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A PERSISTÊNCIA DA CULTURA ESCRAVOCRATA NAS


RELAÇÕES DE TRABALHO NO BRASIL
KÁTIA MAGALHÃES ARRUDA(*)

1. INTRODUÇÃO revolução industrial, calcado no que hoje seria conside-


rado como tema intrinsecamente vinculado aos direitos
Após extensos debates na década de 1990, ressur- humanos, ou seja, a exploração e morte de crianças nas
ge no Brasil, mais forte do que antes, a velha discussão fábricas da Inglaterra. As Factory Acts foram constituí-
sobre o que deve prevalecer nas relações entre empre- das por cinco leis aprovadas pelo parlamento inglês, de
gados e empregadores: o negociado ou o legislado, ou 1802 a 1833(1), com o objetivo de regular as condições
seja, em que medida a liberdade de contratar preva- dos empregados nas fábricas, principalmente relacio-
lece sobre a lei? Em que hipótese seria possível essa nadas às extensas horas de trabalho de crianças na in-
prevalência se na base de tais negociações não houver dústria têxtil.
igualdade? A natureza jurídica do direito do trabalho, exaus-
Esse tema, é de profunda complexidade doutriná- tivamente analisada pelos doutrinadores, foi duran-
ria e que envolve não apenas a concepção sobre o que te muito tempo polarizada entre os defensores de sua
é justiça como também o alcance dos direitos funda- natureza pública e, em oposição, os defensores de sua
mentais, e o papel da legislação e do Estado tem sido natureza privada. Hoje, admite-se com mais tranquili-
apresentado de forma superficial e maniqueísta, movido dade a existência de uma terceira natureza, ou tertium
muito mais por interesses econômicos do que por inte- genus, inaugurando o direito do trabalho, uma cons-
resses de renovação ou modernização do direito do tra- trução jurídica que foge ao dualismo ou bipolarização,
balho, e, muitas vezes, sem amparo na realidade social introduzindo, desde o debate sobre sua natureza, essa
em que estão inseridos os milhares de trabalhadores, característica que lhe é tão peculiar: a de apresentar
motivo pelo qual este texto procura contribuir com uma posições mais plurais ao conciliar aspectos antagônicos
análise sobre quem é o trabalhador brasileiro e qual a na busca de soluções mais efetivas.
ética do trabalho existente no país. A temática da natureza do direito do trabalho sem-
Sabe-se que o tema da proteção ao trabalho huma- pre merece destaque nas discussões acadêmicas, prin-
no é antiga, encontrada inclusive em relatos bíblicos, cipalmente devido à coexistência de normas cogentes
portanto, está presente historicamente há pelo menos (de ordem pública), e normas dispositivas. A própria CLT
sete mil anos, mas o direito do trabalho, enquanto con- expressa essa concepção quando subordina o contrato
junto de normas e regulações teve sua origem a partir da de trabalho individual às disposições de proteção ao tra-

(*) A autora é doutora em Políticas Públicas, professora da Escola Nacional da Magistratura do Trabalho e ministra do Tribunal Superior
do Trabalho.
(1) A primeira lei, de 1802, previa a figura do inspetor do trabalho, a Factory Act de 1819, proibia o trabalho infantil abaixo de nove
anos, mas somente com a Factory Act de 1833, considerada a mais importante e eficiente, delimitou-se uma jornada de trabalho
com horário máximo (das 5:30 às 20:30) e uma idade mínima evolutiva, que chegou a 13 anos em 1836 e jornada máxima de 12
horas para os adolescentes, além da proibição do trabalho noturno e a criação de escolas para trabalhadores abaixo de 13 anos.
Outras leis importantes surgiram na Suíça (1877) e na Alemanha (1898), relacionadas à proteção contra acidentes e mortes no
trabalho.

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balho (art. 444), de maneira que nenhum interesse priva- do capitalismo, sendo um dever para todos e um man-
do prevaleça sobre o interesse público (art. 8º), sendo o damento de Deus a ser obedecido. (WEBER, 2004, p.
direito do trabalho precursor ao admitir o tratamento de- 133).
sigual das partes envolvidas em decorrência da desigual- Como afirma Jesse Souza, a escravidão brasileira
dade econômica real –, perspectiva também existente no foi determinante no modo de vida desenvolvido pelo
direito dos consumidores. (ARAÚJO; COIMBRA, 2014) homem livre, em especial, para a naturalização da desi-
Entre os vários recortes possíveis à análise do tema, gualdade, estendendo suas raízes em diversos aspectos
o enfoque ora utilizado terá duas abordagens centrais: da sociedade, principalmente na relação entre patrão e
a primeira, referente à concepção da ética do trabalho trabalhador ou, para bem usar a linguagem do direito do
prevalecente no Brasil e à persistência de uma cultura trabalho: empregado – empregador.
de exploração do trabalho humano, advinda do período
escravocrata; e a segunda (a partir de dados oficiais), É apenas a partir da percepção da existência
analisar quem é o trabalhador brasileiro e em que con- dessa dominação simbólica subpolítica, que traz
dições ele é chamado, individual ou coletivamente, a de forma articulada uma concepção acerca do
entabular negociações de direitos que, ao final, serão valor diferencial dos seres humanos e cujo an-
definidores da sua sobrevivência. coramento institucional, no cerne de instituições
fundamentais como mercado e Estado, permite por
meio dos prêmios e castigos empíricos associados
2. AS MARCAS DA ESCRAVIDÃO NA
ao funcionamento destas instituições – sob a forma
CONSTRUÇÃO DA ÉTICA DO TRABALHO
de salários, lucro, emprego, repressão policial, im-
posto – a imposição objetiva, independentemente
São muitos os historiadores que tratam do lastro
negativo que a escravidão deixou na construção da de qualquer intencionalidade individual, toda uma
sociedade brasileira, mas poucos têm analisado em concepção de mundo e de vida contingente e his-
profundidade sua repercussão sobre a construção (ou toricamente produzida sob a máscara da neutrali-
desconstrução) da ética do trabalho no país. dade e da objetividade inexorável. Essa hierarquia
valorativa implícita e ancorada institucionalmente
Os primeiros trabalhadores brasileiros foram os es- de forma invisível enquanto tal é que define quem
cravos. Essa realidade durou da “descoberta” do Brasil
é ou não é “gente”, sempre segundo seus critérios
pelos portugueses, em 1500, até 1888, época oficial da
contingentes e culturalmente determinados e, por
abolição da escravidão, ou seja, 388 anos de trabalho es-
consequência, quem é ou não é cidadão. (SOUZA,
cravo legalizado. Dos 516 anos de história oficial, apenas
2012, p. 181).
118 registram trabalho livre em sua concepção formal.
Os dados fáticos registram, ainda, que após a aboli- Poder-se-ia afirmar que a ideia da valorização do
ção, os ex-escravos não foram inseridos na sociedade(2)·. trabalho está bem distante da realidade e corresponde
Também não tiveram voz ou voto, assim como não se muito mais à desvalorização do trabalho – “coisa de
adotou no país uma política de valorização do traba- negro e pobre”(4). Séculos de escravidão, de domínio
lho, que continuou a ser visto como “coisa de escravo, absoluto do proprietário sobre a vida de seus escravos,
negro e pobre”(3). A concepção de trabalho no Brasil é, com “direito” a cegar seus olhos, estuprar mulheres na
portanto, bem diferente da examinada no consagrado mais tenra idade, mutilar os membros dos trabalhadores
estudo de Max Weber, intitulado “A Ética Protestante e o ou chicoteá-los até à morte, como provam inúmeros re-
Espírito do Capitalismo”, em que o trabalho é apresen- latos históricos(5), construiu uma ideia de trabalho servil,
tado como ”vocação”, “meio de obter graça”, “virtude subjugado, maltratado e, por fim, bem apartado de uma
a ser seguida por todos”, pois “mesmo o rico não deve relação de igualdade. A lenta transição para o trabalho
comer sem trabalhar, mesmo que não precise disso para livre entrou em descompasso com a construção do ca-
sustentar suas próprias necessidades”. Para Weber, além pitalismo e a passagem do Brasil velho para o “novo
de ser um valor intrínseco, o trabalho estaria no espírito Brasil, aquele em que as leis de mercado regeriam livre-

(2) Como esclarece Laurentino Gomes, não houve no Brasil nenhuma preocupação com os escravos libertos, como ocorreu no
Freedmen’s Bureau, instituição criada pelo governo americano para dar assistência aos escravos libertos após a Guerra da Secessão.
(GOMES, 2013).
(3) Citação tão comum que não se consegue delimitar a autoria.
(4) Nessa expressão, percebemos todo o conteúdo discriminatório envolvendo, ao mesmo tempo, o negro, o pobre e o trabalhador.
(5) Apenas para registro, no Brasil, era comum a pena de 200 chibatadas, enquanto nos EUA, o número usual era de 25 chibatadas.

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mente e em igualdade de condições (jurídicas), as re- principalmente, seus sindicatos, no processo de cons-
lações entre patrões e empregados” (AZEVEDO, 1987, trução e manutenção do Estado Novo.
p. 60), com graves consequências para o desenvolvi- O direito do trabalho foi apresentado como um
mento do país. instrumento de promoção da cidadania e um modo de,
Para amparar a escravidão foi construído um apa- nas palavras de Oliveira Viana, “libertar o povo do jugo
rato repressivo do Estado e toda uma representação dos poderosos locais”, embora de modo claro houvesse
legislativa feita por senhores de engenho, com caracte- o desprezo à ideia do confronto ou da luta de classes.
rísticas muito expressivas, tais como, patrimonialismo, Como ocorreu com a lei que aboliu o tráfico ne-
coronelismo e clientelismo, fortíssimos até o final do greiro, em 1831(6), considerada “lei para inglês ver” –
século XIX e que estenderam sua influência para os dias pela falta de efetividade, a Consolidação das Leis do
atuais. Trabalho (CLT), apesar de não aplicada em sua inteire-
O fim da escravidão não rendeu ao Brasil homens za, logo foi tida como um instrumento de luta dos traba-
livres! O melhor conceito é de homens e mulheres que lhadores, que acreditaram no direito do trabalho como
antes eram escravizados e que, unindo-se aos demais a melhor forma de inserção na sociedade, por meio de
agregados, e, posteriormente, aos imigrantes, passaram uma profissão regulamentada. A expressão formal da
a ter em comum a pobreza extrema e o estado de ne- “cidadania regulada”(7) era a carteira de trabalho, que,
cessidade contínuo. Ressalte-se que os imigrantes que para a esmagadora maioria, era um documento mais
chegaram ao país, principalmente em São Paulo (aqui é importante que o registro de nascimento.
bom destacar que os trabalhadores estrangeiros tinham
A busca da “cidadania regulada” provocou ondas
preferência sobre os nacionais), foram vítimas de uma
migratórias do campo para a cidade. De lá para cá, o
visão semifeudal, bem diferente da visão liberal defen-
dida em outros países do mundo; por esse motivo, pre- Brasil se tornou um país urbano e industrializado, sem
valeceu a ótica da degradação do trabalho manual e do romper com suas grandes dicotomias de exclusão so-
não reconhecimento dos trabalhadores como cidadãos. cial, pauperismo e desigualdade. Tal situação é percep-
A cidadania em “negativo”, como descreve Carvalho tível em função dos baixos salários e frágeis políticas
(2013), já que o povo não tinha lugar no sistema políti- públicas, adotadas por diversos governos no decorrer
co, seja no Império, seja na República, o que perdurou da história.
imutável até 1930. Ao analisar o Censo de 1970, percebe-se que a
Mesmo no Brasil republicano, os ideais liberais só população que ganhava até dois salários mínimos (ren-
sopraram para um lado: a elite agrária. O liberalismo da bem restritiva) era mais do que 70% dos brasileiros.
econômico era compreendido como “total liberdade Esse quadro melhorou um pouco da década de 1980,
para gerir os negócios”, inclusive na relação com seus retrocedeu nos anos 90 (chamada “década perdida”),
trabalhadores, daí porque foram mantidas por muitas apresentou certa melhora entre 2000 e 2010 e retornou
décadas as relações coronelistas e autoritárias, isentan- ao mesmo índice, ou seja, a maioria esmagadora dos
do o mundo agrário de qualquer intervenção do Estado, trabalhadores brasileiros recebe salários muito baixos.
a despeito de abrigar, à época da primeira República, Tal situação, vinculada à deficiência de escolaridade,
cerca de 70% dos brasileiros. reflete na baixa qualidade de mão de obra, impossibi-
A partir de 1930, na Era Vargas, foi acentuada a litando grandes alterações na questão central da desi-
preocupação com a questão social, particularmente gualdade e da distribuição de renda.
voltada para o trabalho urbano. Construiu-se o que É importante lembrar que a igualdade de direitos
Cardoso (2010) denominou de “utopia da proteção es- para trabalhadores rurais e urbanos só veio a ser resolvi-
tatal representada pela legislação social e trabalhista”, da com a Constituição de 1988. Mesmo as Convenções
plantada no fértil ambiente de vulnerabilidade social, Internacionais que estenderam direitos aos trabalhado-
mas que ajudou a mudar a relação do Estado brasileiro res do campo não foram logo assinadas, a exemplo da
com sua população, ao incorporar os trabalhadores e, Convenção n. 12 da OIT(8), que data de 1921 e só foi

(6) A abolição da escravidão foi precedida de várias leis no Século XIX, com destaque para quatro especificamente: a de 1831, que
proibiu o tráfico de escravos (exigência da Inglaterra); a de 1850, também chamada de “Euzébio de Queiroz” e que tratava do
mesmo tema; a de 1871, chamada de ”lei do ventre livre”; a de 1888, para os escravos sexagenários. Todas essas leis foram siste-
maticamente descumpridas e burladas. (COSTA, 2010).
(7) Termo utilizado tanto no sentido de cidadania vigiada pelo Estado quanto no sentido que enquadra o cidadão ao exercício de uma
profissão ou ofício, na qual a CLT era o documento hábil.
(8) A Convenção n. 12 da OIT estende as indenizações por acidentes de trabalho aos assalariados agrícolas.

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ratificada pelo Brasil em 1956, e a exigência de lei es- dormiam ao relento ou em alojamento onde
pecial para a sindicalização do trabalhador rural, que eram criados os porcos. A fiscalização diz ter en-
só foi promulgada em 1963, com o Estatuto do Traba- contrado ainda recipientes de agrotóxicos sendo
lhador Rural. reutilizados para armazenamento de água para
A conclusão inexorável é que tão longa escravi- os trabalhadores beberem. Em alguns casos, as
dão, bem como o extenso período que se seguiu em refeições eram servidas em latas e os trabalhado-
direção ao trabalho livre, com a manutenção de políti- res comiam sentados no chão, próximos a fezes
cas salariais restritivas e da superexploração, deixaram de animais, relata a fiscalização(9).
marcas profundas em diversos aspectos da sociedade
E o que dizer do trabalho infantil, que alcança mais
brasileira: raciais, sociais, culturais e políticas, de difícil
de três milhões de crianças e jovens e que, após nove
superação, sem o enfretamento das desigualdades e da
anos em queda, teve uma alta em 2014? O Brasil pos-
mudança de ótica quanto ao tema da valorização do
sui, segundo fontes oficiais de pesquisa (IBGE), 554 mil
trabalho humano.
crianças na faixa etária entre cinco e treze anos traba-
lhando, em sua maioria (62%) na área rural, quando
3. RELAÇÕES DE TRABALHO NO BRASIL a Constituição Federal proíbe qualquer trabalho aos
MODERNO: QUEM É O TRABALHADOR menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a
BRASILEIRO? partir dos 14 anos.
Além de conviver com essas chagas, bem típicas
Em 2008, cento e vinte anos após a assinatura da
do período escravocrata, somos o segundo país do mun-
lei Áurea, o Brasil lançou o 2º Plano nacional para a
do em número de acidentes de trabalho. De 2007 a
erradicação do trabalho escravo. Esse fato é revelador: o
2013, registraram-se cinco milhões de acidentes de tra-
plano tem por objetivo o estabelecimento de estratégias
balho e, pelo menos, metade disso, com consequências
conjuntas entre Poder Executivo, Ministério Público,
graves, como afastamento do emprego, invalidez e mor-
Legislativo, Judiciário e sociedade civil para erradicar
te(10). Pelos dados relatados, a cada três horas, morre um
o trabalho escravo e implementar uma política de rein-
trabalhador em acidente laboral.
serção social, de forma a assegurar que os “trabalhado-
res libertados não voltem a ser escravizados”, e garantir, Apesar de todos esses fatores, diretamente ligados
entre outros direitos “a emissão de documentação civil a precarização do trabalho, poder-se-ia argumentar que
básica”, como carteira de identidade e carteira de tra- nosso país possui quase 100 milhões de trabalhadores
balho, direitos trabalhistas, “sensibilização do Supremo e que a maioria esmagadora desenvolve trabalho livre,
Tribunal Federal para a relevância dos critérios traba- com autonomia, qualificação técnica, não sendo certo
lhista e ambiental, além da produtividade, na aprecia- analisar as relações de trabalho a partir das situações
ção do cumprimento da função social da propriedade, degradantes e absolutamente contrárias ao estado de di-
como medida para contribuir com a erradicação do tra- reito em vigor no Brasil, e por isso é necessário expan-
balho escravo”. dir a pesquisa e analisar, afinal, quem é o trabalhador
brasileiro. Tal análise será feita a partir de três aspectos:
Somente entre 1995 e 2015, foram resgatados mais
1. Nível de escolaridade; 2. Jornada média dos traba-
de 50 mil pessoas do trabalho forçado. Sem grilhões nos
lhadores; 3. Rendimento médio. Com esses dados, será
pés, mas amarrados aos grilhões da miséria, a perpetua-
possível uma avaliação real sobre as relações fáticas e
ção da desigualdade continua em todos os Estados do
circunstanciais que envolvem o mundo do trabalho e sua
país. A reportagem publicada em 28.7.2015 e sub inti-
repercussão nas negociações coletivas celebradas pelos
tulada “Dormindo com porcos”, retrata a situação em
sindicatos que representam as categorias econômicas e
que foram encontrados trabalhadores sem alojamento
profissionais.
adequado, carteira assinada, e sem condições mínimas
de higiene, saúde e segurança.
3.1. Nível de escolaridade do trabalhador
Segundo os fiscais, nesta fazenda que não
teve o nome revelado, os trabalhadores não ti- Analisando os dados oficiais da PNAD (Pesqui-
nham equipamentos de proteção individual, não sa Nacional de Domicílios), publicados pelo IBGE e
havia banheiros disponíveis e os trabalhadores referentes aos três últimos meses do ano de 2014, só

(9) Matéria da UOL. Economia, intitulada “Vítimas de trabalho escravo no Piauí dormiam com porcos”, publicada em 28.7.2015.
(10) Entre os setores mais letais, como transporte e construção civil, o risco do trabalhador sofrer acidente é o dobro da média e a pro-
babilidade de incapacitação permanente é seis vezes maior que nas demais atividades.

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16% dos trabalhadores brasileiros têm ensino supe- Segundo o Censo de 2010, o analfabetismo foi
rior completo. O dado, em si, não seria assustador reduzido em comparação com o Censo de 2000, mas
se o índice de trabalhadores que sequer possuem o ainda é quase três vezes maior entre negros e pardos do
ensino fundamental não fosse tão alto: se somarmos que a média encontrada entre os trabalhadores brancos,
o número de trabalhadores sem nenhum nível de ins- o que demonstra a segregação em relação a toda uma
trução (5%) aos que não concluíram o ensino funda- população de descendentes de escravos.
mental (25,6%), e aos que somente tem o fundamental A pesquisa mostra que a situação educacional é
completo (10,8%), teremos mais de 40% da força to- pior no Norte e Nordeste do país, em que o percentual
tal de trabalhadores com baixíssima escolaridade, ou de trabalhadores com baixa escolaridade chega a 50%,
seja, algo em torno de 40 milhões de trabalhadores e somente 11% possui nível superior completo, como
brasileiros. mostra a tabela anexa.

INSTRUÇÃO BRASIL NORTE NORDESTE SUDESTE SUL CENTRO-OESTE

Nenhum nível de instrução 4,8% 7,5% 9,9% 2,4% 2,7% 4,4%

Ensino Fundamental completo 10,8% 10,0% 9,5% 10,7% 13,2% 11,2%

Ensino Fundamental incompleto 25,6% 30,3% 30,8% 21,9% 25,6% 25,5%

Ensino Médio completo 31,1% 29,6% 28,3% 34,0% 29,5% 28,4%

Ensino Médio incompleto 6,3% 7,7% 6,2% 5,9% 6,6% 7,3%

Ensino Superior completo 16,0% 10,5% 11,0% 19,5% 16,1% 17,2%

Ensino superior incompleto 5,3% 4,4% 4,3% 5,7% 6,2% 5,9%

Por óbvio, a escolaridade do trabalhador tem re- pesquisa citada situa-se entre 35 e 45 horas, embora
percussão na compreensão de tarefas mais complexas existam jornadas mais longas, não raro acima de 48
e pode intervir na produtividade, que anda tão em voga horas (Costa Rica, Filipinas, Peru, Turquia, Cingapura e
quando se avalia o perfil do trabalhador brasileiro. República da Coréia).
É interessante observar que nos outros países (dife-
3.2. Jornada média dos trabalhadores rente do Brasil) os acordos e convenções coletivas são
longamente utilizados para a diminuição da jornada
Em estudos realizados sobre duração do trabalho de trabalho e aumento do tempo de férias, cabendo à
em todo o mundo, pesquisadores vinculados à OIT – jornada estatutária ou legal atuar como limite para os
Organização Internacional do Trabalho – chamam a trabalhadores não sindicalizados.
atenção para as diferenças de jornadas entre os grupos
de vários países industrializados e em desenvolvimento, Primeiro, conseguiu-se uma enorme redução
concluindo que cerca de 22% dos trabalhadores ainda das jornadas semanais de trabalhadores na Finlân-
cumpre jornada superior a 48 horas por semana, en- dia (de 44,8 para 37,1 horas), na França (de 43
quanto outra proporção significativa está subempregada para 35 horas), na Alemanha (de 48,6 para 38,3
em jornadas mais curtas só que em desvantagem de di- horas) e na Holanda (de 45,2 para 38,4 horas).
reitos. De qualquer modo, há uma tendência à jornada Foram também esses países que presenciaram au-
de até 40 horas, principalmente nos países industriali- mentos consideráveis nas férias anuais remunera-
zados, a exemplo da Áustria, Canadá, Estados Unidos, das. Ademais, deve-se notar que a extensão das
Itália, Japão, Espanha e Suécia, assim como nos países férias anuais (...) corresponde ao mínimo legal e
da Europa Central e Oriental. Quase a metade dos paí- que os acordos coletivos tendem a conceder mais
ses africanos adotou a jornada de 40 horas semanais, a dias de férias anuais do que o estabelecido em lei.
exemplo da Argélia, Congo, Camarões, Costa do Mar- (LEE; MCCANN; MESSENGER, 2009).
fim, Nigéria, Madagascar e Senegal. Mesmo os países
da Ásia, como China, Indonésia, Mongólia e República da É notória a relação entre longas jornadas e baixos
Coréia adotaram o limite de 40 horas (LEE, 2009). salários. O trabalhador tem necessidade de trabalhar
Por outro lado, o abismo entre jornada prevista na mais horas para conseguir uma remuneração melhor,
lei e jornada efetivamente trabalhada persiste. A jorna- ou seja, os limites mais elevados de jornadas estão rela-
da semanal média e efetiva nos países selecionados na cionados com menor renda nacional per capita.

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Os dados sobre jornada de trabalho são varia- de aos dados pesquisados. Segundo a tabela a seguir,
dos e de difícil análise. Várias pesquisas são restritas que registra o tempo de trabalho em treze países,
a certas categorias, como, por exemplo, jornada no no período de 2000 a 2003, o trabalhador brasileiro
comércio, nos bancos, nas indústrias, além do que, teve jornada real mais extensa que todos os países
quase sempre há diferença entre a jornada legalmen- europeus. Considerando a jornada média apurada
te prevista e a jornada realmente praticada pelos tra- pelo IBGE no mesmo período, de 44,4 horas, só a
balhadores. De qualquer forma, a pecha de que o Coreia teve o número de horas trabalhadas maior que
trabalhador brasileiro trabalha pouco não correspon- o Brasil.

JORNADA DE TRABALHO SEMANAL EM PAÍSES SELECIONADOS

Países 2000 2001 2002 2003


Austrália ¹ 35,6 35,2 34,9 34,8
Alemanha¹ 39,8 40,8 41,5 40,8
Canadá¹ 31,6 31,6 31,9 -
Coréia² 47,5 47,0 46,2 -
Espanha² 35,9 35,9 35,7 35,4
EUA² 41,0 40,6 40,5 42,6
França² 39,0 38,4 38,3 38,6
Israel² 37,8 36,9 37,3 37,0
Japão² 42,7 42,2 42,2 42,0
Noruega² 35,1 34,9 34,8 34,6
R. Unido²³ 39,8 39,8 39,6 39,6
Suíça² 36,4 36,2 35,6 35,6
Itália² 39,3 39,3 38,2 38,3

No Brasil, segundo dados do IBGE, também há di- região geopolítica. A remuneração média dos homens
minuição no número de horas trabalhadas, comparadas brancos é quase o dobro do valor relativo aos negros,
com dados de dez anos atrás. Ocorre que as pesquisas pardos ou indígenas. A cidade de São Paulo é a que
revelam aumento no tempo gasto de percurso para o apresenta maior diferença, seguida de Salvador e Rio de
trabalho. Embora 65,8% da população ocupada leve Janeiro, onde brancos têm rendimento 2,3 vezes maior
até 30 minutos para chegar ao trabalho, houve um au- que negros e pardos.(12)
mento no percentual de pessoas que enfrentam um des- Durante esse mesmo período, houve redução do
locamento superior a 30 minutos, passando de 32,7%, desemprego e do trabalho informal, aliado ao aumento
em 2001, para 35,2%, em 2011, entre os homens, e do rendimento dos trabalhadores em virtude, principal-
de 27,9% para 32,6% entre as mulheres. Além disso, mente, da política de valorização do salário mínimo,
homens pretos e pardos demoram mais no trajeto entre reduzindo o grau de desigualdade no mercado de tra-
a residência e o local de trabalho: 36,6% levavam mais balho, cujos efeitos podem ser observados na melho-
de 30 minutos nesse trajeto, versus 31,8% dos brancos, ra dos indicadores que medem as condições de vida
por residirem em locais mais distantes do trabalho.(11) da população, como, por exemplo, o índice de Gini da
população ocupada, que sofreu redução progressiva,
3.3. Rendimento médio dos trabalhadores passando de 0,543, em 2005, para 0,498 em 2012 (SÍN-
TESE, 2013).
Segundo o Censo de 2010, a desigualdade de No entanto, o ano de 2016 apresentou outra rea-
rendimentos se manifesta por raça, sexo e também por lidade, com o crescimento da crise econômica e do

(11) Dados extraídos da Síntese de Indicadores sociais do IBGE 2012.


(12) Matéria disponível em: <ultimosegundo.ig.com.br>. Acesso em: 16 nov. 2011.

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desemprego, que chegou a cerca de 10% dos trabalha- (qualificação), ambiente macroeconômico, investimen-
dores. Ao aumentar a procura por emprego, há estag- to de capital e tributos.(13)
nação de salários ou, o que é pior, diminuição de seus
valores, fenômeno comum na economia de mercado. RANKING DOS SALÁRIOS
O fato é que, analisando o gráfico abaixo, vê-se que já China 767,68
em 2010, os trabalhadores que recebiam até dois salá-
rios mínimos constituíam percentual superior a 70%; Brasil 788,00
trabalhadores sem rendimento: 6,6%; até meio salário Chile 938,92
mínimo: 8,1%; entre meio e um salário mínimo: 24,4%
e entre um e dois salários mínimos: 32,7%, ou seja, exa- Hungria 968,211
tos 71,9%. Se for considerado o rendimento até cinco Letônia 975,58
salários mínimos, o percentual sobe para 90,8%. Nessa
República Tcheca 1.004,64
perspectiva, menos de 10% dos trabalhadores brasilei-
ros ganham acima de R$ 4.400,00, considerando o va- Eslováquia 1.073,14
lor do salário mínimo de 2016. Estônia 1.082,29
RENDIMENTO POPULAÇÃO Polônia 1.184,40

Sem rendimento** 6,6% Croácia 1.195,58

Até meio salário mínimo 8,1% Turquia 1.350,01


Argentina 1.438,85
Entre meio e 1 salário mínimo 24,5%
Portugal 1.539,59
De 1 a 2 salários mínimos 32,7%
Taiwan 1.605,25
De 2 a 3 salários mínimos 10,6% Grécia 1.785,87

De 3 a 5 salários mínimos 8,3% Espanha 1.977,39


Venezuela 2.036,27
De 5 a 10 salários mínimos 6,1%
Malta 2.141,16
De 10 a 20 salários mínimos 2,2%
Eslovênia 2.389,14
Mais de 20 salários mínimos 0,9%
Chipre 2.817,00

Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010, com valor do Andorra 2.932,85


salário mínimo em R$ 510,00. Áustria 3.048,70
Quando comparado o valor do salário mínimo no EUA 3.297,10
Brasil (dados de 2015) com outros países do mundo, ve-
mos que a remuneração brasileira está bem abaixo dos Islândia 4.063,68
países desenvolvidos e é quase igual à remuneração da Reino Unido 4.350,31
China, país considerado como de baixíssima proteção
França 4.406,53
social. A questão referente ao custo da mão de obra no
Brasil merece uma rápida reflexão: se os salários são Germany 4.491,74
baixos, significa que sobre essa base incidirão todos os Irlanda 4.571,01
demais direitos, o que transforma em falácia a afirma-
ção de que os direitos trabalhistas são impactantes para Holanda 4.578,54
o chamado “custo Brasil”, aliás, pesquisa sobre a com- Bélgica 4.754,08
petitividade do mercado brasileiro, divulgada pela CNI
em 2015, mostra que o fator “disponibilidade e custo Nova Zelândia 5.044,48
de mão de obra” é a maior vantagem que o Brasil pos- Luxemburgo 5.856,64
sui (do ponto de vista dos investidores), já que perde
Austrália 5.991,87
nos demais fatores, tais como, infraestrutura, educação

(13) Disponível em: <http://www.portaldaindustria.com.br/estatisticas/competitividade-brasil-comparacao-com-paises-selecionados>.

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É interessante observar que, em 1996/1997, em pes- trabalho forçado, de 1930 e 1957, Convenções n. 29 e
quisa realizada nas regiões Nordeste e Sudeste, os bra- 105), as de idade mínima, de 1973 (Convenção n. 138)
sileiros definiram o valor de R$ 1.000,00 (mil reais) e piores formas de trabalho infantil, de 1999 (n.182), a
como a fronteira para uma “vida boa” e abaixo de de negociação coletiva, de 1949 (n. 98), a de igualdade de
R$ 200,00 (duzentos reais) como uma “vida má”. Em- remuneração, de 1951(n. 100) e a Convenção n. 111,
bora a diferença entre os valores não seja tão grande sobre a discriminação no emprego, de 1958. A única
(cerca de cinco vezes), a pesquisa expressa a diferença Convenção não ratificada pelo Brasil entre as essenciais
entre miséria e dignidade (R$ 200,00 para R$ 1.000,00). ao trabalho decente é a de n. 87, relativa à liberdade sin-
Dez anos após a pesquisa, o valor do salário mínimo dical e direito a livre sindicalização, em decorrência da
ainda é inferior ao valor considerado como elementar controvérsia referente a pluralidade e unicidade sindical.
para a dignidade do trabalhador(14), o que comprova o Logo, no aspecto normativo, não há lacuna subs-
quanto o rendimento do brasileiro é menor do que o es- tancial que impeça a aplicação do direito do trabalho.
perado como “mínimo de cidadania”. (SANTOS, 2006). Entretanto, os direitos trabalhistas continuam a ser vistos
como “menores e negociáveis”, expressão de recusa à
4. UMA QUESTÃO FINAL: HÁ IGUALDADE NAS sua essencialidade, direitos que sempre podem ser flexi-
NEGOCIAÇÕES COLETIVAS E NAS RELAÇÕES bilizados, ou melhor, quebrados, combatidos, como se
DE TRABALHO NO BRASIL? não estivessem positivados: constantemente sob amea-
ça, nunca efetivados e sempre descontruídos.
Os dados demonstram que a relação de trabalho no Da mesma forma que é inquestionável a importân-
Brasil é marcada por extrema desigualdade, facilmente cia da negociação entre empregados e empregadores
comprovada pelos baixos salários e escolaridade, pela para firmar novas condições de trabalho, também é im-
assimetria de direitos negociados em diferentes catego- prescindível o respeito à lei como padrão civilizatório
rias, pela grande diferenciação de renda e, sobretudo, mínimo. Logo, o equilíbrio deve ser buscado como a
pela continuada cultura de exploração herdada do pe- melhor alternativa e solução dos conflitos inerentes ao
ríodo escravocrata, que se reflete na desvalorização do mundo do trabalho. A questão é: diante de tamanha
trabalho, especialmente o manual, causando a prática desigualdade, como aquilatar a solução mais justa e
reiterada de descumprimento da legislação trabalhista. equilibrada? Como reconhecer as negociações coletivas
A informalidade ainda é um problema grave no previstas no inciso XXVI do art. 7º da Constituição Fede-
Brasil, abrangendo 43,1% dos trabalhadores. Conforme ral, sem compreender que o texto presente no caput do
os relatórios do IBGE (ano de 2012), os percentuais são mesmo artigo preceitua direitos aos trabalhadores sob a
ainda mais elevados nas Regiões Norte e Nordeste, on- perspectiva de “melhoria de sua condição social”?
de Pará e Maranhão possuem, respectivamente, 67,5% Michael Sandel, professor da Universidade de Har-
e 74,5% de seus trabalhadores inseridos na informalida- vard, demonstra que a visão liberal costuma ser mais
de. O quadro é diferente em alguns Estados, a exemplo de exigente para as relações de trabalho do que para as
Santa Catarina e do Distrito Federal, que possuem ape- demais relações sociais em que há escolhas e consen-
nas 26,9% de seus trabalhadores nestas condições. Os timento. Ao analisar o trabalho em situação de alta pe-
jovens de 16 a 24 anos e os idosos de 60 anos ou mais riculosidade, lembra que para a concepção liberal de
de idade apresentam os maiores percentuais de trabalha- justiça, não haveria problema o trabalho com risco à vi-
dores na informalidade, cujas taxas foram de 46,9% e da desde que tenha sido contratado mediante livre esco-
70,8%, respectivamente. lha do trabalhador em troca do salário, ou seja, havendo
livre escolha, o trabalho seria justo. Sandel esclarece,
O descumprimento do direito do trabalho não ocor-
no entanto, que o conceito de justiça vai muito além:
re por conter normas muito avançadas ou fora da rea-
lidade. Nosso conjunto normativo, em especial, a CLT, Para Aristóteles, nem mesmo o consentimen-
possui mais de 70 anos. A Constituição da República, to sob condições justas é suficiente. Para que o
que elevou grande parte dos direitos trabalhistas ao pa- trabalho seja justo, deve estar em conformidade
tamar de direitos fundamentais é de 1988, portanto, per- com a natureza dos trabalhadores que o desem-
to de completar 30 anos. O Brasil é signatário das mais penhem. Alguns trabalhos não passam nesse tes-
importantes Convenções da Organização Internacional te. São perigosos, repetitivos e arriscados demais
do Trabalho, em especial, sete das oito Convenções fun- para se adequar à natureza dos trabalhadores que
damentais referentes ao trabalho decente: as duas sobre os executam. Em casos assim, a justiça requer que

(14) O valor de R$ 1.000,00, atualizado para os dias de hoje estaria próximo de R$ 4.000,00, dependendo do índice escolhido.

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o trabalho seja reorganizado para adequar-se à o poder da organização nem superestimar uma repre-
nossa natureza. Caso contrário, será um trabalho sentação que muitas vezes é fragilizada.
tão injusto quanto a escravidão. (SANDEL, 2012, Outro dado muito importante para avaliar a ne-
p. 251) cessidade da lei na garantia de direitos essenciais como
contraponto a tese que defende o predomínio do ne-
Nunca é demais lembrar que os direitos funda- gociado sobre o legislado é o baixo índice de sindica-
mentais devem prevalecer até mesmo quando a pessoa lização. Lembre-se que o Brasil possui mais de 43% de
ou coletividade não conhece ou discorda de sua dimen- trabalhadores na informalidade e sem organização sin-
são, como no famoso caso “de arremesso do anão”(15), dical que os represente. Mesmo entre os trabalhadores
conhecido por todos os estudantes de direito. Por que formais, menos de 1/3 é sindicalizada, segundo dados
seria diferente para os direitos trabalhistas? do Ministério do Trabalho. Aliás, a taxa de sindicaliza-
Frequentemente, a Seção de Dissídios Coletivos ção é oscilante, por exemplo, em 2009, era de 17,8%,
do Tribunal Superior do Trabalho julga processos em enquanto em 2013 era de 16%, ou seja, considerando o
que a saúde e a segurança do trabalhador são amea- número total de pessoas ocupadas (formais e informais),
çadas por condições estabelecidas em convenções e em torno de 100 milhões, apenas 16 milhões delas se-
acordos coletivos, a exemplo de cláusulas que pror- riam sindicalizadas. Calcula-se que somente a metade
rogam a jornada de trabalho em atividades insalubres dos sindicatos existentes celebraram alguma vez em sua
ou perigosas além de dez horas, sem autorização do história um acordo ou convenção coletiva, no universo
Órgão competente(16) e que restringem a estabilidade de mais de 15 mil sindicatos existentes no Brasil, alguns
da gestante, que extrapolam a jornada diária e semanal criados apenas para receber o imposto sindical. .
até 72 horas para os trabalhadores em turno ininter- Será que por trás de todo o preconceito e a discrimi-
rupto de revezamento (cuja jornada é de seis horas nação que circunda o tema do trabalho no Brasil, ainda
diárias e, no máximo, 36 semanais)(17); cláusulas que persiste a visão de que os trabalhadores são “subalter-
alteram a Constituição Federal e permitem trabalho de nos”, “inferiores”? A historiadora Emília Viotti da Costa
adolescentes abaixo de 16 anos(18) ou que impedem di- narra o triste relato de escravos que foram abandonados,
sem que a sociedade lhes assegurasse condições míni-
reitos fundamentais, como o direito de greve, de livre
mas de sobrevivência e para os quais a abolição repre-
reunião ou de acesso à Justiça(19).
sentara apenas o “direito de ser livre para escolher entre
Sem dúvida há diferença na análise de acordos in- a miséria e a opressão em que viveu (e ainda vive) grande
dividuais (realizados diretamente pelos trabalhadores) número de trabalhadores brasileiros” (COSTA, 2010).
e coletivos (realizados pelos sindicatos), uma vez que Nessa sociedade tão desigual, com trabalhadores
nestes últimos os entes sindicais assumem a direção das que recebem remuneração abaixo dos mínimos essen-
negociações, mas salvo exceções ocorridas nos grandes ciais, que trabalham em sobrejornada e que são ex-
centros urbanos, que possuem alguns sindicatos fortes postos a acordos e convenções coletivas em situação
e atuantes, parece um contrassenso acreditar que “sin- tão adversa, é possível falar em “igualdade de negocia-
dicatos são fortes por si mesmos”, a despeito de repre- ção” ou “plena liberdade de contratar”, na perspectiva
sentarem um conjunto de trabalhadores vulneráveis às conceitual de justiça e de direito do trabalho? Não há
ameaças constantes de redução de salários e desempre- liberdade onde reina a necessidade(20), por isso é tão de-
go? Uma solução mais próxima do conceito de justiça licado atribuir ao trabalhador, principalmente o hipos-
exige uma análise mais realista, considerando a equida- suficiente, um status de igualdade de condições com o
de e a proporcionalidade de cada caso, sem subestimar seu empregador e o reconhecimento amplo do negocia-

(15) Prática (para alguns, esporte ou brincadeira) em que anões são arremessados como se fossem dardos, levando à vitória a quem
lançar o anão mais longe. Em uma cidade francesa, a Prefeitura entendeu que a prática era ofensiva aos direitos humanos e inter-
ditou o estabelecimento. Para surpresa de todos, o próprio anão contestou a interdição, alegando que precisava daquele emprego
para sua sobrevivência. A discussão chegou ao Comitê de Direitos Humanos da ONU, que confirmou a decisão do Estado francês
em interditar o estabelecimento. O caso é emblemático ao difundir a tese que a dignidade humana é princípio universal, acima da
livre iniciativa e dos interesses individuais, até mesmo contra a vontade daquele que se quer proteger.
(16) Processos TST-RO 262800-35.2009.5.04.0000 /RO 2804-85.2012.5.04.0000/ RO 2961-92.2011.5.04.0000
(17) Processo TST-RO 573-74.2012.5.08.0000
(18) Processo TST RO 386700-55.2009.5.04.0000
(19) Processo TST E-RR 205900-57.2007.5.09.0325
(20) A frase original, atribuída à Franklin Delano Rossevelt, é “Homens necessitados não são homens livres”.

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do sobre o legislado, na dúvida se as escolhas foram fei- GAMA, Aliny. Vítimas de trabalho escravo no Piauí dormiam
tas livremente ou sob pressão (financeira, por exemplo), com porcos. Disponível em: <http://economia.uol.com.br/
o que retiraria o consentimento ou a opção voluntária empregos-e-carreiras/noticias/redacao/2015/07/28/vitimas-
das matérias supostamente acordadas (SANDEL, 2012). -de-trabalho-escravo-no-piaui-dormiam-com-porcos-diz-
-mpt.htm>. Acesso em: 28 jul. 2015.
Muitas perguntas foram feitas nesse trabalho, com
GOMES, Laurentino. 1889. 1. ed. São Paulo: Globo, 2013.
a perspectiva de que as respostas sejam encontradas por
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA.
cada um dos leitores, sempre com o objetivo de inves-
Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições
tigar o real valor dado ao trabalho, em contraposição a de vida da população brasileira: 2012. Rio de Janeiro: IBGE,
sua importância no alcance de um país desenvolvido e 2012.
justo.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA.
Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS de vida da população brasileira: 2013. Rio de Janeiro: IBGE,
2013. (Estudos & Pesquisas: informação demográfica e socioe-
ARAÚJO, Francisco Rossal; COIMBRA, Rodrigo. Direito do conômica n. 32). Disponível em: <http://biblioteca.ibge.gov.
trabalho I. São Paulo: LTr, 2014. br/visualizacao/livros/liv66777.pdf>. Acesso em: 9 fev. 2017.
AZEVEDO, Célia. Onda negra, medo branco. O negro no LEE, Sangheon; McCANN, Deirdre; MESSENGER, Ion. Dura-
imaginário das elites no Século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Ter- ção do trabalho em todo o mundo. Brasília: OIT, 2009.
ra, 1987. SANDEL Michael. Justiça. O que é fazer a coisa certa. São
BRASIL. Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direi- Paulo: Civilização Brasileira, 2012.
tos da Pessoa. Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho SANTOS, Wanderley Guilherme. Horizonte do desejo: ins-
Escravo. Brasília: OIT, 2003. tabilidade, fracasso coletivo e inércia social. Rio de Janeiro:
CARDOSO, Adalberto. A construção da sociedade do traba- FGV, 2006.
lho no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010. SEM, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo:
CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil. 16. ed. Rio de Companhia das Letras, 2010.
Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania. 2. ed.
COSTA, Emília Viotti. Abolição. 9. ed. São Paulo: Unesp, Belo Horizonte: UFMG, 2012.
2010. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo.
São Paulo: Martin Claret, 2004.

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