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Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras,

Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 05 Nº 08 – v. 1– 2009


ISSN 1809-3264
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Revista Querubim 2009 Ano 05 nº 08 – 177 p. vol. 1 (jun - 2009)


Rio de Janeiro: Querubim, 2009
1. Linguagem 2. Ciencias Humanas 3. Ciencias Sociais – Periódicos.
I - Titulo: Revista Querubim Digital

Conselho Científico
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José Carlos de Freitas
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Marcos Pinheiro Barreto
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Vanderlei Mendes de Oliveira
Venício da Cunha Fernandes
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SUMÁRIO
1 Herdeiros do mundo antigo: a paidéia e a areté gregas hoje 3
Ailton Pereira Morila e Regina Célia Mendes Senatore
2 Identidades fragmentadas em Bebel que a cidade comeu (2001) 9
Aparecida de Castro Pordeus e Mariana Sbaraini Cordeiro
3 O silêncio como estratégia do inconsciente 16
Clarice Pimentel Paulon e Leda Verdiani Tfouni
4 O estudo do narrador nas notícias sobre o mensalão 24
Cynthia Mara Miranda
5 O Deus das mascaradas num concurso de cartas marcadas: uma leitura d’as rãs, de 32
Aristófanes – Eliane Santana Dias Debus
6 A literatura infantil com temática africana e afro-brasileira: algumas reflexões - Elika 38
da Silva
7 No cenário da escola (re) vemos a disciplina versus indisciplina escolar Ernesto 46
Candeias Martins
8 Música nativista e imaginários gauchescos: sobre cantar opinando - Fernanda Marcon 56
9 Uma analise de gênero: o papel da mulher na sociedade da República Rio-grandense 65
(1836-1845) e seus reflexos na educação de meninas
Itamaragiba Chaves Xavier e Giana Lange do Amaral
10 Professor de língua portuguesa ou educomunicador? reflexões sobre a representação 73
do professor de LM no século XXI - Keity Cassiana Seco Bruning
11 Representações da identidade nacional na antologia de ensaios intérpretes do Brasil: 82
um enfoque discursivo - Luciana Cristina Ferreira Dias
12 Uma reflexão sobre a violência escolar - Mirian Teresa de Sá Leitão Martins 91
13 À margem em the bluest eye de Toni Morrison: negritude e testemunho 100
Mirna Leisi Lopes
14 A teoria da estética da recepção e a arte cinematográfica - Monalisa Pivetta da Silva 108
15 Os gêneros do discurso e as práticas de linguagem em língua portuguesa 116
Nívea Rohling da Silva
16 O ensino de história no curso técnico em farmácia: a problematização da 130
medicalização como uma experiência de pesquisa e análise da sociedade
Pâmella Passos Deusdará, Clara Dias e Gabriela Aguieiras
17 Análise de atividades de leitura e escrita em língua inglesa em contextos de ensino 138
diferenciados - Pricila Gaffuri e Renilson José Menegassi
18 A fragmentação da identidade em Midnight’s Children, de Salman Rushdie 150
Shirley de Souza Gomes Carreira
19 Cordialidade e nepotismo: uma investigação empírica - Thiago Abreu de Figueiredo 159
20 O funcionamento da memória discursiva em a second life petista 168
Welisson Marques
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HERDEIROS DO MUNDO ANTIGO: A PAIDÉIA E A


ARETÉ GREGAS HOJE

Ailton Pereira Morila[1]


Regina Celia Mendes Senatore[2]

Resumo: A Paidéia é um conceito grego de significações diversas. Utilizamo-lo ainda hoje.


Mas podemos mesmo pensar em Paidéia na atualidade? Ou em outras palavras: podemos
nos considerar herdeiros desta tradição grega? Na busca de refletir sobre essa questão, o
presente trabalho procura resgatar significados da Paidéia grega e sua intrínseca relação
com o conceito de areté, e ainda algumas transformações que os mesmos sofreram ao longo
da história, para retomarmos a pergunta, reformulada: qual é a areté que queremos?
Palavras chave: Paidéia, areté, educação grega.

Abstract: Paidéia is a ancien greek concept with diverse meanings. We still use it today. But
we can exactly think about Paidéia in the present time? Or in other words: can we consider
ourselves heirs from this greek tradition? In the search to reflect on this question, the
present work looks for to rescue meanings of the Paidéia Greek and its intrinsic relation
with the concept of areté, and still some transformations that the same ones had suffered
throughout history, to retake the question, reformulated: which is areté that we want?
Key-words: Paideia, areté, ancien greek education.

O testamento, dizendo ao herdeiro o que será seu de direito, lega posses do passado
para um futuro. Sem testamento, ou, resolvendo a metáfora, sem tradição – que se
selecione e nomeie, que transmita e preserve, que indique onde se encontram os tesouros e
qual o seu valor – parece não haver nenhuma continuidade consciente no tempo, e
portanto, humanamente falando, nem passado nem futuro, mas tão-somente a sempiterna
mudança do mundo e o ciclo biológico das criaturas que nele vivem.” Hanna Arendt
(1972).

Inicialmente Paidéia significa tão somente a educação de meninos. Com o tempo,


entretanto a concepção de Paidéia vai se ampliando enormemente, agregando significados
bastante diversos, ainda na civilização grega antiga.

Ao longo da história ocidental, os pressupostos da Paidéia vão adquirindo ainda


outros contornos, de acordo com cada contexto. E atualmente, podemos pensar em
Paidéia? Podemos nos considerar herdeiros desta tradição grega?
Antes de respondermos a estes questionamentos convém recuperarmos alguns dos
fundamentos históricos e filosóficos da Paidéia grega.

Da Areté à Paidéia

Palas Atenas, a donzela de Zeus, em Diomedes infunde força e coragem sem par,
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para que entre os Argivos pudesse sobressair mais que todos e glória imortal conquistasse.
Ilíada, canto V 1-3.

Enquanto a mim, tenho orgulho de filho chamar-me de Hipóloco, que me mandou


para Tróia sagrada, insistindo comigo para ter sempre o primeiro e de todos os mais
distinguir-me, sem desonrar a linhagem dos nossos (...) Esse o meu sangue, essa a estirpe,
que só de nomear me envaideço. Ilíada, Canto VI-206-211

Os trechos acima demonstram bastante bem um dos ideais gregos: a areté. Segundo
Jaeger (2001, p. 23), areté é “o mais alto ideal cavalheiresco, unido a uma conduta seleta e
palaciana”. Honra, valor, espírito de luta, sacrifício, sagacidade e capacidade são algumas
das proposições da areté grega.

E como a areté se manifestava? Menécio fala a Peleu:

Em relação ás estirpes, meu filho, supera-te Aquiles; mas és mais velho do que ele.
Em vigor ele muito te excede. Dá-lhe, portanto, conselhos prudentes, admoesta-o e o
instrui, que, para o bem dele próprio, por ti há de ser conduzido.” (Ilíada, XI: 786-789)

Se é pelos atos que Aquiles se sobressaia, Peleu o fazia pela palavra. Pelos atos ou
pelas palavras, as mais efêmeras atitudes humanas, a areté se concretizaria.
Mas a areté não era inicialmente transmissível. Era uma qualidade inata. Reservada a
aristocracia, aos deuses e até mesmo aos cavalos de raça. Segundo Jaeger (2001, p.24) “o
homem ordinário não tem areté”.

A educação, inicialmente aristocrática, era o reforçamento da areté individual. O


exercício da mesma. O objetivo maior desta educação era tornar o nobre um homem
heróico[3], a quem:
nunca falta o conselho inteligente e que encontra para cada ocasião a palavra
adequada. Encontra sua honra em sua habilidade, com o talento de sua inteligência que, na
luta pela vida e no retorno a sua casa, ante os inimigos mais poderosos e dos perigos que
lhe acercaram, sai sempre triunfante. (JAEGER, 2001, p. 37)

O nobre torna-se heróico por suas palavras ou por seus feitos. Pela manifestação da
areté, portanto. E esta manifestação torna-o imortal. Seus feitos e palavras serão
rememorados e se perpetuarão por gerações. Neste sentido, a areté individual torna-se um
bem coletivo e mais ainda, fundante da própria concepção de história grega.

Se o homem enquanto gênero é imortal como os deuses e a natureza, é mortal


enquanto ser individual. Em sua luta pela sobrevivência o homem expõe sua própria
mortalidade. Para sobreviver, o homem necessita seccionar a imortalidade da natureza.
Cortar o vento para navegar, matar um animal para seu sustento. Assim mesmo ao tentar se
perpetuar através de monumentos, como estátuas e edificações, o homem só está roubando
da natureza (pedra, mármore...) a imortalidade. Um estratagema, que antes revela sua
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própria mortalidade. A imortalidade, portanto só advém das menos duradouras ações


humanas em um paradoxo descrito por Arendt (1972). São as ações e feitos (práksis) e a fala
(léksis) que tornam o homem individual em eterno. Sobre este sentido, Félix, preceptor de
Aquiles relembra ao mesmo para que foi educado: “para ambas as coisas, para pronunciar
palavras e para realizar ações”. (JAEGER, 2001, p. 26)

O paradoxo se resolve de forma poética. A poíeseis, ou em outras palavras a


“fabricação” da história. Esta (re)imortaliza o homem individual, o torna sempiterno, ao
mesmo tempo em que possibilita a existência da história.

Assim a areté individual torna-se história, imortalizando o agente, mas imortalizando


também toda a sociedade.

E é somente com Pitágoras que a areté se torna paidéia. Ao lado de bens não
transmissíveis como força, beleza, saúde, e dos transmissíveis como cargo, propriedade em
que o doador perde o que transmite, existe um bem que se transmite sem se perder: a
educação. Esta interpretação “abre o caminho para a concepção da educação dos jovens
como ‘fundamento’ da sociedade” como observou Manacorda (1996, p. 47)

Assim com os sofistas a areté torna-se técnhe política, prática, portanto. Para Sócrates
a virtude (inseparável do saber, da episteme) era a parte da areté transmissível, não como
técnica, mas como dialogo gerador de conhecimento, como possibilidade de relembrar as
Formas.

Para Aristóteles o fim último da Paidéia é o bem moral e a felicidade. Não


individual, mas coletiva, posto que a natureza humana seja a polis.

Tornada Paidéia a própria areté se transforma. Para os sofistas a palavra sobrepuja a


ação não como conselho, mas como retórica para o convencimento na Ágora.

Para Sócrates e Platão o homem deveria deixar de lado as suas pretensões


individuais de imortalidade, restringindo-se a imortalização da prole, e o filósofo se
sobrelevaria o guerreiro.

Na polis aristotélica, o homem “não é capaz de bastar-se a si mesmo e está [em


relação à cidade] na mesma situação que uma parte em relação ao todo.” (ARISTÓTELES,
1965, Cap. II)

A areté transforma-se, transformando também a Paidéia.

A Paidéia adquire também contornos de educação integral, onde ginástica, arte,


filosofia, ciências e moral são transmitidas aos jovens fundamentando a sociedade. Neste
sentido, Paidéia é também herança que uma geração deixa a outra.
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A Paidéia na história

É interessante perceber que o ideal de Paidéia deixou marcas na história.

Com os humanistas, Paidéia é herança e educação integral. A herança grega deveria


ser recuperada, imitada[4] e transmitida. Era também integral no sentido de entendimento
profundo e extenso do mundo natural inclusive da religião. Da Vinci era pintor, escultor,
anatomista, arquiteto. A Paidéia para ele era o entendimento do homem, “máximo
instrumento da natureza”. Para Alberti tratava-se de conhecer as coisas humanas e divinas
através das letras. (MANACORDA, 1996, p.183, 185)

Para os iluministas Paidéia se multiplicava em significados. Rousseau reinventava o


ideal das capacidades inatas em Emílio. Este areté natural transformava-se em Paidéia na
praça, na execução do contrato social. Para Kant, a construção coletiva do homem moral
era objetivo e natureza (no sentido aristotélico) da humanidade. A Paidéia tornar-se-ia
maioridade.

Mais recentemente, para Adorno, Paidéia é autodeterminação, autonomia.

A Paidéia hoje

Transcorridos muitos séculos da origem do termo, a Paidéia grega nos aparenta


talvez como um eco distante. Nosso vocabulário não comporta mais um significado único
e preciso. Jaeger (2001, p. 9) elucida:

Este assunto é, na realidade, difícil de definir; como outros conceitos muito amplos
(por exemplo, filosofia ou cultura), resiste a ser colocado numa fórmula abstrata. (...) É
impossível se desviar do emprego de formulações modernas tais como civilização, cultura,
tradição, literatura ou educação. Mas nenhuma delas coincide realmente com os que os
gregos entendiam como paidéia. Cada um destes termos se reduz a expressar um aspecto
daquele conceito geral, e para abarcar o campo do conjunto do conceito grego seria
necessário empregar todos de uma vez.

Apesar disto, o esforço pode ser salutar.

A Paidéia como herança, passada de uma geração à outra pode ser o início desta
apropriação do termo nos dias atuais. O “salto de tigre” em direção ao passado, a partir do
presente, como bem observou Benjamin (1984), é mais do que oportuno. Buscar as raízes
histórico-filosóficas da Paidéia grega é necessário para que nos incluamos como legítimos
herdeiros.

Mas tomemos outros sentidos. A extrema velocidade com que novos conteúdos
vão sendo incorporados ao conhecimento, e a fragmentação e a especialização do saber nos
remete a uma tentativa de retomar a educação integral. Ciência sem filosofia, história sem
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arte, língua e literatura sem homem.

Interdisciplinaridade, transdisciplinaridade são tentativas, ainda que tímidas de


retomar o homem como centro do conhecimento.

Esta educação integral da Paidéia torna-se urgente se pensarmos no muro de


Moore (SEVCENKO, 2001). O conhecimento humano vem crescendo exponencialmente.
Algo em torno de 10 revoluções tecnológicas ocorreram desde 1975. Longe de ser uma
apologia à invenção humana, o muro de Moore aponta para a catástrofe na gestão deste
conhecimento.

Em um mundo aonde a técnica vem suplantando mais e mais o homem, reificando-


o, a Paidéia assume ares ainda mais graves. E talvez seja interessante recuperar a estreita
ligação entre Paidéia e areté.

A areté grega se apresenta como anacrônica e até mesmo insuportável. A glória e


honra guerreiras são no mundo atual arremedos nacionalistas burgueses fatais. A palavra e
os conselhos tornaram-se manuais de auto-ajuda ou discursos esvaziados no cenário
político institucional. Mesmo as transformações no tempo dos princípios da Paidéia de
areté parecem bem distantes ou inócuos. Qual seria a fonte da imitatio na atualidade? Como
seria possível desenvolver uma areté “natural” nos moldes rousseaunianos? Qual é a praça
do contrato social?

Não se trata entretanto de fazer tábula rasa do passado. Adorno é um nosso


contemporâneo, e os pressupostos de autodeterminação e autonomia não são ecos, mas
gritos. A maioridade proposta por Kant é uma urgência. Os humanistas também tem suas
contribuições. E mesmo antes, Platão e Aristóteles tem muito que ensinar, só para citar
alguns.

Mas afinal, qual a nossa areté, ou melhor, qual a areté que queremos deixar como
Paidéia para as gerações vindouras? Solidariedade, razão comunicativa, participação política
e social, igualdade, primado da responsabilidade? Ou nos atemos em seus opostos
burgueses como individualismo, dogma, representatividade, hierarquia e ética do
presentismo?

Antes de nos debruçarmos sobre a Paidéia precisamos repensar, portanto esta areté.
Só assim poderemos nos tornar herdeiros dela, como nos ensina Arendt (1972).

HOMERO. Ilíada. São Paulo: Martin Claret, 2003.


ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo, Perspectiva, 1972.
BENJAMIN, W. Sobre o conceito de história. In: Magia e técnica, arte e política: ensaio sobre
literatura e história da cultura. São Paulo, Brasiliense, 1984.
KANT, E. Critica da Razão Pura e outros textos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
MANACORDA, M. A. Historia da educação: da antiguidade aos nossos dias. 12 ed. São Paulo:
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Cortez, 2006.
SEVCENKO, N. A corrida para o século XXl: no loop da montanha-russa. São Paulo: Cia. Das
Letras, 2001.
JAEGER, W. Paideia: los ideales de la cultura griega. 15ª ed. México: Fondo de Cultura
Económica, 2001.
ARISTÓTELES. Política. Rio de Janeiro: Edições de Ouro. 1965.

[1] Bacharel em História, mestre e doutor em educação pela FEUSP. Docente do Centro
Universitário Central Paulista – UNICEP. E-mail: apmorila@gmail.com
[2] Graduada em Pedagogia, mestre e doutora em educação pela FCLAR – Unesp. Docente da
Unesp. E-mail: rcsenatore@gmail.com
[3] E não propriamente um herói, visto que herói era um semi-deus, ou seja, fruto de um
relacionamento de um deus com um mortal.
[4] Ressalta-se, como fez Sevcenko (1987) que o ideal de imitação (imitatio) não é mera repetição,
mas inspiração.
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IDENTIDADES FRAGMENTADAS EM
BEBEL QUE A CIDADE COMEU (2001)

Aparecida de Castro Pordeus


(Graduanda em Letras/UNICENTRO-Grarapuava - PR)
Mariana Sbaraini Cordeiro
(Mestre em Letras – Docente do Dep. de Letras/UNICENTRO)

Resumo: Em virtude da mudança estrutural por que passou a sociedade moderna no final
do século XX: divisão da cultura de classes, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade,
que forneciam sólidas localizações do indivíduo na vida social, verificamos uma mudança
nas identidades pessoais, com o abalo da idéia de sujeitos integrados, originando, assim, o
sujeito pós-moderno. Pesquisando a presença deste sujeito na narrativa Bebel que a cidade
comeu, de Loyola Brandão, na personagem Bebel, confirmamos que a sociedade, assim
como a personagem ficcional, encontra-se achatada pela indecisão e falta de perspectivas de
vida, debatendo-se em busca do sonho e do amor.
Palavras-chaves: sujeito pós-moderno; Bebel que a cidade comeu, identidades.

Abstract: Due to the structural change wich the modern society has gone through at the
end of XX century: division of culture classes, gender, sexuality, ethnicity, race and
nationality, that provided person solid location in the life society, we checked a change the
personal identities wich the shock of the integrated subjects ideas, so the pos modern
subject. Searching the presence of this subject in the narrative " Bebel que a cidade comeu"
by Loyola Brandão in the character "Bebel", we confirmed that the society as well as the
fictional character is found flatted by indecision and the lack life prospects, pursuing his
dream and love.
Keywords: pos modern subject, Bebel que a cidade comeu, identities.

1 – Introdução

Assunto complexo, em virtude da crença ou não de sua ruptura com a


modernidade, o conceito de identidade do ser humano apresenta diversas transformações
ao longo da história. Em vista da discussão sobre tal questão e a colocação de que ela está
em declínio, vemos o surgimento de novas identidades e a fragmentação do indivíduo
moderno. Esse colapso se dá em virtude da mudança estrutural por que passou a sociedade
moderna no final do século XX: estilhaçamento da cultura de classes, gênero, sexualidade,
etnia e nacionalidade, que, no passado, forneciam sólidas localizações do indivíduo na vida
social. Com isto verifica-se uma mudança nas identidades pessoais, com o abalo da idéia de
sujeitos integrados, ocorrendo, dessa maneira, um deslocamento do sujeito de seu lugar no
mundo social e cultural e também de si mesmo. A isso nomeamos crise de identidade
(HALL, 2006, p. 8-9).

Ao empreendermos os estudos relacionados à personagem Bebel da narrativa Bebel


que a cidade comeu, podemos perceber que sua identidade apresenta fragmentações ou como
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nos diz Hall (2006, p. 9), deslocamentos.

Isto também ocorre na sociedade moderna. Nas ruas também encontramos


inúmeras identidades fragmentadas, buscando encontrar saídas para seus problemas. Assim
como apreciamos na personagem ficcional sofrimentos advindos de contradições, a pessoa
humana, no momento atual, encontra-se num imenso labirinto, longe de conseguir alicerçar
sua vida em superfícies bem estruturadas.

Antes, porém, de apresentarmos a narrativa de Loyola Brandão, traçaremos um


pequeno percurso sobre o sujeito pós-moderno, seguiremos para colocações sobre a
ruptura interposta ao romance tradicional pelo romance moderno e, por fim, exporemos a
identidade pós-moderna observada na narrativa em questão.

2 – Sujeito pós-moderno

Ao falarmos sobre fragmentação do sujeito, concebemos um assunto complexo.


Buscando esclarecimentos quanto à questão da identidade do ser humano, valemo-nos de
Hall (2006) e nos deparamos com as transformações sofridas por ela ao longo da história.

Primeiramente o autor nos apresenta as três concepções de identidade: o sujeito do


iluminismo “cujo ‘centro’ consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez
quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia”; o sociológico, em que o indivíduo
interagia com o meio; e, por último o pós-moderno, em que a identidade apresenta-se
como algo móvel, moldado e transformado conforme os sistemas culturais que nos
rodeiam (HALL, 2006, p. 10-3).

O sujeito pós-moderno, foco de nosso interesse, ressalta-se pela percepção de que


as identidades modernas estão sendo fragmentadas. Dessa forma, surge a argumentação de
que elas encontram-se não somente desagregadas, mas deslocadas. Esse deslocamento seria
descrito em “uma série de rupturas nos discursos do conhecimento moderno” (HALL,
2006, p. 34). Portanto, em virtude de não possuir uma identidade fixa, a pós-modernidade
apresenta o indivíduo assumindo

[...] identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não


são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente. Dentro de nós há
identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal
modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas.
[...] Somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e
cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos
nos identificar – ao menos temporariamente (HALL, 2006, p. 13).

Dentro deste contexto, a literatura pós-moderna volta-se para narrativas que


exprimem a ruptura com o romance tradicional, bem como a fragmentação do sujeito e do
espaço em que ele está inserido. É o caso de Bebel que a cidade comeu, a qual passaremos, de
agora em diante, a dar maior ênfase.
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3 – O romance pós-moderno em Bebel que a cidade comeu

Tomando por base os estudos de Rosenfeld (1996) verificamos reflexões acerca do


romance moderno. Fazendo um contraponto com a pintura moderna, o autor observa a
“desrealização” operada nesta arte, vista nos movimentos que procuram negar a realidade.
Assim como o retrato fragmenta a noção de perspectiva espacial e apresenta-se deformado,
uma vez que tal pintura “é expressão de um sentimento de vida ou de uma atitude espiritual
que renegam ou pelo menos põem em dúvida a ‘visão’ do mundo’” (ROSENFELD, 1996,
p. 79), verificamos este fenômeno também no romance. Como nas telas, o romance utilizou
‘“técnicas’ que acabaram por resultar numa verdadeira desmontagem da pessoa humana e
do ‘retrato’ individual” (ROSENFELD, 1996, p. 86).

Portanto, servindo-nos da narrativa Bebel que a cidade comeu (2001), de Ignácio de


Loyola Brandão, verificaremos algumas modificações ocorridas no romance, procurando
enfatizar a ruptura ocorrida com o tempo cronológico e com o narrador.

Se por um lado o romance tradicional apresenta a linearidade cronológica da


história, por outro o romance pós-modernista exibe uma radicalização no modo de narrar,
uma vez que a continuidade do tempo foi abalada. Em cada personagem, presenciamos que
a “consciência é uma totalidade que engloba, como atualidade presente, o passado e, além
disso, o futuro, como um horizonte de possibilidades e expectativas” (ROSENFELD, 1996,
p. 82).

Outra questão é que o autor moderno procura, por vezes, omitir o narrador, e este,
submergindo na inconsciência da personagem, faz com que o fluxo psíquico o substitua e,
consequentemente, a ordem lógica do romance clássico. As situações são mescladas no
enredo, sem que tenham um “início, meio e fim” (ROSENFELD, 1996, p. 84), e a abolição
do tempo cronológico possibilita a fidelidade do acontecimento.

Assim sendo, Loyola Brandão (2001) cria uma estrutura que realça a inserção do
passado ao presente e mesmo ao futuro “no monólogo interior da personagem que se
debate na sua desesperada angústia, vivendo o tempo do pesadelo” (ROSENFELD, 1996,
p. 83).

Através desta técnica, as angústias das personagens nos são reveladas. Notamos isto
quando Bernardo, junto de Bebel, distancia-se e seu inconsciente rompe na narração,
deixando de ser narrado como “ele” e passando “a manifestar-se na sua atualidade imediata,
em pleno ato presente, como um EU que ocupa totalmente a tela imaginária do romance”
(ROSENFELD, 1996, p. 84, grifo do autor):

Você fala e fala, Bebel. Hoje te deu um acesso de papagaio. Não te ouço.
Não ouço ninguém. A não ser eu mesmo. Estou o tempo todo pensando
em mim. O que posso fazer? Não aprendi a sair de dentro. Sou o resumo
de duas coisas: eu e meu livro. Penso nele, durmo com ele. Se preciso, me
sacrifico por ele. Tenho que ser alguma coisa. E só através dos livros.
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Não sei fazer mais nada. Nem tenho capacidade para ganhar dinheiro. Se
te contasse estas coisas, Bebel, ia ser melhor para mim. Saía de dentro
(BRANDÃO, 2001, p. 225-6)[1].

Outro assunto interessante que também diz respeito ao narrador pós-moderno


encontramos em Santiago (2002), em um ensaio onde ele questiona se quem narra a
história “é quem a experimenta, ou quem a vê?” (p. 44). No caso do romance estudado,
constatamos que “o narrador pós-moderno é aquele que quer extrair a si da ação narrada,
em atitude semelhante à de um repórter ou de um espectador. Ele narra a ação enquanto
espetáculo a que assiste” (p. 45). Dessa forma, percebemos o rechaço e distanciamento do
narrador clássico, uma vez que no mundo atual a falta de diálogo torna difícil a troca de
experiências vividas e as pessoas não conseguem mais “narrar o que experimentaram na
própria pele” (p. 45).

Em Bebel que a cidade comeu percebemos um narrador que se comporta basicamente


interessado no outro e se firma pelo olhar que lança ao seu redor, percebendo, assim, os
seres, fatos e incidentes. Sua intenção é levar a personagem a falar de seus anseios, porém,
“ao dar a fala ao outro, acaba também por dar fala a si, só que de maneira indireta. A fala
própria do narrador que se quer repórter é a fala por interposta pessoa” (SANTIAGO,
2002, p. 50).

Além destes apontamentos, Franco (1998), em seu artigo O romance de resistência nos
anos 70, comentando sobre Bebel que a cidade comeu, evidencia a estreita relação entre
literatura e jornalismo, quando da incorporação de manchetes e notícias de jornais ou da
televisão em sua estrutura, assim como panfletos políticos, frases de publicidades, e outras
mais. Assim, percebemos que a narrativa, fazendo uso desta inovação, promove, realmente,
uma renovação no romance.

Após termos verificados alguns pontos estruturais do romance moderno,


passaremos a apontar a existência do sujeito pós-modernos no romance de Loyola
Brandão, na personagem Bebel.

4 – Bebel: um exemplo de sujeito pós-moderno

a.) O início

Sabemos que a descoberta do inconsciente por Freud é considerada uma das


contribuições para a transformação do pensamento moderno e, dessa maneira, associamos
que a personagem Bebel, ainda criança e envolta em um ambiente familiar desestruturado,
depara-se com o pensamento que molda sua identidade, uma vez que

[...] a imagem do eu como inteiro e unificado é algo que a criança aprende


apenas gradualmente, parcialmente, e com grande dificuldade. Ela não se
desenvolve naturalmente a partir do interior do núcleo do ser da criança,
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mas é formada em relação com os outros; especialmente nas complexas


negociações psíquicas inconscientes, na primeira infância, entre a criança
e as poderosas fantasias que ela tem de suas figuras paternas e maternas
(HALL, 2006, p. 37, grifo do autor).

Dessa maneira Bebel, morena bonita, quer ser famosa. Inserida na sociedade dos
anos 60, a personagem encontra-se no início da revolução sexual, que inseriu a mulher no
mercado de trabalho e ao sexo livre e também do movimento feminista que, em busca de
defesa da cidadania, promoveu um deslocamento radical de perspectiva que contestou “a
família, a sexualidade, [...] expandiu-se para incluir a formação das identidades sexuais e de
gênero [...] questionou a noção de que os homens e as mulheres eram parte da mesma
identidade, a ‘Humanidade’, substituindo-a pela questão da diferença sexual” (HALL, 2006, p.
46-6, grifo do autor).

Assim, Bebel ciente de que é dona de suas ações, faz uso do que possui. Como tem,
nas palavras de Marcelo, “um corpo que vou te contar” (p. 142), usa-o como moeda para
conseguir seus objetivos, seja diante de um simples fotógrafo ou de alguém que lhe
possibilite maiores ostentações, como um diretor de TV que, acredita, pode levá-la ao
estrelato: “- No programa de hoje, entro na primeira fila. O diretor de TV mete um plano
atrás do outro de mim.[...] Na semana que vem, pego programa melhor, em horário nobre”
( p. 40).

Sucesso?

Segundo Hollanda (1994, p. 14), nas décadas de 60 e 70 várias questões referentes à


identidade abriram espaços para a mulher, seja na imprensa, no cinema, etc. Neste contexto
encontramos Bebel que, ascendendo através do corpo, assume a identidade de estrela da
TV, tornando-se poderosa.

Dessa maneira podemos pensar nas relações de gênero, pois, segundo Flax (1992),
há dois tipos de pessoas - homem / mulher - e que “as relações de gênero têm sido (mais)
definidas e (precariamente) controladas por um de seus aspectos inter-relacionados – o
homem” (1992, p. 228). O poder que Bebel aparenta ter possibilita-lhe um confronto entre
dominada X dominadora. Se por momentos Bebel sente-se usada, por outros sente a
inversão de papéis e tem a sensação de alcançar um endeusamento, dominando todos ao
seu redor. Tanto que quanto à liberdade sexual que usufrui, desabafa: “uma mulher não
pode ter desejo. Só os homens. Uma mulher não pode querer dormir com quem ela quiser.
É isso que eu faço. Se tenho vontade de um cara, vou com ele” (p. 223).

Concebida como personagem dentro da pós-modernidade, Bebel sofre com o


deslocamento de sua identidade pessoal, o que constitui uma “crise de identidade” (HALL,
2006, p. 9). Sua instabilidade é evidente no momento em que não se prende a homem
algum e ao se deixar manipular como se fosse um simples objeto. Neste confronto falta a
referencialidade e ela lamenta “Como é terrível não saber nada de uma pessoa, passar dois
anos ao lado dela e não conhecer absolutamente nada, acostumar-se e não se importar” (p.
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167). Mesmo no momento de optar pela segurança junto de Marcelo ou pela continuação
de seus sonhos, acaba por esquivar-se do amor, na desculpa de que gosta “que fiquem em
volta de mim.[...] Vivo no meio de um círculo e é quentinho onde estou. Eles [...] fazem
tudo que eu quero. [...] Não posso ficar isolada pelo amor de um homem só”(p.72). Assim,
neste círculo em que se defronta com várias identidades, conhece Bernardo e distancia-se
de Marcelo.

No plano afetivo Bebel sempre se mostrou decepcionada, contraditória.


Compreende que, com relação ao amor, carrega o esvaziamento, o questionamento sobre o
sentido da vida. Conclui que “a vida inteira pensei num homem só. Meu.” E que “agora
não há mais remédio” (p. 219). A máscara de Bebel cai quando ela se depara com um casal
e confidencia a Bernardo, num misto de inveja e insatisfação:

O homem era mais velho, gordo, barbudo e mal arranjado e a mulher


usava uns óculos com esparadrapo, meias grossas de varizes e tinha o
nariz comprido. Eles estavam abraçados e sorriam. Os rostos bem juntos.
E não havia nada no mundo. Nada em torno deles. [...] Eles se amavam e
eram bonitos. Tudo feio em volta. [...] Mas eles eram lindos. Por causa
daquele olhar de amor. Eu queria uma vez só na vida um olhar assim.
Não precisava mais. Só uma, num dia, numa hora, num minuto. Depois
eu carregaria aquilo por dentro de mim a vida toda (p. 279-80).

Do seu relacionamento com Marcelo e Bernardo nada resta. Em sua inconstância


Bebel procura algo novo. Assim, o relacionamento homossexual com Dina se apresenta
como uma fuga da realidade, uma vez que “Dina é diferente. É seca e me trata secamente.
Não é melosa, não faz carinho bobo, não diz essas coisas que homem vive dizendo quando
quer cantar a gente” (p. 317). Da mesma forma, compartilham o mesmo pensamento, pois,
com relação ao seu trabalho, Dina faz “tudo que tiver de fazer. O que interessa, Bebel, [...] é
minha pintura. [...] Então por que não vou me servir do corpo para uma utilidade que está
relacionada com o que faço?” (p. 210). Isso atrai Bebel. Porém, a conclusão a que
chegamos é que tanto uma como a outra vivem num mundo em que nada é certo; não
sabem o que querem da vida. Estão fragmentadas diante da desrealização do referencial.

A queda

O tempo passa e Bebel encontra-se deprimida, ciente de que seu fracasso como
estrela de TV está em vias de se concretizar, “Ela começava a ser bagaço e dentro de pouco
tudo estaria terminado” (p. 201).

Assim, conforme o olhar de Bernardo, ela vai decaindo fisicamente cada vez mais,
no “rosto um pouco balofo [...] os olhos não eram mais claros, enormes, brilhantes” (p.
250); “será que [Bebel] consegue ver o próprio rosto? A papada que está nascendo? As
duas rugas debaixo dos olhos? Será que ela quer se ver de verdade?” (p. 252); “Bebel estava
gorda. Mais alguns anos e se tornaria uma senhora (p. 389) [...] os seios de Bebel estão
caídos. Em dez anos será uma bela lavadeira” (p. 390).
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O mundo não perdoa e o público exige sempre novos ídolos, por isso Bebel, no
final do romance está acuada diante da realidade hostil que a cerca, vencida e sentenciada a
viver distante de seus sonhos, contradizendo tudo o que a sua fantasia criou, passando a ser
objeto possuído e identificada como um ser excluído da sociedade. Comprovamos que o
romance nos coloca a par da efemeridade do corpo, constatada pela morte da beleza da
personagem. Como ela mesma admite, “Foi pouco, minha mãe, como durou pouco! Nem
dois anos! O que houve, de repente?” (p. 255).

Em sua condição de sujeito construindo sua história, Bebel encontrou-se diante das
mudanças ocorridas na sociedade moderna, as quais abalaram profundamente as
referências dos indivíduos. Em virtude disto, a deteriorização de sua identidade,
simbolizada pela sua permissividade sexual, custou-lhe sua significação como ser humano.
Bebel sonhou... Ficou sem Bernardo... Ficou sem Marcelo... Ficou sem Dina... Comparada
a um avião que procura subir ao ponto mais alto, Bebel varou “o teto em busca do céu e se
despedaçara no caminho” (p. 74).

Considerações finais

Ao empreendermos os estudos relacionados à personagem Bebel percebemos que


sua identidade apresenta fragmentações ou, como nos diz Hall (2006, p. 9), deslocamentos.

Na sociedade moderna, assim como na narrativa estudada, também encontramos


inúmeras identidades fragmentadas, buscando encontrar saídas para seus problemas. Assim
como apreciamos na personagem ficcional sofrimentos advindos de contradições, a pessoa
humana, no momento atual, encontra-se num imenso labirinto, longe de conseguir
alicerçar-se em superfícies bem estruturadas, achatada pela indecisão e falta de perspectivas
de vida. Ela debate-se em busca do sonho e do amor, mas a violência percebida em tudo o
que a rodeia dá oportunidades aos fortes e suga tudo o que pode dos fracos. Esta é a dura
realidade da pós - modernidade.

Referências Bibliográficas
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Bebel que a cidade comeu. 6. ed. São Paulo: Global, 2001.
FLAX, Jane. Pós-modernismo e relações de gênero na teoria feminista. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque
de (Org). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1992, p. 217-50.
FRANCO, Renato. O romance de resistência nos anos 70. Disponível em: http://
<http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/lasa98/Franco.pdf>. Acesso em 04 ago. 2008,
15:31:10.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes
Louro. 11 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org). Introdução: feminismo em tempos pós-modernos. In: ______.
Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 7-19.
ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: ______. Texto/contexto. São Paulo:
Perspectiva, 1996. p. 75-97.
SANTIAGO, Silviano. O narrador pós-moderno. In: ______. Nas malhas da letra: ensaios. Rio de Janeiro:
Rocco, 2002. p. 44-60.
[1] Todas as vezes que nos referirmos à obra Bebel que a cidade comeu, usaremos somente o número das páginas,
de agora em diante.
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O SILÊNCIO COMO ESTRATÉGIA DO INCONSCIENTE

Clarice Pimentel Paulon


Graduanda em Psicologia
Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto
Bolsa de Pesquisa: CNPq/ PIBIC
Leda Verdiani Tfouni
Professora titular e livre-docente
Universidade de São Paulo – Ribeirão Preto
Pesquisadora do CNPq

RESUMO: A questão do silêncio é um desafio para as ciências não positivistas.


Apresentamos aqui um estudo que tratará desse tópico procurando relacionar a tipologia
do silêncio proposta por Orlandi (1992) e uma ocorrência especial de silêncio estudada por
Freud (1987). Apostamos que há diversas etapas percorridas por Freud durante seu
esquecimento, e apresentamos as três versões nas quais o autor tenta explicá-lo.
Interpretamos esse percurso em termos dos três tipos propostos por Orlandi. Assim, além
de trazer uma contribuição para que se compreenda melhor a questão do silêncio,
efetuamos uma conexão possível entre a Análise do Discurso e a Psicanálise.
Palavras-chave: silêncio, inconsciente, Análise do Discurso, Psicanálise.

ABSTRACT: The question of silence is a challenge for the non-positivist sciences. Here
we introduce a study that is trying to relate Orlandi's tipology of silence (1992) to an
especial case of silence studied by Freud (1987). We bet that there are various stages
covered by Freud during his forgetting, and we introduce here the author´s three versions,
wherein he tries to explain the fact. We interpret this trajectory in terms of the three types
exposed by Orlandi. In this way, besides contributing to better understand the question of
silence, we also stablish a possible connection between Discourse Analysis and
Psychoanalyzis.
Key - Words: silence, unconscious, Discourse Analysis, Psychoanalyzis.

Introdução

Neste ensaio, pretendemos topicalizar o silêncio e estudá-lo sob a forma de


estratégia do inconsciente, estratégia essa que se prestaria a ocultar/mascarar conteúdos
inconscientes indesejáveis, que o sujeito não quer (não pode) dar a conhecer aos outros.

Serão apresentadas algumas abordagens sobre o silêncio, mais especificamente a da


Análise do Discurso pêcheutiana (AD) e a Psicanálise de Freud e Lacan. Nessas duas
abordagens, o silêncio não é visto como um resíduo de linguagem e sim como um
continuum significante (Orlandi, 1992). O silêncio é premissa fundamental para que seja
dito algo, já que é nele que o múltiplo não-discretizado é encontrado; que o vir-a-ser-
sentido está presente. A partir dessa ampla gama de significações e significados contidos no
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silêncio pode-se inferir que ele possui caráter opaco, já que toda a interpretação dele
advinda é indireta, podendo-se dizer que os sentidos nele existentes passam por uma
espécie de refração para que cheguem a ser materializados linguisticamente.

Pensar o silêncio dessa forma é como se lembrar de uma experiência vivida. Ao


rememorarmos algo, uma série de sentimentos e significações vêm à tona juntamente com
a cena lembrada. A tonalidade que damos ao momento revivido na memória é única e é
impossível passar isso para a linguagem verbal sem que se perca algo. É como se, ao tentar
simbolizar o que sentimos, alguma coisa fique para trás, perdida na cadeia de significantes.
Ao “escolher” as palavras que materializem lingüisticamente os sentimentos (e essa escolha
não é totalmente consciente), deixamos de utilizar outras que dariam um sentido diferente
ao nosso discurso.

Este fato está em concordância com a proposta de Pêcheux sobre os dois


esquecimentos, que ele atrela à primeira tópica de Freud (Consciente, Inconsciente,
Subconsciente). Para o autor, o esquecimento nº 1 seria da ordem do inconsciente, não
podendo ser acessível diretamente ao sujeito. Ele opera fazendo o sujeito pensar que é a
origem de seu dizer: que o sentido das palavras, expressões, etc., que ele pensa escolher
livremente, “brotam” de sua vontade de dizer. No entanto, é a ideologia que domina esse
esquecimento, como um mecanismo que faz parecer natural que se diga de um jeito (x), e
não de outro (y), produzindo um processo de naturalização de sentidos, que traz à tona
enunciativa, somente aquelas expressões permitidas pela ideologia dominante. As demais
ficam apagadas, mas não são silenciadas completamente, podendo eventualmente se
manifestar lingüisticamente em determinados contextos. Há, assim, no discurso, estratégias
de silenciamento de conteúdos indesejáveis porque podem representar perigo tanto para a
ordem social vigente, quanto para o equilíbrio do sujeito.

Existe um outro tipo de esquecimento, o nº 2, criado por Pêcheux para dar conta
da possibilidade de reformularmos o que dizemos, utilizando outras palavras, ou então
corrigirmos um enunciado potencialmente ambíguo. Isto pode ocorrer, como estratégia do
sujeito, porque há, ao lado do dizer, uma série de paráfrases com as outras formas pelas
quais aquele mesmo conteúdo poderia ter sido dito. Assim, o sujeito tem a ilusão da
materialidade de seu pensamento. Por ser de natureza lingüística, o esquecimento nº 2 é
semi-consciente, e pode estar acessível ao sujeito sob certas condições.

Essas colocações entram, via de regra, em consonância com a máxima da AD:


sempre que se diz x, deixa-se de dizer y.

A tipologia do silêncio

Orlandi (1992) propõe uma tipologia do silêncio a partir da perspectiva acima


proposta: o fundador, o constitutivo e o local.

O silêncio fundador é aquele onde todos os sentidos, possíveis e impossíveis, se


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colocam; é onde o devir se impõe. Nele não há sentidos discretizados. Podemos compará-
lo ao real lacaniano (2003), já que em ambos encontra-se um impossível. O impossível é o
não simbolizável, é todo aquele sentido que não cabe no simbólico e faz com que, devido a
isso, exista uma falta permanente no discurso, conforme a máxima lacaniana Não é possível
dizer tudo.

O contingente (outra face do real lacaniano) relaciona-se, a nosso ver, ao silêncio


constitutivo: é um evento que ocorre em detrimento de outros fatores; que se concretizou
de alguma forma e não pode mais ser mudado. Milner (1995) exemplifica com o lançar dos
dados: antes que estes cheguem à superfície, tudo é possível, mas, a partir do momento em
que eles param não há mais como mudar os números que ficaram na face de cima. Deste
modo, uma vez produzido um enunciado, é impossível desfazê-lo, voltar atrás a um ponto
onde nada havia sido dito. No entanto, ao dizer, outras formas possíveis são abandonadas,
mas não cessam de inscrever-se, pela ausência, naquilo que foi enunciado. Assim é que
podemos dizer sobre o silêncio constitutivo que ele se manifesta contingencialmente na
forma de algo que foi recalcado pelo sujeito, mas mesmo assim está lá, produzindo efeitos.
Pode-se inferir, deste modo, que as palavras são carregadas de silêncio, pois, ao dizê-las em
determinado contexto, outros sentidos calam-se necessariamente. É possível aplicar a regra
sempre que se diz x, deixa-se de dizer y para explicar o silêncio constitutivo porque inúmeros
sentidos são calados ao discretizar nosso pensamento em forma de palavras. Isso mostra
que o silêncio não pode ser tratado apenas como o que é implícito ou ambíguo. Acreditar
nisso seria pensar no discurso priorizando o que foi dito e nem sempre aquilo que foi dito
constitui todo o dizer. A mudança de sentidos pela qual passam os discursos no decorrer de
épocas e até mesmo de contextos mostra a importância do silêncio constitutivo e como ele
age, alterando os sentidos do discurso no decorrer do tempo.

O silêncio local implica a interdição histórica do sujeito de movimentar-se por


determinadas formações discursivas. Para a Análise do Discurso essa interdição se dá
através da censura política imposta pela classe dominante, que controla o movimento de
circulação dos discursos no social. Como essa forma de silêncio é imposta através de leis,
regras ou simplesmente proibições locais, ela é acessível ao sujeito, que muitas vezes
consegue burlá-lo. Impedido pela censura de dizer naquele lugar, o sujeito se desloca
(metáfora) para uma outra formação discursiva, onde é possível dizer.

Pode-se dizer, a partir da tipologia do silêncio acima mostrada que ele, em todas as
suas formas, trabalha os limites das formações discursivas, permitindo a movimentação do
sujeito pelos diferentes discursos, afetando assim, a sua subjetividade e todo o seu dizer. É
no silêncio que podemos observar a subjetividade inerente ao discurso, vendo os sentidos
que o sujeito produziu efetivamente, e quais ele decidiu “apagar”. Dessa forma, podemos
ter uma concepção de sujeito mais ampla, que se dá a partir da inserção do dito no não-
dito; uma concepção menos restrita à literalidade.
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O silêncio em Psicanálise

A partir da psicanálise, podemos pensar em diversas formas de silêncio também


ligadas ao discurso e utilizadas como estratégia do inconsciente. Nasio (1989) faz uma
primeira distinção colocando ao leitor duas formas diferentes de silêncio: sileo e taceo (p.8)
Essa categorização é retomada por Hernandez (2004). A autora faz uma breve explanação
das diversas concepções do silêncio já colocadas a partir da Psicanálise, da Análise do
Discurso e de algumas vertentes filosóficas. Uma das polarizações analisadas pela autora é
justamente a de sileo e taceo[1] explorada por Lacan em seu seminário “A lógica do
Fantasma” (1967/s.d.).

Silere (silenciar) é o silêncio inerente às pulsões, denominado por Nasio (1989) de


silêncio estrutural. Pode-se dizer que as pulsões agem silenciosamente em nosso
inconsciente, já que elas não são atravessadas pelo simbólico (e, portanto também não o
são pela linguagem). Nas pulsões e no inconsciente o sentido é. Ainda segundo Hernandez,
sileo seria o silêncio sugestivo da ausência essencial da palavra, do buraco da significação (2004: 130).
Deste modo é possível compará-lo ao silêncio fundador descrito por Eni Orlandi já que o
inconsciente pode ser visto como matéria significante por excelência, sendo um continuum
de significações que não conseguimos apreender em sua totalidade.

Taceo (calar-se) é descrito por Nasio como o silêncio da palavra não dita. Ou seja, é
aquilo que poderia ser dito, mas não foi enunciado, e que, em geral, provoca um
deslocamento do sujeito para outro lugar discursivo, que lhe permite significar aqueles
sentidos proibidos. Hernandez (op. cit.), citando Clarice Lispector (1998), chama-o de
“pequeno-silêncio”, termo utilizado pela escritora para falar sobre os breves, porém únicos
a serem suportáveis à mente humana, contatos com os nossos “si-mesmos”. Lacan, no
seminário anteriormente citado (1967), faz uma diferenciação que torna mais claro o
“pequeno-silêncio” proposto por Clarice Lispector, e o maior, que a escritora coloca como
insuportável: (...) sileo não é taceo. O ato de calar-se não libera o sujeito da linguagem, apesar de que a
essência do sujeito culmine nesse ato. (Lacan, 1967/ sd).

Em taceo retomamos um conceito importante da teoria psicanalítica: o recalque. Ao


calar pensamentos que pareçam inapropriados a determinado contexto ou que pareçam
estranhos a nós mesmos, banimo-los de nossa consciência. No entanto, esse pensamento
retorna, não de um modo dizível, mas através de um sintoma. Freud estuda como esse
silêncio opera em um livro célebre (1987), em um texto que ficou conhecido por “O
esquecimento de Signorelli”.Este tópico será abordado mais adiante.

Taceo seria, portanto, uma estratégia do inconsciente para impedir que o sujeito
circule por certos significados não desejados, ou recalcados. Por não poder circular por
aquela zona de sentidos indesejáveis o sujeito se cala, ou “se esquece” do que iria dizer.
Podemos considerá-lo dentro da clínica psicanalítica como um mecanismo de defesa,
denominado por Freud de “ato falho”.
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Uma metáfora muito interessante para exemplificar o que acontece no mecanismo


de recalque é utilizada por Theodor Reik (1926; p.18): No Pacífico, perto da ilha de Vancouver,
encontra-se um lugar curioso chamado Zona de Silêncio. Foram muitos os navios que se esmagaram contra
os rochedos nesse lugar e agora repousam no fundo do mar. Nenhuma sirene é possante o suficiente para
avisar os capitães. Nenhum ruído exterior penetra esta zona de silêncio, que se estende por muitas milhas.
Neste setor, os ruídos do mundo exterior não alcançam mais o navio. Pode-se comparar o que chamamos de
material recalcado a esta “zona de silêncio”. A psicanálise efetuou a primeira penetração neste domínio.
Quando o paciente fala de si mesmo, os primeiros sons distantes, apenas perceptíveis alcançam a zona de
silêncio.
Podemos fazer uma analogia entre o recalque e o processo dos sonhos. Nestes,
desejos inconscientes aparecem a partir de outra simbologia, adentrando na memória
consciente. Do ponto de vista da AD, podemos entender esse silêncio do recalque, ou taceo,
como uma aplicação da regra proposta por Pêcheux (1988): Sempre que se diz x, deixa-se de
dizer y. Ou seja: para poder falar de si mesmo (inconsciente), o sujeito precisa operar
deslocamentos; entrar em uma outra formação discursiva[2] onde os significantes
mobilizados, através de um processo metaforonímico, caminham, na cadeia manifesta, para
um lugar de sentido que aloca o sujeito em uma posição onde é lícito falar de seus
conteúdos recalcados.

A partir dessa breve explanação do silêncio, é possível ver que ele é uma forma
diferente da verbal de significar. Segundo Tfouni (1998, p.102) O silêncio, assim como o
inconsciente, possui uma opacidade enigmática, que não pode ser controlada nem totalmente discretizada
através das palavras. Ao mesmo tempo em que o homem teme o silêncio devido ao enigma que este
apresenta, também o utiliza para calar no outro, sentidos que não interessam.

Ao longo da história psicanalítica se falou muito sobre o silêncio. Lacan (1985; in


TFOUNI, 1998) coloca que antes da entrada no simbólico há a completude, onde nada
precisa ser dito, já que o bebê é tomado como objeto de desejo da mãe e por isso sente-se
completo. A partir da instauração da metáfora paterna e do ingresso no simbólico, algo se
perde para sempre, o que determina a linguagem e a incompletude (tanto no sentido de
silere quanto no de tacere).

Um caso exemplar: o esquecimento de Freud

Nesta seção, pretendemos apresentar um famoso caso de esquecimento, relatado


por Freud (1987).O autor denomina esse evento de “Esquecimento de Signorelli”, mas
veremos que há muito mais além do esquecimento do nome próprio nesse caso.
Aparentemente, este fato se colocava como enigma também para o autor, pois existem três
versões do evento escritas por ele em momentos diferentes. Segue-se uma síntese desse
caso de esquecimento:

Utilizando um exemplo pessoal, Freud disserta sobre um caso de esquecimento de


nomes próprios. Ao fazer uma viagem de trem e conversando com um estranho, Freud
pergunta a este se conhece os afrescos da Igreja de Orvieto (Itália) denominado “Quatro
últimas coisas” (Morte; Juízo; Inferno; Céu), e, por uma ilusão da memória, esquece-se do
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nome do pintor do afresco (Signorelli), lembrando-se de nomes substitutos (Botticelli e


Boltraffio) tidos de antemão como errados. Quando lembrado pelo estranho do nome
correto (Signorelli), Freud rapidamente assimila-o como o nome certo, antes esquecido.

Posteriormente, Freud não lembra de nada significativo que possa tê-lo feito
esquecer o nome do pintor. Então, retrocedendo aos assuntos anteriores, lembra que ele e
o estranho haviam conversado sobre os turcos que moravam na Bósnia e Herzegovina e
sobre seus costumes, como a sua extrema credibilidade para com médicos e sua resignação
perante a morte. Freud recorda-se, ainda, durante essa conversa, apenas mentalmente, de
uma anedota sobre turcos: a contradição que eles vivem entre a resignação perante a morte
e a extrema valorização do gozo sexual. Freud chega a lembrar de um médico colega seu
que lhe contou certa vez sobre o que um turco lhe disse: “Herr (senhor), quando isso acaba
(o gozo sexual), a vida não tem nenhum valor”. Freud recalca esse conteúdo, pois achou
que não eram coisas a se comentar com um estranho. Ele lembrou-se também que, quando
estava em Trafoi, recebeu a notícia do suicídio de um paciente, devido a distúrbios sexuais,
e.ao qual havia se dedicado muito.

A partir dessa cadeia associativa refeita conscientemente, através da perlaboração,


Freud conseguiu fazer a ligação do esquecimento do nome Signorelli com o surgimento
dos nomes substitutos (Boticelli e Boltraffio), através da ocorrência de pistas lingüístico-
discursivas (nomeadas por Lacan ([1957-58], 1999) de metáforas e metonímias), e conclui
que o esquecimento do nome foi devido a uma estratégia do inconsciente usada para barrar
(silenciar) conteúdos desagradáveis ou negativos associados ao mesmo, no caso,
pensamentos de morte e sexo. . Podemos recuperar aqui a noção de “núcleo traumático”,
criada por Freud e re-elaborada por Lacan que coloca que o encadeamento de diversos
significantes, organizados inconscientemente, chega a um núcleo específico de determinada
experiência primária que significa as demais experiências encadeadas a essa posteriormente.

Em uma análise de três relatos diferentes sobre este caso escritos por Freud
(conforme Billig, 2000), vê-se que há múltiplos silenciamentos e recalques, e que talvez
Freud os tenha “escondido” de si próprio e de seus leitores. Apresentaremos abaixo uma
breve descrição de cada um dos escritos de Freud a respeito, respeitando a ordem
cronológica, que, neste caso, tem importância muito grande para o estudo desse caso.

Em carta escrita para Fliess logo após o acontecimento, Freud (1898a) diz que esse
esquecimento ocorreu devido a lembranças infantis recalcadas que mobilizaram nele um
certo sentimento de angústia, gerado pelo sentimento da perda recente do pai, que o forçou
a mudar de assunto, e esse movimento para uma outra formação discursiva gerou o
esquecimento. Nessa carta, Freud comenta que quem o acompanhava nessa viagem era sua
cunhada e expõe menos detalhes da conversa tida com ela.

Ainda segundo Billig (2000), Freud (1898b), numa segunda versão do ocorrido,
explica seu lapso de memória a partir de uma perspectiva distinta da exposta a Fliess. De
acordo com Billig, o fato de Freud fazer uso de uma linguagem mais formal, por ser um
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artigo e não uma carta, possibilitou que fossem introduzidos elementos “literários” nesse
texto, como, por exemplo, a insinuação de uma maior distância de tempo entre a publicação
do artigo e sua viagem (que na verdade ocorreu 5 dias antes da submissão do artigo). Além
da mudança de estilo em sua escrita, Freud substitui sua cunhada (que estava com ele no
primeiro relato) por um “acompanhante de viagem” anônimo, relatando questões mais
atuais para explicar o esquecimento do nome do pintor. Assim, no artigo, ele remete o
esquecimento à lembrança sobre os turcos e a peculiar relação destes com a sexualidade,
lembrança essa que lhe ocorreu quando conversava com esse estranho sobre os costumes
dos turcos e sua relação com a morte. Em seguida, afirma que afastou a lembrança
relacionada à sexualidade porque não julgou apropriado falar desse assunto com um
estranho. Nesse mesmo artigo, Freud também cita um evento que ocorreu em Trafoi (a
notícia que recebeu sobre o suicídio de seu paciente); no entanto, não especifica o que
ocorreu, apenas coloca que recebeu uma notícia que o incomodou. Teríamos aí a regra da
AD dizer x para não dizer y, já que Freud explicou seu esquecimento através de outras
questões que não as colocadas na carta a Fliess (não que uma exclua a outra).

No capítulo do livro “Psicopatologia da Vida Cotidiana” (1987:19-24) Freud dá


uma elaboração maior a seu esquecimento, colocando mais dados para a análise do
ocorrido. Nesse capítulo, o autor admite o suicídio de seu paciente, relacionado a um caso
de impotência sexual e a frustração que sentiu por não ter conseguido impedir que tal ato
acontecesse. Além disso, coloca que o próprio tema dos afrescos da capela de Orvieto
(Morte, Juízo, Inferno e Céu) estaria relacionado ao esquecimento, já que, na época em que
o visitou, estava desenvolvendo sua teoria sobre a sexualidade e seu pai havia falecido
recentemente.

Pode-se interpretar esses três ensaios como uma tentativa de elaboração dos desejos
e fantasmas de Freud com os quais ele se deparou ao re-visitar esse fato em sua memória
para escrever os textos.

Podemos localizar nesse estudo de caso, os silêncios descritos por Eni Orlandi
(1992), comentados no início deste texto, e assimilá-los com os vários “graus de
consciência” propostos por Freud na primeira tópica, segundo a qual o psiquismo seria
formado por três sistemas: consciente, sub-consciente e inconsciente. Consciente de sua
escolha, ao omitir o fato de ser sua cunhada a acompanhante de viagem, estaria o silêncio
local, regido pela censura, regida pelos costumes e valores morais da época. No sistema
sub-consciente, podemos localizar o silêncio constitutivo, que se materializou pelo estilo
literário que utilizou para escrever o artigo, escolhendo palavras que localizassem o
acontecimento em um momento longínquo no tempo. O silêncio fundador, totalmente
inconsciente, poderia ser encontrado nas próprias questões que Freud retoma para explicar
seu esquecimento, descobrindo a cada re-elaboração novas pistas para a totalidade dos fatos
que corroboraram para o seu lapso de memória.

Isso mostra que devemos interpretar o discurso e o inconsciente humano além dos
dados visíveis e empiricamente controláveis, pois, da mesma forma que já foi dito acima, o
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discurso não se restringe ao materialmente simbolizado.

Referências Bibliográficas

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Int. J. Psychoanal. 2000 (81,483)
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LACAN, J. Seminário 5: As Formações do Inconsciente, Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
[1957-58] 1999
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MILNER, J. C. A obra clara. Jorge Zahar, 1995
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UNICAMP, 1992
TFOUNI, F. V. O interdito como fundador do discurso. UNICAMP,1992

[1] Estas duas palavras vêm do latim; representam a primeira pessoa do singular dos verbos tacere e
silere.
[2] Formação discursiva, na teoria da Análise do Discurso, refere-se a um conjunto de enunciados
que se definem pela regularidade, e remetem a formações imaginárias, por antagonismo, conflito,
contradição, etc.
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O ESTUDO DO NARRADOR NAS NOTÍCIAS SOBRE O MENSALÃO

Cynthia Mara Miranda


Doutoranda em Ciências Sociais
Centro de Estudos Comparados sobre as Américas (CEPPAC)
Universidade de Brasília (UnB)

Resumo
A narrativa está presente na comunicação jornalística como forma lingüística que dá
visibilidade e ordena a realidade. Sendo assim, é, pois, composta por vários elementos,
dentre eles, o narrador. Este artigo busca, então, identificar o narrador nas notícias sobre o
escândalo político brasileiro denominado mensalão, publicadas no jornal Folha de São Paulo,
no período de 6 a 12 de junho de 2005. A análise pragmática da narrativa jornalística
forneceu o suporte metodológico para a identificação do narrador nas notícias e, desse
modo, destacar, como resultados, a relação conflituosa e de disputa existente entre diversos
atores para assumir a condição de narrador.
Palavras-chave: mensalão, narrativa, narrador.

A STUDY OF THE NARRATOR IN NEWS PIECES ABOUT THE


MENSALÃO
Abstract
The narrative is present in the journalistic communication as a linguistic form that
orders and increases the visibility of reality. It is composed of many elements, among
which is the narrator. This essay seeks to identify the narrator in the news about the
Brazilian political scandal known as the mensalão published in the newspaper Folha de São
Paulo between June 6th and 12th, 2005. The pragmatic analysis of the journalistic narrative
has provided methodological support for the identification of the narrator in news pieces.
The results obtained here highlight the quarrelsome and disputing relationship among
many actors in order to assume the condition of narrator.
Key words: mensalão, narrative, narrator.

Introdução

O presente trabalho tem como objetivo identificar, por meio da análise pragmática
da narrativa jornalística, o narrador nas notícias provenientes da imprensa escrita. Para
Motta (2007), a análise pragmática da narrativa é o estudo dos princípios que regulam o uso
da linguagem na comunicação, ou seja, as condições que determinam tanto o emprego de
um enunciado concreto, por parte de um emissor concreto, em uma situação comunicativa
concreta, bem como sua interpretação por parte do destinatário.

A análise pragmática da narrativa é, portanto, um procedimento que determina o


uso da linguagem, especialmente daqueles aspectos que um estudo puramente gramatical
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não poderia fazer referências, tais como: noções como emissor, destinatário, intenção
comunicativa, contexto verbal, situação ou conhecimento do mundo.

Para a presente análise, que tem como foco o narrador nas notícias jornalísticas,
utilizamos como objeto de estudo um escândalo político brasileiro que ganhou visibilidade
em meados do ano de 2005, e que marcou a história recente da política brasileira, qual seja,
o mensalão[1]. A análise foi realizada a partir de um conjunto de notícias referentes ao
assunto, 121 ao todo, publicadas no jornal Folha de São Paulo no período de 6 a 12 de junho
de 2005.

O recorte temporal, que contempla o período de uma semana, acompanhou a


trajetória do evento como um desencadeamento que apresentou início, meio e fim. O
marco inicial foi a primeira entrevista que o Presidente Nacional e Deputado Federal do
PTB, Roberto Jefferson, concedeu a esse veículo de comunicação e, o marco final, a
segunda entrevista ao mesmo veículo.

A narrativa e o narrador nas notícias sobre o mensalão

Roland Barthes (1976) afirma que a narrativa está presente em todos os tempos,
lugares, sociedades e que ela começa com a própria história da humanidade. Vivemos, pois,
rodeados pelas narrativas, que podem ser encontradas no mito, na fábula, no conto, no
romance, na pintura ou no cinema.

Na comunicação jornalística não é diferente, a narrativa está aí presente como uma


linguagem que confere visibilidade e ordena continuamente a realidade, dotando o contexto
social de significados culturais. Os jornalistas, sabe-se, buscam relatar acontecimentos e,
assim, fornecem ao(s) leitor(es)/telespectador(es) a sua versão da realidade.

Esses profissionais disponibilizam notícias que irão provocar efeitos estéticos como
indignação, emoção, surpresa, etc. Com todos esses elementos oferecidos pela comunicação
jornalística as pessoas podem construir narrativas para compreender o mundo real.

As narrativas dão sentido e significação à vida humana, uma vez que, por meio
delas, construímos o passado, presente e futuro. Conforme ressalta Motta (2005), narrar
não é contar ingenuamente uma história, é, antes, uma atitude argumentativa, um
dispositivo persuasivo de linguagem, posto que, quem narra quer, de fato, produzir certos
efeitos de sentido através da narração.

A entidade que narra uma história é o narrador, o responsável por construir o


enredo, organizar os discursos, apresentar e nomear as vozes. Além deste, ainda estão
presentes outras entidades como o autor, leitor e personagens. O leitor e o autor habitam o
mundo real. É função do autor, por um lado, criar um mundo alternativo, com cenários e
eventos que formem a história. Por outro lado, cabe ao leitor a função de captar a
sequência dos acontecimentos e interpretar a história. As personagens são, por seu turno,
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imprescindíveis para que a narrativa seja efetivada e habitam o mundo da história e exercem
diferentes papéis como: protagonistas, coadjuvantes ou figurantes.

Não obstante, no texto jornalístico, a posição do narrador nem sempre é


claramente percebida, justamente pela existência de uma relação tensa entre os vários atores
da notícia que disputam o papel do narrador. Entre eles pode-se destacar o jornal, o
jornalista e as personagens.

Ao se propor identificar o narrador no texto jornalístico, por meio da análise


pragmática da narrativa jornalística, é preciso que se esteja ciente dessa dificuldade e, por
isso, para identificá-lo é fundamental que se observe os seus pontos de vista, retórica e
intencionalidades comunicativas implícitas ou explícitas.

A análise da narrativa jornalística não é a aplicação da narrativa literária, pretende


muito mais, pois, trata-se de uma narrativa fática, o que difere da narrativa literária que é
ficcional.. E isso constitui um diferencial. Na narrativa jornalística é preciso levar em
consideração o narrador e sua condição de produção, a enunciação, a narrativa em si
mesma, a narratividade implícita ou explícita e os processos de interpretação da audiência.
Só assim é possível chegar até as intencionalidades e descortinar uma compreensão integral
do processo de comunicação narrativo (Motta, 2007).

As notícias jornalísticas oferecem mais do que um fato, oferecem tranqüilidade e


familiaridade em experiências comunitárias partilhadas, fornecem respostas credíveis a
perguntas desconcertantes e explicações prontas dos fenômenos complexos, tais como as
relações de poder e os escândalos políticos (Bird & Darlenne apud Traquina, 1999).

Para observar quem é o narrador nas notícias jornalísticas é preciso perceber a


notícia como narrativa que não pode ser concebida sem conflitos, sem enfrentamentos
entre personagens, sem rompimentos e tensões, sem ações. Dessa forma, a narrativa das
notícias sobre o mensalão constituiu-se num campo de disputa, permeado de conflitos, onde
jornal, jornalista e personagem lutaram pela posição do narrador do acontecimento. A
existência de uma tensão contínua entre vários atores nas narrativas viabilizou, pode-se
afirmar, a presença de mais de um narrador nas notícias.

Necessário observar que as notícias jornalísticas são construídas como forma de


exercício e de hegemonia nos distintos lugares e situações comunicativas e, por isso, é
natural que o conflito tenha permeado a tessitura das notícias sobre o mensalão. O conflito
realçou o papel de destaque dos narradores ao transmitirem uma “versão da realidade”, e
foi o pano de fundo das notícias.

O episódio do mensalão mostrou a relação de poder entre a mídia e a política na


construção do narrador da notícia. A tensão permanente das personagens, “atores
políticos”, por uma desejada visibilidade, fez com que eles disputassem o papel do narrador
com os jornalistas e jornais, ou seja, os “atores midiáticos”. Essa disputa demonstrou que
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assumir uma narrativa traz visibilidade para a figura do narrador.

Os narradores do escândalo político

Ao observarmos as notícias sobre o mensalão no jornal Folha de São Paulo, levantamos


alguns pontos que nos permitiram localizar a figura do narrador nessas notícias, tais como:
a identificação do narrador predominante e do narrador secundário e a identificação de
cada um deles na enunciação. Entre as técnicas da análise pragmática da narrativa
jornalística utilizadas podemos destacar os efeitos de sentido, citações, identificação
sistemática dos lugares e das personagens.

Numa breve descrição das notícias analisadas, podemos ressaltar que a entrevista do
deputado Roberto Jefferson, no dia 6 de junho de 2005, antecedeu ao surgimento das
notícias sobre o mensalão. Já as notícias publicadas após a primeira entrevista estiveram
imbuídas em desvendar a denúncia, buscar provas e testemunhas, ouvir os envolvidos no
escândalo. Para identificar o narrador nas notícias elaboramos uma breve síntese dos
assuntos abordados nos respectivos dias, para fornecer uma cronologia do acontecimento
após a repercussão da primeira entrevista de Jefferson.

O jornal Folha de São Paulo publicou com exclusividade, no dia 6 de junho de 2005,
uma entrevista que tornou público o mensalão. Renata Lo Prete foi a jornalista que conduziu
a entrevista onde “Roberto Jefferson, presidente nacional do PTB, afirma que o tesoureiro do PT,
Delúbio Soares, pagava um “mensalão”a parlamentares em troca de apoio ao Congresso. Eram, diz, R$
30 mil mensais entregues a representantes do PP e do PL pelo menos até janeiro”. (Folha de São Paulo,
6 jun, p. 1).

Além da longa entrevista de Jefferson, esse dia também contou com outras matérias
que trançaram, por exemplo, o perfil de Jefferson como “petebista que liderou tropa de choque de
Collor”. (Folha de São Paulo, 6 jun, p. 4) bem como o de Delúbio Soares, denunciado por
Jefferson como operador do mensalão.“Delúbio Soares tem pretensão eleitoral”, afirmou o jornal
(Folha de São Paulo, 6 jun, p. 5). Outras matérias, ainda, destacaram que Jefferson avisou ao
presidente Lula sobre o mensalão e, outra, que Jefferson reconhecia a necessidade de uma
CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito.

O objetivo das notícias do dia 7 de junho foi o de dar desdobramento ao fato,


apurar e ouvir os supostos envolvidos (Delúbio Soares e José Dirceu), citados por
Jefferson, na entrevista exclusiva concedida no dia de 6 de junho, ao jornal Folha de São
Paulo. O conjunto de matérias abordou as personagens que, direta ou indiretamente, sabiam
do mensalão, conforme entrevista de Jefferson. (Folha de São Paulo, jun, p. 5 e 6). Essas
fazem parte tanto do governo, como Aldo Rebelo e Ciro Gomes, quanto da oposição e, ai,
inclui-se Marconi Perillo e César Maia. As notícias também destacaram as estratégias de
defesa do governo e dos partidos aliados para conter o escândalo.

No dia 8 de junho, a temática das notícias continuou a ser a repercussão da


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entrevista concedida por Jefferson no jornal Folha de São Paulo e algumas conseqüências, em
decorrência das denúncias, começaram a ser desencadeadas como a mudança na diretoria
de algumas estatais como mostrou a matéria de capa “Governo aceita CPI e muda estatais”.
(Folha de São Paulo, jun, p.1). Outras matérias, ainda, destacaram a preocupação do
presidente Lula com o escândalo dentro do seu governo. Lula ao ser questionado por
jornalistas mencionou que iria “cortar na própria carne”, caso necessário. A metáfora fazia
uma alusão à punição de possíveis membros do governo envolvidos no escândalo.
Destaque-se, em adição, matérias que abordaram o aumento no tom das críticas por parte
da oposição, que destacaram o pedido de cassação ao deputado Roberto Jefferson, movido
pelo Partido Liberal - PL e, por fim, um destaque a movimentação pela instalação da CPI.

As notícias do dia 9 de junho mostraram mais conseqüências do desdobramento


das denúncias, no sentido de as tornarem mais concretas. Matérias como: “Senado define
nomes e CPI começa hoje” (Folha de São Paulo, jun, p.1) e “Câmara inicia processo para cassar
Jefferson” (Folha de São Paulo, jun, p.7), mostraram essas conseqüências. No conjunto das
notícias destacam-se os seguintes fatos: dirigentes foram afastados dos cargos dentro das
estatais; Jefferson anuncia a existência de 52 gravações em seu domínio e o presidente Lula
tenta afastar o foco da mídia no escândalo em seu governo e coloca em pauta o tema da
reforma política. As matérias mostram uma crise acentuada que torna visível o conflito do
governo com o Partido dos Trabalhadores – PT.

No dia 10 de junho as notícias mostraram uma tensão em torno da disputa pelo


controle da CPI como mostrou as seguintes matérias: “Disputa por controle paralisa CPI.”
(Folha de São Paulo, jun, p.1), “Governo tenta controlar CPI, oposição reage e adia votação.” (Folha
de São Paulo, jun, p.4) e “Governo e oposição travam duelo de CPIs”. (Folha de São Paulo, jun,
p.5). Outras matérias deram destaque às críticas da oposição ao governo e outras matérias, a
resposta do governo às críticas. Jefferson negou a existência das 52 gravações. Observando
as matérias foi possível notar que a crise provocada pelo escândalo estremeceu ainda mais
as relações entre governo e PT.

As notícias do dia 11 de junho destacaram o aparecimento de provas (fitas) que


evidenciariam a corrupção dentro do governo, o PTB de Roberto Jefferson foi o alvo da
vez. Outras matérias abordaram os efeitos da crise na economia além de mostrar a
desistência do governo em colocar a questão da reforma política em discussão e por último
um destaque a formação da CPI.

No dia 12 de junho o jornal Folha de São Paulo publicou a segunda entrevista


exclusiva do deputado Roberto Jefferson após uma semana da primeira entrevista que
desencadeou a maior crise política do governo do presidente Lula. Renata Lo Prette mais
uma vez entrevista o deputado e destaca na matéria de capa que “o presidente do PTB,
deputado Roberto Jefferson (RJ), afirma que o dinheiro do “mensalão” pago pelo PT a deputados de
partidos aliados no Congresso vinha de estatais e empresas do setor privado”. (Folha de São Paulo, jun,
p.1). As matérias desse dia destacaram que Jefferson não tinha provas além da experiência
vivida, mostraram o desentendimento entre PT e o governo na questão de preservar
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Delúbio Soares no quadro partidário. Após analisar as 121 notícias não identificamos a
presença de um único narrador nos enunciados do mensalão, mas a presença dos três
narradores apresentados por Motta (2007) como o narrador-mediador, o narrador-
testemunha e o narrador-personagem.

O narrador-mediador (de fundo): é o que jornal convoca, apresenta e nomeia as vozes


(omitindo outras); organiza, ordena, prioriza os discursos (omitindo outros). É difuso,
discreto e impessoal. Utiliza linguagem indireta, quase sempre na terceira pessoa.

O narrador-testemunha (de superfície): o jornal se personaliza no jornalista. O “eu”


narrador torna-se presente, assume uma personalidade ao testemunhar os fatos. É discreto,
narra quase sempre na terceira pessoa, mas pode narrar na primeira pessoa.

O narrador-personagem (explícito): é a personagem que assume o estatuto da


enunciação, confundindo-se com o enunciado. Sua voz pode se autonomizar (até certo
ponto) e tensionar a relação com os dois narradores anteriores.

As narrativas mostraram que apesar da existência de vários narradores, um dos


narradores se destacava entre os demais, ocupando maior espaço na narração dos eventos.
As notícias apresentaram um narrador predominante e narradores secundários que em
espaços menores assumiram a narrativa jornalística. O narrador que mais predominou nas
notícias foi o narrador-testemunha (jornalista) 63 notícias, seguido pelo narrador-mediador
(jornal) 37 notícias e o narrador-personagem (personagem) em 21 notícias.

As notícias nas quais o narrador-testemunha ocupou maior espaço na transmissão dos


acontecimentos foram assinadas pelos jornalistas e isso demonstrou uma responsabilidade
sobre a “versão da realidade” transmitida. O jornalista narrou na terceira pessoa do
singular, atuou nos bastidores da notícia, apresentando, nomeando as vozes e priorizando
discursos. No entanto, a identificação desse narrador não impediu ou coibiu a existência do
conflito que gerou a sobre-posição de vozes entre jornal e personagens para assumir o
papel do narrador. Vários efeitos de sentido foram induzidos como estratégia narrativa,
mas destaco como os mais recorrentes o sentido de indignação e desaprovação aos atos
cometidos.

O jornalista organizou, ordenou e priorizou os discursos quando, por exemplo,


escolheu dar maior destaque ao conflito entre o presidente e seu partido (PT) ou em outros
momentos quando destacou a tentativa do presidente de colocar outro assunto em
discussão para desviar a atenção exclusiva na crise. Algumas matérias retrataram muito bem
esse conflito como: “Acusações não envolvem o governo, mas o PT, diz Aldo.” (Folha de São Paulo,
7 jun, p.5), “PT racha, contraria Lula e decide preservar Delúbio.” (Folha de São Paulo, 9 jun, p.5)
e “Crise estremece relações entre o PT e Lula.” (Folha de São Paulo, 10 jun, p.6).

As notícias em que o narrador-mediador ocupou maior espaço narrativo mostraram


que o jornal, compreendido pela sua linha editorial convocou, apresentou e nomeou as
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vozes de acordo com os seus interesses. O jornal organizou e priorizou discursos utilizando
uma linguagem indireta, quase sempre na terceira pessoa.

A posição do jornal Folha de São Paulo enquanto narrador ocorreu de uma forma
difusa, impessoal e discreta o que em muitas vezes dificultou a sua identificação imediata
no texto. Essa dificuldade foi superada quando percebemos que as notícias apresentavam
uma linguagem indireta e quase sempre na terceira pessoa o que possibilitou o
enquadramento do narrador no tipo mediador por conter tais características na linguagem.
Mesmo nos momentos que este narrador predominou notamos a presença de várias
personagens que em determinados momentos assumiram a narrativa e ganharam
autoridade ao conduzir a narrativa jornalística com seu discurso direto.

O jornal relatou o episódio do mensalão dentro de critérios previamente


estabelecidos de acordo com sua linha editorial, escolheu o espaço da fala dos personagens,
omitiu narrativas de assuntos que não eram do seu interesse e com isso transmitiu a sua
versão da realidade.

A característica das notícias em que o narrador-personagem se sobrepôs aos demais


narradores foi que a personagem assumiu a enunciação e em vários momentos se
confundiu com o enunciado. A voz das personagens até certo ponto ganhou uma
autonomia mesmo com a tensão permanente com os outros narradores. Dentre as
personagens que assumiram a enunciação destaco o deputado Roberto Jefferson, o
presidente Lula, o ministro Ciro Gomes, o ministro Miro Teixeira, entre outros. As
estratégias narrativas induziram efeitos de sentidos diferenciados como surpresa e
indignação.

As notícias que as personagens ocuparam maior espaço da narrativa apresentaram


em muitos trechos uma linguagem direta e em outros uma linguagem indireta. As
personagens se posicionaram sobre as denúncias de escândalo do governo Lula como
mostrou as seguintes matérias: “Perillo e Maia dizem saber da mesada” (Folha de São Paulo, 7
jun, p.1), “Miro afirma que ministro participou de esquema”, “Governador conta que avisou Lula”,
(Folha de São Paulo, 7 jun, p.6) e “Jefferson agora diz que não tem 52 gravações.”

Considerações finais

As notícias sobre o mensalão foram o palco da disputa entre jornal, jornalista e


personagens para assumir a narrativa do acontecimento. As enunciações estiveram, em
grande medida, sobre o domínio do jornalista, mas o jornal e as personagens assumiram
secundariamente muitos espaços narrativos.

Ao colocar em evidência a disputa pela autoria da narrativa entre três narradores


(jornal, jornalista e personagens) ficou clara a necessidade de cada um dos narradores em
direcionar o evento conforme seus interesses particulares, o que demonstrou que a
narrativa de forma alguma foi ingênua.
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O jornalista, na condição de narrador predominante, enquadrou lugares, situações e


discursos para construir a sua versão da realidade. Porém, sua identificação enquanto
narrador não foi imediata e, por isso, para identificá-lo no texto precisamos observar cada
detalhe e estratégia narrativa empregada, a fim de validar sua posição.
Os narradores utilizaram técnicas de persuasão para fazer com que o leitor aceitasse
seus discursos como o mais convincente, dentre os muitos oferecidos, ou seja, a versão da
realidade com mais credibilidade.
A análise aqui levantada mostrou a relação conflituosa e de disputa pela narrativa
entre os diversos atores, colocando em destaque os vários discursos tanto da arena política
quanto da arena midiática, o que permitiu lançar linhas de discussão de que a narrativa
jornalística é construída por meio de uma pluralidade de vozes.

Referencias bibliográficas

Barthes, Roland e outros (1971). Análise estrutural da narrativa. Petrópolis: Vozes, 1976.
Motta, Luiz G. “A análise pragmática da narrativa jornalística”. In: LAGO, C & BENETTI, M.
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Folha de São Paulo. São Paulo, 11 de junho de 2005. Ano 85, número 27.828.
Folha de São Paulo. São Paulo, 12 de junho de 2005. Ano 85, número 27.829.
[1] O mensalão foi um neologismo, popularizado pelo então deputado federal Roberto
Jefferson em entrevista que deu ressonância nacional ao escândalo. O mensalão é uma variante da
palavra "mensalidade" usada para se referir a uma suposta "mesada" paga a deputados para
votarem a favor de projetos de interesse do Poder Executivo. . A palavra "mensalão" foi então
adotada pela mídia para se referir ao caso, sua primeira aparição na imprensa escrita foi no dia 6 de
junho de 2005, no jornal Folha de São Paulo. Disponível em:
[http://pt.wikipedia.org/wiki/Escândalo_do_mensalão]. Acesso em: 22 agosto 2007.
Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras,
Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 05 Nº 08 – v. 1– 2009
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O DEUS DAS MASCARADAS NUM CONCURSO DE CARTAS


MARCADAS: UMA LEITURA D’AS RÃS, DE ARISTÓFANES

Eliane Santana Dias Debus


Doutora em Teoria Literária
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem
Universidade do Sul de Santa Catarina - Unisul

Resumo
Este texto apresenta algumas reflexões sobre o discurso do comediógrafo
Aristófanes que, na peça As Rãs, combate satiricamente às idéias de Euripedes e Ésquilo,
ridicularizando suas ações e pensamentos.
Palavras-chave: As rãs, comédia, Aristófanes,

Abstract
This paper shows some reflections about the discourse of the comediographer
Aristophanes who, in the play “As Rãs”, satirically fights Euripedes and Ésquilo’s ideas,
ridiculing his actions and thoughts.
Keywords: Aristophanes, As Rãs, Literary Criticism.

Venham contemplar o poder de duas vozes eloqüentes! Venham


ajudá-los e inspirem seus versos! Esta luta de gênios vai começar
(ARISTÓFANES, 1996, p.254).

Refletir sobre o gênero dramático, em especial a comédia greco-latina, implica


adentrar num campo movediço que, historicamente, tem a tragédia e seus principais
representantes, Ésquilo, Sófocles e Euripedes, como protagonistas. A movência se deve ao
quase silenciamento dessa modalidade de gênero dramático e a um dos seus principais
representantes contemporâneos aos tragediógrafos, Aristófanes.

A comédia, poesia imitativa norteadora deste processo de reflexão, não vai mais
imitar, como a tragédia, as ações de homens superiores - deuses, semideuses e heróis -
situados no espaço mítico, lendário e de caráter cívico, e, sim, imitar as ações de homens
inferiores - homens comuns - situados no tempo presente. Imitados não mais na
superioridade de caráter, “mas só quanto àquela parte do torpe que é o ridículo”
(ARISTÓTELES, 1973, p.118).

Aristófanes, comediógrafo ateniense, teve suas obras encenadas nos palcos


atenienses entre 403 e 408 a.C. Uma característica marcante de sua produção é a introdução
de fatos e indivíduos historicamente situados, expondo ao ridículo ações que podem ser
comparadas com o objeto imitado, levando, desta forma, a platéia ao riso. Entre suas
produções podemos citar As nuvens, As Vespas e As rãs, sendo esta última foco de nossa
leitura, estreada em Atenas em 405 a.C, período em que os três representantes da tragédia
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grega já haviam morrido.

Na comédia As rãs, o poeta ridiculariza os políticos (Clêon, Arquédemo,


Hipérbolo), os tragediógrafos (Xenoclés, Pitângelo, entre outros), os comediógrafos
(Frínico, Lísias, Ameipsias). Outros cidadãos são expostos ao ridículo por sua opção sexual,
como Clistenes, ou sua feiúra, como Eríxias. Seu maior foco de atenção, no entanto, recai
sobre a figura dos tragediógrafos Euripedes e Ésquilo, e a figura do deus Dioniso que desce
ao Hades (Inferno) em busca do primeiro.

Ao trazer para a boca de cena as coxias da escritura trágica a partir de seus


representantes, o comediógrafo “se lança à indagação sobre o próprio exercício poético dos
tragediógrafos atenienses, pactuados sobremaneira com o poder estabelecido” (NUNES,
1996, p.95).

No que diz respeito a Dioniso, iniciemos a caracterização de sua indumentária -


pele de leão, porrete e coturno - utilizada como disfarce de Hércules torna-se cômica, pois
a pele de leão é uma referência ao primeiro trabalho de Hércules que, após matar o leão de
Neméa, revestiu-se com a sua pele. O coturno fazia parte da indumentária dos atores de
qualquer um dos gêneros (comédia ou tragédia), o que os deixavam mais altos; o porrete,
podemos dizer, parodia aqui a clava fabricada por Hércules para matar o leão.

Aristófanes apresenta, no prólogo, o diálogo entre Dioniso – deus, com Xantias


-escravo, uma crítica paródica aos comediógrafos atenienses (Frínico, Lísias e Ameipsias -
seus contemporâneos), introduzindo clichês, já conhecidos do público, que provocam o
riso, como as frases que vêm destacadas entre aspas no diálogo: “Já não posso mais!”;
“Estou desancado”; “estou apertado”. O autor aceita como óbvio a presença do elemento
risível; contudo, opõe-se às técnicas e aos artífices adotados por seus colegas. Aristófanes,
por meio de seu personagem, Dioniso, julga e autoriza os elementos risíveis permitidos e
proibidos.

Dioniso, ao ler a peça Andrômaca, de Euripedes, é seduzido a descer à morada dos


mortos com o intuito de trazer o poeta trágico novamente ao mundo dos vivos. Para isso
solicita ajuda a Hércules que já havia percorrido o caminho, quando, para cumprir seu
décimo segundo trabalho, descera até lá com o objetivo de trazer o cão Cérbero.

Devemos lembrar que os deuses, como recompensa ao heroísmo, permitiam que a


alma de alguns homens retornasse do Hades. No canto XI da Odisséia, por exemplo,
Homero descreve a passagem de Ulisses/Odisseu pelo Hades em busca de notícias de sua
gente. Alceste é outra figura da lenda grega que se oferece para morrer em lugar de seu
esposo, Admeto - ato de heroísmo que leva os deuses a premiá-la, libertando-a da morada
dos mortos. A Orfeu também foi concedido o retorno quando lá esteve em busca de
Eurídice, sua esposa, mas, descumprindo a ordem dos deuses, não conseguiu trazê-la de
volta. Por esses motivos, e também por não habitar o Olimpo, sendo, portando, o Hades
um habitat ‘quase’ natural para esse deus, não se faz inverossímil a sua atitude.
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Contudo, temos como mote da cena a descida de um Deus ao Hades, em busca de


um homem comum, Euripedes, despido de poderes míticos e lendários. No discurso de
convencimento a Heracles sobre a importância de Eurípedes em relação aos seus
predecessores, Dioniso o compara ao seu modelo de bom poeta, daí a sua virtualidade:

Eles são frágeis brotos faladores, piando como andorinhas, corruptores


da arte, que tombaram vencidos pela fadiga quando compuseram uma
peça, obtendo um só voto a favor da Musa trágica. Você pode procurar,
mas não encontrará um só poeta fecundo, capaz de engendrar
pensamentos másculos (ARISTÓFANES, 1996, p.207).

Dioniso solicita a Hércules conselhos sobre o percurso a tomar em direção ao


Hades, pressupondo que a viagem tenha um roteiro de normalidade da vida cotidiana, com
paradas obrigatórias em hospedarias e prostíbulos. Hércules lhe sugere vários caminhos a
serem tomados para atingir os seus objetivos, como a morte por asfixia, envenenamento,
entre outras. O deus, no entanto, busca a rota desenvolvida por Hércules: a travessia do rio
com a barca.[1]

Hércules descreve o inferno dividido em dois espaços: um pantanoso onde habitam


as almas que na terra cometeram faltas, e outro paradisíaco para os bem-aventurados. Na
travessia, o barqueiro Cáron não permite a permanência de escravos, e Xantias é levado a
seguir a pé pelo pântano. Dioniso, por sua vez, assume o comando do remo, com a
promessa de ouvir cantos melodiosos de cisnes e rãs (paródia ao canto das sereias).

O deus e o escravo se encontram após a travessia sem que nenhum tenha


encontrado os “parricidas e os perjuros” que foram fonte de ameaça de Hércules. Dioniso
invoca o desejo de ter algum encontro, algum acontecimento, para “marcar dignamente” a
sua viagem.

Aristófanes parodia desta forma outras descidas ao Hades, colocando os


acontecimentos desejados por Dioniso no plano mundano, sendo ultrajado e levando
surras de outros no lugar de seu escravo Xantias. Apresenta o deus em cena escatológica ao
pedir para ser limpo por uma esponja, primeiro afirmando ser no coração, mas por fim
revela ser no baixo ventre o destino da limpeza - o deus se “borrou” de medo. Criticado
por Xantias pela covardia, Dioniso afirma: “Um covarde ficaria sujo, mas eu me virei e me
limpei” (ARISTÓFANES, 1996, p.232).

O escravo do Hades trava diálogo com Xantias e lhe explica os desentendimentos


entre Ésquilo e Euripedes: a disputa pelo lugar ao lado de Hades, já que impera a lei de que
cabe ao homem superior aos seus rivais nas artes nobres e engenhosas ocupar este lugar.

Hades cria, então, um concurso para julgar o talento dos dois poetas, tendo como
árbitro o deus Dioniso. O poeta cômico parodia, desta forma, os festivais públicos que
escolhiam a melhor peça através de juízes contratados pelo estado; o poeta que fosse
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contra a norma vigente dificilmente sairia vencedor.

A disputa no Hades também tem suas prerrogativas, haja vista que o expectador,
bem como o leitor, já sabe de antemão que o juiz tem o seu escolhido mesmo antes da
exposição. O que parece ser, num primeiro momento, um combate injusto torna-se uma
surpresa.

Dioniso, para dar início ao concurso, solicita aos participantes que façam suas
invocações aos deuses. Destaca-se aqui o lado religioso de Ésquilo que invoca Deméter, ao
contrário de Euripedes que vai invocar novos deuses - o “Éter”, a “Volubilidade da
Linguagem”, a “Fineza do Espírito” e o “Olfato Sutil”.[2]

Os dois tragediógrafos expressam, no embate, um sistema racional de análise


poética da sua produção, bem como do adversário; analisando os meios, os objetos e os
modos os quais se utilizam no processo imitativo. Senão vejamos:

Ésquilo critica o seu rival de intrigante, mentiroso, declamador de tolices. Ressalta,


antes de tudo, o gosto de Euripedes pela imitação de ações mundanas - “fabricante de
estropiados”, que tenta inspirar piedade já pela aparência desgraçada de seus personagens e
não pelos desígnios do destino, e que degrada as ações, transformando em más as boas
qualidades.

Ésquilo, por sua vez, diz ter enobrecido tudo: criado personagens providos de
dignidade em ações elevadas, com linguagem sublime e figurinos adequados a deuses e
semideuses. E afirma que tentou incutir o caráter cívico na juventude, apresentando
tragédias cheias de espírito marcial, conseguindo manter a ordem e a subordinação;
enquanto Euripedes subverteu a ordem, incitando a corrupção juvenil pelo pensamento,
aguçando o espírito de insubordinação.

Ésquilo critica a artificialidade da linguagem utilizada por Euripedes, pois, retirado


o aparato composicional, nada fica do texto, podendo a ele ser acrescentada qualquer coisa,
como o faz introduzindo a frase “... perdeu sua garrafinha” aos prólogos de Euripedes.

Euripedes acusa Ésquilo de charlatão, enfatizando o uso da linguagem de seu rival


que, segundo ele, seria desordenada, empolada e soberba. Uma linguagem deliberadamente
obscura, provida de palavras enormes que acabam por “confundir” a inteligência da platéia.
Acusa-o de manter o público em expectativa, colocando o personagem esperado em cena,
mas encoberto com um véu. Critica o coro e sua repetitividade já que podem ser resumidos
em um só.

Euripedes dá continuidade a sua defesa afirmando ter utilizado uma linguagem


mais humana, sendo popular e agradável ao “povão”. Introduz, logo, no prólogo, os
antecedentes da tragédia, fazendo entrar em cena a vida cotidiana, apresentando ao público
ações próximas das suas vivências, dando voz e ação a todos os personagens
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indiscriminadamente. Ele acredita ter ensinado o povo a falar e a pensar ao introduzir o


raciocínio e a reflexão em suas tragédias.

Dioniso, por fim, utiliza-se de uma balança, sugerida por Ésquilo, para julgar, pesar
literalmente a poesia e as expressões dos dois poetas. Nesta contenda, Ésquilo é o vencedor
por colocar coisas pesadas em seus versos (“morte”, “cadáver”, entre outros).
Questionados por Dioniso sobre o melhor conselho para a cidade de Atenas, a respeito de
Alcibíades, Euripedes tenta vencer pela persuasão, mas Dioniso dá vitória a Ésquilo.

O coro adverte o vencedor - Ésquilo- a não travar contato com Sócrates, que
desdenha a música e as partes mais importantes da arte trágica: “É loucura perder tempo
em conversas ociosas, em sutilezas frívolas”. Esta aversão a Sócrates será desenvolvida por
Aristófanes n’As nuvens[3].

Podemos dizer que n’As rãs existem quatro momentos de juízo crítico da produção
de Euripedes e Ésquilo, além, é claro, das emitidas por eles no embate. O primeiro
momento dá-se no diálogo entre Dioniso e Hércules. O deus, no prólogo, considera
Euripedes o modelo exemplar de poeta, astucioso, fecundo, “capaz de engendrar
pensamentos másculos” e “capaz de inventar expressões ousadas”. Hércules dá ganho de
causa a Ésquilo, considerando Euripedes tagarela, e acusando-o de dizer bobagens e de ser
inferior a Ésquilo e Sófocles.

O segundo momento dá-se no discurso do coro. A neutralidade presentificada


quando o coro denomina a disputa de “luta de gênios”, de “duas vozes eloqüentes”,
transforma-se num posicionamento definido em favor de Ésquilo (“contribui com um
brilhante adorno para os concursos de tragédias” (ARISTÓFANES, 1996, p.260). / “rei das
festas de Dioniso”(IDEM, p.276) / “Cantos líricos superiores”(Idem) e, contra Euripedes,
já anunciada (“incontrolável tagarelice”(Idem), “minguado recursos de espírito”(Idem).

O terceiro momento acontece na neutralidade de Dioniso, que no momento da


disputa coloca-se ora em favor de um, ora de outro. O quarto, e último, momento
apresenta-se quando o próprio autor da comédia, Aristófanes, assume uma posição
declarada contra os procedimentos de Euripedes, e em favor dos de Ésquilo. Ataca não só
Euripedes como também Sócrates ao declarar, na voz do coro, a possível influência do
pensador sobre os tragediógrafos.

Feliz o homem totalmente sábio! Milhares de provas atestam a


veracidade desta afirmação. Este por ter sido sábio, voltará a ver a
sua casa, o que é uma vantagem para seus concidadãos, para seus
parentes e seus amigos; ele deverá tudo à sua sapiência. É bom
então não ficar perto de Sócrates conversando com ele,
desdenhando a música e as partes mais importantes da arte
trágica. É loucura perder tempo em conversas ociosas, em
sutilezas frívolas (IDEM, p.288).
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Dioniso foi ao Hades buscar Euripedes, mas sai com Ésquilo e justifica o ato a
Euripedes utilizando parte de um verso seu retirado de Hipólito: “Minha língua juro, mas
escolho Ésquilo” (IDEM, p.287) que assim poderíamos traduzir “O coração prometeu,
mas a língua não prometera”. Podemos entender esta frase como uma sátira à descrença de
Euripedes à intervenção milagrosa das divindades presente nos registros épicos, pois ele já
deveria saber que não poderia acreditar totalmente no deus das mascaradas neste concurso
de cartas marcadas.

Referências

ARISTÓFANES. As rãs. In: As vespas, As aves, As rãs. Trad. Mário da Gama Kury. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
_____. As nuvens. Trad. Gilda Maria Reale Starzynski. São Paulo: Abril Cultural, 1972.
ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
DEBUS, Eliane Santana Dias. Os discípulos e o comediógrafo: diálogo entre o bem e o
mal das idéias socráticas. In. Revista Querubim, Ano 4, n.06, 2008. (inserir endereço
eletrônico)
GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e latina. Trad. Victor Jaboville. 2.ed. Rio de
Janeiro: DIFEL, 1993.
HOMERO. Odisséia. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1960.
NUNES, Carlinda Fragale Patê. A comédia greco-latina: de Aristófanes e Menandro a
Plauto e Terêncio. In: SCHÜLLER, Donaldo; GOETTEMS, Miriam Barcellos. Mito:
ontem e hoje. Porto Alegre: Ed.UFRGS, 1990.

[1] O dramaturgo português Gil Vicente, no século XV, vai retomar o tema mitológico com a sua
trilogia das barcas (Auto da barca do inferno, Auto da barca do purgatório e Auto da barca da glória). Na
mitologia grega, as almas atravessavam, para chegar ao Hades, o rio Letes na barca de Cáron “o
gênio do mundo infernal” que recebia como pagamento pelo serviço uma moeda (um óbolo).
[2] Na comédia As nuvens, Aristófanes descreve Sócrates invocando novos deuses, entre eles, o Éter.
[3] Tal tema foi desenvolvido por mim no artigo Os discípulos e o comediógrafo: diálogo entre o
bem e o mal das idéias socráticas, Revista Querubim, 2008.
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A LITERATURA INFANTIL COM TEMÁTICA AFRICANA E AFRO-


BRASILEIRA: ALGUMAS REFLEXÕES[1]

Elika da Silva
Graduada em Pedagogia
Unisul – Universidade do Sul de Santa Catarina

RESUMO
Este artigo tem como objetivo refletir sobre a literatura infantil que tematiza a
cultura africana e afro-brasileira levando em conta as demandas da Lei nº 10. 639 MEC, de
09 de janeiro de 2003, que instituiu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-
brasileira e africana no currículo escolar do ensino fundamental, e a Lei n. 11.645, que
alterou a Lei nº 10.639/2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional,
para incluir, no currículo oficial da rede de ensino, a obrigatoriedade da temática “História e
Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.
Palavras-chave: literatura infantil, cultura afro-brasileira, cultura africana, currículo escolar.

ABSTRACT
This article aims to reflect on the children's literature that edge to African culture
and African-Brazilian taking into consideration the demands of Law No. 10. 639 MEC,
from 09th January 2003, which imposed the disciplines of African-Brazilian and African
history and culture in elementary school, and the Law 11.645, which amended Law No
10.639/2003 establishing the guidelines and bases for national education, to include in the
official curriculum of the school system, "Afro-Brazilian and Indian History and Culture".
Key words: Children Literature, African-Brazilian Culture, African Culture, School
Curriculum.

LITERATURA INFANTIL COM TEMÁTICA AFRICANA E AFRO-


BRASILEIRA EM UMA ESCOLA PÚBLICA DE FLORIANÓPOLIS
“PROJETO MALUNGO”

1 – Breve histórico da literatura infantil

A literatura infantil brasileira na contemporaneidade vem conquistando mais espaço


no mercado editorial, e os autores apresentam novos olhares sobre o que escrever a este
público, principalmente os que trazem discussões a respeito de relações étnico-raciais.

No período que a literatura infantil e juvenil começou a ser produzida no Brasil, em


torno de 1894, a produção era marcada pelo fim recreativo: livros adaptados da literatura
européia por Figueredo Pimentel e Carlos Jansen. A partir de 1906, os títulos se direcionam
a fins didáticos, utilitários e ufanistas, com os livros de Olavo Bilac, Manuel Bonfim, Júlia
Lopes de Almeida, etc. (LAJOLO; ZILBERMAN, 1990).
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É importante destacar que a história da literatura infantil e juvenil no Brasil só se


constitui a partir das décadas de 1920 e 1930 quando o País se distancia da dependência da
cultura de Portugal. Neste período, o país procurou valorizar a criação de sua própria
literatura, e começa a preocupação “de abrasileirar a linguagem dos textos escritos para
crianças vindos de fora, para torná-los mais atraentes” (PERROTTI, 1986 p. 57).
Perrotti afirma também que:

Se não temos notícia de circulação de livros destinados às crianças senão


depois da vinda da Família Real, a tradição colonial, todavia, pesou sobre
o destino das publicações para crianças no Brasil do século XIX. (...) A
“condição colonial” significou para nós uma dependência cultural de
Portugal que na literatura para crianças perdurou pelo menos até o inicio
do século XX, quando uma reação nacionalista tomou corpo e o Brasil
começou a produzir livros infantis. (PERROTTI, 1986, p.57).

Foi através de Monteiro Lobato, que a literatura infantil e juvenil realmente


começou a ser produzida voltada exclusivamente para este público, “o homem que
literalmente deu corpo real à nossa literatura infantil” (PERROTTI, 1986, p.58).

A literatura infantil e juvenil vai se transformando, os autores têm a preocupação


não só de ensinar, acreditavam que a literatura não seria só utilitária e didática, mas sim uma
literatura desinteressada, em busca de prazeres e emoções. Lourenço Filho, em 1943, ao se
referir à questão, destaca que a função primeira da obra literária para as crianças, “Como no
adulto (ela deve ser) objeto de contemplação ou de função estética, para deleite do espírito,
fonte de sugestão, recreação, ou evasão e catarsis”. (Apud: PERROTTI, 1986, p. 70).

O período de modernização do Brasil possibilitou que a literatura destinada à


criança fosse efetivada, como pondera Gouveia (2000, p.5),

(...) a urbanização crescente, a exigir uma população identificada com os


códigos citadinos, em que as práticas sociais de leitura se faziam
necessárias, as reformas de ensino que tinham como um de seus
pressupostos o desenvolvimento na criança do gosto pela leitura, à
afirmação de uma família burguesa centrada nos cuidados à infância, em
termos gerais, tornaram possível a consolidação de uma literatura voltada
para o leitor infantil.

2 – A literatura infantil e a questão étnico-racial

O Brasil, ao longo de sua história, desenvolveu práticas excludentes, embora tenha


passado pela abolição, ainda permanecia com pensamentos e atitudes escravistas. Apesar de
vários autores tentarem trazer em suas narrativas a identidade brasileira através da
recuperação de sua gente, suas raízes e culturas, as literaturas construídas, levando em conta
a questão racial, quando não era ausente, apresentava os afrodescendentes como parte de
cena doméstica, como argumenta Gouveia (2000, p.7) “o negro era personagem mudo,
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desprovido de uma caracterização que fosse além da referência racial. Ou então


personagens nos contos que relatavam o período escravocrata”.

O olhar distorcido sobre a importância da cultura africana na história do país, sofre


conseqüências até os dias de hoje, pois vivemos em uma sociedade discriminatória, onde só
uma pequena parte da população tem seus direitos garantidos. Os pobres, os negros, os
índios e outros sofrem a conseqüência de um país que deveria ser “democrático”, embora
todos façam parte de uma só sociedade, poucos têm muito.

Monteiro Lobato embora seja o representante de um novo olhar sobre o leitor


infantil carrega em seus textos traços preconceituosos, como pode ser destacado através da
maneira como Tia Nastácia é apresentada pelas personagens e pelo narrador: “negra
beiçuda”, “negra de estimação”, etc. As personagens negras são submissas, se lembrarmos
de Tia Nastácia e Tio Barnabé ou a personagem folclórica Saci.

Na atualidade existem vários livros infantis e juvenis que mostram a cultura africana
como suas danças, costumes, religiões, e outras. Podemos ler hoje histórias de princesas e
príncipes negros, assim como contos africanos e vários personagens negros em histórias
comuns do dia-a-dia das crianças. Debus (2006b, p.9) afirma que:

(...) A obra literária exerce no leitor um ‘poder’, seja negativo, seja


positivo. No primeiro caso, ao trazer para o leitor personagens submissas,
sem noção de pertencimento, desfiguradas de sua origem étnica, não há
ampliação do seu repertório cultural, o que colabora para uma visão
deturpada de si e do outro. Por outro lado, a identificação com
personagens conscientes de seu papel social, de suas origens, e
respeitosos diante da pluralidade cultural acena para uma relação de
respeito ao outro.

A literatura infantil hoje ganhou novas características, temos uma variedade de


obras e escritores, mas o aparecimento de novos livros e escritores não significa
necessariamente que todos têm boa qualidade ou são inovadores esteticamente.

3 – A literatura infantil como possibilidade de emancipação do leitor

A função social da literatura só se faz manifesta na sua genuína


possibilidade ali onde a experiência literária do leitor entra no
horizonte de expectativas da prática de sua vida, pré-forma sua
compreensão de mundo e com isto repercute também em suas formas de
comportamento social.
Hans Robert Jauss

A literatura infantil possibilita a emancipação do leitor, já que ela é um grande


caminho para formar leitores, e assim repercutir no comportamento social, a partir de
reflexões e não imposições, embora em sua origem teve um fim direcionado, como observa
Zilberman (2003, p.71) “a literatura infantil originou-se da valorização que recebeu a
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infância a partir do século XVIII e da necessidade de educá-la, o que por sua vez, decorreu
da centralização da sociedade em torno da família burguesa”.

No século XVIII, houve uma transformação de tratamento e uma nova


compreensão de infância. A mudança se deu a uma nova noção de família, segundo
Zilberman (2003, p.15) “... inexistia uma consideração especial para com a infância. Essa
faixa etária não era percebida como um tempo diferente, nem o mundo da criança como
um espaço separado”. Portanto não seria necessária uma literatura específica para esse
público, no entanto a noção de família gerou o cuidado e a preocupação com a infância.
Daí surgiu a escola e os produtos culturais para a infância, entre eles a literatura infantil,
com o intuito de passar valores e controlar o desenvolvimento intelectual das crianças.
Neste sentido, Zilberman (2003, p. 34) destaca que:

Para conceituar-se a literatura infantil, é preciso proceder a uma


consideração de ordem histórica, uma vez que não apenas o gênero tem
uma origem determinável cronologicamente, como também seu
aparecimento decorreu de exigências próprias da época (...) as ascensões
respectivas de uma instituição como a escola, de práticas políticas, como
a obrigatoriedade do ensino e a filantropia, e de novos campos
epistemológicos, como a pedagogia e a psicologia, não apenas inter-
relacionadas, mas uma conseqüência do novo posto que a família e
respectivamente a criança adquirem na sociedade. É no interior dessa
moldura que eclode a literatura infantil.

Os livros de literatura infantil que têm no período a função de propagar valores


começam a ser lançados. Entretanto, mesmos nos contos de fadas tradicionais, existe um
exemplo de vida familiar a ser seguido, assim como várias outras histórias infantis que
trazem valores com seus finais sempre mostrando que o correto é seguir as orientações
familiares e não sair deste cerco, que é a família sua melhor estrutura de segurança com o
pai provedor do sustento e mãe responsável pelo lar e pela preservação dos filhos.

Embora o conceito de infância, hoje tenha novos valores, ainda se encontram livros
que perpetuam valores conservadores e de dominação. A questão é que o mercado editorial
(escritores, editores, agentes culturais) nem sempre estão comprometidos com a qualidade,
mas sim com a quantidade de livros que irão vender. Por isso, a questão da representação
dos afrodescendentes na literatura infantil ainda é uma lacuna a ser preenchida, por mais
que a literatura infantil brasileira tenha contemplado o tema em suas narrativas, e apesar das
editoras e autores estarem mais preocupados com a questão étnica, ainda há muito a ser
conquistado, pois o que mais aparece ainda nos livros infantis, são os modelos de famílias
européias.

Zilberman (2003, p.225) quando escreve sobre a mudança de rumo da literatura


infantil brasileira, cita dois autores da modernidade como os principais protagonistas de
novos olhares sobre a literatura infantil, Joel Rufino dos Santos[2], com O soldado que
não era (1985) e Ana Maria Machado[3] com Do outro lado tem segredo (1985). Com
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esses autores “rompem-se necessariamente os laços ideológicos da literatura infanto-juvenil


com o aparelho escolar” (p.223), pois nesses títulos os autores destacam heróis populares,
homens, mulheres e negros, mostrando que sem o sangue desta gente não haveria vitória, e
trazendo também informações mais completas “sobre o aprisionamento e escravização dos
negros africanos, suas constantes revoltas, o papel do líder Zumbi...” (ZILBERMAN, p
224);

Zilberman (2003, p.226) aponta que:

(...) ambos os livros interiorizam o problema, fazendo que as


personagens discutam o esquecimento e tratem de preencher esta lacuna
com dados verídicos sobre a realidade e tradição. Graças a tais escolhas, a
literatura infanto-juvenil também se transforma e modifica a tendência de
ser mera parceira dos números oficiais, rumando para sua autonomia
artística e valorização estética.

Percebe-se que a literatura infantil percorreu um grande e difícil caminho,


entretanto, muito ainda tem que se caminhar principalmente quando nos referimos à
literatura infantil que tematiza a cultura africana e afro-brasileira. Pois temos que estar
atentos sobre a qualidade dos textos, pois eles devem tornar os leitores infantis, orgulhosos
de identificar-se com um povo, seja ele qual for, e assim aprender a respeitar as diferenças e
aprender com elas.

Infelizmente, nos acervos das escolas públicas essa literatura ainda não é muito
presente, apesar de ser instrumento de suma importância na contextualização desta cultura.
Existe no mercado editorial uma grande variedade de literatura infantil com essa temática, a
escola e o educador podem ter em suas mãos uma variedade de literatura infantil, capaz de
proporcionar aos seus alunos um conhecimento e reconhecimento da cultura africana e
afro-brasileira.

Muniz Sodré (apud THEODORO, 2005, p.85), prefaciando Contos Crioulos da


Bahia, de mestre Didi, afirma: “Os mitos, as lendas, os contos populares, sempre foram
vias de acesso ao inconsciente de um povo”. Neste contexto, os contos de Didi são
excelentes fontes de estudos, pois distinguem abertamente a cultura afro-brasileira.

Os contos do Mestre Didi contextualizam a resistência dos escravos ao processo


escravista. Existem vários contos africanos, lendas e mitos que mostram a luta dos escravos
e sua consciência cultural. Theodoro (2005, p. 86) ressalta que:

A representação do povo brasileiro afrodescendente vai ser encontrada


na obra dos compositores populares, que fazem uma literatura plena de
ethos, de identidade, criando poesia, provando que a reflexão sobre a
realidade não é privativa dos letrados ilustres, mas também daqueles
capazes de transformar a natureza a partir da prática adquirida por seu
trabalho. Essa capacidade de criar e falar do país, de sua gente, de seus
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costumes, de sua fé, do cotidiano é a invenção da arte negra, que flui tal e
qual magia ritual, transformando o que não se consegue por meio de
formas técnicas.

A literatura tem uma participação em nossa vida, invade o nosso imaginário, pois
nela conhecemos e reconhecemos lugares e personagens que nos fascinam. Na literatura
brasileira, no entanto, o negro, por muito tempo, apareceu discriminado ou inferiorizado.
Sabemos que as narrativas para o leitor, principalmente jovens, influenciam muito seu
imaginário como um espaço de sonhos, emoções e imaginação. Toda obra literária também
transmite mensagens através das imagens ilustradas, imagens que fascinam os leitores e os
revelam uma visão de mundos diferentes. Lima 2005 (p. 101-102) argumenta que:

E se pensarmos nesse universo literário, imaginado pela criação humana,


como um espelho onde me reconheço através das personagens,
ambientes, sensações? Nesse processo, eu gosto e desgosto de uns e
outros e formo opiniões daquele ambiente ou daquele tipo de pessoa ou
sentimento. (...) a literatura é um espaço não apenas de representação
neutra, mas de enredos e lógicas, onde ‘ao me representar eu me crio, e
ao me criar eu me repito.

Sendo assim torna-se impraticável as crianças afro-brasileiras identificarem-se com


o mundo fascinante da leitura e seus personagens, pois, o que elas encontravam e
encontram ainda, nos livros são histórias e personagens negros estereotipados..

Sabe-se que por muito tempo a personagem negra recebeu papéis subalternos,
desde a sua representação no período da escravidão ao contemporâneo, em que se resume
ao papel de empregos de serviçais. Monteiro Lobato, apesar de ser um inovador da
literatura infantil brasileira, sempre trouxe em suas narrativas e ilustrações os
afrodescendentes em situações inferiorizadas.

Lima (2005 p. 103) ao examinar alguns livros em que aparecem personagens negros,
descreve que:

Geralmente quando personagens negros entram nas histórias aparecem


vinculados à escravidão. As abordagens naturalizam o sofrimento e
reforçam a associação com a dor. As histórias tristes são mantenedoras
da marca da condição de inferiorizados pela qual a humanidade negra
passou.

A autora ainda relata que as ilustrações traziam os afrodescendentes em imagens de


pessoas passivas à escravidão ou caricaturas com imagens, como destaca a autora
“idiotizadas”; reforçando a idéia de pessoas bobas que riem de tudo; as piores imagens são
as relacionadas à comparação dos afrodescendentes com animais, como uma ilustração em
que Tia Anastácia aparece com os mesmos traços do porco, outra que traz um menino
branco urinando em cima do menino negro, constata-se um descaso e uma não
preocupação com o outro.
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No entanto, este quadro se transformou lentamente, através de muita luta dos


movimentos negros e pesquisadores, a questão étnico-racial tem aos poucos alcançado
importantes conquistas e influências, uma delas é no ramo editorial. Na atualidade, existem
muitos livros que trazem a representação de personagens afro-brasileira em posições de
desafios e valorização da cultura africana, proporcionando ao leitor uma noção de
apropriação, auxiliando assim a criança leitora na sua construção do conhecimento e
compreensão do mundo que a rodeia, com suas diferentes culturas[4].

É pertinente que estejamos atentos ao que vem se produzindo neste sentido, pois
não basta integrar os afrodescendentes na literatura. A produção tem que ser de qualidade,
em uma sociedade assim como a nossa, na qual o acesso a livros é restrito a poucos torna-
se fundamental que a escola, muitas vezes sendo o único acesso ao livro que a criança tem,
e o educador sejam cautelosos com a seleção e movimentação do acervo de literatura
infantil com a temática africana e afro-brasileira, na biblioteca e com a leitura em sala de
aula.

Para que o livro seja uma obra que esclareça como os afrodescendentes são partes
integrantes na formação da nossa sociedade, não basta trazer personagens negras e falar
sobre preconceito. É importante levar em consideração como são trabalhados e ilustrados
estes livros; se apresentam ilustrações positivas de personagens negros; e se os conteúdos
abrangem o universo cultural africano e afro-brasileiro, obras onde habitem reis e rainhas
negras, deuses africanos, e outros, cujas leituras possam participar da construção da auto-
estima das crianças afrodescendentes.

Referências

DEBUS. Festaria de Brincança, a leitura literária na educação infantil. São Paulo:


Paulus. 2006 a.
DEBUS, Eliane Santana Dias. A representação do negro na literatura para crianças e
jovens: negação ou construção de uma identidade? In: A Criança, a Língua, o
Imaginário e o Texto Literário. Centro e Margens na Literatura para Crianças e Jovens.
Actas do II Congresso Internacional, Braga: Universidade do Minho - Instituto de Estudos
da Criança, 2006 b.
GOUVÊA, Maria Cristina Soares de. Imagens do negro na literatura infantil brasileira:
análise historiográfica. Texto apresentado no Congresso do ISCHE (International Society
Conference of History of Education), 23, 2000, Alcalá de Henares, Espanha. Acessível em
http://www.scielo.br
LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história &
histórias. 6ª ed. São Paulo: Ática, 1990.
PERROTTI, Edmir. O texto sedutor na literatura infantil. São Paulo: Ícone, 1986.
SISTO, Celso. A pretexto de se escrever, publicar e ler bons textos. In: OLIVEIRA, Ieda
(Org.). O que é qualidade em literatura infantil e juvenil? Com a palavra o escritor.
São Paulo: DCL, 2005.
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THEODORO, Helena. Buscando caminhos nas tradições. In: MUNANGA, Kabengele


(Org.). Superando o racismo na escola. 2ª ed. Ver. Brasília: Ministério da Educação,
Secretaria de educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.
ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. 11ª ed. rev. e ampl. – São Paulo:
Global, 2003.

[1] Este artigo foi construído a partir das reflexões desenvolvidas no Trabalho de Conclusão de
Curso “A literatura infantil com temática africana e afro-brasileira em uma escola pública de
Florianópolis ‘projeto Malungo’”, apresentado na Universidade do Sul de Santa Catarina, Curso de
Pedagogia 2008.1, sob orientação da professora Doutora Eliane Santana Dias Debus
[2] Joel Rufino dos Santos é um historiador, professor e escritor brasileiro. É um dos nomes de
referência sobre cultura africana no país. No título O soldado que não era, o autor traz a saga de
Maria Quitéria, de forma muito rica e interessante, proporcionando uma boa discussão sobre
preconceitos. (disponível em: www.pt.wikepedia.org.)
[3] Ana Maria Machado é uma conceituada escritora brasileira, ganhadora de vários prêmios da
literatura. No livro Do outro lado tem segredos, o menino Bino, vive em uma aldeia de
pescadores. Desde pequeno ajuda os pescadores, e aguarda o dia em que poderá ir ao mar junto de
todos. Aos poucos, vai descobrindo e aprendendo suas tradições e cultura. Ana Maria Machado em
muitas de suas obras nos presenteia com um pouco de nossa diversidade assim como o clássico,
Menina bonita do laço de fita. (Ibid)
[4] Como exemplo de autores brasileiros que vem trazendo em suas narrativas a questão étnica
racial com um novo olhar temos: Joel Rufino dos Santos, Rogério Andrade Barbosa. Ana Maria
Machado, Sonia Rosa, Osvaldo Faustino e muitos outros.
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NO CENÁRIO DA ESCOLA (RE) VEMOS A DISCIPLINA VERSUS


INDISCIPLINA ESCOLAR

Ernesto Candeias Martins


Instituto Politécnico de Castelo Branco – Portugal
Escola Superior de Educação - Dep.tº Ciências Sociais e da Educação

Resumo
Hoje em dia a violência e a indisciplina adquiriu níveis de preocupação social e para
os agentes educativos. A segurança nas escolas e a promoção de relações de convivência
(socialização) constituem condições essenciais para a qualidade da educação/formação e
para a promoção da educação para a cidadania. O autor aborda em três pontos a temática
da indisciplina escolar. Enquanto, no primeiro ponto, se refere à fenomenologia da
indisciplina/violência, no contexto escolar, no segundo ponto analisa os modos de
prevenção e de construção da disciplina na sala de aula. Por último, propõe um programa
educativo de intervenção com estratégias e procedimentos práticos para a sala de aula.
Palavras Chaves: ‘bullying’ escolar, indisciplina, prevenção, disciplina na escola, modelos
educativos de intervenção.

Abstract
In the scene of the school disciplines we review it versus pertaining to
school indiscipline
Nowadays violence and indiscipline acquired levels highly preoccupying to the
society and to the educative agents. The security in schools and the promotion of
sociability relations constitute essential conditions to the quality of the
education/formation and citizenship education. The author approaches in three points the
thematic one of the pertaining to school indiscipline. While, the first point, refers to the
phenomenology of the indiscipline/violence, in the pertaining to school context, the
second point as analyzes the prevention ways and of construction of it disciplines in the
classroom. Finally, he considers an educative program of intervention with strategies and
practical procedures in the classroom.
Key-words: school ‘bullying’; indiscipline; prevention; discipline in school; educative
models of intervention.

Introdução

A disciplina e a violência escolar são na actualidade tema nos distintos meios de


comunicação social, o que leva os políticos, a escola e os educadores a reflectirem sobre os
meios, as normas, as metodologias e as estratégias para os prevenir (Charlot et Emin, 1997:
12-34). No panorama educativo europeu a violência também adquire níveis altos de
preocupação para os governos e agentes educativos. Pedagogicamente a indisciplina e a
violência nas escolas são abordados a partir de várias perspectivas teórico-conceptuais, pois
são diversos e complexos os factores que as originam, por exemplo: a falta de motivação
dos alunos para a aprendizagem, as consequências do consumo exacerbado, as mudanças
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nas estruturas da família, o desemprego familiar, as condições económicas, as diferentes


condições de acesso aos bens de consumo e outros conflitos oriundos da família, das
relações em grupo e da própria (re) inserção social.

A escola intenta aplicar em direcções diversas algumas medidas sem ter, na maioria
das vezes, sido preparada para desempenhar tal papel. Sabemos que a escola cristaliza
algumas tensões da nossa sociedade e, por vezes, desmesuradamente, pois, é fábrica (espaço
escolar) e relógio (tempo escolar) do trabalho formativo dos alunos e da disciplina
colectiva, mas não é por si mesma um espaço de criação de violência, apesar de a
reproduzir, a distintos níveis (Etxeberria Balerdi, 2001: 121-128). O que se verifica em
muitas escolas é a indecisão dos responsáveis, em certos casos graves de indisciplina e
violência, na aplicação do Código Disciplinar, ou uma certa confusão entre disciplina e
autoritarismo ou autoridade e autoritarismo.

Efectivamente que a preocupação dos professores nas escolas é o de tornar o


ambiente educativo de sala de aula disciplinado sem autoritarismo. A disciplina escolar
emana, não apenas da organização curricular e do espaço da sala de aula, mas também, do
clima sócio-institucional. Porém, acrescente-se o facto de, na maioria das vezes, os próprios
professores não possuirem nem formação (inicial, contínua), nem estrutura e preparo para
minimizar e suprimir a indisciplina que lhes surge na sala. É óbvio que, sem a incorporação
da autodisciplina (auto-consciencialização), que é uma questão interna de cada aluno, será
difícil manter uma disciplina externa (Estrela, 1992, p. 19-27; Lind and Maxwell, 1996, p. 37-46).

Pretendemos neste artigo, no contexto do sistema educativo português, provocar a


reflexão sobre a indisciplina promovida ao nível escolar. A violência e os comportamentos
de inadaptação escolar são provocados, quase sempre, por uma inadequada acção educativa
e metodológica aplicada nas escolas. Reconhecemos educativamente, que a discriminação, a
intolerância e, até, a avaliação são, por vezes, meios de punição e coacção que podem ser
interpretados de maneira diversa pelos alunos, pais e encarregados de educação.
No fundo, não propomos soluções mas sim uma reflexão sobre o ‘como’ e os
‘porquês’ desses fenómenos e conflitos gerados na escola. Esta deve ser inclusiva, um
espaço sem violência, promotora de programas de intervenção, de modo a que aos
professores lhes seja possível combinar os saberes com o ‘saber fazer’ e ‘saber actuar’, o
saber com as competências, os valores de cidadania com o exercício democrático.
Acreditamos que todos os momentos escolares são bons para ensinar e exercitar a (auto)
disciplina, que deverá estar próxima do afecto, da relação pedagógica e da prática dos
valores de cidadania (Amado, 2000, p. 11-16).

1 - A interface da (in) disciplina na sala de aula

Nos últimos tempos tem surgido uma violência organizacional, com tendência a
serem criadas situações de conflito que geram oportunidades para estigmatizar a violência
de qualquer oponente. Certas forças da sociedade interagem para darem a impressão que a
insegurança cresce na sociedade (aumento da espiral dos crimes) e nas escolas. Os
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problemas de indisciplina e violência nas escolas são hoje um ingrediente fundamental da


nossa cultura mediática (Olweus, 1993; Smith & Sharpa, 1994). No Simpósio do Conselho
da Europa (1998) sobre o tema ‘Violência na escola: sensibilização, prevenção, repressão’,
reconheceu-se a complexidade do fenómeno, o qual tem a ver com as características e
tendências individuais, com o contexto e modelos de família, com a escola, os ‘mass media’ e
com a própria sociedade.

De facto, a violência é uma construção social que varia segundo o meio, a cultura e
o indivíduo, englobando uma diversidade de realidades e de aspectos muito específicos.
Relaciona-se com o conceito de comportamento anti-social, integrando neste sentido certas
condutas disruptivas dos sujeitos, que devem ser reprováveis através da escola. Os casos de
maior indisciplina e/ou violência escolar ocorrem entre os 10 – 12 anos e os 15 ou 16 anos.
Contudo, em Portugal, alguns inquéritos realizados nos últimos anos por diversos
sindicatos de professores e pelo próprio Ministério da Educação revelam que no 1.º Ciclo
(Ensino Básico) é onde há um certo aumento da indisciplina. Na prática a representação e
percepção destes fenómenos é bem patente nas afirmações dos professores, responsáveis
dos órgãos executivos e funcionários (Amado, 2001, p. 38-44).

É evidente que o clima social na sala de aula constitui uma componente do


ambiente que se refere a determinadas características psicossociais que actuam
interdependentemente na concretização dos objectivos educativos. Entre essas
características, destacamos as interacções entre os alunos, entre o aluno e o professor, as
acções dos alunos e do professor na realização das actividades e na melhoria da
aprendizagem. Na verdade, as características dos alunos influem no clima social da aula
(rendimento, atitudes e grau de participação dos alunos, níveis de satisfação dos
professores, na relação ensino-aprendizagem, na relação pedagógica).

Tenho insistido, na qualidade de formador, que os professores devem ser bons


observadores, reflexivos e criativos dentro das suas aulas, já que nelas se desenvolvem
acontecimentos diversificados, enquanto o professor explica, interpela, motiva, orienta os
alunos. Neste contexto espacial cabe ao professor implementar procedimentos de controlo
da disciplina em relação a certas situações que se passam na sala de aula. De facto, há
diversas interacções entre os alunos, entre o professor e os alunos, entre aqueles e a escola.
Portanto, a observação, a comunicação e a reflexão estabelecidas nas relações entre os
diversos elementos educativos, são importantes na perspectiva de uma pedagogia das
relações humanas.

Além dessa forma de relacionamento pedagógico na sala de aula, há também


questões ligadas aos processos de gestão de conflitos, perfil do professor e processos de
liderança (do professor e de alunos), que exercem enorme influência no clima e no
ambiente de aprendizagem. Por outro lado, o clima institucional influencia, de várias
maneiras, os procedimentos e as formas de convivência no contexto da sala de aula, assim
como, o ambiente externo ou envolvente à própria escola e a dinâmica social invadem o
espaço escolar e exercem no (s) aluno (s) comportamentos díspares (Olweus, 1993, p. 72-
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85; Smith and Sharp, 1994, p. 27-41).

A representação de aluno indisciplinado varia de professor, de escola para escola.


Perante as variadas situações, acontecimentos e conflitos existentes na sala de aula, compete
ao professor introduzir estratégias para os gerir e compreender de forma disciplinada, quer
ao nível pessoal, quer ao nível do grupo – turma. Exige-se ao professor, não só uma
formação específica, mas também atitudes e comportamentos pro-activos necessários à
construção da disciplina, à medida que realiza as suas actividades ou funções educativas.
Estas estratégias de prevenção devem visar três dimensões: o ‘momento’ em que surge o
acto de indisciplina ou comportamento anti-social; o grupo – turma aos quais se dirige a
acção; e o conteúdo da acção preventiva (natureza da intervenção). Prevenir a tempo, de
modo a não permitir difundir outras ocorrências de comportamentos irregulares dos
alunos.

É verdade que a convivência harmoniosa na comunidade escolar é fruto de um


processo de formação pessoal e social que torna possível a descoberta da necessidade e
valor das normas elementares de convivência social. Cabe à escola introduzir um sistema de
estímulos, criando um clima social com um bom nível de satisfação para os alunos, através
de actividades motivadoras que lhes favoreçam o desenvolvimento de responsabilidades, a
divulgação das normas disciplinares, a promoção do respeito entre iguais, etc. A
cooperação entre as escolas e os serviços externos especializados faz todo o sentido no
âmbito preventivo e na perspectiva terapêutica (Grotpeter and Crick, 1996, p. 2330-2334).

Por conseguinte, as escolas necessitam de bons sistemas de controlo preventivo


para ultrapassarem as violações das regras e outros tipos de problemas/conflitos. Contudo,
esse controlo não é tudo, haverá que promover as ligações sociais e culturais (Fernández,
1998, p. 28; Vinyamata, 2002, p. 39-50). A prevenção não só deve impedir o aparecimento
dos comportamentos anti-sociais e de indisciplina escolar, como deverá proporcionar, num
contexto democrático, um ensino criativo, colaborativo e reflexivo, baseado na
comunicação, nos valores e na participação activa no Projecto-Escola.

Nos casos de alunos mais problemáticos, a escola tem a obrigação de utilizar um


plano trifásico de intervenção menos estigmatizante. A ajuda inicial deve ser dada pelo
professor (primeira fase), depois pelos serviços (psico) pedagógicos de apoio na escola
(segunda fase) e, finalmente, recorrendo aos serviços externos (terceira fase). O professor é
a pessoa ideal para detectar os problemas de conflito e se encarregar de dar apoio ao aluno.
Para poder intervir, o professor deve ter coerência entre o que diz e o que faz e, ainda,
entre os valores que transmite aos alunos e os que ele mesmo vive e partilha. A imagem e a
representação social são fundamentais para um adequado ambiente de aprendizagem
(Triana y Muñoz, 1997, p. 125-131).

Propomos para a escola programas de prevenção da violência e indisciplina escolar


que integrem os seguintes dimensões educativas: educação cívica e para a cidadania;
educação para a tolerância e para a paz; educação para a diversidade e para a não-violência;
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educação para a convivência; educação ambiental, patrimonial e de consumo; educação


social e afectiva; voluntariado social; etc. (Vettenburg, 2000, p. 226-231). É conveniente que
estas dimensões estejam previstas ao nível curricular e no Projecto-Escola, mas devem
envolver mais actores educativos da comunidade.

2 – Prevenir para construir a disciplina

A discussão sobre a violência e comportamentos anti-sociais dos alunos nas escolas


tem subjacentes questões e desafios com profundas implicações para a comunidade escolar
e para a sociedade em geral (Estrela, 1992; Fonseca, 2000, p. 30-49; Fonseca, Simões,
Rebelo, Ferreira e Cardoso, 1995, p. 35-71). Interrogamo-nos se a escola poderá continuar a
ser um instrumento de coesão social e de integração democrática dos cidadãos. Após um
período amplo de democratização educativa manter a inclusão nas escolas parece ser um
desafio. As medidas educativas relacionadas com a diversidade, por exemplo, a
aprendizagem para a convivência, a educação das atitudes e para os valores, os direitos e a
tolerância, são algumas prioridades que devem constar dos projectos educativos, no âmbito
de uma educação institucionalizada.

É reconhecido por todos que teremos que compreender e construir a disciplina nas
nossas escolas, sendo essa uma tarefa de todos os agentes e actores educativos. Não basta
servirmo-nos dos estatutos disciplinares para admoestar, suspender ou punir os alunos. A
resposta tem que ser pedagógica e ético-moral. Os professores devem antecipar-se aos
acontecimentos ou conflitos geradores de indisciplina e violência escolar. De forma pro-
activa deverão definir uma série de técnicas e estratégias que levem os alunos a estarem
activos, ocupados dentro da sala de aula, evitando possíveis situações de disrupção ou de
conflito. Trata-se da aplicação de uma pedagogia diferenciada e da convivencialidade
relacional na escola. Para tal o professor deverá conhecer bem a turma e os alunos, através
de actividades organizadas em grupo e individualmente.

A cultura escolar terá de estar em ligação com o exterior, com a comunidade,


sempre em sintonia com o projecto da escola. Esse espaço, com o seu respectivo ambiente,
tem de ser construído conjuntamente por alunos e professores, com técnicas e estratégias
de pedagogia diferenciada. Com tal espaço de liberdade, estaremos a construir a disciplina,
conscientemente assumida (processo de consciencialização) e a desenvolver uma
aprendizagem colaborativa e/ou participativa. Todos podemos aprender, teremos é de
aprender de maneira diferente. Devemos ter bem presente que a disciplina se constrói
dentro e fora da sala de aula e da escola. Para tal é fundamental implementar nas escolas
uma gestão democrática e participativa, a valorização da opinião e o poder de iniciativa de
todos, incluindo as dos alunos, de modo, asentirem-se respeitados e aderirem
espontaneamente às normas e valores da escola (Amado, 2000, p. 45-47).

Distinguimos dois tipos de situações, que requerem dois tipos de ‘medidas’, perante
os comportamentos anti-sociais e/ou de indisciplina dos alunos nas aulas e nas escolas. Por
um lado há que tomar uma ‘medida global’ para com aqueles problemas comportamentais
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dos alunos, que implicam uma prevenção primária. Trata-se da necessidade de haver uma
convivência escolar (relações interpessoais, aprendizagem da convivência) que se converta
no núcleo da vida da escola. Deste modo, cada escola deverá analisar as relações de
convivência no seio da comunidade escolar (conflitos reais e potenciais) e no contexto do
currículo, incluindo todas as decisões curriculares propostas (Cerezo y Esteban, 1992, p.
136-140; Costa e Vale, 1980, p. 37; De Cauter, 1999, p. 13-17). Esta ‘medida globalizadora’
assume a questão da psicologia da convivência e da pedagogia das relações pedagógicas na
escola.

Por outro lado, aprender para a convivência, desenvolver relações interpessoais de


colaboração, estimular a participação nas actividades da escola, praticar hábitos
democráticos fundamentais, respeitar os outros, são aspectos importantes que se colocam
ao nível do currículo e da estrutura organizativa da escola. Os próprios conflitos de
convivência e os desafios quotidianos da vida escolar afectam toda a comunidade e, por
isso, espera-se que todos os seus membros se impliquem activamente na sua prevenção e
resolução.

A resposta educativa ‘global’ aos problemas e conflitos gerados pela indisciplina e


violência escolar terá que superar três considerações que erradamente possuímos. A
primeira é que a violência não é um problema característico das escolas. Sempre houve
violência escolar, só que os meios de comunicação, na actualidade, enfatizam estes
fenómenos. Em segundo lugar, a violência escolar ocorre acidentalmente, havendo escolas
mais propícias a essa difusão da indisciplina, devido ao meio envolvente. Na verdade, todos
os fenómenos de violência e indisciplina escolar estão interrelacionados entre si, associados
às variáveis escolares, sociais, culturais e familiares. Em terceiro lugar, estes fenómenos não
podem ser eliminados por medidas repressivas e de coacção. Haverá que apostar na gestão
democrática da escola para que se desenvolva uma aprendizagem da convivência assumida
com responsabilidade por todos.

Além daquela ‘medida global’, há uma outra complementar, a ‘medida especializada’.


Esta consiste num conjunto de programas específicos destinados a enfrentar os aspectos
determinantes dos comportamentos anti-sociais, manifestações de indisciplina ou de
violência. Os programas deverão ser implementados pelos professores após uma acção
especializada (acções de formação contínua), de modo a aplicarem as metodologias e
técnicas necessárias para uma maior participação da comunidade escolar (Martins, 2002;
Vettenburg, 1999).

3 – Programa educativo de intervenção escolar: técnicas e estratégias

O modelo de intervenção educativa nas escolas deverá partir de uma análise


ecológica à abordagem do sistema de regras, normas, valores, sentimentos e
comportamentos que denotam a violência e a indisciplina escolar. Esta forma de
intervenção requer dos professores uma motivação acrescida na luta entre esta
problemática, em sintonia com o ‘design’ do Projecto educativo da escola, debruçando-se
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sobre as relações interpessoais, segundo dois planos de análise do ecossistema social da


escola: a convivência e as actividades escolares. Ambos os planos estão articulados entre si,
dando-nos a perspectiva da realidade social, cultural, educativa e psicológica da escola como
uma comunidade de convivência, em que se aprende de modo significativo e criativo e se
projecta o currículo explícito, implícito ou oculto.

Trata-se de pôr em evidência um ‘modelo comunitário’, importado das áreas


científico-pedagógicas e profissionais, como a antropologia, a epistemologia, as ciências
médicas, as ciências da educação, a ecologia escolar e a interculturalidade. Este modelo
poderá ser o mais idóneo para abordar a prevenção da violência escolar (Ohsako, 1998, 78-
91). Assim, cada escola apresenta-se como uma unidade de convivência, configurada a
partir da articulação de todos os agentes e elementos educativos (professores, alunos, pais e
comunidade escolar).

A planificação da intervenção implica a elaboração conceptual de programas de


trabalho com instrumentos, desde a análise dos sistemas de actividade (ensino ministrado,
actividades escolares, tempo livre) à análise dos modelos de convivência (distribuição e
exercício do poder, modos de comunicação, normas reguladoras da vida escolar). O ‘design’
de objectivos, acções e sua avaliação fundamentam-se numa lógica de ordenação das
iniciativas que cada equipa de professores sugere (intenções práticas). Utilizando a metáfora
vigotskiana da ‘caixa de ferramentas’ (conceitos, procedimentos e atitudes), dispomos dos
instrumentos úteis para realizar a intervenção (Trianes y Muñoz, 1997, p. 62-66; Vinyamata,
2002, p. 39-53).

Para melhorar a convivência escolar propomos programas educativos baseados na


dimensão afectiva dos alunos (educação pelos valores): sentimentos, emoções e relações de
amizade. Trata-se de um programa de gestão (democrática) e de democratização da
convivência (relações humanas), que permita o cumprimento das regras e das normas
reguladoras da vida quotidiana na sala de aula e na escola. Exige-se o trabalho cooperativo,
em equipa, por parte dos alunos quando executam as tarefas ou as actividades escolares que
lhes são sugeridas no âmbito de uma aprendizagem criativa e colaborativa, de modo a que
possam (auto) regular a comunicação, as tomadas de decisão e as iniciativas, cumprindo as
tarefas propostas. Neste sentido, o professor é considerado um educador criativo que se
esforça por estar atento (auto-controlo) a todas as reacções e às relações que tomam os
alunos ao longo dos diferentes momentos de aprendizagem (Estrela e Amado, 2000, p. 15-
29; Vettenburg, 1999, p. 81-93).

Efectivamente, o professor terá que ter em conta uma tríade de influxos na sua
acção educativa: a gestão da vida quotidiana da aula (democracia vivenciada com normas
aceites por todos); análise formativa dos valores nos alunos (vinculação da educação
emocional e sentimental com os valores morais); e análise do tipo de ensino-aprendizagem
implementado, observando a cooperação, o diálogo, as tomadas de decisão, a discussão e a
competitividade positiva dos alunos. Deste modo, o professor expandirá a inovação, a
reflexão e terá mais auto-estima na sua intervenção, conhecendo e compreendendo as
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necessidades e as expectativas dos seus próprios alunos dentro e fora da aula (Ortega y
Mora-Merchán, 2000, p. 11-18).

Esta intersecção do plano de convivência escolar (gestão democrática) com o plano


de actividades escolares (aprendizagem colaborativa e criativa) e o plano dos sentimentos e
emoções da vida escolar só será possível através de uma pedagogia do ‘encontro’ que
implica um tipo de relações interpessoais espontâneas (não improvisadas), difusão de
amizade entre iguais e uma tolerância para com as diferenças. As linhas programáticas da
intervenção exigem a articulação dos programas de gestão democrática da convivência,
com o programa de trabalho cooperativo em equipa e o programa de educação pelos
valores, da educação de emoções, sentimentos e atitudes (Grotpeter and Crick, 1996, p.
2329-2331; Lassare, 1999, p. 39-45).

Por outro lado, o desenvolvimento de um currículo flexível e cooperativo implica a


aceitação de certos conteúdos, que deverão ser bem aprendidos pelos alunos. Este modelo
cooperativo supõe que o processo comunicativo, implícito na função de ensinar, se insere
na actividade de aprender. O trabalho preventivo contra a violência e a indisciplina exigirá
modificar a forma de ensino-aprendizagem num modelo cooperativo de aprendizagem,
estimulador da comunicação e da consciencialização. Assim, melhoram-se o clima afectivo,
as atitudes e os valores positivos (Amado, 2000, p. 67-73; Lind and Maxwell, 1996, p. 56-62).

A actividade de ensino-aprendizagem deve apoiar-se nas motivações (estado


atitudinal e afectivo) e nos interesses dos alunos e do professor. Será importante, em
termos de transversalidade curricular, incluir programas com conteúdos referentes aos
sentimentos, às atitudes e aos valores, de maneira a poder trabalhar o conhecimento
interpessoal ou psicológico e as relações. Como técnicas a incluir, citamos o jogo, o debate
ou discussão em fórum, os contos, a simulação e interpretação de papéis e o estudo de
casos específicos com a ajuda de textos ou vídeos. Ainda sugerimos a inclusão das técnicas
de mediação de conflitos, a interajuda entre iguais, a metodologia de repartição de
responsabilidades, as estratégias de desenvolvimento da empatia e a reciprocidade moral
(Amado, 2001, p. 34-39; Cerezo y Esteban, 1992, p. 134-137).

Reflexões finais

O sistema educativo introduziu o estatuto disciplinar e regras, as mais das vezes


exteriores aos professores e aos alunos. Não é fácil esse processo de exigência e de
aplicação dessas normativas, pois as actuais gerações de alunos transportam tipos de
comportamentos, por vezes difíceis de serem detectados pelos professores e pela escola.
Cabe à comunidade escolar construir a disciplina a partir da liberdade e a autoridade
educativa, isto é, desde o sentido do ofício do aluno (sentido de responsabilidade,
autoconfiança, convivência social democrática).

A escola pode evitar os conflitos e as situações de indisciplina e violência escolar.


Há muitos exemplos de escolas, de muitos professores, de muitas associações de pais e
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encarregados de educação que criam um ambiente de convivência escolar e uma cultura de


relações humanas. É bom que compreendamos que nem tudo passa pela escola e que esta
não faz milagres se a família e a comunidade não ajudar a evitar essas situações,
melhorando o clima e ambiente educativo, criando condições favorecedoras de uma
adequada aprendizagem dos alunos.

Os programas de prevenção podem proporcionar às escolas e aos professores


instrumentos de qualidade para o seu trabalho diário dentro da sala de aula e para atenuar e,
se possível, evitar o aparecimento de conflitos, processos de indisciplina oculta e
comportamentos anti-sociais. A utilização de qualquer programa na escola terá que inserir-
se sempre no contexto do Projecto – Escola (ou ao nível do Agrupamento de Escolas) e
estar relacionado com a questão da convivência e das relações, mas adaptado às
características e às possibilidades de cada escola.

De facto, a escola e os professores não possuem nenhuma varinha de condão para


suprimir conflitos. Haverá que implicar as relações de parceria da escola com as instituições
da comunidade, com a família, num esforço comum para encontrar respostas pedagógicas
para esses problemas, de modo a respeitar e atender à diversidade e pluralidade social e
cultural dos alunos, adequar as suas propostas educativas e os projectos (de escola e
curricular) aos interesses e características dos seus alunos, evitando o abandono e o
insucesso escolar. Uma escola capaz de envolver os alunos, de os motivar, de percepcionar
os seus problemas e necessidades, construindo conjuntamente as regras e as normas de
funcionamento e de convivência escolar, de incentivar a formação dos jovens como
cidadãos activos, críticos e participativos. Uma escola capaz de lutar por uma verdadeira
autonomia, combatendo os constrangimentos que surgem para construir alternativas
pedagógicas, exigindo a afectação de recursos, meios e espaços necessários, criando
gabinetes psicopedagógicos e equipas integradas pluridisciplinares de apoio.

Enfim, uma escola que permita aos jovens viver a escolaridade como um momento
fundamental do desenvolvimento da sua personalidade e de competências, de espírito
criativo e crítico, ou seja, que se assuma como um espaço de aprendizagens e de formação
ao longo da vida, fomentando uma consciência cívica, solidária e de respeito pelas
diferenças.

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MÚSICA NATIVISTA E IMAGINÁRIOS GAUCHESCOS: SOBRE


CANTAR OPINANDO

Fernanda Marcon
Mestranda em Antropologia Social
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Universidade Federal de Santa Catarina

Resumo
Podemos entender a música nativista como um caso específico de regionalismo
musical dentro das múltiplas expressões da música popular brasileira contemporânea; trata-
se de um repertório de canções oriundo do estado do Rio Grande do Sul, conhecido como
“música nativista gaúcha”. Nota-se a presença de um trânsito musical entre os países do
chamado Cone Sul latino-americano, apontando para a constituição de imaginários e
audições de mundo acerca do que os sujeitos entendem como “cultura gaúcha”. Assim, o
artigo pretende discutir a relação entre este tipo de produção musical no sul do Brasil e a
constituição de imaginários gauchescos que perpassam diferentes territórios e sonoridades.
Palavras-chave: música nativista, cultura gaúcha, imaginários sociais.

Abstract
We can understand the nativista music as a specific case of musical regionalism
within the multiple expressions contemporary Brazilian popular music; it is a repertoire of
songs originating from the state of Rio Grande do Sul, known as música nativista gaúcha.The
presence of a kind of musical traffic is noticed amongst the countries of the so-called
South Latin-American Cone, leading to what seems to be the constitution of world
imaginaries and auditions concerning what subjects understand as "gaucho culture". Being
so, the present article intends to discuss the relationship between this type of musical
production in the south of Brazil and the constitution of gauchesco imaginaries throughout
different territories and sonorities.
Key words: nativista music, gaucho culture, social imaginary.

Introdução

A partir da pesquisa de dissertação de mestrado que desenvolvo a respeito da


produção de música nativista no festival “Sapecada da Canção Nativa” em Lages - SC,
algumas questões foram surgindo e tornaram-se mais e mais presentes. Em primeiro lugar,
o significado deste tipo de musicalidade enquanto catalisador de perspectivas de mundo
singulares, ligadas a imaginários específicos sobre o que os sujeitos denominaram de
“cultura gaúcha”. Apesar do enfoque sobre as construções imagéticas de meu campo de
estudo, é a música que rege o “ouvido etnográfico”. Para além da análise das letras das
canções nativistas, a construção da musicalidade torna-se absolutamente central dentro de
uma perspectiva etnomusicológica, ou como prefere Menezes Bastos (1995) “para além de
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uma antropologia sem música e de uma musicologia sem homem”. Nesse sentido, a música nativista
não é tomada aqui como um “exemplo” de como pensam e vivem seus compositores,
instrumentistas, intérpretes; mas como agente, soando as vivências dos sujeitos e
constituindo modos de sentir o mundo.

O artigo compreende três movimentos. No primeiro, o apontamento das


construções a respeito do que se entende por “cultura gaúcha/gaucha” – e nesse ponto,
tomo o cuidado de diferenciar os termos gaúcha e gaucha não apenas por suas
especificidades linguísticas - que configuram a produção de uma musicalidade ancorada,
principalmente, na valorização do terrunho, na inovação estética e na projeção folclórica. Dando
sequência a esta discussão, o segundo momento pretende dar conta da constituição do
movimento dos festivais de música nativista enquanto um importante “móvel de disputas”
em torno do que significa “ser gaúcho”. (Oliven, 1992) Por fim, um terceiro movimento
indica questionamentos necessários para, longe de um desejo de entendimento pleno, levar-
nos a uma percepção menos superficial de um repertório musical ancorado em imaginários
peculiares sobre as vivências dos sujeitos.

De cultura gaúcha/gaucha

Ao iniciar minha pesquisa de campo, algumas questões ainda permaneciam em


suspenso, principalmente pela presença forte de um senso comum que, por vezes,
confundia as personagens presentes no que se conhece por “cultura gaúcha, gaucha” com as
facetas imortalizadas pelos movimentos regionalistas sul-rio-grandenses. No entanto, não
apenas as muitas leituras, mas um campo repleto de significados em trânsito, apresentaram-
me um mapa diferenciado deste “Cone Sul” da América Latina, onde os termos gaúcho e
gaucho, ao se aproximarem e tomarem distância, constroem algo estrondoso, sonoro e vivo;
algo que alguns categorizam como “cultura” – demarcando sua materialidade e
imaterialidade numa mesma moeda – e outros preferem simplesmente acreditar na
supremacia de um “estado de espírito”. O “ser gaúcho”, “gaucho”, tornou-se uma questão
fascinante para a Antropologia. Seja em torno de discussões a respeito da constituição de
identidades nacionais (como é o caso marcante da Argentina), como em referência a
processos políticos ligados ao federalismo e ao republicanismo no sul do Brasil. O mapa de
que falei há pouco, só faz sentido na medida em que os sujeitos destes processos estudados
e analisados por diferentes pesquisadores passam a designar um modo, jeito, estilo de vida
como sendo o seu - ou pelo menos uma referência sempre almejada – chamando-o de
“cultura”. Palavra tão cara à nossa arte, ela esteve presente em meu campo como uma
lanterna, às vezes sem pilha, deixando de iluminar qualquer coisa e passando a peso morto,
por ser carregado. Irônico, mas nem tanto. A cultura, como um conceito-chave e traiçoeiro,
pareceu um mar de calmaria, quando pronunciado por aqueles que se deleitam ao dizer “a
nossa cultura é gaúcha!”.

Começarei por uma discussão bastante comum aos pesquisadores deste tema, que
como mencionado acima, ainda encontram-se em desconforto ao analisar processos tão
diferenciados e ao mesmo tempo tão parecidos. Falo da constituição de um ator central,
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pelo qual perpassam narrativas de integração, fronteira, guerra, arte, entre outras, e que
marca um olhar bastante específico sobre uma região da América Latina: o gaúcho, gaucho.
Acentuando esta região geográfica, não pretendo que o leitor interprete apressadamente
que a entendo como uma “área cultural” aos moldes do que já foi bastante problematizado
na Antropologia. Faço referência a este mapa, pura e simplesmente, por sua dimensão
simbólica entre os sujeitos desta pesquisa. Nesse sentido, a intenção de minha menção a
esta região geográfica é demonstrar sua intensidade enquanto referencial de uma “origem”,
“matriz” de valores que passaram a se descortinar durante minha pesquisa de campo. O
primeiro deles, que soava estridentemente aos meus ouvidos, diz respeito à força com que a
terra natal, ou o “berço” poderia determinar a constituição de um temperamento
específico, um jeito de ser, olhar e ouvir a vida, diferenciado. É o que chamo de caráter
terrunho da produção de música nativista. Quero dizer que a terra em que nasce e cresce
uma pessoa, e no caso em análise, um músico nativista, lhe reserva uma personalidade
ímpar, que o condena a amá-la e projetá-la para onde quer que vá. Dentro dessa
perspectiva, encontrar raízes, ou pelo menos, uma “terra sagrada” por se referenciar, é algo
bastante valioso e significativo. É preciso anunciar mais uma pausa para explicar que
quando coloco os termos gaúcho e gaucho, separados por vírgula e não por uma conjunção,
quero dizer com isso que tanto não tento traduzir o segundo pelo primeiro, quanto não
pretendo investigá-los como se fossem a mesma palavra e com o mesmo significado. Minha
intenção é tentar entendê-los dentro de um universo simbólico - partindo de minha
pesquisa de campo – para que nem um nem outro sejam ignorados ou tomados como
objetos fechados, cada um em um local específico da análise. Como já afirmei, tratam-se de
processos em movimento, categorias em construção por diferentes sujeitos.

Alguns autores optaram por entender o fenômeno do gauchismo como uma


“ideologia”, a exemplo de Tau Golin (1983). É preciso notar que estamos concentrando a
análise em um fenômeno que se desenvolve no Brasil, mas que mantém íntima relação com
outros processos vivenciados por países como Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile. Falar
de gaúcho, não significa apenas falar da pessoa que nasce no Rio Grande do Sul, mas em
diferentes instâncias, confunde-se com os imaginários sobre um personagem
paradigmático, presente nos pampas argentinos e uruguaios, e também em parte do
campesinato paraguaio. Para tanto, passemos a entender melhor esta confluência de
significados, tomando de empréstimo análises literárias e musicais que estiveram ligadas à
temática da cultura gaúcha, gaucha, para que se possa ter uma idéia do que representa
atualmente. Não pretendo aqui uma reconstituição histórica, mas um apanhado de
informações atuais sobre movimentos que se iniciam a partir do século XIX na América
Latina.

Decido mencionar em primeiro lugar, um personagem bastante conhecido da


literatura argentina: o Martín Fierro, de José Hernández (1872; 1879). As datas de publicação
não designam nenhum tipo de divisor de águas na constituição de uma “identidade
nacional” argentina, mas suscitam muitas questões, investigadas por diferentes intelectuais
daquele país, sobretudo no âmbito literário, que utilizo aqui. De acordo com Jorge Luis
Borges & Margarita Guerrero (2005), a poesia gauchesca, como é identificada a obra de
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Hernández – um poema dividido em dois livros, “El gaucho Martín Fierro” (1872) e “La
vuelta de Martín Fierro” (1879) – não deve ser confundida com uma literatura feita por
gauchos, uma população eminentemente masculina, desenhada por diferentes autores,
cronistas, que concebe um consenso sempre problemático de que se tratavam de pessoas
errantes, que andavam pelos pampas e tinham como principal transporte e atividade o
cavalo e o gado. Seu caráter eminentemente popular, portanto, está atrelado a uma
produção da elite, entendendo-a aqui, como propuseram Borges e Guerrero, como uma
parcela letrada de escritores de Buenos Aires e Montevidéu, no Uruguai.[1] Como
mencionam os autores, é um equívoco pensar que a poesia gauchesca deriva imediatamente
da poesia dos payadores, ou improvisadores profissionais da campanha (como é conhecida a
região do pampa). Esta confusão se configura, principalmente, pela coincidência do metro
octossílabo e das formas estróficas (sextilha, décima, copla) da poesia gauchesca com as da
poesia payadoresca.(Borges & Guerrero, 2006: 11) Como mencionam Borges & Guerrero,
em algumas passagens de seu poema, Hernández parece demarcar exatamente de que
maneira se diferencia das improvisações dos payadores: [2]

Cabe supor que dois fatos foram necessários para a formação da poesia
gauchesca. Um, o estilo da vida dos gaúchos[3]; outro, a existência de
homens da cidade que se identificaram com ele e cuja linguagem habitual
não era demasiado diferente. Se tivesse existido o dialeto gauchesco que
alguns filólogos (em geral, espanhóis) estudaram ou inventaram, a poesia
de Hernández seria um pastiche artificial e não a coisa autêntica que
conhecemos.[4]

Ainda assim, não nos parece claro de quê população gaucha parte a inspiração para a
poesia gauchesca de Hernández. Afirmar simplesmente que eram homens que vagavam
pelos pampas, a lidar com gado e cavalos, não resolve o problema. De acordo com Élida
Lois (2004), a Argentina, em meados do século XIX, apresentava conflitos em torno das
terras pertencentes aos povos indígenas. Todo o território que pôde permanecer em poder
dos índios livres foi ganhando um enorme valor potencial na medida em que se
intensificava a atividade agropecuária. “El desierto”, como eram chamadas as terras dos
índios[5], passaram a agregar enorme valor e seus habitantes se tornaram o inimigo número
um da “civilização”. Nesse contexto, além das terras indígenas e as cidades e seus campos
circundantes, havia ainda um território vagamente definido: la frontera. Seus habitantes,
igualmente não definidos, povoaram o imaginário da poesia gauchesca e delimitaram um
personagem bastante específico: el gaucho.

De acordo com Almeida (2008), este personagem aparece na literatura argentina do


final do século XIX com características duais; isto é, como uma espécie de articulação entre
a civilização e a selvageria, o índio e o não-índio. Citando o autor de “La Pampa” (1890),
Alfredo Ebelot, Almeida identifica uma clara linha evolutiva, onde o gaucho representa um
estado intermediário, partindo do indígena, para chegar ao civilizado. (Almeida, 2008: 15)
No forjar de um mito sobre a identidade nacional argentina, o espaço da fronteira - física,
política, moral, etc – constitui-se como um terreno fértil para redefinição de identidades.
Segundo Lois , a linguagem do poema de Hernández - entre a “ida e a volta” de Martín
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Fierro – cruza fronteiras entre a oralidade e a escrita, entre a cultura popular e a cultura
letrada. Ao apropriar-se da voz do gaucho, mas ao mesmo tempo distanciando-se dela,
Hernández anda pelas bordas de um campo de tensões. (Lois, 2004: 39) Nesse sentido, a
literatura gauchesca constitui-se como um híbrido que, não livre de conflitos, mostra-se
como a “aliança de classes”, algo extremamente interessante dentro de um projeto de
consolidação do Estado-Nação.

Pois bem, de que maneira a construção deste personagem-chave dentro do


contexto literário argentino e também uruguaio passa a fazer algum sentido quando
pensamos no nosso “gaúcho brasileiro”? Para Maria Elizabeth Lucas (1990), o
regionalismo gaúcho[6] é uma construção intelectual fundada em níveis distintos de
percepção (ou visões de mundo) e em uma experiência primordial (ou na falta dela) com a
cultura pastoril do Rio Grande do Sul. Nesse sentido, através de uma análise da construção
semântica da palavra “gaúcho”, a autora pôde perceber como as imagens e representações
da sociedade sulista que produziram o regionalismo gaúcho como uma construção
ideológica, mostraram como os intelectuais (tanto do Rio Grande do Sul, quanto de outros
estados) traduziram condições sócio-econômicas e interesses de classe específicos em uma
herança histórica e uma identidade cultural comum. Assim, a autora identifica três
momentos distintos no panorama dos movimentos revitalizadores da cultura gaúcha: num
primeiro momento, na virada do século XIX, uma idealização, por parte dos intelectuais
locais, de grêmios recreativos para cultivar as tradições gaúchas[7]. A partir da II Guerra
Mundial, um novo momento se estrutura com a criação de Centros de Tradições Gaúchas
(CTGs) por estudantes secundaristas de Porto Alegre[8]. Por fim, um último momento
relaciona-se à emergência, nos anos 1970, do que se chamou de “nativismo” dos festivais
de música.

Sobre cantar opinando

Despontavam os agitados anos 1970, e a “era dos festivais” (Zuza Homem de


Mello, 2003) fazia sentir seu peso sobre milhares de expectadores ainda extasiados com o
advento televisivo. Também se observava um Brasil que experimentava uma repressão
violenta às liberdades civis e individuais: a censura implacável da ditadura militar atuava
fortemente, enquanto a sociedade se dividia em críticas diversas ao mesmo regime.
Tropicália, jovem-guarda, canção de protesto... muitas idéias musicais fervilhavam quando
uma emissora de rádio de Uruguaiana, RS, decide promover um festival de música popular,
o “I Festival da Canção Popular da Fronteira”. De acordo com Lucas, a milonga
“Abichornado”[9], de Colmar Duarte e Júlio Machado da Silva Filho foi eliminada pelo júri
sob o argumento de que se tratava de uma “música gauchesca”. Descontente com tal
resultado, Colmar Duarte decide criar um festival que promovesse exclusivamente a música
regional. Para além das diferentes versões sobre o fato, o resultado do festival incitou
sobremaneira a decisão de criar um evento no mesmo formato (um festival) que pudesse
contemplar um estilo de música visto por Colmar Duarte como “discriminado”.[10] É
preciso notar que os idealizadores do festival também se posicionavam contra a música
regional produzida até então no RS: a chamada música tradicionalista gaúcha, tendo em
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Teixeirinha, Zé Mendes e Pedro Raymundo seus principais ícones. Em sua perspectiva, a


música regional gaúcha deveria passar por um processo de inovação estética, onde a qualidade
musical fosse o principal objetivo.

O patamar de “qualidade e inovação estética” almejado pelos idealizadores da


Califórnia foi, de fato, reconhecido. Para citar um exemplo de minha pesquisa de campo,
ouvi de muitos compositores que antes do advento dos festivais nativistas a música
produzida no sul do Brasil era considerada “antiquada”, “brega”; diferente do que se
observaria atualmente, onde ela é produzida por bons músicos, que executam de “jazz a
MPB”. Segundo Santi, esta busca de qualidade deve ser compreendida também como um
“esforço” no sentido de acompanhar as mudanças radicais na própria música popular
brasileira, a exemplo da bossa nova, do tropicalismo e da canção de protesto; bem como às
transformações tecnológicas introduzidas no país, como a eletrificação dos instrumentos
musicais e a evolução das aparelhagens de amplificação e difusão sonora.

É na década de 1980, porém, que todo este debate sobre a qualidade estética
introduzida pelos festivais nativistas na música regional gaúcha vai consolidar a polarização
entre tradicionalismo e nativismo, fazendo da identidade gaúcha um importante “móvel de
disputas”. (Oliven, 1992: 108) Isso porque, segundo Oliven, apesar dos contrastes entre os
movimentos, havia um substrato comum em jogo: quem teria competência e legitimidade
para afirmar o que é e o que não é “cultura gaúcha”. De um lado, o tradicionalismo dos
CTGs e sua cartilha bastante consolidada – com regras de composição, figurino e execução
- de outro, um movimento pautado em grandes festivais de música, interessado em inserir o
seu formato de cultura gaúcha em canções de qualidade – com boas letras (incluindo temas
mais “politizados” que falassem do êxodo rural, das questões latino-americanas, etc), bons
arranjos, bons instrumentistas e intérpretes. Também estava aí uma intenção de projetar
elementos reconhecidos como folclóricos no RS e dar a eles uma feição universal.

Em entrevista ao jornal “Folha da Tarde” de Porto Alegre, em 27 de setembro de


1971, Henrique Dias de Freitas Lima (um dos organizadores da primeira Califórnia) faz
críticas ferrenhas ao “rumo” que a música gaúcha estaria tomando: “Letras e melodias erradas,
com Teixeirinha servindo de exemplo maior. ‘Coração de luto’, dele, ou ‘Pára Pedro’, do Zé Mendes,
nunca foram temas gaúchos.” [11] É evidente que a crítica, em busca de uma forte justificativa
para a importância da Califórnia, aponta para a tentativa de ruptura com um passado
musical que, em sua opinião, teria sido o grande responsável pela falta de reconhecimento
da música gaúcha como “boa música” ou “música de qualidade”. Nesse sentido, os
organizadores da Califórnia viam neste novo movimento musical a possibilidade de “fazer
escola”: fomentar a criação musical do RS a partir de valores contrários ao que entendiam
como “música comercial”, pautada em temas como a grossura e o machismo do gaúcho.
Entra em cena um “cantar opinando” [12], isto é, uma intenção de romper com uma
musicalidade tida como não-comprometida com os “verdadeiros temas gaúchos”.

Considerações finais
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Os festivais - além de competições acirradas por prêmios altos – representam “uma


das arenas na qual têm se travado de modo mais intenso as disputas em torno do que significa ser gaúcho”.
(Oliven, 1992: 116) Para definir quais canções podem ser inscritas, cada festival organiza
um regulamento onde expõe o que entende por música nativista. No caso da Califórnia,
foram criadas “linhas”; isto é, de acordo com a temática da canção, ela poderia ser
classificada como de “linha campeira”: a que se identifica com o homem, o meio, os usos e
costumes do campo no RS; “linha de manifestação rio-grandense”: a que enfoca outros
aspectos sócio culturais e geográficos do RS não limitados estritamente à “linha campeira”;
e a “linha de projeção folclórica”: a que, partindo das demais, se projeta com o sentido de
universalidade artística em termos de tratamento poético-musical. (Oliven, 1992: 117)
Delimitam-se, nesse sentido, os moldes a que as canções devem se encaixar. Não livres de
críticas, os regulamentos de festivais variam muito com o tempo, tentando alcançar o
máximo de “objetividade” possível. Objetividade no sentido de imparcialidade de
julgamento, o que é constantemente questionado pelos compositores. Em um discurso que
não parte apenas de comissões organizadoras, a questão das temáticas – mais credenciadas
ou menos quanto ao que é ser gaúcho – evidencia, além de uma clara preocupação com a
letra em detrimento da música das canções, uma indefinição incômoda sobre a cultura
gaúcha. Em minha pesquisa de campo, numa cidade catarinense muito ligada ao
tradicionalismo gaúcho, pude perceber o grande desconforto que alguns compositores
apresentavam com relação a serem chamados de “cataúchos”[13], ou “gaúchos cansados”
[14]. Para estes compositores, a cultura gaúcha não estaria delimitada pelas fronteiras do
estado brasileiro do Rio Grande do Sul. Estaria espalhada por onde quer que a “lida de
campo” – entendendo-se aqui as atividades pecuárias, principalmente - fosse predominante.
Além disso, parece estar presente neste discurso sobre a origem da cultura gaúcha um
elemento transcendente: um estado de espírito. Ser gaúcho também está aquém de
indumentárias, atividades campeiras e territórios específicos. É também um modo de ser
cravado no peito, um ímpeto que transborda da pessoa em determinado momento da vida,
seja na infância, seja na vida adulta, quando se olha para uma infinidade de campo verde e
se deseja mais do que tudo um cavalo para poder cavalgar sem rumo e pelejar[15] quando
for preciso. Dentro dessa perspectiva, também está a vontade de liberdade plena, o caráter
bravio e poético. O apreço pela terra natal, pela querência, pelas coisas nativas. Este estado
de espírito, aliado a condições geográficas e formas de trabalho parece ancorar o
significado de ser gaúcho em Santa Catarina ou no Mato Grosso, por exemplo; ainda que,
como apontado anteriormente, o Rio Grande do Sul apareça como principal referência.

Retomando a questão apresentada no início deste artigo, parece essencial analisar a


importância que a idéia de “cultura” recebe entre os diferentes sujeitos do gauchismo. Ser
gaúcho, gaucho, pode representar, primordialmente, um estado de espírito. Mas ele se
manifesta em atividades específicas; isto é, pode ser observado dentro de um conjunto de
elementos que os sujeitos definem como “cultura gaúcha/gaucha”. De acordo com a
discussão apresentada, muitos desses elementos foram interpretados de diferentes
maneiras, mesmo que constituindo um imaginário base sobre a vida dos gaúchos, gauchos.
Acompanhando o raciocínio de Lucas (1990), podemos compreender esse processo como
o resultado da articulação entre sistemas sociais e sistemas simbólico-culturais. Nesse
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sentido, as representações coletivas advindas de tal articulação seriam formadas por um


conjunto de imagens, símbolos, temas e conceitos – que alguns teóricos denominaram
como “imaginação social” – através dos quais categorias de classe, gênero, idade, etnia,
identidades regionais e nacionais são construídas. (Lucas, 1990: 43) Contudo, sabemos que
elas não são imóveis, mas sim passíveis de mudanças, de acordo com as conjunturas que se
apresentam aos sujeitos. Assim, a idéia de cultura parece representar um “elo” entre as
diferentes interpretações vigentes, criando uma base referencial, algo que supostamente
eliminaria possíveis ambigüidades e desconfortos. Como analisa José Carlos Rodrigues
(1989), o conceito de “cultura” é muito útil como rótulo exterior, serve para a observação a
partir de um ângulo externo, mas é muito pobre para compreendermos uma sociedade
desde dentro, assumindo um ponto de vista interior. (Rodrigues, 1989: 167) Dessa forma, a
idéia de uma cultura gaúcha, gaucha se apresenta como “porto seguro”, posto que os
próprios sujeitos que dizem vivenciá-la reconhecem sua diversidade e antagonismos
internos. Pensar em uma forma abstrata e homogênea torna-se, portanto, uma boa maneira
de contar a alguém “de fora” o que é a cultura gaúcha, gaucha – como aconteceu comigo em
várias ocasiões durante a pesquisa.

Bibliografia:

Almeida, Ignácio. 2008. Representaciones sobre la música popular em el proyecto de construcción de la


identidad nacional: de cómo fue imaginada y narrada la música popular entre 1870 y 1930. (Artigo) IX
Congreso Argentino de Antropología Social. Posadas, Misiones. ISBN: 978-950-579-119-4
Antropología Social CDD 306
Borges, Jorge Luís & Guerreiro, Margarita. 2005. O “Martín Fierro”. Porto Alegre: L&PM.
Golin, Tau. 1983. A ideologia do gauchismo. Porto Alegre: Tchê.
Hernández, José. 2007. Martín Fierro. La Plata: Terramar.
Lois, Élida. 2004. Cruzamento(s) de fronteira(s) em Martín Fierro. In: Chiappini, Ligia; Martins,
Maria Helena; Pesavento, Sandra Jatahy (orgs). Pampa e cultura: de Fierro a Netto. Porto
Alegre: Editora da UFRGS/ Instituto Estadual do Livro.
Lucas, Maria Elizabeth da Silva. 1990. Gauchos on Stage: Regionalism, Social Imagination and
Tradition in the Festivals of Musica Nativa, Rio Grande do Sul, Brazil. (Tese de Doutorado) The
University of Texas, Austin.
Menezes Bastos, Rafael José de. 1995. Esboço de uma teoria da música: para além de uma
antropologia sem música e de uma musicologia sem homem. Anuário Antropológico/93. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro.
Mello, Zuza Homem de. 2003. A era dos festivais: uma parábola. São Paulo: Editora 34.
Oliven, Ruben.1992. A parte e o todo: a diversidade cultural no Brasil-Nação. Petrópolis: Vozes.
Santi, Álvaro. 2004. Do Partenon à Califórnia: o nativismo e suas origens. Porto Alegre:
Editora da UFRGS.

[1] Nota-se um processo bastante similar em outros países da América Latina, em que escritores
categorizados como “nacionalistas” e “regionalistas” se espelham em personagens populares para
compor seus romances. A diferença aqui, talvez, se dê em torno da linguagem utilizada. No caso de
Hernández, a voz do gaucho é confundida com a voz do autor, criando um vocabulário próprio,
muitas vezes considerado uma maneira de falar generalizadamente gaucha.
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[2] De maneira resumida, a payada é um desafio improvisado em versos, quase sempre


acompanhado de um violão. O gênero musical executado pelo violão, geralmente, é a milonga.
[3] Transcrevo o trecho conforme a tradução de Carmem Vera Cirne Lima, que optou pela palavra
gaúcho para traduzir gaucho.
[4] Borges & Guerrero (2006, 12).
[5] De acordo com Almeida (2008), este território compreende, atualmente, as regiões do Pampa,
Patagônia e Chaco. Almeida (2008, 14)
[6] De acordo com Santi (2004), no contexto do RS, usa-se habitualmente o termo “regionalismo”
com um significado que extrapola a literatura, para designar qualquer aspecto da cultura
característico do Estado, da culinária à maneira de vestir. Santi (2004,17)
[7] De acordo com Ruben Oliven (1992), em 1868, é fundado em Porto Alegre o “Partenon
Literário”, uma sociedade de intelectuais e letrados que tentava unir os modelos culturais vigentes
na Europa com a visão positivista da oligarquia sul-rio-grandense através da exaltação da temática
regional gaúcha. E em 1898, por iniciativa do republicano e positivista João Cezimbra Jacques, surge
a primeira agremiação tradicionalista, o Grêmio Gaúcho de Porto Alegre. Oliven (1992, 71-73)
[8] Como é o caso do “35 CTG”, primeiro CTG, fundado em 1948.
[9] Segundo Santi, no vocabulário gauchesco o termo significa o mesmo que “triste”,
“acabrunhado”. Santi (2002,53)
[10] Nasce, em 1971, o festival Califórnia da Canção Nativa, na cidade de Uruguaiana, RS. A partir
desse, muitos outros foram criados em todo o RS, assim como em Santa Catarina e no Paraná.
Levando em conta os três estados, a pesquisa contabilizou mais de 50 festivais de música nativista
por ano.
[11] “Em busca de algo novo” – 27/09/1971. Porto Alegre, Folha da Tarde: 13.
[12] Referência ao poema de José Hernández, onde o gaucho Martín Fierro sentencia: “Yo he
conocido cantores, que era um gusto el escuchar, mas no quieren opinar, y se divierten cantando; pero yo canto
opinando, que es mi modo de cantar.” Hernández, José. 2007. Martín Fierro. La Plata: Terra Mar, 54.
[13] Da mistura das palavras “catarinense” e “gaúcho”.
[14] O apelido “gaúcho cansado”, segundo informações de moradores da cidade, se deve ao fato de
a cidade ter sido povoada por tropeiros. Os tropeiros gaúchos que seguiam para São Paulo
resolviam “parar” em Lages para descansar e engordar o gado, daí a denominação do lageano como
um “gaúcho cansado”.
[15] Do vocabulário gauchesco, o mesmo que “lutar”, “guerrear”.
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UMA ANALISE DE GÊNERO: O PAPEL DA MULHER NA


SOCIEDADE DA REPÚBLICA RIO-GRANDENSE (1836-1845) E SEUS
REFLEXOS NA EDUCAÇÃO DE MENINAS

Itamaragiba Chaves Xavier


Mestrando do Programa de pós-graduação
Faculdade de Educação
Universidade Federal de Pelotas(PPGE/FAE/UFPEL)
Membro do CEIHE/UFPEL
Giana Lange do Amaral
Profª. Dra. do Programa da Pós graduação em Educação
Faculdade de Educação
Universidade Federal de Pelotas (PPGE/FAE/UFPEL)
Pesquisadora do CEIHE/UFPEL
Resumo
Neste trabalho analisaremos como a sociedade Farroupilha, majoritariamente
dominada pelos homens, percebe a mulher neste espaço social e quais seus reflexos na
educação de meninas. As fontes que utilizamos neste estudo são: a bibliografia referente ao
tema, as cartas dos participantes da Revolução Farroupilha, editadas pelo Arquivo Histórico
do Rio Grande do Sul e o jornal O Povo, um dos diários oficiais do Governo da Republica
Rio-grandense. Usamos também como fonte de pesquisa o Projeto da Constituição da
República Rio-grandense e leis sobre cidadania e Educação. Os nossos referenciais teóricos
são: Alves, Le Goff , Louro, e Scott.
Palavras-chave: Gênero. República Rio-grandense. Educação.

Abstract
In this paper we analyze how the Farroupilha society, mostly dominated by men, a
realize woman in that social space and its impact on education of girls. The sources we use
in this study are: a bibliography on the subject, the letters of the participants of the
Farroupilha Revolution, edited by the Historical Archive of Rio Grande do Sul and the
newspaper O Povo, one of the official journals of the Government of the Rio-Grandense
Republic. We also use as source of research the Project of the Constitution of the Rio-
Grandense Republic and laws about citizenship and education. Our theoretical references
are: Alves, Le Goff, Louro, and Scott.
Keywords: Gender. Rio-Grandense Republic. Education.

Introdução

O presente artigo faz parte da pesquisa realizada no Mestrado em Educação na


Universidade Federal de Pelotas (FAE/UFPEL), na linha de pesquisa História da
Educação, em que é analisada a Instrução Pública na República Rio-grandense (1836-1845).
Este é um espaço de tempo em que a Província de São Pedro, atual Rio Grande do Sul,
esteve separada do Império brasileiro, inclusive criando a República Rio-grandense, com
ideais liberais e modernos, contrapondo no discurso a Monarquia brasileira como opressora
e atrasada.
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Ao analisarmos as fontes percebemos a necessidade de investigar o papel da mulher


na sociedade farroupilha e seus reflexos na educação de meninas, que é o que
apresentaremos neste artigo.

A nossa concepção de gênero está de acordo com Louro (2007, p. 210) que
considera gênero uma “construção histórica, produzida na cultura, cambiante, carregada da
possibilidade de instabilidade, multiplicidade e provisoriedade”. Salienta-se que a forma
como percebe-se hoje a questão de gênero não foi sempre assim e que pode mudar de
acordo com cada cultura.

As fontes que utilizamos neste estudo são: a bibliografia referente ao tema, as cartas
dos participantes da Revolução Farroupilha, editadas pelo Arquivo Histórico do Rio
Grande do Sul, conhecida pela historiografia por Coleção Varela (C.V.) e um dos jornais
oficiais do Governo da Republica Rio-grandense, O Povo. Usamos também como fonte de
pesquisa o Projeto da Constituição da República Rio-grandense (está em anexo em
FLORES, 1985) e leis sobre cidadania e Educação.

Torna-se necessário refletir sobre o uso dessas fontes. No que se refere aos jornais,
inicialmente, é importante salientar que a produção jornalística não está isenta das
perspectivas políticas, sociais, econômicas e culturais de quem a produz. Dessa forma a
utilização dos jornais como fonte de pesquisa é fundamental para percebermos a sociedade
do século XIX, pois ele se constituía num importante mecanismo de comunicação e com
demonstração explícita dos objetivos da classe dominante. Como aponta Alves (2006, p.
351), “o jornalismo desse tempo atuou com tenacidade na formação de hábitos,
pensamentos, costumes e opiniões, numa escala que, se não global, ao menos atingiu
grande parte das comunidades de então”.

Na análise das fontes, inclusive dos jornais, utilizamos a perspectiva de que elas são
fruto de um momento histórico, sendo necessário ao pesquisador se interar das forças em
luta naquele espaço de tempo, assim como também, a concepção de gênero. Referindo-se
às fontes, conforme Le Goff (2003, p. 535-536),

o documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um


produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí
detinham o poder. Só a análise do documento enquanto monumento
permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo
cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa.

O presente texto abordará na primeira parte a concepção da função da mulher na


sociedade farroupilha; na segunda, seus reflexos nas leis e práticas referentes à educação de
meninas.
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1 – O papel da mulher na sociedade farroupilha

O historiador ao analisar um período deve situá-lo dentro do contexto dos fatos.


Por isto iniciaremos pela análise da função da mulher na sociedade da República Rio-
grandense, para depois podermos perceber os efeitos na educação de meninas. Conforme
Scott (1990, p. 15),

Os historiadores devem antes de tudo examinar as maneiras pelas quais


as identidades de gênero são realmente construídas e relacionar seus
achados com toda uma série de atividades, de organizações e
representações sociais historicamente situadas.

A mulher era preparada para o lar, para ser boa mãe e não para participar da vida
política. Conforme consta na lei de 18 de dezembro de 1838 (O Povo, 19/12/1838, n°32),
que dava direito ao estrangeiro de cidadania Rio-grandense, não consta a questão da
mulher. O único elemento que ressalta, é no artigo 5°, onde é explicitado que o estrangeiro
casado com uma Rio-grandense teria cidadania, mas no caso contrário, não.

Ao analisarmos as fontes de forma mais atenta, percebemos que no projeto da


Constituição da República Rio-grandense a mulher não é considerada cidadã, como
podemos observar no Artigo 6°:

Artigo 6° - São cidadãos rio-grandenses:

I – Todos os homens livres nascidos no território da República;


[...]
IV – Os filhos de pai ou mãe, natural do país, nascidos fora do Estado,
desde o momento em que vierem estabelecer nele seu domicílio.

Deve-se ressaltar que a cultura e a lei estão intimamente ligadas. Conforme Scott
(1990, p. 16), “a natureza recíproca do gênero e da sociedade e as maneiras particulares e
situadas dentro de contextos específicos, pelas quais a política constrói o gênero e o gênero
constrói a política”.

Ao analisarmos o jornal O Povo (11/01/1840, nº134 e 25/01/1840, nº137),


podemos observar que o dispositivo legal reflete uma concepção cultural, onde a mulher
deveria ser preparada para o casamento, ser dócil, submissa e aprender os afazeres
domésticos.

- A mulher para ser amada deve ter como primeira qualidade, um gênio
brando e dócil.
- Não há defeito maior do belo sexo do que a loquacidade, e a garrulice,
que são de ordinária filha da imprudência.
- Uma Senhora de honesto, e sisudo comportamento estranha a
consideração e o respeito do homem o mais licencioso (O POVO,
11/01/1840, n°134).
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- O recolhimento, a ocupação, o manejo dos negócios domésticos devem


ser o habitual emprego de uma senhora virtuosa.
- A prudência, a moderação, a docilidade de gênio em uma senhora
honesta são as qualidades preferíveis a todas as riquezas da terra:
- A mulher deve ser para seu marido um espelho de compostura, e de
virtudes, uma consoladora nas aflições, e nos trabalhos da vida.
- Não há defeito maior em uma Senhora que deve ser toda amável,
atrativa e graciosa do que a ferocidade de gênio, a rudeza de costumes e a
grosseria de tratos (O POVO, 25/01/1840, n°137).

É importante constatar que a mulher era, inclusive, vista como a culpada pelos
casamentos que não davam certo, sendo que seus descuidos poderiam acarretar a desordem
familiar, conforme consta no artigo publicado no jornal O Povo(25/01/1840, nº137):

Variedades.
- O imprudente ciúme de muitas mulheres envenena a doce união
conjugal e produz a desordem da família;
-a mulher viciosa é o maior tormento da vida; ela se faz pesada a todos
os que a cercam de perto;
- grande número de casamentos no mundo e a origem da desgraça de
muitas casas de famílias, pela leveza com que se trata este negócio de
tanta importância.
- Quantas mulheres loucas com suas dissipações têm reduzido seus
maridos e filhos à desgraça!
- A infelicidade das famílias é muitas vezes originada pela imprudência de
uma mulher;
- Mulheres loucas que só por interesses se ligam a homens velhos, ou
viciosos, ou atacados de enfermidades, que fazem ao depois a ruína de
seus inocentes filhos.

No mesmo artigo do jornal, utilizando como exemplo o filósofo Sócrates, o


homem é apresentado como prudente e salvador do casamento, e sua mulher como um
animal feroz: “se o filósofo Sócrates tivesse o mesmo gênio intratável de sua mulher
Xantipe, passaria com ela uma vida desgraçada. Ele soube com sua prudência domesticar
aquele animal feroz”( O POVO, 25/01/1840, n° 137).

Outros elementos que aparecem são, por exemplo, o fato de que desde a infância
deveriam ser inculcados tais princípios e a mulher aparece como educadora da família,

- As meninas criadas no ócio e na dissipação não podem ser boas mães


de famílias(O POVO, 11/01/1840, n°134).
- Se desde a tenra infância não procurarmos adquirir o habito do
trabalho empregando o tempo em coisas úteis, nunca possuiremos aquela
importante virtude.
- O primeiro dever de uma mãe é inspirar a seus filhos o amor à pátria, e
das instituições do país( O POVO, 25/01/1840, n° 137).
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2 – Educação de meninas

A lei imperial de 15 de outubro de 1827, a primeira que sistematiza um sistema de


Instrução pública de primeiras letras para todo o Brasil, continuava vigorando na República
Rio-grandense. Como podemos observar, quando Bento Gonçalves, presidente da nação
Farroupilha, nomeia uma professora ao cargo de uma aula de meninas, referindo-se que ela
satisfazia as exigências da referida lei Imperial. Conforme consta em O Povo(14/08/1839,
n° 92),

E sendo examinado e aprovado pelos examinadores nas matérias


designadas no Art. 6° da carta de Lei de 15 de outubro de 1827, hei por
bem de prover a dona Ana Francisca Rodrigues Pereira no emprego de
professora de primeiras letras da Vila de Cachoeira.

Nesta Lei a uma distinção de conteúdo para meninos e meninas, conforme consta
nos Artigos 6° e 12°,

Art. 6°
Os professores ensinarão a ler, escrever, as quatro operações de aritmética,
prática de quebrados, decimais e proporções, as noções mais gerais de geometria
prática, a gramática de língua nacional, e os princípios de moral cristã e da
doutrina da religião católica e apostólica romana, proporcionados à compreensão
dos meninos; preferindo para as leituras a constituição do Império e a História
do Brasil.
[...]
Art. 12°
As Mestras, além do declarado no Art. 6°, com exclusão das noções de geometria
e limitado a instrução de aritmética só as suas quatro operações, ensinarão
também as prendas que servem à economia doméstica; e serão nomeadas pelo
Presidentes em Conselho, aquelas mulheres, que sendo brasileiras e de
reconhecida honestidade, se mostrarem com mais conhecimento nos exames
feitos na forma do Art. 7º.

Como podemos observar os conteúdos destinados às meninas ficou limitado ao ler,


escrever, as quatro operações aritméticas, a gramática da língua nacional e a moral cristã e a
doutrina da religião Católica e apostólica romana. O conteúdo moral e da religião católica
não poderia deixar de constar, pois o objetivo principal da Educação Pública de meninos e
meninas, neste período era de moralizar o povo.

Para completar a formação feminina, constavam as prendas domésticas, afinal a


mulher tinha como papel fundamental ser destinada à procriação, ao cuidado da casa e da
família.

Nesse período é importante destacar a atuação da professora Ana Francisca


Rodrigues Pereira, que após ser nomeada professora de primeiras letras de meninas da
cidade de Cachoeira, pelo Método de Lancaster é acusada por um anônimo ao Ministro da
República Rio-grandense Domingos José de Almeida, que esta professora propagava em
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sua aula, assim como suas alunas, doutrina contraria a República. D.J. de Almeida manda
um oficio em 18 de julho de 1839, para o major Antônio Vicente da Fontoura, chefe geral
de polícia do município de Cachoeira para que este apure os fatos.

A própria professora manda uma carta ao Ministro se defendendo das acusações


dizendo ser caluniada, pois não é contrária à causa republicana. Porém D. J. de Almeida, em
resposta a mesma, afirma que irá esperar a resposta do chefe de polícia local para se
posicionar sobre os fatos. Tudo consta em O Povo de 14 de agosto de 1839, n° 92.

Apesar da carta enviada ao Ministro a professora negar as acusações. As conclusões


do chefe de polícia mostram que a professora não defendia a causa republicana. Mas agora
estaria arrependida e que exerceria a sua função em defesa da causa dos Farroupilhas.
Conforme consta em O Povo( 14/08/1839, n° 92), lemos a seguir:

Ilmo.exmo.sr. – Em observância ao que me ordena V. Ex. em Oficio de


18 do mês passado, cumpre me informar que D. Francisca Rodrigues
Pereira, professora de Primeiras Letras de meninas nesta Vila, consta não
ser afeta ao sistema Republicano; porém como é Rio-grandense, e
sabendo da informação por V.Exa. pedida se mostrado pesarosa, estou
convencido que d`ora em diante se fará digna de exercer o sublime
magistério de diretora de suas jovens patrícias, ficando essa corrigida já
com o conhecimento de que não é o Exm. Governo da Republica
indiferente expectador, para tolerar procedimentos que em menos em
regra com o sistema adotado pensão ainda que levemente ofende-lo.
Deus guarde a V. Exa. – Comando Geral do Município de Cachoeira 4 de
agosto de 1839. – Ilmo. e Exmo. Sr. Domingos José de Almeida, Ministro
e Secretário dos Estados dos Negócios da Fazenda, encarregado do
expediente do interior. – Antonio Vicente Fontoura.

Podemos observar que esta mulher se posicionou contrária à ordem que estava
sendo instituída, como foi reprimida pelo controle do Estado, teve que ceder. Esse fato
demonstra que nem todas as mulheres aceitavam sua posição determinada pela sociedade
majoritariamente regida pelos homens e que a construção de gênero é num campo de luta.
Talvez neste momento histórico em que vivia Ana Francisca a sua capacidade de luta era
limitada, mas não nula. Conforme Scott (1990, p. 15),

A história posterior é escrita como se estas posições normativas fossem o


produto de um consenso social mais do que um conflito[...] Mais ainda:
os homens e as mulheres reais não cumprem sempre os termos das
prescrições da sua sociedade ou de nossas categorias de análise.

Ao analisarmos as cartas de D. J. de Almeida a sua esposa, observamos que ele


distingue a educação dos filhos da educação das filhas. Conforme consta nas cartas:
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CV 607.
Alegrete, 22 de novembro de 1842. Querida Bernardina, muito estimo
teres alugado casa para a ensinança de nossos filhos e para o mestre
dedicar-se juntamente na instrução de mais alguns rapazes cujos pais
queiram aproveitar a ocasião.

Nesta carta ele se refere à casa alugada por sua esposa para que um professor ensine
os filhos, não fazendo menção às filhas, mas na carta de 28 de dezembro fala de ambos:

CV 623.
Alegrete 28 de dezembro de 1842. Querida Bernardina [...] O mestre
pode em casa continuar o ensino de nossas filhas e na escola de nossos
filhos; eu espero que ele se esforce no adiantamento de todos.

Nesta, observamos que D. de Almeida distingue a Instrução de seus filhos, na casa


alugada para funcionar como escola e a das filhas em sua própria casa, no controle da mãe.
Poderíamos dizer de acordo com os valores do século XXI que ele era um homem
retrogrado, por separar as filhas dos filhos, mas se colocarmos Almeida a sua época, século
XIX, talvez fosse um homem moderno, pois demonstra preocupação com o ensino de suas
filhas, ou seja, é um homem de seu tempo. Mas é claro reconhecemos que excluía a mulher
de muitos espaços e benefícios que eram resguardados aos homens.

3 – Conclusões preliminares

Por enquanto podemos expor que a sociedade Farroupilha percebia a mulher, como
sendo aquela que a sua função social era cuidar da casa, do marido e educar os filhos(as).
Assim sendo teve reflexo tanto na legislação quanto na Instrução de meninas. Deveriam ter
uma educação onde os conteúdos não fossem iguais ao dos meninos, ficando limitado ao
ler, escrever, as quatro operações aritméticas, a gramática da língua nacional, a moral cristã
e a doutrina da religião Católica e apostólica romana. Sendo acrescentado as prendas
domésticas, que preparava as meninas para a sua principal função social.

A mulher continuou sendo preparada a ser submissa, dócil e aprender os afazeres


domésticos, tornando-se uma boa esposa e mãe.

Por outro lado nem todas as mulheres aceitam esta função sem resistência. Sendo
assim podemos concluir que a formação da concepção de gênero se constrói num espaço
de luta que pode ser observado nos textos impressos da época.

4 – Referências bibliográficas

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PROFESSOR DE LÍNGUA PORTUGUESA OU EDUCOMUNICADOR?


REFLEXÕES SOBRE A REPRESENTAÇÃO DO PROFESSOR DE LM NO
SÉCULO XXI

Keity Cassiana Seco Bruning (PG – UEL)


Doutoranda - Estudos da Linguagem -
Formação de professor de Língua Portuguesa e outras Linguagens
Universidade Estadual de Londrina - PR

Resumo: este artigo analisa os discursos que constituem as Diretrizes Curriculares do


Ensino Básico do Estado do Paraná, na área de Língua Portuguesa. O objetivo é mostrar,
por meio da teoria semiótica, como o enunciador emite uma determinada representação do
professor de LM. Dessa forma, o estudo mostra, pelas marcas lingüísticas presentes na
materialidade textual e pelos dados extratextuais, a manipulação emocional e
cognitivamente do sujeito-operador professor, feita pelos documentos oficiais. O sujeito é
induzido e seduzido, de modo sutil e natural, a querer implantar o multiletramento na
escola, bem como pensar que deve, pode e sabe realizar tal ação.
Palavras-chave: multiletramento; documentos oficiais; representação do professor.

Abstract: this article analizes the Diretrizes Curriculares do Ensino Básico do Estado do
Paraná speeches, in Portuguese Language area. The goal is to show, by semiotic, how the
enunciator represents LP teacher. So, the present study observes any linguistics marks on
officials documents text and any datas of contexts, to prove the sensitive and cognitive
manipulation. These direct the teacher by natural way, to want the multiletramento in the
school, and makes the teacher to think that he shoud, can and knows to do this.
Keywords: multiletramento; oficials documents; teacher representation.

Introdução

Esta pesquisa visa refletir sobre as questões relacionadas ao multiletramento, na


escola pública. Para isso serão investigados, os encaminhamentos oficiais direcionados ao
ensino-aprendizagem dos gêneros textuais sincréticos (canção, propagandas, filmes, HQs,
novelas, blogs etc.), veiculados principalmente pelos novos recursos tecnológicos como, a
TV, o rádio, o computador/internet, o vídeo-game, os celulares etc.

Será apresentada uma análise interpretativa, para desvelar os discursos


governamentais que fomentam o ensino de outras linguagens nas aulas de Língua
Portuguesa. Tentar-se-á identificar assim, como tais prescrições são projetadas aos
professores.

Reitera-se sobre a importância desse assunto, denominado por alguns especialistas


de multiletramento (leitura crítica e produção criativa de textos híbridos, formados a partir
da semiose entre a linguagem verbal e outro plano de expressão dentro de um contexto real
de produção de sentidos), já que este discurso sinaliza uma mudança profunda na
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representação e, conseqüentemente na identidade profissional do professor de Língua


Portuguesa.

Referencial teórico

Para que a proposta apresentada seja efetuada, utilizar-se-á a semiótica e a semiótica


das paixões de Greimas (1993) aparato teórico-metodológico usado nas análises
interpretativas das representações (Diretrizes Curriculares do Ensino Básico do Paraná).
Barbosa (2004, p. 50) explica que, “as representações sociais representam o movimento do
sujeito que, diante dos temas e objetos do mundo, analisa, recorta, resume, lê, interpreta e
produz significado”.

Todos estes procedimentos constituem o que a semiótica denomina de contrato


fiduciário, que “põem em jogo um fazer persuasivo de parte do destinador e, em
contrapartida, a adesão do destinatário” (GREIMAS e COURTÈS, p. 184, 1979), proposto
pelo manipulador ao sujeito operador. Tal negociação de sentidos é realizada por um
enunciador-manipulador, o qual projeta uma imagem por meio do texto enunciado, ao seu
enunciatário (sujeito-operador), com o intuito de fazer este saber, crer, sentir e executar
algo.

Desse modo, procurou-se desvelar como o sujeito enunciador projetou seu texto,
na tentativa de direcionar o pensamento, os sentimentos e as ações de seu destinatário.

Serão usados, concomitantemente, alguns postulados da fenomenologia discursiva e


da semiótica da enunciação de J. C. Coquet. Este classifica e caracteriza a personalidade
humana como sendo determinada por um lado racional (considerado sujeito) consciente e
o lado emocional e instintivo (não-sujeito). Segundo Coquet, “o não-sujeito designa
primeiramente o actante que só executa aquilo para o que foi programado [...] aquele que
só sabe a sua lição” (apud BERTRAND, 2003, p.364).

Este (não-sujeito) pode ser apreendido ainda sob duas perspectivas, um sujeito
programado para fazer (somático ou mecânico) sem refletir nem sentir sobre sua ação,
motivado pelos instintos, e/ou um sujeito movido pela sensibilidade psíquica, que faz
guiado pela paixão. Já o sujeito (pensante, reflexivo) seria competente para julgar tanto a
sua própria ação (prática reflexiva) quanto à ação alheia (intérprete/sancionador). Este
racionaliza o fazer por meio da observação e da lógica metodológica, deve ser convencido
intelectualmente a acreditar (crer) em uma veridicção, para só depois decidir se fará ou não
aquilo que lhe é proposto, ou seja, é o “lugar em que o irrefletido é compreendido e
conquistado pela reflexão” (COQUET, apud BERTRAND, 2003, p.263).

Verifica-se, portanto, que o crer-fazer e o sentir-fazer ou fazer-fazer são modalizações


diferentes, mas que se complementam na produção semântico-argumentativa e expressiva
em textos verbais, não-verbais e sincréticos. Em cada gênero, de acordo com suas
características, sobressairá mais um estilo de persuasão, ora apelando para o sujeito ora para
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um dos lados do não-sujeito ou para ambos ao mesmo tempo (sujeito e não-sujeito


passional e/ou somático).

Também servirão como aporte teórico algumas definições de letramento,


postuladas por diversos autores ligados diretamente com a formação docente. Segundo
Kleiman (1995, p.19), o letramento seria “um conjunto de práticas sociais que usam a
escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para
objetivos específicos”. Nesse sentido, letramento seria a utilização do código verbal
enquanto prática de interação social.

Já a idéia de multiletramento é mais ampla e significa que, “compreender e produzir


textos não se restringe ao trato do verbal (oral ou escrito), mas à capacidade de colocar-se
em relação às diversas modalidades de linguagem – oral, escrita, imagem em movimento,
gráficos, infográficos – para delas tirar sentido (ROJO, 2004, p. 31). Assim, o
multiletramento se refere a interação social por meio tanto da linguagem verbal quanto da
não-verbal, como por exemplo a canção.

O contexto sócio-histórico da implantação do multiletramento nos currículos de LP

O discurso sobre o ensino de várias linguagens, como por exemplo, a canção, surgiu
explicitamente nos documentos oficiais há pelos menos vinte anos (Currículo Básico do
Paraná/1988, LDB/1996, PCNs/1995 - primeira versão etc.). Por isso, já foi bastante lido e
relido, geralmente de modo “natural”, por professores do Brasil inteiro.

Este é um dos conteúdos, segundo os documentos oficiais, oriundos das


transformações sociais, políticas e econômicas, que vem acontecendo no Brasil e no mundo
desde o fim da década de 80.

O mundo se torna, desde essa época, cada vez mais global, sua cultura é
mundializada e os relacionamentos virtuais, isto é, a interação é realizada essencialmente
pelos gêneros sincréticos veiculados pelos equipamentos multimídia.
A partir desse panorama, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) postulam
que:

[...] os objetivos do ensino fundamental preconizam que os alunos devem


ser capazes de utilizar as diferentes linguagens – verbal, musical,
matemática, gráfica, plástica e corporal – como meio para produzir,
expressar e comunicar suas idéias, interpretar e usufruir das produções
culturais (BRASIL, 1998, p. 7 e 8).

Seguindo esta mesma vertente, foi criada no Paraná, as Diretrizes Curriculares para
a Educação Básica, a qual é uma releitura do Currículo Básico de 1990. Este documento
estadual vem sendo escrito e reescrito desde 2002, tendo sua última versão lançada em
2008. Este se apresenta como um documento elaborado pelos próprios professores da rede
pública, ou seja, nascido da realidade escolar, e refletindo as necessidades e experiências
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práticas desta. Segundo o documento, houve um grande diálogo ou intercâmbio entre os


docentes, os especialistas e o governo para criar/recriar ou produzir as propostas contidas
neste corpus. É destacada, freqüentemente, nesses textos, a participação ativa dos
educadores, como se estes é que tivessem idealizado e elaborado tais diretrizes para o
ensino.

Importa ainda explicitar que, a última edição das Diretrizes Curriculares,


distribuídas às escolas e aos professores, chegou em um novo cenário educacional. Isto
porque as salas de aulas e as escolas foram equipadas, durante o ano de 2008, com TVs
multimídias, aparelhos de DVDs, microsystens, aparelhos de som e áudio, como
amplificadores e microfones etc. Os professores “ganharam” pen-drives de presente do
governo e as escolas laboratórios de informática (computadores, internet etc.), notebooks,
data shows etc.

Além disso, o governo criou vários programas educativos, relacionados direta ou


indiretamente com a idéia do multiletramento como, a criação da TV Paulo Freire (canal
educacional do estado), incentivo à implantação e divulgação de projetos extracurriculares,
todos mediados por gêneros sincréticos (bandas, orquestras, corais, grupos de música,
dança, teatro, festivais, apresentações culturais, jornais impressos e virtuais etc),
desenvolvidos pelas escolas e professores. Há disponível também, para toda a comunidade
escolar, o site educacional do governo paranaense, que visa, a interação da comunidade
escolar, implantação de cursos de formação de professores à distância (on-line e/ou
teleconferência) etc.

As Diretrizes então, vem ratificar a mensagem que o governo já havia difundido por
meio da instalação dos “novíssimos” aparelhos, que são um dos principais veiculadores e
hibridizadores de outras formas de linguagem (música, dança, imagem etc.). Nesse sentido,
o discurso de implementação, evolução, modernização, inovação, revolução,
informatização, democratização da informação e inclusão digital são visíveis não só no
discurso dos documentos, mas também nos significados imanentes aos objetos (materiais e
culturais) que cercam os docentes. Tais ideologias são extremamente contagiantes e,
parecem, ser realmente transformadoras a qualquer pessoa (alunos, pais, administradores,
funcionários etc.) e aos professores de LM.

Desse modo tanto os textos norteadores da educação quanto o contexto didático


em que se encontram os sujeitos operadores (professores), pelo menos no Paraná, são
manipulados a querer e a dever usar os recursos disponíveis em seu dia-a-dia. Com isso,
trabalhar com os gêneros amalgamados por duas ou mais linguagens como: e-mails,
músicas, blogs, filmes, novelas, clipes, imagens etc. Mas o que se vê, pelo menos na grande
maioria das escolas do Paraná e do Brasil, é que tais discursos (inovação, transformação,
inclusão, interação, letramento e multiletramento) veiculados a mais de vinte anos
(PCNs/1988) pelos textos oficiais, não se efetivaram ainda na prática.

No Paraná, observou-se que os novos equipamentos didáticos até são utilizados


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durante algumas aulas, geralmente como um recurso motivacional (mudando o texto


impresso do LD ou do quadro para a TV), entretenimento e/ou relaxamento (filmes,
clipes, shows etc.). Entretanto, a leitura e a produção de sentido, com suas relações
discursivas, transmitidas por tais dispositivos, são, na maioria das vezes deixadas de lado de
forma natural e lúdica.

As pesquisas evidenciam, que depois de vinte anos postulando sobre as práticas de


multiletramento, envolvendo os gêneros textuais sincréticos, ainda não ocorreu a reforma
pedagógica, divulgada há um bom tempo, por tantos governantes e por tantos documentos.
Importa lembrar que nem mesmo o letramento, prática voltada à leitura e a produção
significativa de textos verbais impressos, conseguiu se concretizar. Este fator deixa mais
distante a implantação eficiente do ensino-aprendizado dos gêneros sincréticos (canção,
filmes, propagandas, blogs etc).

Mostrar-se-á, em seguida, as representações que os documentos emitem sobre o


professor ao próprio professor de LM no Brasil, buscando verificar como o texto é
projetado, com intuito de convencer os leitores-docentes a compactuar com seu gestor
profissional.

A representação do professor de Língua Portuguesa nos documentos oficiais

O enunciador do texto oficial manipula textualmente o sujeito professor por meio


de todas as formas: tentação, sedução, provocação e intimidação. Estas aparecem correlacionadas e
interligadas, para despertar o querer e o dever fazer no sujeito professor.

Dentre todas as estratégias, a mais visível e recorrente, no discurso das Diretrizes


Curriculares é a sedução, agindo, por meio da vaidade, para convencer e motivar o sujeito
professor. Busca despertar a empatia do sujeito, que se sente aceito, respeitado, valorizado,
admirado, capacitado, competente, íntegro, ético e comprometido. Desse modo, o sujeito
sente vontade/desejo de realizar a ação proposta.

Os demais recursos persuasivos, também são utilizados pelo enunciador para


influenciar o professor, porém com menos recorrência que a sedução/vaidade.

Pela tentação o sujeito é motivado pelo sentimento de recompensa ou troca de


Objetos de Valores, apresentados pelo manipulador ao sujeito operador. Esta recompensa
pode ser algo material (dinheiro, bens etc) ou cognitiva (reconhecimento, elogios, aceitação,
poder etc,). Na provocação o manipulador recorre ao desafio, instigando o sujeito a
provar/confirmar que pode ou é capaz de realizar uma determinada performance.

A intimidação leva o sujeito ao dever-fazer, pela obrigação, instigado pelo sentimento


de medo/necessidade. Salienta-se, que esta estratégia é a menos usada no discurso das
diretrizes, já que o enunciador veicula uma imagem dialética, que visa conquistar/empolgar
e não ameaçar/amedrontar o professor.
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Por meio da investigação destas estratégias argumentativas, presentes no texto, é


possível notar a representação ou imagem, que os documentos oficiais projetam sobre o
professor. Estas imagens são enviadas ao sujeito professor, para fazê-lo confiar, acreditar e
compartilhar as verdades do enunciador.

Para a teoria semiótica, o ato de aceitar as verdades textuais significa que o sujeito
fechou uma espécie de contrato fiduciário com o enunciador, sendo tentado,
posteriormente a realizar uma ação. Assim, a aceitação ideológica é o primeiro passo da
persuasão, ou seja, para o enunciador levar o sujeito-operador a fazer o que ele quer,
primeiro ocorre a manipulação, depois a capacitação (adquirir as competências modais de
saber e/ou poder realizar a performance) ou auto-capacitação do sujeito operador (saber
e/ou poder fazer), a performance ou ação prática e finalmente a sanção (o manipulador,
interpreta, julga e premia ou castiga a performance do sujeito operador).

A seguir apresentaremos alguns excertos do texto governamental, que exemplificam


as formas de manipulação apontadas anteriormente.

Este documento que traz, em si, o chão da escola...p.5. O professor é seduzido pelo sentimento
de valorização de seu trabalho (metáfora acima), suas experiências e seu contexto profissional.
Representado como alguém que ajudou a fazer o documento, comparado aos especialistas citados,
alguém que faz e tem voz e vez. Assim ele é seduzido a utilizar o seu próprio documento, pois
partiu dele e de sua prática. Deverá, logicamente, ser lido e usado continuamente. Também fica
implícita a idéia de algo funcional e útil, pois foi um documento construído a partir das
necessidades/dificuldades docentes.

Há diversos gêneros que podem ser trabalhados em sala de aula ...cartaz...e-mail, blog,
orkut...p.33. O professor é provocado a diversificar e a ampliar seu objeto de ensino. Fica inferido,
pelo contexto, que é capacitado (sabe) para usar os equipamentos enviados às escolas pelo governo
estadual (TV multimídia, computadores, pen-drives, internet etc). É manipulado a provar que pode
dominar a língua e as linguagens. É desafiado a manusear os aparelhos, por meio um trabalho com
os gêneros sincréticos. Desafiado a ser corajoso, ousado, empreendedor e a provar capaz de
explorar outros recursos, códigos e gêneros.

O professor pode solicitar que os alunos transcrevam um trecho de novela...p 32. O professor é
seduzido pelo reconhecimento de que é uma autoridade, aquele que detém o saber e o poder, pois
só irá pedir aquilo que já domina cognitivamente.

É importante contemplar, ainda, na formação do leitor... o ato de ler envolve respostas a muitos
textos, em diferentes linguagens...sons, cores, imagens, versos, ritmos, títulos, gestos, vozes...uma leitura
profundada p.36 e 37. Os argumentos de causa e conseqüência provocam o professor a conhecer e
a trabalhar com gêneros diferentes, além dos verbais convencionais.

É importante, também, abrir espaço para as relações discursivas, propostas pelos alunos, como uma
notícia, uma música, um filme...p 41. O professor é envocado a ser dialético, receptivo, amigo e
moderno, caso ele entenda e compartilhe dos gêneros que fazem parte do contexto dos jovens. A
tentação está presente, pois se o professor for altruísta e pensar nos interesses dos alunos, será
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reconhecido como um sujeito competente, jovem, moderno, atualizado, além de querido e


motivador (já que utiliza gêneros e equipamentos tecnológicos atraentes aos alunos). O sentimento
é de aceitação, por parte dos estudantes.

Pensar o ensino/aprendizado de Língua Portuguesa/Literatura...implica...além dos textos


escritos e falados, a integração da linguagem verbal com outras linguagens (multiletramento)...as artes
visuais, a música, o cinema, a fotografia, a semiologia gráfica, o vídeo, a televisão, o rádio, os quadrinhos, as charges,
a multimídia...e suas especificidades (seus diferentes suportes tecnológicos, seus diferentes modos de composição e de
geração de significados..) p 17. O professor inteligente e reflexivo utiliza os textos verbais
integrados aos não-verbais. Assim o professor é tentado a usar outras linguagens para ser
reconhecido/premiado como reflexivo, especialista e inovador, em relação aos demais colegas (além
dos) que só trabalham com o código lingüístico.

É possível explorar elementos da representação cênica...bem como a estrutura de um texto


dramatizado...programas televisivos (jornais, novelas, propagandas), em programas de
radiofônicos...nas mais diversas realizações dos discursos p.31. O professor é provocado e
encorajado a ousar e a explorar outras linguagens, já que tem a liberdade e a criatividade inerente (e
o saber que pode adquirir se quiser, pois é esperto e inteligente) para fazê-lo (sedução pela vaidade).

o estudante precisa conhecer e ampliar o uso dos registros socialmente...p 19. A realização
profissional é enfatizada com a presença do léxico estudante e socialmente (lembrando de inclusão
social). Por isso o professor é motivado a querer fazer algo, movido pela premiação da realização
profissional e pessoal (moral e ética). O estudante é o fraco e o excluído e o professor é seduzido
pela pressuposição de ser o herói libertador (o professor é levado a querer dever fazer algo pelo
estudante, do qual é responsável).

a tarefa de ensinar os alunos a expressarem suas idéias com segurança p.32. Manipulação por
tentação (sensação de dever cumprido, satisfação, prêmio da realização profissional), não por
vontade, mas pelo dever moral e ético (vocação).

Ler é familiarizar-se com diferentes textos produzidos em diferentes esferas sociais –


jornalística, ...midiática, publicitária etc...propiciar o desenvolvimento de uma atitude crítica
que leva o aluno...tomar uma atitude responsiva p 36. O professor é seduzido pelo poder de propiciar o
desenvolvimento, o pensamento crítico e a tomada de postura consciente do aluno. É pressuposto,
pelo enunciado que o professor de Português já sabe ler dessa maneira, sendo também crítico e
formador de cidadãos críticos.

os alunos precisam aprender o funcionamento do texto escrito...além disso...tamanho e tipos de letras,


cores e formatos, elementos pictórios...gestos, mímicas...p 33. Manipulação por sedução (professor salvador,
forte), alunos fracos (necessitados de conhecimento e salvação). Salienta-se a soberania e
supremacia do professor que sabe, (além disso, é conhecedor, atualizado, capacitado, empreendedor,
à frente dos outros que não ensinam outras linguagens) tanto as especificidades verbais quanto às
não-verbais.

As análises acima comprovam que o sujeito professor é manipulado pelo


enunciador das Diretrizes Curriculares, principalmente por meio da sedução. O enunciador
projeta ao professor, a seguinte imagem/representação, sobre sua identidade profissional:
autônomo, capacitado, criativo, inteligente, pesquisador, multiletrado, responsável, ético,
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poderoso, transformador, empreendedor, inovador, dinâmico, capaz, disposto, estudioso,


aplicado, dedicado, colaborador, altruísta, corajoso, ou seja, projeta a imagem de um super
herói-especialista, que pode, sabe e deve transformar/democratizar a educação e libertar a
sociedade brasileira do analfabetismo funcional e digital.

Assim ele transmite uma imagem ao sujeito professor, construída pelos discursos
que envolvem o sentimento de respeito, aceitação, valorização e companheirismo por parte
dos gestores. Isso motiva, pois cria empatia e cumplicidade entre o enunciador e o seu
enunciatário, o qual é envolvido para se sentir estimulado a trabalhar, obviamente, com a
proposta dos gêneros verbais, não-verbais e sincréticos, cada vez que lê e ouve tais textos.

O enunciador deixa transparecer, em algumas vezes, por meio do texto, que na


realidade percebe que o sujeito professor precisa das competências do saber, e ainda não
está apto para realizar as ações esperadas de modo eficiente. Entretanto, as representações
relacionadas ao déficit de conhecimento e dependência são silenciadas e apagadas pelo
texto, pois comprometeria o enunciador a ajudar o sujeito operador a adquirir o saber
necessário para realizar a reforma postulada por aquele.

O enunciador não se compromete efetivamente com a forma-ação do professor,


mas o incentiva e o manipula a querer/desejar efetuá-la em sua prática. É encorajado a se
especializar e/ou auto-formar-se, tornando-se um letrado, multiletrado, que sabe, pode,
deve e quer transformar suas ações e libertar a sociedade.

Nesse sentido, a superficialidade de todas as propostas, tanto às relacionadas ao


letramento quanto ao multiletramento, acontecem pela falta de implantação e viabilização
de políticas públicas nesse setor (desde 1988 até hoje).

Na aparência, os discursos oficiais projetados apontam para o desenvolvimento, a


evolução e a melhoria do ensino-aprendizado, mas os sentidos mais escondidos no texto e
ratificados pelos fatos contextuais insistem em evidenciar, infelizmente, outros dados...

Considerações finais

No cerne deste estudo, está a preocupação em saber até que ponto as novas
responsabilidades e especificidades, relacionadas ao multiletramento, requeridas do
professor de Língua Portuguesa e emitidas pelos documentos oficiais desde 1988, com o
Currículo Básico até os dias atuais, com a divulgação das Diretrizes Curriculares da
Educação Básica do Paraná (2008), podem influenciar as auto-representações e,
conseqüentemente, as ações docentes desses profissionais.

Constatou-se, que muitas exigências profissionais, como o multiletramento, são


realmente advindas das inúmeras transformações ocorridas no mundo contemporâneo
(globalização), bem como na cultura humana (mundialização) e, conseqüentemente, dos
novos recursos tecnológicos e gêneros textuais utilizados no século XXI. Este
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multiletramento requerido deveria servir, segundo as prescrições pedagógicas


governamentais, para possibilitar a interação social/virtual, a inclusão profissional e a
cidadania dos alunos das escolas públicas.

Os incríveis avanços técnicos em eletrônica, informática e redes vêm criando um


novo campo de ação, novos processos sociais, métodos de trabalho, mudanças culturais
profundas, novos modos de aprender e perceber o mundo (e, portanto de intervir nele),
com repercussões significativas no campo da educação, a exigir transformações radicais nos
métodos de ensino e nos sistemas educacionais (BELLONI, 2002, p.30).

Diante do exposto, chega-se a conclusão de que estamos diante de novos impasses,


como: O nosso objeto de trabalho é ainda somente a linguagem verbal ou são as múltiplas
linguagens e textos sincréticos? O nosso foco é o plano de expressão ou seu
conteúdo/discurso? Somos professores de Língua Portuguesa ou educomunicadores? E o
que faremos diante de uma realidade cada vez mais virtual, multicultural e sincrética?

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REPRESENTAÇÕES DA IDENTIDADE NACIONAL NA ANTOLOGIA


DE ENSAIOS INTÉRPRETES DO BRASIL: UM ENFOQUE DISCURSIVO

Luciana Cristina Ferreira Dias


Docente do Departamento de Letras
Universidade Estadual do Centro-Oeste- UNICENTRO
Guarapuava-PR
Doutora em Linguística Aplicada
UNICAMP - SP

RESUMO: Considerando a problemática acerca da linguagem e da identidade nos estudos


de perspectiva discursiva (Pêcheux, 1988; Orlandi 1999), este trabalho busca refletir sobre
as representações construídas discursivamente sobre o Brasil na coleção de ensaios
Intérpretes do Brasil organizada por Silviano Santiago. Na medida em que a antologia é um
gênero que funciona como organizador de saberes sobre o Brasil, mostrou-se necessário
enfatizar, no trabalho, a distinção entre memória (arquivo) e interdiscurso.
Palavras-chave: antologias de ensaios, análise do discurso, identidade brasileira,

ABSTRACT: Dealing with problems on language and identity in discourse studies this
current research analyzes discourse-constructed representations on Brazil in the essay
collection Silviano Santiago’s Intérpretes do Brasil. Since an anthology is a literary genre that
organizes knowledge on Brazil, the distinction between memory (archive) and
interdiscourse are highlighted.
Keywords: essay anthologies, discourse analysis, brazilian identity.

Introdução

Este estudo parte de uma preocupação com a construção de sentidos sobre a


identidade nacional brasileira, tomando-se como base o funcionamento enunciativo-
discursivo de uma antologia de ensaios de múltiplos autores, Intérpretes do Brasil, organizada
por Silviano Santiago, em relação aos processos dos quais fala Orlandi (2001) e que
constituem as condições de produção e de circulação desta coleção.

Ancorado na Análise do discurso de linha francesa (PÊCHEUX, 1998; ORLANDI,


1999; 2001; SERRANI, 1993), o estudo parte do pressuposto de que a antologia é uma
construção discursiva que se ancora num eixo norteador (uma área ou uma temática) e
coloca em jogo justamente a unidade (da identidade do autor e da unidade do texto) e a
dispersão de sentidos (marcada pelas várias posições do sujeito e pela relação do dizer com
diferentes formações discursivas no mesmo texto).

Neste caso, fez-se necessário trabalhar na confluência dos eixos intra e


interdiscursivo (PÊCHEUX, 1988) ou, nos termos de Orlandi (2001), examinar a
textualização da memória sócio-cultural brasileira na tessitura da antologia de ensaios,
considerando representações dominantes sobre o Brasil e sua cultura.
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1 – Análise do discurso: princípios teóricos

Estudar uma antologia nos leva a pensar a respeito dos processos de sentidos
relacionados aos efeitos que uma dada produção cultural produz em termos de autoria,
trabalho intelectual de leitura e circulação por entre instituições e grupos sociais.

Em termos de autoria, diferentemente de Foucault que atrela a função-autor a


situações enunciativas especiais (em que o texto original de autor se contrapõe ao
comentário), isto é, no caso dos autores originais de linguagem, apoio-me em Orlandi
(1999) para quem a autoria é vista como função discursiva do sujeito quando esse se
representa na origem, produzindo um texto com unidade, coerência, progressão e não-
contradição, no uso corrente da linguagem.

Nos termos de Orlandi e Guimarães (1988), considerando que a unidade do texto é


um efeito discursivo que deriva do princípio da autoria, a antologia é uma forma de
textualização desta pretensa unidade, num processo em que o ensaísta se assume como
produtor da linguagem, na escrita de ensaios, que, organizados, novamente exigem outro
autor, o organizador das textualidades em seu conjunto. Uma autoria geral na qual o
organizador da obra, em meio à variança, aos sentidos múltiplos e aos temas diversos,
“administra a dispersão” e procura garantir um efeito de homogeneidade ao conjunto de
ensaios reunidos no suporte material do livro.

Também, mostra-se válido considerar os três processos dos quais fala Orlandi
(2001, p. 9), três momentos inseparáveis, do ponto de vista da significação da linguagem
que se relacionam à produção de antologias: constituição, formulação e circulação dos sentidos.
Neste sentido, as antologias mobilizam justamente esta relação com uma memória que é
convocada para a constituição da coleção, memória que se textualiza na sua formulação da
coleção com suas partes ou volumes estruturados, a partir de um dado modo de circulação
das antologias em nossa sociedade. Conforme Orlandi (200, 151), “os sentidos são como se
constituem, como se formulam e como circulam”

Ainda, segundo, Orlandi (2001), a partir desses três momentos igualmente


importantes: a constituição dos sentidos se dá “a partir da memória do dizer, fazendo
intervir o contexto histórico-ideológico mais amplo”; a formulação se dá “em condições de
produção e circunstâncias de enunciação específicas” (ORLANDI, 2001, p. 9). Já a
circulação diz respeito aos trajetos dos dizeres que se dão em certas conjunturas. A
circulação ocorre por “meios” que nunca são neutros.

2 – Análise de Intérpretes do Brasil:

2.1 – Condições de produção e de circulação da obra:

A antologia Intérpretes do Brasil, em termos de construção discursiva, tomando-se o


sentido original de antologia, pode ser vista como “bouquet de autores ilustres” na medida
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em que se estrutura como uma reunião de compilações de textos originais, postos nos
volumes na íntegra[1], textos esses selecionados por Silviano Santiago, organizador da obra,
o que configura uma espécie de edição de caráter memoralístico-documental a partir da
reunião de onze livros clássicos do pensamento brasileiro.

Além disso, o texto fundador (obra clássica) circula juntamente com uma
interpretação de um ensaísta legitimado, ou seja, temos ao lado da obra de um grande
intérprete um ensaio produzido por professores, pesquisadores, pensadores (os novos
intérpretes), convidados a falar tanto da obra quanto de seu autor, concebido como guia de
leitura.

Intérpretes do Brasil materializa um complexo processo de assunção da autoria, uma


vez que, de um lado, há os locutores-convidados que buscam produzir um efeito de
unidade para seus textos, que, por sua vez, farão parte de uma obra maior, no caso uma
coleção de ensaios e de outro, tem-se a antologia que surge a partir de um duplo efeito-
autoria produzido, primeiro pelo Estado Brasileiro que oficializa a antologia, organizando
todo o processo de produção do trabalho de Comemoração dos 500 anos, a partir da
participação de ministérios, embaixadas e secretarias, e segundo, pelo agenciamento da
função-autor a partir da qual o organizador busca garantir o controle da dispersão, se
constituindo em um sujeito “calculável, identificável e controlável” (ORLANDI, 1999, p.
76), responsável pelo que diz e neste caso pelo que produz como obra-texto. É o que
veremos no fragmento a seguir:

SD (1) Neste ano de comemoração dos 500 anos do descobrimento do nosso


país, do início da história registrada e registrável dele, entendeu o Ministro das Relações
Exteriores patrocinar uma coleção de livros que apresentassem uma visão crítica do
Brasil. Foi então que o ministro Luiz Felipe Lampreia, o embaixador Lauro Barbosa
Moreira e o secretário Tarcísio Costa, à época presidente e secretário da Comissão Bilateral
para as Comemorações do V Centenário do Descobrimento do Brasil- então
localizada no Ministério das Relações Exteriores- convidaram o professor Silviano
Santiago para elaborar um projeto reunindo textos críticos do Brasil e à Editora
Nova Aguilar para publicá-los (Nota editorial)

Destaca-se no fragmento, extraído da apresentação da antologia, a configuração de


uma dupla autoria que, em parte, é garantida por instituições governamentais (pelo ministro
das relações exteriores, o embaixador e o presidente de uma comissão bilateral para a
comemoração do V Centenário de Descobrimento do Brasil) e que, em outra parte, emerge
pelo esforço produzido por um locutor-editor da seleção de textos, empiricamente a figura
de Silviano Santiago, escolhido para elaborar esse projeto.

Neste processo de construção de um “arquivo sobre os textos clássicos do Brasil”,


tais elementos como as notas do Ministério da Cultura e as referências à publicação são
parte dos eventos comemorativos dos 500 anos do Brasil, produzindo como efeito o
sentido de uma antologia oficial, a partir da qual o Estado Brasileiro preenche uma função-
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autor para a emergência da coleção como obra. Destaca-se também o fato de que os
representantes oficiais ocuparem (também) um lugar de intelectuais, como Fernando
Henrique Cardoso e Francisco Weffort, o que se relaciona à perspectiva “iluminista” da
coleção.

Neste caso, no prefácio da antologia, podemos discutir a respeito de uma relação


que oficializa a produção de uma antologia e que se materializa no eixo intradiscursivo a
partir de marcas que imprimem materialmente a chancela do Ministério da Cultura e a
textualização de duas notas, uma assinada pelo Ministro da Cultura, da ocasião Francisco
Weffort e a outra assinada pela Editora Nova Aguilar, de modo que o Estado e instituições,
em um esforço conjunto, além de oficializar a emergência da coleção de textos, buscam
legitimar a escolha por Silviano Santiago, como organizador do projeto e selecionador das
obras.

Outrossim, a antologia Intérpretes do Brasil, tomada enquanto arquivo, emerge como


construção organizada dentro de princípios de identificação de autores clássicos, ensaístas
que produziram ensaios-interpretativos, comentários, referências à vida dos autores. Nos
termos de Zoppi-Fontana (2005, p. 97): (...) “todo arquivo é resultado do cruzamento de
diversos procedimentos de identificação dos documentos que o compõem, seja através de
datas, disciplinas, temas e/ou nomes próprios (de lugar, de autor, de instituição) que os
alocam dentro de uma ou mais séries arquivísticas”.

E, de fato, temos, neste caso, um arquivo que se organiza a partir de um evento


comemorativo, visto que a antologia assume contornos de arquivo ou de campo de
documentos “pertinentes e disponíveis sobre uma questão”, conforme Pêcheux (1999, p.
56). A antologia Intérpretes do Brasil representa esta possibilidade de institucionalização de
uma memória que é arquivo (memória institucional) e interdiscurso, em meio a um jogo no
qual as interpretações oficiais e intelectuais se degladiam. Nesta perspectiva, há, de um lado,
a memória que, embora apresente contradições e falhas, num gesto de controle e de
organização institucional do Estado, precisa surgir como completa e totalizada.

Segundo Zoppi-Fontana (2005, p. 97) “todo arquivo responde a estratégias


institucionais de organização e conservação de documentos e acervos, e através delas, de
gesto de memória de uma sociedade”. Essa relação da memória de arquivo com uma gestão
dos sentidos, marcada sobretudo pela presença do Estado, perpassa o trabalho de
produção, seleção e organização de textos, na medida em que Intérpretes do Brasil emerge
como memória-arquivo que está controlando a memória nacional, materializando-a,
fazendo-a circular a partir de um suporte físico em que a autoria do Estado se configura.

No caso de Intérpretes do Brasil, considerando-se os itens lexicais tais como


programação, comemorações, eventos e as construções sintáticas: (i) comemorações do V
Centenário do Descobrimento, (ii) integrante da programação oficial das comemorações do
V Centenário do Descobrimento do Brasil e (iii) passados os eventos comemorativos,
podemos dizer que a antologia enquanto construção emerge como lugar de memória- um
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arquivo para defender o que está ameaçado- de modo que o próprio acontecimento da
comemoração é também lugar de memória.

Em termos da função-autor, será preciso entender a autoria em Intérpretes do Brasil:


como função - que garante coerência, não-contradição, direção argumentativa ao projeto
antológico produzido ao mesmo tempo pelo Estado e pelo selecionador de textos clássicos
Silviano Santiago, como assunção da autoria, na medida em que os ensaístas convidados a
comentar os textos clássicos e o próprio organizador inscrevem o dizer na memória, na
rede do já-dito, do interdiscurso e do silêncio.

Podemos notar um aspecto contraditório em termos de formulação e circulação


dessa obra analisada neste estudo. Com efeito, tal coleção embora se represente como guia
seguro ou obra indispensável (farol para iluminar), buscando preencher uma certa lacuna
em termos de práticas de leitura, no contexto brasileiro, essa não é de fácil e total acesso,
considerando-se outros espaços que não o acadêmico. Intérpretes do Brasil é uma obra que
circula em contextos muito restritos: ou está dentre as obras listadas em bibliografias de
muitos cursos de graduação ou Pós-Graduação em História, em Ciências Sociais, Estudos
Culturais e Antropológicos, Letras, Literatura, espalhados pelo Brasil, ou ainda essa
compõe os livros exigidos pelos Exames e Concursos do Instituto Rio Branco.

Neste caso, a obra, como projeto, embora pretenda proporcionar a reflexão e a


leitura sobre o Brasil, por sua vez, na sua realização efetiva, essa está ainda circunscrita a
espaços limitados e constitui um tipo de referência reservada a uma elite de leitores.
Também, pensando ainda no papel da circulação da obra, podemos destacar que a coleção
Intérpretes do Brasil encontra-se esgotada e não há previsões de uma nova reedição da
coleção pela editora Nova Aguilar até o presente momento

2. 2 – Uma tensão entre a produção antológica e a necessidade de reflexão:

Num primeiro momento, em relação à capa da antologia, vale frisar que os três
volumes mantêm o mesmo padrão nas capas (capa dura) com referências ao título da obra,
à editora Nova Aguilar (parte lateral). Na parte interna da antologia, destacam-se a
qualidade do papel (papel bíblia), a presença de textos tais como: ensaios-guia de leitura
assinado por um especialista, dados biográficos do autor, índices onomásticos e a
apresentação na íntegra do texto clássico.

Em termos de projeto, é válido estabelecer conexões entre o tom festivo


relacionado tanto à primeira nota do Ministro da cultura na época Francisco Welffort
quanto à nota editorial da Editora Nova Aguilar (notas oficiais e institucionais) e a posição
de Santiago marcada, por sua vez, por uma não-identificação com os festejos (500 anos do
Descobrimento do Brasil).

SD(3)É com extrema satisfação que o Ministro da cultura participa do projeto de


publicação da coleção Intérpretes do Brasil, integrante da programação oficial das
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comemorações do V Centenário do Descobrimento do Brasil que, em três volumes,


reúne alguns dos textos fundamentais para a compreensão da evolução do nosso país (nota
Ministério da Cultura).
SD(4)Dentro do programa de comemorações do V Centenário, destaca-se esta
iniciativa, que deverá- passados os eventos comemorativos- permitir aos estudantes e
pesquisadores uma melhor avaliação da formação do Brasil (nota Ministério da
Cultura).
SD (5) Seria preciso também comemorá-la com essa festa de cultura
brasileira, esses onze livros da mais pura ciência nacional, acompanhados por
estudos introdutórios inéditos de alguns dos maiores nomes da historiografia atual
(..) que aqui reunidos pelo professor Silviano Santiago, vê, sem qualquer sombra de dúvida,
dar uma dimensão especialmente maior a esta data tão celebrada de tantas outras maneiras
(...). A editora agradece a todos os idealizadores e realizadores do projeto por ter tido a
gloriosa oportunidade de dele participar e espera firmemente que poder público no
Brasil continue apoiando iniciativas como esta, aí, sim carentes de apoio (nota
editorial).

Em sintonia com Orlandi (1990, p. 106), pensando no papel dessas notas oficiais
que procuram significar a antologia, em meio à comemoração dos 500 anos do
Descobrimento do Brasil, “elas são índice de dispersão de sentidos e ao mesmo tempo são
instrumentos de definição”.

Se as notas marginais à coleção de ensaios dão ênfase à relação da publicação com


as esferas oficiais das celebrações do V Centenário, a partir da imagem de um leitor tido
como interessado em uma reunião de textos fundamentais para uma melhor avaliação do
Brasil ou então mobilizando uma memória de país carente de apoio no que diz respeito a
publicações mais alentadas, Santiago, por sua vez, recupera, no ensaio introdutório da
coleção, um sentido de antologia como reservatório de luz ou iguarias oferecidas a um leitor ávido de
conhecimento e não profere nenhuma palavra sobre a autoria-oficial constituída pelo Estado,
no ensaio introdutório. As notas atestam, no caso da antologia Intérpretes do Brasil,
justamente, esse caráter contraditório que constitui seu funcionamento.

Embora as notas apontem para uma tentativa de controlar a significação, a partir da


representação de antologia como parte das festividades, os sentidos de comemoração se
desestabilizam pelo silenciamento de Santiago que põe em destaque a reflexão, a promoção
do conhecimento e não a possibilidade da festa ou da comemoração.

SD(6) Os muitos livros que temos e que envolvem, de maneira descritiva, ensaística
ou ficcional, o território chamado Brasil e o povo chamado brasileiro, sempre serviram a
nós de farol (e não de espelho, como quer uma teoria mimética apegada à relação estreita
entre realidade e discurso). Com sua ajuda e facho de luz é que temos caminhado, pois
eles iluminam não só a vasta e multifacetada região em que vivemos, como também a nós,
habitantes de ela somos (p.(XV)
SD(7) Deverão servir como reservatório infinito de luz para a constituição de
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novas interpretações neste momento em que o país comemora quinhentos anos do


seu achamento (apud Caminha) pelos navegadores portugueses. (p.XLII)
SD(8) Queríamos armar uma festa de aniversário, talvez menos trivial do que
uma comemoração onde a pompa e os fogos de artifício podem dominar e inebriar,
mas acabam por escamotear o profundo sentimento de amor e esperança por
melhores dias que hão de vir para o país que criaram para nós e que continuamos a criar.
Mas a festa não é frugal, tal a qualidade de iguarias que estão sendo oferecidas ao
leitor ávido de conhecimento (p. XLII)

Santiago posiciona-se em relação ao Brasil, à Nação e não em face da


Comemoração dos seus 500 anos. Neste caso, falar do Brasil, tentar entendê-lo, isto é,
fornecer um reservatório infinito de luz, mobiliza uma posição-sujeito marcada por um
sentimento de amor e pertencimento à nação, a partir da construção sintática que irrompe
a formulação do ensaio de Santiago “uma comemoração onde a pompa e os fogos de artifício podem
dominar e inebriar, mas acabam por escamotear o profundo sentimento de amor e esperança por melhores
dias que hão de vir para o país que criaram para nós e que continuamos a criar”. .

Essa posição nacionalista está também materializada no recorte do trabalho ou


ainda nas escolhas de textos a serem postos em cena. Neste caso, a antologia está centrada
em ensaístas que produziram obras clássicas, depois da Independência do país, isto é, é
uma antologia que dá voz à produção de um país cuja identidade já assumia um contorno
mais preciso.

De fato, os sentidos na/pela antologia se movimentam num espaço entre, se, de um


lado, as instituições tanto organizam os ritos comemorativos dentre os quais a antologia é
parte das festividades quanto marcam a gestão da memória a partir de uma autoria “oficial”
quando o Estado imprime uma chancela no corpo da antologia. De outro lado, a função-
autor também é agenciada pelo organizador da obra e selecionador dos textos de Intérpretes
do Brasil em um gesto em que o autor procura apagar este efeito-autor-oficial promovido
pelo Estado Brasileiro e marcar uma posição-sujeito caracterizada pelo uso da primeira
pessoa do plural, nós, e de formas pronominais correspondentes e se relaciona a
sentimentos de patriotismo e de pertencimento à nação.

De fato, nos dois breves textos que antecedem o ensaio de Santiago, há referências
à comemoração do quinto centenário do Descobrimento do Brasil atrelado ao patrocínio
da publicação da coleção Intérpretes do Brasil. Além disso, na nota editorial da Nova Aguilar,
Santiago é referido como convidado para o projeto, convite esse que partira de Luiz Felipe
Lampreia, o embaixador Lauro Barbosa Moreira e o secretário Tarcísio Costa.

Ainda que o autor atualize uma memória de comemoração, esse não materializa
qualquer comentário em seu ensaio introdutório a respeito da relação da publicação com as
esferas oficiais de comemoração do que eles chamavam à época do V Centenário do Brasil.
O que o autor parece destacar diz respeito a uma representação de antologia como
reservatório de luz, a partir da imagem de um leitor que é estudante, pesquisador ou
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estudioso, para o qual a antologia servirá como luz para uma melhor avaliação do país,
sentido que ressoa em diferentes espaços do ensaio introdutório.

SD(9) os onze livros não vão colocar o Brasil como algo já sabido, mas como um
problema que não se deslinda, como incógnita que atordoa, apesar do esforço inédito
de apreensão de seu evoluir histórico. Brasil, o nosso claro enigma (p. XLVIII)

Com efeito, o ensaio do prefácio constrói discursivamente uma imagem acerca do


saber produzido pelos intelectuais brasileiros, que teriam, sobretudo, o intuito de iluminar
uma dada compreensão do país. Assim, ressoam itens lexicais como olhos, luneta e se
repetem expressões semanticamente equivalentes como reservatório infinito de luz, organização
de obras “iluminadoras”, pensadores tomam emprestado lunetas, o que participa da construção de
uma representação de antologia como farol para iluminar as reflexões dos leitores sobre o
Brasil.

Dessa maneira, se é preciso luz para iluminar, tem-se por conseqüência uma
imagem de país-enigma cujo desafio da compreensão, da apreensão e da resolução está
relacionado à reflexão sobre os dilemas brasileiros. Neste sentido o Brasil é representado
como incógnita para o qual deva haver um esforço do pensamento brasileiro em desvendar
esse enigma e torná-lo compreensível e explicável.

3 – Olhar final

Em termos de trabalho organizado pelo Estado e gerido por Silviano Santiago, em


meio à comemoração dos 500 anos do Brasil, a antologia oferece espaços para que muitos
autores injustiçados, ilustres desconhecidos, sejam lembrados, pois foram esquecidos ou
então que os autores de renome sejam mais uma vez lembrados e homenageados. Neste
jogo entre memória e esquecimento, para que autores sejam lembrados, outros são
excluídos do espaço da memória sócio-cultural.

Intérpretes do Brasil funciona assim como lugar de uma memória da ensaística


brasileira, que precisa ser cultivada, estabilizada, organizada e administrada, no sentido dado
por Orlandi (2001) para o conceito de memória institucional, a do arquivo. Ou seja, se
entendermos que a idéia de memória de arquivo produz um efeito de perpetuação de um
conjunto de discursividades, uma vez que garante um efeito de acúmulo, de completude e
de fechamento de um dado “material, a partir do controle das interpretações do texto”, a
antologia constrói-se como um controle das interpretações de textos clássicos para o
pensamento brasileiro num gesto em que o Estado orquestra parte do projeto.

Com efeito, Intérpretes do Brasil constrói-se como conjunto de textos idealizado pelo
Estado, como forma de conservação da memória, marcado pela reunião de textos clássicos
na íntegra e não na perspectiva dos fragmentos. Contudo, se há essa necessidade de
permitir ao leitor um acesso à completude de obras clássicas, em termos de interdiscurso, a
memória mobilizada no acontecimento da antologia representa-se a partir de lacunas, de
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buracos, tendo em vista uma representação de Brasil que é claro enigma, para o qual faltam
tantas respostas e certezas.

4 – Referências Bilbiográficas

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso.São Paulo. Edições Loyola, 1986


ORLANDI, E Análise do discurso: Princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1999
ORLANDI, E. Terra à Vista. Discurso do Confronto: Velho e Novo Mundo. São
Paulo/Campinas: Cortez/Editora da UNICAMP, 1990
ORLANDI, E. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas: Pontes,
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ORLANDI, E. P. & E. GUIMARÃES. “Unidade e dispersão: uma questão do sujeito e do
discurso”. In: Discurso e leitura. São Paulo: Cortez, Campinas: Ed. da UNICAMP, 1988
PÊCHEUX, M Semântica e Discurso. Uma Crítica à Afirmação do Óbvio. Trad. Eni P. de
Orlandi et alii. Campinas: Editora da UNICAMP, 1988.
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SERRANI, S. “Identidade e representação do Brasil em antologias poéticas bilíngües”. In:
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ZOPPI- FONTANA, M. G. Cidadãos modernos: discurso e representação política. Campinas:
Pontes, 1997.

[1] Vale aqui destacar as obras clássicas que compõem a antologia, seguida, por sua vez, de um
ensaio interpretativo: O Abolicionismo, de Joaquim Nabuco, Os Sertões, de Euclides da Cunha, América
Latina, de Manuel Bomfim, Populações Meridionais do Brasil, de Oliveira Vianna e Vida e morte do
bandeirante, de Alcântara Machado. Já no segundo volume, destaca a interpretação de Retrato do Brasil
(Paulo Prado) Vidas Secas (Graciliano Ramos) e a tríade Casa grande e senzala, Sobrados e Mucambos e
Ordem e progresso (Gilberto Freyre) e por fim, no terceiro volume, Raízes do Brasil (Sérgio Buarque de
Holanda), Formação do Brasil contemporâneo (Caio Prado) e A revolução burguesa no Brasil (Florestan
Fernandes).
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UMA REFLEXÃO SOBRE A VIOLÊNCIA ESCOLAR

Mirian Teresa de Sá Leitão Martins


Mestre em Ciências Médicas – UERJ

RESUMO
Este trabalho propõe refletir o fenômeno da violência escolar, entendendo que a violência
é uma situação cotidiana a partir de uma dimensão sociocultural trazendo
estudos/conceitos de diferentes autores. Procurou mostrar que as diferentes formas de
violência estão imbricadas nos contextos simbólicos e culturais, que a autoridade e o saber
dos professores que são impostos aos alunos, reproduzindo nessas relações interpessoais,
violências. Gerando a violência simbólica que se manifesta nas mais diferentes formas no
interior da escola, comprometendo a sua função social.
Palavras chave: cultura, escola e violência.

ABSTRACT

This paper proposes refletiro phenomenon of school violence, understanding that violence
is an everyday situation from a sociocultural dimension bringing studies/concepts of
different authors . Sought to show that the different forms of violence are woven in the
symbolic and cultural contexts, that the authority and knowledge of teachers that are
imposed on students, reproducing violence in interpersonal relationships. Generating the
symbolic violence that manifests itself in many different ways within the school,
undermining the social function.
Keywords: culture, scholl and violence.

Introdução

Este presente trabalho surgiu do encontro com a temática, a partir de estudos


anteriores Martins (2008). O aprofundamento desse tema trazendo novas reflexões, se deu
pela magnitude e relevância do tema “violência na escola” e pela dimensão alcançada por
ele nos dias atuais.

A prática pedagógica na atualidade está envolta em uma série de questões que se


apresentam como verdadeiros desafios para os professores. Além de lidar com as inúmeras
transformações tecnológicas, econômicas e sociais, o professor tem que administrar
inúmeros conflitos no espaço escolar. Conflitos estes que muitas vezes, vêm deflagrar um
ambiente de violência, de desrespeito entre os educandos e entre eles e seus professores.

Revendo a literatura, encontramos o tema sendo conceituado sob deferentes


aspectos. Nessa perspectiva, a violência pode ser definida como um ato físico de uma
pessoa ou de um grupo contra a integridade de outra(s) ou de outro (s) grupo(s). Ou ainda,
como uma agressão que é premeditada e sistemática (Costa, 2000). Ela pode ser física e se
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apresenta na forma de: espancamentos de vários tipos, de estupros, de homicídios, de


acidentes que ferem no trânsito, entre outros. Pode ser verbal e é percebida na forma de
insultos, gritos e xingamentos e psicológica, caracterizada como a desqualificação das
potencialidades de uma pessoa, desejos, emoções e cobrança excessiva de resultados.

O fenômeno da violência é gerado pelas questões sociais, como a pobreza, os


conflitos entre capital e trabalho, instigou vários pensadores como: Hobbes, Rousseau,
Marx e Engels, entre outros. Contudo, autores, como Costa (2000), chamam a atenção no
sentido de que a iniciam o processo de divisão social do trabalho, assim como uma
concepção da existência de violência precede às sociedades urbanas. Para essa autora, os
conflitos humanos ocorrem desde as organizações sociais primitivas. Com o surgimento da
agricultura, os homens um espaço (território) comum a eles. No território a eles destinado
plantavam e, ao se sentirem ameaçados por outros grupos humanos, começaram a defender
as suas terras. Iniciaram-se então, os primeiros conflitos entre os homens e a concepção de
guerra, conquista e defesa das propriedades (Costa, op.cit).

O desenvolvimento natural da civilização e as formas de produção fizeram surgir


também modos de proteção do território, gerando a criação de um poder bélico defensivo.
Com o aparecimento dos Estados Nacionais, acirrou-se ainda mais a defesa das fronteiras e
a disputa entre as nações. Com isso, cada vez mais os conflitos armados foram se
expandindo e com o desenvolvimento tecnológico da era moderna, as formas de agressão e
defesa multiplicaram os conflitos entre os homens (Costa, op.cit).

O valor econômico da terra, a capacidade de exploração e de produção levaram os


homens e os Estados Nacionais a se tornarem cada vez mais violentos em buscas
ostensivas por novos territórios e manutenção de seus domínios. Com o intuito de
controlar os conflitos internos, em cada sociedade foram expandindo-se
instituições/aparelhos de controle jurídico-legal. Esses se expressam na ampliação dos
aparelhos policiais e militares em detrimento dos jurídicos-legais. Enfin os conflitos sempre
fizeram parte da história da humanidade, porém na atualidade presenciamos formas
diferenciadas e particularizadas de violências.

Em especial no ambiente escoalr, que é o nosso foco de reflexão, Debarbieux


(1999) vai enfatizar em estudo sobre o cotidiano escolar, que a escola exprime as marcas da
violência que ocorre na sociedade. Para o autor:

Em primeiro lugar, a degradação no ambiente escolar, isto é, a grande


dificuldade de gestão das escolas, resultando em estruturas deficientes.
Em segundo lugar, a uma violência que começa de fora para dentro das
escolas, manifestada pela interferência das gangues, do tráfico de drogas
e da visibilidade crescente da exclusão social ao redor da comunidade
escolar (1999, p.28).

É inegável que alunos e professores sofrem com a violência urbana. Como


sabemos, devido a sua abragência, a violência urbana apresenta algumas especificidades que
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a diferencia de outros tipos de violência, pois se desencadeia em conseqüência das


condições de vida desiguais, refletindo no convívio no espaço urbano. Suas manifestações
se evidenciam quando observamos o alto índice de criminalidade, a infração dos códigos
elementares de conduta e convívio civilizados, entre outros.

Um pouco do caminhar dos estudos, para a compreensão do fenômeno

Para entender a complexidade do fenômeno, a seguir, faremos uma revisão da


literatura. Diferentes correntes de pensamento que estudam o problema, apontando os
avanços, limites e contradições de modo a tecermos um referencial teórico que de fato nos
leve a entender a questão da violência em sua totalidade, e que se expressa no ambiente
escolar, sem cair na ingenuidade de vinculá-las meramente aos aspectos circunstanciais,
individuais e locais.

Os primeiros estudos sobre a violência escolar datam da década de 1950 , nos EUA.
A princípio esse tipo de fenômeno na escola era percebido como uma simples questão de
indisciplina dos alunos. Mais tarde, com a proliferação nos bairros mais pobres, onde existia
a presença das gangues, passou a ser analisada como manifestação de delinqüência juvenil, ou
seja, da expressão de um comportamento anti-social juvenil.

Em 1978, os debates nos EUA se acirraram e o Instituto Nacional de Educação


passou a perceber o fenômeno como um problema nacional. Tal fato levou educadores e
sociólogos a buscar a identificação dos fatores que levam à violência na escola. Na França,
o fenômeno é alvo de debates desde os anos 80 e já contava com os estudos de Eric
Debarbieux . Em 1998 , junto com a socióloga Catherine Blaya fundou o Observatório
Europeu de Violência nas Escolas, da Universidade de Bordeaux.

Após realizar uma grande pesquisa sobre a temática Debardieux (1999), identificou
três tipos de violência escolar: a penal, os crimes e delitos, as incivilidades, conflitos
interpessoais e o sentimento de insegurança. Na atualidade para o estudioso, embora exista uma
correlação entre violência escolar e exclusão social, houve um aumento de atos de agressão
de alunos contra professores. Fato observado também por Blaya (2001), para ela nos
últimos anos, verificou-se um aumento da violência “chamada de oposição”, aquela
praticada contra instituições, que representam para os alunos, o abuso gerado pela dinâmica
social e pela globalização.

Um estudo realizado pela Unesco (2003 e 2004), com 13 mil estudantes de 110
escolas públicas de Belém, Salvador, Porto Alegre, Distrito Federal e São Paulo, onde
também foram ouvidos 1.768 professores, funcionários e diretores, revela que, as escolas
não apenas refletem a violência que acontece fora delas, mas também produzem violência.

A pesquisa mostrou que 47% dos professores ou funcionários já foram xingados


por alunos e que 51% dos estudantes consideram o clima na escola ruim, péssimo ou mais
ou menos. Entre os alunos, os negros são maior alvo de ofensas: 22% deles já foram
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insultados por causa da cor da pele, percentual que cai para 6% entre estudantes brancos.
Alguns fatores como: pobreza, desemprego, política e aumento do narcotráfico,
contribuem para o fortalecimento da violência. Para entendermos melhor a questão
apresentaremos a seguir alguns aspectos que envolvem a questão da violência na escola.

As instituições educacionais vêem sofrendo mudanças, como foi apresentado pelos


estudiosos mencionados. A escola vivencia novos desafios como: problemas de gestão,
conflitos internos entre os diversos atores sociais (professores, alunos, corpo técnico/apoio
e comunidade), desordem social decorrente da globalização, crise ética e exclusão social.
Essas transformações interferem sobremaneira no dia-a-dia da instituição. Houve
mudanças na expressão do fenômeno, surgiram as armas e as drogas, proliferou-se nas
escolas, as gangues. A instituição escolar deixou de ser uma área protegida, passando a ser
vulnerável aos acontecimentos no seu entorno.

A violência é uma situação cotidiana e não excepcional, mas um fato diário na vida
da população, principalmente nos grandes centros urbanos. A que ocorre nas escolas pode
ser vista como uma conseqüência dos atos ocorridos na sociedade ou em casa e traz várias
implicações para ambos, professores e alunos. Ocasionando comportamentos anti-sociais,
distúrbios de aprendizagem e até problemas de saúde, como a depressão e as fobias.

O fenômeno dever ser analisado a partir de uma dimensão sóciocultural. A esse


respeito Abromoway (2002) ressalta que a violência é fruto das seguintes variáveis:
institucional, compreendendo a escola e a família, social e comportamental. . Entre os tipos mais
comuns da violência escolar por parte dos discentes estão: xingamentos, ameaças, descuido
com o asseio das áreas comuns dos prédios escolares, danificações das vidraças, agressões
verbais, guerra de giz, entre outros.

Atitudes dos docentes

Os professores, em geral, tem dificuldades de identificar formas de violência


geradas por eles próprios, não veem a cultura escolar como fonte de violência, somente a
que está do lado de fora das escolas. De acordo com Waiselfisz (op.cit), ocorrem entre
professor/aluno diversos conflitos no ambiente escolar. Muitos educadores não sabem
lidar com o comportamento violento de seus alunos e acabam tomando atitudes agressivas,
ou perdem o próprio controle, aumentando ainda mais as situações conflitantes Os
docentes usam a agressão verbal. Muitos gritam com seus alunos, desrespeitando-os como
pessoas.

Estudos Abramoway (2002) e Assis e Avanci (2005), também consideram como


violentas, situações que não envolvem a força e mesmo não sendo consideradas como
agressão corporal, são avaliadas como abuso; e por ocasionarem ressentimentos e
humilhações, podem e devem ser consideradas como violência psicológica. São casos onde
há mágoas e agressões por meio de palavras e atitudes. Alunos relataram situações em que
se sentem humilhados e desrespeitados por alguns professores e que são classificados como
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“burros” ou indisciplinados e que os docentes os ignoram completamente os seus


problemas. Enquanto que outros os tratam mal, com agressões verbais e os expõem ao
ridículo quando não entendem a matéria ou não conseguem responder a uma pergunta. São
situações que os jovens consideram como “falta de respeito” (Abramoway, 2002).

De acordo com Assis e Avanci (2005), as escolas contribuem para a ocorrência de


um tipo de violência psicológica sobre crianças e adolescentes, quando admitem a
existência de relações interpessoais conflituosas entre os alunos (bullying)2 e os tratamentos
humilhantes e desrespeitosos entre o corpo discente e docente. O bullying segundo os
pesquisadores, é considerado como fator para o abandono de escola e repetência escolar.

Porém os tipos de violência mais presentes no dia-a-dia da escola são as ameaças e


as agressões verbais entre os alunos e alunas. As relações entre eles são péssimas, ocorrem
também agressões físicas que acabam acarretando em graves conseqüências. Justificam o
uso da força física como legítima defesa. Também são habituais os casos contra os
professores, que ao se envolverem para dissolverem as brigas são ameaçados até de morte,
sofrem agressões verbais o tempo todo, tendo que serem firmes em suas atitudes,
impondo-se com rigidez para não demonstrar que aquela ameaça poderá inibi-los. Às vezes
ficam em situação desesperadora, pois não sabem quando o aluno está falando a verdade.
Alguns docentes recriam também um modelo de violência contra os seus alunos, e
admitem serem agressivos por estarem em um meio violento e sofrerem também agressões
por parte dos discentes (Abromoway 2002) .

As instituições educacionais não são só vitimas da violência, como também


favorecem a ocorrência sobre crianças e adolescentes da violência simbólica, ou seja, uma
violência que se fundamenta nas disposições modeladas pelas estruturas de dominação e o
dominado não se opõe ao seu opressor, já que não se percebe como vítima desse processo
(Bourdieu,1979). Pode-se dizer que há uma forma de violência naturalizada, a violência da
imposição da cultura dominante que desqualifica a existência nas escolas, da diversidade
cultural dos estratos populares. Assim de forma simbólica afeta a formação da identidade, a
auto-estima juvenil e a capacidade de projeção do futuro.

Para Abramovay (2002) a escola busca homogeneizar o espaço social e ressalta as


desigualdades (da posse do Capital Cultural e Social) existentes entre os alunos dos
distintos segmentos sociais. Para ela o convívio de alunos com diferentes Capitais seria
produtivo por possibilitar a troca de saberes. Enfatiza ela que, por um lado a escola é vista com
um lugar para a aprendizagem, como caminho para uma inserção positiva no mercado de trabalho e na
sociedade, por outro, muitos alunos consideram a escola como um local de exclusão social. (2002, pp.72-73).

A desigualdade de Capital Cultural vai configurar as representações acerca das


possibilidades dos alunos, no caso dos segmentos populares, são muitas das vezes
negativas. As Representações Sociais são fruto de uma dinâmica relacional e simbólica através
da qual os indivíduos entram em contato com o mundo exterior e o reproduzem à sua imagem e
semelhança” (Domingos,1998, p.119). São uma forma de conhecimento socialmente
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partilhada que, tendo uma visão prática, concorre para a construção de uma realidade
comum a um conjunto social. Estas possuem características fundamentais: é sempre uma
simbolização de um objeto, possui uma característica de imagem, é um atributo de poder
(que pode interferir na percepção e no conceito em questão) e remete a um significante
(Jodelet,1989). Enfim, é um modo de conhecimento prático do cotidiano, e refere-se à
construção dos saberes sociais.

A Teoria das Representações Sociais (TRS) foi criada por Moscovici (1978) e de
acordo com o autor, estas possuem uma estrutura e é formada por dois processos: o da
ancoragem e o da objetivação. A ancoragem dá suporte ao objeto social. Ancorar é trazer
para imagens e categorias conhecidas o que ainda não está classificado, nem rotulado. Já a
objetivação reproduz um conceito em uma imagem; refere-se à descoberta da qualidade
icônica de uma idéia. Em outras palavras, a objetivação é um processo de concretização
para a realidade. A imagem torna-se concreta, física.

Nóbrega (1990:15) ressalta que a Teoria das Representações Sociais proporcionou à


Psicologia Social a análise da subjetividade do sujeito aliada à sua historicidade, por levar
em conta todas as experiências vividas, de onde emergem as idéias do senso comum que,
por serem produzidas por meio do mundo simbólico através da palavra comunicada, estão
estruturadas em três níveis:

(...) do cognitivo-acesso desigual das informações interesses ou


implicações dos sujeitos, necessidades de agir em relação aos outros, da
formação das representações e da edificação das condutas-opiniões.
Atitudes e estereótipo. (Nóbrega, Op.cit: 16).

Toda Representação Social é uma representação de alguém; quem a formula é uma


pessoa imersa num mundo real e simbólico, portanto, mergulhado na cultura, em um
contexto educacional, institucional e ideológico, fatores estes relevantes na análise da
construção das representações sociais. Então, a partir das Representações Sociais podemos
compreender aspectos importantes que vão influenciar a interação entre docentes e
discentes, suas práticas e levantar as seguintes questões: as diferenças entre o mundo
cultural e simbólico dos segmentos populares e as do Campo Educacional se dão em
espaços simbólicos diferenciados e por que não dizer em alguns momentos antagônico;
fruto das relações socioculturais desiguais, onde aqueles que não pertencem à universos
culturais do grupo dominante ( a escola é parte deste) se veem excluídos.

Essas diferenças, podem levar alunos dos segmentos populares ao abandono dos
estudos (Abramoway, 2002) e a episódios de violência escolar. As representações que
muitos docentes tem dos discentes dos segmentos populares como inapropriados para o
Campo Educacional, (a não ser que efetivamente reconfigurem seu habitus), são percebidas
por alunos como desprezo e preconceito podendo gerar fracasso escolar, desinteresse e
atitudes de rebeldia e agressividade.

Muitos alunos desistem da escola por não conseguirem sucesso na aprendizagem


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ou por não se adaptarem aos códigos impostos pela instituição escolar, já que na quase
totalidade, a autoridade e o saber dos professores são impostos aos alunos, legitimados
pelas Representações Sociais desse mesmo saber e autoridade .

Complementando a discussão sobre a temática cabe lembrar as análises do


sociólogo Pierre Bourdieu (1979), sobre o capital cultural. Para o autor, na maioria das
práticas pedagógicas, a instituição desconsidera qualquer tipo de bem cultural que não seja
o saber instituído, ou seja, o saber das classes dominantes.

Na escola não existe uma relação homogênea entre o saber institucionalizado e as


vivências dos discentes. Essas práticas favorecem manifestações de violência simbólica que
se expressam na autoridade velada do saber do professor, nas avaliações, no fracasso
escolar, que atinge muito mais os alunos que pertencem as camadas com menor poder
aquisitivo, do que aqueles de outros segmentos. Os alunos dos estratos favorecidos
economicamente, estão mais familiarizados com os pressupostos educacionais, por
possuírem maior capital econômico e cultural.

Destaca-se neste conjunto de conflitos, a questão da avaliação dos resultados


escolares e as notas, onde o sentimento de injustiça pode ser encarado como uma agressão
à personalidade individual e à possibilidade de se construir uma imagem positiva de si
mesmo perante os outros. Este tipo de conflito vem a desencadear reações que podem
tanto ser defensiva (isolamento e apatia) quanto ofensiva (agressão, depredação, insultos).

Considerações Finais

Para a análise que seguem partimos do princípio que o fenômeno da violência tem
forte relação com as questões sociais que vão desaguar em ambientes hierarquizados e
disciplinadores como as escolas, acabando por exacerbar a autoridade-autoritária do
professor pelo fato de que as Reprsentações Sociais de muitos educadores, sobre a cultura
do Campo Educacional como a mais correta, além de desencadear uma atitude de
desprezo, por qualquer outro tipo de prática social diferente da sua, vai eleger que alunos
serão excluídos, contribuindo para a violência escolar.

Ao longo do trabalho, fez-se uma relação entre as condições objetivas da violência,


suas diferentes formas de expressão e a questão da violência urbana. Assim como a
chamada violência simbólica. Esta se revela na autoridade sutil dos professores para com os
alunos e no fracasso escolar, já que muitos alunos desistem da escola, por não se adaptarem
aos códigos impostos pela instituição.

Na busca pela compreensão da violência escolar, assumimos a concepção de que ela


é determinada socialmente, da existência de uma relação entre violência/exclusão e de que
não devemos ter um único entendimento, mas uma multiplicidade de conceitos na
compreensão do fenômeno. Pois estes fatores estão diretamente ligados ao contexto
simbólico-social e ao tempo histórico o qual o situam.
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A escola ao tentar resolver o problema da violência, na maioria das vezes, não


considera a reprodução da ordem cultural das classes dominantes. As ações pensadas para
resolver a questão, ocorrem como resposta às situações que se apresentam como limítrofes,
ou seja, insustentáveis. Não há realmente, por parte das instituições educacionais, uma
análise do problema do ponto de vista sociológico, optando-se, quase sempre, por ações
repressivas ou na sua naturalização , por não perceberem que as representações que têm
sobre os alunos, muitas das vezes não condiz com o aluno real , essa diferença foram ao
longo das décadas sendo exacerbadas na Escola.

Na contemporaneidade, muitas das normas que conduzem os códigos de


relacionamento institucional e interpessoal são modificados. Percebemos que novas formas
de interação que são construídas, nem sempre são pautadas pelos princípios da ética e do
respeito mútuo entre os indivíduos, e destes para com as instituições sociais. O próprio
Estado, como Estado de direito, trata de forma diferenciada os cidadãos, reservando–lhes
tratamento diferenciado, mesmo perante às leis. Sob esse aspecto, vive-se uma crise dos
valores humanos acirrada pelas desigualdades, que afeta de sobremaneira a instituição
escolar. Tal crise junto com a distancia que os docentes tem do mundo real do aluno, vem
produzindo modificações nas relações entre os alunos e os profissionais de ensino.
Gerando hostilidades no ambiente escolar.

No enfrentamento dessa situação deve-se pensar nas seguintes questões: se o que os


jovens esperam do sistema educacional está sendo feito, se existem avaliações
descontextualizadas que propiciam o abandono dos estudos (pode ser o começo do
fracasso escolar), ou se a escola é produto e produz Representações Sociais
homogeneizadoras; e se a função social da escola, de promoção, de cidadania e crítica social
está sendo realizada. Estas são questões fundamentais e sem elas não caminharemos ao
encontro de uma solução realmente efetiva acerca da problemática da violência. A não ser
que queiramos continuar apreciando o problema como expectadores.

Entendemos que as práticas da violência passam pela reconstrução da


complexidade das relações sociais que estão presentes no espaço social da escola. Ou ainda,
como ressalta Bourdieu (2001)

A ambição mágica de transformar o mundo social sem conhecer os


mecanismos que o movem corre o risco de substituir por uma outra
violência, às vezes mais desumana, a “violência inerte” dos mecanismos
que a ignorância pretensiosa destruiu (2001, p.36).

No contexto, a “ambição mágica de transformar o mundo” passa pela compreensão


de que a expressão do modelo violento de convivência social se acirra à medida que
aumentam a intolerância às diferenças. Para enfrentá-la é necessário trabalhamos, na escola
e fora dela, por uma cultura que enfatize os valores sociais e humanos, a ética, a
solidariedade, o respeito aos direitos humanos como exercício cotidiano.
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À MARGEM EM THE BLUEST EYE DE TONI MORRISON:


NEGRITUDE E TESTEMUNHO

Mirna Leisi Lopes


Mestranda em Estudos Literários - UFSM

“Todos os homens nascem igualmente livres e independentes, têm


direitos certos, essenciais e naturais dos quais não podem, por nenhum
contrato, privar nem despojar sua posteridade: tais são o direito de
gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir
propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança”.
Declaração de independência dos Estados Unidos da
América

Resumo: O objetivo desse trabalho é apresentar uma abordagem sobre questões referentes
à identidade dos afro-americanos e sobre algumas noções sobre o conceito de negritude
veiculada em The Bluest Eye (1970), de Toni Morrison. Um dos interesses nesta análise é
a de perceber como a opressão é exercida sobre uma comunidade negra estabelecida no
norte dos E.U.A. As questões de negritude e identidade afro-americanas estão estabelecidas
no romance através da voz da narradora que constrói um ponto de vista crítico sobre a
sociedade norte-americana, no início dos anos 40.
Palavras-chave: Negritude, Testemunho, Ficção Afro-Americana, Crítica Social.

Abstract: This paper highlights some questions concerning Afro-American identity as well
as some notions about the concept of blackness conveyed in Toni Morrison’s The Bluest Eye
(1970). One of the interests in this analysis is to investigate the way oppression is imposed
on a black community, established in the north of the US. Both blackness and Afro-
American identity are represented in the novel through the voice of the narrator who
builds a critical point of view about the North-American society in the early 40´s. The
criticism is established through the voice of the narrator and through the representation of
the main character.
Key-words: Blackness, Testimony, Afro-American fiction, Social criticism.

Introdução

A emergência de uma nova realidade instiga uma série de reflexões sobre o papel
do sujeito, seu processo de identificação e criação estética, suas representações e coloca
sobre o sujeito moderno a necessidade de rever seus paradigmas e os limites existentes
entre a ciência (filosofia) e a arte.

As fronteiras estão diluídas e, em função disso, precisamos nos aperceber da


necessidade de interrogação delas. A idéia do desenvolvimento de uma nova sensibilidade,
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de novas percepções, que são mais rápidas e móveis (ou até voláteis), e que, sendo assim,
modificam o modo como olhamos o mundo a nossa volta, ou seja, modificam nossa
percepção da realidade, instiga o reconhecimento de que a realidade do mundo se constitui,
primeiramente, como um contexto/lugar de múltiplas fabulações da cultura. Nesse
contexto, tornou-se necessário centrar as reflexões no sujeito e considerar a reflexão sob o
paradigma do questionamento, porque a reflexão é articulada por um indivíduo que ilustra
em seus discursos uma fragmentação identitária e, um conhecimento que também é
fragmento. Surge dessa condição a necessidade de narrar, contar histórias. Paul Ricouer
(1985, p.432) afirma que a “identidade não poderia ter outra forma do que a narrativa, pois
é através da narrativa que o indivíduo (s) se define(m)”. Dessa forma, de acordo com esse
autor, uma coletividade ou um indivíduo se definiria, portanto, através de histórias que ela
narra a si mesma sobre si mesma e, destas narrativas, poder-se-ia extrair a própria essência
da definição implícita na qual esta coletividade se encontra. Portanto, a construção da
identidade é indissociável da narrativa e conseqüentemente da literatura. Nesse contexto,
surgem questões pertinentes: como um sujeito que é fragmento pode narrar a si mesmo?
Como dar conta dessa narrativa, visto que as categorias de análise e interpretação já não são
suficientes e os paradigmas são outros?

Walter Benjamim, em seu ensaio sobre “A obra de arte na época de sua


reprodutibilidade técnica, de 1936, já apontava para o fato de as novas condições de
produção e fruição artística - “mass media” – modificariam o seu modo de realização na
época atual. Na época em que vivemos e que denominamos de (pós) moderno entram em
voga, na cena literária, diferentes gêneros textuais que centram sua perspectiva no sujeito,
tais como: testemunho, autobiografia, romance confessional. Interessa-nos, por esse viés,
observar como essas diluições de fronteiras entre o real e o ficcional se apresentam na
narrativa afro-americana contemporânea e como tal “ficção” se apropria da ideia de
“verdade” e de vivência para dar voz às classes subalternas.

1 – A narrativa norte-americana contemporânea

A ficção contemporânea norte-americana (afro-americana) apresenta preocupações


referentes à identidade dos afro-americanos, questões como comunidade, subjetividade
feminina e negritude são amplamente consideradas nessa literatura. Há uma necessidade de
através do texto literário, estabelecer um diálogo com os mitos históricos e modelos
legados pela tradição dos escravos vindos de África.

Toni Morrison, negra, mulher, ganhadora do prêmio Nobel de Literatura em 1993


(primeira negra estadunidense a receber o prêmio) e do Pulitzer em 1988 com o romance Amada
(Beloved, 1987), uma história sobre uma escrava que mata a própria filha para não vê-la na escravidão,
dramatiza em seus romances a devastação que o desprezo racial pode causar. Mesmo que
casual ou arraigado pelo costume – o desprezo racial é desintegrador, ele é agressivo social
e domesticamente, algumas vezes monstruoso. Em face de tal realidade, Morrison usa sua
obra para dar voz a essas minorias discriminadas, denotando uma preocupação com relação
à cultura e a identidade afro-americana marginalizada, a ser preservada.
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Em The Bluest Eye, romance publicado em 1970, Toni Morrison representa a


agonia de uma comunidade urbana negra marcada por um passado histórico de escravidão
e opressão. Apresenta-se no romance uma crise de identidade cultural face à paisagem
social - o mundo do homem branco na América do norte -. Essa é a realidade
experienciada por muitos afro-americanos que possuem ainda valores tradicionais, legados
de seus antepassados africanos. Nesse contexto social, a comunidade negra tenta se moldar
aos valores contemporâneos, impostos pela sociedade branca nos Estados Unidos, sem
perder, no entanto, a sua própria identidade.

A história em The Bluest Eye é ambientada em Lorain, Ohio, norte dos EUA de fins
dos anos 40. O romance apresenta cenas do quotidiano de duas famílias de afro-
americanos, apresentando seu presente e seu passado, através da voz da narradora-
personagem Claudia.

No testemunho de Claudia, a narradora há várias referências a pessoas e eventos do


mundo empírico, há também um olhar crítico sobre a sociedade americana que cria, através
da mídia, ideais estereotipados de beleza e progresso que excluem todos àqueles que não se
adéquam a esses estereótipos, colocando-os em uma situação marginal

Frieda e ela conversaram, enternecidas, sobre como a Shirley Temple


era lindinha. Eu não podia participar dessa adoração porque odiava a
Shirley. [...] o que eu sentia naquela época era ódio puro. Mas antes eu
tinha tido um sentimento mais estranho e assustador do que o ódio por
todas as Shirley Temples do mundo. (p. 23)

Parece que essas referências têm uma funcionalidade: a de produzir nos leitores a
sensação de estar em contato com episódios que realmente ocorreram e foram vivenciados
por personagens reais, em lugares conhecidos e num tempo histórico meticulosamente
demarcado. Observa-se, nesse sentido, uma freqüente necessidade de registrar fatos e
lembranças relacionadas à passagem temporal e ao espaço modificado. Sobre esse espaço
social e a realidade imposta aos negros, a narradora comenta:

Há uma diferença entre ser posto para fora e ser posto na rua. Se a
pessoa é posta para fora, vai para outro lugar; se fica na rua, não tem para
onde ir. A distinção é sutil, mas definitiva. Estar na rua era o fim de
alguma coisa, um fato físico, irrevogável, definindo e complementando
nossa condição metafísica. Sendo uma minoria, tanto em casta quanto
em classe, nos movíamos nas bainhas da vida, lutando para consolidar
nossa fraqueza e nos agüentar, ou para rastejar, cada um por si, até as
dobras maiores do vestuário. Nossa existência periférica, porém, era coisa
com que tínhamos aprendido a lidar - provavelmente porque era abstrata.
(p.21, 22 )
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O fragmento acima expressa de maneira bem objetiva as diferenças sociais


presentes na sociedade americana. Os negros denominam-se a si mesmos como “ minoria”,
portadora de uma “fraqueza” e de uma “existência periférica”. Nesse contexto de
marginalização, a comunidade negra, conforme a narradora comenta, tem fome de
propriedade, de se sentir alguém no mundo. A necessidade de registrar essa realidade,
denunciando-a, é subjetiva, e estabelece-se a partir da experiência pessoal da narradora
personagem Claudia.

Assim, pode-se dizer que a natureza quase testemunhal do relato, apresentada


através do olhar nada infantil da narradora menina promove uma historicização da ficção e
uma sacralização do registro , que parecem indicar o desejo de documentar e refletir acerca
dos traços que definem a identidade afro-americana.

É nesse ambiente que as personagens, que representam uma comunidade negra,


vivenciam sensações de medo e preconceito. Dessa forma, os espaços representados no
romance, apresentam a realidade social de algumas famílias negras em face do preconceito
racial, inclusive o seu próprio, devido a sua condição marginal no contexto norte-
americano. Além disso, os espaços representados no romance possuem a função de
delinear o perfil da comunidade afro-americana, a partir da família de Pecola Breedlove - a
menina que desesperadamente busca ter os olhos azuis.

Ao usar o espaço narrativo para representar e estabelecer um diálogo com a


história, Toni Morrison expõe a mazelas que assolam a sociedade norte-americana, e
estabelece um discurso que se afirma a partir da margem: é a voz silenciada da mulher, que
é negra e pobre.

2 – Toni Morrison e a escritura negra – um breve olhar

Em um momento da história norte-americana (década de 60 - 70) repleto de


tensões, questionamentos e redefinições vivenciadas pela sociedade, a literatura afro-
americana, antes tímida, ganha grande impulso. Ao levantar questões referentes ao
preconceito, social, racial e de gênero, os escritores afro-americanos desenvolvem um
trabalho que terá papel relevante no processo de construção da identidade cultural dos
afro-descendentes.

De acordo com a crítica Toni Morrison foi um caso singular de escritor em que a
qualidade literária marcou indelevelmente o panorama da ficção afro-americana
contemporânea. Gina Wisker pontua a respeito de Morrison,

Toni Morrison é demasiadamente talentosa para ser classificada apenas


como uma escritora que recorda/rememora em seus romances o lado
negro da vida provinciana... Morrison pôde facilmente transcender a
precoce e involuntária classificação como ‘escritora negra’ e tomar o seu
lugar entre os mais célebres e talentosos novelistas Americanos da
contemporaneidade.( WISKER, 1993, p. 79).[1]
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De fato, Morrison incorpora em seus romances questões como a confrontação


entre racismo e sexismo, dando voz as mulheres negras americanas, ao representar sua
realidade, sem desconsiderar o estilo literário que integra referências históricas e ficcionais
mais apuradas. A literatura de Morrison conduz ao debate sobre questões raciais que a
história e a sociedade buscam apagar ou negar.

3 – Negritude e o movimento black is beautiful

De acordo com Hacker (1995, p.3), a questão de “raça” (etnia) tem sido uma
obsessão americana desde que os primeiros Europeus chegaram ao continente americano
e avistaram aqueles que eles chamaram de selvagens. Os habitantes da América – nativos
do continente – foram dominados ou, por outro lado, massacrados pelos brancos europeus.
Com o passar do tempo a questão de racismo se acentuou e se tornou objeto de muita
perturbação.

Stuart Hall em Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais (2003) aborda certos


questionamentos acerca da condição do negro, como sujeito, na época contemporânea: a
questão que perpassa o estudo de Hall é quem são os negros inseridos na cultura (negra).

Andrew Hacker (1995, p. 19) usa o termo unobtrusive para designar a condição do
negro em solo norte-americano. Os negros representavam uma grande força motriz,
atuavam como classe trabalhadora, mesmo em seus primórdios na condição de escravos, no
entanto, eram, e continuam sendo considerados, em certo sentido, pelo menos até 1963,
anônimos, invisíveis, embora cidadãos americanos.

Os negros americanos, principalmente a partir da década de 60, passam a expressar


orgulho com relação às suas origens, e buscam demonstrar isso através da preservação de
sua cultura ancestral. Uma cultura de tradição oral. Nesse sentido, a literatura
tem/apresenta um papel fundamental, pois é através dessa consciência de preservação, que
os muitos aspectos da tradição africana foram transmitidos de geração em geração, desde a
chegada dos primeiros escravos africanos ao continente americano. De acordo com
Giraudo

A ficção afro-americana contemporânea objetiva transmitir os vários


aspectos da experiência histórica afro-americana às gerações presentes e
futuras de afro-americanos, bem como aos membros de outras etnias nos
Estados Unidos. Trata-se de um trabalho de resgate que mergulha fundo
na busca da tradição oral e escrita iniciada com a chegada dos primeiros
escravos africanos ao continente americano. Trata-se de manter viva uma
tradição oral, vernácula, bem como de reapropriar e revisitar uma
tradição literária iniciada com as narrativas de ex-escravos do século XIX,
uma vez que o escritor afro-americano participa hoje tanto de uma
tradição oral quanto de uma tradição escrita. Os escritores afro-
americanos, portanto, imergem no passado comunitário de modo a
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permitir que o espírito da cultura emerja e reviva na obra literária. A


preocupação dos escritores afro-americanos é a de salvar toda uma
variedade de manifestações culturais afro-americanas e de organizá-las
em conjuntos sistemáticos e orgânicos. (1997, p. 35)

Outro fator a considerar baseia-se na constatação de Hacker de que a história oficial


parece renegar os negros a uma condição de apagamento. Nesse sentido a literatura não teria
apenas o papel de preservação cultural ancestral, mas também teria a função de contar a
história desse grupo oprimido, de apresentar um olhar crítico sobre essa sociedade norte-
americana que é muito paradoxal.

A história do negro no contexto americano foi muito penosa e sofrida, foi uma
história de luta, mesmo que silenciosa, que foi capaz de vencer a própria impossibilidade de
ter voz. O termo Black usado por muitos era a denominação branca para definir os negros,
e ela estava imbuída de preconceitos e de uma total falta de aceitação do outro.

A partir da década de 60, com o movimento pelos direitos civis, estabeleceu-se a


conscientização e a auto-afirmação de uma identidade negra (afro-americana). Os Afro-
americanos passam a usar o adágio Black is beautiful, em oposição à propaganda branca que
vinculava os ideais de beleza à concepção de brancura. A negritude estabelece-se no nível
da narrativa a partir da referência a uma cosmogonia afro-americana , que pode ser
percebida também no título do romance, através da ambiguidade de significados da palavra
blue em inglês – azul e triste – remetendo a tragédia de Pecola, a personagem principal.
Personagem que busca a negação (anulação) de sua própria raça, de seus valores culturais
negros. Pecola cresce em uma sociedade na qual o padrão de estética é ditado pela figura de
crianças brancas, loiras e de olhos claros, em uma sociedade onde é feio ser negro.

The Bluest Eye é a história de Pecola, mas poderia ser a história de muitas
crianças negras nos EUA. O romance aponta de maneira crítica a vontade de Pecola de ter
os olhos azuis como os de Shirley Temple, pois no seu imaginário, contaminado pela
ideologia dominante, o belo é a brancura. Pecola quer ser bonita, para ser notada pelas
pessoas e para que seu mundo se transforme. O drama da menina de Morrison é, na
verdade, a expressão maior da dificuldade de se atingir a individualidade e o senso pleno de
humanidade em uma sociedade reificada e manipuladora. A representação de um universo
negro e o olhar crítico lançado sobre a sociedade que, ao mesmo tempo, o incorpora e o
exclui é uma característica marcante da literatura afro-americana e uma de suas forças.

Contar e o re-contar eventos de vida significa, dentro da cultura afro-americana,


preservar as histórias de vida dos afro-americanos, quer como denúncia, quer como aviso,
quer como troca de experiências. Na verdade parece que esses relatos são essenciais na
fundamentação de uma identidade negra, que alguns teóricos chamam de negritude
(blackness).

Zilá Bernd (1987, p.24-27) relaciona a idéia de negritude diretamente com a literatura.
A negritude para a autora merecerá um recorte literário, ao invés de filosófico ou
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antropológico. Bernd argumenta que o conceito de negritude é um conceito plural, e que em


seu estudo ela pretende tratá-lo como um questionamento, ponto a ser resolvido, problema.
Traçando um breve percurso da discussão acerca da negritude, a referida autora aponta que
em seus primórdios foi o desejo de reagir frente à idéia de assimilação imposta aos povos
colonizados que está na base da negritude:

A tendência de povos colonizados, tanto na África quanto nas Américas,


de assimilar a cultura européia, alienando-se dos valores da cultura
africana, originou a contrapartida da negritude que traz em seu bojo a
vontade de reencontrar uma identidade perdida, o desejo de opor
ressurreição à assimilação. Este fenômeno da assimilação foi muito bem
captado por Frantz Fanon ao criar a metáfora das máscaras brancas
referindo-se aos homens de pele negra que acreditam que, para ascender
socialmente, devem identificar-se com o branco, assumindo todos os
elementos de sua cultura. (1987, p. 24-27)

Como definição, a palavra negritude, aparece pela primeira vez em 1975. Bernd
comenta que essa palavra é um neologismo formado a partir do latim. Por definição
negritude significa (1) estado ou condição das pessoas de raça negra, (2) ideologia
característica da fase de conscientização, pelos povos negros africanos, da opressão
colonialista, a qual busca reencontrar a subjetividade negra, observada objetivamente na
fase pré-colonial e perdida pela dominação da cultural ocidental.

No presente trabalho nos interessa o recorte conceitual que demarca a expressão


negritude como etapa de conscientização. Quando analisamos o movimento dos direitos civis
norte-americanos e observamos o papel da literatura de produção negra, já na gênese desse
movimento, podemos perceber o sentido de negritude para os negros estadunidenses. A
tomada de consciência de uma “situação de dominação e de discriminação e a conseqüente
reação pela busca de uma identidade negra”[2], é o que caracteriza a produção literária dos
Afro-americanos. Na poética de Toni Morrison, a negritude é apresentada e estabelece-se
através da voz da narradora e da composição da personagem principal.

Pecola Breedlove, personagem principal do romance, sonha em ter os olhos azuis e


se integrar totalmente em um padrão sociocultural que, nitidamente, está erigido para
excluí-la. A única percepção que Pecola parece demonstrar é que, de fato, não existe espaço
para a convivência da diversidade e da tolerância. Em sua mente já perturbada por tanta
violência e desprezo, ela somente é capaz de entender que o modo de resolver sua
infelicidade é deixar de ser outro ( aliens de acordo com Hacker) e se integrar no padrão
(padrão de beleza e de brancura):

Já fazia certo tempo que Pecola tinha percebido que se os seus olhos, os
olhos que viam as pinturas e conheciam os lugares – se esses olhos seus
fossem diferentes, isto é, bonitos, ela mesma seria também diferente. Seus
dentes eram bons, e seu nariz não tão grande e chato quanto o das que
eram consideradas muito engraçadinhas. Se ela fosse bonita, talvez Cholly
(seu pai) ficasse diferente, e até a Srª Breedlove (sua mãe). Talvez eles
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dissessem: ” Opa, olha só os lindos olhos de Pecola. Não devemos fazer


nada de ruim diante desses lindos olhos.” [...] Toda noite, sem falta, ela
rezava e pedia olhos azuis. Com toda fé, ela rezou por um ano. (1970, p.
40)

Considerações finais

Parece pertinente considerar que na composição romanesca de Toni Morrison, a


presença de traços autobiográficos ou testemunhais são fundamentais para o
estabelecimento da denúncia e dos conceitos de negritude. A narradora personagem
apresenta de maneira pontual a problemática do negro nos Estados Unidos, a sua condição
subalterna e desprivilegiada. Através do relato literário, essa classe minoritária pode ter voz
para denunciar e reivindicar seus direitos. Dessa forma a literatura cumpre um papel duplo:
estético e ético. O sujeito em Morrison apresenta as inquietações e os questionamentos
pertinentes à época em que vive, quase que buscando uma catarse pessoal.

BIBLIOGRAFIA

BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da


cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BERND, Z. Negritude e Literatura na América Latina. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1987.
BHABHA, H. K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Ed. Da UFMG, 1998.
BOURNEUF, R.; QUELLET, R. O Universo do Romance. (Trad. José Carlos Seabra
Pereira). Coimbra: Livraria Almeida, 1976.
HALL,S. Que Negro é esse na Cultura Negra? In: HALL, S. Da Diáspora: Identidades e
Mediações Culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da
UNESCO no Brasil, 2003.
MORRISON, T. The Bluest Eye. New York: Holt, Rinehart and Winston, Inc.:1970.
REUTER, Y. A Análise da Narrativa. Rio de Janeiro: Difel, 2002.
RICOEUR, P. Tempo e Narrativa. Vol. III. Campinas: Papirus, 1997.
WISKER, G. Disremembered and Unaccounted For: Reading Toni Morrison´s Beloved
and Alice Walker´s The temple of my familiar. In: BLOOM, C.; WISKER, G. Black
Women´s Writing. New York: Editorial Board, Lumière Press Ltda, 1993.

[1] Toni Morrison is far too talented to remain only a marvelous recorder of the black side of
provincial life …she might easily transcend that early and unintentionally limiting classification
blackwoman writer and take her place among the most serious, important and talented American
novelists. As versões do original em inglês são de minha inteira responsabilidade, assim como os
equívocos possíveis.
[2] Ibidem, p. 27
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A TEORIA DA ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E A ARTE


CINEMATOGRÁFICA

Monalisa Pivetta da Silva


Mestranda em Ciências da Linguagem
Universidade do Sul de Santa Catarina
UNISUL - Tubarão

Resumo
Este artigo apresenta uma reflexão sobre o cinema, a partir do foco do espectador.
O objetivo é avaliar o cinema como um ato de leitura no momento em que é assimilado
pelo público. Para tanto, optou-se como aporte teórico algumas considerações da Estética
da Recepção. Dentro desse campo, o estudo da estética da recepção se revela válido,
viabilizando assim uma melhor compreensão do papel desempenhado pelo espectador na
obra cinematográfica.
Palavras chave: estética da recepção, cinema, leitor / espectador.

Abstract:
This article presents a reflection about the cinema, from the focus of the viewer.
The objective is to evaluate the cinema as an act of reading when it is assimilated by the
public. So that, it was chosen as a theoretical support some considerations of the
Aesthetics of Reception. Inside this field, the study of aesthetics of reception reveals valid,
enabling so a better understanding of the role of spectator in the cinematographic work.
Keywords: aesthetics of reception, cinema, reader / viewer.

Estética da recepção: algumas reflexões

O estudo da estética da recepção contribui para o entendimento da recepção da


obra literária, no momento de sua leitura, considerando assim o público (receptor) como
elemento constitutivo da mesma, encarando-o não mais como elemento passivo, mas ativo,
que participa na elaboração de sentido e na construção final, já que a sua mudança de gosto
e preferência influencia a circulação e a produção da obra literária.

Sendo assim, a estética da recepção toma como objeto de investigação o receptor.


Constrói-se uma concepção de leitor que assume. De acordo com Jauss, “seu papel
genuíno, imprescindível tanto para o conhecimento estético quanto para o conhecimento
histórico: o papel de destinatário a quem, primordialmente, a obra literária visa”. (JAUSS,
1994 p.23)

Sobre a relação entre o leitor e a obra, DEBUS esclarece:

Refletir sobre a existência de um texto ou o conjunto de uma produção


literária sem levar em conta a concretização do ato da leitura parece
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querer condená-la ao limbo, enclausurá-la e privá-la da própria existência,


na medida em que cabe o leitor o papel de trazê-la ao mundo. Num
primeiro momento essa afirmação pode soar banal e sem força, já que
desnecessária. No entanto a figura do leitor no processo de reflexão não
é um aspecto que faz parte da tradição dos estudos literários. Durante
muito tempo o interesse dos estudiosos ficou restrito à figura do autor ou
a análise puramente textual. Escritor, texto e leitor não seriam parte
integrante do mesmo processo? (DEBUS 2004 p. 107)

Com sua afirmação de que a unidade do texto não se encontra na origem, mas em
sua destinação, Barthes também defendeu o leitor e o crítico como criadores, junto com o
autor, do sentido do texto.

Na cena do texto não há ribalta: não existe por trás do texto ninguém ativo ( o
escritor) e diante dele ninguém passivo ( o leitor), não há um sujeito e um objeto. O texto
prescreve as atitudes gramaticais: é o olho indiferenciado de que fala um autor excessivo
(Ângelus Silesius) “O olho por onde eu vejo Deus é o mesmo olho por onde ele me vê”.
(BARTHES, 2006 p.23)

Nesse mesmo campo perspectivo, pode-se acrescentar que o leitor vê o texto pelo
mesmo prisma que o texto o vê. A leitura é o resultado de uma interação entre o texto e o
leitor; onde o leitor lança um olhar crítico sobre o texto sem alterar a mensagem. É um
diálogo em que o texto apresenta sua mensagem, e o leitor lhe atribui significação a partir
do seu grau de conhecimento. Trata-se de um processo de construção de significados em o
que o leitor recebe a informação e estabelece conexões entre o que diz o texto e seus
conhecimentos prévios sobre a temática, o estilo, entre outros.
Constata-se assim que o leitor tem um repertório prévio que vai lhe possibilitar ou
não o encontro com o livro e leitura, pois como destaca DEBUS:

O leitor não é um sujeito a - histórico, ele esta inserido num contexto social e
possui uma bagagem de conhecimento definido. Portanto não é um sujeito neutro,
desprovido de conhecimento, nem por isso um conhecedor da totalidade; a produção
artística aproveita-se do conhecido para ensinar-lhe o desconhecido. (DEBUS, 2004p. 107)

A estética da recepção manifesta a importância do leitor na produção do significado


do texto, destacando a ativa implicação do indivíduo receptor na atribuição de significados
durante o ato de leitura. Portanto ler não é só decodificar os signos, também é construir
significados.

Hans Robert Jauss propõe uma historia da arte fundada em princípios que incluem
a perspectiva do sujeito produtor, a do consumidor e sua interação mútua. Pois esse
enfoque deixa de centrar-se somente no texto ou no autor, e passa a preocupar-se também
no consumidor da mensagem, o leitor. Essa perspectiva coloca o sujeito produtor
(destinador) interagindo com o consumidor (receptor). Diante disso, a arte obedece a uma
função dialética: formadora e modificadora de percepção. (ZILBERMAN, 1989, p.32).
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Para Jauss, somente na relação dialógica da obra com o leitor concretizam-se o


caráter estético e o papel social da arte. Voltado para experiência estética enquanto
momento de prazer formula os conceitos de fruição compreensiva e compreensão
fruidora- o leitor gosta daquilo que compreende e só poderá compreender aquilo que
aprecia- sendo o prazer e a compreensão processos simultâneos. (APUD LIMA, 1979,
p.46)

A estética da recepção adota como critério de determinação do valor estético da


obra literária. Jauss (1994) afirma que o seu poder de decepcionar ou contrariar as
expectativas leitoras no momento de sua aparição, isto é, a distancia entre o horizonte de
expectativa e a obra, entre o já conhecido da experiência estética anterior e a mudança de
horizonte. O autor ainda destaca que:

A reconstituição do horizonte de expectativa de criação e recepção da


obra literária pode propiciar indicadores de como determinada obra foi
recebida pelo publico leitor, permitindo que se desvende a pergunta
desse mesmo publico a qual a obra respondeu no momento de sua
aparição... (APUD DEBUS 2004 p.111)

Podemos perceber na reflexão de Zilberman que o leitor concretiza o texto literário


dentro de possibilidades com base em expectativas internas e externas:

As duas possibilidades de concretização do texto literário pelo leitor são


assim definidas: uma orientada para o horizonte implícito de expectativa
e outra para analise das expectativas externas a obra, relacionadas à
vivência do leitor. No primeiro, de cunho intraliterário, o efeito e
condicionado pela obra. O leitor implícito, criação ficcional, depende das
estruturas objetivas da obra, no segundo de cunho extraliterário, a
recepção e condicionada pelo leitor. O leitor explicito depende de fatores
externos a obra literária.( ZILBERMAN 1989 p. 65)

No livro “O prazer do texto”, Barthes esclarece que um texto pode elaborar um


espaço de puro prazer e criar caminhos para a arte do diálogo, no qual o desejo é o ponto
de partida para que o leitor desfrute do que lhe é oferecido pelo autor. “Se leio com prazer
essa frase, essa história ou essa palavra, é porque foram escritas no prazer. (...) Escrever no
prazer me assegura – a mim escritor- o prazer de meu leitor? De modo algum”...
(BARTHES, 2004 p. 9). De acordo com Barthes, o prazer de um texto não pode ser
julgado, pois cada leitor o frui de forma distinta:

Se aceito julgar um texto segundo o prazer, não posso ser levado a dizer:
este é bom, aquele é mau. Não há quadro de honra, não há critica, pois
esta implica sempre um objetivo tático, um uso social e muitas vezes uma
cobertura imaginária. Não posso dosar, imaginar que o texto seja
perfectível, que esta pronto a entrar num jogo de predicados normativos:
é demasiado isto, não é bastante aquilo, o texto só pode me arrancar este
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juízo, de modo algum adjetivo: é isso! E mais ainda: é isso para mim!
(BARTHES, 2004 p.19-20)

O leitor nunca faz uso de uma mesma técnica para ler um texto, pois o que importa
quando ele o explora é a liberdade dos seus desejos. O texto toma vida a partir do
momento em que o leitor o lê. Barthes defende:

Não lemos tudo com a mesma intensidade de leitura, um ritmo se


estabelece, desenvolto, pouco respeitoso em relação a integridade do
texto, a própria avidez do conhecimento nos leva a sobrevoar ou a passar
por cima de certas passagens ( pressentidas como aborrecidas) para
encontrarmos o mais depressa possível os pontos picantes da anedota
(que são sempre suas articulações- o que faz avançar a revelação do
enigma ou do destino: saltamos impunemente (ninguém nos vê) as
descrições, as explicações, as considerações, as conversações, tornamo-
nos então semelhantes a um espectador de cabaré que subisse ao palco e
apressa-se o strip tease da bailarina, tirando-lhe rapidamente as roupas,
mas dentro da ordem, isto é: respeitando, de um lado, e precipitando, de
outro, os episódios do rito. (qual um padre engolisse a sua missa).
(BARTHES 2004 p 17)

Um texto pode criar um espaço de prazer e criar caminhos para a arte do diálogo,
no qual o desejo é o ponto de partida para que o leitor desfrute do que lhe é oferecido pelo
autor. O autor não pode prever, ele não pode querer escrever o que não se lerá. No entanto
é o próprio ritmo daquilo que se lê e do que não se lê que produz o prazer dos grandes
relatos. Quanto mais o texto economiza, mais o leitor dispende, quanto mais vazios no
texto, mais o leitor deve preenchê-los. O autor está morto, é o leitor que dá sentido a obra.

Através de uma leitura constante que o texto atinge a imortalidade. Porém, para que
autor e leitor co-existam nessa jornada através do texto, esta tem de estar repleta de
emoções, pois a sua falta afasta, automaticamente, o leitor do seu livro.

Pode-se considerar como texto, tudo aquilo que pode ser lido, por possuir em si
uma informação. Sendo assim, observam-se como textos possíveis de serem lidos; os sons,
as imagens, as palavras, expressões corporais e as realidades sociais, e em conseqüência
disso, o cinema. Para o interesse do presente artigo, trata-se o cinema, o filme, como um
texto que se apresenta para ser lido e interpretado.

Cinema e recepção

Poder-se-ia dizer, de modo geral, que as técnicas de reprodução destacam o objeto


reproduzido do domínio da tradição. Multiplicando-lhe os exemplares, elas substituem por
um fenômeno de massa um evento que não se produziu senão uma vez. Permitindo ao
objeto reproduzido oferecer-se a visão ou a audição em qualquer circunstância, elas lhe
conferem uma atualidade. Esses dois processos conduzem a um considerável abalo da
realidade transmitida: ao abalo da tradição, o que é a contra face da crise que atravessa
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atualmente a humanidade e de sua atual renovação. Eles se mostram em estreita correlação


com os movimentos de massa que hoje se produzem. Seu mais eficaz agente é o filme.
(BENJAMIN, 1985, p 19)

O cinema, considerado uma das mídias de massa, é um poderoso recurso de


comunicação. A linguagem cinematográfica é a linguagem da imagem, portanto o estudo de
sua recepção, acreditamos, pode trazer contribuições para o entendimento do modo como
o público (leitor, espectador) recebe essa obra, e como essa prática se realiza.

O cinema teve sua origem na França, em 1895 quando os irmãos Lumiére


conseguiram gravar imagens em movimento sobre uma película e depois reproduzi-la. Essa
possibilidade de ilusão e fantasia, fez com que as imagens se desenvolvessem criando uma
forma própria de se expressar; a linguagem cinematográfica.

Esta forma de linguagem é um conjunto de técnicas, imagens, sons, cores, luz,


movimentos, que afetam as emoções, distraem, confundem e emocionam, transmitindo
mensagens e produzindo no espectador o desejo de buscar uma significação.

O filme faz apelo à capacidade de o espectador ler a imagem. Para a leitura


cinematográfica, supõe-se interpretar o ato de ler como o desejo de dar significação ao
conjunto de todas essas técnicas que compõe a linguagem cinematográfica.

O processo de leitura requer o conhecimento prévio para o objetivo final, que é a


compreensão do conteúdo. Atualmente estamos envolvidos num ambiente de milhares de
imagens,e saber ler um filme - fazer a leitura do cinema – pode ser tão fundamental como
ler um texto escrito.

A literatura como o filme são resultados da visão do autor/diretor que expressa


suas concepções, seu modo de ver. Toda a sua subjetividade está inserida dentro desse
contexto fílmico. Assim, percebe-se que quando se fala em leitura do cinema, há que se
considerar a leitura do texto fílmico, que permite analisar as imagens, a ligação entre elas, a
música, a maneira de filmar. - como a cena foi construída, como os personagens são
dispostos. Esse é um tipo de texto e ele revela a visão de mundo do autor/diretor, é
influenciado pela subjetividade de quem o faz.

Além disso, quando falamos de leitura de cinema, devemos ainda considerar a


leitura que cada espectador faz da realidade fílmica que vivencia. Um filme não se faz só no
momento em que é produzido, ele se completa quando é visto. Cada pessoa que assiste a
um filme o completa baseado em sua realidade, suas concepções, suas maneiras de ver o
mundo, suas experiências de vida. As leituras do cinema e as visões de mundo se
entrelaçam – a do autor/diretor e a do leitor/espectador.

O leitor compreende a obra dentro dos limites do seu momento, inserido em seu
contexto sócio cultural. É o que normalmente ocorre no cinema nacional.
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O filme nacional é oriundo da própria realidade social, humana e geográfica, em


que vive o espectador, é um reflexo, uma interpretação dessa realidade. Em decorrência, o
filme nacional tem sobre o público um poder de impacto que o estrangeiro não costuma
ter. Há quase sempre num filme nacional, independente de sua qualidade, uma provocação
que não pode deixar de exigir uma reação do público. Tal reação não resulta somente de
uma provocação estética (pode sê-lo também), porque o filme nacional implica o conjunto
do espectador, porque aquilo que esta acontecendo na tela é ele ou aspectos dele, suas
esperanças, inquietações, pensamentos, modos de vida, deformados ou não. Essa
interpretação consciente ou inconsciente ele não pode deixar de aceitar ou rejeitar.(...) a
produção nacional pode muito bem ter como finalidade e efeito afastar o publico de sua
realidade. Alias é o que amiúde se verifica. Mas o filme nacional refere-se direta ou
indiretamente, a realidade em que vive o publico. (BERNARDET, 1967 p15).

Assim ao analisar a experiência estética na qual está inserido o público leitor, busca
se evidenciar a partir da recepção, reconstruir seu horizonte de expectativas e reconhecer a
relevância dessa produção.

O que ocorre na teoria da recepção é que a linguagem não cobra significação até ao
momento em que é lida. No cinema, também, as imagens, ao serem recebidas, geram
significados.

A linguagem da mente, com suas imagens oníricas, seus objetos alegóricos, seus
roteiros de desejo, suas lembranças congeladas e assim por diante, encontra ressonância na
linguagem do cinema. No cinema objetos, gestos, olhares, mise-em-scéne, iluminação,
enquadramento, e todos os acessórios do aparato fílmico se materializam numa espécie de
linguagem antes ou mesmo para além das palavras. (MULVEY, 1996 p.24-25)
Jean Claude Bernardet (1967, p.16) considera que essa experiência, esse diálogo do
público com um cinema que o expresse, é fundamental para a constituição de qualquer
cinematografia, pois um filme não é somente o trabalho do autor e sua equipe, é também
aquilo que dele vai assimilar o espectador, e como vai assimilar. Como arte, o filme precisa
ser assistido, e, para tanto, faz-se fundamental a existência do espectador.

O processo de reprodução da imagem em movimento, por mais distorcidas que as


imagens possam ser, estimula no espectador uma credibilidade ausente em todas as outras
formas de produção de imagens. Os fenômenos audiovisuais como luzes, movimentos,
ritmos, cores, sons, tamanhos, alturas, profundidades e sentenças, contribuem para que o
espectador as assimilem, requerendo uma maior capacidade de percepção no julgamento
preliminar. Essa experiência é uma forma de conhecimento através dos sentidos.

O espectador poderia, então, preencher o que falta à narrativa. pois a possibilidade


de preenchimentos de vazios, ou de interpretações que constituem a condição elementar de
comunicação da mensagem, oportunizando ao receptor participar da produção de sentido.
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Neste sentido, ao preencher essas “lacunas”, o espectador compartilha da sua


imaginação, tornando mais flexível sua subjetividade, essa combinação de fatores
fundamenta a obra, criando caminhos para novas interpretações, fazendo assim com que a
obra cinematográfica esteja inserida na esfera do estético.

Considerações finais

O estudo da estética da recepção contribui para o entendimento da recepção da


obra, podendo o mesmo ser aplicado a arte cinematográfica, tendo em vista que as imagens
podem ser consideradas uma forma de texto, que podem ser lidas e interpretadas.

O texto toma vida a partir do momento em que o leitor o lê, portanto, o sentido do
filme só se realiza no ato da sua recepção. Essa leitura audiovisual adquire características
importantes, uma vez que vivemos em um mundo no qual a importância das imagens
ganha cada vez mais força.

Um texto pode criar um espaço de prazer e criar caminhos para a arte do diálogo,
no qual o desejo é o ponto de partida para que o leitor desfrute do que lhe é oferecido pelo
autor.

A arte cinematográfica permite ao espectador a interação com a obra, através de


sua percepção, colocando- o diante de uma realidade verossímil ou inverossímil.

A recepção é mais do que um ato de atribuição de sentido; é uma relação de dialogo


entre a obra e espectador, que restabelece o que falta à narrativa, participando da produção
de sentido, estabelecendo assim a experiência estética da obra.

Sabe-se que para uma análise entre o cinema e o diálogo com o público leitor
centrada na estética da recepção é necessária uma pesquisa mais aprofundada, no entanto
este não era o objetivo do presente artigo. Mas acreditamos que isso seja possível a partir
da coleta de depoimento/informações que podem ser oriundas de comentários de
espectadores e viabilizada através de sites da internet. A existência de comentários são
exemplos da presença de manifestação de leitura de filmes, e fornecem informações sobre a
recepção da obra e apresentam reflexões sobre as reações dos espectadores, verificando até
que ponto houve influência na formação do pensamento dos mesmos.

Referências Bibliográficas

BARTHES, Roland. O prazer do texto. Traduzido por: J. Guinsburg. 4. ed. São Paulo:
Perspectiva, 2006.
BENJAMIN, Walter. Estéticas do cinema. Traduzido por: Tereza Coelho. Lisboa: Dom
Quixote, 1985.
BERNARDET, Jean Claude. Brasil em tempo de cinema: ensaio sobre o cinema
brasileiro de 1958 a 1966. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
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2004.
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária.
Traduzido por: Sérgio Tellaroli São Paulo: Ática, 1994.
JAUSS, Hans Robert. A estética da recepção: colocações gerais. In: LIMA, Luiz Costa.(org)
A literatura e o leitor. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1979.
MULVEY, Laura. Cidadão Kane. Rio de Janeiro. Rocco, 1996.
ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo.
Ática.1989
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OS GÊNEROS DO DISCURSO E AS PRÁTICAS DE LINGUAGEM EM


LÍNGUA PORTUGUESA

Nívea Rohling da Silva


Doutoranda em Linguística – UFSC/CAPES

Resumo
Este artigo discute a maneira como a teoria dos gêneros do discurso tem sido
interpretada nas elaborações didáticas na disciplina de língua portuguesa (LP), mais
precisamente nas aulas centradas nas produções de textos escritos. A fundamentação
teórico-medotodológica insere-se na teoria dialógica da linguagem do Círculo de Bakhtin. Os
dados de pesquisa são compostos por produções textuais escritas (gênero anúncio
classificado) de estudantes de 7ª série do EF e também de observações dos procedimentos
didáticos na condução das atividades de linguagem. Os resultados de pesquisa mostram que
ainda persistem, no ambiente escolar, práticas embasadas em uma perspectiva de redação
escolarizada em contraposição à noção de produção textual proposta pelos PCN’s, que
aponta os gêneros do discurso como objeto de ensino das práticas de linguagem.
Palavras-chave: Gêneros do discurso; Prática de produção textual; Gênero anúncio
classificado.

Abstract
The article discusses the way the theory of speech genres has been taken into account in
the didactic elaborations of written textual production within Portuguese Language (LP),
conceived as a school subject. The theoretical-methodological basis inserts itself in the
dialogical theory of language of Bakhtin Circle. The research data is composed by written
texts (classified ad genre) produced by students of the 7th. year of fundamental school, as
well as by notes on the didactic procedures concerning the guidance of the language
activities. The results show that it is still noticeable, in the school environment, the
persistance of practices based on a perspective of school written composition, in opposition to
the notion of textual production, suggested by the PCN’s, which point out the speech
genres as an effective didactic-methodological object in the author-subject construction of
its saying.
Keywords: Speech genres; Textual production practice; Classified ad genre.

Introdução

A partir da década de 80, iniciou-se um movimento teórico com intuito de perceber


a linguagem numa abordagem que privilegie a interação. Nesse contexto, a teoria dos gêneros
do discurso na linha teórica do Círculo de Bakhtin passou a ser disseminada no Brasil. Atualmente
já existem diversos estudos na área, contudo o que se percebe é que ainda não existe uma
articulação adequada entre a teorização produzida na academia e o fazer didático do
professor.
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Diante das problemáticas imbricadas nas práticas de linguagem em sala de aula,


mais precisamente na prática de produção textual, este estudo apresenta uma reflexão
acerca da maneira como a teoria dos gêneros tem sido interpretada nas aulas de LP. Para
tanto, inicialmente é apresentado brevemente conceitos teóricos que embasam esta
pesquisa, a saber: um panorama acerca da concepção de produção textual nas aulas de LP e
a noção de gêneros do discurso. Na sequência, o percurso metodológico, seguido dos
resultados da pesquisa a partir da análise da articulação entre os procedimentos didático-
pedagógicos na disciplina de LP e as produções textuais escritas de estudantes de ensino
fundamental.

Salienta-se que esta pesquisa não pretende ser totalizante no sentido de apresentar a
realidade do ensino de produção textual, contudo pode apresentar indícios das concepções
de produção textual (e de gêneros do discurso) inseridas no espaço escolar, como também
refletir sobre a elaboração didática dos gêneros no âmbito escolar.

Panorama das práticas de produção textual nas aulas de língua portuguesa

A disciplina de LP tem passado por acentuadas mudanças, isso se deve, em grande


medida, às orientações dos documentos oficiais de ensino em apontar os gêneros do
discurso como um novo objeto de ensino-aprendizagem nas práticas de linguagem em sala
de aula. Contudo, segundo Rodrigues (1999), as recentes pesquisas em linguística aplicada
(LA) têm mostrado que o fracasso escolar no ensino de língua tem girado em torno,
principalmente, de um ensino-aprendizagem voltado para a questão da metalinguagem, ou
para aspectos formais de leitura e da escrita.

Na perspectiva de Rojo (2001), houve um avanço considerável a partir dos estudos


da linguística textual e das teorias de cunho cognitivistas de processamento e memória,
trazendo para o centro da discussão o texto como unidade de trabalho. Porém, de acordo
com a autora, esses estudos ainda se mostram ineficiente no desenvolvimento de cidadãos
capazes de interagir criticamente com os discursos alheios e com o próprio discurso. Isso
quer dizer tal “virada pragmática” no ensino de língua ainda não é uma realidade.

Nesse cenário, os PCN’s de LP surgem em 1997 constituindo-se documento oficial


de ensino, trazendo consigo a característica de ser um norte à prática docente, que era até
então delineada pelos materiais didáticos, no ensino fundamental e pelas provas de
vestibular, no ensino médio. Esse novo direcionamento foi positivo em face à necessidade
de tal documento. Os PCN’s priorizam as práticas de leitura, práticas de produção textual e
práticas de análise linguística, mais que priorizar, os PCN’s conferem a esses três eixos o
estatuto de conteúdo a serem ensinados nas aulas de LP[1].

Bonini (2002), em seu artigo intitulado “Metodologias do ensino de produção


textual: a perspectiva da enunciação e o papel da Psicolingüística”, recupera o percurso
histórico da produção textual em LP a partir dos anos 60. Em termos das orientações para
o ensino de produção textual, o autor aponta a existência na atualidade de duas vertentes:
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interacionista – a produção textual com reprodução de um corpo de tradições de uma


comunidade e a enunciativista – entendida como trabalho e exercício de subjetividade na
linguagem. Esta tem tido maior acolhimento entre os documentos oficiais. No decorrer do
texto o autor menciona a problemática envolvida nas práticas de escrita em sala de aula.
Segundo Bonini (2002), recentemente, mais precisamente a partir dos anos 80, houve o que
se chamou de virada pragmática, ou seja, buscou-se inserir no contexto escolar a
perspectiva de entender a linguagem como um meio em o homem existe e age - eliminando
o caráter prescritivista. Passou-se a considerar o texto, e sua enunciação, como a unidade
básica do ensino deslocando a frase, e sua gramática para segundo plano.

Entretanto, como dito anteriormente, esta virada ainda não é uma realidade na
concepção de linguagem postulada pela escola, menos ainda nas práticas de produção
textual. De acordo com Britto (2002), uma situação bem comum na produção textual
observada em aulas de LP constitui-se em:

[...] caracterização da redação escolar enquanto um gênero escolar, que


se subdivide em dissertação, narração e descrição, desvinculado do
exercício efetivo de leitura e escrita, que se realiza no interior de uma
disciplina. (...) A concepção subjacente é a de que leitura e escritura são
habilidades independentes do domínio dos discursos que portam e que o
sujeito pode adquiri-la com treino e assimilação de regras. (BRITTO,
2002, p. 108-109)

Através da questão apontada pelo autor, percebe-se o deslocamento da prática de


escrita do aluno do seu contexto social, a caracterização mencionada pelo autor constitui os
gêneros escolarizados[2], que têm por objetivo o treino de escrita. A própria terminologia
adotada redação escolar traz implícita a idéia de uma escrita para fins de treinamento. Parte-
se do pressuposto de que ao dominar uma determinada estrutura, garantir-se-á ao
estudante o domínio de qualquer texto que, supostamente, tenha a mesma estrutura textual.
Tal posicionamento pode ser questionado, uma vez que fora dos domínios escolares
dificilmente será solicitado ao estudante que faça uma narração ou uma descrição; quanto à
dissertação será talvez solicitado em concursos e vestibulares que, por sua vez, já estão
adotando em suas propostas os gêneros do discurso.

Dentro dessa discussão, Geraldi (1993) estabelece uma dicotomia entre produção
textual e o ensino de redação. Segundo o autor, ao trabalhar com redação os textos são
produzidos para a escola; já na perspectiva da produção textual produzem-se textos na
escola. Em qualquer modalidade, para se produzir um texto é necessário que: se tenha o
que dizer, se tenha uma razão para dizer, se tenha um interlocutor desse dizer. Na produção
de textos, mesmo em uma simples conversa cotidiana, o projeto discursivo se apresenta, ou
seja, o interlocutor tem algo a dizer, tem um discurso a materializar, enquanto que na
redação o projeto discursivo inexiste. Dessa maneira, percebe-se nas redações muita escrita
e pouco texto (pouco discurso), pois o projeto discursivo não está claro para o estudante
(GERALDI, 1993).
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Ao propor um texto sem que se tenha um querer-dizer e, principalmente, para quem


dizer - interlocutores reais - a atividade se desenvolve mecanicamente. Exercícios de escrita
a partir da observação de uma gravura, sem o estabelecimento de uma interação, sem que o
estudante tenha algo relevante a dizer constituem atividades de preenchimento. Exercícios
de redação que o preparam para um depois, e não para uma relação interdiscursiva,
mostram-se artificiais e infrutíferas na construção de sujeitos-autores de seus textos, e
produtores de sentidos e discursos.

Com relação à idéia de preenchimento, Britto (2002, p. 109) referencia a pesquisa de


Lemos (1977) com redações de vestibular: “o vestibulando, premido pela necessidade de escrever,
trata de preencher o papel com frases de efeito, noções vagas e de valor absoluto, ao invés de engajar-se em
uma linha argumentativa própria”. Esse espaço de escrita restringe o desenvolvimento da
subjetividade do estudante, tomando a produção escrita como uma habilidade relacionada
ao treino e assimilação de regras. A estratégia do preenchimento está, pois, ancorada na
total ausência de um interlocutor definido a quem se tem algo real a dizer.

Para Rodrigues (1999, p. 99), “o ensino de produção textual, centrado em uma tipologia
textual formal (narração, descrição, dissertação) aponta para a falta de uma prática de aprendizagem
centrada nos processos discursivos”. A partir desse panorama teórico-metodológico surge a
proposta teórica enunciativista quês aponta os gêneros do discurso como objeto de ensino
nas práticas de linguagem na disciplina de LP. Não mais o texto enquanto estrutura
tipológica, mas o gênero na perspectiva sócio-discursiva, despontando como um aporte
produtivo e significativo para o trabalho com ralação às práticas de linguagem. Algumas
pesquisas já têm se desenvolvido, em LA, dentro dessa perspectiva; algumas delas
privilegiam as relações discursivas na produção de texto Rossi (2002), Rojo (1996); outros
trabalhos propõem a elaboração didática de alguns gêneros Haeser (2005), Bussarelo
(2005), enfim abre-se um caminho novo e de grande potencial heurístico para novas
abordagens de ensino de língua, sobretudo, da prática de produção textual escrita.

Até aqui, buscou-se situar a prática de produção escrita, na sequência, será


apresentada a noção de gêneros do discurso que baliza a análise dos dados.

Os tipos relativamente estáveis de enunciados: os gêneros do discurso

O conceito de gênero é apresentado em muitos textos do Círculo de Bakhtin[3] e a


sua terminologia oscila entre formas de discurso social, formas de um todo e tipos de
interação verbal (RODRIGUES, 2005). Entretanto, no texto intitulado “Os gêneros do
discurso”, onde a questão dos gêneros é detalhada, Bakhtin opta pelo termo ‘gêneros do
discurso’, termo este que acabou sendo também o nome mais utilizado nas pesquisas em
LA que seguem tal enfoque[4]. No referido texto, Bakhtin (2003) define os gêneros do
discurso como “tipos relativamente estáveis de enunciados”, ou seja, através de enunciados
individuais, que se movimentam em direção a uma regularidade, surge o gênero, e essa
relativa estabilização acontece através de seu uso em interações concretas.
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Uma vez definidos como tipos relativamente estáveis de enunciados, os gêneros


carregam em si um caráter flexível e plástico. Nessa definição, a palavra relativamente é
fundamental; é ela que denota a flexibilidade do gênero, a qual está diretamente ligada às
interações sociais. Se as relações humanas são complexas, as mudanças, ininterruptas, e os
gêneros constituem-se a partir das atividades humanas, conseqüentemente, eles irão refletir
as mudanças histórico-sociais. Uma vez que as interações humanas estão em constante
constituição, os gêneros possuem, então, a mesma característica de não-acabamento do
enunciado.

Ainda sobre a conceituação de gêneros, de acordo com Rodrigues, Bakhtin concebe


os gêneros como “tipificação social dos enunciados que apresentam certos traços (regularidades) comuns,
que se constituíram historicamente nas atividades humanas, em uma situação de interação relativamente
estável” (RODRIGUES, 2005, p. 164). Assim, segundo Rodrigues (2005), é necessário olhar
os gêneros a partir de sua historicidade, já que não são unidades convencionais, mas sim,
tipos históricos de enunciados, possuindo a mesma natureza do enunciado (natureza social,
discursiva e dialógica).

De acordo com Bakhtin (2003), a diversidade dos gêneros é infinita porque são
inesgotáveis as possibilidades das atividades humanas e cada esfera comporta um repertório
de gêneros do discurso que vai se diferenciando e se ampliando à medida que a própria
esfera se desenvolve e torna-se mais complexa. Ao estabelecer a noção de gênero, o autor
apresenta uma “classificação” dos gêneros como: primários e secundários. Os gêneros
primários são aqueles ligados às esferas cotidianas de interação, podendo, muitas vezes,
transformar-se e assumir estatuto de gênero secundário, tendo em vista a dinamicidade e
plasticidade inerente aos gêneros. Já os gêneros secundários, segundo Bakhtin, “surgem nas
condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente desenvolvido e organizado
(predominantemente escrito) [...]” (BAKHTIN, 2003, p. 263) e, por sua vez, demandam uma
complexidade maior, sendo exemplos, o romance, os gêneros científicos, jornalísticos, entre
outros.

Já com relação ao surgimento de novos gêneros, pode-se dizer que esse processo se
dá a partir das demandas sociais, pois um gênero surge ou desaparece em função das
condições sócio-discursivas. Nessa mesma perspectiva, Geraldi (2006) propõe que a
emergência de novos gêneros está associada às atividades sociais, e que, quanto mais
complexa é uma sociedade, mais complexos e em maior número são os gêneros nela
construídos.

Na contemporaneidade, tem-se observado o surgimento e o desaparecimento de


diversos gêneros; Rodrigues (2005) cita, como exemplo de gêneros que desapareceram de
circulação social, as conversas de salão e o romance-folhetim. Já outros gêneros surgem de
uma espécie de transmutação, como, por exemplo, gêneros encontrados no suporte digital:
o blog[5], que lembra o diário, o e-mail, que possui características da carta, todavia, os novos
gêneros não substituem os já estabelecidos: o telefonema não substituiu a conversa, o
artigo assinado não excluiu o editorial (RODRIGUES, 2005). Não se trata de uma relação
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de substituição, e sim, do aparecimento de gêneros a partir das novas necessidades de


interlocução, o que ocorre através das mudanças sócio-históricas, repercutindo nas relações
de subjetividade e alteridade dos sujeitos.

Após as inferências teóricas sobre a prática de produção escrita escolar e o conceito


de gênero sobre o qual se embasa esta pesquisa, será apresentado o percurso metodológico
da pesquisa, com vistas à apreensão da maneira como a teoria dos gêneros do discurso tem sido
interpretada (e elaborada) nas aulas de LP.

Percurso metodológico da pesquisa

Buscou-se, nesta pesquisa, apreender a forma como a teoria dos gêneros do discurso
tem sido apreendida nas aulas de LP. Assim, como dito antes, este estudo tem como
fundamentação teórico-medotodológica a teoria dialógica da linguagem do Círculo de Bakhtin.

Os dados de pesquisa são compostos por produções textuais escritas (gênero


anúncio classificado) de estudantes de 7ª série do EF e também de relatos de observações
dos procedimentos didáticos na condução das atividades de linguagem. Foram observadas
as interações pedagógicas ocorridas em 16 aulas de LP durante o mês de outubro/2007.

Na análise buscou-se perceber a articulação entre os procedimentos didáticos


evidenciados nas interações pedagógicas (e que foram observados pela pesquisadora
durante as aulas de LP), configurando a relação estudante/professor e as os textos escritos
produzidos pelos alunos nessas aulas observadas.

O tratamento didático dos gêneros nas aulas de LP

Sobre a observação das interações pedagógicas, observou-se que a maioria das aulas
foram dedicadas a exercícios estruturais de gramática. Em uma dessas ocasiões, a
professora iniciou a aula a partir de correção de exercício estrutural de colocação
pronominal em orações isoladas, solicitou aos alunos que lessem e dissessem a posição do
pronome em relação ao verbo e justificassem o uso. Na sequência, a professora disse ao
grupo que iriam trabalhar produção textual e solicitou-lhes que abrissem o livro didático
(LD). Iniciou-se a leitura do tópico de proposta de produção textual (alguns alunos leram
para o grupo). A condução da proposta levou em torno de dez minutos. O que ficou
saliente na prática da professora é que a leitura indicada pelo LD serviu de alimentação
temática para a proposta que viria a seguir: “Você e a favor do Clone? Com base nos textos lidos
escreva um texto dissertativo”. A professora solicitou aos estudantes que fizessem um rascunho
no caderno e depois “passassem a limpo”.

Observou-se que na condução didática da aula não houve explanação dos


diferentes gêneros lidos no LD (charge, entrevista, carta do leitor), não houve discussão da
temática, não se observou a presença de material alternativo; assim, o condutor da aula era
o LD; a intervenção pedagógica foi mínima. Durante a aula, percebeu-se: 1. o desinteresse
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do grupo, alguns perguntavam aos colegas: “- e pra fazer de acordo com o livro ou o que a gente
pensa.” Resposta: “- os dois; pega o modelo do livro.” 2. a presença de perguntas recorrentes em
aulas de LP: “Vale nota professora? E pra entregar nesta aula? Como começo? Pode mudar o título?
Tais questionamentos dos estudantes revelam uma perspectiva de texto perpetuada pela
escola: a) escrita de texto com objetivo de correção de erros gramaticais; b) o que os
estudantes têm a dizer é irrelevante; c) tem-se um modelo a seguir. A aula de produção
textual ocorreu em pouco mais de 30 minutos; não houve discussão por parte dos alunos.
Ao questionar os estudantes sobre a frequência com que escrevem textos, foi relatado à
pesquisadora que as produções escritas são bem escassas em relação aos conteúdos
gramaticais. Ou seja, não e uma prática priorizada.

Em outra aula observada, também houve produção textual, contudo, ao invés de


um gênero escolarizado, foi trabalhado um gênero discursivo pertencente à esfera
jornalística - anúncio classificado. De maneira semelhante à aula de produção de texto relatada
anteriormente, a professora solicitou que o grupo abrisse o livro na página em que constava
a proposta de produção textual. A abordagem da professora em relação ao gênero anúncio
classificado transcorreu da seguinte maneira: a professora, rapidamente, fez a leitura do
livro e lançou a proposta: “Vocês serão vendedores irão montar classificados. Ao final da aula entregar
em uma folha. Leiam as instruções do livro”; o encaminhamento da proposta de escrita levou
aproximadamente dez minutos.

Foi interessante observar que o LD apresentava dois exemplos de anúncio


classificado, contudo, somente o primeiro foi lido com o grupo. Na sequência do primeiro
classificado, o LD propõe uma atividade de exploração do gênero em questão, porém tal
atividade foi totalmente desconsiderada pela professora, o que, a nosso ver, constitui-se em
perda, pois, a partir dessa atividade, o grupo poderia ter uma caracterização do gênero mais
acurada para posterior produção. Em nenhum momento os estudantes foram instigados a
refletir sobre as condições de produção e de circulação de um classificado; em outras
palavras, quem escreve esse gênero discursivo? Com que finalidade? Onde? Quando? Como? Com base em
que informações? Quem lê esse gênero? Como o classificado surgiu? Onde circula? Enfim, questões que
levariam os estudantes a refletir sobre as condições de produção do gênero e que os levaria
a ter parâmetros para o que escreveriam posteriormente. É interessante ressaltar que nem
mesmo as características textuais e verbais dos classificados foram abordadas.

Nas práticas de linguagem ancoradas na perspectiva dos gêneros discursivos


considera-se relevante apresentar o jornal aos alunos que eles tivessem um contato com o
gênero em seu suporte original; dessa maneira, os estudantes poderiam inferir a
importância dos classificados no jornal de acordo com sua localização no espaço do jornal,
perceber os objetos mais anunciados: o que pode ser alugado, comprado, vendido, enfim
percepções oportunizadas somente pelo suporte original.

Para que o aluno seja um leitor proficiente na leitura de determinado gênero


discursivo e para que, posteriormente, possa produzi-lo em uma situação concreta de
enunciação, deve-se oportunizar ao estudante o contato com o gênero. É imprescindível,
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para apropriação do gênero, que se façam várias leituras do gênero proposto. Enfim, que
seja viabilizado ao grupo de alunos um contato mais efetivo com o gênero, uma vez que a
leitura de um modelo a seguir em nada ajudara o estudante no momento da compreender
o funcionamento discursivo do gênero. E ainda mais se tratando de classificados, pois não
há maiores dificuldades de acesso, principalmente, em um colégio da rede particular que
possui laboratório de informática com acesso à Internet. Nesse contexto, o grupo poderia
ler anúncios classificados de jornais virtuais, dessa forma, alem de perceber a circulação do
gênero em um outro suporte midiático (digital), a tecnologia poderia ser utilizada nas aulas
de LP de forma interativa.

Outra questão relevante a ser discutida sobre a elaboração didática do gênero e a


circulação dessa escrita. Por que não fazer anúncios classificados a partir de objetos
pertencentes aos alunos? A professora poderia propor a venda, troca e compra de objetos
dos próprios alunos e anexar no mural da escola. A proposta do “faz de conta” não se
sustenta mais, tendo em vista as novas orientações didáticas para o tratamento do gênero,
conforme explorando na fundamentação teórica desta pesquisa.

Com a permanência de procedimentos didáticos como o que foi aqui relatado, a


escrita do aluno continua “nos moldes tradicionais da redação escolarizada”, aprisionados,
sem interlocutor real e sem uma função discursivo-axiológica que confira ao dizer do aluno
um indício de autoria e subjetivação. Então, novamente volta-se à questão, por mais que
sejam mencionados nas aulas de LP, os gêneros do discurso estão longe de serem abordados em
sua dimensão sócio-discursiva. Nas interações pedagógicas observadas, pode-se dizer que o
gênero anúncio classificado foi tomado como uma tipologia de texto distanciando-se da
noção de gênero como lugar de interação discursiva.

A articulação entre a elaboração didática do gênero e a produção textual escrita dos


estudantes

Com dito anteriormente, foram analisados textos escritos produzidos pelos


estudantes da 7ª série, cujas condições de produção foram relatadas na seção anterior. A
partir da elaboração didática dispensada à produção do gênero anúncio classificado, cujos
procedimentos didáticos estão ancorados nos moldes da redação escolarizada, as produções
escritas, em sua maioria, mostraram-se distante do gênero anúncio classificado.

Foram analisados 17 textos do gênero (anúncios classificados) dos quais foram


selecionados três para apresentação neste texto. A escolha se deu a partir do critério de
aproximação do gênero. Assim, o primeiro texto é o que mais se aproxima do gênero
anúncio classificado tanto no que se refere aos aspectos conteúdo temático do gênero e
também às características linguístico-textuais do gênero; no segundo texto, tem-se uma
aproximação mediana e, por fim, no terceiro texto selecionado, percebe-se um acentuado
distanciamento das características do gênero anúncio classificado. Como se pode verificar
na análise a seguir.
Análise do texto 1
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Figura 1 – Texto produzido pelo aluno A.

O primeiro texto, conforme figura 1, mostra-se mais próximo a um anúncio


classificado. Tanto do ponto de vista da diagramação como também em relação ao
conteúdo temático do texto. O estudante tentou reproduzir as características elementares
do gênero, evidenciando o produto que se quer vender, alugar ou comprar, neste caso, um
veículo. Na diagramação, o estudante utilizou letras em maiúsculo e negrito, o que confere
destaque à finalidade discursiva do gênero anúncio classificado, a saber, a divulgação de um
produto (automóvel) que está à venda. Ainda nessa perspectiva, observou-se que o texto se
apresenta em boxes, que pode ser interpretada como uma tentativa de reproduzir o padrão
do jornal e também do exemplo proposto pelo LD. As demais informações aparecem em
forma simplificada, o que é típico do gênero, devido ao espaço reduzido e o custo de se
publicar em jornais, geralmente avaliados pelo número de linhas. No que se refere aos
aspetos relativos aos conteúdo temático, o texto se mostra adequado ao gênero, pois as
informações como cor, ano e preço do veículo anunciado, bem como o telefone de contato
da pessoa que está vendendo constam no anúncio, enfim há a inserção de dados
fundamentais, presentes nesse gênero, que se constituem como “peças” fundamentais para
que se cumpra a finalidade discursiva do gênero.
Análise do texto 2
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Figura 2 – Texto produzido pelo aluno B.

O texto 2, por sua vez, revela uma aproximação mediana com o gênero trabalhado,
pois ao analisar os aspectos discursivos, percebe-se a inserção das informações necessárias
para que se cumpra o propósito discursivo do gênero, ou seja, o produto a ser vendido
(celular) é apresentado de maneira destacada, bem como o preço e contato da pessoa que
vende o produto. Porém, já com relação ao aspecto composicional, o texto está distante das
características típicas desse gênero; tanto o desenho de uma flor quanto o excesso de cores
não trazem ao leitor a impressão de estar lendo um anúncio classificado. O estudante
percebeu as características oriundas do horizonte temático, entretanto, “escapou-lhe” a
percepção do aspecto composicional.

Pode-se dizer que os estudantes que mais se aproximaram do gênero no aspecto


composicional e nas características discursivas (temáticas), o fizeram, primeiramente, por
seguir o exemplo do LD e também de leituras prévias do gênero, mas não a partir leituras
analíticas realizadas em sala de aula, pois estas, como dito anteriormente, não ocorreram
durante as interações pedagógicas.
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Análise do texto 3

Figura 3 - Texto produzido pelo aluno B.

Por fim, com relação ao texto 3, a primeira questão a ser pontuada é a enorme
distância entre um anúncio classificado de real circulação e o texto produzido pelo
estudante no que tange ao aspecto da composição. O estudante tenta retratar através de
desenho a casa que seria alugada; ao desenhá-la, ele pode estar se referindo as fotografias
que alguns anúncios trazem na seção de imóveis, ou até mesmo uma relação com o gênero
propaganda publicitária, mas o que fica perceptível é a que a apresentação visual se mostra
bastante distante de um anúncio classificado. Já na perspectiva do conteúdo temático, o
anúncio se mostra um tanto confuso, pois o objetivo é anunciar uma casa de praia
disponível para ser alugada, porém, após caracterização da casa, propõe o serviço de quarto
e restaurante, ou seja, características de um hotel e não de uma casa de praia a ser alugada.

Isso mostra que o estudante, ao produzir seu texto, não conhece o funcionamento
discursivo do gênero e que lhe falta uma leitura mais aprofundada do mesmo, não tendo
claro o que de fato quer anunciar e qual o repertório linguístico necessário para fazê-lo. Na
produção textual, observa-se que não se tem claro o objetivo discursivo, o que nos leva a
pensar que se talvez a proposta partisse de uma situação real como, por exemplo, anexar no
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mural do colégio anúncios dos estudantes, em que eles pudessem anunciar objetos que
quisessem trocar, vender, comprar (álbuns de figuras, Cd’s, livros, revistas, etc.), os
estudantes teriam um objetivo discursivo definido e, dessa maneira, poderiam, de fato,
interagir a partir desse gênero.

Os três textos selecionados para esta discussão mostram, em certa medida, o


conhecimento prévio que os estudantes já possuíam sobre o gênero, uns mais e outros
menos, e, principalmente, revelam a intervenção pedagógica realizada em sala de aula, ou
melhor, revela a falta de uma abordagem de gênero em sua essência. Ficou evidente a
necessidade de levar o grupo a refletir sobre o gênero em sua plenitude, tendo em vista
que, a partir de uma leitura crítica do gênero trabalhado, seria possível levar os estudantes a
uma percepção da dimensão discursiva (social) do gênero, como também a dimensão verbal
do gênero, que envolve os aspectos linguístico-textuais. Segundo Rodrigues (2005, p.9), “o
enunciado é composto por duas dimensões inextricáveis: dimensão verbal-textual e a dimensão social”.
Ambas as dimensões precisam ser levadas em consideração no trabalho com o gênero.

Considerações finais

A teoria dos gêneros do discurso tem sido apontada como uma área fértil em
pesquisas de LA, entretanto, ainda há lacunas entre as pesquisas publicadas (e discutidas)
em espaços acadêmico-científicos e as concepções didático-pedagógicas que circulam na
escola. O objetivo desta pesquisa foi justamente pinçar alguns indícios que apontem para a
percepção que se tem, no âmbito escolar, sobre o trabalho com os gêneros do discurso.

A partir dessa análise, percebeu-se que, não raras vezes, a teoria dos gêneros do
discurso tem sido interpretada (e, por isso, didatizada) novamente como uma categoria de
textos, priorizando aspectos formais e estruturais do texto em detrimento aos aspectos
interacionais e discursivos imbricados na concepção de gênero. Nesse sentido, o trabalho
com o gênero na escola ainda não extrapolou a dimensão estrutural, a questão discursiva do
gênero é posta de lado, parece ainda um terreno escorregadio e difícil de ser trilhado pelo
professor de língua materna. E, ainda, conforme a base teórica deste trabalho (teoria dos
gêneros de base bakhtiniana) a noção de gênero só pode ser apreendido dentro de um
arcabouço teórico maior que se constituem de conceitos como: dialogismo, enunciado e
discurso. Para Bakhtin, não há como descolar a teoria dos gêneros da noção de interação
social que se dá por meio das atividades humanas.

Muito ainda há para ser trilhado pela LA no trabalho com gênero, segundo Faraco
(2001) deve-se reconhecer Bakhtin não somente em sua importância histórica, mas,
sobretudo, no poder heurístico de suas idéias. A partir do momento que a teoria dos
gêneros for compreendida em sua essência na esfera escolar e suas elaborações forem
condizentes com a referida teoria, há a possibilidade de práticas didático-pedagógicas mais
frutíferas no campo da linguagem.
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[1] Delimitou-se, nesta pesquisa, a reflexão sobre questões teóricas concernentes à prática de
produção textual, tendo em vista que a análise dos três eixos (leitura, produção textual e análise
linguística) mostra-se demasiado amplo.
[2] Os gêneros escolarizados são criados pela escola (narração, descrição, dissertação) distante dos
gêneros que circulam socialmente, o termo no presente trabalho traz consigo uma crítica a essa
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prática.
[3] Círculo de Bakhtin, de acordo com Rodrigues (2005), é o termo utilizado pelos pesquisadores
para o grupo de intelectuais russos que se reunia regularmente no período de 1919 a 1929, do qual
fizeram parte Bakhtin, Volochínov e Medviédiev e outros. Devido às discussões sobre a autoria de
alguns textos do Círculo que foram publicados por estes dois últimos autores, mas que são
atribuídos a Bakhtin por alguns pesquisadores, muitos optam pela utilização do termo ‘Círculo de
Bakhtin’, ao invés de se referirem a um dos três autores especificamente. Neste estudo, quando nos
referirmos a um dos textos “disputados”, citaremos ambos os autores, pois não é nosso objetivo
discutir a autoria das obras.
[4] Em Rojo (2005), no texto intitulado: “Gêneros do discurso e gêneros textuais: questões teóricas
e aplicadas”, há uma discussão sobre a diferença teórico-metodológica envolvida no uso das
terminologias: teoria de gêneros do discurso ou discursivos e teoria dos gêneros de texto ou
textuais. Para a autora, ambas as leituras estão ancoradas em diferentes leituras bakhtinianas, mas a
distinção está no fato de que a primeira centra seu estudo nas situações de produção dos
enunciados ou textos e em seus aspectos sócio-históricos, e, a segunda, na descrição da
materialidade do texto.
[5] Blog pode ser traduzido por diário na rede. Sobre esse assunto ver: Komesu (2005).
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O ENSINO DE HISTÓRIA NO CURSO TÉCNICO EM FARMÁCIA: A


PROBLEMATIZAÇÃO DA MEDICALIZAÇÃO COMO UMA EXPERIÊNCIA
DE PESQUISA E ANÁLISE DA SOCIEDADE

Pâmella Passos Deusdará


Professora de História da Educação Básica, Técnica e Tecnológica
Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social
Universidade Federal Fluminense
Clara Dias
Aluna do Curso Técnico em Farmácia
Gabriela Aguieiras
Aluna do Curso Técnico em Farmácia

Resumo
Fruto de experiência realizada numa Escola Técnica Federal, o presente artigo,
através da temática da medicalização, propõe uma discussão acerca do diálogo possível
entre as disciplinas da base comum e técnicas, contribuindo assim para efetivação de um
currículo integrado. A articulação entre os conhecimentos históricos e farmacológicos
resultou em debates que primaram pela desnaturalização da medicalização, compreendendo
este processo no seio do século XXI em uma sociedade voltada para o consumo.
Palavras- Chave: Ensino de História; Educação Técnica; Medicalização

Resumen
El presente artículo, fruto de una experiencia realizada en una Escuela Técnica
Federal, tiene como objetivo traer a la luz una discusión acerca de las posibilidades de
diálogo entre las asignaturas técnicas y de base común. La expectativa del mismo yace en
aportar una contribución para hacer efectivo un currículo integrado. El vínculo entre los
conocimientos históricos y farmacológicos provocó debates a favor de la desnaturalización
de la medicalización, fenómeno éste analizado desde el seno del siglo XXI como parte de
una sociedad volcada hacia el consumo.
Palabras claves: Enseñanza de historia – Educación Técnica – Medicalización.

1 – Considerações iniciais

(...) De certo por isso é que os remédios agora são mudos: os pacientes
não sabem mais o que tomam: mas são coisas lindas, de todas as cores
e feitios, muito ornamentais, como se tivéssemos passado do reino
literário para o das artes plásticas e ingeríssemos pequenos quadros
modernos, com os quais vamos assegurando essa coisa misteriosa que é
a vida.
Cecília Meireles

Neste artigo, pretendemos apresentar algumas reflexões que emergiram da pesquisa


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“Stress e Depressão, só medicalizar resolve? Uma análise sócio-cultural dos males do século XXI”
desenvolvida no atual Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Rio de
Janeiro/ Campus Maracanã. A criação deste projeto de pesquisa teve como foco principal a
XVII Semana de Química da Unidade Escolar, momento em que as dimensões de ensino,
pesquisa e extensão encontram-se completamente imbricadas, proporcionando a toda a
comunidade escolar conhecer o que vem sendo produzido na instituição.
Cabe ressaltar que por ocasião da Semana da Química, evento tradicional da
instituição, a escola recebe um número expressivo de visitantes da comunidade externa.
Visitas guiadas por monitores são organizadas e grupos escolares nos quais alunos e
professores de diversas séries, visitam os projetos desenvolvidos e apresentados pelos
discentes da instituição.

Inserido na categoria Didático-pedagógica o referido projeto de pesquisa, em nossa


hipótese, contribuiu para reflexão acerca do ensino de história na educação tecnológica,
identificando avanços e desafios para o professor de história. O desenvolvimento desta
pesquisa teve como um de seus principais objetivos desnaturalizar a idéia de que a
utilização de medicamentos, bem como a emergência de novas patologias, são assuntos
restritos à área farmacológica, ou mesmo médica em geral. Assim, partimos da premissa de
que compreendendo as mudanças sócio-culturais poderemos também compreender as
alterações na saúde humana.

Fica patente nossa compreensão holística de saúde e educação, vislumbrando nas


diversas disciplinas que compõe o currículo escolar, possibilidades de trabalho que tornem
o aprendizado significativo para o público discente. A motivação desta pesquisa tem sua
gênese num trabalho desenvolvido anteriormente, no segundo semestre de 2007, quando a
turma do 5º período do Técnico em Farmácia, realizou uma série de estudos sobre
Trabalho, a fim de realizar uma avaliação de História.

Deste trabalho, que como produto final apresentou um documentário intitulado


“As perspectivas dos jovens trabalhadores no século XXI”, emergiram questionamentos
tais como: quais são as novas doenças do trabalho? Como elas são desenvolvidas? De que
maneira a tecnologia que a princípio iria diminuir o trabalho humano não necessariamente
o fez?
No semestre seguinte, dialogando com o interesse específico de duas alunas,
elaboramos um projeto de pesquisa no qual cremos pertinente problematizar a recorrente
medicalização nos casos de stress e depressão, questionando a exclusividade de tais
procedimentos.

A opção em desenvolver esta pesquisa apresentou como principal justificativa a


demanda social de uma população mundial na qual os índices de stress e depressão
avançam assustadoramente. Tais dados indicam a necessidade de estudos que possam
compreender tais “problemas” de maneira mais complexa, procurando não somente
“soluções” ou ainda medicamentos para tais efeitos, mas que também se questione acerca
das condições de produção de tais patologias.
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2 – O avanço tecnológico, a aceleração do tempo e a medicalização: interfaces de


um processo

Ao longo de sua história, o ser humano vivenciou profundas modificações no que


tange a noção de técnica. A idéia de modernização compôs alterações no âmbito do
trabalho. Por um lado, evidenciaram-se as leis trabalhistas e o progresso dos direitos do
trabalhador. Por outro lado, exige-se, cada vez mais, desse trabalhador, inserindo-o em um
contexto de qualificação e agilidade.

Durante o século XX, os avanços científicos difundiram-se em velocidade muito


acelerada, contribuindo para um discurso que procura consolidar a ciência como uma
verdade absoluta e inquestionável. Colocada neste patamar, a ciência passa a atuar como
uma nova esfera de julgamento entre o certo e o errado, entre o normal e o anormal.

Como decorrência dessas dicotomias, configurou-se a polarização Patológico X São,


acompanhada da idéia de exclusão ou contenção do dito anormal. Como mecanismo de
exclusão podemos citar o exemplo de manicômios, casas de repouso e afins, reservando a
medicalização o grande papel da contenção dessas ditas patologias.

Desde o início do século XX, a contemporaneidade foi marcada por avanços


científicos e influências de correntes ideológicas estabelecidas no século XIX. O
Determinismo Biológico, por exemplo, inseria a herança genética como fator para o
comportamento e vida social de um indivíduo. Desse modo, encontrava-se o motivo de
desvios comportamentais. Dentre essas teorias, surgiu o movimento Eugenista, que
caracterizava-se pela defesa da intercepção no cruzamento de espécies que eles julgavam
geneticamente desviadas. Tal movimento condenava o matrimônio entre “raças” diferentes,
o que segundo eles evitaria o nascimento de indivíduos, considerados por estes estudiosos,
desviados do normal. Sendo assim, já se estabelecia um programa de exclusão do diferente,
categorizado como anormal.

Na virada para o século XXI, esse discurso assumiu novos contornos, sobretudo, se
focalizarmos o mundo do trabalho. Com o advento da Terceira Revolução industrial, a
produção atingiu um ritmo cada vez maior, influenciando diretamente na aceleração da
noção de tempo. É neste contexto que o trabalhador torna-se um indivíduo multifuncional.
A dinâmica exigida do trabalhador coloca-o em uma lógica extremamente pressionadora.
Tal lógica atuando paralelamente com o discurso patologizador estabelece uma relação de
doença entre o trabalhador e seu estado psicológico. Fruto deste paralelismo, o stress e a
depressão emergem como doenças cada vez mais recorrentes.

Levando em consideração este encurtamento das distâncias e uma aceleração cada


vez mais intensa do tempo, o trabalhador com o intuito de se adequar a esta realidade e
manter o seu emprego, acaba por incorporar este discurso de aceleração da produção, em
geral denominado de eficiência. Buscando atingir as novas metas impostas, em grande parte
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dos casos o trabalhador silencia, através da medicalização, os sinais de esgotamento que o


seu corpo apresenta.

Ganha espaço assim, a indústria farmacêutica que utilizando um discurso dito


conscientizador, acaba por incitar a automedicação da população, aumentando
conseqüentemente o uso freqüente de medicamentos que por sua vez deveriam ser
extremamente controlados.

O uso do medicamento dialoga com a crença de que esta é a solução mais rápida e
eficaz, porém nos casos de stress e depressão, o mais recorrente é que esta atitude apenas
mascare o problema. Em tese controlados, os medicamentos tarja preta consolidam-se no
mercado farmacêutico como sendo a grande solução, porém, estes atuarão como métodos
paliativos, produzindo ações calmantes, estimulantes, antidepressivas, antipsicóticas, dentre
outras, mas não serão capazes de atingir a origem da suposta doença. Observa-se com isto
um sério risco de dependência química e psicológica.

Assistimos assim ao comportamento industrial do setor farmacêutico, que trata o


medicamento como um produto a ser comercializado e seus usuários apenas como o
público-alvo. A recorrente propaganda, além dos grandes investimentos financeiros em
pesquisas para o desenvolvimento de novas drogas anti-depressivas e anti-stress
demonstram o pouco comprometimento da indústria farmacêutica com a saúde pública.

A disputa mercadológica no setor farmacêutico fica patente também na rivalidade


entre a filosofia homeopática e o discurso alopático. Embora ambos tenham como suposto
objetivo promover ou melhorar a qualidade de vida do sujeito usuário, a disputa entre elas
em geral não se baseia em um disputa por promover tais melhorias e sim, uma disputa por
mercado consumidor. Dessa forma, a alopatia defende a idéia do discurso científico de
comprovação de eficácia e aceleração do tratamento, enquanto a homeopatia colocando-se
como uma aparente alternativa também incorporou um discurso de medicalização.

3 – O ensino de história e a demanda do curso técnico em farmácia: entre a


demanda geral e específica

Num mundo marcado pela ênfase no presente, o Ensino de História para jovens
encara novos desafios, exigindo dos professores, uma constante reflexão sobre seus
métodos, práticas e conteúdos por eles selecionados. Porém, a ênfase não deve ser dada
somente a figura do professor, pois este é apenas um dos lados do processo educativo.
Assim, torna-se importante o questionamento acerca de uma juventude que de maneira
geral parece não se interessar pelo passado.

Ora, para iniciarmos o debate é necessário compreendermos nossos alunos como


imersos num mundo cada vez mais acelerado, e sedento por informações, ainda que
factuais ou descontextualizadas. Logo, o “desinteresse” pela história não é um problema de
uma faixa etária específica, mas de uma sociedade que pouco valoriza o passado.
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Cabe então repensar se este afastamento entre o aluno e o conhecimento histórico


não emerge de uma falta de sentido através da qual o aluno não encontra significado
naquele aprendizado. Para ilustrar nossa perspectiva destacamos uma citação de Ana Maria
Monteiro:

Perguntadas sobre as aulas de História, as pessoas geralmente se lembram de


um/uma professor/a que os fez gostar de História, tendo, em alguns casos, os
encaminhado para a profissionalização como historiadores. Certamente este (a) professor
(a) os ajudou a dar sentido às situações estudadas e nas quais, provavelmente, a relação
passado/presente foi estabelecida de forma significativa. (MONTEIRO,2007:11)

Compreendendo-nos como professora de história inserida na Educação Técnica,


vislumbramos algumas especificidades de nossa prática docente, sobretudo, no que tange
ao aspecto levantado por Monteiro, “o dar sentido às situações estudadas”. Assim, ensinar
história em um curso técnico implica uma abordagem específica dos conteúdos
selecionados. Destacamos que não defendemos uma história da técnica ou da ciência
somente, alijando os alunos de analisar outros processos históricos, mas sim de buscar
metodologias e atividades que signifiquem o aprendizado histórico.

No caso específico do desenvolvimento da presente pesquisa, realizada com os


alunos do curso de farmácia, podemos citar a título de exemplificação, a forma como o
conteúdo sobre a Revolta da Vacina foi abordado. Inserindo a Revolta num contexto de
políticas públicas caracterizado por segregar os segmentos mais populares da cidade,
buscamos analisá-la pensando seus distanciamentos e proximidades com as políticas de
saúde pública atualmente, tomando como exemplo as campanhas de vacinação.

Percebemos com isto que não existe uma separação estanque entre os conteúdos
das disciplinas técnicas e das disciplinas do Ensino Médio, o que de fato persiste é o
preconceito e a dificuldade de superar a barreira de compartimentalização de saberes. Sob
esse prisma, pensar nossas práticas de ensino no cotidiano escolar implica também em
repensar como nós, professores, estamos sendo formados. É somente desconstruindo
nossas dificuldades e preconceitos também em nossa formação, que poderemos abrir
espaço para novas práticas em nosso dia a dia.

4 – A experimentação enquanto pesquisadoras do social: o desenvolvimento do


projeto

O desenvolvimento da pesquisa “Stress e Depressão, só medicalizar resolve? Uma análise


sócio-cultural dos males do século XXI” dialoga com duas atividades de pesquisa realizadas
anteriormente na instituição pelas alunas-pesquisadoras. A primeira diz respeito à
investigação acerca da dependência química e psicológica e a segunda explorando a
temática do perfil do jovem trabalhador no século XXI, suas novas demandas e doenças de
trabalho.
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Tais experiências anteriores consolidaram um questionamento acerca da abordagem


feita em relação às temáticas de dependência química e psicológica e doenças do trabalho.
Assim, refletir acerca da medicalização nos casos de stress e depressão possibilitou
aprofundar e interligar as referidas temáticas.

Inicialmente, buscou-se formar um arcabouço teórico através de leituras e debates


que perpassaram: a história, a psicologia social, a sociologia, a educação entre outras áreas.
As leituras tinham como objetivo compreender conceitualmente a sociedade na qual
estamos imersos, analisando o processo de medicalização como algo mais amplo que
apenas prescrição médica do uso de drogas lícitas.

Partimos então para o delineamento de um processo histórico que conduziu as


mudanças no mundo do trabalho que hoje assistimos, ao mesmo tempo em que,
paralelamente, elaboramos um histórico do discurso científico no que tange aos
mecanismos de patologização e uso de medicamentos. Como desdobramento das primeiras
leituras e discussões, surgiu a necessidade de definir que estratégias metodológicas seriam
adotadas para o desenvolvimento do projeto, foi então que fizemos a opção pela História
Oral.

Durante o processo de preparação e realização das entrevistas colhemos materiais


fundamentais para a pesquisa, ao elaborarmos as perguntas estudávamos a produção
científica da entrevistada, o que nos colocou em contato com conceitos bem complexos
como Biopolítica e Subjetividade. Como desdobramento, estabelecemos contato ainda que
inicial com a obra de autores como Focault, Deleuze e Guatarri, indicando para nós a
complexidade que envolve a temática da medicalização.

É interessante observar que o desenvolvimento desta pesquisa, possibilitou que


duas alunas do Ensino Médio Técnico tivessem um contato intenso com as sistematizações
das etapas de um processo de pesquisa, além é claro de demonstrar empiricamente o
entrelaçamento de saberes das mais diversas áreas do conhecimento. As duas entrevistas
realizadas com professoras de psicologia social da UFF e da Unirio, ambas conduzidas
pelas alunas, revelou-se um outro momento de amadurecimento das mesmas como
pesquisadoras que deveriam conduzir o processo que resultaria em um material de análise
da pesquisa.

Cabe retomar que o objetivo da referida pesquisa, inserida na categoria didático-


pedagógica, era durante a Semana de Química da escola, conscientizar os participantes do
evento, sobre a medicalização nos casos de stress e depressão. Assim as alunas na última
fase do projeto, realizaram uma sistematização de todas as informações da pesquisa
elaborando dois pôsteres científicos e uma sala temática, na qual seria apresentado o
percurso da pesquisa.

A fase de exposição da pesquisa pode ser chamada, então, da quarta etapa, em que
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foi possível perceber o alcance desta. Durante o tempo de exposição, crianças,


adolescentes, jovens e adultos assistiram a explicação e ao final, através de uma dinâmica,
era dada a cada um deles a possibilidade de escolha entre o mundo da medicalização
excessiva que procura apenas camuflar os sintomas e o mundo do uso consciente do
medicamento, buscando a origem do stress e da depressão.

Atingindo o objetivo de desnaturalizar a medicalização como única estratégia,


cremos que o projeto alcançou sua função didático-pedagógica, contribuindo
principalmente na formação dos alunos da escola, futuros profissionais de saúde, como
técnicos em farmácia e biotecnologia. Outro fator importante foi comprovar que as
patologias possuem origens não somente físicas e orgânicas, mas também sociais, ou seja, a
sociedade também produz suas doenças.

Assim, o desenvolvimento desta pesquisa atuou na contramão da recorrente


separação entre disciplinas técnicas e disciplinas do Ensino Médio, possibilitando a
observação dos mesmos conceitos e teorias com outro olhar, ficando patente que a
formação de um técnico de Farmácia ou Farmacêutico como um profissional de saúde
qualificado, exige a ampliação e diálogo entre as diversas áreas do conhecimento.

5 – Considerações finais

Primeiramente, pontuamos o caráter parcial dos resultados por nós apresentados, e


que emergem muito mais como síntese de um primeiro momento de reflexão e
problematização acerca de uma temática a nosso ver carente de estudos mais críticos, qual
seja: a medicalização dos casos de stress e depressão. Procuramos com isto pontuar que, a
abordagem de temáticas que afligem os alunos do curso técnico de farmácia, pode ser
trabalhada para além das disciplinas técnicas, implicando diretamente na formação holística
deste aluno.

Acreditamos que nossa principal contribuição está em articular saberes acadêmicos,


em grande parte, restritos ao ambiente universitário, principalmente os oriundos da área de
psicologia social e os saberes científicos da área Técnica em Farmácia. Fruto desta
articulação está o processo de conscientização desses futuros profissionais que em breve
estarão trabalhando na indústria farmacêutica, podendo fazer do seu trabalho um meio de
reprodução ou não da realidade da medicalização como consumo.

Em nossa perspectiva, são experiências como esta que dão sentido ao termo
“História Crítica”. Através delas, os alunos realizam um retorno ao passado,
compreendendo-o como construtor do presente em que vivemos passando a compreender
a tecnologia e a ciência, não como mitos intocáveis, mas como possibilidades de usos para
o bem coletivo.
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6 – Bibliografia

AGUIAR, A. A. de. Entre as Ciências da Vida e a Medicalização da Existência: Uma Cartografia


da Psiquiatria Contemporânea. In: Anais dos Estados Gerais da Psicanálise: Segundo Encontro
Mundial, Rio de Janeiro 2003.
ANGELL, M. A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos. Tradução de Waldéia Barcellos. Rio
de Janeiro, Record, 2008.
BAUMAN, Z. Globalização: as conseqüências humanas. Tradução: Marcus-Penchel – Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1999.
IGNÀCIO, V.T.G.; NARDI, H.C. A medicalização como estratégia biopolítica: um estudo sobre o
consumo de psicofármacos no contexto de um pequeno município do Rio Grande do Sul. In: Revista
Psicologia e Sociedade, nº 19, 88-95. Florianópolis, 2007.
MONTEIRO, A. M. Professores de História: entre saberes e práticas. Rio de Janeiro: Mauad X,
2007.
MONTEIRO, H. R. A medicalização da vida escolar. Dissertação de mestrado (Faculdade de
Educação)-Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
NASCIMENTO, M.C. Psicotrópicos: proposta química para estados e oscilações de ânimo indesejados.
In: Medicamentos: ameaça ou apoio à saúde? Vantagens e perigos do uso de produtos da
indústria farmacêutica mais consumidos no Brasil: vitaminas, analgésicos, antibióticos e
psicotrópicos. Vieira & Lent Casa Editorial ltda. Rio de Janeiro, 2003, 131-155.
TEMPORÂO, J.G. A propaganda de medicamentos e o mito da saúde. Rio de Janeiro: Edições
Graal,1986.
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ANÁLISE DE ATIVIDADES DE LEITURA E ESCRITA EM LÍNGUA


INGLESA EM CONTEXTOS DE ENSINO DIFERENCIADOS

Pricila Gaffuri
Acadêmica do 5° ano do curso de Letras Português/Inglês
Bolsista de Iniciação Científica - CNPQ/UEM
Universidade Estadual de Maringá-PR
Renilson José Menegassi[1]
Prof. Dr. Letras – UEM
Coordenador do Grupo de Pesquisa Interação e Escrita
no Ensino e Aprendizagem (UEM/CNPq)

RESUMO: Ancorado nos pressupostos de Bakhtin e Vygotsky, o artigo tem por objetivo
descrever, analisar e comparar os procedimentos de leitura e as atividades de escrita
utilizadas por um aprendiz de língua inglesa em sala de aula, em contextos de ensino
regular e especializado da região de Maringá-PR. Os resultados demonstram que ambos os
contextos estão centrados no ensino gramatical, embora haja uma pré-disposição para um
trabalho interativo. As atividades de leitura não permitem completamente um diálogo entre
o leitor e o texto; e as atividades de escrita são vistas como meios para a verificação da
aprendizagem de um determinado vocabulário ou de uma determinada estrutura
gramatical.
PALAVRAS-CHAVE: interação; escrita; língua estrangeira.

ABSTRACT: Anchored in Bakhtin´s and Vigotsky´s language theories, this article has the
objective to describe, analyze and compare the reading procedures and the writing activities
used by an English Language apprentice inside the classroom, in contexts of regular and
specialized education, in the region of Maringá – PR. The results show that both contexts
are centered on the grammar teaching, although they have a pre-disposition to an
interactive work. The reading activities do not completely allow a dialogue between the
reader and the text; and the writing activities are seen as a mean to check the learning of a
determined vocabulary or a determined grammar structure.
KEY-WORDS: interaction; writing; foreign language.

1. Considerações iniciais

Almeida Filho (2005), ao fazer um diagnóstico das condições de ensino de língua


estrangeira (LE), lista alguns problemas que se repetem por todo o país. São eles: a) ensino
desvinculado da realidade do aluno; b) ensino fortemente gramatical, formalista, com
pouca ênfase no uso da língua em atividades relevantes; c) ambiente pobre de sala de aula,
com poucos materiais e pouco aproveitamento dos materiais existentes. Diante dessa
realidade, objetiva-se, com este trabalho, descrever, analisar e comparar os procedimentos
de leitura e as atividades de escrita utilizadas por um aprendiz de língua inglesa em sala de
aula, em contextos de ensino regular e especializado da região de Maringá-PR. Optou-se
pelo trabalho com realidades distintas, - ensino regular, isto é, aquele que compreende o
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Ensino Fundamental e o Ensino Médio; e o especializado que abrange as escolas privadas


de ensino de inglês como Língua Estrangeira - pelo fato de se querer comparar esses dois
contextos de ensinos a fim de verificar de que forma se assemelham e se diferem no
tratamento com a LE. O presente trabalho é um recorte do projeto maior “A escrita em
língua inglesa em contexto de ensinos diferenciados”, desenvolvido junto ao Grupo de
Pesquisa “Interação e Escrita” (UEM/CNPq – www.escrita.uem.br), o qual se encontra
ancorado nos pressupostos teóricos de Vygotsky e de Bakhtin e seu Círculo, a partir da
Linguística da Enunciação, com fundamentos nos estudos da Linguística Aplicada voltados
ao ensino de língua estrangeira.

Para tanto, primeiramente é feita uma revisão da literatura no que se refere à


concepção de língua adotada para o trabalho, abordando alguns tópicos sobre a
aprendizagem em língua estrangeira e algumas características da linguagem escrita. Logo
após, realizam-se as devidas descrições, análises e comparações dos registros coletados
para, finalmente, chegar às discussões e conclusões obtidas ao longo da pesquisa.

2. Pressupostos teóricos

2.1 O trabalho com a linguagem

De acordo com Garcez (1998, p. 47), a partir de sua leitura do Círculo de Bakhtin,
“a experiência social, as necessidades e as motivações alimentam a aquisição da língua, e a
língua promove uma renovação das experiências, das necessidades e motivações num
circulo infinito”. Dessa forma, Baquero (2001, p. 39), ao fazer uma releitura da obra de
Vygotsky, afirma que a linguagem “está implicada centralmente na reorganização da própria
atividade psicológica”, servindo como um “instrumento para produzir efeitos sobre o meio
social”. Assim, se a linguagem produz efeitos sobre o meio social, logo, ela é considerada
um produto sócio-histórico. Nesse sentido, torna-se necessário considerar, sob essa
perspectiva teórica, que “a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema
abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato
psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada
através da enunciação ou das enunciações.” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992, p.123).

Ao se tratar de interação verbal, fica evidente que a concepção de língua que deve
ser adotada no ensino de língua estrangeira é a interacionista, pois, acredita-se que, ao
considerar o sujeito como um ser ativo, ao possibilitar o diálogo entre o texto, o aluno e o
professor, ao considerar a linguagem como produto social, a preocupação não fica em
apenas levar o aluno ao conhecimento da gramática, mas, sobretudo, “ao desenvolvimento
da capacidade de refletir, de maneira crítica, sobre o mundo que o cerca e, em especial,
sobre a utilização da língua como instrumento de interação social” (CAZARIN, 1995, p.
05-06). Com isso, torna-se necessário levar em consideração os pressupostos linguísticos-
filosóficos do Círculo de Bakhtin para com a palavra. Para ele, a palavra deve ser
considerada em situações específicas de uso, pois “falamos por enunciados e não por
orações isoladas e, evidentemente não por palavras isoladas” (BAKHTIN, 2003, p. 283).
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Além disso, a língua “não chega ao nosso conhecimento a partir de dicionários e


gramáticas, mas de enunciações concretas que nós mesmos ouvimos e nós mesmos
reproduzimos na comunicação discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam”
(BAKHTIN, 2003, p. 283). Dessa forma, “a assimilação ideal de uma língua dá-se quando o
sinal é completamente absorvido pelo signo e o reconhecimento pela compreensão”
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992, p. 94).

No caso da LE, especificamente, uma palavra nova só seria introduzida para o


aprendiz mediante uma série de contextos em que ela figure, mesmo que estes sejam
produzidos com fins pedagógicos. Entretanto, o que mais se vê no ensino de inglês como
língua estrangeira é a consideração do signo como sinal estável e sempre igual, sendo
possível sua comprovação nos livros didáticos, que preconizam o estudo da estrutura, ou
seja, da palavra fora do seu contexto, em situação artificial, não utilizando a palavra como
signo social e ideológico, passível de outras significações, como elemento constitutivo do
dialogismo e da interação verbal.

2.2 Aprendizagem e língua estrangeira

Para Vygotsky (2003), a boa aprendizagem é caracterizada como aquela que precede
o desenvolvimento e permite a sua reprodução. Para que o desenvolvimento ocorra, é
preciso que haja um tempo de sedimentação, isto é, um tempo para que o que antes era
realizado com um auxílio, um mediador, se torne algo autônomo. Assim, esse tempo de
sedimentação é necessário para que o aluno internalize o conhecimento e atinja a meta-
consciência, ou seja, quanto mais o aluno tiver a compreensão das palavras dos outros, mais
elas vão se tornando suas palavras (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992). Contudo, muitas
vezes, em situações de ensino em LE, esse tempo de sedimentação não ocorre, já que o
aluno precisa utilizar a estrutura gramatical aprendida e o vocabulário da lição
imediatamente depois que aprendeu, sem que esses conteúdos tenham sido acomodados
sócio-cognitivamente no aluno. Uma das formas do professor avaliar se o aluno adquiriu
ou não certa estrutura gramatical é por meio das compositions[2], as quais são avaliadas,
muitas vezes, não pelo seu conteúdo, mas, sim, se o aluno utilizou ou não o que foi
aprendido em sala de aula. Dessa forma, o aprendizado pode até ter ocorrido, no entanto,
isso não significa que o desenvolvimento também tenha ocorrido de modo sistemático,
pois, este só poderá ser verificado posteriormente, quando por necessidade, ou seja, em
situações reais de uso da língua, o aluno precise fazer uso dela.

Segundo Vygotsky (2003, p. 111), “o aprendizado deve ser combinado de alguma


maneira com o nível de desenvolvimento da criança”, assim o autor determinou dois níveis
de desenvolvimento: a Zona de Desenvolvimento Real (ZDR) e a Zona de
Desenvolvimento Potencial (ZDP). O primeiro é compreendido como a margem da
atuação em que o aprendiz obtém sucesso sozinho, são os “ciclos de desenvolvimento já
completados” (p.111); e a Zona de Desenvolvimento Proximal pode ser definida como
sendo “aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão no processo de
maturação” (p.113), que amadurecerão por meio da participação do outro como mediador,
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no caso específico do trabalho com a LE em situações de ensino.

Portanto, o papel do professor é o de levar o aluno a atingir a ZDP, para que a


internalização ocorra e, consequentemente, a aprendizagem se desenvolva, fazendo com o
que é ZDP hoje possa ser ZDR amanhã (VYGOTSKY, 2003). Para que o professor auxilie
no desenvolvimento da ZDP do aluno, é necessário que ele leve para a sala de aula
atividades de leitura, produção escrita, reescrita e análise lingüística, que sejam trabalhadas
de acordo com a concepção interacionista de linguagem, tendo em vista objetivos certos,
levando em consideração as diferenças dos alunos no trato com a LE.

2.3 A linguagem escrita

Vygotsky (2003) considera a escrita como sendo um Processo Psicológico Superior


Avançado, pois, “além de implicar o domínio de um instrumento de mediação de maior
potencial descontextualizador, implica o desenvolvimento de formas de consciência e
vontade superiores no domínio intelectual em jogo” (BAQUERO, 2001, p. 86). Além do
mais, seu desenvolvimento depende “essencialmente das situações sociais específicas em
que o sujeito participa” (BAQUERO, 2001, p.26). Sobre isso, depreende-se de
Bakhtin/Volochinov (1992, p. 123), que a linguagem escrita “constitui igualmente um
elemento da comunicação verbal, [...] é objeto de discussões ativas sob a forma de diálogo,
e, além disso, é feita para ser aprendida de maneira ativa, para ser estudada a fundo,
comentada e criticada no quadro do discurso interior”.

Se a escrita é considerada uma forma de diálogo, a concepção de escrita adotada é a


que a vê como trabalho, pois a produção surge “de um processo contínuo de
ensino/aprendizagem” (SERCUNDES, 1997, p. 83). O texto “passa a ser considerado o
próprio lugar da interação e os interlocutores, como sujeitos ativos que – dialogicamente –
nele se constroem e são construídos” (KOCH, 2002, p. 17). Assim, o sentido do texto é
construído na interação da tríade professor–aluno–texto. Além disso, a “coerência deixa de
ser vista como mera propriedade e qualidade do texto, passando a dizer respeito ao modo
como os elementos presentes na superfície textual, aliados a todos os elementos do
contexto sociocognitivo mobilizados na interlocução, vêm a construir (...) uma
configuração veiculadora de sentidos” (KOCH, 2002, p. 17).

O papel do professor, nessa concepção, é ajudar os alunos a encontrar estratégias


viáveis para dar início à escrita, como: encontrar informações relacionadas ao que será
escrito; planejar a estrutura e os procedimentos necessários; considerar as condições de
produção – gênero, interlocutor, finalidade e meio de circulação; fazer revisão e dar
oportunidade para a reescrita. Nesse sentido, a composição de um texto está ligada à ideia
de processo, que deve estar encaixado em um contexto específico. Portanto, autor, leitor,
texto e contexto devem estar interligados, dialogando e interagindo.
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3. Procedimentos metodológicos da pesquisa

O projeto de pesquisa “A escrita em língua inglesa em contextos de ensino


diferenciados” tinha por objetivo investigar e comparar os procedimentos de leitura e de
produção escrita utilizados por aprendizes de língua inglesa em sala de aula, em contexto de
ensino diferenciados, no caso, o ensino regular e o especializado. Para isso, em 2007,
escolheram-se duas alunas que se enquadrassem no perfil procurado, isto é, que além de
terem aulas de inglês na escola regular, fizessem curso de inglês em uma escola
especializada, como atividade extra-curricular. Depois de escolhê-las, foi realizada a coleta
do material utilizado em sala de aula pelas professoras (livros, cadernos, composições e
material complementar). Essa coleta acabou na metade do mês de outubro com a
realização de uma entrevista com todos os participantes da pesquisa: duas alunas e suas
respectivas professoras do ensino regular e do ensino especializado, a fim de verificar como
os participantes compreendem o processo de ensino e aprendizagem de inglês como LE.
São abordados aqui os resultados obtidos com a coleta de uma das alunas. A sua escolha se
deve ao fato de ela possuir atividades de escritas mais significativas em sala de aula do que a
outra participante da pesquisa.

A aluna escolhida estudava no 2º ano do Ensino Médio em um colégio da rede


privada de Maringá-PR, na escola especializada, cursava o nível pós-intermediário. Na
escola regular, ela tinha duas aulas de Inglês por semana, de 45 minutos cada; já na escola
especializada, também contava com duas aulas por semana, com duração de uma hora e
trinta minutos cada uma delas. Assim, o contato com a LE era maior na escola
especializada.

Os instrumentos obtidos para a coleta dos registros da escola regular foram: as


folhas fotocopiadas entregues pela professora no decorrer dos estudos; o caderno e o
instrumento de avaliação empregado em sala de aula. Já, na escola especializada, os
registros obtidos foram: o livro de textos[3], o livro de exercícios, as composições e o
caderno. Apresenta-se a seguir a descrição do material coletado, com a análise realizada a
partir da teoria já descrita. Por fim, é feito um levantamento de quais são os pontos comuns
e os pontos que se diferem entre os dois contextos de ensino, buscando atingir o objetivo
deste trabalho.

3.1. Atividades na escola regular

Os registros coletados mostram que o trabalho da professora da escola regular se


subdividiu em duas partes, sendo que a unidade temática que permeou todo o trabalho
tratava sobre o corpo humano:

a) vocabulário: partes do corpo humano; algumas doenças relacionadas ao corpo


humano; formação de palavras a partir das partes do corpo humano;
b) ensino de gramática: simple past e present perfect simple.
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O ensino de vocabulário ocorreu de maneira bastante diversificada. Para ensinar as


partes que compõem o corpo humano, a professora utilizou-se de: a) palavras cruzadas,
para os alunos não ficarem na superficialidade da temática abordada; b) uma folha
fotocopiada, contendo 38 questões que faziam interdisciplinaridade com a matéria de
Biologia, uma vez que os alunos dependiam do conhecimento da matéria para conseguir
obter as respostas, por exemplo:

13) How much blood does an average adult have?


- An adult has six liters of blood in their body.
21) What is the name of the little black circle in the centre of your eye?
- They are pupils.

Já para ensinar as doenças mais comuns relacionadas com o corpo humano, como
headache (dor de cabeça), backache (dor nas costas), sore throat (dor de garganta), a docente
utilizou figuras que ilustrassem cada doença e exercícios de combinação.

Além dessas estratégias, a professora levou para sala de aula um exercício em que as
palavras eram formadas a partir de algumas partes do corpo humano, assim, a partir das
ilustrações e da palavra do corpo dada, os alunos deveriam completar o que faltava para
formar a palavra, como por exemplo, com “hair” e “brush”:

HAIRbrush

Os exercícios são bem diferentes dos livros didáticos tradicionais, uma vez que,
além de alguns serem interdisciplinar, têm um lado lúdico, não tornando a sua resolução e a
aprendizagem do aluno cansativas. Além do mais, a palavra, neste caso, está sendo figurada
como sendo um signo social, ou seja, ela está carregada de um conteúdo vivencial
dependente de um contexto (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992). Além dos pontos
observados, é relevante destacar que, com esses exercícios, os alunos não ficam na mera
repetição mecânica, em que, para responder o próximo item, é necessário somente alterar
uma classe de palavra.

Quanto ao ensino de gramática, a estrutura que estava em estudo era o Present Perfect
Tense. No caderno da aluna, estavam registradas as explicações de como ele é utilizado. A
sua prática aconteceu, primeiramente, com exercícios do vocabulário aprendido:

Ex.:
When was the last time you had a bad cold or flu? What were your symptoms?
R.:. I catch last month. It was so awful. I have got a headache, I´ve got tired,
I´ve got shivering and I´ve got a runny nose sick.
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O exercício é um exemplo adequado de como se trabalhar com a análise linguística


em sala de aula, pois, a professora partiu do que a classe já estava estudando (as doenças
relacionadas ao corpo humano), para iniciar o estudo do novo tópico gramatical,
verificando se os alunos já dominavam a estrutura, como também explicando como ela
funcionava. Na aula seguinte ao exercício realizado, havia no caderno da aluna algumas
explicações e regras de uso do Simple Past. Isto pode ter acontecido pelo fato de a
professora ter verificado a dificuldade de alguns alunos confundirem ou não identificarem a
diferença entre o Simple Past e o Present Perfect Tense. No primeiro caso, a ação já está
concluída, quando há um tempo definido (I stayed at home last night because I was sick. [4]); já o
segundo caso representa ações e situações que começam no passado e continuam até o
momento (I have been sick since last weekt[5]). Isso comprova que a professora é ajustável,
pois procura fazer a medição da atividade escolar de forma condizente ao nível de
desenvolvimento dos seus alunos, ao contexto cultural e social, estabelecendo a interação
verbal de modo eficaz.

Depois, foi entregue outra folha fotocopiada com mais exercícios para que o
aprendizado fosse efetivado:

Ex:
1. Write positive sentences in Present Perfect Simple. The following people have just completed an
action.

a) Jimmy / play / on the computer


Jimmy has played on the computer.

b) Andrew / repair / his bike.


Andrew has repaired his bike.

5. Put the verbs into the correct tense (Simple Past or Present Perfect Simple).

a) I (just / finish) have just finished my homework.

b) Tom (move) moved to his town in 1994.

Os dois exercícios eram do mesmo modelo, o único elemento que os diferenciavam


era o comando, em que, no primeiro, a aluna teria que formar sentenças afirmativas, já, no
segundo e no terceiro, a aluna teria que formar sentenças negativas e interrogativas,
respectivamente. Nesse caso não se precisa refletir muito para resolvê-los, uma vez que só
era necessário colocar o verbo dado no Presente Perfect Simple; já o exercício número cinco
exigia uma reflexão maior, uma vez que o aluno deveria conhecer a regra e em que
situações usa-se um modo verbal em detrimento do outro. Esse último exercício é
importante, pois a partir da sua resolução, a professora verifica se o seu aluno aprendeu ou
não a diferenciar os dois modos verbais, pode-se considerá-lo como uma forma de
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comprovação da aprendizagem.

Ao ensinar regras e estruturas gramaticais, muitas vezes, os professores acabam por


trabalhar com a língua como sendo um sinal estável, isto é, trabalham com a palavra fora de
seu contexto, não considerando a palavra como signo social e ideológico, passível de outras
significações (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992). Nos exercícios de gramática expostos,
está-se trabalhando com a palavra como sendo um sinal estável porque a sentença está fora
de um contexto passível de significação. Além disso, o exercício não leva em conta o
conhecimento de mundo do aluno e, uma vez entendido como se deve respondê-lo, sua
prática se torna mecânica e puramente artificial, pois o aluno nem observa mais o que está
escrevendo ou porque está escrevendo daquela maneira, porque sabe que é só seguir o
modelo que acertará, conseqüentemente, obterá uma boa nota ao final do bimestre.
Contudo, não se pode esquecer que a repetição é importante, pois é uma das formas de
auxiliar o aluno a memorizar a estrutura verbal.

Quanto à avaliação, ela não foi muito diferente dos exercícios trabalhados em sala
de aula, tanto no que se refere ao estudo do vocabulário, quanto à parte gramatical, pois os
exercícios que se referiam ao Present Perfect Tense eram do mesmo modelo da folha de
exercícios entregue na semana antes da prova.

Dessa forma, que no que se refere às atividades de escrita da aluna, pode-se inferir
que, apesar de os alunos não terem realizado nenhuma composição, ela foi significativa e
pode ser dividida em: exercícios gramaticais, exercícios de respostas pessoais e exercícios
para aquisição de vocabulário. Essas significativas estratégias levaram os alunos à interação
com a LE trabalhada, em virtude de três aspectos: a) estratégias empregadas pela
professora; b) a interdisciplinaridade produzida com a disciplina de Biologia; c) aos
exercícios oferecidos para a internalização da LE, a partir da interdisciplinaridade.

3.2. Atividades na escola especializada:

Os registros coletados da escola especializada podem ser divididos:


a) livro de textos: textos, exercícios de compreensão e interpretação, estruturas
gramaticais, atividades orais, atividades de listening e exercícios de escrita.
b) livro de exercícios: leitura, gramática, exercícios de compreensão e interpretação
e exercícios de gramática.
c) caderno: notas de gramática, exercícios gramaticais, primeira versão das
composições.

No que diz respeito ao livro de textos, as atividades orais e de listening não são
descritas, pois o objetivo deste trabalho é identificar as atividades de leitura e de escrita,
apesar de essas atividades serem importantes para construir o processo da escrita e para
auxiliar nas atividades de leitura.

Para melhor compreender como o material é composto, é descrita brevemente uma


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unidade cujo título é “Do you want to be young forever?”. O primeiro exercício da unidade era
composto de dois listenings que iniciavam a temática desenvolvida na unidade. No segundo
exercício, os alunos deveriam formar substantivos a partir dos adjetivos, sendo que todas as
palavras da lista estavam relacionadas de alguma forma à temática. O próximo exercício era
denominado “Build your vocabulary”, em que os alunos aprenderiam algumas expressões de
tempo. Esses exercícios serviram como uma espécie de pré-leitura, uma vez que o que foi
visto nos exercícios anteriores estaria apresentado no texto. A pré-leitura é, portanto, uma
parte muito importante da leitura, já que ela proporciona ao aluno uma idéia do que o texto
vai tratar e, em língua inglesa, auxilia o aluno a compreender melhor o texto, pois algumas
palavras, antes desconhecidas, já não soaram tão estranhas ao aluno.

Após esse exercício, encontrava-se o texto “Eternal youth: new developments in anti-
ageing research”. Depois da leitura do texto, os alunos deveriam responder três exercícios: no
primeiro, o aluno encontraria algumas expressões científicas que estavam presentes no
texto e aprenderia como elas podem ser encontradas em uma linguagem mais coloquial.
Esse é um típico exercício de variação linguística que, se for bem trabalhado pelo professor,
poderá mostrar ao aluno que é o contexto, a situação social em que está inserido que o
permitirá fazer uso de uma expressão em detrimento da outra.

Ex.:
2- cease to function stop working
4- the ageing process getting old
5- searching for looking for

O exercício seguinte é caracterizado como sendo de compreensão textual, não


trazendo dificuldades ao aluno, pois além de ser de múltipla escolha, todas as respostas se
encontram diretamente no texto.

Ex.:
1- When all humans reach a certain age
a) they get arthritis or Alzheimer’s.
b) their organs start to fail.
c) they suffer the effects of bad diet and lifestyle.

4- Scientists researching the oxidation theory have


a) made all animals live longer.
b) made mice live longer.
c) made people live longer.

O último exercício (f), caracterizado como um exercício de interpretação textual,


exige do aluno certa reflexão para respondê-lo, ele faz um diálogo entre o conteúdo do
texto e o próprio aluno:

f) How do you fell about the future described in the last line of the article? Would you like to stay
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young forever? What problems can you imagine?

Observa-se, portanto, que a maioria dos exercícios de compreensão e interpretação


textual presentes no livro didático estão de acordo com a perspectiva tradicional de leitura,
isto é, a centralização da leitura está no texto, pois, para conseguir a resposta correta para as
questões, basta ao aluno recorrer ao texto (MENEGASSI & ANGELO, 2005). Na
atividade de leitura descrita ficou bem visível e bem caracterizada essa concepção, uma vez
que as atividades não permitiam um diálogo entre aluno e texto, pois, buscando a
textualidade somente, alcançava-se a resposta correta, dessa forma, o sentido não era
construído, ele já estava pronto no texto, bastava o aluno ir até o texto, recortar e copiar a
informação desejada. Dessa maneira, o aluno se transforma em receptáculo de informações
do texto, o seu conhecimento de mundo não é valorizado. Contudo, o último exercício
(exercício f) permitia um possível diálogo entre o aluno (leitor) e o texto, porém, ele não foi
respondido pela aluna, não deixando espaço para uma análise para averiguar se ela havia
compreendido o trabalho de leitura, consequentemente produzido sentidos.

O próximo tópico da unidade diz respeito às regras gramaticais, o item em estudo


era sobre as formas do futuro (future forms). Primeiramente, foram explicadas algumas
maneiras de expressar essa forma verbal, por meio de exercícios de múltipla escolha.
Depois dos exercícios estruturais, havia um exercício de conversação que envolvia o uso da
regra gramatical aprendida. No final da unidade, havia exercícios de pronúncia, de
vocabulário e de encontrar os erros existentes em um texto, sendo que todos tinham
alguma ligação com o título da unidade: “Do you want to be young forever?”.

Quanto ao livro de exercícios, no que se refere à mesma unidade estudada no livro


de textos, ele apresentava, primeiramente, uma revisão da regra gramatical já estudada,
seguido de vários exercícios. Havia também exercícios sobre o vocabulário aprendido e, por
fim, três textos de três pessoas de mesma idade, tratando sobre como se sentem com suas
idades; logo após esses textos, seguia-se um exercício de interpretação em que o aluno
deveria enumerar as sentenças de acordo com quem fez ou disse tal coisa. Esses exercícios,
na maioria das vezes, são feitos como tarefa de casa, como uma forma de auxiliar na
internalização do conteúdo aprendido em sala de aula.

Ao observar as composições feitas pela aluna, verifica-se que ambas não se


relacionam com as unidades temáticas desenvolvidas, mas estão relacionadas, de alguma
forma, com algum tópico da unidade, por exemplo, na unidade anterior à descrita, havia
um tópico sobre vantagens e desvantagens (advantages and desadvantages / for and against) da
saúde pública, então, a professora solicitou que os alunos dissertassem sobre as vantagens e
desvantagens de alguma profissão. A aluna optou por dissertar sobre as vantagens e
desvantagens de ser Professor. Segue-se o texto:

Teachers
In my opinion, teacher is the best job although in this job can improve some desadvantages.
The main advantage is that the teacher can teach all that they learn all their lifes. What is more
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in the same time they can learn more with the students and learn some things good with their because theyre
younger than the teachers.
On the other hand, the main desadvantage is the salary. Unfortunately the salary is absolutely
horrified. In adittion some students don’t respect the teachers. Then the teachers fell so boring with these.
In conclusion teachers is a really good job though they have to overcome the desadvantage as you
have to do in other jobs. Moreover they want to to do the best for their really good students.

A composição da aluna apresenta pouco conteúdo e, além disso, ela não argumenta
sobre as informações apresentadas. A possível explicação para isso, já que a aluna se
encontra em um nível pós-intermediário de estudo da língua inglesa, é a de não haver uma
preparação para a escrita, também, de não ocorrer a reescrita, momento em que a
Professora poderia auxiliar a aluna a ampliar as idéias do texto.

Evidencia-se dessa maneira que a única finalidade para a produção de texto é a de


mostrar para o professor se o aluno aprendeu ou não a regra gramatical, ou se sabe utilizar
ou não o vocabulário da lição. Assim, a produção escrita não é vista como sendo um
trabalho (SERCUNDES, 2001), pelo contrário, ela é tida como uma consequência de todo
o trabalho realizado, além disso, as condições de produção não são levadas em conta e,
apesar de o livro didático encaminhar o aluno para no final produzir-se a atividade escrita, a
professora descaracterizou esse processo, não havendo, portanto, preparação para a escrita.
Além disso, o único interlocutor para a escrita do aluno é a Professora, vista não como
leitora, mas como uma mera avaliadora, na posição de atribuidora de nota.

4. Considerações finais:

Embora houvesse um trabalho com a leitura e a escrita, é possível observar algumas


semelhanças entre os dois contextos de trabalho com a LE. A primeira tem a centralização
no ensino na gramática da LE, dessa forma, o aluno não é levado ao desenvolvimento da
capacidade de refletir sobre a língua, consequentemente, não lhe é ensinado a olhar
criticamente sobre o mundo que o cerca, que é novo e em construção. Logo, a língua deixa
de ser vista como um fenômeno social da interação verbal. Além disso, na escola
especializada, onde foi possível observar a ocorrência de produções escritas, verificou-se
que elas têm por finalidade avaliar a aprendizagem de alguma regra ou estrutura ensinada
em sala de aula. Assim, há uma descaracterização das condições de produção, já que o
interlocutor se restringe ao professor de LE, o gênero é sempre o mesmo – composition - e a
finalidade é a verificação da aprendizagem, não havendo meios de circulação para o texto
do aluno, descaracterizando-se o trabalho com os gêneros discursivos (BAKHTIN, 2003).

A segunda semelhança, que é consequência da primeira, é que salvo um ou outro


exercício em que a palavra é trabalhada como sendo signo social, sempre variável e flexível,
houve a predominância do seu trabalho como sinal estável (BAKHTIN/VOLOCHINOV,
1992). Dessa forma, a situação comunicativa da enunciação não é caracterizada. Isso pode
ser verificado nos exercícios gramaticais apresentados, em que o seu aprendizado se torna
mecânico e artificial.
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Se o objetivo é formar cidadãos críticos e capazes de utilizar a língua inglesa nas


mais diversas situações que podem ser vivenciadas pelos alunos, essas duas semelhanças
apresentadas precisam ser repensadas pelos professores de LE, a fim de que se possa
melhorar a prática docente.

Com relação à escola regular, na questão do uso de estratégias de ensino, ressaltam-


se os seguintes pontos: trabalho com exercícios interdisciplinares; exercícios de variação e
análise linguística; trabalho com a palavra como sendo sinal um signo social; e as estratégias
utilizadas pela professora para se trabalhar com a gramática. Já, no que se refere à escola
especializada, destacam-se: o trabalho com a pré-leitura; exercícios de variação linguística;
trabalho com as atividades do livro de exercício como tarefa de casa a fim de auxiliar a
internalização do conteúdo aprendido em sala de aula.

Espera-se que, com este trabalho, algumas práticas descritas possam ser levadas
para salas de aula, como também outras possam ser repensadas para haver uma melhoria
no ensino de inglês como língua estrangeira.

5. Referências

ALMEIDA FILHO, J.C. Lingüistica Aplicada: ensino de língua e comunicação. Campinas: Pontes e
Arte Língua, 2005.
BAKHTIN, M.; VOLOCHINOV, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 6. ed. São Paulo: Hucitec,
1992.
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAQUERO, Ricardo. Vygotsky e a aprendizagem escolar. Porto Alegre: Artmed, 2001.
CAZARIN, E. A. Princípios gerais para uma metodologia do ensino de língua portuguesa. Coleção
Cadernos Unijuí, 1995, p. 5-6.
GARCEZ, L. H. do C. A escrita e o outro: os modos de participação na construção do texto.
Brasília: UNB, 1998.
KOCH, I. G. V. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002.
MENEGASSI, R. J.; ANGELO, C. M. P Conceitos de Leitura. In: MENEGASSI, R. J. (org) Leitura
e Ensino. Maringá: EDUEM, 2005 p.15-43.
OXENDEN, C; KOENIG, C. L; SELIGSON, P. New English File. Upper–Intermediate.
London: Oxford, 1996.
SERCUNDES, M. M. I. Ensinando a escrever. In: CHIAPPINI, Ligia. (org.) Aprender e ensinar com
textos de alunos. São Paulo: Cortez, 2001, p. 75-97.
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
[1] Pesquisa desenvolvida junto ao Projeto de Pesquisa “Manifestações de constituição da escrita na
formação docente”, junto ao Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá,
financiada pela SETI/Fundação Araucária.
[2]O termo composition é compreendido e utilizado referindo-se a um texto curto que se assemelha a
uma redação escolar, no ensino de língua materna. Seu emprego é comum no trabalho com inglês
como LE nas escolas brasileiras.
[3] OXENDEN,Clive; KOENIG, Christina Latham; SELIGSON, Paul. New English File. Oxford:
1996. (Upper – Intermediate)
[4] Eu fiquei em casa a noite passada porque eu estava doente.
[5] Eu tenho estado doente desde a semana passada.
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A FRAGMENTAÇÃO DA IDENTIDADE EM MIDNIGHT’S


CHILDREN, DE SALMAN RUSHDIE

Shirley de Souza Gomes Carreira


Doutora em Literatura Comparada – UNIABEU - RJ

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar o romance Midnight’s Children, de Salman
Rushdie, buscando focalizar não só a representação da fragmentação da identidade, mas
também o seu diálogo com a História. No romance, Rushdie retoma a questão da
identidade, entretecendo-a com a história da Índia, bem como recorre a estratégias do
romance mágico
Palavras-chave: intertextualidade, História, identidade

Abstract: This work aims at analyzing the novel Midnight’s Children, by Salman Rushdie, by
focusing not only on the representation of the fragmentation of identity, but also on the its
dialogue with History. In the novel, Rushdie retakes the theme of identity, intertwining it
with the history of India, as well as he recurs to Magical Realist devices.
Keywords: intertextuality, History, identity

Salman Rushdie é um dos mais brilhantes e conhecidos autores da literatura pós-


colonial em língua inglesa. Sendo um dos muitos escritores migrantes contemporâneos,
Rushdie transpõe para a sua obra a experiência do exílio, da migração e de uma
subjetividade que é, a um só tempo, plural e parcial. Ao fazê-lo, transforma a história de seu
país de origem, a Índia, e dos países que o acolheram, o Paquistão, a Inglaterra e os EUA,
em matéria-prima para a sua ficção.

Quando Salman Rushdie escreveu Midnight’s Children (Os filhos da meia-noite), no


fim dos anos setenta do século XX, a Índia não era um assunto relevante no Ocidente. O
tema não era considerado interessante para o público em geral e Rushdie encontrou certa
resistência antes de conseguir a publicação do romance. No entanto, por ocasião do seu
lançamento, em 1981, o sucesso estrondoso da obra abriu caminho para um novo olhar
sobre a Índia.

Midnight’s Children foi escrito após uma visita do autor à sua terra natal, ao fim de
um longo período de ausência. Ao rever seu país, seus costumes, e sentir de perto os
conflitos gerados pela política indiana, Rushdie experimentou não só a nostalgia que,
normalmente, surge nesses momentos, mas também a indignação ante a realidade com que
se deparou, aguçada por um duplo olhar: o de cidadão indiano e o de visitante estrangeiro.
O fato de ter vivido muitos anos no exterior permitiu-lhe lançar ao seu país um olhar
crítico, com o qual revisitou não apenas a política imperialista britânica, mas também a
tradição, os costumes indianos.

Midnight’s Children é um romance construído sobre dois pilares distintos: o realismo


mágico e a revisão da história. A opção pelo fantástico para reinterpretar os fatos históricos
denota a clara intenção de Rushdie de demonstrar a inconfiabilidade dos registros
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históricos e autobiográficos, pois ambos são permeados pela “verdade da memória”,


conforme o autor afirma no ensaio ‘Errata’: or, Unreliable Narration in Midnight’s
Children[1].

No mesmo ensaio, Rushdie afirma que a principio sua intenção era um tanto
quanto proustiana, inspirada pela ação do tempo e da migração, e que o formato final do
romance deveu-se à sua percepção de que o que realmente lhe interessava era o modo pelo
qual somos capazes de refazer o passado para atender os propósitos presentes.

A força motriz da obra de Rushdie tem sido a sua percepção de si mesmo como um
indivíduo migrante, ou “traduzido”, como ele faz questão de enfatizar. Essa consciência
está no âmago da criação de Saleem Sinai, o protagonista de Midnight’s Children. Saleem é
uma das crianças que nasceram à meia-noite do dia 15 de agosto de 1947, data da
independência da Índia:

A luta pela independência da Índia foi conduzida por Mahatma Gandhi,


um advogado indiano de formação européia, que tinha por princípio a
não-violência. Em 1947 chegou-se a um acordo com a divisão do antigo
território em Índia e Paquistão, ficando a Índia no centro do território e o
Paquistão Oriental separado do Paquistão Ocidental por mais de 1.700
km. Em 1971, o Paquistão Oriental declarou-se independente em relação
ao Ocidental, com apoio da Índia, passando a se chamar Bangladesh.
(ARRUDA, 1980, p.376)

A história pessoal de Saleem é uma metáfora da história da nação. Não usamos aqui
o conceito de alegoria, buscando a fidelidade à concepção do autor de que a alegoria exige
uma correspondência perfeita entre os eventos do plano histórico e os da vida da
personagem, o que, de fato, não existe no romance.

O romance é narrado em primeira pessoa pelo seu protagonista e se inicia pelas


circunstâncias do seu nascimento. Saleem Sinai coloca-se numa posição que evoca a
imagem de Sherazade, que, ante a iminência da morte, e para protelá-la, necessita contar
histórias. A construção da personagem está subordinada, igualmente, à idéia de
fragmentação, cujo símbolo maior é o “lençol perfurado”:

E há tantas estórias para contar, tantas, um tal excesso de vidas


interligadas, eventos, milagres, lugares, rumores, uma mistura tão densa
do improvável com o mundano! Tenho sido um engolidor de vidas; e
para conhecer-me, tal como sou, terão de engolir um outro tanto.
Multidões consumidas estão se empurrando dentro de mim; e guiado
apenas pela memória de um amplo lençol branco com um buraco
circular de cerca de sete polegadas de diâmetro exatamente no centro,
agarrando-me ao sonho daquele quadrado de tecido mutilado,
esburacado, que é o meu talismã, meu “abre-te sésamo”, eu tenho de
recomeçar a tarefa de refazer a minha vida do ponto em que ela
realmente começou, cerca de trinta e dois anos antes de algo tão óbvio,
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quanto o presente, quanto o meu nascimento manchado pelo crime e


controlado pelo relógio. (RUSHDIE,2006, 4)

Saleem retrocede no tempo para contar a história de seu avô, Aadam Aziz, tendo
como ponto de partida o momento em que este retorna à Índia, após cinco anos de estudo
na Alemanha.

Ao inclinar-se para beijar o solo indiano e rezar, Aziz bate com o nariz no chão,
fazendo-o sangrar, jurando, daí por diante, jamais se curvar novamente, nem para deuses,
nem para homens. A caminho de casa, o olhar que ele lança à sua terra é diferente do olhar
do jovem que de lá saíra; é o olhar de um homem que perdera o encantamento, muito
embora tentasse acreditar que nada mudara. Mas tudo mudara; seu pai tivera um derrame e
sua mãe assumira a responsabilidade dos negócios da família.

Aziz decide começar a clinicar e é chamado para examinar a filha de um


proprietário de terras local.

Lá chegando, depara-se com uma cena inusitada: sua cliente está coberta dos pés à
cabeça por um lençol branco com um buraco no centro. Pelo buraco, ele pode ver apenas a
parte do seu corpo que Ghani, o pai da jovem, julgava ser necessário examinar: o abdome,
uma vez que ela sofria de dores de estômago.

Nas muitas vezes em que é chamado a examinar Naseem, Aziz vê apenas partes de
seu corpo, mas nunca o seu rosto. Assim, pouco a pouco, ele se torna obcecado pela
imagem fragmentada daquela mulher. O lençol perfurado é, portanto, o primeiro sinal da
fragmentação da identidade que se repete por todo o texto.

Três anos depois, ela finalmente apresenta uma dor de cabeça e ele é capaz de ver o
rosto com qual sonha todos os dias. Após a morte de seus pais, ele se arma de coragem e
pede a jovem em casamento.

Nesse ponto, Saleem interrompe a narrativa para dizer que sente que está prestes a
se desintegrar em milhões de pedaços e que, quando isso ocorrer, a Índia será
verdadeiramente libertada. É evidente a associação que Saleem estabelece entre seu próprio
eu e a nação. Seu corpo apresenta rachaduras e ele diz que quer registrar isso, porque a
Índia é uma nação de esquecidos.

Da união entre o Dr. Aziz e Naseem nascem cinco filhos, Alia, Muntaz, Hanif,
Mustapha e Emerald, e Saleem narra como sua mãe, Muntaz, descobre o amor quando seu
pai oculta em sua casa o secretário de um líder político que fora assassinado, Nadir Khan.
Assistindo-o todos os dias, Muntaz acaba por apaixonar-se por ele. O casamento acontece,
muito embora Nadir continue a viver oculto no porão.

Dois anos depois, Aziz descobre que a filha permanece virgem e Emerald,
quebrando a promessa de manter em segredo a presença de Nadir Khan em sua casa,
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revela a verdade ao namorado, Major Zulfikar. Nadir é obrigado a fugir, deixando uma
carta de divórcio para Muntaz. Algum tempo mais tarde, esta se casa com Aahmed Sinai, a
quem jura aprender a amar “aos pedacinhos”. A imagem do todo que é construído pelas
partes é renovada, assim, reiterando a simbologia do lençol perfurado.

Muntaz, que a essa altura mudara seu nome para Amina Sinai, grávida do primeiro
filho, lê que o jornal Times of Índia anunciara que daria um prêmio a mãe que tivesse seu
filho no momento exato da independência da Índia.

Quando seu filho nasce, exatamente à meia-noite do dia 15 de agosto, é trocado por
outra criança, filho de uma mulher que morrera durante o parto. Somente onze anos
depois, consumida pela culpa, a parteira, Mary Pereira, revela que trocara as crianças para
agradar ao namorado, o revolucionário Joseph D’ Costa, proporcionando à criança pobre,
Saleem, uma vida digna, e relegando a criança rica a uma vida de infortúnios.

A obra de Rushdie em geral tem sido abordada pela crítica como um produto do
contato do autor com o Realismo Mágico. Em Midnight’s Children, em particular, pode-se
dizer que o insólito assume papel preponderante, configurando-se como veículo para a
discussão que o autor promove sobre a ambigüidade da História.

Em Uso e abuso da história (1873), Nietzsche afirmava que há três maneiras de


expressar-se a consciência histórica: a ahistoricidade, ou seja, o poder do esquecimento ou
de delimitar o tempo; a historicidade, ou seja a historiografia convencional; e a
superhistoricidade, que permite uma visão cultural ampla, abarcando outros aspectos
relevantes da vida humana, como a arte e a religião.

A presença do insólito em Midnight’s Children evoca o conceito de superhistoricidade


formulado por Nietzsche, na medida em que ele considerava tanto a ahistoricidade como a
superhistoricidade verdadeiros antídotos contra o poder da historiografia.

De certo modo, Saleem narra a sua história pessoal para uma audiência ainda não
preparada para enfrentar uma história que está além dos registros historiográficos (Padma,
o leitor e seu filho, num futuro próximo):

Um dia, talvez, o mundo poderá provar os pickles da história. Poderão ser


fortes demais para certo paladares, seu cheiro poderá ser excessivamente
intenso, lágrimas talvez aflorem dos olhos; espero, contudo, que deles se
possa dizer que possuem o autêntico sabor da verdade. (RUSHDIE,
2006, p.597)

O insólito, revestido da superhistoricidade, dialoga com os fatos reais do período


em que a narrativa se insere, criando um mundo ficcional em que o inverossímil não só é
possível como também é capaz de guiar o leitor pelos meandros dos questionamentos de
Rushdie.
As manifestações do insólito em Midnight’s Children assumem diversas faces:
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aproximando-se do maravilhoso em alguns momentos, pendendo para o fantástico em


outros e, em algumas circunstâncias, revestindo-se da estranheza causada pela diferença
cultural.

As antecipações narrativas usuais surgem no romance com um caráter mágico. Ao


invés de usar o artifício do flashward, Rushdie confere às suas personagens habilidades
excepcionais. Naseem, a jovem pela qual o Dr. Aziz se apaixonara, por exemplo, com o
passar do tempo, transforma-se em uma matrona conservadora, dotada de uma estranha
habilidade: sonhar os sonhos das próprias filhas, a fim de vigiá-las.

Dentre outras manifestações do insólito, como o congelamento simultâneo dos


bens e dos testículos de Ahmed Sinai, surge aquela que dá titulo ao romance: a existência
dos Filhos da Meia-Noite.

O primeiro contato de Saleem Sinai com os Filhos da Meia-Noite é inesperado. Aos


dez anos, o protagonista e narrador é uma criança marcada pelo peso dos seus traços
físicos: olhos estranhamente azuis e um nariz exageradamente grande, que fazia seu rosto
lembrar um mapa da Índia. A consciência da própria feiúra, jamais esquecida pelos colegas
de escola, leva-o a esconder-se no cesto de roupa suja, único lugar em que consegue paz.

Um dia, estando em seu esconderijo habitual, ouve sua mãe atender uma chamada
telefônica e, em seguida, ela se tranca no banheiro, murmurando o nome de um homem
desconhecido. Um espirro de Saleem revela seu esconderijo e a punição é um dia de
completo silêncio.

Ao longo desse dia, Saleem ouve, pela primeira vez, um emaranhado de vozes, que
parecem vir de dentro de sua cabeça, e acaba por dizer à família que anjos têm vindo
conversar com ele. A família considera aquilo uma blasfêmia e seu pai bate tão fortemente
em sua cabeça que Saleem perde parte da audição, decidindo, a partir daí, manter o seu
dom oculto.

Na verdade, aquele dia marca o primeiro contato telepático de Saleem com os


outros filhos da meia-noite. O texto revela, mais uma vez, a relação da história pessoal do
narrador com a história do país, pois o narrador informa que, em 1956, houve uma
sucessão de passeatas dos cidadãos indianos a fim de que a capital pudesse ser dividida de
acordo com os dialetos do povo. Assim, as vozes que Saleem ouve, falando em diversos
dialetos, sugerem a multiplicidade em um momento histórico em que a Índia buscava a
unificação.

Telepatia, então: os monólogos interiores de todos os assim chamados


milhões fervilhantes, tanto de massas quanto de classes, lutavam por
espaço dentro da minha cabeça. No começo, quando eu me contentava
em ser platéia – antes que começassem a agir – havia um problema de
idioma. As vozes tagarelavam em todos os dialetos, desde os malayalam
até os do naga, desde a pureza do urdu de Lucknow até os anasalamentos
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meridionais do tâmil. Eu só entendia uma fração das coisas ditas dentro


das paredes de meu crânio. Só mais tarde, quando comecei a investigar,
foi que aprendi que, abaixo da superfície das transmissões – o material
que eu captara originalmente-, a linguagem se desvanecia, sendo
substituída por formas mentais universalmente ininteligíveis que
transcendiam em muito as palavras. (RUSHDIE, 2006, p.230)

Durante a primeira hora da independência indiana, 1001 crianças nasceram.


Quando Saleem estabelece contato com elas, aos dez anos de idade, restam apenas 581,
pois as demais haviam morrido. Em seu contato telepático com essas crianças, ele percebe
que a intensidade de seus poderes é proporcional à proximidade do horário de seu
nascimento com o momento da independência.

Entendam o que estou dizendo: durante a primeira hora de 15 de agosto


de 1947 – entre meia-noite e uma da manhã – nada menos que mil e uma
crianças nasceram dentro das fronteiras daquele incipiente Estado
soberano, a Índia (...) o que tornou o nascimento digno de nota foi a
natureza dessas crianças, cada uma das quais estava dotada, devido a
alguma aberração da natureza, talvez em virtude de alguma força
sobrenatural do momento, ou simplesmente por causa da coincidência
(muito embora uma sincronia em tamanha escala aturdisse até C. C.
Jung), de características, talentos, ou faculdades que só podem ser
descritos como miraculosos. Se me permitirem um instante de fantasia
neste relato, que em tudo mais será, prometo, o mais sóbrio que eu puder
fazer, foi como se a História, alcançando um ponto de suprema
significação e promessa, tivesse resolvido semear, naquele momento, os
germes de um futuro que diferisse, verdadeiramente, de tudo quanto o
mundo já vira até então. (RUSHDIE, 2006, p. 265)

Dentre os filhos da meia-noite havia quem tivesse dons especiais, como, por
exemplo, uma memória infinita e o dom de curar com a imposição de mãos. Eram aqueles
que tinham nascido a menos da meia hora do raiar do dia da independência.

Havia, no entanto, os filhos obscuros da meia-noite, que, por terem nascido nos
últimos minutos da primeira hora, tinham recebido características que eram mais um
castigo do que uma bênção: gêmeos siameses, com dois corpos e uma única cabeça, que
podiam falar alternadamente com voz masculina e feminina; mulheres barbadas; seres
desafortunados que teriam de carregar a marca do seu nascimento.

Aos que nasceram no primeiro minuto foram legados os melhores dons, como o de
produzir riqueza, de viajar no tempo, de fazer profecias e a arte da magia. Mas apenas duas
crianças, Saleem e Shiva, a criança cujo lugar ele ocupava, haviam nascido no momento
exato da independência. A Saleem coube o dom da telepatia e a Shiva o dom da guerra.

A reação dos pais de Saleem ante o seu dom revela a negação do insólito, bem
como a tentativa de explicar fato como sendo o produto da imaginação fértil de uma
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criança. No entanto, para Saleem, a existência das outras crianças é bem-vinda e aceita com
normalidade e ele passa a nomear a profusão de vozes que explodem em sua mente de
“Conferência dos filhos da meia-noite”. A experiência telepática revela-se mais ampla e
Saleem percebe que tem acesso irrestrito às mentes alheias, inclusive aos segredos de sua
mãe.

Como o narrador nos permite descobrir, cada fato acontecido em sua vida reflete
de alguma maneira na história política da Índia, seja de forma positiva ou negativa. Saleem
se considera uma criança especial, por ter seu dom especial, e acredita que sua Aliança com
as outras crianças mágicas pode mudar o destino da nação de maneira significativa.

Na mesma época, estabelece-se uma rivalidade entre Saleem e Shiva pela liderança
dos filhos da meia-noite. A conferência começa a desgastar-se quando seus membros
buscam o sentido de sua existência e acabam por adotar o comportamento preconceituoso
de seus familiares. A turbulência política que a Índia atravessa encontra eco no rompimento
da conferência dos filhos da meia-noite.

Por mais mágicos que sejam, os filhos da meia-noite não estão imunes
aos seus pais; e, à medida que os preconceitos e as concepções dos
adultos passaram a dominar suas mentes, passei a ver crianças de
Maharashtra detestando gujarátis, e n ortistas de pele clara injuriando os
“pretos” dravídicos; havia rivalidades religiosas; e a idéia de classe entrou
em nossos concílios (... ) A Conferência dos Filhos da Meia-Noite
cumpriu, assim, a profecia do primeiro-ministro e tornou-se com efeito,
um espelho da nação. (RUSHDIE, 2006, p.339)

A idéia de fragmentação que percorre todo o romance é mais uma vez evocada nas
dissensões que separam os filhos da meia-noite.

Um acidente faz com que Saleem seja levado para o hospital e necessite de sangue.
Ao tentar doar sangue para o filho, Amina e Ahmed descobrem que ele não pode ser seu
filho biológico. Assombrada pelo fantasma de seu amante, que busca descanso, Mary
Pereira decide revelar à família de Saleem que fizera a troca dos bebês.

A revelação é o estopim que provoca a separação dos pais de Saleem, que se vê


obrigado a mudar para o Paquistão com a mãe e a irmã, só retornando quatro anos depois.

A narrativa evolui, em seguida, para o episódio da guerra entre a Índia e o Paquistão


e a morte de quase toda a família de Saleem em um bombardeio. Atingido por uma
escarradeira de prata que fora de seu avô, Saleem perde a memória e é enviado ao exército
paquistanês para lutar na guerra contra a Índia.

Sobrevivendo aos combates, e ainda incapaz de lembrar seu nome, Saleem volta à
Índia. É durante um desfile de atrações que uma antiga amiga da Conferência dos Filhos da
Meia-Noite o reconhece e o chama pelo nome há tanto esquecido. Saleem passa a viver em
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Nova Deli, no gueto dos mágicos, junto com a feiticeira Parvati e Singh da Fotografia,
depois de passar quatrocentos e vinte dias de luto (quarenta dias para cada pessoa da
família que havia morrido) na casa de seu tio Mustapha.

Parvati nutre por Saleem um amor não correspondido e decide vingar-se dele tendo
um filho de Shiva, seu maior adversário. Abandonada pelo amante, Parvati acaba por ser
amparada por Saleem, que sabe ser a criança que ela espera um descendente verdadeiro da
família que o acolheu.

O trabalho de parto de Parvati é simultâneo às manifestações e crises


governamentais, e seu filho, Aadam Sinai, nasce no instante em que é declarado o estado de
emergência na Índia. Uma vez mais o insólito é entrelaçado às narrativas da história, sem
que, no entanto, o texto sugira as relações paralelas que são comuns às alegorias. Ao
contrário, Rushdie cria uma relação de causa-e-efeito, como se os fatos ocorridos em uma
das histórias, seja a de Saleem ou a da nação, refletisse de maneira trágica na outra.

Nesse ínterim, o gueto é invadido, Parvati é assassinada e seu filho desaparece.


Saleem é aprisionado e obrigado a revelar o esconderijo de todos os filhos da meia-noite,
que são cruelmente esterilizados. Ao serem esterilizados, os filhos da meia-noite perdem os
seus poderes mágicos. Novamente, a ficção dialoga com a história, pois em 1975, Indira
Ghandi ordenou a esterilização forçada da população, suspendendo os direitos civis do
povo.

O filho de Saleem é, finalmente, encontrado. É um bebê com orelhas


exageradamente grandes, simbolicamente capaz de ouvir a história narrada por seu pai.

A morte persegue Saleem de perto, com a mesma doença que matou seu avô,
Aadam Aziz, uma espécie de lepra nos ossos, e o personagem se vê obrigado a escrever
para que o filho não corra o risco de crescer sem saber quem foi seu pai e o que lhe
aconteceu. Quem ouve atentamente a narrativa de Saleem é Padma, uma funcionária da
fábrica de picles, semi-analfabeta, que se apaixona pelo personagem-narrador e sonha com
um possível casamento. Padma sofre e se emociona com as desventuras da família
Sinai/Aziz, e termina como a platéia de Saleem, antes que seu filho possa sê-lo.

A primeira palavra dita pelo filho de Saleem é “Abracadabra”, que vem a ser o título
do último capítulo e que sintetiza toda a magia que circunda a narrativa. O romance
termina com o narrador afirmando que terá de escrever o futuro, assim como escreveu o
passado, com a absoluta certeza de um profeta, e passa a descrever o momento em que,
como em um passe de mágica, se desintegrará em milhões de pedaços.

Midnight’s Children reflete uma tensão política que sempre esteve associada à história
da Índia e à sua diversidade. A constituição indiana reconhece a existência de 22 idiomas
oficiais e a prática religiosa é também das mais variadas. A cultura indiana é híbrida e ainda
sofre até os dias de hoje as conseqüências da problemática imposta pela partição, que
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dividiu o país em Paquistão, nação muçulmana, e a atual Índia, de religião hindu.

A divisão política é um exemplo do desejo de suprimir a pluralidade cultural


indiana, representada no romance pelos filhos da meia-noite. Tendo nascido no momento
da independência, Saleem é, de certo modo, o símbolo da tentativa de unificação de algo
que, pela própria natureza, é plural. Sua fragmentação ao final é apoteótica e reveladora.

A idéia de fragmentação que perpassa o romance apresenta-se, pois, como uma


mensagem subliminar que pode ser depreendida a partir do símbolo em que o lençol
perfurado se torna. Se existe a possibilidade de, por meio das partes, visualizar o todo, isto
é, se reconhecendo a diversidade cultural indiana pode-se chegar à concepção da Índia
enquanto país; também se torna necessário admitir que a unificação não implica a negação
dessa diversidade, e sim o seu reconhecimento e aceitação.

Em Midnight’s children o insólito aponta para o fato de que a realidade é uma questão
de perspectiva. Ao contaminar os dados historiográficos com a fantasia, alterando-os,
Rushdie cria um terreno fértil para a aceitação do insólito como verossímil, bem como
interroga a historiografia.

Para Rushdie, a verdade da memória é licenciosa, “seleciona, elimina, altera,


exagera, simplifica, glorifica e também denigre; mas no fim cria sua própria realidade, sua
versão heterogênea, mas, em geral, coerente dos acontecimentos” (RUSHDIE, 2006, p.
284).

O narrador do romance chega ao fim do seu relato sem cumprir seu propósito de
“fidelidade aos fatos”, pois, ao pressupor que sua história tem uma relação intrínseca com a
de seu país, ele revela que os acontecimentos empíricos são passíveis de uma visão
subjetiva, e que o conceito de verdade é sempre múltiplo e fugaz.

Referências bibliográficas

ARRUDA, José J. de A. História Moderna e Contemporânea. São Paulo: Ática, 1980.


NIETZSCHE, F. Sobre o uso e o abuso da história na vida. 1873
Disponível em:
http://www.scribd.com/doc/7183375/Nietzsche-Friedrich-No-Uso-e-Abuso-Da-Historia-
Para-a-Vida Acesso: 29/03/2009
RUSHDIE, Salman. Imaginary Homelands. Essays and criticism 1981-1991.Londres: Granta
Books, 1991.
______Os filhos da meia noite. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

[1] RUSHDIE, S. (1991) p. 25.


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CORDIALIDADE E NEPOTISMO: UMA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA

Thiago Abreu de Figueiredo


Chefe do Departamento Escolar da
Escola de Aprendizes-Marinheiros do Ceará (EAMCE)
Pesquisador-colaborador
Núcleo de Pesquisas em Ciências Humanas (NUPECH)
Universidade de Fortaleza (UNIFOR).

Resumo
A teoria da cordialidade brasileira não se explica por si mesma, e essa é uma
reflexão marcada, historicamente, pela polêmica. Desenvolvido a partir da noção de
“homem cordial”, expressão criada por Rui Ribeiro Couto e utilizada por Sérgio Buarque
de Holanda, o conceito necessita de análises acuradas para sua compreensão. Para Holanda,
dentre outros aspectos, ela possuiria características transitórias e tenderia a desaparecer das
relações formais no país. Porém, os exemplos de cordialidade na sociedade brasileira
parecem contrariar as previsões do historiador. Observa-se uma persistente presença desta
cordialidade que seria manifestada pela prática do nepotismo. Este trabalho tem o objetivo
de lançar luzes sobre a relação entre cordialidade e o nepotismo bem como verificar o nível
de aceitação desta prática pela sociedade brasileira. Para tanto, realizou-se uma reflexão
sobre o conceito de cordialidade sob as óticas de Ribeiro Couto e a de Holanda.
Posteriormente, abordou-se o conceito de nepotismo e foram apresentadas algumas
informações coletadas sobre o tema no país. Para então, mostrar e analisar os dados
coletados, através de uma pesquisa empírica tendo como público alvo os funcionários da
Universidade de Fortaleza.
Palavras-chave: cordialidade; nepotismo; Sérgio Buarque de Holanda.

Abstratct
The theory of brazilian cordiality not explain itself, and this is a reflection marked,
historically, by the controversy. Developed from the concept of "cordial man", an
expression created by Rui Ribeiro Couto and used by Sérgio Buarque de Holanda, the
concept requires accurate analysis for your understanding. For Holanda, among other
things, it would have transitional characteristics and tend to disappear from the formal
relations in the country. However, examples of cordiality in brazilian society seem counter
the predictions of the historian. There is a persistent presence of cordiality that would be
manifested by the practice of nepotism. This work aims to throw light on the relationship
between cordiality and nepotism as well as ascertain the level of acceptance of this practice
by brazilian society. For both, a reflection on the concept of cordiality under the optic of
Ribeiro Couto and Holanda. Subsequently, discussed the concept of nepotism and were
given some information collected on the subject in the country. To then display and analyze
data collected through an empirical research with the target audience of the officials of the
University of Fortaleza.
Keywords: cordiality; nepotism; Sérgio Buarque de Holanda.
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1 – Introdução

Engana-se quem pensa que a teoria da cordialidade brasileira, nas ciências humanas,
explica-se por si mesma. Ao contrário, essa é uma reflexão marcada pela polêmica e pela
própria cordialidade, desde os anos de 1930. Desenvolvido a partir da noção de “homem
cordial”, expressão tomada emprestada pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-
1982) ao poeta e embaixador Rui Ribeiro Couto (1898-1963), o conceito já nasceu
polêmico. As dificuldades de interpretação, intrínsecas ao conceito, aqueceram as contendas
político-culturais que perduraram na década de 1940 e em meio a debates suscitados pela 2ª
edição de sua obra Raízes do Brasil, Holanda publicou em 1948, uma carta na qual ressalta a
historicidade da cordialidade:

“Por fim quero frisar, ainda uma vez, que a própria cordialidade não me
parece virtude definitiva e cabal que tenha de prevalecer
independentemente das circunstâncias mutáveis de nossa existência [...].
Com a progressiva urbanização [...] o homem cordial se acha fadado
provavelmente a desaparecer, onde ainda não desapareceu de todo."
(Holanda, 1990, p.145-146)

Passados sessenta anos, os exemplos de cordialidade na sociedade brasileira


parecem persistir e contrariar as previsões do historiador de que tal fenômeno tenderia a
desaparecer das relações formais. Observa-se nas esferas da vida pública uma persistente
presença desta cordialidade, que seria manifestada, dentre outras formas, pela prática do
nepotismo que afronta a afirmação da meritocracia. Mesmo combatida por setores da
sociedade a prática estaria consolidada em todos os poderes da República.

Esta tese nos remete aos seguintes questionamentos: seria o nepotismo brasileiro
uma manifestação da cordialidade conforme descrita por Holanda em Raízes do Brasil? Por
que o nepotismo ainda não foi erradicado da vida pública nacional? Seria porque a
sociedade, a despeito da grita de algumas vozes esparsas, ainda o referenda? Qual o grau de
aceitação pela sociedade brasileira da prática nepotista?

Este trabalho tem o objetivo de lançar luzes sobre estas questões. Para tanto,
realizar-se-á uma breve comparação entre o conceito de cordialidade sob a ótica de Ribeiro
Couto e a de Holanda, a partir dos textos destes autores da década de 1930.
Posteriormente, será abordado o conceito de nepotismo e apresentadas informações
coletadas sobre o tema no país, para então, mostrar e analisar os dados coletados, através de
uma pesquisa empírica, tipo enquête (survey), quantitativa e qualitativa de campo, tendo
como público alvo os funcionários da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), cuja
finalidade foi apreciar o grau de aceitação à prática do nepotismo.

2 – Metodologia

O trabalho foi dividido em duas etapas: inicialmente foi realizada uma pesquisa
documental a partir de textos de Rui Ribeiro Couto e Sérgio Buarque Holanda sobre o
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conceito de cordialidade e as diferentes abordagens do assunto, com o intuito de se


verificar se o nepotismo seria uma das manifestações da cordialidade brasileira. Em um
segundo momento realizou-se uma pesquisa documental sobre a história do nepotismo
tanto no Brasil quanto em alguns outros países, para se obter alguns parâmetros para
comparação sobre esta prática. Finalmente, realizou-se uma pesquisa empírica do tipo
enquête, quantitativa e qualitativa de campo, no período de 10 a 28 de abril de 2008, cujo
público alvo foram os funcionários da UNIFOR. Pesquisa composta de um questionário
com duas perguntas abertas, o qual foi enviado e respondido por e-mail.

3 – Resultados e discussão

3.1 – Cordialidades à brasileira

É possível entender a polêmica em torno da teoria da cordialidade brasileira examinando,


muito sinteticamente, o sentido dela nos textos que fundam o debate.

3.1.1 – Ribeiro Couto e seu Homem Cordial

Ribeiro Couto passou parte de sua vida na França, país no qual exerceu a função de
embaixador. Lá, recebeu do amigo Manuel Bandeira os três primeiros números da revista
Monterrey: Correo Literario de Alfonso Reyes, editada pelo próprio. Espontaneamente, segundo
Élvia Bezerra, ele escreveu a D. Alfonso cumprimentando-o pela revista. Nessa carta surge
pela primeira vez a expressão “Homem Cordial”. A carta está em Bezerra (2005, p.125-126,
grifo nosso), num elegante artigo intitulado “Ribeiro Couto e o Homem Cordial”.
“[...] É da fusão do homem ibérico com a terra nova e as raças primitivas, que deve sair o
‘sentido americano’(latino), a raça nova produto de uma cultura e de uma intuição virgem
— o Homem Cordial. Nossa América, a meu ver, está dando ao mundo isto: o Homem
Cordial. O egoísmo europeu, batido de perseguições religiosas e catástrofes econômicas,
tocado pela intolerância e pela fome, atravessou os mares e fundou ali, no leito das
mulheres primitivas e em toda vastidão generosa daquela terra, a Família dos Homens
Cordiais, esses que se distinguem do resto da humanidade por duas características
essencialmente americanas: o espírito hospitaleiro e a tendência à credulidade. [...] Somos
povos que gostam de conversar, de fumar parados, de ouvir viola, de cantar modinhas, de
amar com pudor, de convidar o estrangeiro a entrar para tomar café, de exclamar para o
luar em noites claras, à janela: — Mas que luar magnífico! Essa atitude de disponibilidade
sentimental é toda nossa, é ibero-americana... Observável nos nadas, nas pequeninas
insignificâncias da vida de todos os dias, ela toma vulto aos olhos do crítico, pois são
índices dessa Civilização Cordial que eu considero a contribuição da América Latina ao
mundo.”
Marselha, 7 - III – 931

Ribeiro Couto
A cordialidade de Ribeiro Couto é uma construção identitária feita de hospitalidade,
credulidade e contemplação. Oposta ao que seria uma identidade européia feita de
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suspicácia (do lat. suspicace: desconfiança), de egoísmo do lar fechado a quem passa e de
intolerância.

3.1.2 – A cordialidade em Sérgio Buarque de Holanda

A idéia de “Homem Cordial”, em Holanda, aparece pela primeira vez no ensaio


Corpo e Alma do Brasil (1935) publicado na Revista Espelho. Depois, em 1936, assume a
forma do capítulo 5 de Raízes do Brasil.

A cordialidade é um enunciado que deriva da origem do Estado, ou a


institucionalização da ordem pública, em oposição à ordem doméstica, não instituída como
um sistema de normas legais. “O Estado não é uma ampliação do círculo familiar. [...] Não
existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e
até uma oposição”. Por isso, citando Antígona de Sófocles, escreve: “E todo aquele que
acima da Pátria | Coloca seu amigo, eu o terei por nulo”. (HOLANDA, 1995, p. 141).

Para o historiador a cordialidade é caracterizada por:

“A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas


por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço
definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece
ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano,
informados no meio rural e patriarcal. Seria um engano supor que essas
virtudes possam significar ‘boas maneiras’, civilidade. São antes de tudo
expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e
transbordante. [...] Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo,
justamente o contrário da polidez”. (HOLANDA, 1995, p.146-147 e
p.204-205, grifo nosso).

Holanda não se opõe a Ribeiro Couto. Ele vê na cordialidade uma conseqüência


ruim dessa manifestação como a eliminação deliberada dos juízos éticos. A cordialidade
brasileira é a primazia da emoção no trato com a esfera pública e privada. Ela passa ao lado
o que é certo e justo através dos atalhos das “técnicas de bondade”.

“[...] a palavra ‘cordial’ há de ser tomada, neste caso, em seu sentido


exato e estritamente etimológico [...] e se antepõe à cordialidade assim
entendida o ‘capital sentimento’ dos brasileiros, que será a bondade e até
mesmo certa ‘técnica da bondade’, ‘uma bondade mais envolvente, mais
política, mais assimiladora’[...] pela expressão ‘cordialidade’, se eliminam
aqui, deliberadamente, os juízos éticos e as intenções apologéticas [...]
essa cordialidade, estranha, por um lado, a todo formalismo e
convencionalismo social, não abrange, por outro, apenas e
obrigatoriamente, sentimentos positivos e de concórdia. A inimizade
bem pode ser tão cordial como a amizade [...]”.
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Para Cardoso (1993, p.28-29),

“[...] Sérgio está fazendo uma crítica, e não o endeusamento das ‘virtudes
brasileiras’, porque o homem cordial, para ele, é o homem do coração,
que se opõem ao homem da razão e cordial não quer dizer ‘bom’, quer
dizer da ‘emoção’ e a emoção perturba o estabelecimento das regras
gerais, formais, democráticas. [...] Com o conceito, [ele] [...] está
mostrando que esta ‘cordialidade’, na verdade, é uma maneira de reter
vantagens individuais”.

A cordialidade vislumbrada pelo historiador produz empecilhos à afirmação do


formalismo como ferramenta democrática de acesso meritório aos melhores postos. Neste
sentido, o nepotismo poderia ser considerado uma manifestação desta cordialidade
buarquiana. A questão era atual no Brasil da década 1930 e permanece válida nos
primórdios do século XXI. Os casos de nepotismo presentes em todos os poderes da
República não nos permitem inferir de forma contrária

3.2 – O nepotismo como sinal da cordialidade

O conceito de nepotismo antecede à cordialidade. Para Bellow (2003), o termo tem


sua origem no século XIV e foi utilizado para descrever a escolha dos cardeais na Igreja
Católica Romana. O cardinalício era reservado, normalmente, a parentes do Papa, muito
dos quais seus filhos ilegítimos. Posteriormente, por nepotismo, passou-se a designar a
prática, tida como injusta, de dar preferência a parente em detrimento de outrem mais
gabaritado. Para Bobbio, Matteucci e Pasquino (1998, p.291-292), o nepotismo é um dos
três tipos de corrupção e caracteriza-se como “[...] concessão de empregos ou contratos
públicos baseado não no mérito, mas nas relações de parentela”.

Não obstante a longevidade da prática nepotista, poucas pesquisas foram


produzidas tendo o nepotismo como objeto. Sabe-se apenas, que a prática estaria presente
em todos os níveis e em todas as sociedades, independentemente de suas ideologias ou
sistemas políticos. Esta afirmação de Bellow (2003) é verificável, pelo menos no caso das
prefeituras municipais brasileiras.

De fato, os dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística


(IBGE) indicam que o nepotismo é vastamente difundido. Nos 5.564 municípios
brasileiros trabalhariam um total de 380.629 funcionários em cargos de confiança
subordinados ao Poder Executivo. Não existem dados fidedignos sobre estes tipos de
cargos nas demais níveis do poder. Apesar disto, órgãos de imprensa, como o jornal O
Estado de São Paulo, estimam em até 170 mil, os funcionários nestas condições, nas esferas
estadual e federal, em todos os poderes da República.

Como fator de comparação, elenca-se o caso dos Estados Unidos, no qual a


existência de um número bastante modesto de cargos de confiança no Executivo federal,
algo em torno de 2 mil, deixa diminutas as chances à prática de nepotismo. Naquele país, o
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denominado US Code, texto que abriga o regimento do serviço público, em seu capítulo 5,
determina que um funcionário público não pode nomear, empregar, promover ou defender
a nomeação e promoção de parentes na mesma agência em que trabalha ou sobre a qual
tem jurisdição. Estas barreiras impostas não impedem, entretanto, que homens públicos
empreguem parentes em suas equipes de trabalho. Mas tal prática é realizada,
aparentemente, às claras, e sob os olhares atentos da sociedade, diferentemente do que
ocorre no Brasil.

Por aqui, o nepotismo é utilizado, amplamente, desde os primórdios da República,


para fins político-eleitorais. Assim, desde de 1889, assiste-se a uma troca de funcionários
públicos quando da permuta dos partidos políticos no poder. Este processo de substituição
de mão-de-obra já foi mais radical, até que, a criação do Departamento Administrativo do
Serviço Público (DASP), em 1938, e a instituição da obrigatoriedade do concurso público,
impuseram um freio à prática nepotista, limitando-a aos cargos de confiança. Mesmo assim,
o número presumido de funcionários não concursados, nas autarquias federais é
considerado, por especialistas, ainda bem elevado.

Em toda democracia institucional existem cargos comissionados. A dificuldade é a


imposição de limites a eles. A Constituição Federal de 1988, em seu capítulo VII, artigo 37,
manteve uma lacuna que é utilizada como mecanismo para burlar a obrigatoriedade do
concurso público. Determina-se que as nomeações devam atender a princípios de “[...]
impessoalidade, moralidade e competência [...] ressalvadas as nomeações para cargo em
comissão [...]”, sem impor limites definidos.

Apesar de esforços como o do Supremo Tribunal Federal (STF) que considera,


desde agosto de 2008, a prática do nepotismo ofensiva aos princípios constitucionais da
moralidade e da impessoalidade, parece-me existir uma indiferença diante do tema, que
mesmo exposto, amiúde, pela imprensa nacional, não tem obtido ressonância junto à
sociedade.

Adiante, procurar-se-á mostrar, através de dados coletados na pesquisa, que um dos


motivos deste possível desinteresse e da consequente falta de vontade política de enfrentar
o nepotismo, pode advir do fato dele ser referendado pela sociedade brasileira.

3.3 – A pesquisa

A pesquisa foi aplicada entre os dias 10 a 28 de abril de 2008. Foi elaborado um


questionário, o qual foi enviado, por correio eletrônico, a todos os professores e
funcionários da UNIFOR. Desses, a metade é professor com mestrado e/ou doutorado. A
outra metade tem curso superior. Neste questionário constavam duas perguntas abertas:
1.Qual sua cidade natal? 2.Se você fosse Prefeito(a) de sua cidade você daria emprego a
parentes em sua administração?
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Responderam ao questionário 171 professores e funcionários, numa amostra de


cerca de 7% do total de funcionários empregados na UNIFOR. Esta amostra probabilística
tem um erro de 7% para mais ou para menos. As respostas foram separadas, para melhor
análise dos dados coletados, em função dos municípios natais dos respondentes.

3.3.1 – Apresentação de resultados


Tabela 1 – Distribuição das respostas por tamanho da pop. dos municípios
População SIM NÃO
Qte respostas Taxa (%) Qte respostas Taxa (%)
De 20.001 a 50.000 10 67 5 33
De 50.001 a 100.000 9 60 6 40
De 100.001 a 500.000 6 55 5 45
Acima de 500.000 68 52 62 48
Fonte: própria pesquisa

Observa-se na tabela 1 que dos 171 respondentes, a imensa maioria, ou seja, 130
respostas, informou que possuía como cidade natal municípios acima de 500 mil habitantes.
Tal resultado já era esperado pelo fato da universidade, local de aplicação dos questionários,
localizar-se na cidade de Fortaleza-CE, a qual possui, segundo dados da Contagem da
População 2007 do IBGE, 2.431.415 habitantes. Os demais respondentes (41) dividiram-se,
praticamente, na mesma proporção entre as outras faixas municipais. Não houve
respondentes de cidades natais menores que 20 mil habitantes.

Nota-se que em todas as faixas, a taxa percentual de respostas “SIM” foi superior a
correspondente taxa de “NÃO”, aqui consideradas como respostas afirmativas todas as
demais que não as explicitamente contrárias à prática do nepotismo. Esta constatação nos
leva a inferir que a prática do nepotismo é referendada no universo selecionado,
independentemente do município de origem.

Apesar da aceitação geral da prática nepótica, é relevante igualmente mostrar o


gradual aumento da taxa de respondentes contrários ao nepotismo com o acréscimo da
população dos municípios: 33%, 40%, 45% e 48%, o que corroboraria o exposto por
HOLANDA (1990) ao afirmar que a progressiva urbanização tenderia a fazer desaparecer
as manifestações de cordialidade, tendência que parece existir, apesar dos números não
permitirem uma conclusão cabal.
Tabela 2 – Distribuição total das respostas
Tipo de resposta Qte respostas Taxa (%)
Sim 36 21
Sim com justificativa 53 31
Não 74 43
Não sabe ou não respondeu 8 5
Fonte: própria pesquisa
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Na tabela 2 o quantitativo de respostas negativas à questão formulada supera o de


respostas afirmativas numa proporção de 43% a 21%. A proporção se inverte para 52% a
43%, quando somadas ao “SIM” puro e simples, as respostas afirmativas, porém
justificadas. Donde se pode inferir, que na amostra, as pessoas admitem a prática do
nepotismo, conforme descrito anteriormente, ainda que ressalvadas algumas condições que
serão aprofundadas na tabela 3.

É importante ressaltar também, que não houve respostas justificadas para aqueles
optaram por responder negativamente à opção pelo nepotismo. De maneira oposta houve
uma maioria de respostas “SIM” justificadas, quando comparadas àqueles que optaram por
uma resposta afirmativa simples (proporção de 31% a 21%). Pode-se supor, que a prática
nepotista, ainda que aceita pela maioria, é recriminada por parcela significativa da
sociedade, como os órgãos imprensa, por exemplo, o que poderia ocasionar um certo
incômodo aos respondentes ao optar pelo “SIM”, e os conduziria a uma necessária
justificativa para sustentar sua opção.

Tabela 3 – Distribuição das respostas afirmativas justificadas

Tipo de justificativa Qte respostas Taxa (%)


Sim, desde que houvesse competência para o cargo. 36 68
Sim, dentro da legalidade. 7 13
Sim, desde que houvesse confiança. 7 13
Sim, desde que houvesse competência e dentro da legalidade. 3 6
Fonte: própria pesquisa

Competência foi citada por 74% dos respondentes como necessária para a
concessão do emprego público. Seguida pela legalidade com 19%. O predicado confiança
obteve somente 13%.

Apesar da primazia da competência sobre os demais predicados, nenhuma das


repostas “SIM” justificadas citou outra maneira de verificação da capacidade do candidato
diversa da existente por meio do concurso público. Quanto à legalidade, o artigo 37 da
Carta Magna não estabelece limites ao número de cargos comissionados, desta forma, a
priori, todas as contratações seriam legais, o que não atenuaria a tendência de cada
respondente à prática nepotista.

O predicado confiança talvez seja, dentre os citados, aquele que mais se aproxime
da cordialidade sob a ótica buarquiana. Afinal, como aferir o grau de confiança despertado
em outrem? A confiança, ou a falta dela estaria, portanto, ligada, em princípio, a práticas
cordiais que prescindem da racionalidade.
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4 – Conclusão

Realizar um estudo empírico sobre a cordialidade brasileira possui complicações em


virtude da dificuldade em mensurá-la. Desta forma, fez-se necessário, para implementar a
pesquisa, lançar mão de uma de suas possíveis manifestações: o nepotismo. Tal constatação
foi auferida após pesquisa documental (com textos de Ribeiro Couto e Holanda) e empírica
(tipo enquête com funcionários da UNIFOR). A primeira parte do trabalho ofertou os
elementos para se pensar o nepotismo como uma manifestação desta cordialidade.
Portanto, através dele poderíamos determinar se a sociedade brasileira seria ou não cordial
tal qual conceituou Holanda. Aspecto constatado na pesquisa de campo, haja vista que no
universo selecionado 52% da amostra admitiu a possibilidade de empregar parentes no
serviço público, contra 43% que refutaram tal prática, isto, independentemente, do
tamanho da população dos municípios de origem dos pesquisados. Portanto, tomando
como parâmetro os pesquisados neste estudo, é possível se inferir que a cordialidade ainda
se faz presente na sociedade brasileira a despeito das previsões de Holanda em 1948.

Referências

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O FUNCIONAMENTO DA MEMÓRIA DISCURSIVA EM


A SECOND LIFE PETISTA[1]

Welisson Marques[2]
Professor da UFTM – Universidade Federal do Triângulo Mineiro e da
Universidade de Uberaba em Língua Inglesa e Lingüística
Mestrando em Estudos Lingüísticos – Universidade Federal de Uberlândia - MG

O enunciado circula, serve, se esquiva, permite ou impede a


realização de um desejo, é dócil ou rebelde a interesses, entra na
ordem das contestações e das lutas, torna-se tema de apropriação ou
de rivalidade. (FOUCAULT, 1995)

E digam o que disserem, na vida científica os problemas não se


formulam de modo espontâneo. É justamente esse sentido do problema
que caracteriza o verdadeiro espírito científico. Para o espírito
científico, todo conhecimento é resposta a uma pergunta. Se não há
pergunta, não pode haver conhecimento científico. Nada é evidente.
Nada é gratuito. Tudo é construído. (BACHELARD, 1996, p.
38).

Resumo
Este artigo, vinculado ao projeto de Pesquisa: “A CONSTITUIÇÃO DO(S) SUJEITO(S)
NAS INSCRIÇÕES ENUNCIATIVAS DA REVISTA VEJA NO DISCURSO POLÍTICO AO
SIGNIFICAREM O PARTIDO DOS TRABALHADORES”, do Curso de Mestrado em
Lingüística da Universidade Federal de Uberlândia, se propõe a fazer uma breve análise de um
artigo publicado na revista Veja acerca do Partido dos Trabalhadores em 12/09/2007. Nosso
trabalho está pautado no construto teórico da Análise do Discurso de vertente francesa, voltando-
se principalmente para as noções de sujeito e sentido discursivos propostos por Pêcheux (1997), das
noções de heterogeneidade enunciativa segundo Authier-Revuz (2004), dos conceitos de memória e
intericonicidade segundo Courtine (2006), utilizando ainda os conceitos de polifonia e dialogismo
de Bakhtin. Este trabalho voltar-se-á para uma breve análise, apresentando conclusões parciais.
Palavras-chave: Análise do Discurso, Discurso Político, Revista Veja, PT

Abstract
This paper is connected with the project of research “THE CONSTITUTION OF THE
SUBJECT(S) IN VEJA MAGAZINE IN THE POLITICAL DISCOURSE WHEN HE/THEY
MEAN(S) THE BRAZILIAN LABOUR PARTY” of the Course of Federal Universtiy of
Uberlândia and proposes to make a short analysis of an article published in Veja magazine about
the Brazilian Labour Party on 12th September 2007. Our work is based mainly on the authors of
French Discourse Analysis, using the notions of subject and discursive meaning proposed by
Pêcheux (1997), the concepts of heterogenity according to Authier-Revuz (2004), the concepts of
memory and intericonicity following Courtine’s reflections (2006), and also using the concepts of
polifony and dialogism in Bakhtin (2002). This work focuses on a brief analysis bringing partial
conclusions.
Key-words: Discourse Analysis, Political Discourse, Veja Magazine, PT (Labour Party)
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1 – À guisa de introdução

Tencionamos neste artigo realizar, após uma exposição dos postulados teóricos de
base, a análise de alguns recortes de uma reportagem publicada na Revista Veja em
12/09/2007 intitulada A Second-Life Petista - Pelas idéias delirantes e pela tese de que o mensalão não
existiu, o congresso do PT parece coisa do mundo virtual, que trata da temática Partido dos
Trabalhadores vinculada à nossa Dissertação de Mestrado.

2 – Fundamentação Teórica

O primeiro pilar do nosso arcabouço teórico, sobre o qual gostaríamos de refletir, é


o de Memória Discursiva. Memória não se refere às lembranças que um indivíduo tem do
passado. Segundo Courtine, o termo “memória discursiva” designa algo distinto de
qualquer lembrança ou memorização psicológica. Tal noção diz respeito à “existência
histórica do enunciado” no interior de práticas discursivas que são reguladas por aparelhos
ideológicos. Ou seja, um texto se inscreve em uma Formação Discursiva (FD, doravante)
em função de uma memória discursiva que retoma e do qual é parte.

Sendo assim, quando uma determinada análise é realizada sob a ótica da Análise do
Discurso de vertente francesa e, mais especificamente, nessa perspectiva de memória
discursiva courtiniana, necessário é olhar para o aspecto histórico-social, para os elementos
constitutivos da materialidade lingüística que se vinculam a FDs específicas: “O domínio de
memória é constituído, assim, por um conjunto de seqüências que preexistem a um certo
enunciado” (Possenti, 2004). Ou seja, a memória implica uma relação da linguagem com a
história e pensá-la requer observar as relações conflituosas dos aspectos de historicidade
com os processos da linguagem.

Ainda trabalhando as conceituações de memória, Pêcheux (1990) a define como


“um conjunto complexo, pré-existente e exterior ao organismo, constituído por uma série
de ‘tecidos de índices legíveis’, que constitui um corpo sócio-histórico de traços” (1990,
162).
Isto posto, entendemos que realizar uma análise sob tais perspectivas rompe com a
tradição de análise de conteúdo. O que importa para a Análise do Discurso (AD) não é
simplesmente explicar o que um texto contém ou quais informações o constituem, próprio
das teorias da informação, mas sim que os enunciados fazem parte da história, retomam
uma memória e que, em uma instância de enunciação específica, o enunciador vincula-se a
uma FD específica.

Concernente à relação história e memória, podemos sempre afirmar que há uma


ligação íntima entre as duas. É impossível desvincular uma da outra, pois a primeira é
constitutiva da segunda. Foucault (1995) apresenta a noção de ruptura como forma de
compreender como os processos históricos são descontínuos. Essa descontinuidade
histórica deslocada para a análise do discurso ajuda-nos a compreender os sentidos dos
enunciados que, muitas vezes, são interpretados analisando o sócio-histórico, que não é
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linear, mas descontínuo e marcado por rupturas.

Segundo esse mesmo autor, ruptura significa instaurar uma problemática nova ou
uma mudança epistemológica. A título de exemplificação podemos utilizar as próprias
conceituações relativas à AD, que rompem com várias concepções da lingüística, como, por
exemplo, a do enunciado como sendo um propósito do autor, ou em relação ao sujeito que
é denominado, em algumas lingüísticas textuais emissor, falante, produtor, sujeito empírico,
etc. ou mesmo em relação ao sentido proposto pela filologia como sendo único e
transparente. A AD rompe com estas e outras concepções.

A AD rompe com o conceito de sentido dos enunciados como algo imanente,


assim como ele é prescrito pelos dicionários. Para que os compreendamos, é necessário
olhar para a história, como afirmado anteriormente, para os acontecimentos e os discursos
produzidos na e pela história como forma de compreender suas formações, suas
vinculações às entidades e grupos sociais e conseqüentemente às ideologias que interpelam
tais discursos. Foucault (1995) propõe o método arqueológico como forma de interpretar
os sentidos e podemos, grosso modo, resumir sua tese como uma proposta de explicitar a
produção histórica do enunciado. Em relação ao método arqueológico, Gregolin (2004a)
elucida o pensamento foucaultiano:

[...] por meio da exposição dos conceitos envolvidos na análise


arqueológica, Foucault mostra sua compreensão das relações que os discursos
estabelecem com os sujeitos, com a História, com as práticas discursivas. Por serem
produto dessas práticas, as maneiras de se utilizarem as possibilidades do
discurso são reguladas, regulamentadas: não se pode, absolutamente, falar de
uma coisa qualquer num lugar e tempo qualquer. Há, sempre, que se submeter à
ordem do discurso. (GREGOLIN, 2004a, p. 96, grifos nossos).

Gregolin (2004b), ainda falando de Foucault, pontua que:

[...] Foucault parte do primado da relação: as coisas só existem por


relação, tudo é histórico, tudo depende de tudo (e não unicamente das
relações de produção), explicar um objeto consiste em mostrar de que
contexto histórico ele depende. Por isso, o discurso é o que realmente é
dito, sem que o sujeito saiba que está dizendo outros sentidos do dizer
(...) podemos pensar, com Foucault, que a produção dos sentidos é uma
luta discursiva travada na trama tênue do tecido histórico de uma
sociedade. (GREGOLIN, 2004b, p. 41).

Foucault (1995) se aproxima muito das concepções da nova história. Na Arqueologia


do Saber, ele se afasta das noções de linearidade e continuidade advindas da História
tradicional e apresenta os conceitos de descontinuidade, transformação e ruptura,
conforme mencionado anteriormente, entre outros conceitos que são basilares em sua
proposta para analisar o(s) discurso(s).

Mas o que vem a ser essa nova história? Segundo Burke (1992) essa nova história
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traz uma transformação (talvez uma ruptura?) no paradigma historiográfico. Há uma


mudança de abordagens em analisar a história. A história diz respeito não somente à
política, mas a toda atividade humana. “O que era previamente considerado imutável é
agora encarado como uma construção cultural sujeita a variações, tanto no tempo quanto
no espaço” (BURKE, 1992, p. 11). Nessa nova perspectiva, percebemos uma preocupação
em ver a história em sua totalidade e não somente narrativas contadas “de cima para
baixo”. Analisar a cultura popular agora é também relevante em oposição à focalização
unilateral de grandes feitos. Segundo a perspectiva tradicional os documentos oficiais eram
colocados em um patamar acima de outras fontes, agora se busca uma maior variedade de
evidências. De uma visão objetiva, volta-se para a heteroglossia.

Certeau (2002), ao referir-se aos discursos, os define como históricos porque estão
“ligados a operações e definidos por funcionamentos” e ainda que “também não se pode
compreender o que dizem independentemente da prática de que resultam”. (CERTEAU,
2002, p. 32). Ora, é justamente essa relação do discurso com a história que são expostas por
Foucault em sua Arqueologia e que influenciaram (ou inquietaram?) Michel Pêcheux
posteriormente e, conseqüentemente, a AD como um todo. Os discursos nunca mais
seriam analisados da maneira anterior.

Em suma, é impossível pensarmos o discurso desvinculando-o de suas condições


de produção, dos acontecimentos históricos, uma vez que para analisarmos o objeto da AD
faz-se necessário olhar para a “a existência histórica do enunciado” como afirma Courtine e
para os sentidos que são engendrados externamente e não dentro do próprio texto.

Ademais, para trabalhar uma análise, devemos entender que o(s) discurso(s)
dialoga(m) com outros, estão ligados a aspectos sociais, políticos e econômicos, são
interpelados pela ideologia e que é preciso voltar-se para os aspectos históricos como
forma de compreendê-los. Um enunciado consoante com Foucault (1995) será “dócil ou
rebelde a interesses” segundo as posições nas quais os sujeitos se inscrevem. Isso é um
pressuposto, não uma conclusão.

Por fim, em relação à análise dos elementos não-verbais presentes no corpus, vamos
analisá-los sob a ótica de Courtine (2006), que apresenta a noção de intericonicidade, que
diz respeito às outras imagens que são ressurgidas (mentalmente) ou evocadas quando
vemos ou simplesmente imaginamos uma imagem.

3 – Análise

A partir dessas considerações, propomo-nos realizar uma breve análise de alguns


recortes do artigo supramencionado, intitulado A Second Life do petismo – Pelas idéias delirantes
e pela tese de que o mensalão não existiu, o congresso do PT parece coisa do mundo virtual. Nossa
proposta é verificar como o sujeito discursivo se constitui ao significar o PT
especificamente; embora acreditemos ser impossível desvincular a imagem dos políticos
petistas daquela do próprio partido.
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Não pretendemos realizar uma análise quantitativa de dados, pois “analisar o maior
número de marcas e de dados não significa compreender melhor o processo discursivo em
questão” (Orlandi, 1989, p. 32). Dessa forma, focamos nossa análise em uma
“exaustividade vertical” como definida por Orlandi, que leva “a conseqüências teóricas
relevantes e não trata os dados como meras ilustrações”. Além disso, importa-nos retomar
que o discurso político será sempre marcado por conflitos e embates e que através da
materialidade lingüística apreendemos o(s) sujeito(s) e como ele(s) se constitui(em) e são
interpelados por formações ideológicas específicas.

Em primeiro lugar, gostaríamos de analisar a utilização do lexema second-life como


forma de colocar os políticos filiados ao partido em questão em um lugar ideologicamente
determinado. A escolha deste neologismo em referência ao PT é bastante relevante, uma
vez que parece revelar como o sujeito enunciador se constitui em relação ao seu tema-
objeto.

Second life é um termo advindo da língua inglesa que significa “segunda vida”,
lançado em 23 de junho de 2003 e que embora seja recente (ainda não se encontra seu
significado em muitos dicionários), já é conhecido por todos aqueles que têm
conhecimento das novas tecnologias e tende a crescer rapidamente em todo o mundo. É
uma espécie de ambiente virtual em que internautas representam um papel numa espécie
de jogo, sendo que esses jogadores criam uma imagem, um novo ícone de si próprios, os
quais se denominam avatares. Os usuários criam esses avatares sobre si mesmos com
qualidades e poderes que não possuem na vida real, ou seja, é uma brincadeira imaginária
em que vale tudo, menos ser verdadeiro.

Estima-se que, menos de cinco anos após sua criação, existem atualmente mais de
13 milhões de usuários registrados[3]. Nossa proposta é demonstrar que, com a utilização
de tal lexema, o sujeito tenciona, não somente conspurcar a imagem petista, mas também
tachá-lo de um partido alienado e descompromissado com as necessidades e problemas
relevantes da sociedade.

Diante dessa contextualização, lembremo-nos das palavras de Pêcheux ao afirmar


que a memória refere-se a “um conjunto complexo, pré-existente e exterior ao organismo,
constituído por uma série de ‘tecidos de índices legíveis’, que constitui um corpo sócio-
histórico de traços”. Aplicando essa definição ao contexto enunciativo, ao observarmos a
utilização deste lexema todo um conjunto complexo, anterior a tal unidade enunciativa é
ativada, pois, como vimos, second-life faz alusão a um jogo virtual, embora não haja neste
vencedores ou perdedores, cujos participantes assumem papéis virtuais, é uma brincadeira,
com fins de diversão, eles estão descompromissados com a realidade, com a verdade, estão ociosos,
são virtuais, talvez alienados, as conseqüências de seus atos no jogo não são relevantes, ou
seja são inconseqüentes, representam personagens irreais.

Isso posto, percebemos que ao utilizar o lexema em análise, todos os demais,


grifados e a ele ligados, vinculam-se a toda uma memória que é retomada e constituem um
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corpo-sócio histórico de traços. Ao elucidar esses traços, Pêcheux (1990) esclarece que
estes são ideológicos e referem-se ao “universo de representações e de crenças”.

Ora, se esses traços são ideológicos eles retomam uma multiplicidade de sentidos,
heterogêneos, mas que revelam a unidade de uma FD e, conseqüentemente, de formações
ideológicas que interpelam o sujeito-enunciador em questão.

É relevante explicitar que dentro da AD não poderíamos falar que um sujeito-


enunciador é imparcial em relação a outro, embora esta seja uma enunciação típica do
senso comum. Cada sujeito ao enunciar revela-se em posições que são marcadas sócio-
historico-ideologicamente. Dito de outra forma, as inscrições lexicais dos dizeres do sujeito
discursivo revelarão a inscrição ideológica desse sujeito.

Ora, estamos falando de ações e atitudes tomadas pelo Presidente da República e


seus aliados. A idéia de estarem em um mundo virtual, como o sujeito-enunciador coloca, é
na verdade metafórica, uma vez que significa que eles realmente estão sendo avatares
políticos na realidade e não simplesmente cibernéticos. Há um deslocamento de lugares do
virtual para o real que produz efeitos de sentido: de um jogo imaginário para um jogo
político. Na verdade, os petistas são avatares, jogadores no jogo da vida real. Afinal, eles
estão ocupados apenas com um objetivo: conquistar e manter o poder, se preciso à custa de reinventar a
realidade.

A tese de alienação vinculada ao lexema em análise é reforçada pela seguinte


seqüência enunciativa: No campo eleitoral, o mundo virtual petista também colocou em curso uma
realidade de faz-de-conta. Estar em uma realidade “de faz-de-conta” é o mesmo que estar
alienado das questões que interessam, que realmente importam para a sociedade e o país.

Nesses enunciados, há uma correlação clara desses políticos com o


descompromisso, a alienação e a inconseqüência. Prova disso é a materialização destes
elementos lexicais em toda superfície textual: há reincidência das palavras fantasia e delirante,
second-life aparece três vezes, e os lexemas avatar(es) e virtual são utilizados quatro vezes cada
um. Cada uma dessas unidades é carregada de ideologias, pois geram efeitos de sentidos
negativos à imagem petista.

Sendo assim, tomemos o lexema delirante como exemplo. É uma palavra ligada à
insanidade mental. “O delírio, traduzido da palavra alemã Wahn ou Wahsinn é uma síndrome
constituída por um conjunto de idéias mórbidas que traduzem uma alteração fundamental
do juízo, no qual o doente crê com uma convicção inabalável. É freqüente em patologias
do foro psiquiátrico, neurológico ou metabólico[4]”. Pesquisando na história, verificamos
que este é um termo advindo da psiquiatria e da medicina, como define The Hutchinson
Encyclopaedia – The Millenium Editon 2000 (1999, p. 303):

O delírio na medicina é um estado de confusão aguda na qual o sujeito fica


incoerente, descontrolado, e fora de contato com a realidade. É freqüentemente acompanhado por
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desilusões ou alucinações. O delírio pode ocorrer em doenças febris, algumas formas de


doenças mentais, doenças cerebrais, e como resultado de intoxicação alcoólica ou de
drogas. No alcoolismo crônico, os ataques de delírio são marcados por alucinações,
transpiração, tremura, e ansiedade que pode(m) persistir por vários dias[5]. (grifos e
tradução nossos).

Ainda vinculando nossa análise à memória discursiva, interessa-nos retomar a


memória vinculada ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Lula nasceu em Garanhuns no
estado do Pernambuco em 1945. Em 1952, ou seja, ainda criança viajou com sua mãe e os
seis irmãos para a cidade de São Paulo em um pau-de-arara durante treze dias. Lá estudou e
conseguiu concluir o curso de torneiro mecânico pelo Senai, em nível técnico, integrando-
se ao sindicato dos metalúrgicos posteriormente. Sua vida não foi fácil. Seus pais se
separaram pouco depois de chegarem a São Paulo. Morou na periferia e, para sobreviver,
vendia tapioca nas ruas. Teve problemas de relacionamento com o pai, o qual foi enterrado
como indigente.

Diante desta sucinta exposição, deparamo-nos aqui com a personificação de um


homem que espelha um sujeito (sob a perspectiva pecheutiana) vítima de preconceito no
Brasil e que coloca em funcionamento toda uma memória sócio-histórico-ideológica: a do
homem pobre, nordestino, sem curso superior e, portanto incapaz de ocupar o cargo de
maior importância do executivo. A própria Revista Veja, em artigo publicado na edição
1775 de 30/10/2002, logo após sua vitória presidencial declarou que o mesmo venceu a
lógica que condenou tantos como ele à exclusão como o de ter virado de cabeça para baixo o script da
trajetória política convencional. Lula, como todo indivíduo, é a representação de um sujeito
sócio-histórico marcado ideologicamente, pois lembremo-nos de que

o sujeito (segundo a perspectiva da AD) refere-se a um sujeito inserido


em uma conjuntura sócio-histórica-ideológica cuja voz é constituída de
um conjunto de vozes sociais. Compreender o sujeito discursivo requer
compreender quais são as vozes sociais que se fazem presentes em sua
voz. (FERNANDES, 2007, p. 35).

Em busca de compreender como o sujeito-enunciador se constitui ao significar o


PT e os políticos a ele filiados, chama-nos atenção outro recorte enunciativo. A afirmação
de fantasia travestida de nobreza referindo-se à proposta partidária em abrir mão da
candidatura própria à Presidência da República em 2010 ecoa a(s) voz(es) de (um) sujeito(s)
que se coloca(m) em oposição ao sujeito descrito no parágrafo anterior, devido às lutas de
classes (ou para evitar polêmicas diante do contexto político-social atual preferimos utilizar
o termo “lutas pelo poder”): Seria Lula um plebeu desejando ser nobre? Ou será que ele já
se colocou como nobre (pois já fora eleito) mas não deveria sê-lo? As seguintes declarações
parecem reforçar a tese de que ele não tem capacidade, ou as qualidades reais como
descrito pelo sujeito em análise, para ocupar tal lugar (ser Presidente da República) devido a
sua posição constituída como sujeito sócio-histórico: O Partido dos Trabalhadores está vivendo
um momento, digamos, Second Life, aquela brincadeira da internet em que as pessoas criam para si
mesmas avatares com as qualidades que elas não possuem na vida real. Ainda a utilização da locução
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adverbial um momento dá a idéia de temporalidade alusiva à temporalidade de um mandato


presidencial.

Certamente essa idéia de possuir qualidades virtuais é retomada na imagem atrelada


à matéria. Há uma imagem dos “avatares” José Dirceu, José Genuíno, do Presidente Lula e
de Ciro Gomes que embora não sendo do PT, é aliado político, vestidos com terno e
gravata em uma tela de computador. Neste ínterim, o presidente e seus companheiros estão
diante de um dos símbolos mais importantes da nossa política, sinônimo de respeito e
orgulho nacional: o Palácio do Planalto. É exatamente neste lugar que (somente) o
presidente-avatar Lula aparece voando, ou seja, tem poderes e atributos que realmente não
possui na vida real. A imagem lembra a tela de um videogame.

Courtine (apud MILANEZ, 2006, p. 168) menciona que “toda imagem se inscreve
numa cultura visual e essa cultura visual supõe a existência para o indivíduo de uma
memória visual, de uma memória das imagens. Toda imagem tem um eco”. Dito de outra
forma, nenhuma imagem (ou discurso) é neutra, ela tem uma razão de existir, pois se
vincula ao que lhe é exterior, a elementos dispersos no social, ao histórico, está ligada a
outras imagens-discursos, sendo assim é ideológica e ecoa sentidos.

Essa memória das imagens se chama a história das imagens vistas, mas
isso poderia ser também a memória das imagens sugeridas pela
percepção exterior de uma imagem. Portanto, a noção de intericonicidade
é uma noção complexa, porque ela supõe a relação de uma imagem
externa, mas também interna. As imagens de lembranças, as imagens de
memória, as imagens de impressão visual, armazenadas pelo indivíduo.
Imagens que nos façam ressurgir outras imagens, mesmo que essas
imagens sejam apenas vistas ou simplesmente imaginadas. (MILANEZ,
2006, p. 168).

Se, por um lado, os petistas têm poderes e qualidades neste mundo virtual, na
prática, segundo o sujeito enunciador isso não acontece. Na verdade, essa imagem é uma
auto-imagem petista esboçada sob a ótica do sujeito-enunciador. É uma virtualidade em
conseguir grandes feitos, somente em um mundo imaginário, pois no mundo real isso é
impossível, não é verdadeiro.

Analisando a construção discursiva, compreendemos que os efeitos de sentido são


possíveis a partir de toda uma memória que é retomada, a do sujeito-pobre-nordestino-
sem-curso-superior em uma posição que não é fácil de ser ocupada alguém que não advém
de tal conjuntura econômica e sócio-histórica. Segundo Pêcheux (1999, p. 51) a imagem é
um operador de memória social, sendo que comporta dentro dela um programa de leitura,
um percurso escrito em outro lugar. Há ironia e irreverência no antagonismo criado diante
do sujeito-capaz virtual versus o sujeito-incapaz do mundo real. A ironia é possível pela
negação do que é afirmado ao colocar tais declarações no plano virtual, na second-life. Essa
negação-afirmação perpassada pelo imaginário ao real acontece não somente no plano não-
verbal, mas também no verbal, especialmente quando se utiliza de layout específico com
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espaçamento duplo dividindo o texto em duas partes separadas pelo enunciado Enquanto
isso na vida real... possibilitando esse efeito de sentido.

O tom irônico que, na verdade, é constitutivo de embates ideológicos é revelador da


posição-sujeito-enunciador [...] em sua Second Life, o PT é um partido ético, suas lideranças estão
acima de qualquer suspeita e suas propostas têm legitimidade para resolver os grandes problemas do país.
Dito de outra forma: o PT não é ético, suas lideranças são suspeitas e, por último, suas
propostas são pífias, reles, sem legitimidade alguma para resolver os grandes problemas do
país.

Por fim, quando é colocado que o Brasil esperava que o partido, constrangido, no mínimo
anunciasse alguma medida contra a corrupção, percebemos a posição assumida pelo sujeito
enunciador com a utilização do verbo esperar no pretérito-imperfeito do indicativo
demonstrando uma expectativa frustrada por parte do sujeito-Brasil. Percebe-se a voz do
“outro” demonstrando o descentramento do “eu-Veja” e voltando-se para um sujeito
coletivo, plural.

4 – Considerações Finais

Por fim, percebemos que a partir das análises dos recortes desses enunciados
podemos visualizar a posição do sujeito-enunciador e que o mesmo caracteriza-se pela
oposição ao Partido dos Trabalhadores e ao governo Lula.

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[1] Referimo-nos à reportagem publicada na Revista Veja em 12/09/2007.
[2] Professor da UFTM – Universidade Federal do Triângulo Mineiro e da Universidade de Uberaba
em Língua Inglesa e Lingüística. Especialista em Metodologia do Ensino-Aprendizagem em Língua
Estrangeira e Mestrando em Estudos Lingüísticos pela Universidade Federal de Uberlândia
orientado pelo Prof. Dr. Cleudemar Alves Fernandes. Proficiente em língua inglesa pela
Universidade de Cambridge (Inglaterra) e Universidade de Michigan (Estados Unidos). E-mail:
welissonmarques@yahoo.com.br
[3] Segundo dados coletados da enciclopédia digital: www.en.wikipedia.org
[4] Extraído de www.pt.wikipedia.org/wiki/Delirium
[5] Delirium in medicine, a state of acute confusion in which the subject is incoherent, frenzied,
and out of touch with reality. It is often accompanied by delusions or hallucinations. Delirium may
occur in feverish illness, some forms of mental illness, brain disease, and as a result a drug or
alcohol intoxication. In chronic alcoholism, attacks of delirium tremens marked by hallucinations,
sweating, trembling, and anxiety, may persist for several days. (Tradução nossa.)

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