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ED I ÇÃO DE AN I V ERS ÁR I O 12 AN OS
TERRA (2017), Carmela Gross
SET/OUT/NOV 2023 VOL. 12 N. 59
BIENAL DAS AMAZÔNIAS DOS BRASIS CASTIEL VITORINO BRASILEIRO SERTÃO NEGRO ROSE AFEFÉ
R E P O R TA G E M
A PRIMEIRA EDIÇÃO DA BIENAL
DAS AMAZÔNIAS MATERIALIZA
O ENCONTRO INÉDITO ENTRE
ARTISTAS E OBRAS DE TODOS
OS TERRITÓRIOS AMAZÔNIDAS, 23
PA U L A A L Z U GA R AY E J U L I A N A M O N A C H E S I
ARTE E POLÍTICA
Quintino (2023), pintura de Éder Oliveira, elabora
uma reflexão sobre conflitos e lutas pela terra
na figura do agricultor e pistoleiro Quintino Lira
PAN-AMAZÔNICA
VOL. 12 / N. 58 JUN/JUL/AGO 2023
VOL. 12 / N. 59 SET/OUT/NOV 2023 FOTO: MARTINA VAN STEEN
ANTIMUNDO, PARAÍSO TERRESTRE, INFERNO VERDE, comunidades indígenas que, embora não oficialmente lista-
CENÁRIO DE MARAVILHAMENTOS. A FLORESTA AMAZÔ- das, são pelo menos 14 na exposição: Baniwa, Macuxi, Pataxoop,
NICA É UM TERRITÓRIO IMENSURÁVEL NO QUE TOCA A Tupinambá, Nonuya, Tacana, Tukano, Apurinã, Apurinã/Kama-
SEUS SENTIDOS, COSMOLOGIAS, VALORES E IMAGINÁ- deni, Shipibo-Konibo, Wampis, Waiãpi, Guarani, Ayoreas.
RIOS. Mapas geopolíticos não dão conta de determinar suas “Esta Bienal coloca a ideia de que não estamos sozinhos”, diz
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fronteiras e limites. Mas o fato é que sua vastidão está dividida Keyna Eleison. “Em lugar de nos pautarmos por um critério de 25
entre nove países e territórios sul-americanos – Bolívia, Co- ineditismo, preferimos olhar para os apagamentos históricos”,
lômbia, Equador, Peru, Venezuela, Suriname, Guiana, Guia- diz Vânia Leal. Eleison e Leal são as curadoras da 1ª Bienal das
na Francesa e Brasil, que compõem a Organização do Tra- Amazônias, assinando a curadoria como Coletivo Sapukai,
tado de Cooperação da Amazônia (OTCA) – e nove estados do qual também fizeram parte, ao longo do processo de con-
brasileiros da chamada Amazônia Legal, que nunca haviam cepção do projeto, Flavya Mutran e Sandra Benites. “É sobre
se reunido para discutir estratégias e políticas comuns para a a Amazônia invisível”, resume Leal, que se define orgulhosa-
preservação da Floresta. mente como uma “cabocla do Norte”.
Uma agenda inédita de encontros deu-se no início de agos- A Carta de Belém, redigida na Cúpula, busca fortalecer a coo-
to. Somando-se aos Diálogos Amazônicos e à Cúpula das peração regional, a fim de evitar o ponto de não retorno de
Amazônias, a Bienal das Amazônias foi inaugurada com 120 desmatamento da Floresta, mas não veta a exploração de
artistas e coletivos vindos de nove países, oito estados e de petróleo na Foz do Rio Amazonas, em discussão desde 2021,
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2023 FOTO: XXXXXXXXXX
FOTOS: MARTINA VAN STEEN
Para retratar Quintino Gatilheiro, Oliveira recorreu ao
O ciclo da borracha, que levou à Região Norte a ideologia mesmo procedimento de séries anteriores, em que ampli-
do desenvolvimentismo da era da industrialização, entre fica retratos de jovens recortados de páginas policiais de
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1880 e 1910, também atravessa obras presentes na Bienal jornais. Entre os 16 Quintinos da cena, a versão em que o 31
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das Amazônias. Três pinturas de Hélio Melo encenam o ativista está de pé, pistola e mão na cintura, foi apropriada
cotidiano dos seringais e as relações desiguais entre tra- de fotografia de Miguel Chikaoka, publicada na capa de um
balhadores e proprietários, enquanto a instalação Semioti- jornal com a chamada: “Mais de cem homens caçam Quin-
cal Apocalypso in Blue (2023), de Noara Quintana, aproxi- tino vivo ou morto”.
ma o imaginário da belle époque em Belém ao apagamento Referência incontornável da arte paraense, Chikaoka não
cultural que os povos indígenas da região, explorados no ficaria de fora da primeira edição de qualquer bienal na re-
processo de geração de riquezas, sofreram no período. gião. H Olhos + e - (2023), sua instalação na Bienal das Ama-
Quintana ainda aponta o paradoxo da importação do estilo zônias, trata de, no mínimo, três temas: um painel fotográfi-
art nouveau pela arquitetura paraense do fim do século 19 co preto e branco retratando uma paisagem, com uma caixa
como representação de natureza, quando muitas das plan- de areia à sua frente, construída nas mesmas dimensões do
tas e flores estilizadas nesse movimento artístico foram painel, como se projetasse no espaço a sombra da imagem,
apropriadas justamente da flora amazônica. coloca em questão a própria fotografia. A paisagem alude
imediatamente à devastação da Amazônia, e as gradações
TERRA de cinza “projetadas” na caixa de areia, com uma linha com-
Perpassando todos os ciclos está a questão da terra. Do cri- posta de carvão espelhando o solo do local fotografado, nos
me e da violência em torno dela. Éder Oliveira (PA), na pin- leva a ver na imagem uma terra arrasada pelas queimadas.
tura em grande formato Quintino (2023), trabalha com um Finalmente, atentando ao título da instalação, pode-se de-
ícone da luta pela terra na Amazônia. Quintino da Silva Lira, duzir que a obra é uma pensata sobre a passagem do tempo
conhecido como Quintino Gatilheiro, foi um agricultor que e as limitações (ou as potencialidades divergentes) do sentido
resistiu à invasão de suas terras na região do Guamá, no mu- onipotente da visão.
nicípio de Santa Luzia do Pará, enfrentando forças milicianas O recurso de perda de saturação cromática da floresta se
de uma companhia de mineração, amparadas pelo governo repete em El Bosque en Llamas (2023), da colombiana Noemí
estadual paraense (então capitaneado por Jader Barbalho). Pérez. No lápis-carvão, material de trabalho, a memória da
Seu mito de herói justiceiro começou a se formar quando exploração do carvão vegetal e recursos naturais nos ter-
ele assassinou um fazendeiro e seus pistoleiros, que haviam ritórios de conflito na fronteira entre a Colômbia e a Ve-
expulsado 32 agricultores das terras que ocupavam. Em nezuela. Na representação de animais mortos na floresta,
1985, após três anos de luta armada, Quintino foi morto pela elaborada em delicados bordados coloridos, uma sinapse
PM do Pará, em emboscada, mas teve o corpo desenterrado inesperada, nos levando a associar a ideia da terra arra-
e conduzido em cortejo em percurso de 180 quilômetros, sada – a perda de saturação cromática – com a morte por
por água e terra. Em 2007, as terras da fazenda Cambará insuficiência respiratória, relacionada à baixa saturação de
voltaram a ser palco da disputa, quando, aproximadamen- oxigênio no sangue.
te, cem famílias montaram ali o assentamento Quintino Um ciclo de lutas pela vida na terra se fecha com o vídeo Que
Lima. Retratado por Éder Oliveira em uma obra com di- Sua Luta Seja Como a da Floresta (2023), de Gabriel Bicho, que
mensões de pintura histórica, o mártir da terra aparece vem instalar palavras de ordem no coração das trevas. Nomes
em 16 posições diferentes, em torno de um mapa da região de árvores – Muiratana, Castanheira... – pairam na mata como
invadida entalhado em uma mesa de madeira, no meio de gritos em manifestações ativistas; palavras que têm o poder de
uma estrada de terra. capturar os gases e os efeitos sufocantes, devolvendo oxigênio
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2023 FOTO: OCTAVIO CARDOSO / CORTESIA DA ARTISTA
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PALAVRAS DE ORDEM NO
e sanidade à atmosfera. Também sobre o poder da palavra e Dalcídio Jurandir. Tudo isso levemente apoiado sobre uma
da linguagem, a instalação Nheengatu (2023), de Denilson Ba- lona plástica azul-piscina.
niwa, reverbera no espaço da Bienal gravações em nheenga- A expografia, assinada por Juliana Godoy, organiza as “sa-
tu (língua geral amazônica, falada em todo o vale amazônico las” pelo uso de cortinas de tom terroso, instaladas em
GRITOS EM MANIFESTAÇÕES
loja de departamento Y. Yamada, tem poucas divisórias: é um ria naval João Aires. Sob o mastaréu o visitante pode se sen-
espaço fluido como os rios que compõem a Bacia Amazôni- tar – há cadeiras e esteiras – e ouvir uma peça sonora em que
ca. Bacia que, em sua grandeza de 7 milhões de quilômetros Dona Teca, avó de Elaine Arruda, narra as memórias sobre
quadrados é aqui simbolizada e configurada em obra de Em- Tijuquaquara, próxima a Ponta das Pedras, acessível apenas
manuel Nassar, em arranjo formado por jarro de barro, ban- por meio fluvial. Na parede à frente da instalação, um conjun-
quinho de madeira, garrafa plástica, bacia de alumínio e a re- to de fotografias retrata o retorno da matriarca, acompanha- Pintura do tríptico El Bosque en Llamas
presentação de um livro – Chove nos Campos de Cachoeira, de da da filha e da neta, ao território da infância. “No processo (2023), de Noemí Pérez
DA ANCESTRALIDADE VIVEMOS
Do mastaréu, do jarro d’água e da bacia de alumínio che-
gamos às cuias de Keyla Sankofa (AM). “A cuia simboliza
o encontro entre o indígena e o preto. Fui pesquisar esse
lugar de encontro, que acontece muito antes da chegada do
colonizador. Trabalho com fabulação e ficção para mudar a
memória”, diz Sankofa à seLecT_ceLesTe. Na Bienal, a ar-
tista expõe fotografias e um paramento feito de cuias. “Cada
cuia representa um coletivo de muita gente, uma multidão.”
Multidão, ancestralidade e gênero são palavras que desá-
guam no grande rio das drags Themônias, esse movimento
criado em Belém do Pará, na década de 2010, “forjado na
brea, no verão amazônico”, mas que se alastra e não para
de crescer, sendo hoje composto de mais de 200 pessoas.
Convidado a ocupar o Museu da Universidade do Pará, o
movimento lançou a primeira flecha da 1ª Bienal das Ama-
zônias, organizando o 3º Congresso das Themônias. Em
performances, debates, oficinas e uma exposição com obras
de Gabriela Luz, Carlos Vera Cruz (com sua macumbística);
Gabriel Cardoso (GC), com seu amazofuturismo, Allyster
Fagundes e Lino Calixto Jussara, elas ampliam e esgarçam o
conceito de “mulheridades”.
Na noite de abertura da Bienal, a themônia S1mone portava
uma máscara, feita de dobraduras de papel, emoldurando
seu rosto. "Encomendei esse adereço para ressignificar
as palavras dessa escritora transfóbica", explicou, depois
de informar que o papel que serviu de matéria-prima
eram páginas do livro Harry Potter. Majestosa, S1mone
demonstrava com elegância como a objetificação, o pre-
conceito e a violência podem ser transmutados em state-
ment de resistência.
Com esses corpos amazônidas em plena brea e erupção, a
Bienal da Bubuia fomenta seu ato de emersão e lança uma
flecha. “É a primeira vez que estamos lançando uma flecha
de dentro para fora”, diz Vânia Leal. Nesse gesto, passado e
futuro se retroalimentam. Afinal, ao se lançar uma flecha, a
corda do arco recua.
FOTOS: MARTINA VAN STEEN E PAULA ALZUGARAY