
Desde luego, una creciente angustia, ante la incer-
durante un largo rato. Y no cambia cuando una voz
tidumbre que crea el no poder ver nada, mientras
femenina acusmática dice lentamente: “Todas las
se escuchas ruidos y una voz que evoca, a veces
mujeres estaban dormidas. Era de madrugada porque
quebrándose, el momento en que le informaron que
la cárcel estaba ya en silencio”. Su voz cesa y la pantalla
había sido liberada. No escuchamos la alegría en
permanece en negro. Ahora escuchamos sonidos de
esta voz. Los largos silencios nos agobian.
puertas metálicas o, tal vez, de rejas, y el ruido de los
grillos. La voz continúa: “De pronto escuché un grito
Una imagen fílmica en que no aparece ningún perso-
que decía mi nombre. Tuve miedo porque no era
naje se llama, dentro de la teoría del cine, “el campo
normal que me hablaran en este horario. Pensé que
vacío”. Puede tratarse de un paisaje rural o urbano.
venían por mí para llevarme al pozo del castigo”. La voz,
En casos extremos se trata de un vacío total, no hay
pronto lo sabremos por ella misma, pertenece a Miriam
ninguna imagen. La pantalla permanece en blanco
Carbajal, quien cuenta el momento en que fue liberada
o en negro. Pero, ¿para qué sirve en el cine el campo
de la cárcel de manera intempestiva, en la madrugada.
vacío? Según diversos teóricos, Eisenstein8, Bürch9 o

¿Qué efectos tiene en el espectador esta articulación


entre la pantalla negra, una voz pausada que deja
8 – Eisenstein, Sergei (1999), El sentido del cine, México, Siglo XXI.
largos silencios y los ruidos que identificamos cada vez
mejor y que son indicios de una cárcel (ruido de puertas 9 – Bürch, Noel (1985), Praxis del cine, Madrid, Fundamentos.

101 CAP 5
Musicco10, todo lo que se escapa a la mirada directa se Así que la primera imagen que aparece en el filme en el minu-
convierte en una sugestión y contribuye a la emoción. Lo to 2:11 y también es un “cuadro vacío” no nos tranquiliza:
que, presentado directamente con todos sus detalles,
podría pasar inadvertido, potencia su fuera dramática
cuando no se le representa. El espectador tiene que
llenar los huecos con su imaginación y con la reflexión.

Conforme a los teóricos citados, el campo vacío


aumenta el suspense angustioso, crea extrañeza en
la percepción y provoca una conmoción psicológica y
está al servicio del terror. Evoca el vacío y la muerte.

Los espectadores mexicanos, que desde hace más de Esa pared, filmada con una cámara fija, con un hueco ir-
dos décadas nos enteramos todos los días y por todos regular genera aún más angustia. La seguirán otras imá-
los medios de comunicación sobre la extrema violencia genes parecidas: paredes sucias, con pintura descarapela-
que vive el país, que identificamos las cárceles con un da, abiertas en algún lugar hacia el exterior… Pero no son
verdadero infierno y sabemos que muchos presos están aperturas “normales” como ventanas o puertas, sino ver-
ahí como “pagadores” , pasamos de la angustia al terror.
11
daderas heridas en el cuerpo de una casa o de un edificio.

10 – Musicco, Daniela (2007), El campo vacío. El lenguaje indirecto en la


comunicación visual, Madrid, Cátedra. Nos preguntamos si esta es la descripción del lugar
en que había sido detenida Miriam. Pero no, en una
11 – Así se llama en México a personas que, siendo inocentes, son encarcelados
para que cumplan condenas por otros. Esos “otros” pagan un alto soborno o
tienen relaciones con alguien influyente quien los protege.

102 CAP 5
cárcel veríamos más bien barrotes y no grandes hoyos reconocerá estas imágenes como indicios de la
por los que podrían salir los presos. Entonces, ¿qué guerra entre las bandas de los narcotraficantes. Eso
representan estas imágenes? Las que siguen nos puede ser Torreón, Matamoros o la Ciudad Juárez.
pueden dar la respuesta.

Las imágenes del exterior nos hablan de una ciudad Las imágenes están sincronizadas con la vos de Miriam:
abandonada, en un proceso de deterioro imparable. “Sabíamos que había un toque de queda en Matamoros
De nuevo, es el espectador mexicano que ha visitado durante la noche. La ciudad estaba como en guerra. Y
las ciudades del norte de su país, es quien fácilmente había enfrentamientos todos los días entre los Zetas y

103 CAP 5
el cártel del Golfo y la policía, y bueno. El abogado que poderlo todo”. 14
Sin embargo, éste no es el caso de
me recogió tenía miedo de que nos levantaran en el la voz de Miriam, presa y ahora liberada para recorrer
camino. Hacía 5 días que acababan de encontrar a 72 más de 2000 km hacia su casa, sin dinero y con total
migrantes en una fosa en San Fernando.” incertidumbre de lo que la espera al llegar.

Pero además de las imágenes tenemos una voz qué La voz de Miriam es tan importante como sus silen-
no está en off, como suele decirse, ni tampoco en over. cios, sus inflexiones. Su voz refleja sus emociones:
Porque la voz, como explica Michel Chion12, cuando el miedo, la parálisis psíquica, la esperanza, y otra
no se ve en la pantalla su fuente, no está ni dentro ni vez, el miedo. Su voz nos afecta tanto más que no
fuera. Esta voz, como la de Miriam, está dentro porque la podemos ver (excepto en una imagen tomada

la estamos escuchando, aunque no veamos a quien la de lejos, en que ella nada en un cenote). De
modo que es un recurso expresivo extraordinario,
emite. Este tipo de voz se llama acusmática. Y el ser al
aunque nuestro principio de realidad nos diga, que
que no podemos ver ni asignarle un rostro, se le llama
también se trató de proteger su identidad, ante
acusmaser.13 De acuerdo con el análisis del teórico
las probables represalias de sus perseguidores.
francés, el acusmaser suele tener en el cine varios
poderes: “estar por doquier, verlo todo, saberlo todo,
Cuando termina esta parte introductoria, el pacto
con el espectador ha sido establecido o éste ya se
ha salido de la sala del cine.

12 – Chion, Michel (2004), La voz en el cine, Madrid, Cátedra: 30.

13 – Idem: 32. 14 – Idem: 36.

104 CAP 5
* EL VIAJE DE MIRIAM: EL ESPACIO Y EL TIEMPO

La segunda parte del filme reconstruye el viaje de Pronto las imágenes tomarán distancia del relato de
Miriam, mientras el personaje narra los primeros Miriam y agregarán información sobre la situación que
sentimientos que tuvo al llegar a la central de los se vive al norte de México. Veremos a soldados fuerte-
autobuses para partir hacia su casa, la historia de mente armados en la estación de autobuses, escucha-
su detención y todo lo que le ha pasado en la cárcel
remos llamadas a los pasajeros para que lleven a
controlada por el grupo delictivo de los Zetas.
revisión sus maletas. Ya en la carretera, la cámara
muestra, por un lado, a los pasajeros del autobús y, por
Pero no son dos relatos articulados sino independi- el otro, lo que ellos están mirando por las ventanas. El
entes: uno contado por la voz acusmática, otro por las
autobús pasa un retén y es detenido en el otro. Ahora
imágenes y registros sonoros. El que la película sobre-
la cámara baja del autobús y filma las revisiones y los
ponga uno al otro, obliga al espectador a preguntarse
interrogatorios que los soldados hacen a los pasa-
por las posibles relaciones. En algunas ocasiones las
jeros. Las preguntas son rápidas: ¿de dónde vienes?
hay, en otras, no. Por ejemplo, cuando Miriam recuerda
a su hijo, vemos a los niños viajando en el autobús y ¿A dónde vas? ¿Para qué viajas? ¿A qué te dedicas?

también a una mujer cargando a un niño. Pero cuando Los hombres y las mujeres responden lo más rápido
Miriam cuenta que fue al baño en la estación de auto- posible, visiblemente preocupados por no levantar
buses y no logró reconocerse en el espejo, la imagen alguna sospecha. Se ven solos frente a un grupo de
muestra una mujer recargada en la pared, esperando. soldados fuertemente armados y muy vulnerables.

105 CAP 5
El autobús reanuda el viaje. Volvemos a ver las imágenes la Ciudad de México en ese momento. (…) Cuando el
dentro y hacia afuera del mismo. De pronto escuchamos avión aterrizó en la Ciudad de México, me di cuenta
a alguien afinando un violín. Es un sonido extraño en que había 20 patrullas rodeando el avión. Nos llevaron
un principio. Pero unos momentos después, cuando directamente a las oficinas de la AFI15. Había como 30
veamos a la gente en un comedor, podremos identificar fotógrafos que empezaron a tomar fotos y un señor,
la fuente del sonido: un hombre sentado afuera, toca ministerio público, nos dijo que estábamos ahí por el
una melodía. Entendemos que en este lugar los pasa- delito de delincuencia organizada y tráfico de personas.
jeros descendieron del camión para tomar alimentos. Nos llevaron a un lugar que se llama “el arraigo””.

El viaje en autobús se reanuda. Mientras vemos la Miriam narra con algunas pausas, pero su voz es más
carretera desde el camión, la voz de Miriam cuenta tranquila, más segura. Mientras tanto, los especta-
cómo fue su detención: dores seguimos viendo lo que miran los pasajeros del
autobús: una carretera en cuyos lados están estacio-
nados los camiones de carga, un puerto, probable-
“Me detuvieron el 2 de marzo del 2010. Ese día me
mente Tampico. De pronto estamos en las calles de
levanté a las seis de la mañana. Me bañé, preparé mi
una ciudad y vemos el autobús en picada a medida
lunch, y desperté a Leo para darle una mamila. Yo
que se acerca a un hotel. Siguen las imágenes tomadas
trabajaba en el aeropuerto de Cancún, en el área de
desde y dentro del hotel. Un ventilador, un cuarto, una
migración. Trabajaba en el área que consistía en darle
cortina que levanta el viento, el pasillo, las escaleras,
internación a los turistas. Cuando un señor, vestido
una puerta que se cierra. Una prostituta parada afuera,
normalmente, se acercó a mi filtro migratorio y me
dijo “Necesito que vayas a la oficina, ahora mismo”.
Cuando llegué a la oficina, estaban ya la mayoría de
15 – AFI, Agencia Federal de Investigación, dedicada a la persecución de todos
mis compañeros ahí. Y nos dijeron que nos querían en los asuntos relacionados con el narcotráfico.

106 CAP 5
dos personas registrándose, la limpieza matutina. Tras con la cara a la pared y se presentaron: éste es el terri-
un corte seco, se nos transporta a otro lugar y vemos a torio del cartel, están una prisión con autogobierno y
las mujeres con niños acicalándose en los lavabos de la aquí mandamos nosotros. Nos dijeron que la estancia
estación de autobuses , imágenes de gente esperando. ahí no iba a ser gratis y que la tarifa para que respetaran
nuestras vidas era de 5 mil dólares. La tortura era por
turnos. Nos golpeaban con unas tablas en el cuerpo.
Mientras tanto Miriam agrega: “Fue una noticia
nacional, que salió en la tele, en los periódicos.
“Agarramos a una banda de traficantes de personas”,
algo así. El abogado del oficio le explica que sabe que
ni ella ni sus compañeros hicieron nada pero que las
autoridades tenían que mostrar “resultados”. Ellos
eran “los pagadores”.

Había un patio grande, y en este patio había (suspira)


como unos 25 hombres. Su apariencia era… muy
intimidante. Traían machetes y traían… armas largas. Figura 1 - Mientras escuchamos el relato estremecedor de Miriam, aparecen
Lo primero que nos dijeron fue que… nos hincáramos paisajes verdes y las caras de los pasajeros del autobús.

107 CAP 5
Estemas frente a un relato verbal, no del todo
cronológico y un relato visual que, por momentos parece
simbolizar las emociones de quien narra, pero en otras
ocasiones sirve de contraste al contenido del relato.
El espacio claustrofóbico de las celdas y los cuartos
de tortura que nos describe Miriam son contrastados
con las imágenes que aparecen en la pantalla: paisajes
mostrados en planos generales, la mayoría de las
veces paisajes rurales, sin construcciones, sin gente,
que hacen pensar no sólo en la libertad sino también

Figura 2 - Cuando habla de su propia tortura, hay imágenes de lluvia, que


en lo hermoso que es el país que recorrió alguna vez
pueden evocar las lágrimas. Miriam, después de haber sufrido terribles vejaciones.

La narración de Miriam se interrumpe en minuto 32. Sus Así como el espacio está fragmentado, no hay un solo
últimas palabras relatan cómo después de la tortura es tiempo en la película. Por un lado, se narran los acon-
dejada en una celda, con otras mujeres y aunque llora tecimientos desde que Miriam fue detenida hasta que
fuerte, ninguna se compadece de ella. Sólo al día sigui- fue liberada y viajó durante varios días a su casa. En
ente cuando se reparte café y pan, una mujer que Miriam total más de 6 meses. Por el otro lado, el tiempo de su
describe como anciana y completamente desnuda relato: hasta ahora unos 20 minutos. Y podemos medir
comparte con ella el desayuno. Este es el primer gesto el tiempo del viaje que el filme muestra que dura
de solidaridad que recibe desde qué arribó a la cárcel. hasta ahora un día, una noche y parte del otro día. No

108 CAP 5
es fácil ver una película que juega con tanos tiempos igual y que ninguno puede ser sustituido por otro.
diferentes y en que el espectador tiene que desdoblar Después de esta explicación sigue un largo silencio.
su atención para seguir los diversos relatos al mismo
tiempo. Pero también es fascinante. Mientras durante la narración de Miriam, en la pantalla
prevalecen las imágenes de paisajes, durante el relato
Adela y Miriam: el viento, la lluvia de Adela vemos principalmente los cuerpos, la mayoría
y los truenos llenan el silencio. de las veces fragmentados.

A diferencia de Miriam, Adela sí aparece a cuadro,


aunque a veces su narración acompaña las imágenes
de la vida cotidiana del circo, en que la mujer trabaja
como payaso y como entrenadora de niños y niñas
para que sean acróbatas. También a diferencia
de Miriam, Adela cuenta todo desde un principio:
cómo su familia trabajaba en el circo desde hacía
generaciones, cómo fue madre de tres hijos. Todos
los personajes sonríen, parecen disfrutar de lo que
hacen y, tal vez, la primera señal de alarma aparece
cuando Adela explica que a cada hijo se le ama por

109 CAP 5
Vuelven las escenas filmadas en el autobús y después
de que éste llegue a una terminal, siguen las imágenes
de un hotel terriblemente sucio y abandonado, pero en
funcionamiento. Después se nos muestra un mercado,
algunos puestos todavía cerrados, otros abriéndose.
Una toma en picada muestra la estructura de los
pequeños cuartitos con mercancía y los corredores que
los dividen. Estas secuencias coinciden con la narración
de Miriam que, en esta etapa de la reclusión debe
limpiar toda el área de las mujeres. Su voz nos informa:

Figura 3 - Pero también cuerpos que se tocan, que se trasmiten la


“El área de mujeres es como si fuera una vecindad (…)
energía y el afecto. En este penal no existen las rejas, nadie está encerrado,
no hay uniformes, no hay policías. Y todo el tiempo

Por otra parte, las imágenes muestran con insistencia hay una música muy fuerte. (…) Había restaurantes y

la idea de la familia: madres con sus hijos, Adela con muchas tiendas. Una cantina donde tomas cerveza y

sus hijas, sobrinas y nietos. Estás secuencias, casi te dan la botana. Un mercado, un mercado normal”.

idílicas, son brutalmente interrumpidas por el relato


de Miriam que reinicia la narración sobre las vejaciones Las secuencias visuales pasan de las imágenes del
que recibió en la cárcel y la amistad con una mujer que mercado, a las de la playa, los pescadores y las labores
le pareció anciana, pero que tenía apenas 47 años. de la limpia de peces y camarones. Suponemos que

110 CAP 5
estas imágenes son tomadas en Cancún, punto de a mi hija”. Es también en esta secuencia cuando las
llegada de Miriam. Mientras, la ex presa cuenta que les mujeres se refieren al proceso de la creación del docu-
cobraban 500 dólares a la semana para dejarlos vivos. mental: revisan sus micrófonos, hablan de la entrevista.
Y quien no podía pagar se convertía en esclavo de los Culmina el proceso del distanciamiento del espectador:
demás y en el torturador. lo que se muestra en la pantalla, definitivamente está
construido, planeado antes de ser filmado.
Tras un corte, volvemos al circo y su vida cotidiana
mientras Adela nos cuenta del nacimiento de su De ahí en adelante, los dos relatos se van a entrelazar
segunda hija, Mónica. Aparece una foto en la que la con mayor frecuencia y nos conducirán a trágicos
mujer amamanta a su bebé. Rápidamente pasa a desenlaces. Las dos mujeres tienen dificultad para
contar un pasado inmediato, Mónica estaba termi- expresar lo vivido. Sus largos silencios se llenan de los
nando la carrera de psicología. Adela sentada con sus sonidos del viento, de los truenos, de la lluvia y del mar.
hijas y sobrinas pasa fácilmente de la risa al llanto. De En las imágenes pasamos a cada rato de la sensación
pronto todas estas tristes y abrazan a Adela tratando de quietud a las del movimiento. En los relatos de la
de consolarla. “Yo sé todo lo que ustedes han querido profunda tristeza y desesperanza a la indignación.

111 CAP 5
¿Así de fácil me voy a la casa?

Miriam cuenta cómo después de algunos meses concurridos. Y tiembla. Ahora trata de evitar de
empezó a sentirse parte de la sociedad carcelaria. transmitir su miedo a su pequeño hijo, Leo con cuyo
Y justo en este momento presenció el asesinato de abrazo soñaba mientras estaba encarcelada. Y está
un joven migrante perpetrado por un hombre que indignada: “¿Así de fácil me voy a mi casa? ¿Con todos
parecía poseído por el delirio. La mujer nunca pudo los muertos, con todo el dolor?
recuperarse de esta traumática experiencia. Sabía que
éste podía ser también su fin. Empezó a pensar que Adela perdió la casa, la alegría y la confianza desde
debía y podía unirse a sus verdugos para evitar que su que su hija fue secuestrada. Sabe quién lo hizo. Sabe
familia tuviera que seguir pagando la cuota semanal que la policía fue involucrada en ello. Su familia fue
al cartel de drogas. Justo entonces vino la liberación. extorsionada por las autoridades, aislada, amenazada
de muerte. Van 10 años desde que se llevaron a su hija.
Ella también piensa todo el tiempo en poder volver a
Pero la liberación fue sólo aparente. Miriam vive abrazarla. Finalmente declara que ya perdió el miedo,
atemorizada, le da miedo salir de la casa, evita lugares que va a volver a salir y a buscar a Mónica.

112 CAP 5
Y así, llegamos a la imagen final. La única vez que
aparece Miriam flotando en un cenote.16

Los espectadores seguimos estupefactos: ¿y así de fácil ¿Ahora que la película se ha estrenado, la han visto
nos iremos a nuestras casas? ¿Ahora que sabemos que miles de personas y nada ha cambiado? Siguen las
el pacto de impunidad está sellado por una estrecha muertes, las desapariciones, la trata de personas. A
cooperación entre los cárteles de droga, las mafias de diario. Ya no encontramos cómo hablar de ello. Ya no
los secuestradores y los policías de todos los niveles? sabemos dónde meter tanta indignación y tristeza.

A veces es el arte el que permite expresar el inmenso


16 – Sabemos que le habían amputado una pierna cuando era niña.
Ella misma lo cuenta. dolor y la terrible impotencia que sentimos. El cine,

113 CAP 5
el video, la fotografía, las instalaciones, el perfor- El cuerpo ha sido arrancado del contexto social, legal
mance, la pintura mural, el grafiti, el arte callejero e histórico que le pertenece, pero no se puede dar
dan cuenta, con cada vez mayor frecuencia de lo certidumbre sobre el cadáver. Esta indeterminación es
que no se puede expresar mediante las palabras, de el vacío más horrible que se puede pensar, el seguir de
lo que sólo puede simbolizarse. los días bajo una normalidad rota y, al mismo tiempo
invisible, subterránea, solitaria. El terror. 18
Algunos autores asocian esta problemática con
la noción del acontecimiento. ¿Cómo puede una
La película de Huezo magnifica este terror al negarse
película, un caso particular, “ser representativo de una
a representar el cuerpo de Miriam, el cuerpo que ha
problemática, de una colectividad, de un miedo o temor
sido “arrancado del contexto social, legal e histórico”
común, de una catástrofe compartida?”, se pregunta
aunque ella esté viva y pueda contarnos el horror
Diego Zavala.17 La película que documenta la ausencia
de cuerpo “como prueba de la ausencia de estado que ha experimentado.

de derecho”, justamente como lo hace la Tempestad:

17 – Zavala, Diego (2016), “El acontecimiento como catástrofe e inicio de la


representación en los documentales “Retratos de una búsqueda” (2014) y “Los
reyes del pueblo que no existe” (2015)”, en: Amiot, Guilloeut y N. Berthier, en:
Frente a la catástrofe. Temáticas y estéticas en el cine español e iberoamericano
contemporáneo, París, Éditions Hispaniques, Universidad París-Sorbonne. 18 – Ibidem.

114 CAP 5
* REFERÊNCIAS (SEPARATRIZ )

*Composição visual da abertura de capítulo gerada www.laizquierdadiario.cl/Tempestad-documental-


a partir de cenas do filme de ‘Tempestad’ (2016), de de-Tatiana-Huezo-sobre-la-violencia-contra-las-
Tatiana Huezo. Imagens disponíveis em: mujeres

GUTIÉRREZ, Dante. “Tempestad” documental de ZÁRATE, Pablo Martínez. Narrativas documentales

Tatiana Huezo sobre la violencia contra las mujeres. en tiempos de la postverdad. 2016. In: ICÓNICA
PENSAMENTO FÍLMICO http://revistaiconica.com/
Miércoles, 2016. In: LAIZQUIERDA DIARIO. http://
cine-documental-y-postverdad/

115 CAP 5
sometimes I feel
like a motherless child

Martin Gore by Richie Havens

1 – Professora de cinema do Bacharelado e do Mestrado em


Imagem e Som da UFSCar, SP. Autora de Gênese de Deus e o
diabo na terra do sol. São Paulo: Annablume/FAPESP; Salvador:
Fundação Gregório de Mattos e CEB da UFBA, 2005, e de diversos
artigos sobre processos de criação audiovisual e de recriação da
literatura e das artes no cinema/vídeo publicados em livros e em
periódicos acadêmicos. Coordenadora do Grupo de Pesquisa do
CNPq: “Cinema e Comunicação”.

2 – Mestre em Imagem e Som pela UFSCar, SP, jornalista e


realizadora vídeo-cinematográfica. Autora de vários artigos
publicados em periódicos brasileiros e estrangeiros.
Morte. Silêncio. Como lidar com a dor da perda? Quais da em fita cassete nos revela alguns traços das inquie-
as linguagens da dor e como elas podem ser diluídas tações do personagem e do real motivo que o levou a em-
nas representações cinematográficas? Como o cinema preender a viagem. Damian havia atropelado e ma-
re- presenta essas angústias partindo da premissa de tado, dois meses antes, uma mulher grávida.
que “os filmes, como outros textos culturais, dão conta
das representações sociais que constituem nosso mun-
do”?3 Estas questões serão pontuadas a partir dos fil-
mes mexicanos Bajo California (1998), do diretor Carlos
Bolado, e Lake Tahoe (2008), de Fernando Eimbcke.

* BAJO CALIFÓRNIA

O filme de Carlos Bolado tem como personagem


principal Damian Ojeda, um artista plástico. Ele viaja da
Califórnia (EUA) em direção à região de San Francisco Figura 1 - Damian caminhando em busca do túmulo da avó

da la Sierra, no México, para visitar o túmulo da avó


e conhecer a terra de seus antepassados. Enquanto o A culpa e o luto se entrelaçam, e o protagonista se vê
vemos atravessar a fronteira, a voz da esposa grava- na difícil situação de lidar com esses dois sentimentos.
O tormento é intensificado pela lembrança recorrente
da esposa, também grávida, prestes a dar a luz a seu
primeiro filho. Nascimento e morte dialogizam no de-
3 – “[...] las películas, al igual que otros textos culturales, dan cuento de las
representaciones sociales que constytuen nuestro mundo [...] ” (JABLONSKA, correr da narrativa, representados ora literalmente pela
2007, p. 49).

117 CAP 6
espera do filho que nascerá brevemente e a fatalidade
do acidente, ora simbolicamente na descoberta e luta
interior do personagem que busca na longa jornada o carro da família. Essa situação desencadeia uma
de encontro às suas origens, o renascimento pós-luto. longa caminhada para encontrar a peça necessária
para o conserto do veículo. Uma série de encontros vai
* LAKE TAHOE se desenrolando na narrativa e aos poucos nos damos
conta que o adolescente perdera o pai recentemente.
A mãe, devastada pelo luto, pouco se comunica com
o filho e seu irmão mais novo, Joaquim, encontra em
uma barraca de camping montada fora da casa, no
jardim, seu refúgio. A solidão de Juan é compartilhada
pelos personagens que encontra ao longo da cami-
nhada pelas ruas da pequena cidade: Don Heber, um
mecânico idoso que mora com a cadela Sica; Lucía,
balconista em uma loja de peças mecânicas e mãe
solteira; e David, um jovem mecânico aficionado por

Figura 2 - Juan com o carro de seu pai batido


Kung Fu. As interações entre as personagens, na maior
parte, são como “diálogos de surdos”; é principalmente
Em Lake Tahoe, segundo filme de ficção de Fernando no silêncio, nos gestos, no olhar que a identificação
Eimbcke, um adolescente de 16 anos acaba de bater entre eles se estabelece e finca suas raízes.

118 CAP 6
ser fundados com base no sentimento, ao invés de
representarem arranjos sociais. Essa união entre os
membros da família acarretou uma maior intensidade
do luto, conseqüência da dificuldade em lidar com
a morte do outro. Durante esse período o luto era
vivido e sofrido socialmente, já que o enlutado tinha o
direito, e em muitos casos o dever, de compartilhar a
sua dor. A partir do século XX, continuamos a carregar
a dificuldade de aceitação da morte do outro, mas já
Figura 3 - Dom Heber e a cadela Sica não podemos externá-la. Segundo Freire:5

Para pesquisadores como Philippe Àries,4 está-se na [...] torna-se perceptível o quanto a discrição é
atualidade imerso em isolamento, vergonha e silêncio tida como elemento comportamental preponde-
rante entre indivíduos em estado de luto. Isolados
acerca do luto. Fruto de uma atitude diante da morte
pelo sentimento de necessidade versus impossibi-
que a afastou do cotidiano, num movimento gradual
lidade de expor sua dor, os enlutados introjetam
de recusa e não aceitação da morte de si e do outro. seu sofrimento de forma solitária.
No decorrer dos últimos séculos, as relações familiares
sofreram grandes mudanças e os laços passaram a

5 – FREIRE, Milena Carvalho Bezerra. Isolamento e sociabilidade no luto: a


formação de redes sociais no ambiente cemiterial. Actas del Iº Congreso
4 – ARIÈS, P. A história da morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Francisco Latinoamericano de Antropología. Universidad Nacional de Rosario,
Alves, 1977. Argentina, 2005, 2.

119 CAP 6
O silenciar sobre a morte é “o efeito de uma recusa em
admitir completamente a morte daqueles a quem se
ama [...] um estilo de morte em que a discrição aparece
como forma moderna da dignidade”.6

Nos filmes apresentados, temos como protagonistas


personagens que vivenciam o luto e escolhem a jornada
como enfrentamento da morte. Em Lake Tahoe, o
luto é a ausência do pai, um sentimento arrebatador,
com o qual o garoto não sabe lidar. Ele é guiado pelo
acaso: não sabe como, nem quando, nem onde irá
encontrar a peça que falta ao seu veículo danificado
Figura 4 - Único plano próximo de Juan visto no filme, a expressar o seu olhar
e bloqueado; sua origem é a estrada (de onde parte na incompreensibilidade da existência

a diegese) e seu destino, dentro do vilarejo, incerto.


Tem-se ali a quebra/dano da peça enquanto metáfora Em Bajo Califórnia, o luto de Damian tem como agra-
da falta do pai - do pai que não ‘funciona’, não ‘vive’ ou vante a culpa, afinal ele conduzia o veículo que atropelou
não ‘pega’ mais -, nele mesmo e em sua família, mãe uma mulher grávida e matou a ambos. A responsabi-
e irmão caçula. Peça que deverá ser substituída por lidade pelo acidente e a constante associação com
ele próprio, filho primogênito. É o ritual de passagem a esposa que também está grávida são determinantes
desse adolescente que se acompanha através de seus para que o protagonista inicie sua peregrinação.
encontros com Dom Helder, a jovem mãe solteira e o Ele aposta na busca de suas origens como forma de
rapazinho amante das artes marciais. renascimento e é resoluto quanto à sua origem e des-
tino. As dificuldades em lidar com a morte e o luto es-
6 – ARIÈS, P. A história da morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, tão presentes nos poucos diálogos, nas suas evasivas
2003, 141.
120 CAP 6
e silêncios, muito silêncio. Na primeira parte de Bajo
Califórnia, antes de chegar a San Francisco de la Sierra,
Damian passa a maior parte do tempo sozinho. Nos dois
encontros que se sucedem, ele alega motivos diferen-
tes para sua viagem. Ao idoso que lhe cede abrigo, diz
que está indo visitar o túmulo da avó; em outra situação,
responde que visitará as famosas pinturas rupes-
tres da região. De toda forma, ele está em busca dos
traços de seu passado ancestral - e seus ritos - inscritos
naquela terra, naquele povoado e em seus moradores. Figura 5 - O olhar inconformado de Damian

Sozinho e atormentado pelas lembranças do acidente, Diante da imensidão e isolamento que o cerca, o
Damian chora. A montagem rápida e a intensidade da artista plástico intervém na paisagem através do seu
música dão conta da angústia sofrida pelo persona- caminhar e das instalações espiraladas que constrói,
apropriando-se de materiais da natureza. A fala
gem que, num gesto abrupto, muda sua rota e segue
suprimida dá vazão a outras formas de comunicação.
por uma estrada vicinal até chegar ao mar. É nessa
São os elementos naturais locais, tais como pedras,
praia isolada que ele decide queimar seu carro, livros e gravetos, carvão, conchas e ossos, dispostos segundo
pertences nele contidos. Como um ritual de purificação, o pensamento e a vontade do artista, que vão dando
Damian renuncia aos elementos do mundo material pa- forma às imagens internas do ocorrido e engendran-
ra se integrar à natureza, sentir-se parte dela novamente. do a linguagem e a expressão de Damian.

121 CAP 6
dizer: “- Tenho que caminhar”. A demora em tocar no
assunto que o angustia se arrasta até os sessenta e oito
minutos da película quando, pela primeira vez, Damian
fala do acidente. A voz embargada e o choro incontido
surpreendem o novo amigo.

Na manhã seguinte à revelação, Damian é picado por


uma cobra venenosa. Até o momento, ele se impunha
sacrifícios; o personagem encara o sofrimento e o
acaso, o azar como formas de purificação. No entanto,
Figura 6 - Damian e sua construção estética o envenamento não é de seu controle, acontece
fortuitamente. Nesse sentido, é provável que a situação
O personagem recorre a outras formas de comuni- de quase-morte o leve a crer na impossibilidade de
cação, de diálogo com o mundo e principalmente com o se ter controle sobre tudo e apreender o atropela-
seu interior. Em San Francisco, ele conhece Arce, o guia mento como um acidente, obra do acaso também,
que o leva ao túmulo da avó e às pinturas rupestres. Os que o exime de culpa. De volta às cavernas, ele vê a
diálogos protagonizados pela dupla vão desde a his- pintura mural “o homem e a família” e em voltando
tória dos primeiros moradores da região, dos índios que à aldeia assiste ao velório de uma criança. As duas
a habitavam até as dificuldades de se viver ali. As evasi- situações remetem à sua própria condição. Damian
vas de Damian são constantes quando as perguntas de decide pegar a estrada e voltar para a família. Feita
Arce enveredam por assuntos mais pessoais, como o a sua purgação, de novo consciente das leis naturais
porquê dele não estar com a mulher ou simplesmente do mundo e de seu pertencimento e integração a
a pergunta: “- de onde você veio?”. Damian limita-se a elas, ele está pronto para voltar ao seu cotidiano.

122 CAP 6
Em Lake Tahoe, o sentimento de desolação do perso- pede ao garoto que procure a peça enquanto ele dorme
nagem, como em Bajo California, é intensificado pela (ele está sempre muito cansado); Lucía, a vendedora da
paisagem. Juan mora em uma cidade litorânea, turís- loja de peças, com seu jeito despreocupado, resume-se
tica, que no inverno encontra-se deserta. O persona- a pedir que ele espere o “cara que entende”; David
gem caminha por diversas ruas sem encontrar uma só quer mostrar-lhe vídeos de lutas e livros orientais.
pessoa, um só veículo. Espaço e tempo na narrativa
são dilatados através da câmera fixa, dos planos
Sem sucesso na sua empreitada, vemos Juan entrando
gerais, dos diálogos curtos e das recorrentes telas
pela primeira vez em casa. O irmão mais novo, Joaquim,
negras. Estes recursos da linguagem cinematográfica
está acampando no jardim, a mãe está trancada no
adensam a metáfora da jornada espaciotemporal de
banheiro e não quer ninguém por perto. A casa bem
lento retorno ao cotidiano, após a morte do pai, e
arrumada e os móveis bem cuidados são elementos
apontam para um discurso ‘quebrado’ e ilógico - em
visíveis da oposição ao sentimento de perda que ali se
seu primeiro momento (a primeira parte da narrativa
instaurara. Juan sai de casa ainda mais determinado
fílmica), no cotidiano do luto.
a consertar o veículo. Os encontros com Don Heber,
Lúcia e David tornam-se repetitivos e aos poucos vão
Juan está determinado a consertar o carro e é nessa adquirindo maior intensidade, os diálogos ainda são
situação que ele conhece Don Héber, Lucía e David. Os curtos, contudo mesclados a uma identificação mútua
encontros fortuitos são carregados de estranhamento nascente que está nos gestos, no olhar e nos silêncios
porque enquanto Juan resume sua fala, muitas vezes cúmplices. A narrativa é ainda pontuada por situações
impaciente, relativa ao problema do conserto do cômicas como quando Juan, a pedido de Heber, leva
carro, os demais personagens não se mostram muito o cachorro para passear, ou quando Lucía pede que
interessados em ajudar a resolvê-lo. Assim, Don Héber Juan embale o filho enquanto ela ouve música e canta;

123 CAP 6
ou ainda quando David leva-o para o café da manhã a insistência de um vendedor que quer falar com seu
em sua casa. Em meio a essas situações inusitadas, pai. Em resposta a ele, Juan grita que o pai morreu.
David, o mecânico, consegue finalmente consertar o Pela primeira vez ouvimos o personagem verbalizar a
carro e os dois rapazes, felizes, se abraçam. sua dor. O grito irrompe na atmosfera de não-aceitação
e desencadeia uma sequência de situações que
compreendem o “trabalho do luto”, ao qual se refere
Freud, que deverá dar conta do tempo necessário para
que o enlutado restabeleça a ordem do seu cotidiano,
luto a ser “cumprido aos poucos, com grande aplicação
de tempo e energia de investimento, enquanto a
existência do objeto perdido se prolonga na psique”.7

A partir deste ponto tem início a segunda parte da


diegese, com os reencontros de Juan com o velho, a
Figura 7 - Lucía e Juan esperam pelo técnico que providenciará a peça
adolescente com o bebê e o rapaz. O carro, agora de novo
em funcionamento, ‘vivo’, graças ao empenho de Juan,
De volta à sua casa, espaço maior de conflito, pois
serve-lhe de abrigo e este, vendo Heber a andar na
ali todos sofrem com a morte recente, tudo continua
rua em busca do animal perdido, resolve ajudá-lo em
igual. Joaquim pergunta ao irmão mais velho o que
sua procura. Os dois vislumbram o cachorro Sica em
são ‘condolências’. E não obtém resposta. Dentro de
casa, a geladeira quebrada e os alimentos estragados
enfatizam o abandono e a deterioração do cotidiano
daquela família. O silêncio da casa é quebrado apenas 7 – FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: ______. Obras completas. Rio de
pelo telefone. Juan o atende e perde a paciência com Janeiro: Imago, vol. IX, 1996, 174.

124 CAP 6
uma casa, brincando com algumas crianças. O ca- arruma pra sair, ele está visivelmente desconfortável.
chorro tão querido pelo dono tem um novo lar e O rosto impassível, as poucas palavras ditas e a res-
parece feliz com as brincadeiras. Heber, ciente disso, piração profunda de Juan encontram amparo no
resolve não reclamar o animal; o silêncio se instaura silêncio de Lucía. Ela, que nos encontros anteriores
durante todo o caminho de volta à casa do mecânico tinha sempre algo a falar - sobre música, sobre a
e, quando Juan sugere: “- é seu cachorro”, tem como vontade de se tornar uma cantora - encontra nos
resposta apenas o silêncio. Juan vê na fisionomia e lentos gestos de aproximação dele a linguagem para
atitude do idoso a dolorosa renúncia que a morte/ entender a angústia de Juan. A atitude dela deflagra
separação impõe: é preciso deixar o outro ir. Essa nele um choro desconcertante e ela o ampara. Há um
sequência antecede mais um encontro de Juan com corte e, na tela negra, ouvimos o choro de Juan dar
David: enquanto este lhe fala de conteúdo emocional, lugar ao choro do filho de Lucía, que é acalentado
que é preciso carregar as ações com sentimentos. por ele. Juan percebe que pode cuidar de uma
Juan, em resposta, pega um taco de beisebol e bate
família e sente-se feliz e útil por consolar a criança
violentamente no seu carro. O veículo havia sido
e colaborar com a mãe desta, assim como Damian,
consertado há pouco tempo, mas nada mudara na
em Bajo Califórnia, que decide voltar para casa e
vida do personagem. De modo abrupto inferimos ali
cuidar da esposa e do futuro filho depois das prova-
que o personagem se dá conta que toda a sua busca,
ções e de seu renascimento enquanto um conhecedor
o processo lento e dispendioso do conserto do carro,
seguro do segredos arcaicos e primevos do mundo.
deu-se por outra razão: ele foi impulsionado pelo
tormento da perda do pai. A dor instalada, havia de
surgir a oportunidade de extravasá-la em companhia Na manhã seguinte, em casa, Juan beija a mãe, que
de um amigo/irmão. Depois disso, Juan vai ao ainda dorme. A hostilidade que marcou a cena familiar
encontro de Lucía. Na casa da moça, enquanto ela se anterior se transforma em cuidado. Encontra Joaquim

125 CAP 6
trancado no armário e os dois conversam sobre o pai. do personagem o levam a adentrar o território mexi-
Além das dificuldades inerentes ao luto, Juan enfrenta cano, uma viagem que se espelha no conhecimento
os medos comuns a qualquer adolescente, ele vive de si mesmo. Depois do longo caminho em silêncio, e
um ritual de passagem, da adolescência para a vida ainda atormentado pelas lembranças do acidente, a
adulta, e agora tem o seu lugar como chefe da família. amizade com Arce permite a ele externar aos poucos
sua angústia. Damian chora e conta ao novo amigo
sobre o acidente e a morte, o motivo de ter saído de
* SILENCIAMENTO VERSUS ATOS casa, de ter dado início a essa jornada com propósito.

Bajo California e Lake Tahoe são manifestos do luto. O adolescente Juan, durante sua busca, vai tecendo
Mergulhados no silêncio e recusa da morte, essas novas relações. O que nas primeiras tomadas pare-
narrativas nos convidam a pensar sobre o tema e nos ciam encontros fortuitos, vão adquirindo densidade
revelam outras formas de significar o luto. Através e, mesmo nos diálogos truncados, há identificação
das longas caminhadas dos protagonistas, damo-nos no olhar, nas expressões corporais e o entendimento
conta do adensamento da realidade e da dilatação de que a solidão não se reserva apenas a ele. A fala
do tempo provocados pelo arrebatamento do luto.
parece-lhe atravessada. Para Ricouer, citado por Freire
(2005): “o sofrimento quando se abate sobre alguém é

Durante a sua jornada, vemos Damian distanciando- sempre solitário e sempre inominável, porque incomu-
se de sua esposa e renunciando a seus bens materiais nicável em sua perplexidade e extensão, o que faz de
na tentativa de integrar-se à natureza e encampar cada sofredor um sofredor, específico na sua irresolu-
novamente o pensamento ancestral, presente antes da ção e na sua incomunicabilidade”. Seus encontros se
‘febre’ do dualismo que o colocou em oposição a ela. estabelecem nos insistentes abraços receptivos de
Nos mapas mostrados na tela, as pegadas marcadas David, na escuta quase forçada da cantoria de Lucía,

126 CAP 6
* À GUISA DE CONCLUSÃO

nos passos arrastados de Heber. Do tecido dessas rela- Diante desses dois filmes, entende-se ser preciso
ções e da dor subjugada às aparências, nasce a revolta acabar com a ‘mudez’ que vem imperando no luto na
da não-aceitação do irreversível da morte, que irrompe contemporaneidade: é preciso estimular os enlutados
no grito que mais tarde encontra abrigo na explosão, no a extravasarem seus choros, gritos, lamentos, dúvidas,
externar da dor quando Juan decide ou quebrar o carro, culpas para deixá-los maturarem a dor e deixá-la fluir.
ou chorar. Derivadas dessas experiências com os de- Nos dois casos, os protagonistas são guiados pelo
mais nasceram sua percepção e compreensão do novo acaso: saem em peregrinação pela cidade ou campo
papel familiar a ser por ele exercido. quase como em um ritual, buscando assim dar vazão
à dor em processo. Na metáfora da viagem para longe,
para fora de si, para um possível ponto de origem
Damian evita insistentemente falar do luto, mas
presente nas duas obras escolhidas, encontra-se
consegue quebrar o interdito à medida que conse-
embutida a viagem para dentro de si, para o auto-co-
gue externá-lo iconicamente, através de sua arte, e falar
nhecimento e também para o alcance do ‘impalpável’,
dele após a quase irrupção da morte em seu próprio ser
do vir-a-ser que poderá redimir os personagens.
e de sua própria vivência estética nas ruínas. Enquanto
enlutado, sente-se apto a retomar sua rotina e o con-
trole de sua vida. Um ato que desencadeia um proces- Por fim, o enfrentamento da dor que se percebe
so gradual de enfrentamento e coexistência com a dor. diluída nas duas narrativas talvez espelhe a própria

127 CAP 6
vivência do luto dos cineastas Bolado e Eimbcke. * REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Ambos perderam cedo seus familiares. Bolado perdeu
a mãe em um atropelamento quando tinha apenas 10
ARIÈS, Philippe. A história da morte no Ocidente. Rio
anos; e Eimbcke, o pai, quando ainda era adolescente.
de Janeiro: Francisco Alves, 1977.
Este último esclarece a relação biográfica com o filme:

_____________. A história da morte no Ocidente. Rio


de Janeiro: Ediouro, 2003.

(...) uns meses depois da morte de meu pai, DASTUR, Françoise. A morte: ensaio sobre a finitude.
bati o único automóvel da família, e não creio, Rio de Janeiro: DIFEL, 2002.
contra a opinião de minha mãe, que havia sido
um simples acidente. Lake Tahoe é um filme
que nasceu como uma tentativa de entender as EIMBCKE, Fernando. Press book Lake Tahoe,
razões que me levaram a cometer esse ato tão Cinepantera, 2008. Disponível em: <http://www.
absurdo e tão profundamente humano. 8
funny-balloons.com/images_dl/lake/img/lake_
tahoe_pressbook_esp.pdf>

FREIRE, Milena Carvalho Bezerra. Isolamento e


8 – “Unos meses después de la muerte de mi padre, choqué el único sociabilidade no luto: a formação de redes sociais
automóvil de la familia, y no creo, contra la opinión de mi madre, que haya
sido un simple accidente. Lake Tahoe es un filme que nació como un intento no ambiente cemiterial. Actas del Iº Congreso
de entender las razones que me empujaron a cometer ese acto tan absurdo
y tan profundamente humano.Press book Lake Tahoe, Cinepantera, 2008.
Latinoamericano de Antropología. Universidad
Disponível em: <http://www.funny-balloons.com/images_dl/lake/img/ Nacional de Rosario, Argentina, 2005.
lake_tahoe_pressbook_esp.pdf>.

128 CAP 6
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: ______. ASUNCION, Miguel de la. La alternativa | Bajo
Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, vol. IX. California: el límite del tiempo (Carlos Bolado). In:
CINEMALDITO, 2014: https://www.cinemaldito.com/
la-alternativa-bajo-california-el-limite-del-tiempo-
FREUD, Sigmund. Reflexões para os tempos de guerra
-carlos-bolado/
e morte. In: ______. Obras Completas. Rio de Janeiro:
Imago, 1996, v. XIV, p. 282-312.
BOSLAUGH, Sarah. Lake Tahoe (Eimbcke, 2008). In:
1MORE FILM BLOG. 2010: http://1morefilmblog.
JABLONSKA, Aleksandra. Las películas enquanto textos
com/2010/01/16/lake-tahoe-eimbcke-2008/
culturales. México: 2007.

CATSOULIS, Jeannette. Flickers of Trauma. In:


* REFERÊNCIAS (SEPARATRIZ ) THE NEW YORK TIMES, 2009: www.nytimes.
com/2009/07/10/movies/10lake.html

*Composição visual da abertura de capítulo gerada


a partir de cenas do filme ‘Bajo California’ (1998), do PEDROZA, Mariana. A 20 años de ‘Bajo California, el
diretor Carlos Bolado, e ‘Lake Tahoe’ (2008), de Fernando límite del tiempo’. In: FILM IN LATINO, 2018: https://
Eimbcke. Imagens disponíveis em: www.filminlatino.mx/blog/a-20-anos-de-bajo-cali-
fornia-el-limite-del-tiempo

129 CAP 6
1 – Doutor em Comunicação, Cultura e Artes pela Faculdade de Ciências
Humanas e Sociais da Universidade do Algarve – UAlg / Portugal. Colaborador
do Centro de Investigação em Artes e Comunicação – CIAC / UAlg.
Uma determinada dimensão social e política esteve explícito e abarca contextos amplos que dizem respeito
sempre presente na filmografia oliveiriana. Embora à geopolítica europeia e mundial, aos embates entre
negligenciada por diferentes abordagens analíticas, tais Ocidente e Oriente, passando por conflitos religiosos e
aspectos sociopolíticos podem ser observados desde pelo confronto entre tradição e modernidade.
a origem da cinematografia do realizador português2.
A propósito disso, são significativos, por exemplo, os Restringindo esta reflexão à linguagem cinematográfica
esforços de Randal Johnson (2009) e Carolin Overhoff adotada por Oliveira, e àquilo que seu ato tem de
Ferreira (2012) para demonstrar como são variadas as político enquanto admissão estética3, são precisas as
estratégias narrativas adotadas por Manoel de Oliveira palavras de Johnson: “(...) o seu cinema é de resistência,
sobre esse tema: em alguns casos, o cineasta lança particularmente em relação à estética dominante
mão de pequenas nuances que revelam as sutilezas de movida por considerações comerciais” (JOHNSON,
sua crítica tanto sobre os valores morais e intersses da 2009, p. 23). E ainda ao lado do mesmo autor:
burguesia portuguesa como sobre o Estado autoritário
que impôs condições e modos de vida aos seus Manoel de Oliveira não é, e nunca foi, um cineasta
político stricto sensu. Mas quando se reflete sobre
compatriotas antes da Revolução de Abril de 1974; em
o mundo atual ou histórico e sobre a atuação
outras oportunidades, contudo, seu afrontamento é dos países e dos seres humanos dentro deste
mundo, como ele faz em todos os seus filmes, ao
lado de preocupações filosóficas, existenciais,
2 – Como exemplo, podemos verificar a figura da autoridade estatal perso-
nificada pelos policiais tanto em Douro, faina fluvial (1931) como em Aniki-
Bobó (1942). Ainda nesses mesmos títulos – seu filme inaugural e seu primeiro
longa-metragem, respectivamente –, é possível atentar para o olhar olivei- 3 – Para o debate em torno das dimensões políticas perceptíveis por meio
riano sobre a exploração da mão-de-obra assalariada e/ou para o fetiche da estética, bem como sobre o complexo amálgama das duas categorias,
exercido por bens materiais em uma sociedade capitalista. ver Jacques Rancière (2005).

131 CAP 7
religiosas, culturais e éticas, a inclusão de uma O passado e o presente [1972], Benilde ou a virgem mãe
perspectiva implícita ou explicitamente política [1975], O princípio da incerteza [2002] ou Espelho mágico
é inevitável. A filmografia de Manoel de Oliveira
[2005]) e alcançam conflitos supra e transnacionais, bem
é de tal riqueza que permite abordagens de
muitos ângulos diferentes em análises que estão como globais (O sapato de cetim [1985], Non, ou a vã
apenas começando (JOHNSON, 2009, p. 46). glória de mandar [1990], Viagem ao princípio do mundo
[1997], Palavra e utopia [2000], Um filme falado [2003] e
Cristóvão Colombo – o enigma [2007]).
Por sua vez, Carolin Overhoff Ferreira oferece uma rica
contribuição aos estudos dedicados à obra oliveiriana
com o artigo “Portugal, Europa e o Mundo: Condição A esse último conjunto, devido às suas recorrências
Humana e Geopolítica na Filmografia de Manoel de temáticas, fomais e conceituais, grupo composto
Oliveira” (2012) ao defender a compreensão cronológica por filmes em que a categoria viagem detém lugar
dessa filmografia a partir de uma escala progressiva privilegiado ao lado de considerações de contornos
de abordagens político-espaciais: o local; o nacional; o históricos associados ao projeto expansionista
supranacional; o transnacional; e o global. De acordo português, seleção que possibilita leituras alegóricas
com a investigadora, a ordenação dessa escala seria tanto dos títulos individualmente como do todo
sucessiva, ou seja, do princípio em direção ao fim da analisado, dentro de uma estrutura que convida o olhar
carreira do realizador. Desse modo é que se apresentam para o passado com a pretensão de instigar uma reflexão
conflitos, dilemas e críticas que, paulatinamente, sobre o contemporâneo, a esse corpus propomos
excedem os limites da cidade natal de Oliveira (o Porto, o nome filmes de viagem de Manoel de Oliveira.
em Douro, faina fluvial), passam pelo âmbito nacional,
com a evidente crítica ao autoritarismo estatal e/ou Assim, o presente ensaio é dedicado a feições menos
por meio da ironia acerca do status quo da burguesia exploradas da filmografia de Manoel de Oliveira.
portuguesa (por exemplo, com Aniki-Bobó, A caça [1964], Nomeadamente, procuraremos refletir sobre a
132 CAP 7
condição geopolítica de Portugal em três títulos o pensamento oliveiriano sobre a condição geopolítica
oliveirianos do princípio do novo milênio: Palavra portuguesa frente a Europa e o mundo tornou-se mais
e utopia, Um filme falado e Cristóvão Colombo – o amplo e complexo, daí toda uma reflexão sobre o projeto
enigma4. Reflexão que terá em conta os compromissos expansionista português que tem início com O sapato
ético, estético e universalita do realizador – ético de cetim, mas que passa também por Non, ou a vã glória
porque essencialmente português-cristão; estético em de mandar e Viagem ao princípio do mundo; (3) por suas
respeito às suas características autorais, de acordo recorrências temáticas, formais e conceituais, a escolha
com sua linguagem cinematográfica; e universalista da mencionada tríade implica uma consideração sobre
por representar, em seus filmes, teses amplas por os filmes de viagem de Manoel de Oliveira – conjunto
meio de exemplos particulares, individualizados. composto pelos seis títulos mencionados acima;
(4) os três filmes selecionados oferecem um valioso

A seleção de tais títulos e conceitos traz algumas contributo para a observação do discurso oliveiriano

implicações: (1) o reconhecimento de que o debate em sua vertente mais contemporânea.

acerca do contexto político de Portugal está presente


nas produções do realizador português já desde os seus Esta proposta de visionamento diferencia-se, portanto,
primeiros filmes ainda nas décadas de 1930 e 1940; (2) de outras abordagens existentes sobre a produção
oliveiriana – especialmente daquelas mais debruçadas
sobre a relação entre a vida e a obra do realizador ou
4 – Para uma aproximação aos conceitos de Geopolítica e Geografia
Política, a compreensão destes como campo de estudos unificado, sobre as dedicadas à relação entre o cinema oliveiriano
bem como as suas respectivas aplicações metodológicas ao longo
do século XX e entrada do século XXI no Ocidente e, mais especifi- e outras artes. Ao trabalhar com os filmes de viagem de
camente, em Portugal, ver André Roberto Martin (1998), Therezinha
Manoel de Oliveira, tomamos como norte a pressuposição
de Castro (1999), Wanderley Costa (2008), José William Vesentini
(2004) e Jorge Nascimento Rodrigues; Tessaleno Devezas (2009). de que parte do interesse de seu cinema consiste em

133 CAP 7
problematizar a história, contribuindo, dessa maneira, com sito de dizer uma coisa diferente. João Adolfo Hansen,
debates políticos e sociais que permeiam reflexões que em Alegoria – construção e interpretação da metáfora
dizem respeito não só à Europa, mas fundamentalmente (2006), de maneira simplificada, defende que a alegoria
ao mundo na contemporaneidade. diz A para significar B. No entanto, devemos observar
que estes dois polos – A, como designação concreti-
zante, elemento do concreto; e B, como elemento de
* OS FILMES DE VIAGEM DE MANOEL DE OLIVEIRA
significação abstrata – são mantidos dentro de uma
relação virtualmente aberta, que admite a inclusão de
Para um debate sobre os filmes de viagem de Manoel de
novos significados entre eles (HANSEN, 2006, p. 15). Por
Oliveira, pensamos a delimitação de um corpus que se
este motivo é que a alegoria não pode ser analisada
constitui por meio da leitura de aspectos cinematográ-
simplesmente, por exemplo, como a metáfora. Ao passo
ficos que são temáticos e formais, mas fundamentalmente
em que a metáfora substitui termos isolados, de forma
conceituais. A seleção desses filmes visa reconhecer um
mais imediata, a alegoria equivale a um enunciado, a
dado discurso em que a existência de construções alegó-
uma reflexão mais complexa, carregada, todavia, de
ricas possibilita-nos estabelecer relações entre passado e
abstrações. Como afirma o autor: “(...) a alegoria serve
presente da história portuguesa (e mundial), de modo a
para demonstrar, pois evidencia uma ubiquidade do
instigar o entendimento de problemáticas semelhantes
significado ausente, que se vai presentificando nas ‘partes’
que auxiliam o refletir sobre a contemporaneidade,
e no seu encadeamento no enunciado” (Idem, p. 33).
lançando mão do uso de narrativas de viagens para isso.

É possível verificar, nas mais variadas cinematografias,


Pensada como um código que respeita a tradição clás-
a presença de narrativas alegóricas que aproveitam
sica, a alegoria apresenta-se como um tipo de enun-
determinados protagonistas, ou grupos de personagens,
ciação em que alguém afirma algo, mas com o propó-

134 CAP 7
como figurações do momento fundador ou contemporâneo um conselheiro do rei espanhol. Além do amor impos-
das suas origens nacionais, ou mesmo da relação passado- sível, irrealizável fisicamente entre os protagonistas, o
presente sustentada por essa noção, dentro de uma título aborda o momento da história em que Portugal
estrutura em que os eventos anteriores da história visam encontrava-se sob o jugo do reino da Espanha.
comunicar sentidos implicados na contemporaneidade,
dada a semelhança entre eles. O estabelecimento da
Non, ou a vã glória de mandar acompanha a viagem
associação passado-presente – via alegoria histórica,
de um grupo de soldados portugueses em direção a
nesse caso – sustenta-se mediante o esforço de posicio-
uma ex-colônia africana de Portugal para que possam
namento e/ou reconhecimento do investigador acerca do
combater defendendo os interesses dos colonizadores.
contexto cultural e ideológico do realizador, questionando
A narrativa do filme se dá nos dias que antecedem a
os atributos comuns tanto ao posicionamento histórico
Revolução de 25 de Abril de 1974 e aborda passagens
como à representação diegética.
históricas que dizem respeito às fracassadas tentativas
dos portugueses para assumir uma posição de império
Com o intuito de aproximação a uma pretensa ordenação mundial e às tentativas também frustradas de união
do pensamento oliveiriano, sugerimos a existência do entre Portugal e Espanha na Península Ibérica.
grupo composto por O sapato de cetim, Non, ou a vã
glória de mandar, Viagem ao princípio do mundo, Palavra
Viagem ao princípio do mundo conta a história de Afonso,
e utopia, Um filme falado e Cristóvão Colombo – o enigma.
um ator francês de descendência portuguesa que deseja
conhecer a terra natal de seu pai. Para isso ele conta com
O sapato de cetim é uma adaptação da peça homô- a ajuda de um grupo de amigos portugueses que aceitam
nima de Paul Claudel. A narrativa, situada no século conduzi-lo até o pequeno povoado onde vivera seu pai
XVI, conta a história de dom Rodrigue, vice-rei espa- durante a juventude. Entre os seus acompanhantes está
nhol da América do Sul, e dona Prouhèze, casada com um diretor de cinema chamado Manoel.

135 CAP 7
Palavra e utopia trata da vida e da obra de Padre sária francesa, uma ex-modelo italiana, uma cantora
António Vieira, que, ao longo do século XVII, dedicou-se grega e o comandante do navio, um estadunidense.
à luta por melhores condições de sobrevivência para
escravos índios e negros no Brasil, influenciou na polí-
Cristóvão Colombo – o enigma conta a história de Manuel
tica mercantil de Portugal e pregou famosos sermões
Luciano que, nascido em Portugal, vive e torna-se
para escravos, soldados, reis e rainhas. Sua história é
médico nos Estados Unidos, mas que retorna à terra
marcada por conflitos com a Inquisição, a perda de
natal para se casar e dar sequência à investigação que é
sua voz ativa e passiva como orador, a admiração e o
tema de uma pesquisa que ele empreende ao longo da
sucesso obtidos em Roma, pelo desprezo em Portugal
vida: comprovar que Cristóvão Colombo era português.
e a solidão e a doença no Brasil.

Um filme falado narra a viagem de navio realizada A construção discursiva do corpus propõe um
por mãe e filha portuguesas, de Lisboa em direção a entendimento da história que acaba por implicar
Bombaim, na Índia, aonde devem encontrar com o pai da o sentimento conflituoso entre um passado tido
menina. Durante o trajeto, que se dá majoritariamente como glorioso e um presente em crise. Além disso,
pelo Mar Mediterrâneo, Rosa Maria, que é professora destaca-se a recorrência de viagens em tais filmes.
de História, pode explicar à sua filha a relevância das Acreditamos que o sentido maior dessa opção (o
cidades que vão conhecendo para a constituição das uso de viagens, deslocamentos, trânsitos) é justifi-
civilizações ocidentais e orientais. Outros personagens cado pela alegoria histórica elaborada a partir das
ganham importância ao longo do filme: uma empre- personificações de seus personagens principais.

136 CAP 7
Defendemos, assim, que, nesse corpus, os respectivos complementares, um que esconde a verdade sob a
protagonistas consolidam-se como personificações superfície, outro que faz a verdade emergir novamente”
alegóricas da nação portuguesa – personificações (XAVIER, 2005, p. 354).
nacionais reforçadas, justamente, pelas implicações
que as rotas e os rumos dos personagens propiciam. Sustentando o pressuposto de que há uma expressão
alegórica nos filmes de viagem, revelada em suas estra-
tégias retóricas particulares, é possível empreendermos
Seguindo tal hipótese, parte deste desafio consiste em
uma análise de discurso que considere os agentes
investigar a complexa relação existente no processo enun-
narrativos como personificações de conceitos
ciação-interpretação dos títulos supracitados, procurando
relacionados à história de Portugal. Estão em pauta
compreender como ocorre a utilização da alegoria para
alegorias nacionais constituídas sobre indivíduos (os
a apresentação de episódios do passado e do presente.
protagonistas dos filmes) e coletividades (os demais
viajantes, vinculados às questões internacionais da
O desafio colocado, ou seja, a metodologia de inter- Europa e do mundo). Assim, tanto os personagens
pretação alegórica dos filmes de viagem de Manoel como a compreensão dos sentidos implicados nas
de Oliveira passa pela dialética entre o “significado alegorias históricas dentro dos filmes de viagem
oculto” e a necessidade de decifrar a verdade, provo- poderiam ser tomados como possibilidades que
cada pela alegoria a partir da noção de um “texto a ser instigam a percepção de uma narrativa que se dá em
decifrado” (XAVIER, 2005). Portanto, “uma concepção âmbito globalizado, a partir da representação de nações
que transforma a produção e recepção da alegoria associadas à dimensão de mundialização. As incursões
num movimento circular composto de dois impulsos por essas temáticas recorrentemente estão atreladas

137 CAP 7
ao entendimento das nações em contextos de trocas ções, como a chegada ao chamado Novo Mundo; a morte
e embates internacionais, como comprovam alguns da personificação de uma memória crítica voltada à
dos episódios que constituem a história de Portugal sacralização da nação portuguesa no passado (o prota-
e que se encontram na narrativa do corpus. Vejamos: gonista do filme, alferes Cabrita); a associação da batalha
de Álcacer-Quibir (1578) e a Revolução dos Cravos (1974)

O sapato de cetim: título dedicado ao primeiro século de como eixos que sugerem, respectivamente, a submissão

expansão após os chamados “Descobrimentos” (século e a redenção do país perante seus fracassos.

XVI), filme produzido e realizado mais de uma década


e meia após o fim do império português (1974), mas Viagem ao princípio do mundo: a travessia do país em
apenas um ano antes de Portugal entrar na Comunidade direção ao “princípio do mundo”, colocando Portugal
Econômica Europeia (1986); a identidade portuguesa, como o início de uma ideia de Europa, mas também
no contexto de submissão à Espanha (e à Europa), tal como país que agoniza diante do continente em sua
como representada no enredo, não corresponde mais à contemporaneidade; a contraposição entre tradição e
imagem sacralizada dos tempos imperiais; nesse filme, modernidade como modos de superar as guerras que
Portugal é retratado como uma nação subjugada que ameaçam o continente europeu; a visita às memórias
não participa das aspirações mundanas e imperialistas de um de seus protagonistas (o cineasta Manoel no
dos outros países europeus. filme) sugerindo que, tal como a juventude, as glórias
passadas do país não podem mais ser alcançadas.

Non, ou a vã glória de mandar: os motivos das guerras


coloniais em África colocados em xeque pelos soldados Palavra e utopia: a vida e a obra de António Vieira como
que seguem viagem no filme; os legados deixados por exemplos de resistência a um contexto de mundo globa-
Portugal à humanidade a partir de suas grandes navega- lizado, de injustiças, e sacrificador dos mais fracos, que

138 CAP 7
tenta calar a voz de seu país; o uso da palavra carregada como o descobridor de todos os continentes do mundo;
de utopia, por meio dos sermões do padre, sugerindo a figura de Colombo como fundador da América do
um legado de lutas humanitárias perante uma Europa Norte conotando as implicações da nação portuguesa
indiferente a Portugal. como precursora do princípio de um poderio contem-
porâneo – os Estados Unidos.

Um filme falado: a complicada entrada de Portugal na


União Europeia – podemos atentar para a sequência que Assim, firmam-se as bases para a defesa de que Manoel
se desenrola à mesa de jantar no navio, quando mãe e de Oliveira procura reler o passado das civilizações,
filha são convidadas e todos, obrigatoriamente, passam com ênfase na história portuguesa, para expressar
a conversar em inglês; a ideia de um controle mundial problemáticas existentes no mundo contemporâneo,
exercido pelos Estados Unidos, como indica a figura do lançando mão para isso de viagens e alegorias históricas.
navio conduzido por um comandante estadunidense Porém, se por um lado o cineasta constrói um discurso
sem nome; as tensões entre o Ocidente e o Oriente decor- em acordo com as premissas de uma multiplicidade
rentes de interesses econômicos associados a divergên- descentrada, visando-se a descolonização das relações
cias religiosas, como sugerem as sequências do filme de poder contidas entre diferentes comunidades – ou
envolvidas com o debate sobre a produção de petróleo, seja, questionando as bases da retórica eurocêntrica de
além da cena do ataque terrorista ao término do enredo. compreensão histórica –, por outro, ao atuar em respeito
ao seu compromisso ético e universalita, Oliveira não deixa
Cristóvão Colombo – o enigma: o objetivo último de de implicar em um paradoxo sobre a sua própria prédica.
seus protagonistas (comprovar que Cristóvão Colombo “Paradoxo” porque tal compromisso ético e universalista
era português) instigando o desejo de reafirmar Portugal corre permanentemente o risco de circunscrever dramas

139 CAP 7
e conflitos a partir de contornos bem intencionados em Non, ou a vã glória de mandar e Viagem ao princípio do
razão dos subjugados pela história, mas, de todo modo, mundo, além do olhar para dentro da história portuguesa
delimitados aos interesses nacionalistas de Portugal. e de sua consequente indagação “O que nos trouxe até
aqui?”, Manoel de Oliveira parece investir suas inquieta-
ções a partir de outros termos: “Agora que estamos aqui,
Alegorias históricas em Palavra e utopia, Um filme
e assim, nestas condições, o que podemos e devemos
falado e Cristóvão Colombo – o enigma
fazer neste mundo e esperar deste tempo?”.

Conforme argumentado anteriormente, Palavra e utopia, De fato, é possível aferir que uma das vertentes do
Um filme falado e Cristóvão Colombo – o enigma são discurso oliveiriano está a par com o multiculturalismo
três dos seis títulos que compõem o corpus entendido policêntrico – conceito proposto por Ella Shohat e Robert
por filmes de viagem de Manoel de Oliveira. Devido a Stam no já clássico Crítica da imagem eurocêntrica:
suas características temáticas, formais e conceituais é multiculturalismo e representação (2006)5. A resistência
possível denotarmos unicidade ao grupo e acreditarmos
na existência de um discurso cinematográfico que 5 – O chamado multiculturalismo policêntrico diz respeito à possibilidade de
um debate acerca das identidades que se constituem em torno de nacionali-
transpassa todos os títulos pertencentes ao conjunto.
dades, etnias, sexualidades, classes sociais, procurando por uma multiplici-
Entretanto, a estratégia argumentativa de Oliveira, que dade descentrada e propondo a reestruturação de relações intercomunais.
Importante eixo desse trabalho é a defesa de que a percepção das proble-
tem início em 1985, com O sapato de cetim, apresenta máticas colocadas a partir da história lida de forma eurocêntrica “é indispen-
relevantes alterações com o passar dos anos. Ainda sável para compreender não apenas as representações contemporâneas nos
meios de comunicação, mas também as subjetividades contemporâneas”
fiel aos seus princípios ético, estético e universalista, o (SHOHAT; STAM, 2006, p. 19). Trata-se de descolonizar as relações de poder
realizador amplia o alcance de sua crítica/reflexão sobre entre diferentes comunidades. E não por acaso os seus “estudos multiculturais
dos meios de comunicação”, como dizem, empreendem um mapeamento de
o mundo contemporâneo ao princípio do novo milênio. discursos colonialistas desde 1492, considerado o ano de “descobrimento” da
América. Interessados em reconhecer o mundo como uma formação mista,
A partir de Palavra e utopia, Um filme falado e Cristóvão
Shohat e Stam chamam a atenção para os hibridismos, os sincretismos e as
Colombo – o enigma, a despeito de O sapato de cetim, mestiçagens em contraposição, por exemplo, ao etnocentrismo, ao racismo

140 CAP 7
ao discurso eurocêntrico por meio do uso de alegorias Palavra e utopia tem início com o padre jesuíta, então
históricas é perceptível em diversas passagens dentro dos em sua fase adulta/madura, diante do tribunal da
filmes de viagem de Manoel de Oliveira. Atento, contudo, Inquisição tendo de prestar contas por seus escritos em
aos enredos dos últimos três filmes do corpus, procura- defesa da possibilidade de existência e concretização
remos explorar exemplos que sustentem tal hipótese. do Quinto Império7 a ser conduzido pelo rei português.
Além deste episódio, o filme também explora outras
passagens em que António Vieira confronta o poder
A personagem António Vieira6 é representada em três
e interesses da Igreja Católica, sobretudo no Brasil,
momentos em Palavra e utopia – juventude (Ricardo
chegando ao ponto de ser proibido de discursar
Trêpa), fase adulta e maturidade (Luís Miguel Cintra) e
seus sermões e de ter, inclusive, voz ativa e passiva
velhice (Lima Duarte). E três são os exemplos elucidativos
anuladas no seio da entidade católica. Introduzido
do uso que Oliveira faz da história de Vieira no combate
o ponto de partida da história, uma elipse temporal
à lógica eurocêntrica: por meio do confronto do padre
faz um recuo e passamos a conhecer o jovem Vieira,
com a Inquisição; ao salientar o seu esforço na luta pelos
ainda em seu tempo de formação eclesiástica e, mais
direiros de índios e negros no Brasil; e ao evocar o lugar
importante, realizando seus votos de compromisso
em que a língua portuguesa fora alçada pelo eclesiástico.
com a fé católica e com os direitos de índios e negros
no Brasil. O enredo segue, então, a ordem cronológica

e ao sexismo que marcam as políticas imperialistas, colonialistas e neoco-


lonialistas. De todo modo, é importante salientar que não está em pauta
uma dimensão de eurofobia, com a rejeição da Europa em bloco, como se
entre os europeus (e os estadunidenses, também incluídos na perspectiva
eurocêntrica) não existisse diversidade política, étnica, religiosa, sexual, etc. 7 – Crença messiânica alimentada por António Vieira, a qual se julga que,
após os impérios Assírio, Persa, Grego e Romano, teria vez um Quinto Império
6 – Religioso da Companhia de Jesus, o português António Vieira (1608-1697) universal orientado pelo cristianismo e liderado por Portugal na pessoa de
viveu boa parte de sua vida no Brasil e foi um dos nomes mais importantes da seu rei. Esta temática voltará ser central na filmografia de Manoel de Oliveira
diplomacia de Portugal e da oratória portuguesa ao longo do século XVII. em 2004 com O Quinto Império – ontem como hoje.

141 CAP 7
e, assim, passa a desvelar aventuras e desventuras os confrontos do padre com a Inquisição, a luta pelos
doprotagonista que permanentemente encontra-se direitos de índios e negros em solo brasileiro e a força
em viagens pelo eixo Portugal-Brasil: o ataque de naus da expressão vieirina no idioma português chamam a
holandesas a uma embarcação que o transportava, a atenção para o lugar da cultura portuguesa no mundo
restauração do império português em 16408, suas inter- contemporâneo, passando pelos méritos de uma
venções nas políticas interna e externa de Portugal, as miscigenação que sugere as bases de uma nova cultura/
missões diplomáticas, o brilhantismo de seus sermões, nação, a brasileira – também ela, e relevantemente ela
o sucesso e a admiração obtidos em Roma por um gênio na contemporaneidade, falante da língua portuguesa.
da oratória que “infelizmente nascera fora da Itália”,
conforme afirmam dois padres italianos no filme, e, por Realizado em 2003, portanto, menos de dois anos
fim, a velhice e a morte no Brasil. após os atentados ao World Trade Center, nos Estados
Unidos, em 2001, Um filme falado estabelece contato

Não é involuntária a escolha da vida e da obra de António com este episódio da história recente e trata de uma
ampla reflexão alegórica sobre os conflitos religiosos
Vieira como eixo alegórico para o discurso oliveiriano
que opõem Ocidente e Oriente na contemporanei-
de crítica eurocêntrica em Palavra e utopia. Estreado
dade, bem como um alerta para as consequências
no ano 2000, o título, que corrobora as celebrações em
devastadoras que o absurdo dos atritos bélicos em
torno dos 500 anos da chegada dos portugueses ao
um mundo globalizado tem sugerido para as civiliza-
Brasil, faculta uma dada leitura interpretativa em que
ções e seus legados. Para a construção dessa alegoria,
e consequente questionamento dos méritos euro-
cêntricos para a história das civilizações, Manoel de
8 – A Restauração da Independência de Portugal acontece após 60 anos inin-
terruptos de submissão portuguesa à coroa espanhola dos reis Filipes I, II e III. O Oliveira cria um enredo com contornos aparente-
período também é conhecido pela União Ibérica, quando o rei de Espanha era
mente simples, mas portador de enorme capacidade
simultaneamente o rei de Portugal. Com a independência do reino português,
em 1640, é instaurada a quarta dinastia no país, a de Bragança. elucidativa: uma mãe portuguesa, Rosa Maria (Leonor

142 CAP 7
Silveira), também professora de História, viaja com Um filme falado é dividido em dois grandes blocos
sua filha, Maria Joana (Filipa de Almeida), em direção narrativos, em respeito a um esquema retórico em que,
a Bombaim, na Índia, aonde devem encontrar com a dentro de uma leitura alegórica, as partes necessitam
pai da menina. A viagem ocorre em um cruzeiro que ser complementares para a atribuição de sentido ao
atravessa o Mar Mediterrâneo. Dentro do navio em que todo. Enquanto a primeira unidade narrativa do filme
viajam, além das protagonistas, têm destaque perso- concentra-se nas visitações de mãe e filha, ou seja, nas
nagens de outras nacionalidades: o comandante da paragens externas ao navio, a segunda unidade está
embarcação (John Malkovich), que é estadunidense; voltada para o interior da embarcação. É a partir de
Delfina (Catherine Deneuve), francesa; Helena (Irene então que são apresentadas as outras personagens de
Papas), grega; e Francesca (Stefania Sandrelli), italiana. relevância para o enredo. A introdução destas acontece
por meio de um jantar convocado pelo comandante
estadunidense. Nesse primeiro encontro, estão
À medida em que seguem em viagem, desde o porto de
presentes à mesa de jantar o representante dos Estados
embarque em Lisboa, Rosa Maria explica à Maria Joana a
Unidos, a empresária francesa, a ex-modelo italiana e
pertinência das cidades que visitam para a consolidação
a atriz e professora grega. Em uma interação poliglota
das civilizações ocidentais e orientais, como é o caso de
inimaginável todos conversam em seus respectivos
Marselha, Nápoles, Pompeia, Atenas, Istambul, Cairo idiomas nativos (inglês, francês, italiano e grego) e,
e Aden. Embora haja, em todas estas paragens, guias mesmo assim, há um perfeito entendimento dentre
turísticos dispostos a orientarem os visitantes, a professora todos os convivas. Ainda há, nessa mesma sequência,
segue – muitas vezes, literalmente – a contramão desses o debate em torno da temática dos “peixes” que,
profissionais. Aos recorrentes “o quês?” e “por quês?” embora “não falem e não possam dar a sua opinião”,
da filha, a portuguesa busca alternativas aos discursos “não deixam de entenderem-se entre si”, de acordo
oficiais para sanar as dúvidas sobre temas como “mito”, com a explicação do comandante. No segundo jantar,
“civilização”, “natureza humana” e “contemporaneidade”. outra vez à mesa do anfitrião, juntam-se às convidadas

143 CAP 7
célebres mãe e filha portuguesas. No entanto, apenas toda uma interpretação que sugere à cultura e à
o estadunidense domina minimamente o idioma história de Portugal um lugar periférico. Dessa maneira,
português, pois vivera no Brasil por um breve período alimentando ainda o caráter alegórico desta interpre-
de tempo, e, assim, os convidados passam a dialogar tação, o atentado terrorista ao navio, sua consequente
na única língua compreendida por todos: o inglês. explosão e o esquecimento/abandono das portuguesas
ao término do filme corroboram a crítica oliveiriana à
configuração do mundo como o percebemos hoje e o
Esses exemplos são sintomáticos da crítica oliveiriana
triste desfecho reservado ao seu país.
ao discurso eurocêntrico em Um filme falado. No
primeiro caso, não é irrelevante que uma professora
de História opte por orientar sua herdeira – ou seja, Cristóvão Colombo – o enigma oferece três passagens
sua descendência nacional, se elevado o alcance da privilegiadas como exemplo da crítica oliveiriana
interpretação alegórica – por caminhos distintos dos ao discurso histórico dominante, eurocêntrico.
discursos impostos por convenções pouco contesta- Nomeadamente, o uso do idioma português, a viagem
doras do simples formalismo. No segundo caso, à mesa realizada de norte a sul em Portugal pelos protagonistas
principal de jantar, onde, alegoricamente, as decisões e a perspectiva de ser a nação portuguesa um princípio
tomadas implicam sobre a configuração planetária, do poderio contemporâneo, os Estados Unidos.
somos levados a crer que aqueles ausentes, os peixes
– e não só da mesa, mas do navio em si –, também O filme, inspirado no livro Cristovão Colon era portu-
são figurações de culturas impossibilitadas de agirem guês (2006), de Manuel Luciano da Silva e Sílvia Jorge
concretamente a partir das dinâmicas impostas pelos da Silva, apresenta o casal de investigadores em
propulsores do Ocidente. Por fim, a submissão de dois momentos de suas vidas: quando mais jovens,
todos os presentes ao idioma inglês somente depois da interpretados por Ricardo Trêpa e Leonor Baldaque;
integração das convivas portuguesas ao grupo provoca quando mais velhos, interpretados por Maria Isabel

144 CAP 7
de Oliveira, esposa do cineasta, e pelo próprio Manoel eles não entendem o idioma inglês. Passada uma
de Oliveira. Embora negada qualquer pessoalidade por década, Manuel Luciano já se comunica fluentemente
parte de Oliveira com a história, a sua presença, bem na língua estrangeira, mais ainda, torna-se médico e
como a de sua esposa, dão ao filme algum aspecto de ministra palestras para colegas da área. Entretanto, duas
intimidade com o casal da vida real. Tal fato, por vezes, paixões o levam de volta a Portugal: Sílvia, com quem
pode confundir ou desviar a atenção do espectador se casa na cidade do Porto, e a tese de que Cristóvão
para sua narrativa primeira: debater a nacionalidade Colombo teria sido português. No seguimento da
de Colombo. No entanto, o comprometimento ético lua-de-mel do casal, eles atravessam o país de norte a
do realizador continua inabalável, sendo prova disso o sul em busca de evidências que ajudem a comprovar a
próprio título do filme, em que a palavra enigma oferece nacionalidade de Colombo. Nesse percurso, encontram
a exata justificativa para evocar o tema central de seu emblemas da identidade portuguesa, como é o caso do
discurso: o legado português para a história. castelo de Beja, no Alentejo, e da Escola de Sagres, no
Algarve, além de entoarem, às margens do Atlântico,
Cristóvão Colombo – o enigma começa com a viagem uma espécie de segunda cerimônia de casamento ao
de navio realizada por Manuel Luciano e seu irmão declamarem alguns dos famosos versos de Luís de
Hermínio, de Lisboa a Nova Iorque, aonde são Camões em Os Lusíadas. Uma elipse temporal trans-
convocados pelo pai para que ali comecem uma nova fere a narrativa 60 anos adiante para que, uma vez mais
vida, com novas oportunidades e esperanças ainda nos Estados Unidos, o agora velho casal continue sua
no rescaldo da Segunda Guerra Mundial. A chegada busca incansável, que encontrará seu término na Casa
dos irmãos ao porto estadunidense, além de um forte Museu de Cristóvão Colombo, na Ilha de Porto Santo,
nevoeiro que os impede de apreciarem a Estátua da quando suscitarão a esperança de que algum patrocínio
Liberdade, é marcada também pela dificuldade de futuro possa finalmente auxiliar na comprovação da
comunicação entre ambos e os agentes de imigração: verdadeira nacionalidade do navegador do século XV.

145 CAP 7
Dentro de uma chave alegórica, é sintomático que Desse modo, a condição geopolítica de Portugal
Manuel Luciano, embora médico atuante nos Estados poderia ser compreendida em Manoel de Oliveira, na
Unidos – portanto, bem-sucedido em acordo com a tríade do pós-2000, de três maneiras distintas – no
lógica paterna do início de sua saga9 –, dedique as entanto, complementares entre si e ao discurso amplo
energias de uma vida a um projeto que, além de dos filmes de viagem e, do mesmo modo, associadas
aparentemente insustentável, pode ser tido como ao uso da alegoria histórica como forma de contes-
deferência máxima à sua origem ibérica. Pelos mesmos tação ao discurso de matiz eurocêntrico: em Palavra e
motivos de interpretação, ganha relevância a viagem utopia ao suscitar a necessidade da luta utópica, mas
dos protagonistas pelo interior de Portugal, bem como permanente, no combate ao esquecimento que parece
a evocação de alguns de seus símbolos nacionalistas. condenar os legados históricos e culturais promovidos
Nesse jogo de contrastes, o que o filme parece querer por seu país no âmbito da configuração de mundo
evidenciar é o lugar de Portugal como virtual princípio globalizado; com Um filme falado, ao alertar para os
de um poderio contemporâneo. Mais precisamente, riscos de um país esquecido, abandonado diante de um
sugerimos aqui, o enredo recorre – essencialmente contemporâneo que condena tradições, que procura
pela maneira como o faz – ao tema da nacionalidade o fim da história em nome de propósitos ideológicos
de Colombo mais pelo resgate da pertinência do legado paradoxais; e, finalmente, com a firme defesa da
histórico português para a contemporaneidade do relevância do resgate da história portuguesa para a
que por um pleno interesse na comprovação da busca contemporaneidade, em Cristóvão Colombo – o enigma.
empreendida por Manuel Luciano.
Assim, remanesce a condição paradoxal nos filmes
de viagem de Manoel de Oliveira. Sobre esse aspecto,
9 – Vale mencionar que o irmão de Manuel Luciano, Hermínio, se torna ator recorremos à originalidade do pensamento de Carolin
em Hollywood e nunca mais volta a Portugal.

146 CAP 7
Overhoff Ferreira em seu “Portugal, Europa e o Mundo: escolhida dentre as demais: em Palavra e utopia ao
Condição Humana e Geopolítica na Filmografia de evocar o Quinto Império e a regência de um império
Manoel de Oliveira” (2012). Nesse artigo, a autora universal sob a coroa portuguesa como alternativa
salienta pertinentemente a existência de uma perigosa a um mundo condenável – e condenado – porque
ambiguidade no discurso oliveiriano. Ou seja, ao ser fiel ao não cristão; com Um filme falado, ao sustentar,
seu comprometimento ético e universalita – português- alegoricamente, a defesa da nação portuguesa como
cristão e balizador de conceitos gerais com exemplos a única capaz de possuir herdeiros; e, ao considerar a
específicos –, o realizador também convoca a diferença hipótese de que seria Cristóvão Colombo português,
portuguesa como traço distintivo dentre os demais coloca-se em pauta a diferença portuguesa novamente,
povos. Levada a uma escala última, tal diferença serviria a especificidade de um povo que, somente ele, poderia
como álibi para os feitos e consequências dos atos postos ter posto todas as demais culturas em convívio.
em prática por uma nação divinalmente eleita. Esse
diferencial à portuguesa seria limitador de contradições e
paradoxos associados, por exemplo, ao trabalho escravo * CONCLUSÃO
explorado pelos próprios portugueses e com a dizimação
de gentes e culturas, sempre justificados pela dádiva A excepcionalidade da obra de Manoel de Oliveira ainda,
de se ter posto todos os demais povos em contato. e por muito tempo, será tema de debates, reflexões e
conclusões mais ou menos definitivas, menos ou mais
Mesmo crítico ao discurso eurocêntrico de compreensão contestáveis antes de ter um lugar consensual na história
histórica, a obra de Manoel de Oliveira, na tríade dos do cinema. “Paradoxal”, palavra cara, palavra-chave,
filmes de viagem do pós-2000, implica em contradições ponto de partida e lugar de chegada, recorrência na filmo-
associadas à dimensão de Portugal enquanto nação grafia oliveiriana. Contraditório seria, ao mesmo tempo e

147 CAP 7
com a mesma intensidade, negar o papel invulgar de anos 1980 e que alcança o início do novo milênio
Oliveira para o cinema e para a cultura em Portugal em com um olhar atento para fora de Portugal, buscando
favor de qualquer oposição simplista e negligenciável. responder a questões sobre o lugar de Portugal na
contemporaneidade. Assim, finalizamos em coro com
Neste pequeno ensaio, buscamos suscitar o debate Randal Johnson (2009, p. 24):
em torno de alguns aspectos ainda pouco explo-
rados na filmografia oliveiriana: a dimensão política,
mais especificamente geopolítica, em três títulos (...) uma subcorrente de fundo político percorre
muitos dos filmes de Oliveira e contribui para
produzidos por Manoel de Oliveira nos princípios do
caracterizá-lo, se não como um cineasta polí-
século XXI. Para tanto, chamamos a atenção para a tico, pelo menos como um realizador profun-
existência de um discurso contínuo e retroalimentar damente ético que reconhece as contradições
entre os títulos que compõem os filmes de viagem de do mundo moderno, especialmente a distância
entre ideais – sejam eles sociais, políticos, ou
Manoel de Oliveira. Conscientes de que o presente
religiosos – e a realidade da moderna socie-
texto não encerra a questão, mas na esperança dade capitalista, e que se posiciona consis-
de que este possa provocar novos e promissores tentemente contra o autoritarismo, contra a
debates, arriscamos concluir que Oliveira, com a opressão humana, e contra as consequências
tríade composta por Palavra e utopia, Um filme nefastas dos impulsos expansionistas ou impe-
rialistas, tanto políticos quanto religiosos, que
falado e Cristóvão Colombo – o enigma, leva a cabo
caracterizam o Ocidente há séculos. Estas preo-
a resolução de uma crítica ao regime eurocêntrico cupações vêm à tona, às vezes de forma sutil, em
de leitura histórica. Crítica que tem início ainda nos filmes cujo enfoque central é geralmente outro.

148 CAP 7
* REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. São Paulo: Nova ______. Portugal, Europa e o Mundo: Condição Humana
Cultural, 2003. e Geopolítica na Filmografia de Manoel de Oliveira. In.:
______ (org.). Manoel de Oliveira: novas perspectivas
sobre a sua obra. São Paulo: Editora Fap-Unifesp, 2012.
CASTRO, Therezinha de. Geopolítica. Princípios, meios
e fins. Rio de Janeiro, RJ: Ed. Bibliex, 1999.
HANSEN, João Adolfo. Alegoria – construção e interpre-
COSTA, Wanderley. Geografia Política e Geopolítica. tação da metáfora. São Paulo: Hedra; Campinas, SP:
São Paulo, SP: Edusp, 2008. Editora da Unicamp, 2006.

FERREIRA, Carolin Overhoff. Os descobrimentos do JOHNSON, Randhal. Oliveira Político. In: CRUZ,
paradoxo: a expansão europeia nos filmes de Manoel Jorge; MENDONÇA, Leandro; MONTEIRO, Paulo Filipe;
de Oliveira. In: JUNQUEIRA, Renata Soares (org.). QUEIROZ, André (orgs.). Aspectos do cinema português.
Manoel de Oliveira: uma presença: estudos de literatura Rio de Janeiro: UERJ, SR-3, Edições LCV, 2009.
e cinema. São Paulo: Perspectiva: Fapesp, 2010.

JUNQUEIRA, Renata Soares (org.). Manoel de Oliveira:


______. (org.). Manoel de Oliveira: novas perspectivas uma presença: estudos de literatura e cinema. São
sobre a sua obra. São Paulo: Editora Fap-Unifesp, 2012. Paulo: Perspectiva: Fapesp, 2010.

149 CAP 7
MACHADO, Alvaro (org.). Manoel de Oliveira. São Paulo, RODRIGUES, Jorge Nascimento; DEVEZAS, Tessaleno.
Cosac Naify, 2005. Portugal – O pioneiro da globalização – a herança das
Descobertas. Famalicão, Portugal: Centro Atlântico,
MARTIN, André Roberto. Fronteiras e Nações. São Lda., 2009.
Paulo, SP: Editora Contexto, 1998.
SILVA, Manuel Luciano da; SILVA, Sílvia Jorge da. Cristovão
PIANCO-DOS-SANTOS, Wiliam. A Alegoria Histórica Colon era português. Porto: Editora QuidNovi, 2006.
em Manoel de Oliveira: Um filme falado. Dissertação
(Mestrado em Imagem e Som) – Universidade Federal
SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Crítica da imagem
de São Carlos, São Carlos, 2011.
eurocêntrica: multiculturalismo e representação. São
Paulo: Cosac & Naify, 2006.
PIANCO, Wiliam. Filmes de viagem de Manoel de Oliveira:
deslocamentos e alegorias. In: VALENTE, António Costa;
CAPUCHO, Rita (coords.). Avanca | Cinema 2014. Avanca: VESENTINI, José William. Novas Geopolíticas. São Paulo,

Edições Cine-Clube de Avanca, 2014. SP: Editora Contexto, 3ª edição, 2004.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e XAVIER, Ismail. “A alegoria histórica”. In.: Fernão Ramos (org.).
política. São Paulo: EXO experimental org: Ed. 34, 2005. Teoria Contemporânea do Cinema. São Paulo: SENAC, 2005.

150 CAP 7
* REFERÊNCIAS (SEPARATRIZ )

*Composição visual da abertura de capítulo gerada a SANTIAGO, Luiz. Crítica| Cristovão Colombo - O
partir de cenas dos filmes ‘Palavra e Utopia’ (2000), ‘Um enigma. In: PLANO CRÍTICO, 2019: www.planocritico.
Filme Falado’ (2004) e ‘Cristovão Colombo – o Enigma’ com/critica-cristovao-colombo-o-enigma/
(2007) de Manoel de Oliveira. Imagens disponíveis em:

PAULO, Yves São. Um filme falado de Manoel de


IMEDIATA. Um Filme Falado de Manoel de Oliveira, Oliveira (2003). In: SIGA A CENA - SOS CINEMATECA,
2017: https://imediata.org/?p=5669 2015: https://sigacena.blogspot.com/2015/09/
um-filme-falado-de-manoel-de-oliveira.html

LEITE, Ítalo. Palavra e Utopia, filme de Manoel de


Oliveira. In: NOTAS JUDICIOSAS, 2010. https:// YOUTUBE: www.youtube.com/
notasjudiciosas.wordpress.com/2010/01/17/ watch?v=nCoNTx4faks&ab_channel=miguelb
palavra-e-utopia-filme-de-manoel-de-oliveira/

151 CAP 7
“Eu não falo apenas sobre mim: procuro falar
sobre algo que se expande infinitamente para
além da minha singularidade; procuro falar
sobre tudo o que é necessário para conceber
uma obra literária, sobre como é para mim criar
um universal concreto, um universal singular.”

Simone de Beauvoir

1 – Professora Auxiliar da Faculdade de Artes e Letras da Uni-


versidade da Beira Interior. Investigadora integrada do LabCom e
membro da Comissão para a Igualdade da UBI. Professora Auxiliar
no Departamento de Comunicação e Artes da Universidade da Beira
Interior. Investigadora integrada do centro LabCom.IFP.
As palavras colocadas em epígrafe fazem parte de uma constituição de narrativas exclusivamente dirigidas ao
bibliografia mais vasta, que muito haveria de influenciar voyeurismo masculino. Nesse âmbito, recorde-se que,
o nosso percurso ao longo de quatro anos de leituras, nos anos 70, quando os movimentos feministas come-
investigação e visualização de filmes. Sintetizar a tese çavam finalmente a alertar consciências e a repercutir
resultante implica, necessariamente, regressar ao seu efeitos práticos na sociedade, diversas pesquisadoras
título e às questões que nos colocámos a partir da sua de estudos fílmicos procuraram aplicar os seus prin-
definição: “A mulher-cineasta: Da arte pela arte a uma cípios à sua área de estudo. Se o cinema constituía
estética da diferenciação”. Dito de outra forma, pretendia
um meio de comunicação de massas, sustentavam, a
viajar-se do incontornável argumento de Oscar Wilde,
forma como suportava a manutenção de determinados
como se na arte todos fossemos anjos, a uma reve-
preconceitos e estereótipos representava um mecanismo
lação da identidade do/a artista na obra produzida.
de repressão da identidade feminina. Numa arte e/ou
Importava perceber se o cinema, enquanto meio de
indústria maioritariamente desenvolvida por homens,
comunicação de uma mensagem, teria aprofundado a
seriam eles a traçar retratos e a fornecer imagens com
histórica divisão dos papéis atribuídos a cada género,
as quais as espectadoras poderiam, ou não, identifi-
sublinhando estereótipos e justificando desigualdades
car-se. Inaugurando o processo de denúncia, Sharon
ou se, por outro lado, teria contribuído para uma defesa
da igualdade de direitos, não apenas entre os sexos, mas Smith (1972) sublinha que o papel da mulher no filme

também entre raças, culturas e classes sociais distintas. terá sido constantemente desenvolvido em torno da
sua atracção física e dos jogos de encontros com as
Delineado aquele objectivo, aprofundou-se o estudo personagens masculinas. O homem, por sua vez, não
das principais teorias feministas fílmicas, bem como a seria mostrado em relação às personagens femininas,
crítica ao cinema clássico de Hollywood pela suposta mas antes numa imensa variedade de papéis.

153 CAP 8
No ano seguinte, em 1973, Claire Johnston criticaria a (O cinema realizado por mulheres como um “contra-
imagem da mulher no cinema realizado por homens, cinema”), Claire Johnston manifesta uma posição
definindo-a como o significante da ausência fálica, pragmática e pouco idealista face a diferentes tipos de
ao invés de uma presença. Desta forma, enquanto processos criativos. Sublinhando que o desenvolvimento
Laura Mulvey viria analisar a natureza do espectador de estereótipos no cinema clássico de Hollywood terá
cinematográfico equiparando-o a um voyeur e aler- sido uma estratégia consciente da “máquina de sonhos”
tando para uma pressuposição discriminatória da daquela indústria, a autora considera que o facto de

sua masculinidade, a autora centra a sua crítica na sempre ter existido, ao longo de toda a História do
cinema, um maior espectro de papéis desempenhados
invisibilidade das mulheres reais no grande ecrã:
pelas personagens masculinas está exclusivamente
relacionado com a difusão de uma ideologia sexista
Numa ideologia machista e num cinema domi- e com a subsequente oposição primária que coloca o
nado por homens, a mulher é apresentada como
homem dentro da história e a mulher fora da mesma,
aquilo que ela representa para o homem. (…)
Apesar da enorme ênfase que foi dada ao tema ‘a numa dimensão eterna e quase feérica. Rejeitando
mulher como espectáculo no cinema’, é provável liminarmente uma concepção de arte universalista e
que a mulher, como mulher, se encontre ausente andrógina, Johnston reitera que qualquer filme (como
deste (JOHNSTON, 1973, p. 25).
qualquer objecto artístico) é produto de um sistema
gerido por relações económicas — formulação que
Por razões que se prendem com a vulgarização deste estende a filmes comerciais, políticos e experimentais.
tipo de disparidades, e justificando a escolha do título No seu entender, o cinema terá assim sido perpetuado
do seu artigo mais polémico presente na obra já citada por uma ideologia misógina, burguesa e capitalista.

154 CAP 8
Na sequência destas denúncias, e na tentativa de Regressando à reflexão feminista fílmica iniciada nos
combater as referidas falhas, muitas realizadoras anos 70, chegamos naturalmente ao momento fulcral
optaram, a partir da década de 80 e nos anos seguintes, da sua produção. Em 1975, Laura Mulvey publica Visual
por filmar documentários baseados na simples recolha pleasure and narrative cinema, na revista Screen. Pela
de testemunhos de mulheres que falam directamente primeira vez, a sétima arte é estudada de um ponto de
para as câmaras — sem pressões de ordem económica vista psicanalítico, recorrendo aos princípios de Sigmund
(relativas à produção e distribuição dos filmes), mas Freud e Jacques Lacan, tendo como temas centrais o
também combatendo o suposto artificialismo de
envolvimento do prazer erótico, o seu significado e
uma mise-en-scène trabalhada, uma maquilhagem
o lugar central da imagem feminina. Incorporando a
edificante ou uma mediação do interlocutor. Os
ideia freudiana de falocentrismo, Mulvey reitera que o
sonhos das entrevistadas, bem como as expectativas,
cinema clássico de Hollywood explora a mulher como
preocupações e interpretações da realidade são
objecto de desejo e encara a figura do espectador como
proferidos na primeira pessoa e na ausência de filtros
masculina. Através da acusação ao cinema clássico de
constrangedores, enquanto a missão de analisar o
Hollywood de uma discriminação das espectadoras na
seu conteúdo é delegada a quem assiste. A walk to
sala de cinema, e recorrendo à psicanálise enquanto arma
beautiful (Mary Olive Smith: 2008), Very young girls
política, Mulvey procurou demonstrar o modo como o
(David Schisgall: Nina Alvarez e Priya Swaminathan,
2008) ou Miss representation (Jennifer Siebel Newsom: inconsciente da cultura patriarcal estruturou o filme até

2011) constituem exemplos de uma tendência àquele momento. A partir daí, o olhar do realizador, da
crescente. O que é enunciado nestes filmes pode personagem masculina principal e do próprio espectador
traduzir-se na expressão singular de uma voz feminina do filme jamais seriam considerados inócuos.
que busca, de acordo com os princípios beauvoirianos,
a compreensão e identificação das mulheres que a Para Laura Mulvey, a cultura patriarcal dominante
escutam: o individual que se constitui como universal. terá encarado, desde sempre, a mulher como “o outro

155 CAP 8
macho”2, restringindo-a a uma ordem simbólica na qual Pelas razões aqui brevemente enunciadas, Laura
os homens puderam viver livremente as suas fantasias Mulvey entende que a exposição da mulher, no cinema,
e obsessões através do comando linguístico. A imagem terá sido usada como objecto erótico, tanto para as
silenciosa da figura feminina permaneceu amarrada personagens masculinas do filme como para o espec-
ao lugar de portadora (e não de fabricante) de signifi- tador em sala. O último projecta o seu desejo reprimido
cado, numa constante dicotomia discriminatória que o nos actores principais, iniciando um processo narci-
cinema viria reproduzir. A tendência seria agravada, na sista de identificação do ego com o objecto no ecrã.
opinião da autora, pelo facto de a sétima arte oferecer Através do mesmo, o protagonista homem torna-se
uma série de prazeres possíveis, entre eles a escopo- o substituto do espectador no ecrã: o seu poder
filia3. Num universo que considera sexualmente dese- (enquanto controlador dos acontecimentos) coincide
quilibrado, o prazer de olhar traduzir-se-ia na dicotomia com o poder activo do olhar erótico, atribuindo a
activo/masculino e passivo/feminino. Deste modo, a ambos um sentido de omnipotência. O processo
determinação do sexo masculino projecta a sua fantasia correspondente no género feminino — de identifi-
na forma feminina: a sua presença transforma-se num cação da espectadora com as personagens femininas
elemento indispensável ao espectáculo nos tradicio- — é dificultado pela conjugação de dois aspectos
nais filmes narrativos, não representando a acção, fundamentais: a ausência de controlo daquelas sobre
mas promovendo instintos activos nos que a rodeiam. os acontecimentos, e a imagem de perfeição (física ou
moral) transmitida, distante da mulher real que somos
ou com a qual nos relacionamos quotidianamente.

2 – Sublinhamos aqui a influência do pensamento de Simone de Beauvoir. A crítica de Laura Mulvey distingue-se assim das ante-
riores propostas ao desencadear uma alteração de
3 – Do grego scoptophilia, que significa “prazer em olhar”; expressão retirada
da psicanálise e frequentemente utilizada por Jacques Lacan. foco analítico distanciada de uma análise puramente

156 CAP 8
textual, aproximando-se de uma preocupação com recepção do espectador, a transformação que opera em
as estruturas de identificação e prazeres visuais do si e a forma como decide agir torna-se uma incógnita.
cinema. Considerando que essa mudança foi produzida Sustentando, com base nas formulações de Marie-José
em direcção à relação espectador - ecrã, segundo a qual Mondzain (2007) e Jacques Rancière (2010), que, no
a identificação não se trata de um simples mecanismo momento da recepção, os espectadores são envolvidos,
físico, mas antes da operação que constitui o sujeito formados por mas, ao mesmo tempo, construtores
humano, entendemos que a sua importância será de significados, revela-se a importância do próprio
tanto maior (dos pontos de vista teórico e político) para processo de visualização e recepção das obras de arte.
mulheres que nunca se representaram a si próprias
como sujeitos (no sentido de nunca haverem moldado,
Neste ponto, a grande maioria das autoras feministas
retratado ou criado as imagens que as reproduzem).
concorda no reconhecimento do papel do espectador
na interpretação fílmica, sublinhando, no entanto, a
O mesmo entendimento levou-nos a contrapor, em sua pressuposição neutra, algo andrógina ou mesmo
termos teóricos, duas perspectivas distintas que masculina. Para Annette Kuhn, nomeadamente, a
encaram o espectador, por um lado, como um sujeito posição do sujeito é geralmente indiferenciada em
passivo e inocente perante um jogo de aparências (desco- termos de género, não se prestando atenção à forma
nhecendo inteiramente os mecanismos de produção e como o cinema dominante constrói significados e se
de artificialização do real) e, por outro, como alguém que direcciona àqueles que assistem. No seu entender, essa
abandona a inércia e é capaz de reflectir sobre o objecto discriminação tem fortes implicações na visualização
cultural em questão, interpretando-o e modificando-o de imagens por parte das espectadoras femininas na
ao seu próprio modo. De acordo com este último ponto sala de cinema que, não raras vezes, se encontram em
de vista, a encenação ou a ficção não subjugam o olhar maioria na audiência. Um dos efeitos possíveis consiste
às sombras ilusórias da performance dos corpos: a na envolvência inconsciente na retórica do cinema

157 CAP 8
dominante, previamente direccionada ao espectador ▶ A naturalização de outros estereótipos comuns
masculino. Ao concretizar-se, a especificidade do género numa sociedade sexista (particularmente nas
masculino torna-se cultural e universalizada, pelo que a produções de Hollywood dos anos 30 e 40).
criação de uma relação entre a espectadora (ou a leitora)
feminina e a linguagem constitui um desafio para a Pressupondo que a presença (e ausência) da mulher em
ideologia social instituída. O mesmo significa dizer, como certos lugares não é notada pelo espectador comum,
Laura Mulvey defendera, que qualquer alternativa ao Kuhn alerta para a necessidade das teorias feministas
cinema dominante terá que contestar (e alterar) as formas do cinema “tornarem visível o invisível” (KUHN, 1982, p.
de olhar — objectivo alcançável, segundo Annette kuhn, 67). Neste sentido, o objecto mais óbvio para iniciarem
pelas próprias teorias feministas. A proposta embate, a sua análise será o próprio texto fílmico, mediante uma
no entanto, numa das principais críticas apontadas às observação cuidada da forma como a mulher é tratada
últimas: a sua heterogeneidade. Não obstante, a autora na estrutura narrativa. Em simultâneo, devem ainda
rejeita o argumento, afirmando existir unanimidade, ponderar-se o contexto no qual o filme é produzido e o
em termos de análise fílmica, na defesa e promoção da tipo de relações sociais envolvidas no processo fílmico.
sensibilização a determinados temas, nomeadamente: As teorias feministas do cinema podem, deste modo
e na opinião da autora, operar a dois níveis: texto e
contexto, ajudando a delinear a relação entre ambos.
▶ O silêncio da voz feminina na maioria dos textos
fílmicos;
Conjugando as perspectivas teóricas das autoras
referidas, ocorre-nos uma conclusão linear de índole
▶ A presença da mulher enquanto objecto sexual; essencialmente performativa: se os significados fílmicos

158 CAP 8
são produzidos no momento da recepção, é necessário próprias realizadoras noutros tipos de suporte, como
que os filmes sejam vistos para que essa produção ocorra. o on-line, são estratégias possíveis. Para além destas,
Daqui se infere uma nova urgência: a de trabalhar as considerámos ainda que seria importante criar, em
audiências, solicitando, provocando e fazendo reagir. Portugal (à semelhança do que tem sido feito nos
No caso específico do objecto de estudo da nossa restantes países da União Europeia e nos Estados
pesquisa, levar o público a assistir a filmes realizados Unidos da América), um festival de cinema de mulheres,

por mulheres — para que este se possa identificar com onde os seus filmes pudessem ser exibidos. A proposta
faria sentido de concretizar, atrevemo-nos a dizer, na
uma forma de olhar distinta da habitual — implica um
cidade da Covilhã, concelho pertencente ao distrito
enorme trabalho de criação de estruturas alternativas
de Castelo Branco que, após a extinção do festival
aos circuitos de exibição comercial. A lista de tarefas
Imago, não apresenta nenhum certame do género na
a concretizar pode incluir apresentações de filmes
sua programação cultural regular.
na presença das realizadoras e sessões especiais em
salas de aula, cineclubes ou associações dedicadas à
Em termos estatísticos, e como já demonstrámos
promoção de causas sociais igualitárias e feministas.
anteriormente (PEREIRA, 2012), existem 53 festivais
de cinema de mulheres em todo o mundo. Destes, 24
Dentro do mesmo âmbito, diversas sugestões têm certames — que correspondem a uma percentagem de 45
sido apontadas no sentido de inverter ou contornar por cento —, decorrem nos Estados Unidos da América e
a lógica comercial das distribuidoras. O surgimento mais de metade (62 por cento) têm lugar no continente
de produtoras independentes, preferencialmente americano. Catorze eventos com propósitos idênticos
dedicadas ao cinema de autor, a versão digital de são realizados na Europa; cinco no continente asiático;
muitos filmes, ou mesmo a produção assumida pelas apenas um na Oceânia e nenhum no continente africano.

159 CAP 8
Portugal faz parte de uma lista de países — que inclui convergência com outros modos de representação
a Rússia e a China — sem qualquer festival de cinema cultural e nas suas possibilidades de produção e contra-
de mulheres, sublinhando-se que, do outro lado da produção de visões sociais. Tal projecto implica assim
Península Ibérica, em Espanha, existem três eventos da repensar o cinema de mulheres como a realização de
mesma natureza. Em termos performativos, admitimos uma crítica política e de uma visão social feminista.
que a existência de um festival deste teor pudesse
incentivar um maior número de realizadoras a filmar,
Para Teresa de Lauretis — que consagra a não inge-
bem como promover o debate em torno de questões
nuidade do espectador e a incógnita dos processos
relativas à igualdade de oportunidades em democracia.
de recepção —, as teóricas feministas cingiram-se ao
dualismo “imagens postivas” / “imagens negativas”
Discordando das perspectivas teóricas até aqui apre- ou clichés. Tendo em conta o aparecimento simul-
sentadas, Teresa de Lauretis afirmaria que a tentativa tâneo do cinema e da psicanálise no início do século
de distinção de características ou marcas de um cinema XX (uma época cultivadora do verdadeiro romantismo),
feminino (realizado por mulheres) e de um cinema mascu- a autora julga natural ter-se estabelecido uma relação
lino (realizado por homens) se configura uma questão privilegiada entre a sétima arte e o desejo. Segundo
essencialmente retórica. No seu entender, a análise deverá afirma, a narrativa constrói um espaço visual onde
antes centrar-se na individualidade do artista por detrás a acção se vai desenrolando como um espectáculo
da câmara — o olhar ou o texto como origem e deter- da memória, enquanto o filme conduz o espectador
minante de significado — partindo, posterior e neces- por todas as cenas. A escopofilia torna-se portanto
sariamente, em direcção à esfera pública do cinema essencial ao cinema e à criação de imagens, funcio-
enquanto tecnologia social. Para a autora, o entendimento nando como uma espécie de meio para espectadores
das implicações do cinema deve ser potenciado em de ambos os sexos recordarem e se auto-analisarem:

160 CAP 8
“A narrativa e o prazer visual constituem o quadro de antes os multiplica. Nesse sentido, defende que se
referência do cinema, o mesmo que fornece a medida reconstitua o próprio desejo feminino do ponto de vista
do desejo” (LAURETIS, 1982, p. 57). da espectadora (objectivo alcançado, na nossa opinião,
por realizadoras como Jane Campion e Pascale Ferran).

Apesar de reconhecer que, desde o início, terão sido


os homens, legitimados pela ideologia patriarcal Brevemente sintetizada, a revisão da literatura aqui
dominante, a definir o que é visível no ecrã (o objecto, apresentada, suporta a definição metodológica que
o prazer e o seu significado), a autora não se revê no visamos propor. Neste ponto, consideramos que
projecto das teorias feministas do cinema que pretendem uma proposta de análise fílmica de cariz feminista
“tornar visível o invisível”. Na sua opinião, os objectivos deve comportar estudos generalistas anteriores,
políticos, sociológicos e estéticos devem antes passar nomeadamente os esquemas previstos por Jacques
pela criação de um objecto visual próprio, bem como Aumont e Michel Marie (2004), Manuela Penafria (2009)
pelas necessárias condições de visibilidade para um e John Thompson (1998), que conjugam análises
sujeito social distinto. Neste ponto em particular, textuais, poéticas, narratológicas, historiográficas e
e salvaguardando a importância teórica do ensaio icónicas. Sem anular a sua importância, e tendo-a
Visual Pleasures (…), Lauretis reitera que Mulvey se antes como estrutura básica, privilegiámos ainda
terá excedido. Na sua opinião, a narrativa e o prazer uma reflexão sobre os principais objectivos, valores
visual não devem ser encarados como uma forma de e ideias que cada filme reúne em si, num diálogo
opressão, uma vez que as relações entre a imagem e a sociológico com os elementos feministas presentes. A
interpretação ultrapassam largamente qualquer filme. metodologia apresenta assim, assumidamente, uma
Segundo Lauretis, tanto o cinema como a psicanálise diferenciação de género, nem sempre aceite como
já demonstraram que o discurso sobre o desejo não perspectiva de análise. Partindo do pressuposto
destrói o prazer visual, nem sequer o sexual, mas que os feminismos não denunciaram “apenas” os

161 CAP 8
não-lugares da mulher na arte, possibilitando ainda, O filme, enquanto objecto de estudo, é simultaneamente
e essencialmente, a sua lenta e difícil entrada num pretexto e pré-texto para o debate de temas
universo masculino, centramo-nos numa arte cuja falta fracturantes na sociedade. A obra é menos encarada
de representatividade em termos de género, em cargos como um mecanismo de reflexão sobre a Escola a
de direcção, tem sido particularmente criticada. Por que a cineasta pertence do que como um “labora-
esse motivo, recorre-se a uma análise que não atribui tório de ideias”, pelo que a abordagem teórica sobre
o esperado destaque, na área dos estudos fílmicos, aos os principais objectivos, valores e pensamentos
aspectos técnicos dos filmes, como a decomposição
que o filme reúne em si adquire preponderância,
exaustiva de planos, jogos de luz, sonoridade utilizada,
desenhando-se um juízo crítico sobre o percurso e
entre outros. A arte é aqui percepcionada como meio
evolução das realizadoras nos anos mais recentes.
de transmissão de mensagens mais ou menos polí-
ticas e socialmente geradora de pensamentos, teorias
e modos de ver. A abordagem sociológica é, portanto, Outro dos aspectos a que um estudo feminista fílmico
privilegiada em detrimento da psicanalítica, bem deverá prestar atenção traduz-se no equilíbrio entre
como uma análise textual e narrativa em detrimento os discursos analítico e crítico. Sobre este assunto,
de uma possível “meta-técnica” ou discurso produzido sublinha Manuela Penafria, é importante que se
sobre a mesma. Busca-se uma hermenêutica do texto proceda a uma clara distinção entre análise e crítica
fílmico como meio de apropriação e interpretação do cinematográfica, tendo em conta que a primeira
conteúdo e do tipo de personagens femininas criadas terá sido vulgarizada pela excessiva comparação a
pelas mulheres-cineastas: como as apresentam e diversos tipos de discursos sobre filmes, que vão
definem? Que estereótipos conservam ou rejeitam? A dos comentários, monografias e textos meramente
identificação das espectadoras poderá desencadear publicitários às próprias investigações académicas:
um processo mais naturalizado e quase inconsciente “Numa primeira abordagem, a análise aparenta
dado o realismo com que os temas são abordados? ser uma actividade banal que pode ser praticada

162 CAP 8
por qualquer espectador sem que o mesmo se veja da actividade crítica, à qual associam três funções
obrigado a seguir um determinado enfoque ou uma primordiais: informar, avaliar e promover. Um bom
determinada metodologia.” (PENAFRIA, 2009, p. 1) Na crítico terá assim, nas suas perspectivas, um profundo
sua opinião, analisar um filme é realizar um processo discernimento e “agudeza sintética”, que lhe permite
de decomposição e descrição detalhadas (recorrendo eleger e apreciar a obra que a posteridade irá conservar:
a conceitos relativos à imagem, ao som e à estrutura “Ele (o crítico) é um pedagogo do prazer estético, que
da obra), que deve associar-se a uma profunda se esforça por fazer partilhar a riqueza da obra com o
interpretação (estabelecendo e compreendendo as maior público possível.” (AUMONT; MARIE, 2004, p. 13).
relações entre os elementos decompostos).

Já no entender de David Bordwell (1991), para quem os


Criticar um filme será, por sua vez, avaliá-lo e deter- críticos são essencialmente construtores de significado
minar o seu valor em relação a um determinado fim. (making meaning), a legitimidade da prática advém da
Considerando que a crítica cinematográfica se tem vindo sustentabilidade das suas bases teóricas, sendo que
a afastar cada vez mais da análise, Penafria defende que, um exemplo de interpretação fílmica freudiana seria
não existindo uma equivalência de conceitos, a primeira aquela que enuncia o modo como o desejo é tratado
deverá sempre partir da segunda. Segundo afirma, o no filme. Genericamente, acrescenta Bordwell, até
discurso crítico não analisa as características singulares mesmo os críticos que garantem analisar o filme “por
ou especificidades de cada filme, apresentando um si” (sem subscreverem qualquer teoria) podem ser
número exagerado de adjectivos que o transformam conotados com uma teoria tácita (humanista, orgânica,
numa apreciação abstracta e subjectiva, passível de ser ou outra) que molde o seu acto interpretativo. A adesão
aplicada a obras indiferenciadas. Ao que julgamos ser a teorias equivalentes por parte de dois críticos não
uma visão demasiado restrita deste tipo de discurso, implica, no entanto e como reitera, a formulação de
Jacques Aumont e Michel Marie contrapõem uma defesa discursos concordantes, existindo sempre a hipótese

163 CAP 8
de surgimento de propostas díspares e alternativas. mir-se as opiniões, juízos e apreciações de um público
A verificabilidade ou correcção destas é, ainda assim, não traduzível num pequeno grupo conversacional e
impraticável para Bordwell, pelo que nenhuma crítica interactivo, nem tão pouco numa multidão massificada
deverá ser submetida a um teste de “indutivismo relegada para a unidimensionalidade da incomunicação.
eliminador” que a torne melhor candidata do que O alvo será antes um colectivo (disperso mas estável)
as suas rivais. Semelhante conclusão pode ainda ser que partilha o interesse comum no género, sem abdicar

transposta para a apreciação do crítico relativamente do seu próprio gosto e capacidade de julgamento. O
produto gerado será, por esse motivo, um meio de
ao filme. Considerar que este último é “bom”, “mau”,
interpretação (função hermenêutica) e argumentação
“extraordinário” ou “medíocre” não corresponde a
do valor (função retórica) da obra de arte, sendo que a
uma enumeração de factos incontornáveis, facilmente
primeira solicita a existência da segunda. Uma possível
assimiláveis por um critério de objectividade, mas antes
visão do crítico sobre o filme requer, portanto, uma defesa
a juízos de valor e sentenças proferidas por elementos
de argumentos convincentes perante os receptores aos
a quem um determinado público atribuiu credibilidade
quais se dirige. Nas palavras de Tito Cardoso e Cunha:
suficiente para tal. Em termos práticos, juízos de valor
“Enquanto interpretação, a palavra crítica dissipa o
ou sentenças não são verdadeiros ou falsos, mas antes
enigma da obra e enquanto argumentação, obtém o
argumentações instáveis, susceptíveis de correcção, que
assentimento do público.” (CUNHA, 2004, p. 95). Desta
devem sempre ter em vista a chegada ao seu destinatário.
forma, e seguindo a perspectiva habermasiana, o crítico
configura-se como um “árbitro das artes” (HABERMAS,
Revisitando esta posição, Tito Cardoso e Cunha relembra 1984, p. 57): o que ensina a ver, informa, contextualiza,
que, nos discursos do crítico profissional, deveriam expri- questiona e leva a questionar.

164 CAP 8
Regressando aos tipos de análise que propomos aplicar que a qualquer outro género. Na nossa opinião, a simi-
a um estudo feminista, relembramos que Manuela litude entre palavra e imagem aqui proposta é também
Penafria fixa a existência de quatro tipos de análise demasiado forçada, uma vez que, tal como pretende
fílmica que poderão ser utilizados como metodologia Roland Barthes (1984) ao proceder à desmistificação
qualitativa, e dos quais seleccionaremos os mais do lema “uma imagem vale mais que mil palavras”, o
pertinentes no contexto da temática. texto fixa e vem ancorar as significações possíveis da
imagem. Desse modo, irá acrescentar-lhe valor, em vez
de se assemelhar ou ser comparável a esta.
1. Análise textual: segundo a qual “o filme é um
texto”. Ecoando a teoria proposta por Christian Metz
em Grande sintagmática, esta análise infere que os 2. Análise de conteúdo: pressupõe que “o filme é um
filmes possuem três tipos de códigos: perceptivos relato”. Este processo, segundo Penafria, é igualmente
(capacidade do espectador reconhecer os objectos no limitado, por se restringir à identificação e exploração
ecrã), culturais (capacidade do espectador interpretar do tema e enredo da obra. Completar a frase: “Este
o que vê no ecrã recorrendo à sua cultura geral) e filme é sobre…”, resumir a sua história e decompô-lo
específicos (capacidade do espectador interpretar o — tendo em conta o que diz a respeito do tema —
que vê no ecrã a partir dos recursos cinematográficos). seriam as tarefas exigíveis numa estratégia deste
Decompor o filme será assim exibir a sua estrutura, tipo. Frequentemente confundida com a análise de
dividi-lo em segmentos, unidades dramáticas ou discurso, distingue-se desta por se centrar unicamente
sintagmas e seguir a vertente estruturalista de no texto do objecto (fílmico), utilizando metodologias
inspiração linguística criada nos anos 60 e 70. Para orientadas para a compreensão. A análise de discurso,
Penafria, este tipo de análise tem como principais por sua vez, procura desvendar os discursos (ou novos
desvantagens o facto de ignorar toda a riqueza visual textos) emergentes do objecto, utilizando metodologias
da obra e ser mais adequada aos filmes narrativos do orientadas para a interpretação. Apesar de a autora

165 CAP 8
não consagrar a análise discursiva como passível de segundo autores como Dominique Maingueneau e
ser aplicada a um filme, cremos que é sobretudo nela Michel Foucault, de uma infinita intertextualidade da
que deverá centrar-se a nossa investigação, por ser obra com textos anteriores (que terão servido de base)
a que mais fixa — à semelhança das próprias teorias e posteriores (gerados a partir deste). Uma análise
feministas — a linguagem enquanto prática social. discursiva de carácter feminista pretenderá, especifica-
mente, analisar o modo de funcionamento das relações
Sustentada em teorias como a dos actos de fala de de poder e resistência patriarcais no seio da sociedade
Austin (1986, p. 121): “Eu faço coisas, ao dizer coisas. (…) a partir dos discursos que a modelam, bem como das
o acto locutório tem um significado — o acto ilocutório práticas alternativas que se configuram como respostas.
tem uma certa força ao ser dito.”4), a análise discursiva
pressupõe que tudo o que tem um significado pode ser
dito ou mostrado, estabelecendo uma inter-relação 3. Análise poética: para Wilson Gomes, o grande
impulsionador deste tipo de estudo, analisar um filme
entre o discurso e o social. Terá como principal objectivo
é enumerar os efeitos da experiência fílmica e, a partir
evidenciar e interpretar a utilização da linguagem e as
destes, perceber a estratégia utilizada pelo realiza-
significações e finalidades expressas através do próprio
dor/a (efectuando o percurso inverso ao processo
discurso, centrando-se não apenas em quem fala (sujeitos
criativo). Para tal, quem analisa deve estar atento a
da enunciação), mas também nos sujeitos e/ou situações
todos os meios e recursos expressivos utilizados no
sobre os quais se fala, atentando aos dispositivos
filme, desde os visuais (escala de planos, fotografia,
retóricos de argumentação utilizados. Ao longo da
enquadramento, luz, movimentos de câmara), aos
sua implementação, prevê-se um reconhecimento,
sonoros e cénicos (banda sonora, direcção de actores,
cenários e figurinos), passando inevitavelmente pelos
4 – No original: “I do things, in saying something. (...) the locutionary act has a meaning narrativos (argumento e composição da história).
– the illocutionary act has a certain force in saying something.”

166 CAP 8
Passível de ser aplicada a diversos tipos de obras de arte, 4. Análise da imagem e do som: segundo a qual “o filme
a análise poética tem como principal vantagem, no caso é um meio de expressão”. Ao contrário da anterior, este
específico do cinema, auxiliar na determinação do tipo de tipo de análise é especificamente cinematográfica,
composição fílmica preponderante. Esta última poderá procurando descortinar o modo como o/a cineasta
ser estética (caso o filme desperte sensações invulgares concebe o cinema (como coloca a técnica ao serviço da
no espectador, como frequentemente acontece no sua arte ou ofício). Centrando-se na forma como são
cinema experimental), comunicacional (se o filme captadas as imagens em movimento, e na sua posterior
apresentar um forte argumento, pretendendo transmitir
edição, este tipo de análise evidencia o cinema como
uma determinada mensagem e apelar aos sentidos da
meio de pensar e lançar novos olhares sobre o mundo.
audiência), ou poética (sobretudo no caso de filmes com
uma forte componente dramática que perturbam as
emoções e sentimentos do/a espectador/a): Por não se pretender que um estudo de género seja
exclusivamente destinado a futuros realizadores/as

A poética estaria, deste modo, orientada para a identi- de cinema, entendemos que uma análise discursiva

ficação e tematização dos artifícios que, no filme, soli- e poética deve ser privilegiada, no sentido da concre-
citam uma ou outra reacção, este ou aquele efeito no tização de uma hermenêutica do texto fílmico como
ânimo do espectador. Neste sentido, estaria capaci- meio de apropriação e interpretação do conteúdo que
tada a ajudar a entender porquê e como pode levar-se as cineastas optam por trabalhar nos seus filmes. As
o apreciador a reagir desta ou daquela maneira diante conclusões fundamentais a que se pretende chegar
de um filme (GOMES, 2004)5. prendem-se, assim, com o tipo de personagens

5 – No original: “La poética estaría, entonces, orientada para la identificación y tematiza-


ción de los artificios que, en la película, solicitan ésta u otra reacción, éste o aquel efecto por qué y cómo puede llevarse al apreciador a reaccionar de ésta o de aquella manera
en el ánimo del espectador. En este sentido, estaría capacitada a ayudar a entender frente a un filme.”

167 CAP 8
femininas que filmam: como as apresentam e definem? BORDWELL, D. Making meaning: Inference and rhetoric
Que estereótipos conservam ou rejeitam? Serão in the interpretation of cinema. Cambridge: Harvard
maioritariamente mulheres de personalidade forte e University Press, 1991.
vincada, as escolhidas para serem retratadas nas imagens
das realizadoras? A identificação das espectadoras e CUNHA, T. C. Argumentação e crítica. Coimbra: Edições
espectadores poderá constituir-se como um processo Minerva, 2004.
mais naturalizado e quase inconsciente, pelo realismo
com que os temas são abordados?
HABERMAS, J. Mudança estrutural na esfera pública.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.

* REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
JOHNSTON, C. Notes on women’s cinema. London:
Society for Education in Film and Television, 1973.
* Livros:

AUMONT, J. & MARIE, M. A análise do filme. Lisboa: KUHN, A. Women’s pictures — Feminism and cinema.
Edições texto & grafia, 2004. London: Verso, 1982.

AUSTIN. How to do things with words. Oxford University LAURETIS, T. Alice doesn’t: Feminism, semiotics, cinema.
Press, 1986. Bloomington: Indiana University Press, 1982

BARTHES, R. O óbvio e o obtuso. Lisboa: Edições 70, 1984. RANCIÉRE, J. O espectador emancipado. Lisboa: Orfeu
Negro, 2010.

168 CAP 8
* Artigos:

GOMES, W. “La poética del cine y la cuestión del método Oxford Journals: University of Glasgow. Nº 16.3, 1975.
en el análisis fílmico”. In: Significação — Revista de cultura
audiovisual. Programa de Pós-Graduação em Meios e
PENAFRIA, M.. Análise de filmes – Conceitos e metodolo-
Processos Audiovisuais — PPGMPA: Universidade de
gia(s). VI Congresso Sopcom. Covilhã: BOCC, 2009.
São Paulo (USP). Nº 21, 2004

PEREIRA, A. C. Sugestão de criação de um festival de


MONDZAIN, M.-J. Antropologia da imagem. (Parte da
cinema de mulheres em Portugal, a partir da leitura de
obra Homo spectator: De la fabrication à la manipula-
Annette Kuhn. In: Galáxia: Revista do Programa de Estudos
tion des images. Paris: Bayard). Tradução de Luís Lima.
Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica — Pontifícia
Dicionário Crítico: Centro de Estudos de Comunicação
Universidade Católica — São Paulo. Nº 24, 2012.
e Linguagens - Universidade Nova de Lisboa. Disponível
em: <http://www.arte-coa.pt/index.php?Language=p-
t&Page=Saberes&SubPage=ComunicacaoELinguage- SMITH, S. The image of women in film: some sugges-
mImagem&Menu2=Imagem>. tions for future research. In: BEH, S.H.; SAUNIE, S. (ed.,
1972). Women and film. Berkeley, California. Nº 1, 1972.

MULVEY, L. Visual pleasure and narrative cinema. In: Screen.

169 CAP 8
* REFERÊNCIAS (SEPARATRIZ )

*Composição visual da abertura de capítulo gerada IMDB. Plot Summary: www.imdb.com/title/


a partir de bancos de imagens gratuitos e das cenas tt1097268/plotsummary
dos filmes ‘Very Young Girls’ (2008), ‘A Walk to Beatiful’
(2008), de David Schisgall: Nina Alvarez e Priya PRIME VIDEO: www.primevideo.com/detail/
Swaminathan e de Mary Olive Smith, respectivamente. Very-Young-Girls/0MNKEGDQQYYQZSH27J6JPQQ7O7
Imagens disponíveis em:

ROTTEN TOMATOES: www.rottentomatoes.


BRUNA, Miguel. Grand Canyon National Park, com/m/a_walk_to_beautiful#&gid=1&pid=0
United States. In: UNSPLASH, 2018: https://
unsplash.com/photos/TzVN0xQhWaQ

170 CAP 8
Little plots and stories, acted out and screened, cannot
possibly be called cinema.

They have nothing whatever to do with cinema.

A cinematographic work is above all a work, which would


not be possible in any other art form.

In other words, it can be created by means of cinema and


cinema alone.

Andrei Tarkovsky

1 – Professora Associada da Universidade do Algarve, Coordena-


dora do CIAC - Centro de Investigação em Artes e Comunicação e
Diretora do Doutoramento em Média-Arte Digital da Universidade
do Algarve e Universidade Aberta.
* INTRODUÇÃO

Tradicionalmente, os estudos sobre Literatura e cinema, onde a disciplina, quando aparece, é apenas
Cinema estão vinculados aos estudos da Literatura uma opção dentre tantas outras, não ocupando um
Comparada, na área mais restrita dos estudos da papel central no âmbito das discussões sobre o cinema
Literatura e outras Artes. No caso específico de na contemporaneidade.
Portugal, nos últimos anos, tem crescido como
área independente e aparecido como tema central
A minha proposta é, portanto, apresentar um percurso
de diversos estudos pós-graduados, ampliando
muito particular: sem negar a filiação à Literatura
assim a base teórica inicial da disciplina, original-
Comparada, proponho uma aproximação alternativa que
mente voltada apenas para os estudos compara-
parte dos estudos da imagem e das teorias do cinema.
tistas, trabalhando a questão da relação entre as
Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux, no
duas formas artísticas apenas como uma questão
primeiro capítulo do seu livro Da Literatura Comparada
de comparação entre o texto literário original e a
à Teoria da Literatura, fazem referência à Bakhtine e o
respetiva adaptação feita pelo cinema.
princípio dialógico que este enuncia. Machado e Pageaux
acreditam que está implícita, nos princípios do diálogo
Apesar da abertura dos estudos sobre a relação entre intercultural proposto pelo filósofo da linguagem russo,
Literatura e Cinema para outros campos do saber, a ideia de imersão na cultura do outro. Só é possível
ampliando assim o seu corpus teórico, antes vinculado dialogar com o outro a partir do momento em que se
essencialmente aos estudos literários comparados, é familiariza com o contexto sociocultural deste. Antes
inegável a sua estreita relação, ainda hoje, mais com a de fazer uma comparação entre obras diferentes é
literatura e com os cursos de Estudos Literários/Letras, necessário fazer uma reflexão sobre o que constitui,
do que propriamente com as escolas e/ou cursos de em cada país, o espaço cultural dito “nacional”. Para os

172 CAP 9
dois autores, se a literatura comparada se debruça sobre sua história e os caminhos que seguiu ou que poderia
o estudo dos elementos estrangeiros que existem em ter seguido. A minha proposta assenta, pois, neste
todas as literaturas, deve-se partir do contacto com o diálogo possível entre dois diferentes sistemas que têm
“estrangeiro” para que se defina o espaço da comparação. convivido, lado a lado, ao longo de todo o século XX e
continuam a contaminar-se e a iluminar-se um ao outro
ainda hoje em pleno século XXI.
Os elementos externos, ou estrangeiros, como dizem
os autores, podem funcionar como um elemento reve-
lador do estado da cultura de um país. Uma cultura
* LITERATURA E CINEMA - UM MÉTODO
que se fecha em si mesma não abre brechas para que
as influências externas possam vir contaminá-la e
também acaba por fechar-se a possibilidade de ilumi- Proponho o desenvolvimento de uma metodologia
nação e reflexão sobre si mesma que só uma visão de interpretativa de inspiração semiótica, adequada à
fora poderia proporcionar. O diálogo é, para Machado análise da intertextualidade entre cinema/literatura.
e Pageaux, não só pertinente como necessário para Na estruturação da referida metodologia, a análise
revigorar a cultura de uma nação. da relação cinema/literatura deve assumir a seguinte
premissa: o cinema encontrou na literatura, mais que
no teatro ou noutros textos culturais que o influen-
Parto então do princípio enunciado por estes dois
ciaram direta ou indiretamente, elementos fundamen-
autores, alargando a leitura proposta às relações entre
tais para a construção de uma linguagem.
dois sistemas semióticos diferentes que são a literatura e
o cinema. O cinema, o estrangeiro, pode, e deve revelar,
na literatura, o seu estágio atual, os seus caminhos e Ao propor uma metodologia de caráter semiótico/
descaminhos. Da mesma forma, através da literatura, o cinemático para a análise da intertextualidade entre
cinema poderá perceber as escolhas que fez ao longo da cinema e literatura, tento fugir do paradoxo criado

173 CAP 9
por diversos estudiosos: analisar o cinema com um das vanguardas históricas que, antes de mais nada,
arsenal teórico avesso a este medium. O que me ajudaram a elevar o cinema à categoria de Arte. É
interessa não é definir o cinema enquanto arte, pois essencial perceber o papel das vanguardas na criação
esta questão já não se (im)põe, mas procurar alcançar de uma linguagem cinematográfica e o pensamento
a formulação de um método que respeite a constituição holístico que estava subjacente ao ideário geral dos
de um texto que não só se relaciona com a literatura artistas do início do século XX.
e todos os demais textos artísticos (não é, pois, o
cinema a sétima arte?) como também se modifica a si
Costuma-se dividir a história do cinema em alguns
mesmo e a todos os outros textos que o atravessam.
períodos, a saber: pré-cinema (da invenção até aos anos
10 do séc. XX); cinema mudo, que vai até ao lançamento
Num primeiro momento é fundamental promover do filme The Jazz Singer, no final dos anos 20; cinema
uma imersão no contexto histórico e cultural do clássico, que atravessa os anos 30 e chega, para alguns,
século XIX para que seja possível perceber a lógica ao início dos anos 50; o cinema moderno, que nasce
inerente ao nascimento da imagem cinematográ- no pós-guerra; e o cinema contemporâneo, ou pós-ci-
fica e à relação que esta mantém com o universo nema, quando se chega à era da imagem digital. Para
visual circundante. Para perceber o cinema é preciso percebermos as relações que o cinema vai manter com a
compreender o que é uma imagem, quais os modos literatura, é preciso compreender as questões técnicas
de aproximação e leitura possíveis e, de que maneira, e estéticas pertinentes a cada um desses períodos.
ao longo da história, imagem e palavra dialogaram.

Há uma questão fundamental que atravessa os estudos


No intuito de aprofundar ainda mais os estudos das das relações entre a literatura e o cinema: a questão
relações entre palavra e imagem a partir do nasci- da adaptação. Porque que é que o cinema adapta, e
mento do cinema, é necessário refletir sobre o papel sempre adaptou, textos literários? Em que medida um

174 CAP 9
ou outro sistema semiótico ganha ou perde com É necessário conhecer as questões dos primeiros
este processo? Qual é a tipologia das adaptações? teóricos para perceber porque havia tanta resistência,
Qual o papel que a adaptação ocupa no cinema ao ponto de, ainda nos anos 30, Rudolph Arnheim
contemporâneo? Para responder a estas perguntas escrever um livro como Film als Kunst (mal tradu-
exploro a história das adaptações, que remonta, zido para o português como A arte do cinema), onde
praticamente, ao nascimento do cinema e questiono defendia o cinema a preto e branco e sem som como
o papel que as adaptações literárias ocuparam no única maneira de afastá-lo da realidade e, portanto, de
desenvolvimento do texto fílmico. torná-lo mais artístico. Neste livro de 1932, o psicólogo
alemão falava da necessidade do artifício no cinema
para que este não se convertesse num mero espelho
* QUESTÕES PREAMBULARES
do real. Não é por acaso a data de aparecimento do

As relações entre a literatura e o cinema nunca foram livro, pouco depois de o cinema ter “aprendido” a falar.
muito pacificas. Historicamente, o primeiro texto
que reflete sobre o assunto, data do início dos anos Por esses anos, surgem ainda dois textos fundamentais
30 e foi escrito pelo realizador Serguei Eisenstein contra a tendência realista do cinema que seria apro-
(“Cinema e Literatura – sobre o metafórico”). Da fundada com o aparecimento do som: um manifesto
parte do cinema sempre houve uma necessidade de dos realizadores soviéticos, Eisenstein e Pudovkin
buscar uma ponte qualquer com a literatura, fosse à e um manifesto de Charles Chaplin em defesa dos
procura de lastro cultural ou simplesmente de boas silents. Da mesma maneira que os primeiros teóricos
histórias. Mas os primeiros teóricos de cinema não do cinema lutaram contra a sua natural tendência ao
aprovavam esta relação por temer que o cinema mimetismo do mundo visível, outros tantos lutaram
fosse engolido pela literatura e acabasse perdendo contra a assunção, da parte do cinema, de um
aquilo que eles tanto prezavam, o específico fílmico. discurso narrativo calcado na literatura.

175 CAP 9
Da parte da literatura há uma resistência inicial O exemplo mais extremo dessa tese é o trabalho
ao novo meio, capaz, para muitos, de empobrecer de Leglise sobre a Eneida. O autor vai elaborar,
o texto literário. Em 1948 é publicado o livro de a partir do Primeiro Canto da obra de Virgílio,
Claude-Edmonde Magny, L’Age du Roman Américain, um guião técnico onde utiliza todo o léxico que
onde, pela primeira vez, faz-se uma apreciação pertence, convencionalmente, à teoria do cinema.
da influência do cinema sobre a literatura. Para o O que Leglise queria provar era que as técnicas
autor era impossível que a nossa perceção não fosse do cinema, como a montagem, a découpage, o
afetada pelo cinema, tema que Walter Benjamin já ponto de vista, a mudança de planos e a organi-
discutira alguns anos antes. Assim sendo, ao analisar zação imagética da narrativa, já estavam esboçados
a obra dos escritores norte-americanos dos anos 20, na Eneida. Desta forma o cinema não trazia nada
Magny encontra uma série de técnicas de relato que de novo para a literatura, apenas trabalhava os
em muito se assemelham às técnicas do cinema. mesmos procedimentos em sistemas diferentes.

Para o autor francês, a literatura dos anos 20 adaptou


As teses do précinema não encontraram muito eco nem
uma série de técnicas advindas do filme, tais como:
nas teorias literárias nem nas teorias do cinema, voltando
a narração objetiva, a découpage e alguns procedi-
mentos temporais. As ideias de Magny encontram, a aparecer apenas, por um breve período, na Espanha,

alguns anos depois, uma leitura profundamente nos anos 70. Após o précinema, nos anos 60, a moda
antagônica dessa relação nas teorias do précinéma da Semiótica invade também os estudos do cinema.
formuladas nos anos 50 por Étienne Fuzilier, Henri Christian Metz, leitor atento de Jean Mitry (um dos pais da
Agel e Paul Léglise. Estes autores defendiam que os teoria moderna do cinema), tenta, através da semiótica,
procedimentos considerados cinematográficos por superar o seu mestre. Para Metz não havia uma teoria ou
Magny eram, na realidade, procedimentos literários crítica de cinema que fosse verdadeiramente científica.
que o cinema ia buscar à literatura, e não o contrário. Era necessário, segundo ele, lançar uma reflexão mais

176 CAP 9
teórica sobre os estudos do cinema para que os Metz reconhece que o cinema e a literatura não
mesmos saíssem do campo da fenomenologia ou de partilham o mesmo sistema semiótico e, portanto, a
estudos afins que acabavam por afastar o cinema produção de significado em ambos é feita de maneira
da sua especificidade enquanto meio. diversa. Para ele, o cinema não poderia ser uma língua,
por ferir os princípios básicos da definição que os
linguistas faziam do termo. O que não impedia a comu-
Em 1964 aparece o famoso texto de Metz: “Le cinéma:
langue ou langage?”. Nesta obra ele reflete, dentre nicação e/ou transposição entre os dois sistemas.

outras coisas, sobre as relações do cinema com a


literatura e diz: Nos anos 70, Metz vai aprofundar ainda mais esta
discussão ao abordar a questão das especificidades dos
códigos e as possibilidades de inter-relação entre eles.
L’expressivité esthétique vient se greffer au
cinéma sur une expressivité naturelle, celle du
Os estudos de Metz dão lugar, nos anos 80, aos estudos
paysage ou du visage que nous montre le film. sobre a literatura e o cinema no âmbito da Narratologia.
Dans les arts du verb, elle se greffe, non point Gérard Genette, Seymour Chatman e David Bordwell
sur une veritable expressivité première, mais sur vão explorar a capacidade que o cinema possuía para
une signification conventionelle, très largement
se constituir como um relato. Aqui não interessava a
inexpressive, celle du langage verbal.2
questão da adaptação, mas as questões relacionadas
ao procedimento: quais as técnicas que um e outro
sistema utilizavam para construir um relato - o que
2 – METZ, Christian. “Le Cinéma: langue ou langage?”. Communications 4,
ampliava bastante as possibilidades de leituras das
1964, pp. 52-90. (Informo que, sempre que possível, as citações serão feitas
a partir do original. Quando o original não for acessível, serão utilizadas relações entre a literatura e o cinema.
traduções fidedignas dos mesmos).

177 CAP 9
Uma obra fundamental, sobre os princípios básicos de * PARA UMA TIPOLOGIA DA ADAPTAÇÃO
uma leitura narratológica das relações entre a litera-
tura e o cinema, é o livro de Jost e Gaudreault, O Relato Quando se fala das relações entre a Literatura e o
Cinematográfico. Cinema e Narratologia. Neste livro Cinema pensa-se, quase de imediato, nas questões
os autores partem da definição de relato de Christian da adaptação e da sua tipologia. Há várias propostas

Metz e, a partir daí, fazem as aproximações entre o de tipologia, ora mais complexas e completas,
ora mais simples e aplicáveis ao cinema em geral.
texto literário e o texto fílmico. A pergunta essencial
Costumo utilizar uma tipologia baseada no binômio
é: como o cinema constrói um relato? Como podemos
fidelidade/criatividade. Este modelo é proposto,
utilizar as categorias do relato e aplicá-las ao cinema?
dentre outros, por Francis Vanoye, Alain García e
José Luis Sánchez-Noriega.
Através do livro de Jost e Gaudreault, percebemos,
não só a terminologia dos estudos Narratológicos,
Para os autores supracitados há quatro tipos funda-
como a sua aplicação na leitura de um filme. As
mentais de adaptação: como ilustração, como trans-
ideias de Gian Piero Brunetta, no seu livro Nascita
posição, como interpretação e, finalmente, como
del Racconto Cinematografico (Griffith 1908- adaptação livre. Para exemplificar melhor, utilizo o
1812), são complementares às expostas por Jost filme Tristana, de Luis Buñuel e a obra homónima de
e Gaudreault. Através da análise dos filmes do Benito Pérez Galdós. Tristana é uma novela escrita em
chamado cinema primitivo, Brunetta vai detetar o 1892 por Galdós e é considerada uma das suas obras
momento exato onde o cinema aprendeu a contar menores. Após assistir à “leitura cinematográfica” que
histórias, deixando de ser meramente especular e Buñuel propôs do texto, os especialistas galdosianos
organizando as imagens numa estrutura cada vez afirmaram que passaram a ver o livro com outros
mais complexa onde cada plano tinha uma função. olhos e mesmo reconsideraram o seu lugar na obra do

178 CAP 9
escritor espanhol. A questão pertinente sobre o filme como argumento inicial e depois pode desenvolvê-lo
é: como uma obra realista é transformada num filme em direção muito diversa da proposta pelo escritor.
por um realizador surrealista? O que fica da obra no
filme? Até que ponto Buñuel traiu o texto original?
Ao visionarmos o filme, realizado em 1970, e lermos
o livro de Galdós, em particular o último capítulo,
Ao partir da tipologia proposta anteriormente temos percebemos como, onde e porque a leitura de Buñuel
que uma adaptação como ilustração é a mais fiel diverge da obra original. Enquanto o livro acaba com
de todas. Neste caso o realizador apenas ilustra a as personagens, Tristana e Don Lope, a tomar um
obra adaptada, com imagens que seguem o mais lanche, o filme termina com a morte do protagonista.
fielmente possível o livro original. O realizador tem E assim somos confrontados com a pergunta: por que

aqui um papel muito pequeno e pouco criativo. No o realizador espanhol mata Don Lope desta maneira?

segundo caso, adaptação como transposição, o


realizador já se permite algumas traições, tais como: Para encontrar uma resposta, precisamos discutir as
mudar a época do texto, suprimir ou acrescentar obras no seu contexto sociocultural. Na altura em que
algumas personagens e suprimir ou acrescentar o livro foi escrito, o prosaico chocolate que Don Lope
informações de caráter mais descritivo. No terceiro toma com Tristana era visto como uma espécie de
caso, adaptação como interpretação, temos que, morte do protagonista masculino. Ao longo do livro,
apesar de o realizador respeitar o texto original, o Galdós mostra, de uma maneira sutil, a inversão da
que ele converte em filme é sua leitura particular do relação de poder entre Don Lope e Tristana. Ele, um
livro, é a maneira como ele o apreendeu, que pode ser ateu convicto, anti clericalista e anarquista, rende-se
muito diversa das leituras consagradas. Este é o caso à sua vítima, Tristana, e transforma-se num pequeno
do filme Tristana. Há, finalmente, a adaptação livre. burguês que convida os padres a lanchar em sua casa
Nesta o realizador usa o livro, muitas vezes, apenas e que aceita a vida quotidiana e convencional que
179 CAP 9
Tristana lhe impõe. O chocolate ao fim da tarde era, * UT PICTURA POIESIS
para Galdós, a rendição final do senhor todo-poderoso
e sua morte simbólica, já que ele acaba por rejeitar Apesar de trabalhar a relação entre o cinema e a lite-
tudo aquilo em que mais acreditava. ratura a partir das teorias, e das especificidades do
primeiro, não posso deixar de referir um aspeto que
é tradicionalmente desenvolvido na disciplina de
Nos anos 70, dificilmente Buñuel conseguiria fazer ver
Literatura e Cinema – a ekphrasis. Há diversas leituras
ao seu público essa morte simbólica de um homem
de textos ekiphrásticos, uma das mais recentes é a
e de um modo de vida. Além disso, a maneira como
proposta por Mário Avelar para uma leitura da obra
ele constrói o relato do “assassinato” de Don Lope
de Jorge de Sena (Ekphrasis. O poeta no atelier do
só era possível de ser realizada num meio imagético.
artista). É importante lembrar a máxima emblemática
Em alguns casos, o cinema não consegue transpor a
de Horácio que, no verso 361 da sua Arte Poética,
sutileza do texto literário, da mesma maneira que o
afirmou: Ut pictura poiesis, convencionalmente
texto literário, em muitos outros, não consegue fazer ver
traduzido por a poesia é como a pintura. Esta fórmula
como o cinema. Assim, usando os recursos próprios do
horaciana é contestada no século XVIII por Lessing em
meio que tinha em mãos, o cinema, Buñuel mantém-se
sua obra Laokoon oder Über die Grenzen der Malerei
fiel à ideia original de Galdós, apesar de subvertê-la.
und Poesie (1766). Neste livro o filósofo alemão vai
analisar os limites da fórmula horaciana e defender
O exemplo acima referido é apenas uma das possíveis que a poesia, e a literatura em geral, utiliza recursos
formas de se trabalhar a questão das tipologias. O diversos dos recursos da pintura não sendo legítimo
visionamento do filme e o confronto com o texto original aplicar, ao pé da letra, a máxima do poeta latino.
permite perceber as diferenças e/ou semelhanças de
procedimentos utilizados por diferentes realizadores Para compreendermos alguns dos problemas e as
no processo de adaptação de uma obra literária. leituras diversas que a ekphrasis teve ao longo do

180 CAP 9
tempo, uso a imagem do grupo escultórico Laocoonte, Acredito que este é um bom preâmbulo para podermos,
atribuído aos escultores Agesandro, Atenodoro e então, começar a tratar das questões referentes às rela-
Polidor, por Plínio, o velho, no volume 36 da sua ções entre a literatura e o cinema de uma maneira menos
Naturalis Historia. Laocoonte, que se encontra hoje convencional. Ressalto que a aproximação que faço do
no Museu do Vaticano, data, provavelmente, do tema está calcada na minha formação académica e
século I a.C., e pertence ao período helenístico. O profissionalebusca,semprequenecessário,dialogarcom
grupo escultórico retrata uma passagem da Ilíada de outros tipos possíveis de leituras desta mesma matéria.
Homero, mais tarde relatada na Eneida de Virgilio.

Para adentrar na questão da ekphrasis, além de ver * O CINEMA E A INVENÇÃO DA VIDA MODERNA
uma imagem do grupo escultórico é essencial ler
o poema homónimo de Vasco Graça Moura, onde Para que se possa compreender e aprender a descodificar
o poeta nos conta a redescoberta desta obra no a linguagem cinematográfica é preciso, antes de tudo,
Renascimento. Durante séculos esta peça esteve compreender o contexto do nascimento do cinema.
desaparecida e a sua existência esteve vinculada As artes estão perfeitamente integradas no universo
aos registos feitos por escritores e poetas, em textos circundante que as produz, distribui e acolhe. Assim
ekphrásticos, dos quais se destaca a obra de Plínio. sendo, é necessário promover um mergulho no século
O poema narra a descoberta, a feliz coincidência da XIX, para que se possa perceber a lógica que subjaz à
presença de Michelangelo nos arredores e o confronto criação do cinematógrafo pelos Irmãos Lumière, em
das leituras entre aquilo que se ouvira falar do grupo 1895, e o caminho percorrido até chegar a esta data que é
escultórico e aquilo que ele, efetivamente, era. considerada, oficialmente, o início da História do Cinema.

181 CAP 9
Inscrever o cinema no contexto do seu nascimento da tecnologia e da produção e distribuição massiva.
é tomar consciência de que ele participou da É, portanto, filho dos grandes centros urbanos que
construção de um novo século que nasce sob a égide começam a espalhar-se pelo velho e pelo novo
da tecnologia. Surge, no final do século XIX, outro mundo. O fim do século XIX é marcado pela derrocada
sujeito, detectado por Baudelaire3, um homem que final de uma cultura ligada ao Ancien Regime. Era
vagueia cercado de espelhos, cercado de imagens: o preciso encontrar respostas para o novo homem que
homem da multidão4. Em síntese, um novo homem surgia, para as cidades que se reconfiguravam, para
que precisa de uma nova forma de expressão. um gosto volátil e efémero que marcava o ritmo da
produção em massa de objetos diversos, para o novo
Antes de surgir o cinema, havia já um desejo mundano homem antevisto por Edgar Allan Poe em seu conto
de transformar a vida em espetáculo, em entreteni- e, mais tarde, dissecado por Baudelaire.
mento, em deleite para os olhos. O cinema é filho da
cultura burguesa, com tendência realista, e nasce
como uma arte que incorpora em si mesma a questão
4 – No artigo de Baudelaire (originalmente incluído no volume L’art
romantique, coletânea de artigos sobre crítica de arte publicado postu-
3 – Baudelaire em “O pintor da vida moderna”, ao falar da obra de Constantin mamente em 1869), encontramos algumas referências acerca do conto
Guys, desenhista, aquarelista e gravador do séc. XIX, famoso por suas repre- de Edgar A. Poe. “Lembram-se de um quadro (e um quadro, na verdade!)
sentações dos dândis e cortesãos da época, acaba por captar e definir escrito pelo mais poderoso autor desta época e que se intitula L’Homme
o espírito de todo um período. Ao definir o belo como sendo “constituído des Foules (O Homem das Multidões)? Atrás das vidraças de um café, um
por um elemento eterno, invariável, cuja quantidade é excessivamente convalescente, contemplando com prazer a multidão, mistura-se mental-
difícil determinar, e de um elemento relativo, circunstancial, que será, se mente a todos os pensamentos que se agitam à sua volta. Resgatado há
quisermos, sucessiva ou combinadamente, a época, a moda, a moral, a pouco das sombras da morte, ele aspira com deleite todos os indícios
paixão”, Baudelaire exibe o caráter de transitoriedade que expressa o senti- e eflúvios da vida; como estava prestes a tudo esquecer, lembra-se e
mento da modernidade. O pintor de costumes, como o homem moderno, é quer ardentemente lembrar-se de tudo.” (op. cit. p. 17). O homem acaba
um “observador, um flâneur.” (BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. por confundir-se com a multidão à procura de um rosto anônimo que o
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996, p. 10). impressionou vivamente deixando-se fascinar pelo desconhecido.

182 CAP 9
* O CINEMA COMO ESPELHO

Há uma série de ensaios sobre como a sociedade O primeiro cinema é, sobretudo, documental. Para os
ocidental, pré-cinematográfica, vivia na Modernidade criadores do cinematógrafo, esta era uma máquina
(no sentido que Baudelaire dá ao termo) uma existência que não tinha futuro para além do uso científico
que preparava a chegada do cinema. Para esses autores, que dela pudesse vir a ser feito. Assim, visionar os
o cinematógrafo foi apenas a invenção que concretizou primeiros filmes realizados até aos primórdios do
uma ideia que já permeava o pensamento e o comporta- Século XX, é ter acesso a um repositório de imagens

mento do homem médio de meados do Século XIX. que refletiam as palavras de Baudelaire e de outros
autores, capazes de dar voz ao seu próprio tempo.

A melhor maneira de abordar esta questão é a leitura


O cinema foi rapidamente mostrando como transfor-
do conto de Edgar Allan Poe, O Homem da Multidão
mava a realidade que o atravessava em imagens muito
e do ensaio de Charles Baudelaire, O Pintor da Vida particulares. Foi aprendendo a caminhar com seus
Moderna. Além da leitura, em simultâneo, dos textos próprios meios e, para alguns, como André Malraux,
acima referidos, é essencial visionar os primeiros fil- o ato inaugural da Arte cinematográfica foi o corte
mes dos Irmãos Lumière e de outros tantos realizado- dentro da cena. Ou seja, o ato inaugural, que fez o
res que captaram imagens do tempo em que viviam cinema afirmar-se enquanto arte, foi o aparecimento
onde mostravam o bulício e o movimento constante da montagem. Para outros, talvez, a importância do
dos novos espaços urbanos. corte dentro da cena e da possibilidade de reorganizar

183 CAP 9
o mundo filmado, não seja tão importante e definidor. num centro convergente / divergente de opiniões,
Sabemos que as querelas em torno da montagem mas, ao mesmo tempo, numa das principais ques-
dividiram os teóricos realistas e formalistas, diríamos tões propostas pelo cinema.
até, os teóricos como Bazin, com uma forte tendência
fenomenológica5. A montagem constitui-se, portanto, Assim, compreender o paradoxo da criação da imagem
no cinema é fulcral para que se possa perceber como
um meio que nasce sem a pretensão de se tornar arte,
5 – Falar sobre André Bazin é sempre uma tarefa complexa. Se por um dentro de um século dominado por uma ânsia positi-
lado podemos classificar a sua teoria de realista em contraponto à teoria
formalista do cinema, não podemos negar que, como Amédée Ayfre, Bazin
vista, converte-se em arte e liberta-se do seu destino
conseguiu manter uma abordagem fenomenológica do cinema bastante de ser mero espelho da realidade que o circunda,
bem fundamentada. Se Ayfre defendia que “O cinema, longe de ser um frio
registro do mundo, é um registro daquela relação simbiótica entre intenção apesar de reconhecer que há toda uma cinematografia
e resistência, entre autor e material, mente e assunto.” (Cf. ANDREW, Dudley. cujo principal objetivo é o de ocultar a sua condição de
As Principais teorias do cinema. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1989, p. 248),
Bazin, em seu já antológico ensaio “Ontologia da Imagem fotográfica”, imagem e apresentar-se como um espelho, ou janela,
defende que “A fotografia se beneficia de uma transferência de realidade da
do mundo real. O cinema industrial, feito para o grande
coisa para a sua reprodução.” (BAZIN, André. Ontologia da imagem fotográ-
fica. In: ______. O cinema, São Paulo, Brasiliense, 1991, p. 22). Portanto, para público, conforme Noel Burch6, busca um modo de
ambos, o registro da imagem feita pela fotografia e/ou pelo cinema tem a
capacidade de transcender e revelar o mundo, pois ambos contêm traços
representação que quer ocultar a representação. Quer
do mundo em suas representações. O que Bazin afirma sobre a fotografia ser visto como algo que apresenta a vida mesma e não
pode ser estendido ao cinema, pois para ele, “o cinema vem a ser a conse-
cução no tempo da objetividade fotográfica.” (Op. cit., p. 24). Por isso o que algo que a representa. Usa o ecrã como uma janela e
Dudley Andrew diz sobre Ayfre em relação ao cinema neorrealista pode ser
aplicado a Bazin: “Ele (Ayfre) o opôs ao “verismo” e ao “realismo socialista”
nos quais o homem controla aquilo que a realidade significa.” (Op. cit., p.
248). No fundo, o que ambos pretendiam era defender a imagem do mundo
que se revela para a câmara da manipulação desta revelação processada 6 – Noel Burch em seu livro EL Tragaluz del Infinito (Madrid, Cátedra, 1995) fala
no realismo socialista ou do cinema verdade que ignorava “os desejos e sobre o nascimento do cinema e da profunda relação que este mantém com o
valores do homem (...) em favor de uma realidade bruta. O neorrealismo foi, gosto e o ideário da burguesia fin-de-siecle. Para este autor, o cinema industrial
para ele e para Bazin, um realismo humano que ilustrou com sua própria torna-se o porta voz da ideologia burguesa, convertendo-se no modo de repre-
técnica o incessante diálogo do homem com a realidade física.” (Ibidem). sentação oficial do mundo através das imagens em movimento.

184 CAP 9
convida os espectadores a espreitar o que se passa, a O cinema é composto de signos/sombras, já objetifi-
participar, de alguma maneira, desta outra vida que se cáveis por essência. Arlindo Machado8 tece conside-
instala ali. O início do cinema, antes do cinematógrafo rações sobre o pré-cinema e o voyeurismo, apresen-
dos Irmãos Lumière, está profundamente ligado à pulsão tando a permanência do modelo do quinetoscópio no
escopofílica. Afinal, o quinetoscópio de Edson incitava cinematógrafo. O filme de voyeurismo aparece como
as pessoas a verem imagens por um buraco, semelhante uma espécie de género em 1900, com As seen through
ao buraco de uma fechadura, e a gozar voyeuristicamen- a telescope, de Smith. Vários outros exemplos se
te imagens feitas à medida para este prazer solitário. seguirão, até que o cinema encontre a sua gramática,
e adquira um lastro cultural que a princípio não tinha.

Ao contrário do teatro que, enquanto arte do espetá-


culo, é arte pública e para o público, o cinema nasce Barthes disse, em relação ao teatro, que este é uma
como um ato solitário, um prazer não partilhado. O prática que supõe um “lugar calculado” de onde se
espectador do cinema começa como um voyeur e, observam as coisas, pois para haver representação é
mesmo quando as imagens saltam para fora do quine- preciso o olhar do sujeito. O cinema, que aparece já sob a
toscópio, a pulsão permanece. Ver cinema é espreitar égide da cultura burguesa, arrasta consigo a tendência
a vida alheia. E é isto que o cinema do Modo de para o realismo, presente em diversos aspetos da arte
Representação Institucional (M.R. I.)7 procura incentivar. do século XIX. Para se perceber melhor o princípio
enunciado por Barthes do “lugar calculado” e fazer
a transposição deste para o cinema, convém assistir
ao filme de Alfred Hitchcock, Janela Indiscreta, onde
7 – Noel Burch utiliza o conceito de Modo de Representação Institucional
(M.R.I.) em oposição ao conceito de Modo de Representação Primitivo
(M.R.P.). Burch defende a ideia de que o não é uma linguagem senão um
sistema organizado de representações e que, na sua gênese, não pressupôs
necessariamente a narração. 8 – MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & Pós-cinemas, Campinas, Papirus, 1997.

185 CAP 9
um fotógrafo que sofre um acidente se vê obrigado a são fragmentos do real. Ou assim o cinema nos quer
permanecer em casa, sem poder mover-se. Durante o fazer crer: não há representação, mas apresentação.
período de convalescença, ele descobre um hobby que
o distrai: observar os vizinhos através da objetiva da sua
* GRIFFITH, DICKENS E EISENSTEIN
câmara. Do prédio em frente, vê apenas aquilo que as
janelas revelam. O espaço “entre” está-lhe vedado. E é O cinema aprendeu, muito cedo, a mentir. E a chave
neste espaço fora do seu campo de visão que acontece, da construção desta ilusão da realidade está na
supostamente, um assassinato. Como um espectador montagem. A ideia de montagem, conforme Vicente
de cinema, a sua participação, a princípio, é passiva. Sánchez-Biosca, está presente em toda a arte do século
Apenas observa e tenta adivinhar o que está oculto pelo XX.9 Se pensarmos, por exemplo, na collage, presente
espaço off. O olho da sua câmara pode aproximar as no cubismo analítico, ou mesmo nalguns métodos de
cenas que se desenrolam do outro lado do pátio, mas construção do próprio texto surrealista, perceberemos
não consegue perfurar as paredes e ver o que está para que trabalhar a partir da fragmentos, recolocando-os
além do quadro da janela. Está limitado ao enquadra- numa nova relação de espaço e significações, marca
mento e preso à sua cadeira, o seu “lugar calculado”. profundamente a arte das vanguardas. Talvez a
atração que elas sentiram pelo cinema estivesse
Temos aqui exposto o paradoxo da imagem do profundamente ligada a uma possibilidade que é
cinema: de um lado ela dá-nos a sensação de que intrínseca a este tipo de arte. Mas talvez possamos
quase tocamos a realidade que nos circunda, mas, recuar um pouco mais, e encontrar os princípios da
do outro, somos limitados pelos enquadramentos e montagem cinematográfica nos romances do séc. XIX,
só temos permissão para ver o que se passa dentro principalmente na obra de Charles Dickens.
do espaço in. Tornamo-nos voyeurs, voluntária ou
involuntariamente. E como voyeurs, o que espreitamos 9 – Cf. SÁNCHEZ-BIOSCA, Vicente. El montaje cinematográfico. Barcelona:
Paidós, 1996, pp. 15-22.

186 CAP 9
Num ensaio intitulado “Dickens, Griffith e o filme de Eisenstein pergunta-se porque não outro escritor
hoje”10, Eisenstein tece comentários sobre o cinema de qualquer, já que o recurso da ação paralela não
Griffith e a importância deste na história do cinema, prin- estava presente só na obra de Dickens, mas de muitos
cipalmente na do cinema soviético de então. Os filmes romancistas do período. O que este autor possuía,
de Griffith, apesar de profundamente reacionários segundo Eisenstein, era a capacidade de criar um
enquanto discurso, foram revolucionários enquanto universo extraordinariamente plástico, onde as
forma. Para aqueles que, como Eisenstein, estavam personagens são visíveis, mais que legíveis, fazendo
interessados em compreender e criar uma verdadeira parte de uma tipologia que facilmente salta para
linguagem cinematográfica, o contacto com aquele o ecrã. Para Stefan Zweig, Dickens nunca traçava
cinema serviu-lhes de lição. Uma lição que logo foi visões vagas das personagens, dava aos leitores um
ultrapassada e, de certa maneira, rejeitada. A vanguarda retrato preciso e cheio de pequenos detalhes que
soviética não cabia num tipo de filme que será o modelo
básico do cinema clássico hollywoodiano.
11 – Op. cit., p. 258. O discurso de Eisenstein deixa bem claro que a admiração
que sentiam pelo cinema americano, sendo que o cinema expressionista
Para Eisenstein, a figura de Griffith destacava-se não lhes dizia grande coisa, era o que estes filmes traziam de possibilidades
do uso daquele novo e maravilhoso instrumento. Talvez por não possuir um
“porque sus obras fueron las primeras que hicieron del passado artístico tão presente e referencial como o dos europeus, o cinema,
cine algo más que un pasatiempo o entretenimiento.”11 na mão dos americanos, era aceito como tal, algo novo que precisava ser
descoberto e aperfeiçoado. Pudovkin chega mesmo a afirmar que: “Os ameri-
O próprio Griffith não se considerava um inventor12, canos foram os primeiros a descobrir a presença de possibilidades peculiares
ao cinema.” (PUDOVKIN, V. Os métodos do cinema. In: XAVIER, Ismail (org.). A
mas alguém que soube ler as obras de Dickens e
experiência do cinema, op. cit., p. 66).
perceber o potencial dramático das suas narrativas.
12 – Eisenstein, op. cit., p. 259, reproduz um texto publicado no The Times, de
Londres, em 26 de abril de 1922, onde o autor, A. B. Walkley comenta: “Según
él mismo admite, Griffith es más un precursor que un inventor. Esto significa
10 – EISENSTEIN, S. Teoria y tecnica cinematograficas. 4ª ed., Madrid: Ediciones que ha abierto nuevos caminos en el País del Cine, bajo la dirección de ideas
Rialp, 1989, pp. 249-308. que le han sido inspiradas por otros.”

187 CAP 9
tornavam as suas visões tangíveis: uma mancha num que as vanguardas artísticas, sobretudo o Formalismo
vestido, um gesto recorrente, as mãos húmidas e frias Russo, fizeram com a montagem. Para este autor, o
de Uriah Heep que causava, nos leitores, repugnância. cinema sustenta-se na possibilidade de revelar, como
A psicologia das personagens, conforme Zweig, é numa epifania, o mundo. Assim temos que duas
construída pelo visível, pela capacidade de observação visões antitéticas sobre a construção da linguagem
que Dickens possuía do mundo à sua volta. cinematográfica, uma a favor da montagem, outra a
favor da sua ocultação, acabam por chegar ao mesmo
ponto: o cinema deveria ser uma janela para e do
Griffith e o cinema americano retiram de Dickens um
mundo. A sua função não era, como no teatro, a de
conceito de montagem, não só no sentido técnico de representar, mas a de apresentar o mundo.
organização dos planos numa determinada ordem,
mas no sentido mais amplo de construção de uma
No célebre ensaio “Ontologia da imagem fotográfica”,
nova realidade a partir de fragmentos do real.
Bazin revela a sua posição em relação às imagens
fotográfica e cinematográfica. Neste ensaio, é possível

* A ONTOLOGIA DA IMAGEM CINEMATOGRÁFICA detectarmos as nuances do seu pensamento, que


parece em alguns momentos contradizer-se. Católico
Bazin, que em 1953, escreveu: “el montaje no puede de formação, mergulhado na fenomenologia e no exis-
utilizarse más que dentro de límites precisos, bajo tencialismo que povoavam o pensamento francês da
pena de atentar contra la ontología misma de la época, Bazin constrói uma interessante teoria sobre o
fábula cinematográfica.”13, rejeitava a intervenção cinema: se, por um lado, a imagem fotográfica, para
ele, possui um caráter ontológico, pois a realidade
acaba por colar-se à sua reprodução, por outro, ele
13 – BAZIN, André apud MONTIEL, Alejandro. Teorías del cine - un balance reconhece que o cinema, fotografia em movimento,
histórico. Barcelona, Montesinos, 1992, p. 62.

188 CAP 9
é uma linguagem. Assim, o cinema, ao mesmo tempo que possui para a construção da imagem, leva o seu
que revela o mundo, possui uma linguagem que o espectador a sair do lugar, a penetrar no ecrã, a saltar
constitui e o distancia do real. O cinema não é só da cadeira para dentro daquela realidade outra, criada
revelação, mas também construção, manipulação. pelo realizador. O que possibilita ao cinema ampliar,
Mas a manipulação existe para que se tenha uma ainda mais, a ilusão de realidade. Um filme como Otelo,
ilusão de continuidade espacial, muito próxima de Welles, que foi realizado ao longo de três anos, em
daquela, calcada na realidade14. lugares diversos, é visto pelo espectador como um
continuum espácio-temporal. Através da manipulação
das imagens, feita no processo de montagem do filme,
Apesar de o cinema ter absorvido o modelo da cena
o espectador vê, no ecrã, apenas uma cidade: Veneza.
italiana como modelo de exibição, o lugar do espec-
Este filme sintetiza todas as questões que foram aqui
tador aqui não é o mesmo do lugar do espectador
levantadas e, enquanto adaptação literária, aponta
desse teatro à italiana. Não é o mesmo porque o
ainda para as relações do cinema com o teatro e dos
cinema, através da manipulação do ponto de vista,
modos de aproximação de um em relação ao outro.
dos movimentos da câmara, do uso dos recursos

* O MODO DE REPRESENTAÇÃO INSTITUCIONAL


14 – “O sistema de Bazin baseia-se num postulado ideológico de base,
articulado em duas teses complementares, que seria possível formular da
seguinte maneira: O cinema nasce na Europa, mas é nos Estados Unidos
• na realidade, no mundo real, nenhum evento é dotado de um sentido que se vai converter, rapidamente, numa poderosa
totalmente determinado a priori (é o que Bazin designa pela ideia de uma indústria. Como já foi dito, o cinema arrasta consigo
“ambiguidade imanente ao real”);
marcas profundas da época que o viu nascer. Filho da
• a vocação “ontológica” do cinema é reproduzir o real respeitando ao
técnica e da arte, com tendência para o realismo, vai
máximo essa característica essencial: o cinema deve, portanto, produzir
representações dotadas da mesma “ambiguidade” – ou se esforçar para isso.” buscar à literatura do século XIX a sua mais poderosa
(J. Aumont et alii, op. cit., p. 72).

189 CAP 9
arma: a narrativa. Das vanguardas herda as ferra- Talvez seja este o grande discurso que subjaz o texto fíl-
mentas necessárias para aprender a contar histó- mico: mostrar que é capaz de triunfar sobre a morte pela
rias através das imagens. Este cinema canônico é, aparência, cumprindo assim a determinação de toda a ar-
habitualmente, dividido em fases. E cada uma delas te figurativa desde os bisontes das cavernas de Lascaux.
mantém uma relação específica com a literatura,
retirando desta ora a estrutura, ora os temas, mas
mantendo um diálogo permanente com o romance Em 1916, é publicado aquele que é considerado o
realista/naturalista do século XIX. primeiro livro de teoria do cinema: The photoplay –
a phsycological study, de Hugo Munsterberg. Nesta
obra, publicada postumamente, o psicólogo alemão
O cinema do M.R.I. constrói seu discurso num duplo
defendia que o cinema que realmente interes-
eixo: de um lado temos a sua destinação primeira de
sava era o narrativo. Numa altura em que a gramá-
ser um fiel retrato da realidade, e de outro lado, a
tica do cinema ensaiava seus primeiros passos,
construção de um discurso autônomo e significante,
Munsterberg vaticina que a verdadeira vocação do
que tanto encantou as vanguardas. Conforme Burch,
cinema era a de contar histórias. Assim sendo, ele
a ambição de Edison de associar seu fonógrafo a um
vai tentar perceber de que maneira este novo meio
aparelho capaz de gravar e reproduzir imagens, não
absorve a capacidade narrativa, presente sobretudo
demonstrava apenas o seu lado visionário de um hábil
na literatura e no teatro, utilizando imagens.
líder industrial, mas também representando, ainda, o
desejo de uma classe: “levar a cabo a «conquista da na-
tureza» triunfando sobre um ersatz da Vida Mesma15.” Musnterberg vai encontrar similitudes entre os dispo-
sitivos de representação utilizados pelo cinema e o
funcionamento da mente humana. Para ele, o cinema
15 – BURCH, Noël. El tragaluz del infinito. 3ª ed. Madrid: Cátedra, 1995, p. 22. não acontecia no ecrã, onde era projetado, mas na

190 CAP 9
mente do espectador, porque é a nossa mente quem, Esta liberdade de encadeamento das imagens é supe-
de facto, organiza o relato, que de outro modo seria rada pela necessidade de se fazer perceber pelos
apenas uma sucessão de sombras sem significado. espectadores. Quando a narrativa visual começa a
Da mesma maneira que a mente humana percebe o tornar-se mais complexa, o cinema vai buscar a ajuda
mundo que a circunda, percebe também o cinema. da palavra. Os intertítulos aparecem em 1903 quando
Tomemos como exemplo o mecanismo da atenção. os realizadores já dominavam melhor o mecanismo

Através do mecanismo da atenção, somos capazes de construção de imagens e começam a complexi-


ficar as histórias que eram contadas nos filmes. Neste
de hierarquizar aquilo que nos rodeia e construir o
momento, sentiram a necessidade de dar uma expli-
nosso percurso no real. Assim o cinema utiliza este
cação suplementar aos espectadores, ainda não habit-
mecanismo, de organizar e hierarquizar imagens,
uados à nova ordem de organização dos planos e à nova
manipulando a nossa atenção, obrigando-nos a ver
dinâmica que os primórdios da montagem imprimiam
como mais importante aquilo que está focado pela
aos filmes. A palavra aparece como uma muleta sem
câmara. As sombras, projetadas no ecrã, começam
a qual a narrativa cinematográfica ficaria deficiente.
a fazer sentido quando organizadas de determinada
maneira, obedecendo a um fluxo narrativo que torna
Conforme Jost e Gaudreault16, o cinema nunca foi,
compreensível, e palpável, o filme. Esta é a fase do
efetivamente, mudo. Para estes autores, o cinema era
chamado pré-cinema (ou cinema primitivo, como
surdo. O texto imagético, escudado pela palavra dos
preferem alguns). De qualquer forma é a fase que vai
intertítulos, falava. O espectador só não conseguia
da invenção do cinema até aos primeiros anos do
ouvir. De qualquer forma, o aparecimento da palavra
século XX, quando ainda não havia uma linguagem
formatada nem uma gramática normativa e a
criação das imagens obedecia apenas à lógica do
16 – GAUDREAULT, André; JOST, François, El relato cinematográfico – ciencia y
mundo real ou da fantasia do seu realizador. narratologia. Barcelona: Paidós, 1995.

191 CAP 9
associada à imagem cinematográfica marca, de acordo os autores supracitados, muda o status artístico quando
com Jost e Gaudreault, uma mudança no status deixa-se invadir pela palavra escrita, era necessário
artístico do cinema. “(...) el texto exigía una partic- educá-lo ainda mais e torná-lo apresentável à sociedade
ipación personal relativamente activa por parte de culta e letrada. Assim sendo, a SCAGL vai buscar à
un público que ya no podía ser analfabeto. El cine literatura o lastro cultural que faltava ao cinema.
empezó entonces a abandonar el mundo popular de
la feria en favor de un público que supiera leer.”17
A ideia básica da Film d’Art, que vai rapidamente
O aparecimento da palavra escrita, dentro do
espalhar-se pela Europa e América com o apareci-
espaço diegético, é uma das marcas da passagem
mento de companhias similares em outros países,
do pré-cinema para o cinema mudo. Ou melhor,
era a de adaptar textos literários consagrados e
conforme Jost e Gaudreault, para o cinema surdo.
utilizar os atores do teatro nos filmes. A estreia do
primeiro filme realizado neste âmbito dá-se em
* O FILM D’ART dezembro de 1908, com o filme l’Assassinat du Duc
de Guise, acompanhado pela leitura de poemas de
Outro advento que irá marcar o fim de uma fase e o Edmond Rostand e um número de ballet.
início de outra, na história do cinema, é o surgimento,
em França, da Sociedade Cinematográfica de Autores
Apesar de ter suscitado o aparecimento de congêneres
e Gentes de Letras (SCAGL). Esta sociedade (que nasce por todo o lado e de ter inspirado a criação da compa-
dentro da produtora cinematográfica Pathé) passa a nhia norte-americana Famous Players, as ideias da
ser conhecida como Film d’Art. Se o cinema, conforme Film d’Art redundam num enorme fracasso. Por um

17 – Op. Cit., p. 76.

192 CAP 9
lado, o cinema ainda não dominava suficientemente destes dois sistemas. E podemos perceber que é
a narrativa para conseguir adaptar ao ecrã a comple- através do relato que literatura e cinema podem
xidade dos textos literários e por outro, os atores de dialogar. No início, e durante algum tempo, perdurou
teatro não eram adequados ao cinema, pois a maior uma ideia de que o cinema, ao contrário da literatura,
parte deles vinha não do vaudeville, mas do teatro clás- não podia construir relatos. Porque a imagem cinema-
sico, recitativo e grandiloquente. De qualquer forma, tográfica, à partida profundamente indicial, não era
esta experiência revela o quanto o cinema precisava da capaz de descolar-se do real e de articular-se, como
literatura para encontrar histórias que valessem a pena a literatura, em um texto coerente onde há espaço
ser contadas. O que, para mim, responde à questão: para a ambiguidade e para a metáfora: o cinema era
por que são feitas adaptações? Há vários estudos que capaz de mostrar, dificilmente seria capaz de narrar.
tentam dar respostas a esta pergunta. E as respostas
vão desde as mais pragmáticas (nada melhor do que Vimos como o cinema aprendeu, desde cedo, a
levar ao ecrã algo que já foi testado antes em outro contar histórias através das imagens: ora utilizando
meio) até as mais teóricas (o processo de adaptação é recursos do romance do século XIX, ora aproveitando
uma marca de toda a arte do século XX). Pode-se ainda os ensinamentos das vanguardas. Quando, em 1927
pensar que a adaptação é um processo irrealizável, por é lançado The Jazz Singer, iniciava-se uma nova fase
não ser possível adaptar textos de diferentes sistemas da história do cinema. A fase que vai ajudar a tornar
semióticos, como é o caso da literatura e do cinema. o modelo do cinema clássico hollywoodiano no Modo
de Representação Institucional, no cânon. Esta fase,
Falar do processo de adaptação que o cinema faz dos iniciada em finais dos anos 30, atravessa o período
textos literários é tentar encontrar o ponto de contacto da II Grande Guerra e acaba em finais dos anos 40.

193 CAP 9
* O CINEMA CLÁSSICO

De que maneira o cinema, já em pleno domínio do Na sua obra L’Age du Roman Americain, Claude-
som, utiliza o romance? Quais as relações que o texto Edmonde Magny demonstra a influência do cinema na
fílmico mantém com o texto escrito? Há livros mais escrita de alguns romancistas americanos do período
adaptáveis que outros? Para responder a esta questão, entre guerras. É um bom ponto de passagem para
a leitura do livro de Dashiell Hammett, The Maltese discutir o final de uma fase, a do cinema clássico, e o
Falcon e o visionamento do filme homónimo de John início de outra, a do cinema moderno, que vai ocorrer,
Huston são fundamentais. O filme de Huston é um dos para alguns nos primeiros anos da década de 50.
marcos do nascimento do cinema noir e é também o
début deste realizador atrás das câmaras. O cinema clássico cristalizou um modo de repre-
sentação que dominou, durante algumas décadas,
o cinema mundial. Mas como toda a arte é dinâ-
Quando Huston, em 1941, decide adaptar esta obra de
mica e a nossa perceção do mundo se altera quando
Hammett, sofreu alguma pressão dos estúdios porque a
se altera o mundo que nos circunda, o Modo de
mesma já havia sido adaptada duas vezes e uma delas
Representação Institucional começa, aos poucos,
fora um fracasso de bilheteira (Bette Davis declarou, na
a sofrer fraturas e estas fraturas funcionam como
altura, que tinha sido o pior filme no qual ela tinha atuado).
catalisadores de um outro modo de representação,
Segundo o realizador ele não precisou de um guionista: presente nas novas cinematografias que aparecem
o livro era escrito de tal forma que estava pronto para ser um pouco por toda a Europa e resto do mundo.
levado ao ecrã. Mas sabemos que isto não ocorre com
todos os livros. Daí o preconceito que aparece, muitas O cinema clássico é confrontado com outro modelo
vezes, diante de adaptações que são consideradas de cinema – herdeiro da tradição das vanguardas,
obras menores perante o livro que as inspirou. este novo cinema vai tentar, aos poucos, desconstruir

194 CAP 9
discurso imposto por Hollywood: um discurso que sentido do sacro”18. O início da década de 60 é muito
caminha em direção ao “controle total da realidade rico em criação de mitopoeses dentro da linguagem
criada pelas imagens – tudo composto, cronometrado cinematográfica. Os espectadores passam a conviver
e previsto” (Xavier, 1984:31). Parte-se do discurso que com o meta cinema que discute a imagem, a criação
espera do espectador a assunção completa da ilusão da imagem e mostra para sua plateia: eu sou um filme.
especular, para um outro que pretende formar um
novo público, não cúmplice, mas parceiro, participante
Nessa altura, a teoria do cinema passa por um proces-
ativo da construção do texto que se desenrola no ecrã.
so de reavaliação e de criação de novos instrumentos
O cinema reconhece que não reproduz a realidade,
mas que é um discurso sobre a realidade, e que o melhor dotados para decifrar novos modos de repre-

mascaramento da existência deste discurso serve para sentação. Oscar Wilde disse numa carta que “somen-
reforçar o modelo institucional, que começa a abrir te as pessoas superficiais não julgam pelas aparên-
falência em meados dos anos 50. cias. O mistério do mundo está no visível, não no
invisível.” Só que nunca nos contentamos com o visível,
sempre procuramos interpretá-lo através de um
* O CINEMA MODERNO discurso racional que desvende as imagens e reorga-
nize a sua lógica dentro da lógica cartesiana das pala-
As novas cinematografias, como o neorrealismo
vras. Em 1964, Susan Sontag escreve um texto para ana
italiano e principalmente a Nouvelle vague, quebram
lisar esta síndrome interpretativa, que em vez de reve-
todos os códigos estabelecidos, tornando difícil a sua
lar a obra, acaba por destruí-la. “O estilo moderno de
compreensão. Criam-se idioletos, cuja chave para
a decifração não está pronta, precisa ser também
inventada. “Cada época tem os seus mitopoietas,
os seus centros de produção mitopoética, o próprio 18 – ECO, Umberto. Sobre os Espelhos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p. 137.

195 CAP 9
interpretação escava e, à medida que escava, destrói mythes et du pathétique, bref du «sentiment» …”21. E, no
(...)”19. Interpretar não é uma característica apenas meio, a procura de uma teoria que desmistifique a ima-
da modernidade. Sontag deteta o aparecimento da gem e a torne palpável e de fácil assimilação, própria para
necessidade de se interpretar (textos sagrados, obras o consumo imediato, como é o caso da imagem publici-
de arte) na antiguidade clássica mais recente, “quando o tária. O que não invalida que o mesmo esteja presente
poder e a credibilidade do mito haviam sido quebrados em toda e qualquer imagem cinematográfica, também
pela visão “realista” do mundo, introduzida pelo discurso e também construída de maneira teleológica
conhecimento científico”20. Os textos antigos preci- prevendo uma futura compreensão e apreensão daqui-
savam ser lidos à luz dos novos conhecimentos. As lo que diz e da sua aparência que encanta e seduz.
aparências se converteram em alegorias e em busca de
um sentido moral, os deuses tiveram seus atos inter-
É importante perceber que a necessidade de
pretados como lições para a humanidade.
desvendar completamente a imagem, de encontrar
uma interpretação “iluminadora” 22 é típica da
A tentativa de apreensão do discurso imagético sempre modernidade. O que não pode ser interpretado,
foi problemática. De um lado temos a palavra, “ l’instru- não pode ser dominado, e o homem-intelecto tem
ment de l’intellect, de la raison discursive et abstraite”, e que apreender o mundo de uma maneira racional.
do outro a imagem, “le véhicule naturel des affects, des

22 – Susan Sontag, contra a crítica típica da modernidade, que quer “iluminar”


19 – SONTAG, Susan. Contra a Interpretação. Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 15. o texto e acaba, muitas vezes, por destruí-lo, propõe uma “erótica da arte”
(Op. cit., p. 23). Esta ideia do prazer ligado a fruição da obra, é um dos pontos
centrais do pensamento de Hans Robert Jauss, que faz sua apologia da expe-
20 – Op. Cit., p. 14. riência estética e propõe uma nova relação entre leitor e texto. Utilizando os
conceitos fundamentais da tradição estética (poiesis, aistheis e katharsis), ele
21 – BARTHES, Roland. Ouvres Completes, Tome I (1942-1965). Paris: Seuil, 1993, quer instituir um “novo iluminismo”, que reconhece o valor catártico da obra e
p. 952. não nega, ao leitor, o prazer da fruição (Op. cit., passim).

196 CAP 9
Domado o inefável, destrói-se o mito e tudo fica no perdendo seus referenciais, seu contacto pleno com a
terreno do compreensível. A exigência da interpretação, realidade, acaba por se perder dentro de seus próprios
na modernidade, decorre também da necessidade de labirintos. É sobre este clima de angústia e de sensação
se compreender o novo, que surgiu com as vanguardas, de perda que o cinema moderno e as novas cinemato-
e que não é facilmente digerível. grafias de outras partes do mundo irão se debruçar.

* OS LABIRINTOS NARRATIVOS Para ilustrar esse novo modo de representação que o


cinema agora promulga, o visionamento de L’année
A síndrome da interpretação, a tentativa de domar o dernière à Marienbad (1961), de Alain Resnais é
inefável da arte, faz parte da construção do discurso fundamental. Baseado na obra de Alain Robbe-Grillet,
sobre o cinema. No entanto o cinema passou por uma este filme leva ao extremo o experimentalismo narra-
transformação, iniciada ainda com o neorrealismo tivo. As imagens revelam muito pouco e as palavras,
no início dos anos 50, o cinema verdade, a nouvelle neste filme, não ajudam o espectador a compreender
vague e o cinema moderno norte-americano. Omar melhor. Pelo contrário, o texto escrito torna ainda mais
Calabrese acredita que “onde quer que ressurja o denso o universo imagético. A era da Nouvelle Vague
espírito da perda de si, da argúcia, da agudeza, aí está associada à era do Nouveau Roman. Para estes
reencontramos pontualmente labirintos”23. Os anos realizadores, a relação que eles deveriam manter com
50 deixaram a humanidade diante de uma encruzi- a literatura só era possível se esta relação ajudasse
lhada: cada dia mais presa ao “tédio radical”, cada vez a realçar a literatura do seu próprio tempo. Para fugir
mais dominada pela angústia do vazio absoluto, foi do M.R.I. era preciso fugir da narrativa do romance do
século XIX. A Nouvelle Vague foi um movimento criado
por amadores. E aqui podemos usar o termo nos dois
23 – CALABRESE, Omar. A Idade Neobarroca. São Paulo: Martins Fontes, sentidos: de dilettante e de apaixonados pelo cinema.
1987, p. 146.

197 CAP 9
Neste caso temos um cinema que ultrapassa as recriaram a capacidade de choque que este meio sem-
limitações formais e não procura ordenar o caos. Os pre possuiu. Mas foram experimentos que não chega-
teóricos da percepção afirmavam que percebemos ram a todos. Tal como a literatura e a arte modernas, o
o mundo de uma maneira ordenada: traduzimos cinema mais experimental ficou circunscrito ao espaço
o caos para que possamos perceber melhor o que dos conhecedores. As artes plásticas produzidas pelas
nos rodeia. Os realizadores da Nouvelle Vague vanguardas históricas hoje já são peças de museu; para
queriam mostrar que nem tudo faz sentido e que o melhor e para o pior, fazendo parte de um repertório
os caminhos são múltiplos. Ferindo as normas que que, em maior ou menor grau, é pertença de todos. O
definem o relato como algo que tem princípio e fim,
cinema mais experimental, entretanto, continuou restri
os seus filmes praticavam a errância narrativa – não
to a um circuito que podemos chamar de acadêmico.
davam respostas, estavam à procura; não indicavam
caminhos, perdiam-se nos desvios. A questão é que
rapidamente os desvios tornaram-se a norma. * O CINEMA NA ERA DAS IMAGENS IMATERIAIS

A clareza é uma das regras básicas para a sedução Godard, um dos principais nomes da Nouvelle Vague,
no cinema, o que fere as regras da própria sedução, foi dos pioneiros a trabalhar no universo das imagens
cheia de desvios, sombras e não-ditos. É necessário eletrônicas. Quando, há vários anos, foi entrevistado
que se compreenda o papel que os artistas podem ter por Wenders em Chambre 666, ele dizia que o futuro já
no processo de apreensão/criação de imagens. Não tinha chegado, a realidade do vídeo era incontornável
há imagens inocentes e muito menos há inocência e era preciso trabalhar com ela. Em relação ao seu
no discurso por elas construído. Durante a sua já não filme Passion, Godard afirmava que o argumento era
tão curta vida, vários realizadores, experimentaram, completamente “visível”. Uma fita de vídeo, quadros…
ousaram, desobedeceram as regras fixas do cinema e imagens que depois dariam origem ao filme. O que

198 CAP 9
interessava aqui era a possibilidade de fazer algo cedo incorporada ao cinema, e tão cedo aceita como
novo com um novo meio técnico que dava suporte parte natural do processo, é também um elemento
ao cinema, fazendo com que o mesmo ultrapassas- constitutivo que, ao ser usado de maneira disjuntiva
se a sua mera condição de suporte. e significante, acrescenta novos significados ao filme.

O grande problema das imagens é que elas são, Proust disse um dia que só os sonhadores medíocres
aparentemente, fáceis. Mas é uma falsa aparência, não revisitam os lugares sonhados por saberem-no
porque como já dissemos, elas escondem antes de sonho. O cinema, que estava destinado a ser o lugar
mais um discurso tão bem construído que nem anos da revelação do inconsciente, foi sendo formatado, ao
de vanguardas históricas, transvanguardas, neo- longo do tempo e, apesar dos discursos dissonantes
vanguardas ou não-vanguardas, conseguiu destruir. O que o atravessaram em alguns momentos, ele
discurso da ordem sobrevive, mas pode, e em muitos acabou por se converter num discurso pouco criativo
casos, deve ser desconstruído. E para desconstruí-lo é e previsível. Por isso, muitos dos sobreviventes das
preciso um longo trabalho de investigação, como por vanguardas, diante do cinema atual, concluíram que
exemplo, o de Godard e Antonioni. Para o italiano que os medíocres venceram a batalha. Não há realmente
realizou seu primeiro filme com telecâmaras ainda em sonho no cinema. O que encontramos são imagens
1980, O Mistério de Oberwald, o sistema eletrônico, à domesticadas que refletem uma outra fase da
partida, parece uma brincadeira. Era como estar diante história do cinema – o nascimento da linguagem
de uma consola a jogar com todas as possibilidades cinematográfica. O momento em que ele, já cansado
de transmutações da imagem apenas sonhadas pelos de experimentar, decide agarrar o público e cimentar
realizadores mais inventivos. E Antonioni decide gramáticas, normas, sintaxes e semânticas que o
usar estas possibilidades para mostrar que a cor, tão acompanham até a era do cinema digital.

199 CAP 9
E grande parte destas normas deriva da literatura. das marcas deste modo de contar era uma certa linea-
Não de uma literatura de invenção, mas daquela ridade obtida pelo entrelaçamento meticuloso das
que foi feita para as massas, daquela que, indepen- subtramas. A linearidade das narrativas dá uma falsa
dente de sua qualidade, tinha o público em vista no sensação de controlo: o homem de ciência, que quer
momento mesmo da sua escritura: a narrativa típica competir com o criador, torna-se demiurgo a partir do
do século XIX, que tentava espelhar, ou criar a ilusão instante que controla o fluxo de uma história que escor-

de espelho, onde as pessoas podiam identificar-se e rega inexorável para o fim. Uma metáfora do curso da
vida e da morte que espreita. Mas um curso desviado
desgarrar-se, por um momento, da Realidade, nem
de seu caminho natural e aprisionado em uma fórmula
sempre agradável. O novo meio era perfeito, arte dos
controlada. Sei quando acaba. E sei como acaba.
novos tempos, arte de e para as massas, incultas e
analfabetas em sua grande maioria.
Com o advento das imagens eletrônicas e, de seguida,
das imagens digitais, o cinema poderia se transformar
* A SEDUÇÃO DO ROMANCE DO SÉCULO XIX numa poética de passagens. Hoje, mais do que nunca, ao
utilizar suportes numéricos de armazenamento, susce-
Como já foi dito, em relação à Dickens, diversos
tíveis de toda sorte de manipulação, o cinema vê-se
escritores do século XIX criaram verdadeiras máquinas diante do desafio de ultrapassar a fase da técnica pela
narrativas: estruturas que se repetiam livro a livro, técnica e, efetivamente, criar algo diferente, isto é, o que
mudando apenas o enredo e as personagens. A história no início do séc. XX fora proposto pelas vanguardas, criar
era diferente, mas o modo de contar era sempre o uma narrativa capaz de fazer explodir a lógica conven-
mesmo (com maiores ou menores variações). Uma cional e linear que as regras da narrativa impunham.

200 CAP 9
* ENTRE A PERFORMANCE E A INSUBMISSÃO

De que maneira, para além das adaptações, o cinema procurava a performance, não a insubmissão. É
contemporâneo, se relaciona com a literatura? De que raro encontrarmos a autêntica criação de um novo
maneira o cinema contemporâneo absorveu, ou não, mundo de imagens regido por outra lógica, que não
as lições aprendidas da literatura do século XX? é de todo nova, mas que foi suplantada pela rigidez
canônica na qual as artes começam a ser aprisionadas

Para começar a responder a estas questões, é preciso a partir do Renascimento, no que diz respeito às

refletir sobre a questão da técnica que atravessa imagens, e a partir do Séc. XIX, pela cristalização de

o texto fílmico. Questão que, como vimos, sempre certos modelos narrativos que respondiam ao gosto

esteve presente na história do cinema. Antes de burguês da identificação e da psicologia de folhetim.

tudo pelo óbvio: cinema é tecnologia. Na indefi-


nição entre arte ou tecnologia o cinema ficou em
Para fugir deste determinismo tecnocrático, reali-
muitos momentos a meio, sem conseguir satisfazer
zadores como Greenaway utilizam a imagem como
plenamente os critérios da arte e assumir seu lugar
parte de um processo de investigação e de experimen-
no pódio – como a sétima, e sem conseguir apro-
tação procurando sempre extrair do suporte digital
veitar ao máximo a sua condição de máquina.
tudo aquilo que ele pode proporcionar. Os filmes de
Greenaway são inventários das suas obsessões: a
A condição de máquina do cinema foi usada, muitas ordem (seja ela numérica ou alfabética); a pintura; a
vezes, de uma maneira que contrariava completa- dança; o teatro; a música (como elemento constitutivo
mente o desejo das vanguardas: o cinema encon- e não apenas acessório); a presença de elementos do
trava-se subordinado a um saber tecnocrático que chamado cinema primitivo (como a câmara fixa, os

201 CAP 9
tableaux vivant), enfim, a aceitação plena do cinema Quando os artistas como Nam June Paik resolvem
como sétima arte que devora todas as outras, mas que desmontar a imagem, refazê-la, recriá-la, ainda nos
as devora como um antropófago, para delas retirar a sua anos 60, estão no fundo a propor que a humanidade,
essência e a sua força, devolvendo-as depois modifi- finalmente, se torne demiurga: a imagem da cinta
cadas, reagrupadas e sem a sua significação original. magnética não é palpável. A imagem torna-se, desde
sua génese, um signo. Aquilo que a literatura moderna
propõe, como os labirintos de Borges, as cidades
Finalmente aquilo que o poeta e cineasta Jean
imaginárias e as narrativas entrelaçadas e sem fim de
Cocteau afirmou sobre o cinema pode agora se efeti-
Calvino ou as desmontagens temporais e espaciais
var pois, para ele, os filmes só seriam bons quando
de Robbe-Grillet e Saer tornam-se possíveis, podem
fossem acessíveis como uma caneta e um papel. E
ser transportados de modo muito mais conseguido
neste momento podem sê-lo. As imagens digitais -
para o mundo das imagens em movimento. Já se
números convertidos em figuras, maleáveis, virtuais e
tentara o mesmo com a película, mas a materiali-
nada sólidas, pertencentes ao reino das anamorfoses,
dade do meio não permitia grandes desconstruções.
liquefeitas e cambiantes como o próprio pensamento,
deveriam realizar, de maneira plena, o sonho das
vanguardas. A pluralidade dos pontos de vista, o desafio Peter Greenaway costuma queixar-se daquilo que ele
da imagem-conceito, a possibilidade de o cinema chama “cinema-ilustração”. É dos poucos realizadores
realizar metáforas, como se de palavras as imagens que podem fazê-lo com propriedade, pois seus filmes
fossem constituídas, torna-se praticável. Mas, ainda são a demonstração das suas inquietações formais.
hoje, para alguns, o cinema é uma arte da narrativa Ele compreendeu que para além da pirotecnia que
mais que da imagem. A lógica da imagem não é lógica, a tecnologia permite e que, infelizmente, continua
não se enquadra em teorias que privilegiam a escrita. a ser a maneira como frequentemente é utilizada,

202 CAP 9
pode-se voltar ao pré-cinema. Esquecer regras fixas AUMONT, Jacques et al. Estética del Cine. 2ª ed.
e fórmulas e experimentar. O cinema pode agora Barcelona: Paidós, 1996.
libertar-se daquele que o ajudou a ser o que ele é hoje,
o romance do Séc. XIX, e encontrar-se finalmente AUMONT, Jacques. A imagem. 2ª ed. Campinas:
com a literatura que ajudou a criar. Papirus, 1995.

AUMONT, Jacques. El Ojo Interminable. Cine y


* REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Pintura. Barcelona: Paidós, 1997.

AYALA, Francisco. El escritor y el cine. Madrid:


ANDREW, Dudley. As Principais teorias do cinema.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989.
Catedra, 1996.

ARNHEIM, Rudolph. A Arte do Cinema. Lisboa:


BARTHES, Roland. Mitologias. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Edições 70, 1989.
Difel, 1978.

ARRANZ, Norberto Mínguez. La novela y el cine


BARTHES, Roland. Œuvres complètes, Tome I (1942-
Valencia: Ed. De la Mirada, 1998.
1965). Paris: Éditions du Seuil, 1993.
AUDET, René et al. Jeux et enjeux de la Narrativité
dans les Pratiques Contemporaines (Arts Visuels, BARTHES, Roland. Rhétorique de l’image.
Cinéma, Litterature). Paris: Ed. Dis Voir, 2006. Communications, Paris, 1964, 4, pp. 40-51.

AUMONT, Jacques et al. A estética do filme. BARTHES, R. et al. Psicanálise e Cinema. Lisboa:
Campinas: Papirus, 1995. Relógio d’Água, 1984.

203 CAP 9
BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. Rio de Literatura Comparada. Lisboa: Fundação Calouste
Janeiro: Paz e Terra, 1996. Gulbenkian, 2004.

BAZIN, André. O cinema da crueldade. São Paulo: BRUNETA, Gian Pietro. Nacimiento del Relato
Martins Fontes, 1989. Cinematográfico. Madri: Cátedra, 1993.

BAZIN, André. O cinema. São Paulo: Brasiliense, 1991. BUESCU, Helena Carvalhão. Grande Angular -
Comparatismo e Prácticas de Comparação. Lisboa:
BENJAMIN, Walter, A obra de arte na era da sua Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
reprodutibilidade técnica. In: Sobre arte, técnica,
linguagem e política. Lisboa: Relógio D’Água, 1992.
BUÑUEL, Luis. Cinema: instrumento de poesia.
pp. 71-1113.
In:XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema. Rio
de Janeiro: Graal, 1983. pp. 333-337.
BETTON, Gérard. Estética do cinema. São Paulo:
Martins Fontes, 1987.
BURCH, Noël. El tragaluz del infinito. 3ª ed. Madrid:
BORDWELL, D. Narration in the Fiction Film. Londres: Cátedra, 1995.
Routledge, 1985.
BURCH, Noël. Praxis del Cine. 4 ed. Madrid:
BRUNEL, Pierre; CHEVREL, Yves (org.). Compêndio de Fundamentos, 1983.

204 CAP 9
CALABRESE, Omar. A Idade Neobarroca. São Paulo: DESNOS, Robert. Cinéma d’avant-garde. Documents,
Martins Fontes, 1987. nº 7, dezembro, 1929, pp. 385-7.

CAMERINO, Vicenzo (org.). Cinema e Letteratura. ECO, Umberto. Sobre os Espelhos. Rio de Janeiro:
Barbieri: Manduria, 2002. Nova Fronteira, 1989.

CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do EISENSTEIN, Sergei. Montagem de atrações. In:


cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. XAVIER, Ismail (org.) A experiência do cinema. ,Rio de
Janeiro, Graal, 1983, pp. 187- 198.
CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa R. O cinema e a
Invenção da Vida Moderna. São Paulo: Cosac & Naify, EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Rio de Janeiro:
2001. Jorge Zahar, 1990.

CHATMAN, Seymour. Historia y Discurso. La Estrutura


EISENSTEIN, Sergei. Teoria y tecnica cine-
Narrativa en La Novela y en el Cine. Madrid: Taurus,
matograficas. 4ª ed. Madrid: Ediciones Rialp, 1989.
1990.

FUMAGALLI, Armando. I Vestiti Nouvi del Narratore.


CHION, Michel. O Roteiro de Cinema. São Paulo:
Milano: Editrice Il Castoro, 2004.
Martins Fontes, 1989.

GAUDREAULT, André; JOST, François. El Relato


COSTA, Antonio. Compreender o cinema. Rio de
Cinematográfico. Barcelona: Paidós, 1995.
Janeiro: Globo, 1987.

205 CAP 9
GIMFERRE, Pere. Cine y Literatura. Barcelona: LOTMAN, Yuri M. Estética y semiótica del cine.
Seix Barral, 1999. Barcelona: Gustavo Gili, 1979.

GRILO, João Mário. A Ordem no Cinema. Lisboa: MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & pós-cinemas.
Relógio D’Água, 1997. Campinas: Papirus, 1997.

HUESO, Ángel Luis. El cine y el siglo. Barcelona: MACHADO, Álvaro M.; PAGEAUX, Daniel-Henri. Da
Ariel, 1998. Literatura Comparada à Teoria da Literatura. Lisboa,
Presença: 2001.
JAIME, Antoine. Literatura y cine en España (1975-
1995). Madrid: Cátedra, 2000 MAGNY, Claude-Edmonde. L’Age du Roman Américain.
Paris: Seuil, 1948.
JURGENSON, Albert; BRUNET, Sophie. La práctica
del montaje. Barcelona: Editorial Gedisa, 1992. MAGNY, Joël. Prémiers écrits, avant-garde français et
surréalisme. CinémAction, nº 20, ago/82, pp. 12-20.
KAISER, Gerhard R. Introdução à Literatura
Comparada. Lisboa: Fundação Calouste MARIE, Michel. La Nouvelle Vague. Une École
Gulbenkian, 1989. Artistique. Paris, Nathan, 1998.

LES, Juan A. Hernández. Cinema e Literatura. A METZ, Christian. Le Cinéma: langue ou langage?
Metáfora Visual. Porto: Campo das Letras, 2003. Communications 4, 1964

206 CAP 9
METZ, Christian. A Significação no Cinema. SÁNCHEZ-BIOSCA, Vicente. El montaje cine-
São Paulo: Perspectiva, 1972. matográfico. Barcelona: Paidós, 1996.

NORIEGA, José Luis Sánchez. De la Literatura al Cine. SÁNCHEZ-BIOSCA, Vicente. Cine y Vanguardias
Barcelona: Paidós, 2000. Artísticas. Conflitos, Encuentros, Fronteras.
Barcelona: Paidós, 2004.
PEÑA-ARDID, Carmen. Literatura y Cine. Madri:
Cátedra, 1999. SEGER, Linda. El arte de la adaptacion. Madrid: Ed.
Rialp, 1993.
RENTSCHLER, Eric (Ed.). German Film and Literature.
Methuen, New York and London, 1986. SKLOVSKII Viktor. Cine y Lenguaje. Barcelona:
Anagrama, 1971.
ROMAGUERA I RAMIO, Joaquim; THEVENET, Homero
Alsina. Textos y manifiestos del cine. Madrid: SONTAG, Susan. Contra a Interpretação. Porto Alegre:
Cátedra, 1993. L&PM, 1987.

ROPAS-WUILLEUMIER, M. C. De la littérature au TUDOR, Andrew. Teorias do Cinema. Lisboa:


cinéma. Paris: Aramand Colin, 1970. Ed. 70, 1985.

207 CAP 9
VILLAIN, Dominique. Le montage au cinéma. Paris: BOSCOV, Isabela. Jura que você nunca viu… “Janela
Editions Cahiers du cinéma, 1991. Indiscreta”? IN: VEJA , 2019: https://veja.abril.com.
br/blog/isabela-boscov/nunca-viu-janela-indiscreta/
XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opaci-
dade e a transparência. 2ª ed. Rio de Janeiro:
BRITISH FILM INSTITUTE: https://
Paz e Terra, 1984.
player.bfi.org.uk/free/film/
watch-as-seen-through-a-telescope-1900-online
XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema.
Rio de Janeiro: Graal, 1983.
IMDB: https://www.imdb.com/title/tt0000304/

XAVIER, Ismail. O Cinema no Século. Rio de Janeiro:


Imago, 1996. CAMPOS, Fernando. Crítica | Lírio Partido (1919). In:
PLANO CRÍTICO, 2019: https://www.planocritico.
com/critica-lirio-partido-1919/
* REFERÊNCIAS (SEPARATRIZ )

*Composição visual gerada a partir de cenas dos filmes O GLOBO. Filme ‘Janela indiscreta’, de 1954: a genial
‘Lírio Partido’ (1919), ‘As Seen through a Telescope’ (1900), viagem voyeur do inglês Alfred Hitchcock. 2013:
‘Os Óculos de Leitura da Vovó’ (1900), ‘Janela Indiscreta’ https://acervo.oglobo.globo.com/fatos-historicos/
(1954), de D.W. Griffith, George Albert Smith e Alfred filme-janela-indiscreta-de-1954-genial-viagem-vo-
Hitchcock, respectivamente. Imagens disponíveis em: yeur-do-ingles-alfred-hitchcock-10393666

208 CAP 9

Você também pode gostar