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A Gasolina no Banco dos Réus

Adilson Júlio Kwijikwenyi


O dia 1 de Junho estava bom demais para ser verdade, havia inocência
demais, a alegria estava coroando a cidade em todos os pontos onde estivesse uma
criança, a beleza esbanjava doçura, fortalecia os laços quebrados, estimulava o
amor. Não errou quem nos deixou o velho ditado “quando a esmola é demais o
santo desconfia”, pois, esse clima tão festivo, escondia a duras penas, em suas
máscaras, sujeira nojenta. Esse dia glorioso, foi eclipsado pelo crime hediondo que
fez manchete nos jornais: a subida da gasolina.
Foi desse jeito que se fechou o dia. Tal notícia, logo começou a provocar
mudanças esmagadoras. Os filhos mal haviam conquistado seus pais para a
diversão, foram roubados para estarem nas filas das bombas, as estradas ficaram
congestionadas, o trânsito em dificuldades de circulação. Tudo isso não era
suficiente para os ombros do povo angolano, porém, no baralho ainda havia muito
mais realidades que instensificariam esse quadro: a desvalorização da moeda
nacional, os preços avultados no mercado, o atraso do salário de alguns ministérios
públicos, era tudo isso, na verdade, o prelúdio do apocalipse em Angola, a fome
voltara ao seu lar predilecto como um anjo da morte, o inferno viera com todo seu
terror morar conosco.
Enquanto eu procurava entender as razões do coração dessa política, eu juro
ter tido uma epifania, na verdade uma visão. Eu fui transportado para um
ambiente de caos total. Os gritos de protestos se ouviam em todos os cantos.
Quando dei conta, estava na porta do Tribunal Supremo, e eu entrei e fiquei
acompanhando em silêncio o desenrolar de todo o processo jurídico.
De repente, entrou o juíz, e o salão ficou tomado de silêncio. Seu nome era
“O Acaso”, do que me lembro ter ouvido. Tomando a palavra disse: “Estamos,
hoje neste lugar, não para tratar do crime do século, mas de uma ‘Medida Política
Milagre’, pelo que peço a máxima atenção de todos”. Nesse tribunal estavam a
Gasolina como o réu, o Estado como advogado de defesa, a Oposição como
advogado de acusação e o Povo como o queixoso e testemunha. E todos eles em
uníssono, juraram falar a verdade e nada mais do que a verdade.
Logo em seguida, foi cedida a palavra ao advogado de defesa, que depois
de ter feito algumas perguntas ao réu, afirmou, numa tentativa de convencer o
jurado, as testemunhas e os assistentes o seguinte: “Pelo que se pode ver, com
base na medida a qual o nosso cliente está sendo acusado, a retirada dos subsídios
a ele ligados, visa beneficiar quem realmente precisa. Essa medida é uma forma
de transformar um subsídio cego num direccionado. É fundamental analisar a
eficácia desta política no combate à pobreza e no fomento de desenvolvimento em
detrimento de programas sociais de maior impacto, como o caso do Kwenda. Esta
medida visa a construção de refinarias e diversificação da economia (agricultura,
as pescas, a indústria e o turismo), com ela se poderá resolver os reais problemas
do país. É hora de estabelecer preços justos”.
Tendo terminado o seu discurso, a palavra foi passada para o advogado de
acusação, que segundo me pareceu, enfiou as mãos nas entranhas da situação e
expôs algumas das partes íntimas dessa medida. Ele argumentou de modo vívido,
apelando para a razão e as emoções humanas: “É uma falta de respeito, ao povo,
falhar nas políticas e responsabilizar os cidadãos pelas consequências. É falta de
sensibilidade, saber o melhor momento para adoptar uma política e fazê-lo no pior
momento. A retirada dos susídios não é o problema real, porque sempre foi uma
necessidade para o país, são os interessses instalados que usam a governação para
o proveito próprio”.
E o juíz perguntou ao advogado de defesa: “De que modo, essa medida
trará benefícios, uma vez que a subida deste, provocará a subida de tudo no
mercado? Os taxistas que quereis beneficiar não serão de todo modo ainda mais
prejudicados? Como pretendeis beneficiar as famílias com essa medida?
O advogado de defesa respondeu: “Sabemos que essa medida abalará o
mercado, mas nossa tarefa será sensibilizar as empresas para ajudar no processo
e as instituições comerciais para a fiscalização no mercado. Quanto aos taxistas,
terão licenças que os habilite na compra da gasolina a 160 kzs. A sensibilização
vai consistir em evitar os malfeitores, as pessoas de má fé, que tentarão subir o
preço do táxi. Para isso, contaremos com os agentes da polícia. Por fim, a medida
vai proteger as nossas famílias”.
Encerrou-se a primeira sessão plenária. Alguns dias foram dados para se
estudar com maior profundidade o caso. Mal descansávamos, aquilo que era ainda
uma idéia, virou um acto num piscar de olhos: a medida já era uma lei vigente.
Num dia foi discutida a medida, no outro, já estava em vigor.
Enquanto respirávamos os efeitos dessa medida, eu e meu amigo, ficamos
discutindo sobre esses assuntos, e então, apanhamos um táxi para irmos à casa de
sua namorada. Eu mantinha no coração que no que dizia respeito, pelo menos, da
acção interventiva da polícia, poderia haver um cumprimento compassivo e
responsável deles pelos taxistas, mas minha esperança foi frustrada por uma atitude
vergonhosa de dois agentes, os chamados pin e puk. E isso não foi uma visão.
Fomos interrompidos de seguir o nosso curso. Mesmo não estando em
legítimo uso do poder, pediu as cartas do taxista, ao ver tudo em ordem, começou
fazendo tempestade num copo de água, forçando o taxista, um dos supostos
beneficiários da medida, a dar-lhe uns míseros kwanzas. Eu fiquei pensando comigo
mesmo: “Que contradição: o beneficiário é estorquido por aquele que deveria manter
a ordem, o que deveria manter a ordem transgride a lei, o que tem poder para
governar abusa dele. Como crer numa medida que é uma miragem? Se já nos
tiram o pão, o dinheiro e a vida a custo de nada, querem roubar-nos também a
nossa fé”?
Novamente fui transportado em espírito, e vi que o povo estava furioso e
descontente, e seguiu-se a segunda sessão plenária, mas dessa vez ouvi apenas os
discursos lamentosos do povo, que em lágrimas e sangue forjou seu argumento:
“Quando estávamos em colonização anseávamos ardentemente pela liberdade,
lutamos até que a conquistamos, e faz 48 anos de independência que temos nosso
próprio estado, um estado soberano. Essa liberdade foi manchada pelos interesses
políticos que trouxeram a guerra entre irmãos, e lutamos até que alcançamos a
paz e a reconciliação, e isso faz 21 anos. Conhecemos apenas um governo, o qual
criou a política dos subsídios a 48 anos, quais foram as razões para abraçarem o
preço injusto da gasolina e, hoje desejarem preços justos”?
Uma outra testemunha se apresentou com lágrimas nos olhos, penso ter
visto uma figura femenina, com cuja ternura reclamou pensando no futuro dos
filhos: “Sei que as infraestruturas, as indústrias, e toda vasta gama de detalhes
que fazem parte da agenda do Estado e suas medidas visam propósitos benéficos,
e não discordamos. Tão somente, gostaríamos que nossa humanidade fosse acima
de tudo valorizada, antes das estruturas. Se apenas pão não nos podem dar, como
nos podem prometer refinarias? Não estamos pedindo Califórnia no Namibe,
AngoSat nem a exterminação da corrupção, tudo o que pedimos é que torne apenas
possível o pão, o resto vem com a valorização humana”.
Uma terceira testemunha construiu seu argumento com perguntas retóricas:
“O Governo também vai acabar com a corrupção? Vai. Também vai acabar com
a impunidade? Vai. Também vai acabar com a malária? Vai. Também vai
acabar com a pobreza? Vai. Também vai diversificar a economia? Vai. Também
vai aumentar os empregos? Vai. E encerra seu discurso assim: “De tanto ir em
círculo, não sai do mesmo sítio, provavelmente devido a causas endógenas e
exógenas”.
Finalmente, após esses discursos, a sentença foi tomada. O supremo juiz, o
“Acaso”, declarou a sentença nesses termos: “Depois de uma investigação acurada
do caso, este tribunal decidiu a inocência da medida que retira os subsídios da
gasolina, e declaramos seu poder em operar milagres em tudo quanto promete. O
que está escrito está escrito. Caso encerrado”.

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