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| INTRODUÇÃO A UMA HISTÓRIA INDÍGENA

Como eram e são tão bárbaros, e vitórias e perdas de Batalhas, e todo


destituídos da razão, não trataram de o memorável com que a fortuna
Escritura, ou de outros monumentos em e a política vão sempre, com os séculos,
que recomendassem à posteridade as suas acrescentando às Histórias das
Histdrias para que dela víssemos os seus Monarquias. Por esta Cauza, ignoramos
Principados, alianças, Pazes, e discórdias o que se conhece de todas as outras
de soberanos, sucessos de Estados, N
conquistas de Provincias, defensas de (Ignácio Barboza Machado,
Praças, admirássemos Exercícios de Marte, 1725, fol. 90.)

Manuela Carneiro da Cunha

o chegarem às costas brasileiras, os na- certa maneira, desta forma, o Brasil foi simbo-
vegadores pensaram que haviam atin- licamente criado. Assim, apenas nomeando-o,
gido o paraíso terreal: uma região de se tomou posse dele, como se fora virgem (To-
eterna primavera, onde se vivia comu- dorov, 1983)
nte por mais de cem anos em perpétua ino- Assim também a História do Brasil, a ca-
icia. Deste paraíso assim descoberto, os por- nônica, começa invariavelmente pelo “desco-
lugueses eram o novo Adão. A cada lugar con- brimento”. São os “descobridores” que a inau-
eriram um nome — atividade propriamente guram e conferem aos gentios uma entrada —
dâmica — e a sucessão de nomes era tam- de serviço — no grande curso da História.
bém a crônica de uma génese que se confun- Por sua vez, a história da metrópole não é
a com a mesma viagem. A cada lugar, o no- mais a mesma após 1492. A insuspeitada pre-
ne do santo do dia: Todos os Santos, São Se- sença desses outros homens (e rapidamente
Bastido, Monte Pascoal. Antes de se batizarem ' se concorda, e o papa reitera em 1537, que são
gentios. batizou-se a terra encontrada. De homens) desencadeia uma reformulação das
A história canônica
do Brasil começa
com o
““Descobrimento”.
Nesta cena,
Américo Vespucio
desperta a
América,
representada
por uma índia
Tupinambá, deitada
na rede. Rede,
tacape e cenas de
antropofagia, que
se vêem ao fundo,
são emblemáticas
dos Tupinambá.
Desenho de Jan
van der Straet
(também chamado
Stradanus),
gravura de
Theodor Galle
(1589).
10 TIISTÓRIA DOS ÍNDIOS NO BRASIL

idéias recebidas: como enquadrar por exem- Sul do Mundo, ou talvez as correntes marinhas
plo essa parcela da humanidade, deixada por tivessem trazido esses homens a deriva. Ques-
tanto tempo à margem da Boa Nova, na histó- toes que, debatidas por exemplo pelo jesuita
ria geral do gênero humano? Se todos os ho- José d'Acosta em 1590 (Acosta, 1940 [1590]),
mens descendem de Noé, e se Noé teve ape- continuam colocadas hoje e não se encontram
nas três filhos, Cam, Jafet e Sem, de qual des- completamente resolvidas, conforme se verd
ses filhos proviriam os homens do Mundo neste volume (Salzano, Guidon;' ver também
Novo? Seriam descendentes daqueles merca- Salzano, 1985, e Salzano e Callegari-Jacques,
dores que ao tempo do rei Salomão singravam 1988:2). Haveria múltiplas origens e rotas de
o mar para trazerem ouro de Ofir — que po- penetragio do homem americano? Teria ele
deria ser o Peru —, ou das dez tribos perdi- vindo, como se cré em geral, pelo estreito de
das de Israel que, reinando Salmanasar, se afas- Bering e somente por ele? Quando se teria da-
taram dos assirios para resguardar em sua pu- do essa migração?
reza seus ritos e sua fé? E mais, admitindo que
ORIGENS
se soubesse isso, restaria descobrir por que
meios teriam cruzado os oceanos antes que os Sabe-se que entre de uns 35 mil a cerca de
descobridores tivessem domesticado os mares. uns 12 mil anos atrds, uma glaciagio teria, por
Talvez as terras do Novo e do Antigo Mundo intervalos, feito o mar descer a uns 50 m abai-
comunicassem, ou tivessem comunicado em x0 do nivel atual. A faixa de terra chamada Be-
tempos passados, por alguma região ainda des- ringia teria assim aflorado em vérios momen-
conhecida do extremo Norte ou do extremo tos deste periodo e permitido a passagem a pé
da Asia para a América. Em outros momen-
Em 1612, seis tos, como no intervalo entre 15 mil e 19 mil
Índios do anos atrds, o excesso de frio teria provocado
Maranhão foram
levados pelos a coalescéncia de geleiras ao norte da Améri-
capuchinhos ca do Norte, impedindo a passagem de ho-
franceses para a mens. Sobre o periodo anterior a 35 mil anos,
Corte do jovem nada se sabe. De 12 mil anos para cá, uma tem-
Luis XIIl para
conseguir apoio peratura mais amena teria interposto o mar en-
financeiro e politico tre os dois continentes. Em vista disto, é tra-
para a Colénia.
Trés morreram dicionalmente aceita a hipétese de uma mi-
quase ao chegar gração terrestre vinda do nordeste da Asia e
(entre os quais se espraiando de norte a sul pelo continente
Francisco Caripira), americano, que poderia ter ocorrido entre 14
três outros
sobreviveram, mil e 12 mil anos atrás. No entanto, há tam-
foram batizados bém possibilidades de entrada maritima no
com o nome de continente, pelo estreito de Bering: se é ver-
Luis e voltaram
para o Maranhao dade que a Austrália foi alcancada há uns 50
com esposas mil anos por homens que, vindos da Asia, atra-
francesas e vessaram uns 60 km de mar, nada impediria
cobertos de
honrarias. Véem-se que outros viessem para a América, por nave-
em Francisco gação costeira (Meltzer, 1989:474).
Caripira (figura à Há considerédvel controvérsia sobre as da-
direita) as tas dessa migração e sobre ser ela ou não a úni-
tatuagens que,
entre os ca fonte de povoamento das Américas. Quan-
Tupinambá, to & antiguidade do povoamento, as estimati-
celebravam o vas tradicionais falam de 12 mil anos, mas
número de
inimigos muitos arquedlogos afirmam a existéncia de si-
ritualmente tios arqueolégicos no Novo Mundo anteriores
abatidos (Claude a essas datas: sdo particularmente importan-
d'Abbeville, Histoire
da la mission des tes neste sentido as pesquisas feitas no sudes-
pêres capucins..., te do Piaui por Niéde Guidon (cf. neste volu-
1614). me). Os sitios para os quais se reivindicam as
mais antigas datas estariam — complicador
INTRODUÇÃO A UMA HISTÓRIA INDÍGENA

adicional — antes a sul do que a norte do con- tória, por ouvirmos falar, sem entender-lhe o
tinente, contrariando a hipótese de uma des- sentido ou o alcance, em sociedades “frias”,
cida em que a América do Sul teria sido po- sem história, porque há um tropo propriamen-
voada após a do Norte. Não há consenso so- te antropológico que é o chamado “presente
bre o assunto, no entanto, na comunidade etnográfico”, e porque nos agrada a ilusão de
arqueológica (Lynch, 1990). Mas, recentemen- sociedades virgens, somos tentados a pensar
te, uma lingúista (Nichols, 1990 e 1992), com que as sociedades indígenas de agora são a
base no tempo médio de diferenciação de es- imagem do que foi o Brasil pré-cabralino, e
toques lingúísticos, fez suas próprias avaliações que, como dizia Varnhagen por razões diferen-
e afirmou um povoamento da América que ter- tes, sua história se reduz estritamente à sua
se-ia iniciado há 30 mil-35 mil anos. Mais con- etnografia.
servadora quanto à profundidade temporal é Na realidade, a história está onipresente.
a estimativa de outro lingiiista, Greenberg Está presente, primeiro, moldando unidades
— (1987), que mantém os fatidicos 12 mil anos e culturas novas, cuja homogeneidade reside
mas estabelece a existéncia de trés grandes lin- em grande parte numa trajetória compartilha-
guas colonizadoras que teriam entrado no con- da: é o caso, por exemplo, do conglomerado
tinente em vagas sucessivas (Urban). Tudo is- piro/conibo/cambeba, que forma uma cultura
to poe em causa a hipdtese de uma migração ribeirinha do Ucayali, apesar de seus compo-
sinica de populagio siberiana pelo interior da nentes pertencerem a três famílias lingúísti-
Beringia. A possibilidade de outras fontes po- cas diversas (Arawak, Pano e Tupi), e que se
‘pulacionais e de rotas alternativas se soman- contrapõe às culturas do interflúvio (Erikson);
o & do interior da Berfngia não estd portanto

HSTORIA INDIGENA
e-se pouco da histéria indigena: nem a ori-
, nem as cifras de população são seguras,
ito menos o que realmente aconteceu. Mas
ediu-se, no entanto: hoje estd mais cla-
ra, pelo menos, a extensdo do que não se sa-
Os estudos de casos contidos neste volu-
e são fragmentos de conhecimento que per-
em imaginar mas não preencher as lacunas
de um quadro que gostarfamos fosse global.
Permitem também, e isto é importante, não in-
orrer em certas armadilhas.
A maior dessas armadilhas é talvez a ilusão
= primitivismo. Na segunda metade do século
IX, essa época de triunfo do evolucionismo,
rou a idéia de que certas sociedades te-
ficado na estaca zero da evolugao, e que
ram portanto algo como fésseis vivos que tes-
unhavam do passado das sociedades oci-
is. Foi quando as sociedades sem Esta-

“primitivas”, condenadas a uma eterna


ia. E porque tinham assim parado no
ipo, não cabia procurar-lhes a histéria. Co-
dizia Varnhagen, “de tais povos na infin-
não hd histéria: há só etnografia” (Varnha-
1978 [18541:30).
Hoje ainda, por lhes desconhecermos a his-
TISTORIA DOS ÍNDIOS NO BRASTL

€ o caso também das fusões Arawak-Tukano do igualitárias e de população diminuta. Duran-


alto rio Negro (Wright), das culturas neo- te os últimos quarenta anos, muita tinta cor-
ribeirinhas do Amazonas (Porro), das socieda- reu para explicar essas caracterfsti Uns
des indigenas que Taylor chama apropriada- acharam que as sociedades indígenas tinham,
mente de coloniais porque geradas pela situa- embutido em seu ser, um antídoto à emergên-
ção colonial. cia do Estado. Outros, principalmente norte-
Está presente a história ainda na medida americanos, acreditaram que a razão dessa li-
em que muitas das sociedades indígenas ditas mitação demográfica se fundava numa limita-
“isoladas” são descendentes de “refratários”, ção ambiental, e um acalorado debate se tra-
foragidos de missões ou do serviço de colonos vou quanto à natureza última dessa limitação:
que se “retribalizaram” ou aderiram a grupos a pobreza dos solos, do potencial agrícola ou
independentes, como os Mura. Os Mura, aliás, de proteínas animais. À pesquisa arqueológi-
provavelmente se “agigantaram” na Amazônia ca (Roosevelt) veio no entanto corroborar o
(Amoroso) porque reuniam trânsfugas de ou- que os cronistas contavam (Porro): a Amazô-
tras etnias. Os Xavante dos quais se conta aqui nia, não só na sua várzea mas em várias áreas
a história (Lopes da Silva) também foram mais de terra firme, foi povoada durante longo tem-
de uma vez contactados e mais de uma vez fu- po por populosas sociedades, sedentárias e
giram. A idéia de isolamento deve ser usada possivelmente estratificadas, e essas socieda-
com cautela em qualquer hipótese, pois há um des são autóctones, ou seja, não se explicam
contato mediatizado por objetos, machados, como o resultado da difusão de culturas andi-
migangas, capazes de percorrerem imensas ex- nas mais “avançadas”. As sociedades indígenas
tensões, mediante comércio e guerra, e de ge- de hoje não são portanto o produto da natu-
rarem uma dependência à distância (Turner, reza, antes suas relações com o meio ambien-
Erikson): objetos manufaturados e microorga- te são mediatizadas pela história.
nismos invadiram o Novo Mundo numa velo-
cidade muito superior à dos homens que os MORTANDADE E CRISTANDADE
trouxeram. Povos e povos indígenas desapareceram da fa-
Está presente a história também no fracio- ce da terra como conseqiiéncia do que hoje
namento étnico para o qual Taylor chama a se chama, num eufemismo envergonhado, “o
atenção e que vai de par, paradoxalmente, com encontro” de sociedades do Antigo e do Novo
uma homogeneização cultural: perda de diver- Mundo. Esse morticínio nunca visto foi fruto
sidade cultural e acentuação das microdiferen- de um processo complexo cujos agentes foram
ças que definem a identidade étnica. É pro- homens e microorganismos mas cujos moto-
vável assim que as unidades sociais que conhe- res últimos poderiam ser reduzidos a dois: ga-
cemos hoje sejam o resultado de um processo nância e ambição, formas culturais da expan-
de atomização cujos mecanismos podem ser são do que se convencionou chamar o capita-
percebidos em estudos de caso como o de Tur- lismo mercantil. Motivos mesquinhos e não
ner sobre os Kayapó, e de reagrupamentos de uma deliberada política de extermínio conse-
grupos lingiiisticamente diversos em unidades guiram esse resultado espantoso de reduzir
ao mesmo tempo culturalmente semelhantes uma população que estava na casa dos milhões
€ etnicamente diversas, cujos exemplos mais em 1500 aos parcos 200 mil índios que hoje
notórios são o do alto Xingu e o do alto rio Ne- habitam o Brasil.
gro (vide Franchetto e Wright). É notável que As epidemias são normalmente tidas como
apenas os grupos de língua Jê pareçam ter fi- o principal agente da depopulação indígena
cado imunes a esses conglomerados multilin- (ver, por exemplo, Borah, 1964). A barreira epi-
gúísticos. Em suma, o que é hoje o Brasil in- demiológica era, com efeito, favorável aos eu-
digena são fragmentos de um tecido social cuja ropeus, na América, e era-lhes desfavorável na
trama, muito mais complexa e abrangente, co- África. Na África, os europeus morriam como
bria provavelmente o território como um todo. moscas; aqui eram os índios que morriam:
Mas está presente sobretudo a história na agentes patogênicos da varíola, do sarampo, da
própria relação dos homens com a natureza. coqueluche, da catapora, do tifo, da difteria,
As sociedades indigenas contemporâneas da da gripe, da peste bubônica, possivelmente a
Amazônia são, como se apregoou, sociedades maldria, provocaram no Novo Mundo o que
INTRODUÇÃO A UMA HISTÓRIA INDÍGENA

Dobyns chamou de “um dos maiores cataclis- lume), ficaram associados no espirito dos Tu- Os índios
pinambá: é elucidativo que um dos milagres brasileiros fizeram
mos biológicos do mundo”. No entanto, é im- grande sucesso na
portante enfatizar que a falta de imunidade, atribuidos ao suave Anchieta fosse o de res- Corte francesa. A
devido ao seu isolamento, da população abo- suscitar por alguns instantes a indiozinhos nobreza toda os
rigine, não basta para explicar a mortandade, mortos para lhes poder dar o batismo. Os al- convidava para
jantares, embora
mesmo quando ela foi de origem patogênica. deamentos religiosos ou civis jamais consegui- torcesse o nariz
Outros fatores, tanto ecológicos quanto sociais, ram se auto-reproduzir biologicamente. Repro- para as suas
esposas francesas.
tais como a altitude, o clima, a densidade de duziam-se, isso sim, predatoriamente, na me-
Um musico da
população e o relativo isolamento, pesaram de- dida em que indios das aldeias eram compul- Corte, Gaultier,
cisivamente. Em suma, os microorganismos soriamente alistados nas tropas de resgates pa- chegou a compor
uma sarabanda em
não incidiram num vácuo social e politico, e ra descer dos sertões novas levas de indios, que que os Tupinambá
sim num mundo socialmente ordenado. Par- continuamente vinham preencher as lacunas tocavam com seus
ticularmente nefasta foi a politica de concen- deixadas por seus predecessores. maracás, conforme
ftração da população praticada por missiond- Mas não foram só os microorganismos os se vê nesta
gravura.
rios e pelos órgãos oficiais, pois a alta densi- responsáveis pela catástrofe demográfica da
dade dos aldeamentos favoreceu as epidemias, América. O exacerbamento da guerra indíge-
sem no entanto garantir o aprovisionamento. na provocado pela sede de escravos, as guer-
O sarampo e a varfola que, entre 1562 e 1564, ras de conquista e de apresamento em que os
assolaram as aldeias da Bahia fizeram os fn- índios de aldeia eram alistados contra os fn-
dios morrerem tanto das doengas quanto de dios ditos hostis, as grandes fomes que tradi-
fome, a tal ponto que os sobreviventes prefe- cionalmente acompanhavam as guerras, a de-
mam vender-se como escravos do que morrer sestruturação social, a fuga para novas regiões
2 mingua (Carneiro da Cunha, 1986). Bati: das quais se desconheciam os recursos ou se
mo e doenga, como lembra Fausto (neste vo* tinha de enfrentar os habitantes (vide, por
HISTÓRIA DOS ÍNDIOS NO BRASIL

exemplo, Franchetto e Wright), a exploração ca teria uma densidade de 17 habitantes/km?®


do trabalho indígena, tudo isto pesou decisi- (Braudel, 1979:42).
vamente na dizimação dos índios. Há poucos Como se vé no quadro, as estimativas va-
estudos demográficos que nos possam escla- riam de 1 a 8,5 milhées de habitantes para as
recer sobre o peso relativo desses fatores, mas terras baixas da América do Sul. Diga-se de
um deles, recente, é elucidativo. Maeder (1990) Ppassagem, sabe-se ainda menos da população
analisa a população das reduções guarani após da Europa ou da Asia na mesma época: a Amé-
o término das expedições dos paulistas apre- rica é até bem servida desde os trabalhos de
sadores de índios, e cobre o período de 1641 demografia histérica da chamada escola de
a 1807. Resulta dos dados, abundantes entre Berkeley, cujos expoentes principais foram
essas datas, que os períodos de descenso e Cook e Borah. Imagina-se, só como base de
mesmo de colapso populacional são aqueles comparacio, que a Europa teria, do Atlantico
em que houve maior mobilização de homens aos Urais, de 60 a 80 milhdes de habitantes
pelos poderes coloniais, com a conseqiiente em 1500 (Borah apud Denevan, 1976:5). Se as-
desestruturação do trabalho agrícola nos al- sim tiver sido realmente, então um continen-
deamentos e seus corolários de fome e de pes- te teria logrado a triste faganha de, com pu-
te: desses dados quantitativos emerge uma si- nhados de colonos, despovoar um continente
tuação semelhante àquela de que sempre se muito mais habitado.
queixavam os religiosos administradores de al- Estas estimativas dispares resultam sobre-
deamentos indígenas. tudo de uma avaliação diferente do impacto
da depopulação indigena. Os historiadores pa-
A AMÉRICA INVADIDA recem concordar com um minimo de popula-
As estimativas de população aborígine em ção indigena para o continente situado por vol-
1492 ainda são assunto de grande controvér- ta de 1650: diferem quanto & magnitude da ca-
sia. Para que se tenha uma idéia das cifras tastrofe. Alguns, como Rosenblat, avaliam que
avançadas, adapto aqui um quadro de Dene- de 1492 a esse nadir (1650), a América per-
van (1976:3), que por sua vez adapta e com- deu um quarto de sua populagio; outros, co-
pleta Steward (1949:656) (tabela abaixo). mo Dobyns, acham que a depopulagio foi da
ordem de 95% a 96% (Sdnchez-Albornoz,
Quanto às regiões que nos ocupam mais de
perto, Rosenblat (1954:316) dá 1 milhão para 1973).
o Brasil como um todo, Moran (1974:137) dá
Seja como for, as estimativas da populagio
aborigine e da magnitude do genocidio ten-
uns modestos 500 mil para a Amazônia, ao
dem portanto e com poucas exceções a ser
passo que Denevan (1976:230) avalia em 6,8
mais altas desde os anos 60. Um dos resulta-
milhões a população aborígine da Amazônia, dos laterais desta tendéncia é o crédito cres-
Brasil central e costa nordeste, com a altíssi- cente de que passam a gozar os testemunhos
ma densidade de 14,6 habitantes/km? na área dos cronistas. Ora, para a virzea amazénica e
da várzea amazônica e apenas 0,2 habitan- para a costa brasileira, os cronistas são com
te/km? para o interflúvio. Como cifra de com- efeito unânimes em falar de densas populagdes
paração, a península ibérica pela mesma épo- e de indescritiveis mortandades (vide Porro e
Fausto).
Se a populagdo aborigine tinha, realmente,
Números para Terras baixas — Total América
(em milhões) da Am. do Sul a densidade que hoje se lhe atribui, esvai-se
a imagem tradicional (aparentemente conso-
Sapper (1924) 3a5 37 a 485 lidada no século XTX), de um continente pou-
Kroeber (1939:166) 1 84
Rosenblat (1954:102) 203 1338 co habitado a ser ocupado pelos europeus.?
Steward (1949:666) 290(11no — 1549 Como foi dito com forga por Jennings (1975),
Brasil) a América ndo foi descoberta, foi invadida.
Borah (1964) 100
Dobyns (1966:415) 921,25 9004 a 112555 POLITICA INDIGENISTA
Chaunu (1969:362) 80 a 100
Denevan (1976:230, Como se deu, esquematicamente, esse proces-
291) 85 (51 na
Amazonia)
57.300 so? Durante o primeiro meio-século, os indios
foram sobretudo parceiros comerciais dos eu-
INTRODUÇÃO A UMA HISTÓRIA INDÍGENA 15

ropeus, trocando por foices, machados e facas


o pau-brasil para tintura de tecidos e curiosi-
dades exóticas como papagaios e macacos, em
feitorias costeiras (Marchant, 1980). Com o
primeiro governo geral do Brasil, a Colônia se
instalou enquanto tal e as relações alteraram-
se, tensionadas pelos interesses em jogo que,
do lado europeu, envolviam colonos, governo
e missionários, mantendo entre si, como assi-
nala Taylor, uma complexa relação feita de con-
flito e de simbiose.
Não eram mais parceiros para escambo que
desejavam os colonos, mas mão-de-obra para
as empresas coloniais que incluíam a própria
reprodução da mão-de-obra, na forma de ca-
noeiros e soldados para o apresamento de mais
indios: problema estrutural e não de alguma
índole ibérica. Quem melhor o expressou foi
aquele velho índio Tupinambs do Maranhão
que, por volta de 1610, teria feito o seguinte
discurso aos franceses que ensaiavam o esta-
belecimento de uma colônia:
“Vi a chegada dos peró [portugueses] em
Pernambuco e Potiú; e começaram eles como
vós, franceses, fazeis agora. De início, os peró
não faziam senão traficar sem pretenderem fi-
xar residência [...] Mais tarde, disseram que nos
devíamos acostumar a eles e que precisavam
construir fortalezas, para se defenderem, e ci-
dades, para morarem conosco [...] Mais tarde
afirmaram que nem eles nem os paí [padres]
podiam viver sem escravos para os servirem
e por eles trabalharem. Mas não satisfeitos com
0s escravos capturados na guerra, quiseram
também os filhos dos nossos e acabaram es-
cravizando toda a nação [...] Assim aconteceu
com os franceses. Da primeira vez que vies-
tes aqui, vós o fizeste somente para traficar [...] A Coroa tinha seus préprios interesses, fis- Paingis de carvalho
Nessa época não faláveis em aqui vos fixar; cais e estratégicos acima de tudo: queria de- da “llha do Brasil”
apenas vos contentáveis com visitar-nos uma que decoravam
certo ver prosperar a Colônia, mas queria tam- uma casa em
vez por ano [...] Regressáveis então a vosso país, bém garanti-la politicamente. Para - tanto, Rouen (c. 1500-14).
levando nossos gêneros para trocá-los com interessavam-lhe aliados indios nas suas lutas Representam
aquilo de que carecíamos. Agora já nos falais com franceses, holandeses e espanhéis, seus
o escambo de
pau-brasil praticado
de vos estabelecerdes aqui, de construirdes competidores internos, enquanto para garan- com os indios
fortalezas para defender-nos contra os nossos tir seus limites externos desejava “fronteiras brasileiros:
inimigos. Para isso, trouxestes um Morubixa- véem-se indios
vivas”, formadas por grupos indfgenas aliados abatendo as árvores
ba e vários Paí. Em verdade, estamos satisfei- (Farage, 1991). Ocasionalmente também, co- e embarcando-as
tos, mas os peró fizeram o mesmo [...] Como mo no caso do rio Madeira na década de 1730, no navio francés.
estes, vés não querfeis escravos, a princípio; convinha-lhe a presenca de um grupo indige-
agora os pedis e os quereis como eles no fim na hostil para obstruir uma rota fluvial e im-
[-]” (Abbeville, trad. Sérgio Milliet, 1975 pedir o contrabando (Amoroso). Em épocas
[I614]115-6). mais tardias, principalmente na do marqués de
LISTORIA DOS ÍNDIOS NO BRASIL

de “religies” no século XVIL O sistema do


padroado, em que o rei de Portugal, por dele-
gação papal, exercia várias das atribuições da
hierarquia religiosa e arcava também com as
suas despesas, conferia um poder excepcional
2 Coroa em matéria religiosa. Por outro lado,
o padroado se justificava pela obrigagdo im-
posta a Coroa de evangelizar suas colonias, e
era a base da partilha entre as duas poténcias
ibéricas que o papa Alexandre VI havia feito
do Novo Mundo em 1493 e contra a qual ou-
tros paises se insurgiam. Se o padroado criava
obrigações para a Coroa, ele também lhe su-
jeitava o clero. Apenas os jesuitas, talvez pela
sua ligagdo direta com Roma, talvez pela in-
dependéncia financeira que adquiriram, logra-
ram ter uma politica independente, e entra-
ram em choque ocasionalmente com o gover-
no e regularmente com os moradores — como
atestam suas expulsoes de São Paulo em 1640,
do Maranhio e Pard em 1661-2 e do Maranhão
em 1684, desta vez por influéncia tanto dos
colonos quanto das outras ordens religiosas.
Em todas as ocasides, o pomo da discordia
sempre foi o controle do trabalho indfgena nos
aldeamentos, ¢ as disputas centravam-se tan-
to na legislagio quanto nos postos-chaves co-
bigados: a direção das aldeias e a autoridade
para repartir os indios para o trabalho fora dos
aldeamentos.
De meados do século XVIT a meados do sé-
culo XVIII, quando Portugal estava interessa-
do em ocupar a Amazdnia, os jesuitas talha-
ram para si um enorme territorio missiondrio.
Foi o seu século de ouro, iniciado pela formi-
davel influéncia junto a d. Jodo IV e ao papa
que Vieira, nosso maior escritor, logrou obter.
A conversão dos Pombal, a Coroa pretendia enfim, numa visão A partir da expulsio dos jesuitas por Pombal,
Índios passava pelo mais ampla, promover a emergência de um po- em 1759, e sobretudo a partir da chegada de
Estado português
(representado aqui vo brasileiro livre, substrato de um Estado con- d. Jodo VI ao Brasil, em 1808, a politica indi-
pelo seu escudo sistente (Perrone): índios e brancos formariam genista viu sua arena reduzida e sua natureza
em que se refletem este povo enquanto os negros continuariam es- modificada: não havia mais vozes dissonantes
os raios da fé) e
justificava as cravos. quando se tratava de escravizar fndios e de
concessões Os interesses particulares dos colonos e os ocupar suas terras (Carneiro da Cunha). A par-
territoriais que o da Coroa podiam portanto eventualmente es- tir de meados do século XIX, com efeito, a co-
papa fizera, em
1498, na América. tar em conflito na época colonial: um terceiro bica se desloca do trabalho para as terras in-
Este frontispício à ator, importante, complicava ainda a situação, digenas (Farage e Santilli). Um século mais tar-
obra de frei João a saber, a Igreja, ou mais precisamente uma de, deslocar-se-d novamente: do solo, passard
José de Santa
Thereza, Istoria del ordem religiosa, a jesuitica. A Igreja, com efei- para o subsolo indigena
Regno de Brasile, to, não era monolitica, longe disso. A tradicio- O inicio do século XX verd um movimento
de 1698, é uma nal oposição entre clero secular e clero regular, de opinido dos mais importantes, que culmi-
perfeita alegoria do nará na criação do Servigo de Proteção aos In-
sistema do acrescentava-se a rivalidade entre as diversas
padroado. ordens, que significativamente eram chamadas dios (SPI), em 1910 (Souza Lima). O SPI extin-
INTRODUÇÃO A UMA HISTORIA INDIGENA

Os indios como
“guardides das
fronteiras”, no
limite entre o Brasil
e a Guiana
francesa. Ao lado
de Rondon, um
índio segura a
bandeira brasileira
enquanto outro
empunha a
bandeira francesa.

gue-se melancolicamente em 1966 em meio sertões” (Farage, 1991), garantindo as frontei-


a acusações de corrupção e é substituido em ras brasileiras, fossem agora vistos como amea-
1967 pela Fundação Nacional do Índio (Fu- ças a essas mesmas fronteiras.
nai): a política indigenista continua atrelada ao No fim da década de 70 multiplicam-se as
Estado e a suas prioridades. Os anos 70 são organizagdes não governamentais de apoio aos
os do “milagre”, dos investimentos em infra- indios, e no inicio da década de 80, pela pri-
estrutura e em prospecção mineral — é a épo- meira vez, se organiza um movimento indige-
ca da Transamazônica, da barragem de Tucu- na de âmbito nacional. Essa mobilizagio ex-
ruí e da de Balbina, do Projeto Carajás. Tudo plica as grandes novidades obtidas na Consti-
cedia ante a hegemonia do “progresso”, dian- tuição de 1988, que abandona as metas e o
te do qual os índios eram empecilhos: forçava- jargão assimilacionistas e reconhece os direi-
se o contato com grupos isolados para que os tos origindrios dos índios, seus direitos histó-
tratores pudessem abrir estradas e realocavam- ricos, a posse da terra de que foram os primei-
se os índios mais de uma vez, primeiro para ros senhores.
afastá-los da estrada, depois para afastá-los do
lago da barragem que inundava suas terras. É POLITICA INDIGENA
0 caso, paradigmático, dos Parakanã, do Pará. Por má consciéncia e boas intenções, imperou
Este período, crucial, mas que não vem trata- durante muito tempo a noção de que os in-
do neste livro, desembocou na militari: dios foram apenas vitimas do sistema mundial,
da questao indigena, a partir do inicio dos anos vitimas de uma politica e de práticas que lhes
80: de empecilhos, os indios passaram a ser eram externas e que os destruiram, Essa vi-
riscos à seguranga nacional. Sua presença nas são, além de seu fundamento moral, tinha ou-
fronteiras era agora um potencial perigo. É irô- tro, tedrico: é que a histéria, movida pela me-
nico que índios de Roraima, que haviam sido trépole, pelo capital, só teria nexo em seu epi-
no século XVIII usados como “muralhas dos centro. A periferia do capital era também o lixo
FHISTÓRIA DOS ÍNDIOS NO BRASTL

da histéria. O resultado paradoxal dessa pos- mente indigena: no século XVII, grupos Coni-
tura “politicamente correta” foi somar à eli- bo (Pano) querem aliados espanhéis (missio-
minagio fisica e étnica dos indios sua elimi- ndrios) para contestar o monopólio piro (ara-
nação como sujeitos histéricos.® wak) das rotas comerciais com os Andes (Erik-
Ora, não há dúvida de que os índios foram son). A coalizão de Karajá, Xerente e Xavante
atores politicos importantes de sua prépria his- em Goids. que em 1812 destruiu o recém-
téria e de que, nos intersticios da politica in- fundado presidio de Santa Maria no Araguaia
digenista, se vislumbra algo do que foi a poli- (Karasch), é um exemplo da amplitude que po-
tica indigena. Sabe-se que as poténcias metro- dia alcangar a polftica indigena em seu con-
politanas perceberam desde cedo as poten- fronto com os recém-chegados.
cialidades estratégicas das inimizades entre Coalizbes deste porte, no entanto, foram ex-
grupos indigenas: no século XVI, os franceses cepcionais. Ao contrério, o efeito geral dessa
e 0s portugueses em guerra aliaram-se respec- imbricação da politica indigenista com a poli-
tivamente aos Tamoio e aos Tupiniquins (Faus- tica indigena foi antes o fracionamento étnico
t0); e no século XVII os holandeses pela pri- (Taylor, Erikson). Faltam no entanto estudos
meira vez se aliaram a grupos “tapuias” contra de caso desses processos de fracionamento.
os portugueses (Dantas, Sampaio e Carvalho). Por isso é particularmente valiosa a descrição
Índio Guajajara (à No século XIX, os Munduruku foram usados feita por Turner de um processo desse tipo,
direita) e índio para “desinfestar” o Madeira de grupos hos- mostrando a articulagdo da politica externa
Urubu-Kaapor (à
esquerda) tis e os Kraho, no Tocantins, para combater ou- com a politica interna dos grupos kayapé ao
fotografados por tras etnias Jê. longo de várias décadas: corrida armamentis-
Charles Wagley no Essa politica metropolitana requer a exis- ta, fissão ao longo de clivagens já inscritas na
Maranhão (1942): a
penetração da téncia de uma politica indigena: os Tamoio e sociedade (metades, sociedades masculinas),
influência e das os Tupiniquins tinham seus próprios motivos tornam-se inteligiveis & luz da estrutura social
mercadorias
trazidas pelos para se aliarem aos franceses ou aos portugue- kayapé. E, reciprocamente, é essa histéria et-
europeus fez-se ses. Os Tapuia de Janduf tinham os seus para nográfica que ilumina a estrutura social kaya-
muitas vezes aceitarem apoiar a Mauricio de Nassau. Se pó. A histéria local é portanto, como advoga,
através de grupos nesses casos não é certo a quem cabe a ini entre outros, Marshall Sahlins (1992), elemento
indigenas
intermedidrios. ciativa, em outros a iniciativa é comprovada- importante de conhecimento etnogréfico.

OS INDIOS COMO AGENTES


DE SUA HISTORIA
A percepção de uma politica e de uma cons-
ciéncia histérica em que os indios são sujei-
tos e não apenas vitimas, só é nova eventual-
mente para nés. Para os índios, ela parece ser
costumeira. É significativo que dois eventos
fundamentais — a génese do homem branco
e a iniciativa do contato — sejam freqiiente-
mente apreendidos nas sociedades indfgenas
como o produto de sua prépria ação ou von-
tade.
A génese do homem branco nas mitologias
indigenas difere em geral da génese de outros
“estrangeiros” ou inimigos porque introduz,
além da simples alteridade, o tema da desigual-
dade no poder e na tecnologia. O homem
branco é muitas vezes, no mito, um mutante
indigena,* alguém que surgiu do grupo. Fre-
qiientemente também, a desigualdade tecno-
légica, o monopólio de machados, espingardas
e objetos manufaturados em geral, que foi da-
do aos brancos, deriva, no mito, de uma esco-
INTRODUÇÃO A UMA IISTÓRIA INDIGENA
19

Tha que foi dada aos índios. Eles


poderiam ter
escolhido ou se apropriado desses
recursos,
mas fizeram uma escolha equi
vocada. Os
Kraho e os Canela, por exemplo,
quando lhes
i dada a opção, preferiram o arco
e a cuia
à espingarda e ao prato. Os exemplos
dessa mi
tologia são legião: lembro apenas, além dos
citados, os Waurd que não consegue
m mane-
Jar a espingarda que lhes é oferecid
a em pri-
meiro lugar pelo Sol (Ireland, 1988:166), os Tu-
Pinambá setecentistas do Maranhio
cujos an-
tepassados teriam escolhido a espa
da de
madeira em vez da espada de ferro (Abbe
vil- te volume) ou até como uma empresa de “pa-
le 1975 [1612]:60-1). Para os Planta de aldeia jê
Kawahiwa, os cificação dos brancos”, como é o
brancos são os que aceitaram se banh
ar na pa- caso por e planta de
nela fervente de Bahi exemplo dos Cinta-Larga de Rondônia aldeamento oficial
(Dal
Permaneceram índios
95 que recusaram (Menéndez, 1989) Poz, 1991). O que isto indica é que as socie- Pombalino, ambas
do século XVIII.
. O tema dades indígenas pensaram o que
Tecorrente que saliento é que a lhes aconte-
opção
to, foi oferecida aos indios, que não ,sãono víti-
mi- cia em seus próprios termos,
reconstruíram
uma história do mundo em que
mas de uma fatalidade mas agentes de elas pesa-
seu des- vam € em que suas escolhas tinh
tino. Talvez escolheram mal. Mas fica am conse-
salva a qiiências.
dignidade de terem moldado a prépria
história. O ESCOPO
Assim também a etno-história do
contato DESTE LIVRO
€ amiúde contada como uma iniciativa
que Alguns esclarecimentos finais cabem
parte dos índios (vide Turner e Fran aqui. Es-
chetto nes- te livro transborda as fronteiras brasi
leiras, e
TISTÓRIA DOS ÍNDIOS NO BRASIL

pictóricas de primeira mão cedem o passo


a estereótipos, e informam assim talvez mais
sobre a Europa e sua reflexão moral do que so-
bre os índios no Brasil.
Data do fim do século XVII! a primeira, úni-
ca e valiosíssima expedição de um naturalista
português ao Brasil, Alexandre Rodrigues Fer-
reira: inaugura-se com ele uma tradição cien-
tífica que florescerá no século XIX com natu-
ralistas e viajantes de outros países (alemães,
russos, franceses, suíços, americanos...), pro-
duzindo uma ampla documentação iconográ-
fica, que contrasta singularmente com a exal-
tação de um índio genericamente Tupi (ou
Guarani) orquestrada pelo indianismo tupini-
quim. Há portanto dois índios totalmente di-
ferentes no século XIX: o bom índio Tupi-
Guarani (convenientemente, um índio morto)
que é símbolo da nacionalidade, e um índio
vivo que é objeto de uma ciência incipiente,
A 1º de outubro de isto por trés motivos. Primeiro, porque as fron- a antropologia.
1550, a cidade teiras coloniais, como se sabe, não coincidem A partir da popularização da fotografia e das
normanda de
Rouen, que fabrica com as de hoje, e parte do Brasil de hoje era viagens exóticas, multiplicam-se as imagens:
tecidos e comercia possessio espanhola. Segundo, porque apesar resta saber se elas nos revelam os índios ou se
regularmente em da diferenca sempre mantida entre institui- revelam nossos antigos fantasmas.
pau-brasil, oferece, ções portuguesas e espanholas — inclusive du-
para convencé-lo a A HISTÓRIA DOS ÍNDIOS
investir dinheiro da rante o periodo de Unido das duas Coroas —,
Coroa e estabslecer os atores e processos são semelhantes: a ex- Na realidade, essa mesma questão ultrapassa
uma Coldnia, uma
festa brasileira ao pansio jesuitica espanhola em Mojos, Maynas, o problema da iconografia, que apenas a dei-
rei da Franca nos Llanos de Venezuela dd-se com caracte- xa mais patente: uma história propriamente in-
Henrique Il e a sua risticas semelhantes à expansio jesuitica no dígena ainda está por ser feita. Não é só o obs-
mulher, Catarina Amazonas. Terceiro, porque as redes de comu-
de Medici. O rei e táculo, real, e que a epígrafe destaca, da au-
a rainha são nicagio unem, sobretudo nos séculos XVI e sência de escrita e portanto da autoria de
recepcionados por XVII, a populagdo amazénica como um todo, textos, não é só a fragilidade dos testemunhos
trezentos índios
tupis, dos quais articulando desde os Arawak subandinos às et- materiais dessa civilização a que Berta Ribei-
uns cinquenta nias ribeirinhas do Solimées, do médio Ama- ro chamou, com acerto, de civilização da pa-
autênticos, e os zonas e provavelmente do rio Branco: truncar lha, mas é também a dificuldade de adotarmos
outros marinheiros
franceses falantes estas vastas redes seria truncar a compreen- esse ponto de vista outro sobre uma trajetória
de tupi e são desses processos histéricos de que fazemos parte.
prostitutas, todos Os nossos livros de história se iniciam em
despidos para a IMAGENS
ocasião e que 1500. Isso não é só desvantagem: em outros
encenam, na Foi dada, neste livro, grande importancia & ico- países da América Latina, o culto a uma an-
margem esquerda nogratia, e tentamos mostrar documentos pou- cestralidade pré-colombiana passa em geral
do Sena, a vida
lupinambá: amor co conhecidos ou inéditos. Nos séculos XvI e por uma vasta mistificação, que dissolve o pas-
na rede, caça, XVII, o que talvez mais chame a atenção é a sado e portanto a identidade indígena em um
venda de pau-brasil, ausência de iconografia portuguesa (os portu- magma geral. Ter uma identidade é ter uma
querra.
gueses parecem muito mais fascinados, na épo- memória própria. Por isso a recuperação da
ca, pelo Oriente), que contrasta com a sua im- própria história é um direito fundamental das
portância na França, na Holanda e, subsidia- sociedades. É também, pela atual Constitui-
riamente, na Alemanha. É a época em que está ção, o fundamento dos direitos territoriais in-
mais viva a especulação sobre o significado dígenas, e particularmente da garantia de suas
dessa nova humanidade, a um tempo inocen- terras.
te e antropófaga. Rapidamente, as descrições Sobre este ponto, há porém que se enten-
INTRODUÇÃO A UMA INISTÓRIA INDIGENA

0 indio no

ma
imaginario
7] europeu. Ao lado,
a primeira gravura
Fi conhecida, de
Johann Froschauer,
que representa a

WEA AAA
antropofagia

s
brasileira. No meio,
à esquerda,
imagem da cidade
mitica do Eldorado
ou Manoa. Abaixo,
à esquerda,
.//'el'/gl .'W' S W gravura do século
XIX mostrando um
À canibalismo
“selvagem” que
À jamais existiu.
Abaixo, à direita, a
primeira gravura
S representando as
Amazonas: um
* marinheiro enviado
em terra para
seduzi-las é
atacado para ser
devorado.
HISTÓRIA DOS ÍNDIOS NO BRASIL

der. Os direitos especiais que os índios têm so-


bre suas terras derivam de que eles foram, nas
palavras do Alvará Régio de 1680, “seus pri-
mários e naturais senhores”, ou seja, derivam
de uma situação histórica (Carneiro da Cunha,
1987). Isso não significa que caiba provar a
ocupação indígena com os documentos escri-
tos, que não só são lacunares, mas cujos auto-
res tinham também interesses, no mais das ve-
zes, antagônicos aos dos índios. Ao contrário,
cabe restabelecer a importância da memória
indígena, transmitida por tradição oral, reco-
lhendo-a, dando-lhe voz e legitimidade em jus-
tiça. A história dos índios não se subsume na
história indigenista.
Durante quase cinco séculos, os índios fo-
0 índio do ram pensados como seres efêmeros, em tran-
imaginário dos ug, cae sição: transição para a cristandade, a civiliza-
antropólogos é o eh reunids, t ção, a assimilação, o desaparecimento. Hoje se
índio tradicional. 55 objectos megicos (dentro s calxinhe
Acima, o grande @ nínho mão direita), & cantigs e à x sabe que as sociedades indígenas são parte de
vura que elle E4 &ncos recebeu do plunets
antropólogo uplter e que possuem & forçã de impedir nosso futuro e não só de nosso passado. À nos-
Nimuendaju (ue uak eclipse solar se prolongs infini-| sa história comum — este livro o ilustra — foi
posando nu em
1937, no meio de por nin e disparas| um rosário de iniqúidades cometidas contra
um ritual Xerente. ninc indio,
elas. Resta esperar que as relações que com elas
Abaixo, fotos de se estabeleçam a partir de agora sejam mais
indios Canela
de Nimuendaju justas: e talvez o sexto centenário do desco-
brimento da América tenha algo a celebrar.

AGRADECIMENTOS

Este livro foi elaborado graças ao projeto es-


pecial sobre “História Indígena e do Indige-
nismo” aprovado pela FAPESP (88/2564-5) e
como parte das atividades do Núcleo de Pes-
quisa em História Indígena e do Indigenismo,
da Universidade de São Paulo. À maioria dos
capítulos deste livro foi encomendada desde
1989. A intenção era avaliar o estado atual do
conhecimento sobre história indígena e indi-
car direções promissoras para novas pesquisas.
Em agosto de 1991, na USP, foi realizado um
seminário para uma discussão dos textos, an-
tecedendo a publicação. Para sua realização,
também contamos com o apoio crucial da FA-
PESP (91/1669-0). Após o seminário, Greg Ur-
ban aceitou tratar da contribuição da lingúís-
tica e Sônia Dorta realizou um extenso catá-
logo de coleções etnográficas, aqui publicado
em anexo. Dois capítulos que reputo essenciais
para um livro que trata de História dos Povos
Indigenas, encomendados desde o início do
projeto, nunca chegaram a ser escritos: um di-
zia respeito à situação atual dos povos indige-
nas, outro aos seus prospectos de futuro.
INTRODUÇÃO A UMA HISTORIA INDÍGENA 23

O índio no
imaginário. Ao lado,
casal de indios do
Parque Nacional
do Xingu: imagem
de indios inocentes
no jardim do Eden.
Abaixo, os indios
como senhores da
terra: Adhemar de
Barros entrega
solenemente a
dois índios Carajás
perplexos uma
caixa contendo
terra do morro
do Jaraguá.

A pesquisa iconográfica ficou a meu cargo,


auxiliada por Oscar Calavia Saéz e posterior-
mente por Marta Amoroso. Beneficiou-se mui-
to dos recursos da Newberry Library, de Chi-
cago, que me concedeu uma bolsa de pesqui-
sador em junho de 1990 e da acolhida, na
Universidade de Coimbra, do professor Ma-
nuel Laranjeira Rodrigues de Areia e do fotó-
grafo Carlos Barata, que cederam fotos da ex-
traordinária coleção de Alexandre Rodrigues
Ferreira. Muitos outros acervos permitiram
que usássemos suas imagens: sua lista vem no
24 HUISTÓRIA DOS ÍNDIOS NO BRASIL

final do volume e a todos queremos agradecer. Queremos prestar, por fim, neste prefá-
Cabem no entanto especiais agradecimentos cio, uma homenagem a Miguel Menéndez,
à família de Hércules Florence, à Bosch do Bra- um dos primeiros antropólogos a se inte-
sil e à Biblioteca Mário de Andrade. Agradeço ressar por pesquisas de história indígena,
também a revisão dos textos de arqueologia rea- e que faleceu prematuramente em novem-
lizada pela professora Sílvia Maranca, do Mu- bro de 1991. Membro do projeto e do Nú-
seu de Arqueologia e Etnologia da USP. cleo de Histéria Indigena da USP desde
A publicação deste volume só se tornou suas primeiras horas, o capitulo que produ-
possível graças ao apoio da Secretaria Muni- ziu e que publicamos neste volume, sobre
cipal de Cultura de São Paulo e da FAPESP a histéria do rio Madeira, é seu dltimo tra-
(Proc. 91/4450-0). balho.

NOTAS entre os quais Marshall Sahlins, insurgiram-se contra


o esvaziamento da história local. Vide na mesma di-
(1) Citaremos apenas o nome do autor, sem a data, reção J. Hill (1988:2).
quando nos referirmos a artigos neste volume. (4) Penso por exemplo na mitologia Timbira em ge-
(2) O grande historiador Varnhagen, cujo precon- ral (Nimuendaju, 1946; DaMatta, 1970; Carneiro da
ceito contra os indios era notório, foi um dos princi- Cunha, 1973), na mitologia dos grupos de língua Ka-
pais apéstolos dessa visio: estima em menos de 1 yapó (Vidal, 1977; Turner, 1988), na mitologia de al-
milhão a população indigena. É curioso perceber guns grupos de língua Tupi como os Kawahiwa (Me-
que as notas que Capistrano de Abreu, seu editor, néndez, 1989) e na de grupos Pano do interflúvio (Kie-
acrescenta à monumental História geral do Brasil fenheim e Deshayes, 1982). Em grupos Pano ribeiri-
de Varnhagen desmentem as estimativas do autor nhos, como os Shipibo, a história é diferente: os ho-
(Varnhagen, vol. 1:23). mens são criados do barro pelo Inca, que os molda
(3) Isto não é grande novidade: a partir de meados e assa. Os brancos são assados de menos; os negros,
dos anos 80, após a voga avassaladora do modelo de assados demais; finalmente são feitos os indios, assa-
sistema mundial de Wallerstein, vários antropólogos, dos a contento (Roe, 1988).

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