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Ao longo dos últimos séculos, a humanidade tem experimentado diversas revoluções, dentre as
quais destacamos a revolução tecnológica, que se iniciou na década de 1970. Os notáveis avanços
nas áreas da microeletrônica, da automação industrial, da computação em nuvens e das comuni-
cações nos fizeram experimentar uma veloz conexão com todos os cidadãos ao redor do mundo.
Dessa forma, a sensação de ubiquidade e interatividade proporcionada pelo acesso à informação
em tempo real e as outras múltiplas possibilidades de conhecimento disponibilizadas pela con-
vergência de tecnologias nos permitem experimentar a impressão de viver mundos e existências
virtuais concomitantemente, como se existisse um espaço ou um lugar ainda não descoberto pe-
las novas tecnologias de informação e comunicação, as TICs. Assim, aquela informação antes de
conhecimento restrito a pequenos grupos e apenas compartilhada por meio de material impresso
hoje é de livre acesso e ao alcance de um simples clique ou toque no PC de sua casa, do trabalho,
da lan house, do seu celular, dentre infinitas outras possibilidades.
Assim, se por um lado temos consciência e acesso à mais avançada e revolucionária tecnologia
via mídias digitais, por outro precisamos, ainda, retomar as velhas discussões sobre um dos pri-
meiros aparatos tecnológicos conhecidos da civilização: a escrita. Nosso foco neste capítulo será
a escrita, restrita aqui ao meio acadêmico, uma habilidade considerada por muitos estudiosos tão
1. STREET. Literary in
problemática e deficitária em qualquer nível da educação, do ensino fundamental ao superior. Theory and Practice FREIRE.
Educação como prática de
Desse modo, partiremos da escrita para levantar questões relevantes e pertinentes sobre o que é e liberdade ./(,0$1 0RGHORV
como se deve fazer pesquisa e sobre o papel da escrita na formação do jovem pesquisador nos dias GH OHWUDPHQWR H DV SUiWLFDV
GH DOIDEHWL]DomR QD HVFROD
de hoje. Sendo assim, o principal objetivo deste trabalho é expor e discutir: 1) o que significa para 2V HVWXGRV GH OHWUDPHQWR
H D IRUPDomR GR SURIHVVRU
um pesquisador a produção de um artigo científico; 2) o texto como identificador do pesquisador GH OtQJXD PDWHUQD SOARES.
frente a sua comunidade; 3) adequação da linguagem e do tipo de informação relevante para a área; Letramento TERZI. A
FRQVWUXomR GR FXUUtFXOR
4) a relevância do trabalho para aquela área; 5) relação do trabalho com o que já foi feito na área QRV FXUVRV GH OHWUDPHQWR
(citações) e 6) elencar o papel exercido pelo letramento acadêmico (a escrita formal científica) na GH MRYHQV H DGXOWRV
QmR HVFRODUL]DGRV ROJO
formação desse jovem pesquisador. Para atender aos objetivos acima citados, nos apoiaremos na [2002 2009@ +$0,/721.
6XVWDLQDEOH /LWHUDULHV DQG
proposta dos NLS de Street e Freire, assim como nos trabalhos de Kleiman, Soares, Terzi, Rojo, WKH (FRORJ\ RI /LIHORQJ
Hamilton etc.1 Learning.
Quando o Prof. Brian Street foi ao Irã com o objetivo de desenvolver sua pesquisa sobre migração,
não tinha ideia de quão impactante discussão ele desencadearia no futuro próximo. Suas atentas
observações ao movimento dos moradores da aldeia, em suas distintas formas de comunicação
mediadas pela linguagem, aquela dos agricultores ao negociar seus produtos com a cidade, ao re-
ceber o valor das mercadorias em cheque, nas trocas deste por dinheiro em banco, ou ao perceber
os estudos do Alcorão que estavam sendo realizados naquela vila, ele se conscientizou de que todas
estas atividades, na verdade, eram mediadoras de diversas formas de letramentos. Um elemento
2. +($/7+. Ways with adicionalmente importante desta sua visão de etnógrafo foi detectar que naquele lugar existiam
Words.
práticas e eventos de letramentos conforme descreveram Health2 e Street3 acontecendo diariamen-
3. STREET /LWHUDF\ te, e que tais situações por eles registradas rompiam de vez com a dicotomia estabelecida e, por
SUDFWLFHV DQG OLWHUDF\
P\WKV si, já propalada estreita relação de dependência entre oralidade e escrita. As cenas do cotidiano da
vila registradas por Street eram, assim, a prova cabal de que havia ali, nas práticas interpretativas
da escrita durante as negociações de compra e venda de produtos, um entremeamento de códigos,
4. Ver BUZATO. Letramento registros e modalidades linguísticas e semióticas,4 as quais eram construídas e renovadas de forma
H LQFOXVmR
natural nas negociações quer fossem elas de natureza mercantilista ou de qualquer outra natureza.
Ao perceber essas múltiplas formas de expressão do letramento, Street procurou a literatura atuali-
zada para verificar se já havia algum conceito ou caracterização específica desses letramentos. Não
encontrando nada que lhe satisfizesse, elaborou a distinção entre os dois modelos de letramento:
5. STREET. Literary in autônomo e ideológico.5 Essa nova proposição continha conceitos inovadores e deu início aos
Theory and Practice.
denominados Novos Estudos do Letramento. As proposições de Street impactaram o mundo cien-
tífico internacional, e, no Brasil, suas ideias foram difundidas inicialmente por meio das produções
6. ./(,0$1 0RGHORV GH acadêmicas de Kleiman e outros autores.6
OHWUDPHQWR H DV SUiWLFDV GH
DOIDEHWL]DomR QD HVFROD
Dentro da perspectiva streetiana, o modelo autônomo fora caracterizado como sendo repre-
sentante fiel da escola tradicionalista, a saber, aquela que concebia a oralidade e a escrita como
sendo faces da mesma moeda, mas que, simultaneamente, se caracterizava como práticas dicotô-
micas e diversas, atribuindo ao acesso à escrita uma relação direta de progresso, de civilização e
7. FREIRE. Educação como de mobilidade social. Sobre o modelo ideológico, Street defendia a mesma perspectiva de Freire7
prática de liberdade.
em seus trabalhos quando os caracterizava como sendo um representante legítimo da escola tra-
dicionalista em que as práticas de letramento estariam ligadas às estruturas culturais e de poder
8. +$0,/721 6XVWDLQDEOH da sociedade, visão compartilhada também por Hamilton.8 Na conceituação desta autora, há
/LWHUDFLHV DQG WKH (FRORJ\
RI /LIHORQJ /HDUQLQJ mudanças sutis na denominação das esferas do letramento. O que Freire e Street denominam
letramento autônomo a autora caracteriza como letramentos locais ou vernaculares, conjugando
desta forma a mesma concepção de ambos os autores de que este letramento não é regulado,
tampouco sistematizado por instituições ou organizações locais, ou seja, pressupõe a partir des-
sas visões que a escrita não tenha o mesmo efeito sobre outras práticas sociais e cognitivas do
indivíduo; já o letramento ideológico, denominado por Hamilton dominante, seria exercido por
meio de agentes sociais, como professores, coordenadores, gestores, institucionalizados em di-
Letramento.
9. SOARES.
versas agências de letramento,9 tais como escolas, igrejas, local de trabalho, onde são valorizados
socialmente e são detentores de um status culturalmente estabelecido. Ademais, possuem uma
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A produção bibliográfica é o principal fator de produção acadêmica na atualidade. Cada vez mais
cedo na carreira do pesquisador lhe é solicitado que produza textos em diversos gêneros acadêmi-
cos, tais como resenhas, fichamento, memorial, resumos, resumos estendidos, monografias, proje-
tos, relatórios e artigos. O artigo, na atualidade, tem sido alçado a um patamar elevado de grande
destaque nessa produção, em função de seu peso no currículo.
Escrever um livro, embora muito mais glamouroso e muito mais trabalhoso, tem menos im-
pacto do que escrever um artigo. É preciso compreender um pouco o contexto de produção cien-
tífica para entender o status que um artigo tem face a outros gêneros acadêmicos.
A produção de novos conhecimentos é, nos dias de hoje, muito acelerada, tanto pela quan-
tidade de pessoas que trabalham nessa frente quanto pelas facilidades de divulgação e geração de
pesquisas que provêm das novas tecnologias. Essa velocidade, que começou nas áreas de exatas,
mas que atinge, atualmente, todas as áreas do conhecimento, conduziu a uma necessária mudança
de perspectiva em relação à produção bibliográfica.
O livro é um instrumento de divulgação do pensamento científico que denota estabilidade e
completude em virtude, principalmente, do montante de tempo gasto em sua preparação e por sua
organização em torno de capítulos, que são, cada um, uma detalhada discussão em torno de uma
parte do tema discutido no livro. Além disso, há que se considerar que, há alguns anos, a publica-
ção de um livro era uma empreitada cara e complicada, que exigia apoio institucional e, portanto,
uma garantia em relação ao conteúdo científico.
O artigo, por sua vez, caracteriza-se pela especificidade e contexto histórico estritos, ou seja,
por uma certa efemeridade do conteúdo – com o que não estamos lhe conferindo, de modo algum,
menor importância ou rigor científico. Embora os periódicos científicos sigam geralmente normas
bastante rígidas no processo de avaliação dos artigos submetidos, estes são consideravelmente mais
fáceis de se publicar.
99
a) aquele que coloca o pesquisador em posição de igualdade para com seus pares, sem um con-
fronto competitivo que, no fim das contas, teria o efeito contrário;
b) aquele que não ultrapassa os limites da área, exceto com informações cuja relevância seja indi-
cada no próprio texto;
c) aquele que destaca os avanços que traz para as pesquisas no campo estudado; e, finalmente,
d) aquele que deixa o leitor saber, no conjunto do conhecimento que o texto representa, qual
conhecimento advém de outras pesquisas já publicadas, qual conhecimento fora construído
a partir da pesquisa desenvolvida e em desenvolvimento e que também acrescenta, quando
houver, tópicos inovadores para futuras pesquisas.
Essa especificidade do texto científico está na base da construção da ciência como um todo: é a
100
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Existem diversos recursos textuais que permitem ao autor colocar-se no texto de forma direta ou
difusa. Para o texto científico, configura quase uma premissa o autor afirmar-se “fora do texto”,
ou seja, não foi o autor quem disse, mas as provas, outros autores mais conceituados etc. Isso, que
parece ser óbvio, não é uma regra geral e talvez seja uma das mais importantes diferenças entre as
áreas de exatas e as de humanas. Antes de entrarmos nessa diferenciação, cabe discutir rapidamente
algumas dessas estratégias discursivas: pessoas, figuras e objetividade.
O uso da primeira pessoa do singular já foi proibido em textos científicos, pois, ícone de
subjetividade, é a estratégia pela qual o texto simula uma completa integração entre o narrador do
texto e o autor propriamente dito. Essa integração, se por um lado personifica o autor no texto,
por outro lado produz um efeito de que o “dito” está sendo dito por uma pessoa, é uma opinião,
não uma afirmação isenta de intenções e/ou tendências.
Dito assim, é possível concluir que qualquer texto pode ser objetivo, bastando para isso usar a
terceira pessoa. Não é uma conclusão totalmente desconexa: a verdade de um texto é sempre um
efeito de sentido. A escolha da primeira ou da terceira pessoa nada mais é do que a escolha do efeito
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c) Terminologia
Metalinguagem em alguns casos, jargão científico em outros, os termos técnicos de cada área são
ferramentas na construção do conhecimento específico. Nenhum texto científico consegue evitar
completamente o uso dessa terminologia sem comprometer com maior ou menor intensidade o
resultado esperado.
No presente capítulo, por exemplo, fizemos uso de uma terminologia semiótica altamente
metalinguística, sem, no entanto, dar maior destaque à especificidade científica dos termos. Essa
estratégia de não focalização na teoria torna o texto mais facilmente legível por pesquisadores de 20. LARA MATTE. Ensaios de
VHPLyWLFD S 69 82.
outras áreas, mas pode criar embaraços ao permitir uma leitura mais ampla e menos específica dos
termos. Evitou-se, por exemplo, falar em isotopias quando foi citada a figurativização.20 Evitou-
-se falar em enunciação enunciada, termo técnico que foi parafraseado em “textualizar o autor”.21 21. LARA MATTE. Ensaios de
VHPLyWLFD S 115 128.
Esse tipo de estratégia de evitar a terminologia é válido em algumas situações, como esta, em que o
público-alvo é interdisciplinar, mas na maioria dos textos científicos poderia denotar, para o leitor
especialista, um desconhecimento da teoria em si.
Por outro lado, o simples uso dos termos técnicos não é suficiente: é necessário conhecer pro-
fundamente o significado do termo para a área do conhecimento em questão a fim de não utilizar
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t Fonética acústica (textos 1 e 2): a terminologia da área inclui tanto termos específicos quanto
termos das áreas com as quais interage, como a física acústica e a fisiologia;
t literatura (textos 3 e 4): apesar de a linguagem aparentar uma certa coloquialidade, faz refe-
rências, com termos como epistemológicos e ideológicos, a estudos de epistemologia, enquanto
a figura é mais um termo específico da Teoria Literária, não podendo se confundir com o
que seja, por exemplo, “figura” para a semiótica ou “figura” no sentido coloquial; note que a
dificuldade de percepção da terminologia é tão mais difícil quanto mais longe do horizonte
idealizado da escrita científica das exatas;
t engenharia da computação (textos 5 e 6): o primeiro texto, que faz parte de uma introdução, é
mais generalista e busca manter diálogo com outros campos do conhecimento, por isso utiliza
menos termos técnicos que o segundo, que pontua uma questão teórica específica;
t medicina (texto 7): assim como na fonética acústica, a terminologia usada tanto contém ter-
mos específicos da área quanto termos de áreas afins, como a farmácia e a química.
Conclusão
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107
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Adelma Lucia de Oliveira Silva Araújo é doutoranda em Linguística Aplicada na linha de Linguagem e
Tecnologia e mestre em Linguística pela UFMG e graduada em Letras pela UFOP. É professora-orientadora
do Curso de Especialização Mídias em Educação da SEED/MEC/UFOP. Suas pesquisas se concentram nas
seguintes áreas: Fonética e Fonologia; Alfabetização; Educação de jovens e adultos; Letramento digital,
presencial e a distância; Formação de professores nas novas tecnologias; Comunicação; e Informação.
E-mail: adelmaa@yahoo.com.br
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