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o chegarem às costas brasileiras, os na- certa maneira, desta forma, o Brasil foi simbo-
vegadores pensaram que haviam atin- licamente criado. Assim, apenas nomeando-o,
gido o paraíso terreal: uma região de se tomou posse dele, como se fora virgem (To-
eterna primavera, onde se vivia comu- dorov, 1983)
nte por mais de cem anos em perpétua ino- Assim também a História do Brasil, a ca-
icia. Deste paraíso assim descoberto, os por- nônica, começa invariavelmente pelo “desco-
lugueses eram o novo Adão. A cada lugar con- brimento”. São os “descobridores” que a inau-
eriram um nome — atividade propriamente guram e conferem aos gentios uma entrada —
dâmica — e a sucessão de nomes era tam- de serviço — no grande curso da História.
bém a crônica de uma génese que se confun- Por sua vez, a história da metrópole não é
a com a mesma viagem. A cada lugar, o no- mais a mesma após 1492. A insuspeitada pre-
ne do santo do dia: Todos os Santos, São Se- sença desses outros homens (e rapidamente
Bastido, Monte Pascoal. Antes de se batizarem ' se concorda, e o papa reitera em 1537, que são
gentios. batizou-se a terra encontrada. De homens) desencadeia uma reformulação das
A história canônica
do Brasil começa
com o
““Descobrimento”.
Nesta cena,
Américo Vespucio
desperta a
América,
representada
por uma índia
Tupinambá, deitada
na rede. Rede,
tacape e cenas de
antropofagia, que
se vêem ao fundo,
são emblemáticas
dos Tupinambá.
Desenho de Jan
van der Straet
(também chamado
Stradanus),
gravura de
Theodor Galle
(1589).
10 TIISTÓRIA DOS ÍNDIOS NO BRASIL
idéias recebidas: como enquadrar por exem- Sul do Mundo, ou talvez as correntes marinhas
plo essa parcela da humanidade, deixada por tivessem trazido esses homens a deriva. Ques-
tanto tempo à margem da Boa Nova, na histó- toes que, debatidas por exemplo pelo jesuita
ria geral do gênero humano? Se todos os ho- José d'Acosta em 1590 (Acosta, 1940 [1590]),
mens descendem de Noé, e se Noé teve ape- continuam colocadas hoje e não se encontram
nas três filhos, Cam, Jafet e Sem, de qual des- completamente resolvidas, conforme se verd
ses filhos proviriam os homens do Mundo neste volume (Salzano, Guidon;' ver também
Novo? Seriam descendentes daqueles merca- Salzano, 1985, e Salzano e Callegari-Jacques,
dores que ao tempo do rei Salomão singravam 1988:2). Haveria múltiplas origens e rotas de
o mar para trazerem ouro de Ofir — que po- penetragio do homem americano? Teria ele
deria ser o Peru —, ou das dez tribos perdi- vindo, como se cré em geral, pelo estreito de
das de Israel que, reinando Salmanasar, se afas- Bering e somente por ele? Quando se teria da-
taram dos assirios para resguardar em sua pu- do essa migração?
reza seus ritos e sua fé? E mais, admitindo que
ORIGENS
se soubesse isso, restaria descobrir por que
meios teriam cruzado os oceanos antes que os Sabe-se que entre de uns 35 mil a cerca de
descobridores tivessem domesticado os mares. uns 12 mil anos atrds, uma glaciagio teria, por
Talvez as terras do Novo e do Antigo Mundo intervalos, feito o mar descer a uns 50 m abai-
comunicassem, ou tivessem comunicado em x0 do nivel atual. A faixa de terra chamada Be-
tempos passados, por alguma região ainda des- ringia teria assim aflorado em vérios momen-
conhecida do extremo Norte ou do extremo tos deste periodo e permitido a passagem a pé
da Asia para a América. Em outros momen-
Em 1612, seis tos, como no intervalo entre 15 mil e 19 mil
Índios do anos atrds, o excesso de frio teria provocado
Maranhão foram
levados pelos a coalescéncia de geleiras ao norte da Améri-
capuchinhos ca do Norte, impedindo a passagem de ho-
franceses para a mens. Sobre o periodo anterior a 35 mil anos,
Corte do jovem nada se sabe. De 12 mil anos para cá, uma tem-
Luis XIIl para
conseguir apoio peratura mais amena teria interposto o mar en-
financeiro e politico tre os dois continentes. Em vista disto, é tra-
para a Colénia.
Trés morreram dicionalmente aceita a hipétese de uma mi-
quase ao chegar gração terrestre vinda do nordeste da Asia e
(entre os quais se espraiando de norte a sul pelo continente
Francisco Caripira), americano, que poderia ter ocorrido entre 14
três outros
sobreviveram, mil e 12 mil anos atrás. No entanto, há tam-
foram batizados bém possibilidades de entrada maritima no
com o nome de continente, pelo estreito de Bering: se é ver-
Luis e voltaram
para o Maranhao dade que a Austrália foi alcancada há uns 50
com esposas mil anos por homens que, vindos da Asia, atra-
francesas e vessaram uns 60 km de mar, nada impediria
cobertos de
honrarias. Véem-se que outros viessem para a América, por nave-
em Francisco gação costeira (Meltzer, 1989:474).
Caripira (figura à Há considerédvel controvérsia sobre as da-
direita) as tas dessa migração e sobre ser ela ou não a úni-
tatuagens que,
entre os ca fonte de povoamento das Américas. Quan-
Tupinambá, to & antiguidade do povoamento, as estimati-
celebravam o vas tradicionais falam de 12 mil anos, mas
número de
inimigos muitos arquedlogos afirmam a existéncia de si-
ritualmente tios arqueolégicos no Novo Mundo anteriores
abatidos (Claude a essas datas: sdo particularmente importan-
d'Abbeville, Histoire
da la mission des tes neste sentido as pesquisas feitas no sudes-
pêres capucins..., te do Piaui por Niéde Guidon (cf. neste volu-
1614). me). Os sitios para os quais se reivindicam as
mais antigas datas estariam — complicador
INTRODUÇÃO A UMA HISTÓRIA INDÍGENA
adicional — antes a sul do que a norte do con- tória, por ouvirmos falar, sem entender-lhe o
tinente, contrariando a hipótese de uma des- sentido ou o alcance, em sociedades “frias”,
cida em que a América do Sul teria sido po- sem história, porque há um tropo propriamen-
voada após a do Norte. Não há consenso so- te antropológico que é o chamado “presente
bre o assunto, no entanto, na comunidade etnográfico”, e porque nos agrada a ilusão de
arqueológica (Lynch, 1990). Mas, recentemen- sociedades virgens, somos tentados a pensar
te, uma lingúista (Nichols, 1990 e 1992), com que as sociedades indígenas de agora são a
base no tempo médio de diferenciação de es- imagem do que foi o Brasil pré-cabralino, e
toques lingúísticos, fez suas próprias avaliações que, como dizia Varnhagen por razões diferen-
e afirmou um povoamento da América que ter- tes, sua história se reduz estritamente à sua
se-ia iniciado há 30 mil-35 mil anos. Mais con- etnografia.
servadora quanto à profundidade temporal é Na realidade, a história está onipresente.
a estimativa de outro lingiiista, Greenberg Está presente, primeiro, moldando unidades
— (1987), que mantém os fatidicos 12 mil anos e culturas novas, cuja homogeneidade reside
mas estabelece a existéncia de trés grandes lin- em grande parte numa trajetória compartilha-
guas colonizadoras que teriam entrado no con- da: é o caso, por exemplo, do conglomerado
tinente em vagas sucessivas (Urban). Tudo is- piro/conibo/cambeba, que forma uma cultura
to poe em causa a hipdtese de uma migração ribeirinha do Ucayali, apesar de seus compo-
sinica de populagio siberiana pelo interior da nentes pertencerem a três famílias lingúísti-
Beringia. A possibilidade de outras fontes po- cas diversas (Arawak, Pano e Tupi), e que se
‘pulacionais e de rotas alternativas se soman- contrapõe às culturas do interflúvio (Erikson);
o & do interior da Berfngia não estd portanto
HSTORIA INDIGENA
e-se pouco da histéria indigena: nem a ori-
, nem as cifras de população são seguras,
ito menos o que realmente aconteceu. Mas
ediu-se, no entanto: hoje estd mais cla-
ra, pelo menos, a extensdo do que não se sa-
Os estudos de casos contidos neste volu-
e são fragmentos de conhecimento que per-
em imaginar mas não preencher as lacunas
de um quadro que gostarfamos fosse global.
Permitem também, e isto é importante, não in-
orrer em certas armadilhas.
A maior dessas armadilhas é talvez a ilusão
= primitivismo. Na segunda metade do século
IX, essa época de triunfo do evolucionismo,
rou a idéia de que certas sociedades te-
ficado na estaca zero da evolugao, e que
ram portanto algo como fésseis vivos que tes-
unhavam do passado das sociedades oci-
is. Foi quando as sociedades sem Esta-
Dobyns chamou de “um dos maiores cataclis- lume), ficaram associados no espirito dos Tu- Os índios
pinambá: é elucidativo que um dos milagres brasileiros fizeram
mos biológicos do mundo”. No entanto, é im- grande sucesso na
portante enfatizar que a falta de imunidade, atribuidos ao suave Anchieta fosse o de res- Corte francesa. A
devido ao seu isolamento, da população abo- suscitar por alguns instantes a indiozinhos nobreza toda os
rigine, não basta para explicar a mortandade, mortos para lhes poder dar o batismo. Os al- convidava para
jantares, embora
mesmo quando ela foi de origem patogênica. deamentos religiosos ou civis jamais consegui- torcesse o nariz
Outros fatores, tanto ecológicos quanto sociais, ram se auto-reproduzir biologicamente. Repro- para as suas
esposas francesas.
tais como a altitude, o clima, a densidade de duziam-se, isso sim, predatoriamente, na me-
Um musico da
população e o relativo isolamento, pesaram de- dida em que indios das aldeias eram compul- Corte, Gaultier,
cisivamente. Em suma, os microorganismos soriamente alistados nas tropas de resgates pa- chegou a compor
uma sarabanda em
não incidiram num vácuo social e politico, e ra descer dos sertões novas levas de indios, que que os Tupinambá
sim num mundo socialmente ordenado. Par- continuamente vinham preencher as lacunas tocavam com seus
ticularmente nefasta foi a politica de concen- deixadas por seus predecessores. maracás, conforme
ftração da população praticada por missiond- Mas não foram só os microorganismos os se vê nesta
gravura.
rios e pelos órgãos oficiais, pois a alta densi- responsáveis pela catástrofe demográfica da
dade dos aldeamentos favoreceu as epidemias, América. O exacerbamento da guerra indíge-
sem no entanto garantir o aprovisionamento. na provocado pela sede de escravos, as guer-
O sarampo e a varfola que, entre 1562 e 1564, ras de conquista e de apresamento em que os
assolaram as aldeias da Bahia fizeram os fn- índios de aldeia eram alistados contra os fn-
dios morrerem tanto das doengas quanto de dios ditos hostis, as grandes fomes que tradi-
fome, a tal ponto que os sobreviventes prefe- cionalmente acompanhavam as guerras, a de-
mam vender-se como escravos do que morrer sestruturação social, a fuga para novas regiões
2 mingua (Carneiro da Cunha, 1986). Bati: das quais se desconheciam os recursos ou se
mo e doenga, como lembra Fausto (neste vo* tinha de enfrentar os habitantes (vide, por
HISTÓRIA DOS ÍNDIOS NO BRASIL
Os indios como
“guardides das
fronteiras”, no
limite entre o Brasil
e a Guiana
francesa. Ao lado
de Rondon, um
índio segura a
bandeira brasileira
enquanto outro
empunha a
bandeira francesa.
da histéria. O resultado paradoxal dessa pos- mente indigena: no século XVII, grupos Coni-
tura “politicamente correta” foi somar à eli- bo (Pano) querem aliados espanhéis (missio-
minagio fisica e étnica dos indios sua elimi- ndrios) para contestar o monopólio piro (ara-
nação como sujeitos histéricos.® wak) das rotas comerciais com os Andes (Erik-
Ora, não há dúvida de que os índios foram son). A coalizão de Karajá, Xerente e Xavante
atores politicos importantes de sua prépria his- em Goids. que em 1812 destruiu o recém-
téria e de que, nos intersticios da politica in- fundado presidio de Santa Maria no Araguaia
digenista, se vislumbra algo do que foi a poli- (Karasch), é um exemplo da amplitude que po-
tica indigena. Sabe-se que as poténcias metro- dia alcangar a polftica indigena em seu con-
politanas perceberam desde cedo as poten- fronto com os recém-chegados.
cialidades estratégicas das inimizades entre Coalizbes deste porte, no entanto, foram ex-
grupos indigenas: no século XVI, os franceses cepcionais. Ao contrério, o efeito geral dessa
e 0s portugueses em guerra aliaram-se respec- imbricação da politica indigenista com a poli-
tivamente aos Tamoio e aos Tupiniquins (Faus- tica indigena foi antes o fracionamento étnico
t0); e no século XVII os holandeses pela pri- (Taylor, Erikson). Faltam no entanto estudos
meira vez se aliaram a grupos “tapuias” contra de caso desses processos de fracionamento.
os portugueses (Dantas, Sampaio e Carvalho). Por isso é particularmente valiosa a descrição
Índio Guajajara (à No século XIX, os Munduruku foram usados feita por Turner de um processo desse tipo,
direita) e índio para “desinfestar” o Madeira de grupos hos- mostrando a articulagdo da politica externa
Urubu-Kaapor (à
esquerda) tis e os Kraho, no Tocantins, para combater ou- com a politica interna dos grupos kayapé ao
fotografados por tras etnias Jê. longo de várias décadas: corrida armamentis-
Charles Wagley no Essa politica metropolitana requer a exis- ta, fissão ao longo de clivagens já inscritas na
Maranhão (1942): a
penetração da téncia de uma politica indigena: os Tamoio e sociedade (metades, sociedades masculinas),
influência e das os Tupiniquins tinham seus próprios motivos tornam-se inteligiveis & luz da estrutura social
mercadorias
trazidas pelos para se aliarem aos franceses ou aos portugue- kayapé. E, reciprocamente, é essa histéria et-
europeus fez-se ses. Os Tapuia de Janduf tinham os seus para nográfica que ilumina a estrutura social kaya-
muitas vezes aceitarem apoiar a Mauricio de Nassau. Se pó. A histéria local é portanto, como advoga,
através de grupos nesses casos não é certo a quem cabe a ini entre outros, Marshall Sahlins (1992), elemento
indigenas
intermedidrios. ciativa, em outros a iniciativa é comprovada- importante de conhecimento etnogréfico.
0 indio no
ma
imaginario
7] europeu. Ao lado,
a primeira gravura
Fi conhecida, de
Johann Froschauer,
que representa a
WEA AAA
antropofagia
s
brasileira. No meio,
à esquerda,
imagem da cidade
mitica do Eldorado
ou Manoa. Abaixo,
à esquerda,
.//'el'/gl .'W' S W gravura do século
XIX mostrando um
À canibalismo
“selvagem” que
À jamais existiu.
Abaixo, à direita, a
primeira gravura
S representando as
Amazonas: um
* marinheiro enviado
em terra para
seduzi-las é
atacado para ser
devorado.
HISTÓRIA DOS ÍNDIOS NO BRASIL
AGRADECIMENTOS
O índio no
imaginário. Ao lado,
casal de indios do
Parque Nacional
do Xingu: imagem
de indios inocentes
no jardim do Eden.
Abaixo, os indios
como senhores da
terra: Adhemar de
Barros entrega
solenemente a
dois índios Carajás
perplexos uma
caixa contendo
terra do morro
do Jaraguá.
final do volume e a todos queremos agradecer. Queremos prestar, por fim, neste prefá-
Cabem no entanto especiais agradecimentos cio, uma homenagem a Miguel Menéndez,
à família de Hércules Florence, à Bosch do Bra- um dos primeiros antropólogos a se inte-
sil e à Biblioteca Mário de Andrade. Agradeço ressar por pesquisas de história indígena,
também a revisão dos textos de arqueologia rea- e que faleceu prematuramente em novem-
lizada pela professora Sílvia Maranca, do Mu- bro de 1991. Membro do projeto e do Nú-
seu de Arqueologia e Etnologia da USP. cleo de Histéria Indigena da USP desde
A publicação deste volume só se tornou suas primeiras horas, o capitulo que produ-
possível graças ao apoio da Secretaria Muni- ziu e que publicamos neste volume, sobre
cipal de Cultura de São Paulo e da FAPESP a histéria do rio Madeira, é seu dltimo tra-
(Proc. 91/4450-0). balho.