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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIENCIAS HUMANAS

HISTÓRIA DA AMÉRICA – PROFª ÉRICA LÔPO DE ARAÚJO

CARLOS DE MIRANDA VITOI

Imaginário coletivo a respeito da América Latina a partir da


obra japonesa “One Piece”

RECIFE, JULHO DE 2021


Introdução

Como bem se sabe, as civilizações nativo-americanas são um ponto histórico


causador de grande curiosidade no imaginário coletivo ocidental. Representações,
majoritariamente estereotipadas, de tais civilizações (centralizadas nos autóctones
maias, astecas e incas) são recorrentes em animações, filmes, videogames e demais
mídias: guerreiros indígenas sanguinários, grandes construções, lendárias cidades
desaparecidas e tesouros, sacrifício humano, conquistadores e exploradores heroicos.
Tais imagens foram se assentando no imaginário ocidental desde os primeiros contatos
dos “conquistadores” europeus com esses povos nos séculos XV e XVI e passaram a
alcançar também o imaginário oriental. E é este imaginário que se pretende analisar
aqui.
Buscando entender de que forma o imaginário ocidental acerca desses povos
autóctones e dos processos de colonização é absorvido e representado no Oriente (neste
caso, pelo Japão) e, para além disso, em que medida o Oriente produz seu próprio
imaginário sobre o tema, foi escolhida a análise a partir de uma das maiores obras
japonesas do contemporâneo, o mangá mundialmente difundido “One Piece”. Publicado
em forma de capítulos semanais e volumes trimestrais desde 1997, se tornou
recentemente o mangá mais vendido de todos os tempos, com mais de 490 milhões de
cópias em circulação ao redor do mundo.1
Eiichiro Oda, autor de One Piece, frequentemente se inspira em personagens e
acontecimentos históricos para dar base à sua obra de ficção. A premissa central do
mangá gira em torno da pirataria, de pessoas que se lançam ao mar em navios,
explorando ilhas em busca de um lendário tesouro homônimo à obra, o One Piece. A
história principal se dá num momento conhecido como “A Grande Era dos Piratas”, no
século XVI do mundo fictício. Claramente, o autor inspirou-se no período das Grandes
Navegações, nos séculos XV a XVII. Durante toda a obra, diversas outras referências
são feitas aos mais distintos povos, organizações, momentos e personalidades históricas.
Os povos mesoamericanos, foco deste trabalho, inspiraram a criação dos
Shandia, uma etnia que cumpre papel central na narrativa de um dos arcos do mangá,
Skypiea2. Nativos da ilha Jaya, carregam uma caracterização imagética que remete

1
Notícia disponível em: https://mantan-web.jp/article/20210718dog00m200019000c.html Acesso em:
20 jul.,2021
2
A narrativa de One Piece é dividida em arcos, onde o grupo protagonista se vê de frente a um objetivo
específico a ser cumprido, geralmente com um grande vilão principal.
claramente a povos ameríndios. Seu território era frequentemente alvo de tentativas de
invasão por piratas e exploradores, porém os guerreiros shandians sempre os
expulsavam. Um explorador em específico, Noland, criou laços de amizade com o povo
após ajudar a trata-los de uma doença epidêmica. Ao voltar à sua ilha de origem, Lvneel,
Noland relatou suas viagens ao rei, inclusive sobre a cidade antiga de Shandora,
protegida pelos shandians e toda banhada em ouro. Porém, quando retornou à Jaya
acompanhado de todo o exército real, parte da ilha havia desaparecido. Shandora foi
arremessada aos céus pelo fenômeno marítimo “Knock Up Stream” e foi anexada a
Skypiea, uma ilha do céu. Noland, taxado como mentiroso, foi executado pelo governo
de seu reino.
De certo, podemos identificar neste arco narrativo diversos reflexos do
imaginário coletivo construído pelo Ocidente acerca dos povos mesoamericanos e
também sobre os processos coloniais. Porém, tratando-se de uma obra japonesa, cabe
ponderar se tais representações apenas reproduzem a clássica visão colonialista
ocidental ou se há a criação de um imaginário próprio ao Oriente.
Portanto, tendo como objetivo entender a disseminação, reprodução e eventual
ressignificação desse imaginário pelo Oriente, serão analisadas representações
imagéticas no mangá (arquitetura, caracterizações), bem como referências feitas a
divindades e rituais religiosos, passando também pela representação da figura do
explorador e do conquistador. Tal análise compreenderá os volumes 25 a 32 (capítulos
227 a 305) do mangá One Piece. A análise também será embasada e respaldada em
pesquisa bibliográfica e historiográfica.

Referências imagéticas

Shandora, a cidade dourada

Shandora, ou literalmente “o olho direito da caveira”, é apresentada como uma


cidade antiga da ilha de Jaya, construída pelos Shandorians e que teria atingido seu
auge por volta do século V. Toda a cidade, originalmente, foi coberta em ouro,
esbanjando a prosperidade de sua civilização. Durante o século VII, período conhecido
como “Século Perdido”, a cidade acabou sendo levada a ruína em decorrência do seu
envolvimento numa grande guerra mundial. Durante os séculos seguintes, os Shandia,
descendentes dos Shandorians, passaram a proteger as ruínas da cidade, agora coberta
de vegetação. Em 1126 a cidade é lançada à ilha do céu Skypiea, causando uma
destruição ainda maior das ruínas. O pedaço de terra, algo que naturalmente não se faz
presente no céu, desperta o interesse dos nativos de Skypiea, que acabam expulsando os
Shandia e fazendo de Shandora um local sagrado. Passados 400 anos, por volta de 1522
o governante de Skypiea, “Deus” Enel, descobre as ruínas principais da cidade e passa a
explorar o ouro, exaurindo-o quase que completamente.

Figura 1: Shandora em 1122. Colorido digitalmente. One Piece, Vol. 31, Cap. 290.

A inspiração aqui vem claramente das lendas amplamente difundidas sobre


grandes reservas de ouro e cidades douradas que estariam escondidas nas vastas
florestas do continente americano, apenas aguardando para serem descobertas e
exploradas, ou melhor, saqueadas pelos colonizadores. Dentre as lendas, a mais famosa
e que provavelmente foi fonte direta de inspiração ao autor, é a do El Dorado.
A origem da lenda remonta a um ritual religioso dos muíscas, povo indígena da
região dos andes colombianos, tão complexos quanto as civilizações maia, asteca e inca.
Durante o ritual, o zipa3 era coberto em ouro e, encontrando-se dentro do Lago
Guatavita, atirava ouro e outras preciosidades à água, como uma oferenda a sua
divindade. Essa narrativa foi registrada por Juan Rodríguez Freyle em sua obra “El
Carnero”4, entre 1636 e 1638. A história do ritual passou a se espalhar entre os
espanhóis, atraindo-os não só para o Guatavita como para outros lagos, rios, florestas e
cidades. Nomes como Gonzalo Pizarro, Francisco de Orellana, Juan de Castellanos,

3
Governante da parte sul da Confederação Muísca.
4
FREYLE, J. R. El Carnero. VALENZUELA, D. A. (ed.). 10. ed. Caracas: Fundacion Biblioteca Ayacuch, 1979.
592 p. ISBN 9788466000253. E-book.
Gonzalo de Quesada e Diego de Ordaz5 são alguns dos muitos que partiram a procura de
um “El Dorado”. Com o aumento da busca por grandes quantias de ouro durante o
século XVI, a lenda foi se multiplicando. De um rei dourado, passou a se referir a uma
cidade dourada perdida dentro das florestas. Outras lendas sobre cidades de ouro
também surgiam no mesmo contexto: as Sete Cidades de Cibola; Paititi; Cidade dos
Césares; Lago Parime; Antilia; e Quivira.
De fato, uma cidade feita de ouro nunca foi encontrada, porém as explorações
tiveram seus frutos para os invasores espanhóis, que chegavam a encontrar os seus
desejados tesouros: ouro, prata e a dominação de territórios continente a dentro.
Inclusive, a Francisco de Orellana, citado acima, foi atribuída a descoberta do Rio
Amazonas.6
Enfim, lendas derivadas de El Dorado influenciaram por séculos a exploração e
invasão do continente americano e o massacre de seus povos originários. Tal mitologia
penetrou tão fundo no imaginário ocidental que ainda se faz presente no
contemporâneo, principalmente nas mídias de entretenimento. O maior exemplo que
pode ser dado é o filme de animação “O Caminho para El Dorado”, de 2000.
Porém, considerando a nacionalidade do autor, temos um exemplo ainda melhor
para a possível influência de Shandora: a animação franco-japonesa “As Misteriosas
Cidades de Ouro”7. A série foi exibida originalmente no Japão entre 1982 e 1983 8,
quando Eiichiro Oda tinha entre 7 e 8 anos de idade. É muito provável que, enquanto
criança, o autor de One Piece tenha sido impactado pela animação e assim, começado a
ser influenciado por um imaginário a respeito da América Latina construído por visões
ocidentais e orientais.

Arquitetura

A cidade de Shandora, à parte do fator das construções em ouro maciço, é


amplamente espelhada nas arquiteturas mesoamericanas. Prédios com forma de
pirâmide, longas escadarias, altares, estátuas e inscrições de glifos pictográficos
compõem a paisagem em diversos quadros do mangá. Os glifos presentes na figura 4
são um caso singular no mangá, fazendo referência clara à escrita maia. São singulares

5
Ordaz foi um dos primeiros a buscar por ouro na América do Sul, realizando missões desde 1531.
6
HILBERT, P. P.; HILBERT, K.. Um rio para o El Dorado. 1. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. 204 p. ISBN
9788574305035. E-book.
7
A animação é uma adaptação do romance de Scott O’Dell “The King’s Fifth”, uma “ficção histórica”
sobre o “descobrimento” da América.
8
A série foi transmitida pela NHK, a maior emissora pública do Japão.
pois é evidente que era uma escrita específica dos Shandorians, já que é diferente dos
“poneglyphs”9, a representação mais recorrente de uma escrita “hieroglífica” na obra.

Figura 2: Ruínas de Shandora em 1522. One Piece, Vol. 29, Cap. 268. Figura 3: Templo em Tikal.10

Figura 4: Glifos em Shandora. One Piece, Vol. 28, Cap. 264. Figura 5: Glifos maias.11

Nas figuras acima, e em diversos outros quadros do mangá, podem ser notadas
as claras semelhanças da arquitetura geral de Shandora com as de cidades
mesoamericanas como Teotihuacan, Tula Xicocotitlan, Chichén Itzá, entre outras. Um
paralelo também pode ser feito com Machu Picchu se, pensando em sua localização de
elevada altitude, considerá-la uma “cidade nas nuvens”.
Analisando as construções de Shandora e das cidades mesoamericanas, nota-se
uma grande atenção do autor a detalhes arquitetônicos específicos. As estátuas de
guerreiros, presentes na figura 6, podem ter sido inspiradas nos “atlantes” presentes em
Tula, construídos pelos toltecas. Esses atlantes serviam como as colunas de sustentação
do Templo da Estrela da Manhã e as pessoas representadas nas figuras seriam reis e
altos funcionários do Estado Tolteca.12
9
Poneglyphs são grandes e resistentes blocos de pedra, produzidos por um povo do Século Perdido.
10
Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Tikal_Temple1_2006_08_11.JPG Acesso em: 14
jul. 2021
11
Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Palenque_glyphs-edit1.jpg Acesso em: 14
jul.2021
12
BERNARDES, A. G. M. Urbanismo Mesoamericano Pré-Colombiano: Teotihuacán. Orientador: Prof.
Dra. Betina Schürmann. 2008. 166 p. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) -
Figura 6: Ruínas de Shandora em 1522. One Piece, Vol. 29, Cap. 268. Figura 7: Atlante de Tula13

No episódio 174 do anime de One Piece, que conta com cenas estendidas do
capítulo 265 do mangá, é mostrada uma figura praticamente igual às que estão presentes
na Pirâmide de Quetzalcóatl e em outras construções de Teotihuacan. As estruturas
ornamentais são em referência à divindade homônima ao templo: Quetzalcóatl,
frequentemente representado por uma serpente coberta em plumas. O culto a esta
divindade tinha base em Teotihuacan e se espalhou por praticamente toda a
mesoamérica.

Figura 8: One Piece, episódio 174 Figura 9: Angulo, 2003: 23

Assim, percebemos a forma como o imaginário imagético acerca das


civilizações mesoamericanas se manifesta na reprodução de estruturas arquitetônicas
monumentais, gravuras pictográficas, além da reprodução das lendas de cidades de
ouro. Cabe ainda destacar a presença de um grande sino de ouro em Shandora (figura
1). Sabe-se que alguns povos mesoamericanos tinham conhecimentos metalúrgicos
suficientes para a produção de pequenos sinos de cobre e outros materiais 14, porém nada
na escala representada no mangá. A inserção deste sino pode ser um reflexo das culturas
Universidade de Brasília, Brasília, 2008.
13
Disponível em: < https://pt.foursquare.com/v/atlantes-de-tula/4bb50c48ef159c74ed3074f7/photos>
asiáticas, nas quais também há uma grande presença de sinos, inclusive em contextos
religiosos. Isso poderia ser uma evidência da mescla de imaginários ocidentais e
orientais a respeito da América Latina.

Sacrifício humano e referências religiosas

Em 1122, na mesma época da chegada do explorador Noland na ilha de Jaya, os


shandians sofriam com a epidemia de uma doença conhecida como “febre das árvores”.
Segundo as tradições do povo nativo, para que pudessem se livrar da doença, seria
necessário um agrado aos deuses. Assim, “a virgem mais bela da vila” deveria ser
sacrificada ao deus Kashigami, referido como “deus do sol, da chuva, da floresta e da
terra”. A mulher que serviria como o sacrifício humano, sob vontade própria, é levada a
um altar envolto de água. Iniciado o ritual, o deus Kashigami aparece na forma de uma
gigantesca serpente plumada. Antes que o sacrifício fosse efetuado e a cobra ingerisse a
oferenda humana, o explorador Noland surge e corta a cabeça de Kashigami.
Pode-se perceber então que Kashigami é uma referência direta à divindade
mesoamericana Quetzalcóatl15 citada mais acima. As histórias, tradições, mitologias e
cosmogonias que envolvem o culto à divindade serpente são umas das mais complexas
de toda a mesoamérica. Em diversas fontes iconográficas, principalmente no Códice de
Dresden16, a serpente plumada é retratada em contextos que envolvem práticas
ritualísticas como o sacrifício humano.17 Muitas fontes arqueológicas, principalmente
nos sítios do Clássico Final, também apontam para a figura de Quetzalcóatl como um
deus da guerra. Serpentes emplumadas aparecem associadas a armas, lanças, escudos,
vestimentas de guerreiros e instrumentos ritualísticos. Inclusive, muitos dos sacrifícios
eram realizados com guerreiros inimigos capturados.18 Em relação ao sacrifício como
busca de uma piedade divina e cura de uma doença, da forma que é retratado em One
Piece, esta pesquisa não encontrou fontes que citassem algo parecido nos costumes
mesoamericanos.
14
PARIS, E. H. Metallurgy, Mayapan, and the Postclassic Mesoamerican world system. Ancient
Mesoamerica, Cambridge, v. 19, ed. 1, p. 43-66, Primavera 2008. DOI 10.1017/S0956536108000291.
15
A origem do nome provém das palavras náhuatl “quetzalli” (pluma verde preciosa) e de “cóatl”
(serpente).
16
Este códice maia é o livro americano mais antigo a sobreviver ao processo colonial, datado entre os
séculos XI e XII.
17
NAVARRO, A. G. O Códice de Dresden e o culto a Quetzalcóatl. Textos de História, Campinas, v. 16, n.
1, p. 173-182, 2008.
18
DIEFENBACH, D. Rituais de sacrifício na Mesoamérica: os cronistas das Índias e a questão da
alteridade. Orientador: Maria Cristina Bohn Martins. 2009. 128 p. Dissertação (Mestrado em História) -
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2009.
Vale apontar que, devido ao amplo alcance cultural atingido pela figura de
Quetzalcóatl na mesoamérica, seu culto religioso tornou-se plural, podendo apresentar
diferenças interpretativas regionais. Por exemplo, algumas fontes mostram Quetzalcóatl
como uma divindade mais “benevolente”, que se opunha a sacrifícios humanos e
animais. Também há a mescla da divindade com a figura de um sacerdote homônimo,
que seria uma pessoa de grande virtude.19 Soma-se a isso a interferência colonial,
expressa principalmente em registros dos missionários cristãos. A manipulação de
informação feita por esses ao conceberem entidades mesoamericanas com traços
cristãos, chegando a comparar aquele Quetzalcóatl sacerdote com Jesus Cristo, serviu
como estratégia de conversão e implantação do cristianismo nas colônias.20

Figura 10: Kashigami. One Piece, vol. 31, cap. 287. Figura 11: Quetzalcóatl no Códice Telleriano Remensis.21

A figura do explorador-conquistador

Em One Piece, Mont Blanc Noland é a personificação da figura do explorador,


tendo como prováveis inspirações nomes históricos aqui já citados, como Francisco de
Orellana, devido às relações com a busca por cidades de ouro. Outras possíveis
influências podem ser Louis de Rougemont22 e Estevanico23. A narrativa do mangá nos
apresenta o personagem como um herói que, além de livrar os nativos de uma doença
epidêmica, acabou com as práticas religiosas “retrógradas” de sacrifício humano.
Quando ele interrompe o ritual de sacrifício, profere as seguintes palavras:

19
BLANCO, A. L. Hernán Cortez e Montezuma - mentalidades influenciadas pelo sistema coletivo. UFRRJ.
20
NAVARRO, A.G. Armas, templos e guerra: a natureza bélica do culto a Quetzalcóatl na Mesoamérica.
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 72: 165-176, 2002.
21
Disponível em: http://www.famsi.org/research/loubat/Telleriano-Remensis/thumbs2.html
22
Explorador suíço que escrevia sobre suas viagens à Australásia, porém era visto como um mentiroso.
23
Mustafa Azemmouri, o primeiro berbere a explorar a América do Norte. Possuía conhecimentos
médicos e chegou a auxiliar populações nativas. Teria conhecido a cidade lendária Cibola porém, ao
procura-la novamente, não pode localiza-la.
Acham mesmo que Deus fica feliz com isso? Para nós, esse ritual é
um enorme insulto! [...] Não posso aceitar um ritual como esse, que
insulta a memória dos grandes homens do passado! Sim, isso é um
insulto a todos os exploradores e pesquisadores que se lançaram ao
mar na esperança de trazer progresso à humanidade! (One Piece Vol.
31, Cap. 288, pgs. 51 e 52)

Após isso, Noland confronta Calgara, o líder guerreiro dos shandians, e ao final
do conflito é dada a ele a chance de curar a doença que assolava a tribo. Ao ver que a
epidemia foi realmente curada, Calgara cria amizade com Noland, perdoando-o pela
morte de seu deus e levando-o para a cidade dourada de Shandora.
Assim, vemos como se reproduz a imagem construída pelo imaginário ocidental
a respeito de um explorador que carrega apenas boas intenções, aquele que quer apenas
conhecer o mundo e levar conhecimento e progresso às eventuais civilizações
aculturadas que encontre em suas viagens. O nativo aqui é tratado como alguém que
oferece resistência violenta apenas num primeiro momento e que, ao experimentar um
pouco de “progresso”, logo é apaziguado.
O conquistador “maléfico” é representado pelo rei de Lvneel, aquele que se
sentiu atraído pela história de Noland por conta das imensas quantidades de ouro
protegida pelos nativos. O rei mobilizou grande parte do exército real para chegar em
Jaya e saquear o ouro de Shandora. O saque não aconteceu graças ao fato de que parte
da ilha havia sido lançada ao céu. Acreditando ter sido enganado, o rei sentenciou
Noland à morte. Com o passar dos séculos, Noland virou apenas uma história infantil
sobre um “mentiroso”. Consolida-se assim em One Piece um imaginário sobre a figura
de um explorador-conquistador que não causa nenhum mal ao povo nativo, apenas os
apresenta ao progresso.
Outro aspecto interessante de se comentar é a relação estabelecida pelos
skypieans com o pedaço de terra (onde está Shandora) que foi lançado aos céus. Já que
as ilhas do céu têm nuvens como seu “solo”, a terra (ou vearth, como é chamado por
eles) era algo inexistente por lá. Quando se deparam com este pedaço de ilha do Mar
Azul, os nativos de Skypiea ficam maravilhados e acabam expulsando os shandians de
sua terra natal. A força governante de Skypiea passa a habitar a terra e a torna um local
sagrado, agora conhecido como Upper Yard. Apenas o exército de “Deus” pode pisar na
Terra Sagrada, proibida aos cidadãos comuns de Skypiea e ainda mais aos shandians
expulsos.
Percebem-se nessa relação paralelos com o imaginário acerca dos processos
coloniais: conquistadores justificando a dominação a partir de uma desculpa religiosa;
nativos sendo expulsos de sua terra, obrigados a resistir por séculos; a exploração de
recursos naturais.

Conclusão

Ao longo do texto, foram apontados os paralelos possíveis de serem traçados


entre o mangá One Piece e os registros históricos das populações autóctones da
América Latina, com grande foco na Mesoamérica. Vale pontuar que alguns elementos
do mangá ainda ficaram de fora da análise neste presente artigo, como as referências
imagéticas presentes nas vestimentas e moradias dos shandians, além de detalhes mais
extensos da relação que os skypieans estabelecem com esses, a qual espelha aspectos da
relação colonizador-colonizado.
É evidenciado então, o modo como o imaginário coletivo acerca das populações
nativas da América Latina, construído originalmente pelo Ocidente, chega ao Oriente
(limitado neste estudo ao Japão) principalmente na forma de referências imagéticas das
culturas autóctones, apresentadas por animações, filmes e outras mídias correlatas.
Pode-se entender que em One Piece há, para além de uma mera reprodução, a presença
de uma (continuidade da) construção de um imaginário oriental, amplamente
influenciado pelo ocidental, porém com suas nuances e interpretações próprias.
Neste sentido de continuidade da construção de um imaginário, faz-se necessária
a realização de pesquisas mais abrangentes, que atenderiam de forma profunda as
intenções iniciais de entender a disseminação, reprodução e eventual ressignificação do
imaginário ocidental pelo Oriente. Tal estudo iria, obviamente, para além da obra One
Piece.
Neste primeiro momento, houve uma dificuldade de encontrar fontes
bibliográficas que tratassem diretamente dessa temática do imaginário ocidental-oriental
a respeito da América Latina, o que pode indicar que essa seja uma área ainda pouco
explorada.

Referências bibliográficas
BERNARDES, A. G. M. Urbanismo Mesoamericano Pré-Colombiano:
Teotihuacán. Orientador: Prof. Dra . Betina Schürmann. 2008. 166 p. Dissertação
(Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Universidade de Brasília, Brasília, 2008.
Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/11291. Acesso em: 14 jul. 2021.
BLANCO, A. L. Hernán Cortez e Montezuma – mentalidades influenciadas pelo
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questão da alteridade. Orientador: Maria Cristina Bohn Martins. 2009. 128 p.
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NAVARRO, A. G. Quetzalcóatl e a Arqueologia: uma proposta para a identificação da
natureza do culto na Mesoamérica pré-hispânica durante o Clássico Final (700-950
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ODA, E. One Piece. Vol. 25. São Paulo: Panini Comics, 2014.
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