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Vol. 1 (1)
Edição electrónica
URL: https://journals.openedition.org/etnografica/2636
DOI: 10.4000/etnografica.2636
ISSN: 2182-2891
Editora
Centro em Rede de Investigação em Antropologia
Edição impressa
Data de publição: 1 maio 1997
ISSN: 0873-6561
Refêrencia eletrónica
Etnográfica, vol. 1 (1) | 1997, «Vol. 1 (1)» [Online], posto online no dia , consultado o 09
abril 2022. URL: https://journals.openedition.org/etnografica/2636; DOI:
https://doi.org/10.4000/etnografica.2636
Artigos
Entrevista
Memória
Um “informante” do Pico: cartas de Francisco de Matos Bettencourt a
Ernesto Veiga de Oliveira
João Leal
Recensões
Nota prévia
1 Em 1994, visitei a Trinidad numa curta viagem de prospecção do
terreno, com a ideia de vir mais tarde a concretizar uma investigação
no local. O interesse pelas Caraíbas foi motivado pelo facto de se
tratar de uma região com formações sociais feitas — a partir do
extermínio das populações indígenas — pela própria expansão
europeia: um produto da economia mundo e não um caso clássico de
colonialismo. A Trinidad surgia como o terreno não turístico e mais
complexo do ponto de vista da variedade de grupos étnicos e raciais.
Interessava-me fazer a passagem da área do género para a área de
processos mais vastos de diferenciação baseados na naturalização do
poder (corpo, género, raça) em contextos multiétnicos. Não tinha
qualquer intenção de estudar os portugueses da Trinidad, de cuja
existência nem suspeitava. Mas a investigação tem acasos que
redireccionam a atenção ou apelam à sua análise: daí a narração da
história da minha relação com uma luso-descendente da Trinidad.
Ao fazê-lo, prestei particular atenção às questões da etnicidade e
raça, poder e diferenciação e identidade pessoal. O texto estrutura-
se, então, como um diálogo entre recordações de viagem e relação
interpessoal, por um lado, e aquilo em que elas iluminam os debates
teóricos ou são por eles iluminadas, por outro.
Diário de viagem I
2 Considerando a pequenez relativa da ilha de Trinidad, a viagem de
táxi do aeroporto até ao bed and breakfast foi longa. Tudo porque o
taxista necessitou de parar, por razões não explicadas, no campo de
críquete onde os seus correligionários da Igreja Mórmon promoviam
um convívio. Não tivesse sido a minha insistência em prosseguir —
provocada pela vontade urgente de tomar um duche que acalmasse
os efeitos do calor e da humidade — e ele teria achado natural que ali
ficássemos. Viria mais tarde a descobrir que não se tratava de uma
estratégia de conversão religiosa, mas tão-somente um caso de
adaptação dos procedimentos da igreja à instituição trinidadiana do
liming — deixar-se ficar, numa esquina de rua, em casa, ou num bar,
conversando pelo prazer de conversar, trocando informações sobre
as origens étnicas de cada um; sobre o que se viu nas múltiplas
viagens de visita a parentes em Miami, Toronto, Londres ou Nova
Iorque; sobre os mais recentes objectos de consumo; sobre as
polémicas em torno da canção que ganhou as últimas competições de
soka ( soul + calipso ), de steelbands , de críquete ou mesmo de política
partidária. Ou simplesmente exercendo o direito inalienável ao
picong , o gracejo irónico, mais ou menos ácido, mais ou menos
cortejante, sobre os atributos físicos ou comportamentais de quem
tem o azar de passar por perto.
3 Ao fim de duas horas chegava a casa da senhora Grace, minha
anfitriã. A casa fica em Diego Martin, um subúrbio da capital - Port of
Spain. Viúva, activa na Igreja Anglicana, entusiasta com as
possibilidades de expansão do seu negócio via internet , a senhora
Grace é uma anfitriã extremosa e conversadora para os seus setenta
e muitos anos. Fica-me reservado o rés-do-chão da sua vivenda ao
“estilo espanhol” (outros diriam ao estilo dos subúrbios de Los
Angeles), mas a primeira tarde passo-a com ela na varanda
refrescada pela sombra das buganvílias (esse nome extraordinário,
tomado do apelido do explorador francês de um outro arquipélago
de outro oceano). Ao princípio explico-lhe que a minha viagem à
Trinidad é exploratória: para ganhar um sentido do local de modo a
eventualmente ali realizar trabalho de campo. Apesar disso (ou por
isso mesmo, já que viria a perceber que as etiquetas étnicas são bem
mais do que isso), a minha portugalidade torna-se no centro da
conversa da senhora Grace. Peremptória, afirma: “Você tem de
conhecer os portugueses da Trinidad.” A vontade dela é apenas
reforçada quando eu demonstro a minha total surpresa:
“Portugueses, na Trinidad?” Eficiente, a senhora equipa-se da lista
telefónica e procura encontrar o senhor De Nobrega, presidente do
Clube Português. Não o encontra. Subitamente, lembra-se de um
facto mais interessante: “Saiu um livro sobre os portugueses na
Trinidad. Vamos telefonar à autora.” Dito e feito. No próprio dia da
minha chegada à ilha (e esta não é um mundo microscópico, pois tem
mais de um milhão de habitantes, concentrando-se a maioria na área
metropolitana da capital), encontrava-me ao telefone com a autora
de The Portuguese of Trinidad and Tobago, Portrait of an Ethnic Minority
— Jo-Anne Ferreira.
4 Nessa mesma tarde, Jo-Anne visitou-me, acompanhada pela irmã. A
conversa começou com alguma formalidade, talvez por eu ter sido
percepcionado como alguém bastante mais velho — uma vicissitude
de marcadores corporais como o cabelo branco. A autora ofereceu-
me o seu livro, que haveria de ler avidamente nessa mesma noite. Ali
começava, sem querer, uma estada que me levaria a fazer amizade
com Jo-Anne, a sua família, os seus amigos. Que levaria a extensa
correspondência — por carta e correio electrónico. E que culminaria
numa visita de Jo-Anne e da sua amiga Shelley a Portugal, um ano
depois. Antes de continuar, porém, vejamos o que diz o seu livro.
Diário de viagem II
20 Imediatamente se estabeleceu um acordo tácito entre mim e Jo-
Anne: eu leria e criticaria o seu livro, ajudá-la-ia inclusive na
tradução de um artigo seu para ser publicado em português numa
revista madeirense, e ela apresentar-me-ia o seu país. Fez muito
mais, pelo que lhe estou infinitamente grato: apresentou-me à sua
família e amigos e deu-me a ver as nuances dos processos de
identificação e diferenciação étnica e racial.
21 A casa da família de Jo-Anne é uma vivenda de classe média num
subúrbio da capital chamado Petit Valley. Jo-Anne, estudante
universitária, vive com os pais e os irmãos. Os pais são ambos
quadros profissionais. O pai é de origem portuguesa, conhecendo
muito pouco da língua. A mãe é de origem africana: segundo as
categorias portuguesas de classificação fenotípica, seria negra, mas
cedo me apercebi das infinitas gradações utilizadas na Trinidad,
onde a mãe de Jo-Anne é, antes, coloured . O ambiente caseiro é
acolhedor e a conversa boa e descontraída. Como professora, mas
certamente devido a qualidades intrinsecamente pessoais, a mãe
Ferreira tem um discurso de uma lucidez cortante sobre a estrutura
racial local. Como família “mista” não são de todo uma excepção.
Mas a sua condição mista parece dialogar sobretudo com a sua
posição de classe, o seu estatuto profissional e o seu capital
simbólico. É clara a consciência de que a família não pode aspirar a
pertencer à elite branca local, como não pode aspirar a pertencer à
classe detentora do capital económico (que não político, pois este
está há décadas nas mãos do funcionalismo negro de raiz urbana e é
cada vez mais disputado pelos indianos).
22 Toda a família de Jo-Anne tem um discurso anti-racista que não se
fica pela manifestação de boas intenções ou pelo uso de uma
linguagem politicamente correcta. O seu capital cultural permite-
lhes, sobretudo, ter uma visão histórica e sociológica sobre o que é
viver numa sociedade que nasceu da escravatura e do sistema de
classes com assento na raça, e dele fazerem uma crítica. Permite-lhes
ainda aderirem a uma utopia de multiculturalismo e
multirracialismo, sem que percam a perspectiva de suspeição em
relação a quanto essa utopia é contruída como uma ideologia do
jovem estado-nação, bastas vezes sem repercussão no bom
entendimento inter-racial no quotidiano e nas relações
interpessoais.
23 A família de Jo-Anne é o exemplo de um segmento da população
trinidadiana que ganha cada vez mais relevo: uma classe média culta,
com laços transnacionais, inserida na cultura global. Este segmento
não constitui um grupo, pois todos os casos individuais de famílias
semelhantes são constituídos através de cruzamentos diferentes.
Assim, a origem étnica e racial é da ordem da hegemonia na
Trinidad: é o grande modelo de referência para pensar e mapear as
identidades socais e é no seu seio e através da disputa semântica em
torno dos seus referentes que se dá a luta por emancipações várias e
mudanças de significados. Coube a Jo-Anne engajar-se activamente
neste processo, pois os restantes membros da família não
demonstram o mesmo interesse na “redescoberta das raízes
portuguesas”.
24 Ingenuamente pensei, ao princípio, que a pesquisa de Jo-Anne
constituísse uma tentativa de ascensão social num contexto em que a
origem étnica é determinante. O meu raciocínio era o seguinte:
oriunda de uma família mista, o reforço da sua portugalidade
aproximá-la-ia do grupo dos brancos. O raciocínio foi rapidamente
complicado pelo facto de historicamente os portugueses na Trinidad
terem sido considerados como “nem brancos nem pretos”, sobretudo
pela sua posição socioeconómica intermédia. Pensei então que a
recente promoção de Portugal à Europa político-simbólica pudesse
permitir uma reformulação dessa ideia, e isto justamente quando os
portugueses desapareceram como donos de tabernas e até como
comunidade: uma identidade a que pudesse recorrer quem quisesse.
25 Mas porquê e para quê pensar assim? Afinal de contas, a busca das
raízes não é muito diferente da que se faz nos Estados Unidos e cada
vez mais na Europa. Não estaria Jo-Anne simplesmente a ancorar a
sua identidade num sentido de história de família comum a largos
sectores da modernidade global e, de certo modo, a recusar mesmo a
lógica das categorizações por grupos raciais, reforçando antes a
“etnicidade” ou a “cultura”? Questão complicada, visto que o assunto
é tudo menos pacífico ou neutro na Trinidad, onde a tez da pele, a
raça, a origem étnica, a religião, são o centro das conversas, das
disputas, das alianças, até da vida política nacional e das produções
culturais expressivas, da música ao grande ritual do Carnaval. Para
que o leitor não se perca como eu me perdi, ao deambular por ruas
repletas de gente de todas as cores — onde numa esquina um templo
hindu se sucede a uma mesquita, esta a uma igreja evangélica, ou
pinturas rastafarianas decoram os muros de um campo de golfe para
crioulos franceses —, é necessária alguma sistematização da
etnicidade e da raça na Trinidad.
Diário de viagem IV
62 Quanto mudaram as coisas depois da recordação do início do século
registada por Naipaul…. No entanto, lembro-me de a mãe de Jo-Anne
dizer que era exactamente isso que sentia quando jovem. E que a
independência não lhe havia retirado o sentido de pertença a
“qualquer coisa de britânico”. Sobretudo não lhe retirara a língua, as
viagens a Londres, as referências cosmopolitas. Mas, aos poucos,
segundo ela, impusera-se a consciência racial, periférica, terceiro-
mundista, e a esperança de criação de uma sociedade mais justa na
dupla vertente da classe e da identidade etnorracial. E hoje ela sente
a Trinidad como um projecto. É esta, se calhar, a palavra-chave, tal
como surge em Giddens — os indivíduos da modernidade tardia
marcados sobretudo pelos projectos reflexivos do self ? Segundo
Miller, não é tanto assim: o que a etnografia da Trinidad lhe sugere é
que podem existir subjectividades radicalmente modernas e, no
entanto, distintas da autobiografia narrativa com que Giddens
caracteriza sujeitos implicitamente ocidentais:
Here individualism has to be constantly recreated at each event, in each
relationship (…) Its opposition to institutionalisation is therefore continued
through to a refusal to institutionalise the individual, even as biography (Miller
1994: 309).
63 Aqui está o começo de uma resposta para a pergunta anterior sobre
porque Jo-Anne procurava uma “identidade portuguesa”. É isto que
ela me tem vindo a “dizer” desde que nos conhecemos. Na ausência
de tradições nacionais e de grupos étnicos identificados como os
“verdadeiros locais”, muita antropologia tende agora ou a reificar a
confusão e a hibridez, ou a salientar o potencial de criação de
indivíduos modernos no sentido de homo economicus . O caminho
sugerido pela Trinidad e pelo caso pessoal aqui seguido parece ser,
antes, o de entender todos os contextos como contextos que já foram
ou são potencialmente como o trinidadiano, e os personagens como
potenciais versões da minha amiga. Faz lembrar Marilyn Strathern
(1988) escrevendo sobre os dividuals em vez dos individuals quando
usa a teoria Hagen para lançar luz sobre a teoria social ocidental: os
seres humanos têm fronteiras permeáveis e experimentam um
movimento constante entre diferentes aspectos da vida social.
Parece básico, mas é deste tipo de bases que nos esquecemos quando
começamos a reificar conceitos como “etnicidade”.
64 Um ano e muitas cartas depois, Jo-Anne, acompanhada de Shelley,
veio visitar-me em Lisboa. Era a sua primeira vez em Portugal. Aqui
ficou algumas semanas, antes de partir para a Madeira, onde ia
consultar os arquivos locais para reconstituir melhor a genealogia da
sua família paterna. O seu maior espanto foi sentir que não estava na
Inglaterra ou na França, os seus centros de referência. Mas tão-
pouco se sentia “do outro lado”, na Trinidad. O seu país, que ela
julgava ser uma espécie de ponto a meio do caminho entre o centro e
a periferia, podia ser facilmente substituído por Portugal. Pasmou
com a forma como foi entendida localmente como uma emigrante
portuguesa de visita ao país natal. Pasmou com a suspensão da
categorização racial, confirmando o que eu já lhe havia dito — que
“passaria” por portuguesa, o que quer que isso significasse.
Sobretudo se ela dissesse que o era.
65 Encontrar-nos-emos no Brasil, a julgar pelas promessas mútuas
feitas na última comunicação por e.mail . Ela estará explicando o que
é ser cristã aos índios, esses outros “vermelhos” tão diferentes do red
com que ela é por vezes classificada na Trinidad. Eu estarei
estudando os aspectos que constituíram a minha motivação para
estudar a Trinidad, só que, afinal, no Brasil. Um diálogo possível
entre nós surgiu-me numa divagação ou num sonho literário:
“Porque desististe da Trinidad como terreno?”— pergunta-me ela,
fingindo-se ofendida. “Porque percebi que no Brasil ia encontrar
problemas semelhantes”. “E assim é mais fácil por causa da história e
da língua, não é?”, pergunta ela. Penso um pouco e digo: “Porque sou
português. Ou se calhar poteegee ”. “E o que é isso?”, pergunta ela. E
ri.
Post scriptum
66 Depois de lhe ter pedido autorização para mencioná-la neste artigo,
Jo-Anne Ferreira enviou-me uma mensagem por correio electrónico
cujo conteúdo justifica a sua transcrição (que mantenho no inglês
original):
(…) Actually, for some reason I was musing on “(not) growing up Portuguese” in
Trinidad just this morning. It struck me that I never felt “Portuguese”, and never
realised that I never felt Portuguese. So there was no vacuum, so to speak, since
my identity was firstly based on being a Ferreira and Carter, a Trinbagonian (and
later on, when I left the country, a West Indian to a lesser extent), and within the
last 11 years, a Christian. But when I was in France, and Portuguese people asked
me if I was Portuguese, that had me wondering if it was a wild guess, or if I
indeed bore any phenotypic resemblance to my Portuguese forebears (because I
didn’t where local Portuguese were concerned). Then later I read Alfred Mendes’
and Albert Gomes’ novels and saw Portuguese surnames in the context of
Trinidad, and a chord was definitely struck, or plucked, whatever. And it was so
nice to see ‘normal’ names all over Portugal!
Oddly enough, though we never grew up in the ‘Portuguese community’ per se
(that can be defined as those descended from (mid) 20th century immigrants, not
like us, from 19th century or extremely early 20th century immigrants), all of my
parents’ friends were like them: each couple was made up of one Portuguese-
descended (Trini) spouse and one not: a Corbie married a Gomes (female), a
Cumming married a Gouveia (female), a de Silva married an Almondoz (female),
and a de Silva married a de Silvia (female, from Antigua). Not to mention my
paternal first cousins. Of Dad and his 13 siblings, 4 married Luso-Trinis (and
produced 22 children), one married a Sino-Trini (3 children), 4 married ‘mixed’
(including Mom, most of whom had Iberia in their family histories, total of 8
children), one married an Indo-Trini (no children), and 2 married other Euro
(one Trini, one Canadian, total of 4 children). None (except one) of our
generation went on to marry those from similar ‘ethnic’ backgrounds (class and
education are the factors now).
I suppose when I reached the age or stage of inquiry, which may have coincided
with a general, national quest for ethnic identity in the country, then I started to
ask questions. I wrote a bit about that in an article for UWI University of the
West Indies, St Augustine’s Oral and Pictorial Records Programme newsletter.. I
think Portugal was the first country (besides here) where I didn’t feel physically
different (culturally and linguistically of course, but I’m happy to learn like I did
with French and France). Anyway, I rant and I blab. Just thought I’d share that
with you for what it is (or isn’t) worth….
67 Como o leitor certamente sentirá, esta última contribuição de Jo-
Anne Ferreira não só foi útil como demonstra quanto o projecto
antropológico ganha quando se baseia no discurso dos informantes.
Por certo a reacção de Ferreira a este artigo trará ainda mais
surpresas.
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NOTAS
1. Contrato de trabalho temporário, localmente percepcionado como “escravatura
encapotada”, consistindo na deslocação de populações de umas colónias britânicas (ou
países dependentes, como Portugal) para outras.
2. Uma compreensão mais profunda dos processos socioeconómicos na Madeira
imediatamente anteriores a este período pode ser obtida em Freitas Branco, 1986.
3. Escritor e político da década de 1950, na origem da expressão gomesocracy. O primeiro a
promover formas expressivas definidoras da identidade trinidadiana: calipso, steelbands,
Carnaval.
4. Justamente a classificação de que Jo-Anne é alvo frequentemente, mas que recusa como
sendo resultado do que ela diz ser uma obsessão local com a definição de categorias.
RESUMOS
A narrativa do artigo baseia-se na relação simultaneamente profissional e pessoal entre o
autor e uma luso-descendente da Trinidad e Tobago, autora de um livro sobre os
portugueses daquele país das Caraíbas. A discussão desenvolve-se em torno das construções
de “raça” e “etnicidade” no contexto dos novos estados-nação pós-coloniais e multiétnicos.
A ideia central é a de que esta área de debate antropológico só pode crescer para lá das
quase-evidências do construcionismo social se incorporar na análise os processos de poder
simultaneamente ao nível das disputas políticas colectivas e ao nível do seu ancoramento na
subjectividade dos projectos de vida.
This paper is the narrative of a professional and personal relationship between the author
and the author of a book on the Portuguese of Trinidad and Tobago, herself of Portuguese
ancestry. The discussion revolves around the constructs of “race” and “ethnicity” within
the context of multiethnic and postcolonial new nation-states. The main notion is that this
area of anthropological debate can only overcome some unquestioned assumptions of social
constructionism if and when it incorporates the analysis of power processes — both at the
level of collective political struggles and at the level of life projects’ subjectivity.
AUTOR
MIGUEL VALE DE ALMEIDA
Departamento de Antropologia — ISCTE, Centro de Estudos de Antropologia Social
miguel.almeida@iscte.pt
The body of India: geography,
ritual, nation
Jackie Assayag
34 Since at least 1977, the Congress (I) Party has played the
cartography of India against the balkanisation of the country.
However, it was during the 1989 parliamentary elections that one
witnessed a veritable card game played by political parties which
made unprecedented use of the media to win popular support
(Sarwate 1990). Congress, Janata Dal, and the BJP (as well as the DMK
in the South) launched publicity campaigns centred around physical
maps of India, published in newspapers and magazines. In the
caption beneath one such map, the Congress Party asked: “Will this
be the last time you see India in this shape?” By way of response, the
BJP issued a map of territories “lost” by the Congress government.
The argument refers to the Hindu fundamentalist geography of the
Akha ṇḍ Bhārat , “undivided India”, the boundaries of which extend
from Afghanistan in the west, to Burma in the east, inclusive of
Nepal, Bhutan, Tibet and other neighbouring regions. The Akha ṇḍ
Bhārat serves as frontispiece of the RSS publication, The Organiser ,
and it is regularly used in pamphlets, posters and other
propagandistic literature. According to that organisation, not only is
India no longer India, because some of its parts have been
amputated, but its body is already decayed by social maladies and
impurity. The editors of the review, The Organiser, systematically
employ the word “ Napakistan ” (“Land of the Impure”) to designate
Pakistan.
35 One recognises in this India, the vital space of which is expanding,
the cosmologic will of the hindutva movement. Thus, the first of the
video cassettes produced by the VHP, entitled Bhāyī pṛakat krpālu
(“The forgiving brothers are brought together again”) presents
precisely this sacred land whose capital is Ayodhya. Bhārat, an off-
camera voice says, is a gift from the superior wisdom embodied in
Rām. And, to assist in the big-bang transforming the cosmos into a
saffron-coloured map, that of Akha ṇḍ Bhārat, a beam of light
illuminates Ayodhya — the heart of the body of hindouité . India is,
thus, less a geographic entity than a cosmological product, born at
the same time as Rām. Once again entering history, which consists of
a summary of the life of Rām, if one is to believe the commentator,
brutal images suddenly appear on the screen: Babur invades Indian
history. Battle upon battle, one sees the Hindu people valiantly
resisting the Muslim invasion under the leadership of kings and
sādhu-s . Sections of a miniature represent a Muslim killing a doe,
shadows of daggers on the wall testify to the perversity of the
barbaric violence. At this moment, Rām re-appears, finally
reincarnated, directing an arrow from his bow and a seductive smile
at the viewer.
A (re-)mapping of territory
A global (re-)mapping
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NOTES
1. The complete title is: Independence and After: A Collection of Speeches 1946-1949, 1956: 247.
2. It is a question of the now famous film Bombay , which was banned from showing in
Maharashtra, in particular because it caricatured Bal Thackeray, the president of the Shiv
Sena. The Muslims were just as discontent: they demonstrated against its distribution, but
for other reasons. Maharashtra, which is the most industrialised state in India, is today
governed by the Hindu nationalist alliance BJP-RSS.
3. I use the word “communal” in its Anglo-Indian sense (and not the Anglo-American)
which designates an exclusive attachment to one’s community combined with an active
hostility towards one or more communities which share one’s geographical and/or political
space. For an exposition of this type of conflict, its magnitude and its characteristics on the
basis of case analyses, refer to A. A. Engineer (1985). On the other hand, the work of J.
Assayag (1996) endeavours to show the complexity of relations between Hindus and
Muslims in situ , in routine life and at the time of festivals.
4. A passage from an article by A. Varshney underlines the specificity of the problem in
South Asia: “Politics based on this imagination [of “partition”] is quite different from what
was seen when Malaysia and Singapore split from each other, or when the Czech and Slovak
republics separated. Territory not being such an inalienable part of their natural identity,
these territorial divorces were not desecrations. In India, they become desecrations of the
sacred geography” (1993: 231).
5. The Indian “xenologic” tradition is commendably explored by Halbfass (1988: chap. 11).
6. As concerns the political, ideological and institutional history of Hindu nationalism, one
may refer to the work of Jaffrelot (1992) and, regarding Hindu and Muslim religious
nationalism, Van der Veer (1994). As pertains to violence and xenophobia, vide Das (1990)
and Kakar (1995).
7. James Rennell later prepared the maps for the journal of Mungo Park’s African
expedition, which became a best-seller (Ludden 1994: 258).
8. The notion that Tibet, and more generally the Himalayas, would be the birth-place of the
Aryan race, was without doubt prompted by Dayananda Sarasvati’s reading of British
writers, as this idea is to be first found among European philosophers, notably Kant and
Herder (Poliakov 1987: 210-213). For a genealogy of the theory of the Aryans as applied in
India by the British, vide J. Leopold (l974).
9. The very vague political programme of the VHP is inspired by two treatises, the
Arthasāstra and the Manusmrti . The first defines a highly organised surveillance system of
the monarchic type and under meddlesome bureaucratic control. The second treatise
elucidates the manner of governing well, that is in particular, how to ensure domination
over Sudras and women (Basu et al. 1993: 78).
10. An article by Pandey (1993) provides a compilation, with commentaries, of some of the
anti-Muslim slogans which are extensively propagated on the subcontinent.
11. Y. K. Malik and V. B. Singh (1995) trace the history of the development of this
nationalist party, from its roots in the RSS and Jana Sangh.
12. Contrary to current nationalists, M. S. Gowalkar distinguished the nation ( rāṣṭṛa) fro m
the state, because he defined it in the first place as “cultural”, that is, embracing a living
community on a territory to which it would have both organic and emotive relations.
13. For a description of the regional configurations of (dominant) castes, vide Assayag
(1995).
14. This struggle, expanded to that for the protection of rivers and cows, is described as
“ecological”. Such an “environmentalist” ideal is purported to be present in the most
ancient religious texts of Brahminism (Basu et al. 1993: 32-33).
15. For a description of the relations between Islam, Christianity and Hinduism, cf. J.
Assayag & G. Tarabout (l996).
16. One should remember the racial tendency of the hindutva movement, notably the
opposition between Aryan and Semitic blood, that is to say, of Muslims and Christians who
sully the body of Bhārat . Only true Indians (i.e. descendants of Aryans) have inherited the
blood of Rām. Regarding the concept of “race” in Hinduist nationalist currents of the years
1920-1930, one may refer to C. Jaffrelot (1995), although he clears them of all (biological)
racism by maintaining a “holistic hierarchic” model based on Dumont (1995: 349). That is to
show little regard for their obsessional and inflationist utilisation of terms associated with
“blood” and “purity”. A quote from M. S. Gowalkar is, in this respect, illuminating: “German
national pride has now become the topic of the day. To keep up the purity of the nation and
its culture, Germany shocked the world by her purging the country of the semitic races —
the Jews. National pride at its highest has been manifested here. Germany has also shown
how well-nigh impossible it is for races and cultures, having differences going to the root,
to be assimilated into one united whole, a good lesson for us in Hindustan to learn and to
profit by” (1949: 27). Cf. P. Robb concerning the concept of race in South Asia (1995).
17. This symbolic violence — in which one recognises the identification of the sacrificer
with the sacrificed victim, according to the mechanism discerned and very well elucidated
by M. Mauss —, serves to show the participation of the militants in the fabrication of the
transcendent and imperishable entity which is the Hindu nation. This interpretation is
drawn from the theory of Bloch (1992).
18. Any action can probably become ritual to the extent that it is endowed with
intentionality (Humphrey & Laidlaw, 1993: 3). Hence, the employment of the notion of
ritual action, namely the idea that an action is transformed through ritualisation (Assayag,
1996). This shows to which extent the argument of the “manipulation” of credulous people
by a political elite, by means of the “instrumentalisation” of religious figures, disregards
adherence of the masses to politicians, who, moreover, are pragmatic or cynical. The
diabolical malignity of A. Hitler no more explains Nazi National Socialism, than the
idiosyncrasies of L. K. Advani or B. Thackeray explain the fact that more than one hundred
million Indians vote saffron. Cf. note 20.
19. This is an allusion to the German controversy between “intentionalist” historians, who
attempt to explain the exceptionality of the Nazi regime by that of its leader, of his ideology
and, notably, of his visceral anti-Semitism which led to genocide, and the “functionalists”,
who characterise the régime as polyarchic, that is, a (dis)organisation constituted of
numerous centres of power and more or less autonomous bureaucratic institutions,
federated through the person of Hitler alone.
20. This conforms to the idea of V. D. Savarkar, according to which there exists a
substratum common to all Hindus, irrespective of ethnic group, status, caste or practices:
“We are all Hindus and own a common blood” (1969: 89). A state-ment which today
authorises the hindutva movement to induce Untouchables to enter into the fold of a unified
“saffron” Hinduism.
21. Thus, as P. Lutgendorf has noted, the essential element in the interpretation of the Rām
rāj is present in the rhetoric of the nationalist parties, notwithstanding the slogan used:
Rām rājya for the Rama R a jya Parishad (RRP), dharma rāj for the Jan Sangh (JS), Hindu rāstra
for the Hindu Mahasabha (MH), Bhāratīya Maryādā for the Swatantra Party (SP) (1995: 276).
22. An article by A. Basu presents the three renunciant viragoes, furious prophetesses of
hindutva . Vijayraje Scindia, who was at the avant-garde in defence of the custom of satī ,
Uma Bharati, known as the “sexy saṃnyāsin ”, and Sadhavi. Rithambara. A transcription of a
discourse by the latter can be read in the magazine Manushi (Kishwar 1990). S. Kakar has
given psychoanalytic commentaries on longer passages from a speech given by Sadhavi
Rithambara (1995: 197-214) which he has translated.
23. This passage is cited by A. Basu (1995: 164) and Kakar (1995: 213) in two slightly
different forms. This invective clearly brings out the fact that the theory of the political
instrumentalisation of religious figures explains nothing, or very little, as far as it is here a
question of conviction, and not only of Sadhavi Rithambara, but of more than one hundred
million voters; cf. note 15.
ABSTRACTS
This essay is focused on the construction of the geopolotical and symbolic “body” of the
Indian nation in three distinct periods: the British raj ; the movement that precedes and
follows independence in 1947; and the controversial and troublesome times which began in
the 1980s.
In each of these moments, several resources allowed for the conceptualization and
imagination of the body of India — British imperial cartography, the centrality of the cow,
and Ramraj (the realm of the Hindu god Rāma , an avatar of Vi ṣṇ u ). Asserting the integrity
of the symbolic body of India, these resources have also been used as tools for a disquieting
Hindu integralism, in the conditions of religious and ethnic strife of contemporary India.
Este texto centra-se na construção do “corpo” geopolítico e simbólico da nação indiana em
três grandes períodos: o raj britânico, o movimento que precede e se segue à independência,
em 1947, e os tempos controversos e convulsos iniciados nos anos 80.
Em cada um destes momentos foram vários os recursos que permitiram conceptualizar a
imaginação do corpo da Índia — a cartografia imperial britânica, a centralidade da vaca e o
rāmraj (o reino do deus hindu Rāma, avatar de Viṣṇu). Na actualidade esses recursos, mais
do que postularem a integridade do corpo simbólico da Índia, são objecto de apropriações
que, no quadro dos actuais conflitos que atravessam o subcontinente indiano, remetem para
expressões de um inquietante integralismo hindu.
AUTHOR
JACKIE ASSAYAG
CNRS École Française d’Extrême Orient 22, Av du Président Wilson, Paris
O Islão plástico: transformações da
intimidade em contexto popular
marroquino
Maria Cardeira da Silva
Tabitgate
4 Um episódio que me levou a querer experimentar em contexto
marroquino a proposta de Giddens foi o Tabitgate (como vinha
rotulado em um dos muitos jornais marroquinos que durante
semanas se debruçaram sobre o assunto): em 1993, descobriuse que
um comissário da polícia de Casablanca — Tabit — violara centenas
de mulheres, registando em vídeo as atrocidades cometidas com
requintes de malvadez. O caso, que envolvia a cumplicidade de
outros agentes e que ganhou contornos políticos difíceis de
acompanhar, fez espoletar uma crise de consciência em torno da
prepotência institucional e das relações de género. Da oportunidade
política deste debate não me ocuparei aqui. O que é facto é que,
enquanto nos corredores do palácio se preparavam comunicados
reais, o assunto era discutido em cada esquina da medina pelos
rapazes desempregados, em cada sala da universidade pelos
estudantes e em cada cozinha ou terraço pelas mulheres. Um assunto
tão privado e protegido pela tradição como o da sexualidade — ilícita
e aberrante ainda por cima — era exposto e discutido privada e
institucionalmente, inflamando questões latentes como as dos papéis
das mulheres e da prepotência masculina. A materialidade das
cassetes – que em última análise impossibilitara qualquer tentativa
de vilipêndio do processo judicial — aparecia em muitos dos relatos
detalhados como uma perversidade maior, mais desconcertante. A
exposição pública do harām — do sagrado, do interdito — perpetrada
por meios de difusão moderna surgia como um elemento
perturbador central. Na verdade, o que o caso Tabit fez foi espoletar
um processo de reflexividade social e institucional que, por outras
razões acumuladas, já se encontrava em curso a outro nível: as vozes
agora mais sonantes das mulheres testemunhavam uma longa
experiência reflexiva. Manifestava-se essa experiência (como para as
raparigas entrevistadas por Thompson, em 1989) na fluência
narrativa que acompanhava as suas opiniões, treinada, sem dúvida —
e então, mais uma vez praticada —, nas tardes de conversa ao lado do
chá de menta, em frente à televisão, nas idas ao hammam (banhos
públicos) ou ao marabuto (santo local), nos encontros com as
vizinhas no suq. Não era, evidentemente, a primeira vez que elas se
lançavam nessa empresa reflexiva do self.
5 Na introdução de Transformações da Intimidade, Giddens diz que o
declínio do poder dos homens sobre as mulheres produz
simultaneamente um fluxo crescente de violência entre sexos. É fácil
relacionar isso com o que disse antes sobre a sociedade de risco (1994
[1991]): as mulheres estão mais protegidas na pré-modernidade. É a
relutância em relação à mudança que transforma a violência
masculina numa base de controlo sexual, mais comum na
modernidade do que nas sociedades pré-modernas: “Por outras
palavras, uma larga percentagem de violência sexual masculina
decorre actualmente mais da insegurança e da inadequação do que
de uma dominação patriarcal”(1995 [1992]: 85). Ora a discussão em
torno do caso Tabit era equívoca: a par dos comentários revoltados
das minhas vizinhas contra a prepotência dos homens — e mais
controlados contra o sistema político em geral —, não foram raras
outras reacções, femininas e masculinas, que se apressaram em
culpabilizar também as vítimas pela exposição a situações cujas
consequências, dentro do quadro de uma tradição, conheciam bem.
Negligenciando-se a prepotência policial evidente, estas mulheres
eram proscritas por terem possibilitado um encontro com um
homem, que não o seu, num local que não a sua casa. As vítimas
foram castigadas — muitas delas repudiadas pelos seus maridos —
por terem arriscado sair da segurança da redoma estrita dos códigos
tradicionais. Estas mulheres eram acusadas, dentro de uma lógica
patriarcal, pela modernidade dos seus comportamentos. Por seu
turno, as reacções mais comuns das minhas vizinhas que as
defendiam — e se solidarizavam contra a arbitrariedade masculina,
nomeadamente dos maridos desleais — eram de alguma maneira
interpretáveis à luz das relações puras que Giddens formula para a
modernidade: centradas sobre o compromisso e a história partilhada.
Aicha passa-me sempre os artigos de jornais sobre o caso de Tabit. Desta vez
mostroume mais outro para confirmar o que me havia dito anteriormente: todos
os maridos das implicadas no caso tinham pedido o divórcio. Ela estava muito
revoltada (e Melika também) e, por isso, pude dar largas à minha indignação.
Quando lhe disse que os homens deviam perceber que as suas mulheres não eram
culpadas, ela retorquiu que isso eles percebiam, mas que não aceitavam que as
mulheres lhes tivessem escondido o facto, o que, para ela, também era
compreensível.
6 A questão que se me punha então era a de saber se a violência em
causa (não falo apenas da de Tabit mas daquela mais geral, entre
géneros, que no fundo era a que se debatia para além da prepotência
institucionalizada) era de tipo patriarcal, ou dessa outra — de que
Giddens fala — desencadeada pela reacção destrutiva a uma
progressiva perda de controlo dos homens sobre as mulheres. A
tensão entre géneros very typical dos contextos muçulmanos seria
genuína, isto é, tradicional? Dito de outro modo mais básico mas mais
operacional: era essa violência de tipo pré-moderno ou moderno?
Amor romântico
11 O Islão não se limitou — como o cristianismo — a associar a
sexualidade à reprodução. Enquanto código de conduta estipulou a
sexualidade não reprodutora dissociando-a da outra, que associava
ao casamento, e colocando-a historicamente no quadro da
concubinagem legítima. Antigamente, este regime (a lei islâmica
previa, para além das quatro esposas legais, um outro tipo de união
com concubinas) albergava o domínio do sexo e erotismo,
despoluindo o outro mundo das esposas legais, mães e reprodutoras,
e dividindo o feminino entre esposas e antiesposas (Bouhdiba 1982
[1975]). A decadência da prática da concubinagem desfuncionalizou
um sistema que, pelo menos do ponto de vista masculino, punha
tudo no seu lugar. No entanto, a poligamia, em sentido contrário mas
de certo modo convergente, permite a adequação do desejo múltiplo
masculino ao quadro legal da reprodução mais alargado para ele do
que para a mulher: a separação entre as mulheres/sexualidade e as
mulheres/maternidade mantém-se e expressa-se facilmente pela
acumulação de esposas de “estatuto” diferente permitida pelos
casamentos múltiplos. Mais do que recusar uma sexualidade erótica
a par da outra mais funcional, o Islão reconheceu-a, concedendo-lhe
lugar próprio para melhor poder controlar uma e outra, construindo
um desses lugares em que a ars erotica era limitada a grupos
específicos.
12 Hoje em dia, o regime de concubinagem não é legal e a poligamia foi
já proibida em alguns países islâmicos como a Tunísia. Em Marrocos,
as taxas oficiais de poligamia rondam os três por cento, embora estes
valores não contemplem certamente muitos dos casos em que o
homem mantém, algumas vezes em segredo, diferentes relações no
que hoje vem a assumir formas semelhantes a uma
extraconjugalidade dispersa em apartamentos montados, vagamente
legitimada por códigos mais ancestrais e convenientes (para os
homens). Independentemente dos procedimentos legais de
desencorajamento a estas práticas 3 , o que é facto é que, ainda hoje,
a separação dos dois tipos da sexualidade é estruturante do discurso
masculino sobre o género, embora esse código seja articulado com
novos vocabulários: em muitos casos são as estrangeiras que
ocupam, em termos de imaginário, o antigo lugar das concubinas. É
assim que é comum ouvir os homens dizer que querem uma
namorada europeia e uma esposa marroquina. Mas não são apenas os
homens que retêm essas ancestrais oposições:
Melika discutia com Miriam na cozinha a propósito de mais uma das crises
conjugais de sua mãe. Falavam da mulher com quem Monsieur Samir se
encontrava em Kenitra e das possibilidades que Aicha teria para afastá-lo
daquela puta. Melika dizia que a mãe era muito agressiva e que tinha até batido
no pai. Miriam retorquiu: “Sim, mas a Aicha — meskinâ (coitadinha) — não tem
hipóteses porque ela não sabe fazer aquelas coisas à europeia que a outra faz.”
Eu, que estava a ouvi-las enquanto trabalhava no computador, não resisti e desci
à cozinha para perguntar o que é que isso queria dizer: “Então, tu deves saber...
(disse Miriam com malícia): fazer amor com as luzes acesas e outras coisas...”.
13 As mulheres da medina temem especialmente as concorrentes
europeias: o imaginário marroquino erotiza e disponibiliza
sexualmente as estrangeiras 4 , para além de, nos meios mais
pobres, as tornar acrescidamente atractivas para os homens por
potencialidades económicas.
14 Mas, se para os homens a dicotomia é resolvida por reinterpretações
confortáveis de códigos ainda vigentes, as mulheres experimentam o
desconforto de uma atracção por um modelo moderno, que lhes
permite ao mesmo tempo ser esposas e amantes, contrariada pela
compulsão masculina que só as protege enquanto esposas e mães.
Elas exigem, para a constituição da sua feminilidade, essa
componente erótica que lhes era negada, e treinam-na mesmo, nas
suas matinées em torno dos vídeos das tradicionais xikhâs (dançarinas,
prostitutas) que sempre invejaram secretamente e cujos movimentos
de corpo podem agora melhor imitar. Mais do que um amor
romântico, as mulheres chegam mesmo a sonhar com um amor
confluente, nesse sentido em que pressupõe o desaparecimento da divisão
entre mulher respeitável e aquelas que de algum modo estão fora da vida
social ortodoxa (Giddens 1992).
15 Mas estes sonhos de amor inteiro não são inéditos, nem foram
negligenciados pela literatura islâmica. Na verdade, não será de mais
sublinhar o impacte (se não a influência) que textos como o de Ibn
Hazm (O Colar da Pomba) exerceram sobre o amor cortês, essa
primeira forma ocidental de amor romântico. E mesmo o paradigma
do romantismo condenado de Tristão e Isolda tem correspondência
na história de Urwa e a filha do seu tio paterno Arfa, castigados por
terem sobreposto o seu amor — que também foi fatal — à prescrição
natural do casamento entre primos. O amor romântico existe em
múltiplos lugares do tempo e do espaço islâmico e muito foi escrito
sobre isso. E se, na maioria dos casos, como Giddens refere, as
histórias e mitos criados a seu respeito condenam quem procurava criar
ligações permanentes através do amor apaixonado (1995 [1992]: 26), pelo
menos em uma delas, que nos toca mais de perto, é o amor puro que
triunfa, ultrapassando fronteiras entre categorias inconciliáveis: não
viveu Al Mutamid — o príncipe de Sevilha, nascido em Beja e que
animou os saraus de poesia de Silves — uma relação de amor
duradoura com Intimad, a escrava de Romaik? Mesmo a
especificidade europeia da associação dos ideais amorosos aos
valores morais da religião, onde Giddens encontra a emergência de
uma certa reflexividade, deve ser revista se tivermos em conta sufis
platonizantes como Ibn Hazm ou Ghazali. Não reconhecer estas
coincidências é cair precipitadamente numa perspectiva weberiana:
aquela que recusa ao Islão qualquer possibilidade de modernização —
quer ela se refira à economia, quer se circunscreva à construção da
personalidade entendida como um projecto racional (ideia em que,
de resto, Giddens se inspira. Ver Turner 1994: 189,190) —, alegando o
óbice de uma sensualidade islâmica, contrastante com a negação da
luxúria típica da espiritualidade ascética protestante que foi o motor
da modernidade (Weber 1967 [1947]).
16 Não queria, nem posso, desenvolver o argumento histórico que
alimentaria esta discussão (levantada, entre outros, por Turner em
1974 e 1994). A minha intenção é a de demonstrar que, contra as
expectativas de Weber (e também contra a proposta evolutiva
implícita de Giddens), o Islão não parece incompatível com os
processos descritos como típicos da alta modernidade no que respeita
à construção do género e do self.
17 Tal como as mulheres dos Awlād Ali, também as marroquinas
utilizaram de diferentes modos a poesia da vida pessoal (Abu-Lughod
1986), como forma de expressão e reaferimento do self. O exemplo
mais bem documentado é o dos antigos cantos (arubi, corruptela de
rubai, que significa quadra) das mulheres de Fez, recolhidos por
Mohamed al-Fassi 5 . Estes cantos, à semelhança do amor cortês dos
trovadores e daquilo que acontece em outros contextos islamizados
6 , eram por vezes pronunciados de forma travestida, dirigindo-se
O corpo de plástico
23 O tema de Tabit manteve-se durante algum tempo como tónica de
conversa na medina.
Aicha começou então a fazer descrições das barbaridades com a crueza que
caracteriza as mulheres da medina e por fim a ironizar, sobretudo quando se
tratava das cenas com henna [as descrições das sevícias que circulavam na medina
incluíam detalhes com pinturas de henna sobre os corpos das vítimas], que não
sei se se passaram de facto. O cúmulo da crueza e do humor cortante é sem
dúvida Miriam quem o consegue: quando se falou de um médico envolvido no
caso que repunha o hímen das vítimas e que provocava abortos, ela disse: “Um
fazia, o outro desfazia, ou vice-versa”. E riram todas.
24 A reposição do hímen não é um fenómeno meramente proverbial em
Marrocos. De resto, autores como Guessous (1989) referenciam-no a
par de outras tácticas adaptativas do corpo e da sexualidade aos
constrangimentos sociais. Na verdade, a inadequação entre normas
islâmicas e sociais a propósito da sexualidade e as práticas sexuais
correntes é por vezes tão desconcertante que um olhar estrangeiro
desprevenido, conhecedor apenas dos estereótipos de uma literatura
largamente divulgada no Ocidente e que acentua a rigidez dos códigos
islâmicos, pode aí encontrar alguma hipocrisia. Lembro-me de ficar
surpreendida com as primeiras conversas com as mulheres da medina
que, provavelmente também de modo provocatório (porque as
mulheres sabem bem o que se diz no estrangeiro a respeito delas),
discorriam brejeiramente sobre o assunto envolvendo mesmo
(também provocatoriamente) alguns homens nas suas interpelações.
Existem espaços e tempos especialmente apelativos para a conversa
sobre temas sexuais: o hammām e o mês do Ramadão (em que a
abstinência é sobrecarregada pela malícia feminina que condimenta
o fTūr — refeição que quebra o jejum — com produtos afrodisíacos)
são os paradigmas disso. Mas a fluência sobre o assunto ultrapassa-os
e perpassa as conversas quotidianas onde são reconhecidos prazeres
e desprazeres e descritas anatomias. Para além disso, existe mesmo
um acervo considerável de técnicas mais radicais — quando a
cosmética não funciona — de atrair os homens, de torná-los mais ou
menos fogosos, enfim, uma panóplia cujos segredos femininos
mesmo eu fui obrigada a comprometer-me a não desvendar.
25 Giddens fala da importância do desenvolvimento moderno de uma
sexualidade plástica para a democratização da intimidade em curso
nas sociedades ocidentais (1995 [1992]). Resume-a como uma
sexualidade desligada da sua conexão ancestral com a reprodução,
com o parentesco e com as gerações. Ora em contexto marroquino, o
primeiro obstáculo a uma sexualidade plástica (isto é, no seu sentido
mais restrito, isenta do medo com que a sua associação à anatomia o
sobrecarrega) é o controlo sobre a virgindade, que é exercido não
apenas pelo marido mas pelos dois grupos domésticos envolvidos no
casamento, e pela exibição do lençol do desfloramento. Este primeiro
obstáculo pode, no entanto, ser contornado pelo menos de três
modos: pela reposição cirúrgica do hímen; pela falsificação da
mancha virginal no lençol — através da sua substituição pelo sangue
de um animal, implicando a conivência do noivo, à qual não se
esquiva necessariamente, pois as represálias sociais também o
atingiriam independentemente da responsabilidade na transgressão;
pelo exercício de uma sexualidade que procure o prazer em práticas
alternativas à penetração.
Sumia andava muito preocupada, porque Uacila — sua sobrinha, ainda noiva —
dormia frequentemente com o seu namorado. Ela não tinha, no entanto, coragem
para falar com a rapariga. Como Uacila costumava vir a casa de Miriam fumar
uns cigarros — o que instalara alguma cumplicidade entre as duas —, pediu a esta
que lhe dissesse alguma coisa. Uacila virou-se para Miriam e disse-lhe: “Eu não
sou parva: nós dormimos juntos, mas eu não tiro as cuecas, e temos prazer assim,
sem penetração.”
26 A tal ponto é comum a contravenção das normas sexuais explícitas
que o desvio passa a ser, em alguns momentos, culturalizado: fazer
amor a la marocaine é a designação corrente para esse tipo de relação
sexual sem penetração vaginal efectiva, praticada por algumas
raparigas antes do casamento sem pôr em risco a sua virgindade.
27 O segundo obstáculo para uma sexualidade plástica é o da associação
da actividade sexual à reprodução. Mas também esse tabu é
ultrapassável de vários modos.
Tinham-me dito que muitas das mulheres que “iam com homens” em Kenitra 9
vinham de Salé. Quando o referi a Miriam, ela confessou-me que era verdade,
apontando algumas das nossas conhecidas. Depois de refeita do espanto
perguntei-lhe porque o faziam, ao que ela me respondeu que era apenas para se
divertirem e para terem dinheiro para jilābâ-s e pulseiras. Fez-me depois ver que
— ao contrário das raparigas mais novas que o faziam, muitas vezes, como modo
de subsistência — estas eram em geral mulheres casadas, mais “atractivas para os
homens” por estarem protegidas pelo casamento do tabu da virgindade ou de
uma eventual gravidez.
28 Embora os métodos contraceptivos sejam relativamente difundidos
em Marrocos, a sua utilização não é ainda regular nalguns meios
populares. Para além disso, sendo os métodos femininos — como a
pílula — os mais correntes, os homens nem sempre confiam na sua
“eficácia” (não confiando também, de um modo geral, nas mulheres),
pelo que são as casadas — ultrapassado o estigma da virgindade e
com a gravidez legitimada pelo casamento — que dispõem de mais
liberdade para uma sexualidade conjugal ou extraconjugal que, na
verdade, algumas praticam a coberto da sua protecção institucional.
O tabu da virgindade faz com que homens e mulheres se relacionem
mais descontraidamente depois da “primeira vez”. Os homens não
temem assim ser acusados de um crime mais grave do que o próprio
adultério e as mulheres, tendo escapado já ao controlo sobre a sua
virgindade têm, apesar de tudo, mais liberdade para a infidelidade.
29 Deverá isto tudo ser simplesmente encarado como subversão ou
desvio, ou mesmo hipocrisia? Pode ser, mas isso limita-nos
novamente a uma noção de cultura essencialista, estática e
imperturbável ao uso que as pessoas fazem dela, eventualmente
moralista, inspirada num modelo do pecado cristão. É talvez nessa
linha que, em 1992, Bouhdiba reage exaltadamente a algumas
apreciações ocidentais sobre a sexualidade no Norte de África,
denunciando o simplismo orientalista da dicotomia proposta entre
condutas aderentes e não aderentes à tradição. O seu contra-
argumento de fundo é o de que o Islão e as suas interpretações
magrebinas são, por si, integrativos de práticas “desviantes”, através
de teorias tampão que fornecem um sistema institucionalizante da
sexualidade, suficientemente plástico para minimizar os efeitos
sociais de práticas pouco conformes. Falando da complacência
original da xarīa, ele refere a aplicação da pena máxima para o
adultério apenas quando cometido entre duas pessoas casadas
legalmente e na situação (improvável) de que quatro homens
testemunhem ter visto os órgãos sexuais dos envolvidos. A esta
cláusula ardilosa poderíamos juntar muitas outras, como as que,
durante o período de jejum do Ramadão, proíbem aparentemente a
relação sexual mas fazendo apenas referência explícita à ejaculação.
Desta engenhosa “racionalidade” islâmica falaremos adiante. Para já,
são sobretudo as teorias tampão — que se constituem de modo
complementar ao Islão sobre a vida quotidiana dos magrebinos — que
melhor confirmam essa ideia de plasticidade integrativa que
Bouhdiba quer acentuar para os códigos sexuais. A mais
interessante, para mim, é a teoria do bebé adormecido (al raGad).
Miriam contou-me como uma mulher sua conhecida, passados dez anos de o
marido ter morrido, foi ao médico e este lhe disse que ela estava grávida. O filho
mais velho, já grande e casado, que sabia que a mãe não era uma puta, deu uma
grande festa no dia nascimento do irmãozito. Uma outra mulher sua vizinha teve
três filhos com uma gravidez de sete anos para cada um. Um destes rapazinhos
brincava no grupo de amigos do filho de Miriam, onde era conhecido pelo “Rapaz
dos Sete Anos”.
30 A função integrativa desta teoria, a margem de manipulação da
paternidade que concede às mulheres e a possibilidade de inscrição
de um projecto no seu corpo, não deixa de ser surpreendente, embora
ela deva ser também entendida de modo mais lato como uma medida
preventiva da sexualidade ilegítima (zīna). Até 1957, o regime
malikita (o sistema jurídico em vigor em Marrocos, fundado por
Maliki, que se diz ter sido, ele próprio, um bebé adormecido)
contemplou-a e, mesmo hoje, na Moudawwana — Código do Estatuto
Pessoal — é visível a sua influência no artigo 76, que refere que em
situação de dúvida relativamente à gravidez de uma mulher passado
um ano do divórcio ou da morte do seu marido o caso deve ir a
tribunal e ser decidido em função de observação médica. Embora
tenha perdido a sua sanção legal, a teoria do bebé adormecido
continua a ser eficaz em termos sociais (pelo menos em meios
populares), denunciando o princípio de uma matrifocalidade real,
reforçada pela entrada das mulheres no mercado de trabalho (Mir-
Hosseini, 1991).
31 Muito foi escrito sobre esta teoria, mas é interessante referenciar a
curiosidade que ela espoletou entre os ginecologistas franceses
(Champagne 1955; Jahir e Bousquet 1946; Lalu (Ksiri) 1954),
paradigmas do instrumento do biopoder assinalado por Foucault. Em
primeira instância, o que a crença no bebé adormecido demonstra é
o acolhimento social de uma sexualidade desvinculada dos seus
constrangimentos naturais. Mas existem outros dispositivos
tradicionais que vão nesse sentido. Uma técnica tradicional que pode
permitir a negociação da sexualidade simétrica à do raGad é o
recurso à prática da tqāfâ. O termo indica a noção de fechamento —
fechamento do corpo — e refere-se a formas de shur (feitiçaria) que
podem utilizar o henna das noivas na festa que antecede a do
casamento ou outras tácticas para impedir a penetração sexual ou,
simetricamente, a impotência aos homens. Todos estes estratagemas
são bem o exemplo dos expedientes culturais vários para justificar
socialmente a impotência ou a esterilidade, mas, novamente,
também devem ser interpretados como idiomas que podem ser
manipulados e negociados para justificar escolhas pessoais.
32 O que eu estou a tentar aqui dizer é que existem neste Islão local e
popular disposições várias que desvinculam a sexualidade da
anatomia bruta, quer isso seja feito pela própria ortodoxia ao criar
zonas de vazio interpretativo, pela feitiçaria ao justificar insucessos,
ou por teorias socialmente aceites que legitimam o que
naturalmente seria ilegítimo. Criado este espaço de manobra
treinado tradicionalmente, que permite a integração de condutas
sexuais teoricamente desviantes, as práticas da reposição do hímen
ou do amour a la marocaine deixam de ser tão surpreendentes: elas
seguem uma lógica tradicional que continua de certa forma a
submeter o corpo, mas não necessariamente a sexualidade.
33 Existe porventura algo de mais profundo no Islão que permite esta
paradoxal “liberdade” sexual: a ideia de poluição. Muito foi escrito
sobre a ausência da noção de pecado no Islão e da sua substituição
pela ideia de impureza que, na praxis islâmica, se traduz na
preocupação quase ansiogénica com a purificação, tanto pelas
abluções como pelo jejum (cf. Bouhdiba 1964; 1982 [1975]). Esta
orientação colocaria as sociedades islâmicas no grupo daquelas que,
naquilo que respeita a regulamentação dos instintos, privilegiam a
estratégia das regras de conduta segregacionistas, em detrimento da
interiorização dos interditos sexuais durante o processo de
socialização (Murdock 1965). Já em 1996 (1996a) sublinhei a
facilidade com que o discurso sobre a abstinência é transformado em
discurso higienista ou/e, de certo modo, calvinista, no sentido em
que demonstra a capacidade individual de autocontrolo e contenção.
O mesmo pode ser aplicado às abluções hoje justificadas não pelas
“impurezas da alma” mas pelos “micróbios” do corpo. Desse ponto
de vista, e independentemente do seu sentido original, a assepsia
islâmica, contrária ao imaginário luxuriante de Weber, coaduna-se
bem com o discurso higienista racional da modernidade. Na verdade,
ela permite queimar as etapas do depuramento moral pelo
ascetismo, até chegar a um controlo racional sobre a sexualidade e o
corpo individual. De um ponto de vista mais lato, e isto merece
desenvolvimento, esta é mais uma pista que nos permitiria
contradizer o princípio weberiano da “irracionalidade” implícita às
religiões orientais e a ideia de que o Islão, vinculado ao princípio da
predeterminação (Weber 1967 [1947] 130: 37) inibe a emergência de
narrativas individuais.
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NOTAS
1. Um período de vinte meses — entre 1991 e 1993 — em que desenvolvi trabalho de campo
com vista à minha tese de doutoramento: Redes e Enredos na Rua de Mul Habib. Tácticas e
Enunciados da Contemporaneidade entre as Mulheres da Medina de Salé. Este meu trabalho foi
apoiado, em diferentes períodos e de modos diferentes, pela Junta Nacional de Investigação
Científica, pela Fundação Calouste Gulbenkian e pelo Centro de Estudos Africanos e
Asiáticos do Instituto de Investigação Científica e Tropical.
2. Muitas vezes com a cumplicidade ambígua dos autores muçulmanos. Veja-se, por
exemplo, Mernissi 1992: 247 n 10.
3. O próprio texto corânico parece já preocupar-se com os distúrbios eventuais decorrentes
das suas disposições, impondo aos polígamos a obrigatoriedade de uma distribuição
equitativa de bens e afectos pelas esposas, no que algumas leituras mais conciliatórias vêem
uma forma subtil de proibição. A Moudawwana — código do estatuto pessoal e das sucessões
em Marrocos — prevê, no seu artigo 31, a possibilidade de a mulher exigir compromisso de
monogamia ao marido no momento da acta de casamento, permitindo-lhe o divórcio em
caso de não cumprimento por parte do cônjuge.
4. De um modo geral, as representações das mulheres marroquinas sobre o género no
Ocidente apresentam-se, em muitas vertentes, simétricas àquelas que o orientalismo
projectou no Oriente e, ao mesmo tempo, cruzadas com as do imaginário relativo aos
homens. Para elas, os homens europeus, ao contrário das mulheres, são apresentados com
uma sexualidade mais controlada do que os seus compatriotas, o que pode ser interpretado
contextualmente de forma positiva — contra a “bestialidade” dos machos marroquinos — ou
negativamente como impotentes pelo facto de não serem circuncisos — quando entendidos
como representantes de outra “religião”.
5. Não foi por acaso que a recolha foi elaborada por al-Fassi, uma das figuras proeminentes
do renascimento nacionalista marroquino, cujo empenho na revalorização das mulheres
enquanto guardiãs da identidade cultural foi evidente.
6. Como na Mauritânia: Aline Tauzin, comunicação verbal.
7. Hannah Davis (1990) fala também do visionamento de vídeos pornográficos e da sua
função catalisadora relativamente às representações sobre a sexualidade em meio popular
marroquino.
8.Conferência não publicada de Dale Eickelman na FCSH — UNL, Dez. 1996:
“Communications and the Fragmentation of Authority in the Middle East and North Africa”.
Ver também Eickelman & Piscatori 1996.
9. Kenitra é uma cidade a cerca de trinta quilómetros de Rabat que, tal como Salé, preservou
de certa forma a ordem espacial — e não só — da capital. Acolheu a miséria dos migrantes
que a procuraram não como cidade, mas como franja urbana de Rabat capitalizada pela
colonização francesa.
10. Em Marrocos, por exemplo, o porta-voz oficioso de um dos líderes fundamentalistas
mais carismáticos é a sua filha.
11.Tradução livre com base no texto em inglês cedido por Dale Eickelman: © 1993.
Translation from Moroccan by Rachid Aadnani and Dale Eickelman © 1995. A tradução
inglesa sublinha a ambiguidade do título e do refrão: La Tabet — “não a Tabit” — pode
também significar em dialectal “sem remorso”. Sublinha ainda a recorrência ao termo siba
(fora de controle) que na história marroquina designou os grupos tribais rebeldes à política
central (makhzan).
RESUMOS
Seguindo um argumento anterior, tento aqui encontrar vestígios das transformações da
intimidade que Giddens detectou na modernidade ocidental entre as mulheres de um bairro
popular da medina de Salé, em Marrocos. Começo pela interpretação do processo reflexivo
espoletado em torno do Tabitgate (1993) — o caso de um comissário da polícia que violou
centenas de mulheres — e prossigo etnograficamente outros domínios que sugerem, contra
Weber e seus seguidores, que existem dispositivos islâmicos abertos à modernidade no que
respeita a concepção do corpo e do self como projectos individuais e racionais. Argumento
também que só através da análise dos contextos informais e domésticos em que as mulheres
desenvolvem as suas redes sociais se podem compreender as noções de pessoa, self e
comunidade, bem como o modo como o género e a religião são reimaginados num processo
de bricolage que recicla tradição e modernidade.
Following a previous argument I will try to find traces of the transformations of intimacy
which Giddens found in the western modernity among women of a Moroccan lower class
quarter in the medina of Salé. I begin with the interpretation of the reflexive process built
around the Tabitgate (1993) — the case of a police officer which raped hundreds of women —
and pursue ethnographically through a number of domains that suggest, against Weber and
his followers, that there are some Islamic predisposals for modernity in what regards the
body and the self as individual and rational projects . I will also argue that only through an
assessment of the informal and domestic contexts in which women form social
relationships may one attain an understanding of the ideas of person, self , and community,
and get a sense of how gender and religious roles are reimagined through a bricolage which
makes it difficult to separate the traditional from the modern .
AUTOR
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NOTAS
1. Este texto foi apresentado, numa primeira versão muito diferente, no colóquio “Ver
África, Imaginar os Africanos”, realizado, em Maio de 1995, no Museu Nacional de Etnologia
de Lisboa. Agradeço, em particular, a Joaquim Pais de Brito, co-organizador do colóquio,
pelo desafio que então me formulou. Nesta versão mais alargada, retomo alguns fragmentos
de textos de circulação universitária restrita (em especial, Valverde 1992a; 1992b) — em que
as leituras críticas de João de Pina Cabral foram preciosas.
2. Dentre as muitas referências bibliográficas, saliento alguns textos significativos, com uma
especial referência ao contexto africanista: Beidelman 1982; Benoist 1987; Bernand e
Gruzinski 1988; Blakely, Van Beek e Thomson 1994; Blanckaert 1985; Bonsen, Marks e
Miedema 1990; Bowie, Kirkwood e Ardener 1993; Bureau 1996; Burridge 1991; Chrétien 1993;
Clifford 1982; Comaroff 1985; Comaroff e Comaroff 1991,1992; Duverger 1987; Garvey 1994;
Gifford 1995; Goodman 1994; Hastings 1989, 1994; Hefner 1993; Huber 1988; Kabongo-Mbaya
1992; Kulp 1987; Landau 1995; Mbembe 1988; Monnier 1995; Mudimbe 1988; Oosthuizen
1992; Oosthuizen e Becken 1994; Péclard 1995; Piepke 1988; Quenum 1993; Rafael 1993 (1988
1 ); Raison-Jourde 1991; Rambo 1993; Salamone 1983; Salvaing 1995; Stromberg 1993;
RESUMOS
Nas narrativas missionárias sobre a África colonial portuguesa (1930-60), as reflexões sobre
o corpo são centrais. A materialidade biológica origina uma linguagem, dominada por
tropos somáticos, que é utilizada pelos missionários para avaliarem a sua experiência do
mundo. Os modelos missionários, plurais e mesmo conflitivos, da corporalidade permitem
interpretar e controlar as ambiguidades e os perigos de um mundo mutável muitas vezes
hostil. E, de um modo crucial, é largamente através de uma praxis de reconstrução e, no
limite, de destruição sacrificial do corpo e da subjectividade que os projectos evangélicos
reflectem a transformação da sociedade presente e a possibilidade da salvação e da utopia
do reino de Deus.
AUTOR
PAULO VALVERDE
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NOTAS
1. Cf. Isaías (XIV, 12-15) e a Epístola aos Hebreus (II, 7).
2.O texto completo da passagem, apresentado por R. Warburg, é o seguinte: “Afirma-se que
existe uma ave num país do Oriente que, armada apenas com um grande e forte bico,
provoca, com gritos audaciosos, a serpente que pretende combater. Cobre
propositadamente com poeira o corpo, assim como o colar de pérolas de diferentes cores
com que a natureza generosamente o adornou. Tomando assim uma aparência
insignificante, a ave surpreende o inimigo com esta aparição invulgar e engana-o, por assim
dizer, pela segurança que este sente perante tal miserável aparência. Colocando a sua cauda
como o escudo de um guerreiro frente à cabeça, ela ataca audaciosamente a cabeça do seu
furioso adversário, perfura o cérebro do espantado animal com a inesperada arma que é o
seu bico e assim mata o seu monstruoso inimigo, graças à sua maravilhosa inteligência.
Cristo vestiu-se com a fraqueza humana e cobriu-se com a sujidade da nossa carne para
combater na forma de um homem pelo benefício da salvação e para enganar o ímpio
enganador com a sua piedosa fraude, e escondeu a sua forma original com esta última, lançando,
por assim dizer, a cauda da humanidade sobre a face da divindade, e extinguiu como que com um
forte bico a malícia venenosa do velho aniquilador dos homens, através da palavra da sua
boca. Por isso, o Apóstolo diz: ‘Através da palavra da sua boca ele matará os malditos’”
(Warburg 1937: 253).
3. Pelo menos desde Ambrosio, De Jacob e da Vida Feliz , I,3 (Warburg 1937: 254 n. 7); sobre
este tema ver Wittkower 1987: 15-44.
4. A luta entre o icnêumone e as serpentes é narrada por Aristóteles (Hist. Anim., IX, VII, 3),
por Estrabão (Geografia, XVII, 812), e Aeliano (Caract. Anim., VII, 38), sempre evocando o
mesmo pormenor: cobre-se de pó, antes do combate que trava contra as serpentes (não para
Plínio, que o descreve como caçador de ovos de crocodilo, Nat. Hist., VIII, 36); o seu nome
grego deriva das suas características etológicas (gr. ichneuein: “perseguir”);
taxinomicamente corresponde ao mangusto (mangustus herpestes), predador de média
dimensão, que se alimenta de roedores e répteis (entre os quais, pequenas cobras e víboras);
o mangusto do Norte de África (Herpestes ichneumon) era cultuado no Egipto, de acordo com
R. Warburg, desde pelo menos a 12.a dinastia (2000-1788 a.C.).
5. O Fisiólogo reporta o combate do icnêumone contra o “dragão”, em complemento da
descrição do enudris (transformação da descrição de Plínio): “Existe um animal chamado
enudris, que tem forma de cão e é inimigo do crocodilo. Quando dorme, o crocodilo deixa a
boca aberta; nessa altura, o enudris unta o corpo de lama e, quando esta seca, penetra na
boca do crocodilo, rói todos os canais do corpo e devora-lhe os intestinos” (Fisiólogo Grego,
XV, in Zambon, 1982).
6.Fisiólogo (in Cahier e Martin 1851, II) para os mss. A, B e C. A descrição da víbora de cabeça
humana, no Fisiólogo, identificada como a serpente dracontopodes (“com pés de dragão”) por
Thomas de Cantimpré (Da Natureza, VIII, 17), Vincent de Beauvais (Espelho da Natureza, XX,
33), etc., tornou-se um motivo abundantemente representado na iconografia medieval (cf.
Lecouteux 1982, II: 241-242).
7. Segundo Agostinho: “O basilisco é o rei das serpentes, tal como o Diabo é o rei dos
demónios” (Comentário aos Salmos, XC, 9, in Lecouteux 1982, II: 170).
8. Uma lista bastante completa de referências literárias clássicas e medievais ao basilisco e
suas propriedades pode ser consultada em Lecouteux 1982, II: 169-173.
9. Dualidade expressa na própria forma de locomoção: “Quando se põe em movimento,
metade do seu corpo rasteja pela terra, a outra metade apresenta-se alta e endireitada”
(Solino, Colectânea das Coisas Memoráveis, XXVII, 52; in Lecouteux 1982, II: 169).
10. Por vezes, como numa gravura de uma versão inglesa do Hortis Sanitatis, o basilisco
surge representado como um galo com cauda de serpente, representação que deve ser
correlacionada com uma informação de Plínio, segundo o qual o galo-da-índia tem uma
plumagem traseira pendente como a cauda de serpente (Hist. Nat., VIII, 80), e com uma
passagem do Animalia de Alberto Magno: “Sobre a afirmação segundo a qual (...) o basilisco é
uma serpente em tudo semelhante a um galo, excepto que tem uma longa cauda de
serpente, não acredito que seja verdade” (XXV, 13); a tradução inglesa das Maravilhas do
Mundo, incluída no Livro dos Segredos, do Pseudo-Alberto Magno, sugere, por sua vez, a
existência de um jogo de palavras à volta da associação entre o galo (cock) e o basilisco: “...a
serpente chamada regulus em latim, em inglês cockatrice” (in Best e Brightman 1973: 85); este
termo é, curiosamente, por vezes aplicado ao crocodilo (segundo o Bestiário de Cambrai: “O
crocodilo, ao qual chamam kokatris, é uma serpente de água...”, CCXXXV, 15, in Ham 1939).
11. Plínio, Hist. Nat., XX, 51; Isidoro, Etimologias, XVII, XI, 8; Hildegard de Bingen, Física, I, 64.
12. É surpreendente a ligação onomástica entre as “escrófulas” e o “antrax” (lat.
Carbunculus) e uma pedra semipreciosa cor de fogo, o carbúnculo (também chamado
anthrax), frequentemente associado a Cristo, e que, segundo Isidoro, produz luz nas trevas,
emitindo raios que são projectados directamente aos olhos (Etimologias, XVI, XIII, 14); ao
referir as suas propriedades curativas, Hildegard de Bingen nota que o carbúnculo tem,
entre outros, o curioso poder de afastar espíritos e de evitar o apodrecimento das
“vestimentas” (Física, X, 14). Por outro lado, Bruneto Latini afirma que a áspide, serpente
particularmente perigosa, guarda um carbúnculo e que, tapando as orelhas com a cauda, se
mantém surda aos encantamentos de quem procura capturar o carbúnculo (O Livro do
Tesouro, I, CXXXVIII).
13. Sobre as implicações metodológicas decorrentes de uma retórica científica com “gostos”
(segundo a expressão Durkheimiana) comuns à chamada lógica simbólica, ver, Gomes da
Silva 1989; Ramos 1996.
14. As doninhas (ord. mustelidae) (que tem, em grego, o mesmo nome que a deusa Deméter
quando surge como profetisa: Cerdo) são pequenos mamíferos predadores extremamente
vorazes, de corpo serpentilíneo; o mangusto (m. herpestes, a cuja espécie pertence o
icnêumone) tem hábitos e morfologia semelhantes à doninha (pertencem, no entanto, a
genus diferentes).
15. Uma lista pormenorizada de referências clássicas e medievais ocidentais à salamandra
pode ser consultada em Lecouteux 1982, II: 236-239.
16. O termo “serpente” tem nos bestiários, no entanto, um campo semântico distinto
daquele que a taxinomia moderna sobre ofídeos lhe atribuiria: no Bestiário de Pierre de
Beauvais, por exemplo, o tigre é classificado como serpente (in Cahier e Martin 1851, II: 140).
Em certos bestiários, a salamandra é incluída num grupo particular: não entre os monstros,
como a áspide, o basilisco ou o dragão, mas no bestiário ígneo, com a fénix.
17. Como o basilisco, no Livro das Maravilhas do Mundo , do Pseudo-Alberto Magno (ou
cockatrice , na versão inglesa, do século XV ; in Best e Brightman 1973: 85).
18. Sobre as relações entre as visões cosmográficas cristãs ocidentais e a cartografia
medieval, cf. Lecoq 1989.
19. Da temática do vestuário maravillhoso do Preste João são audíveis ecos longínquos em
certos motivos presentes na literatura popular europeia (tanto germânica, como italiana e
peninsular) que reverteu no conhecido conto de Andersen: Kejserens nye klaeder, ou O Rei Vai
Nu.
20. É talvez este episódio, ou o do combate contra vários dragões, corrente em várias
versões do Romance de Alexandre (Lecouteux 1982, II: 172), que surge indiciado na Carta
(Carta-Urtext, § 53, in Zarncke 1879).
21. O basilisco é suposto viver em cisternas abandonadas e buracos húmidos (cf. Lecouteux
1982, II: 169-173).
22. Cf. também a Imagem do Mundo, de Gossouin de Metz, II, II, § DB, e Fisiólogo Valdense, LV
(in Mayer 1890); sobre este tema, ver Malaxecheverría 1986: 156-168.
23. Os “espelhos” que permitem ao Preste João ver a grandes distâncias sem ser ele próprio
visto, a pedra midriosis que o torna invisível, etc., são atributos ópticos que evidenciam o
poder invisível, intangível e omnisciente do soberano oriental.
24. Veja-se, por exemplo, o Bestiaris (in: Panunzio 1963,I: 86), no Bestiário de Pierre de
Beauvais, (in: Cahier e Martin 1861,II: 140).
25. A noção de conjunção problemática entre parte anterior e posterior do corpo, ou entre
orifícios em extremidades opostas do corpo ou da cabeça, tem na descrição da áspide um
interessante desenvolvimento, de certo modo complementar da concepção perversa da
víbora: tal como o tigre é capturado, ou vê as suas crias serem capturadas, graças a um
espelho que tem sobre ele um efeito encantatório, a áspide pode ser capturada, mas através
do recurso à melodia de uma flauta (Fisiólogo Grego, in Carlill 1924: 234). No entanto, ela
recorre a um artifício curioso para resistir ao encantamento: deitando a cabeça sobre o solo,
de modo a tapar um ouvido, introduz a extremidade final do seu corpo no interior do outro,
deixando assim de ouvir a música do encantador (Bestiário de Pierre de Beauvais, in Cahier e
Martin 1851, II: 157). Se o processo encantatório pela música é formalmente análogo da
concepção da Virgem Maria (pela palavra), o modo de resistir evoca o mesmo procedimento
usado para combater serpentes e basiliscos: uma conjunção entre extremidades opostas do
corpo provoca uma descontinuidade (neste caso não visual mas auditiva) que é garantia de
sobrevivência da áspide.
26. É interessante notar, de passagem, que os bestiários sugerem uma forte equivalência
entre a natureza ambígua da doninha e a de uma ave predadora de serpentes, de origem
asiática como o “pássaro do Oriente”: a cegonha. O Bestiário de Philipe de Thaün designa a
cegonha como um animal impuro porque, graças ao seu longo pescoço, lava o anus com o
seu bico; nota também que, ao contrário do que acontece com as víboras (parricidas e
matricidas), demonstra um continuado afecto em relação às suas crias, que resulta no facto
de estas tratarem os progenitores envelhecidos do mesmo modo (vv. 2631-2746, in Walberg
1900). A mesma configuração envolve ainda um outro animal, fortemente identificado com
Jesus Cristo, nos bestiários: o leão, como a doninha, ressuscita as crias mortas, bafejando-as,
ao terceiro dia (evocação da ressurreição); de olhar ardente e busto soberano que o
associam à divindade, o leão é também caracterizado pelo rastejar da cauda no pó, para se
esconder dos caçadores (representação da encarnação); a sua parte posterior é delgada,
indicador da humanidade de Cristo, distinta da sua divindade. “Pelo leão, entendemos Jesus
Cristo, e nós somos a sua terra em figura humana” (Bestiário de Philipe de Thaün, vs. 25-390,
in Walberg 1900); sobre esta temática, ver análise mais adiante.
27. No sentido em que Radcliffe-Brown usa o termo (Radcliffe-Brown 1951: 20).
28. Sobre Aristóteles e os processos classificatórios, ver P. Pellegrin, La Classification des
Animaux Chez Aristote. Statut de la Biologie et Unité de l’Aristotelisme, Paris, 1982, in Gomes da
Silva 1994: 14-15; ver também 20-21).
29. Lévi-Strauss 1983: 297; C. Lévi-Strauss segue aqui a formulação proposta por René Thom
(Modèles Mathématiques de la Morphogenèse, Paris, 1974).
RESUMOS
Através da análise de certas informações provenientes da literatura enciclopédica clássica e
medieval europeia, é possível evidenciar a riqueza de um quadro discursivo fortemente
associado à manipulação de sistemas taxinómicos por uma lógica que poderia ser designada
como sizígia. A dialéctica da confrontação entre adversários com naturezas oponíveis, a
reversibilidade de certas transformações morfológicas ou comportamentais, sendo
configurações diversas dessa lógica combinatória (apareadora ou sizígia), expressamse com
frequência através de uma metáfora especular (ou da continuidade/descontinuidade visual).
The analysis of information deriving from European classical and medieval encyclopedias
reveals a profound discursive complexity. This complexity is specifically connected with an
instance of manipulation of the taxonomic systems that one may define as sysygian. The
dialectics of confrontation between antithetical opponents, or the reversibility of certain
morphological and behavioural transformations are special configurations of such
combining (or sysygian) logic; and they are frequently rendered manifest through the
metaphorical use of mirrors (or of visual continuity and discontinuity).
AUTOR
MANUEL JOÃO RAMOS
Departamento de Antropologia Social – ISCTE Membro da Sociedade de Geografia de Lisboa
Manuel.Ramos@iscte.pt
A cristandade dos leopardos, a
objectividade dos antropólogos e
outras verdades igualmente falsas
Filipe Verde
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The anti-ethnocentrism and the holist models have been the context and form of the
solution provided by anthropology to the problem of the incomensurability between the
cultural planes of truth. As of always, it has been repeated within this discipline, under the
guise of different theoretical vocabularies, the attitude of searching to explain what is not
understood, with the repeated result of grand explicative failures of what has yet to be fully
understood. By appealing to the ideas of the modern hermeneutic philosophy and a
delimitation of the notion of symbol, this article proposes a non-methodological strategy of
those questions and, by its intervention, a reconsideration of the discipline and the forms of
knowledge that it adopts as its aim.
AUTOR
FILIPE VERDE
Departamento de Antropologia — ISCTE, Centro de Estudos de Antropologia Social
josé.verde@iscte.pt
Entrevista
Returning to the whole em
Edimburgo: entrevista com James
Fernandez
António Medeiros
Carta n.º 1
Candelária, 25/1/964
Carta n.º 2
Candelária, 18/3/965
Carta n.º 3
Candelária, 28 de Março de 1966
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Allan Young , The Harmony of Illusions: Inventing Post-Traumatic Stress
Disorder , Princeton, Princeton University Press, 1995.
1 Uma das ideias clássicas do pensamento ocidental prende-se com o
modo como nos singularizamos como sujeitos que possuem uma
continuidade no tempo, ou que são capazes de potenciar
criativamente essa continuidade num processo integrador em que,
narrativamente, atribuímos sentido e coerência a um percurso
biográfico. A ideia de memória é aqui decisiva pela sua dimensão
insofismavelmente redentora. Em Santo Agostinho, por exemplo, a
memória representa o único modo de escapar à fragmentação da
experiência, resultante da existência no tempo. A memória é um
“acto” de constituição reflexiva da totalidade e, como advoga
Genevieve Lloyd (1993: 20), um “acto narrativo” por excelência a
partir do qual se acede à compreensão da consciência, contrariando-
se deste modo a destrutiva (e dolorosa) passagem do tempo.
2 Mas é a partir de meados de oitocentos em diante que uma outra
conceptualização de memória ganha uma dimensão até aí inaudita,
que passa a coexistir, nas abordagens terapêuticas que entretanto se
desenham, com a noção clássica atrás identificada. Com Charcot,
Janet, Freud e Rivers, entre outros, é a impossibilidade em
transformarmos o que de aparentemente indelével subjaz à nossa
experiência do mundo que está na base da invenção de uma memória
traumática e das categorias nosológicas que lhe associamos
contemporaneamente. Refiro-me especificamente à “desordem de
personalidade múltipla” (multiple personality disorder), sobre a qual se
debruça Ian Hacking em Rewriting the Soul, e à “desordem de stress
pós-traumático” (post-traumatic stress disorder) sobre a qual temos o
trabalho de reflexão antropológica desenvolvido por Allan Young em
The Harmony of Illusions 1 .
3 O que Hacking e Young nos oferecem transporta-nos para o facto de
só podermos pensar a memória traumática e as modalidades
nosológicas que ela recobre através de uma perspectiva que
equacione as relações mutuamente constitutivas entre memória e
consciência individual nas etnopsicologias ocidentais, e o modo
como uma determinada actividade científica e terapêutica moderna
se instituiu e institui, construiu e constrói os seus objectos,
incorporou e incorpora os debates epistemológicos do seu tempo.
Refiro-me à psiquiatria e a todas as formas contemporâneas de
“medicalização do passado”, a usar a sugestiva expressão de Young
(p. 39). Finalmente, importa pensar o modo como uma determinada
categoria nosológica se projecta sobre um fundo fenomenológico,
isto porque os perigos de uma eventual trivialização do sofrimento
tornam-se evidentes, quando nos situa-mos numa leitura que quer
fazer destacar os domínios da representação a expensas da
experiência pessoal (em grande parte intransmissível e irredutível
aos suportes verbais e iconográficos).
4 Um outro aspecto que se me afigura decisivo nas discussões de
Hacking e Young sobre a memória traumática e as nosologias
implicadas tem a ver com o facto de estas circunscreverem um
espaço adequado à discussão sobre a relevância dos nossos conceitos
de “realidade” e “verdade”. Gostaria de destacar comparativamente
as respostas de ambos os autores a este aspecto.
5 Em primeiro lugar, Young e Hacking lançam-nos ao encontro de todo
um conjunto de proposições acerca das etnoepistemologias
ocidentais sobre a doença e o estatuto que aí ocupam os conceitos de
“realidade” e “verdade”. Para ambos os autores o “real” afigura-se
como aquilo que é independente quer dos “tecnofenómenos e estilos
de pensamento do investigador” (Young, p. 10) ou, e mais
especificamente, daquilo que “não é usualmente iatrogénico”
(Hacking p. 12), ou seja, e por exemplo, do que se furta a qualquer
hipótese de indução por hipnose (Hacking, p. 270). Porém Hacking,
que sobrepõe o conceito de realidade ao conceito de verdade —
precisamos de saber o que é uma verdadeira ou real “entidade
psiquiátrica” (p. 12, itálicos meus) —, não deixa, em todo o caso, de
nos sugerir a hipótese de um céptico: “O mais fidedigno vaticinador
da ocorrência da personalidade múltipla é um clínico que
diagnostica e trata múltiplos” (p. 270, nota 14), ou “pode ser que
muitos dos pedaços floreados do comportamento múltiplo sejam
iatrogénicos” (p. 12).
6 Em segundo lugar, Young aposta numa distinção entre realidade e
verdade que Hacking não subscreve. A verdade para Young sugere
uma pretensão à atemporalidade na qual se abastecem os
“tecnofenómenos da ciência psiquiátrica”, pensados como “neutrais
e objectivos” (Young, p. 10), não podendo “as questões sobre a
verdade ser divorciadas das condições sociais, cognitivas e
tecnológicas através das quais os investigadores e clínicos vêm a
conhecer os seus factos e o sentido da facticidade” (p. 10). Para
Young (p. 5), a desordem pós-traumática de stress não é atemporal
nem possui uma unidade intrínseca. Ela é um produto histórico.
7 Em terceiro lugar, assinale-se que para ambos os autores é equívoco
ou irrelevante desenhar uma clara descontinuidade ou oposição
entre uma desordem psiquiátrica e as circunstâncias tecnológicas e
sociais da sua invenção, sendo que “[o] facto de um certo tipo de
doença mental aparecer apenas em contextos históricos ou
geograficamente precisos não implicar que seja manufacturado,
artificial, ou de qualquer outro modo não real” (Hacking, p. 12).
8 Em quarto e último lugar, Young faz corresponder o “real” à
experiência de dor e sofrimento das “pessoas que são diagnosticadas
ou diagnosticáveis com PTSD” (Young, p. 10), sugerindo
implicitamente a necessidade de se desenvolver uma perspectiva que
tenha em conta, justamente, esse real fenomenológico representado
pela experiência da doença. Escreve Young:
Dizer que a memória traumática e a PTSD são constituídas através dos
tecnofenómenos e estilos de pensamento do investigador não nega a dor que é
sofrida pelas pessoas que são diagnosticadas ou diagnosticáveis com PTSD. Nada
do que eu escrevi neste livro deve ser interpretado como trivializador dos actos
de violência e das terríveis perdas pessoais que se encontram por detrás de
muitas memórias traumáticas (p. 10).
9 É sem dúvida este um dos aspectos que ficam em aberto nas
discussões de Hacking e Young em torno das desordens de
personalidade múltipla e de stress pós-traumático, respectivamente.
10 Em relação ao trabalho de Hacking, a ausência de uma perspectiva
que contemple o “real” constituído pela experiência das pessoas
diagnosticadas com uma dada categoria psiquiátrica, no caso a
desordem de personalidade múltipla, não chega a constituir sequer
uma objecção. Ian Hacking é fundamentalmente um filósofo e
historiador das ciências. O seu trabalho não se propõe nunca realizar
uma leitura etnográfica da realidade vivencial das pessoas
diagnosticadas. A sua atenção centra-se na emergência das “ciências
da memória” e no modo como a desordem de personalidade múltipla
foi construída.
11 Já Young recorre, como antropólogo, ao método etnográfico. E esta é,
sem dúvida, a parte menos eficaz do seu trabalho. Não porque a
descrição etnográfica não tenha grande acuidade, sobretudo na
forma como desvela o modo como os processos de diagnóstico e as
aproximações terapêuticas são constituídas na prática, mas porque
se situa, talvez excessivamente, num plano que privilegia as
narrativas dos clínicos em detrimento das narrativas dos ex-
combatentes da Guerra do Vietname, a quem foi diagnosticada a
desordem de stress pós-traumático. O que me surge como evidente,
pese embora (se me for permitido enfatizar este ponto) a análise
etnográfica de detalhe que Young constrói em redor de sessões com
veteranos do Vietname num Centro Médico da Administração dos
Veteranos (Veterans Administration Medical Center) no Midwest
norte-americano, é o modo como Young deixa em suspenso aquilo
que nos sugere logo no início do seu livro: a importância de que se
reveste, precisamente, “a dor que é sofrida pelas pessoas que são
diagnosticadas ou diagnosticáveis com PTSD”. Esta ausência poderia
ser colmatada com uma perspectiva como aquela que vem sendo
defendida por antropólogos como Arthur Kleinman (ver, por
exemplo, 1988) ou Byron J. Good (1994a e 1994b).
12 Pensar o real da experiência de dor e sofrimento dos sujeitos
diagnosticados (ou diagnosticáveis) põe em causa, como assinala
Byron J. Good (1994b: 117), ao referir-se especificamente à “dor
crónica” (chronic pain), um dos dados centrais da biomedicina: o de
que o conhecimento objectivo do corpo humano e da doença é
possível fora de um entendimento da experiência subjectiva dos
sujeitos implicados. Good escreve assim a partir de uma “teoria da
experiência da doença”, em que “[as] relações entre experiência
incorporada, significado intersubjectivo, narrativas que reflectem e
refazem (rework) a experiência da doença, e as práticas sociais que
medeiam o comportamento na doença (illness behavior)” (1994b: 118),
se tornam centrais a uma perspectiva que procure valorizar esta
dimensão fenomenológica. É, assim, aos “mundos da experiência”
(1994b: 122), via Husserl, Merleau-Ponty ou Nelson Goodman, que se
pretende ganhar acesso. Young não explora esta constelação de
temas, o que não retira, em todo o caso, mérito à sua proposta.
BIBLIOGRAFIA
GOOD, Byron J., 1994a (1992), “A Body in Pain — the Making of a World of Chronic Pain”, in
Good, Mary-Jo Delvecchio, Paul E. Brodwin, Byron J. Good e Arthur Kleinman (eds.), Pain as
Human Experience: An Anthropological Perspective , Berkeley e Los Angeles, University of
California Press.
GOOD, Byron J., 1994b, Medicine, Rationality, and Experience: An Anthropological Perspective,
Cambridge, Cambridge University Press.
KLEINMAN, Arthur, 1988, The Illness Narratives: Suffering, Healing & the Human Condition, Nova
Iorque, Basic Books.
LLOYD, Genevieve, 1993, Being in Time: Selves and Narrators in Philosophy and Literature,
Londres & Nova Iorque, Routledge.
NOTAS
1. A comunidade psiquiátrica traduz vulgarmente a palavra disorder por “distúrbio” e/ou
“perturbação”. Como sobre este aspecto não há consensualidade, preferi usar uma terceira
solução: a tradução literal da palavra pelo equivalente em português “desordem”. (Agradeço
ao psiquiatra Manuel Quartilho os esclarecimentos que me permitiram fundamentar esta
opção.)
Miguel Vale de Almeida, Corpo
Presente: Treze Reflexões
Antropológicas sobre o Corpo
Luís Quintais
REFERÊNCIA
Miguel Vale de Almeida, Corpo Presente: Treze Reflexões Antropológicas
sobre o Corpo , Lisboa, Celta, 1996.
1 Será que a antropologia nos propõe, através das suas incursões
recentes em torno do corpo, “um novo conhecimento da realidade”,
a usar um verso de Stevens (1984: 534), ou, de outro modo, será que a
problematização do corpo nos remete para a emergência de um novo
paradigma antropológico, como nos quer fazer crer Csordas (1990)?
2 Tudo isto a propósito da publicação do volume colectivo de ensaios
Corpo Presente: Treze Reflexões Antropológicas sobre o Corpo, organizado
por Miguel Vale de Almeida. À interrogação ”de que falamos quando
falamos do corpo”, respondem doze antropólogos (Vale de Almeida,
Nélia Dias, Rosa Maria Perez, Maria Cardeira da Silva, Manuela
Cunha, Jean-Yves Durand, Paulo Raposo, Maria José Fazenda, Susana
de Matos Viegas, Clara Saraiva, Cristiana Bastos, João de Pina
Cabral), e um psicólogo e acupunctor (Inácio Fiadeiro). A inclusão
deste último, como refere Vale de Almeida, “não pretende ser uma
forma de introduzir interdisciplinaridade no volume”, visto que “as
questões abordadas no texto constituem um exemplo concreto de
algumas das preocupações correntes em antropologia” (p. 18). Das
treze propostas que aqui se reúnem uma é co-autorada. Em ”Cravado
na Pele, o Hospital”, Cristiana Bastos toma o seu “informante”
principal, Alfredo González, como co-autor do ensaio, escrevendo em
nota: “A colaboração de Alfredo González, activista do Act Up-
NewYork de longa data e também estudante de antropologia, foi
indispensável não só para a redacção deste texto, mas também como
companheiro de percurso de vários anos de observação-reflexão-
participação” (p. 190).
3 No contexto da antropologia portuguesa, é de registar uma diferença
de ênfase em relação a trabalhos publicados ao longo da década de
80. A lógica que parece presidir à discussão é centrífuga, ao contrário
da que caracterizou a maioria dos estudos antropológicos de relevo
publicados em Portugal ao longo daquela década, que, dadas as suas
preocupações com temas e contextos que se reportavam a uma
matriz nacional (quando não estritamente rural) parecem
preconizar, hoje, analisados à distância, uma lógica centrípeta. Tal
aspecto é identificado por João de Pina Cabral na sua contribuição
final a Corpo Presente:
Correndo o risco de exagerar um pouco, pode dizer-se que as principais obras da
antropologia portuguesa dos anos 80 eram obras de estrangeirados que, voltados
a Portugal, faziam a sua própria tradução da sociedade rural portuguesa. As
obras dos jovens antropólogos dos anos 90, pelo contrário, são criadas por
pessoas que, profundamente radicadas na vida social nacional, dialogam com
mundos intelectuais exteriores — sejam eles as mulheres intocáveis da Índia
(Rosa Perez), as adolescentes de Marrocos (Maria Cardeira da Silva), as teóricas
da dança americanas (Maria José Fazenda) e os doentes de sida nova-iorquinos
(Cristiana Bastos); ou, alternativamente, sejam eles os antropólogos americanos,
ingleses e franceses cujas obras os autores citam, comentam e criticam (Paulo
Raposo, Susana Matos Viegas, Nélia Dias) (p. 200).
4 Outro aspecto a assinalar prende-se com o carácter heterogéneo das
reflexões propostas, que pode ser apreciado, justamente, pela
constelação de autores citados. Assim, se Miguel Vale de Almeida nos
faz o ponto da situação da denominada “antropologia do corpo”,
circunscrevendo esse imenso arco que vai de Mauss a Douglas até às
leituras mais recentes que se apoiam na fenomenologia e na teoria
da prática, via Merleau-Ponty e Bourdieu, a grande maioria dos
autores desta obra colectiva não faz necessariamente sobrepor as
suas referências ao universo bibliográfico criticamente avaliado na
introdução. A unidade não é, pois, programática ou teórica. A
unidade de Corpo Presente é fundamentalmente temática, inserindo-
se num contexto de problematização mais amplo que se prende com
noções caras à antropologia contemporânea, como sejam as de
“pessoa”, “self”, ou “consciência”. A análise crítica destas noções não
é ignorada. Destacaria aqui o ensaio de João de Pina Cabral, “Corpo
Familiar”, que, através de uma avisada crítica ao “pessoalismo”, se
impõe como um contra-peso a alguns dos excessos em que se
comprazem, por vezes, as propostas mais radicais nesta área.
5 Por último, e na esteira das minhas interrogações iniciais, gostaria
de chamar a atenção para o seguinte: a reflexão sobre o corpo
assume-se, numa das suas modalidades mais ousadas e
indubitavelmente mais estimulantes, como um investimento nos
domínios fenomenológicos da experiência, e como uma recusa de
todas as formas de logocentrismo e intelectualismo de que
padeceram não apenas a filosofia ocidental, mas também disciplinas
como a antropologia, que pese embora a sua vocação pela diferença,
se nortearam por esquemas interpretativos e vectores ideológicos
que implícita e explicitamente se abasteceram desse logocentrismo e
intelectualismo.
6 A crítica é legítima e transporta-nos para alguns dos textos mais
decisivos dos últimos anos. Refiro-me em particular a Jackson e ao
notável Paths Toward a Clearing: Radical Empiricism and Ethnographic
Inquiry (1989), e a Csordas em “Embodiment as a Paradigm for
Anthropology” (1990). Estes trabalhos parecem querer acrescentar
um domínio da realidade à realidade estudada e uma orientação
epistemológica nova. Daí, no caso de Csordas, as suas pretensões
paradigmáticas. Mas metodologicamente estamos perante um
impasse que deriva da natureza do trabalho antropológico ele
mesmo. É que se pretende aceder a domínios pré-objectivos ou ante-
predicativos da experiência, a glosar Merleau-Ponty (1945),
transportando-os depois para um meio, os textos, que são, por
inerência, um processo de predicação e segmentação de uma
realidade fenomenológica que sabemos ser avessa a esse transporte.
Ou seja, a dizermos que a experiência cultural dos sujeitos não é
redutível à linguagem e que devemos procurar formas de articular
aquilo que não é articulável, teremos de encontrar um meio que não
os textos para o fazermos, sob o risco de nos limitarmos a constatar a
ineficácia da linguagem para se aceder a tais domínios pré-objectivos
ou antepredicativos da realidade.
7 Não penso que tal meio tenha sido encontrado (pese embora algumas
das tentativas no domínio da chamada “antropologia visual”). Entre
as coisas e as ideias sobre as coisas, parecemos inevitavelmente
limitados pelas ideias sobre as coisas. Isto a situarmo-nos numa
leitura somente referencial e representacional da linguagem. A
reafirmar que qualquer forma de conhecimento tem limites e que o
nosso horizonte de visibilidade, no domínio da antropologia, foi e
continua a ser aquele que nos é fornecido pela linguagem.
BIBLIOGRAFIA
CSORDAS, Thomas J., 1990, “Embodiment as a Paradigm for Anthropology”, Ethos (1), 5-47.
JACKSON, Michael, 1989, Paths Toward a Clearing: Radical Empiricism and Ethnographic Inquiry ,
Bloomington e Indianapolis, Indiana University Press.
REFERÊNCIA
David Parkin, Lionel Caplan, Humphrey Fisher (eds.), The Politics of
Cultural Performance , Oxford, Berghahn Books, 1996.
1 The Politics of Cultural Performance é uma colectânea de ensaios
organizada e editada por três especialistas da School of Oriental and
African Studies (SOAS) — D. Parkin, L. Caplan e H. Fisher — que se
desenvolve em torno da reflexão sobre o modo como diversas
performances culturais — isto é, modos de comportamento
comunicativo e/ou tipos de acontecimentos comunicativos cuja
natureza reflexiva decorre da sua instrumentalidade enquanto
expressões culturais — criam e reflectem as transformações que as
constantes mutações das relações de poder conferem à frágil
demarcação entre o que os grupos sociais consideram tradicional e
moderno. Mas esta obra colectiva é acima de tudo uma homenagem e
uma importante recensão das principais inquietações teóricas de um
dos mais importantes membros da SOAS — Abner Cohen.
2 Num eixo que vai das cerimónias de Estado às festas de aldeia, das
peregrinações aos ritos de possessão, da dança à comensalidade
ritual, etc..., e onde África surge como o principal palco — cruzado
pontual e comparativamente com contextos europeus e asiáticos — o
conjunto dos ensaios aqui reunidos dão sobretudo continuidade à
sugestão de Abner Cohen de que existe uma relação dialéctica entre
poder e simbolismo, entre acção política e formas culturais
simbólicas. Trata-se de discutir o modo como os grupos sociais
através de múltiplas performances culturais, e ao longo de uma linha
de demarcação entre o que consideram como tradicional ou moderno,
criam e reflectem as tensões ou configurações das relações de poder
estabelecidas no interior de cada sociedade ou grupo.
3 As quinze contribuições dos mais diversos especialistas reunidas
nesta obra procuram revelar ainda como cerimoniais, rituais,
dramatizações e outras performances culturais podem a um tempo
servir para exprimir e eximir a ameaça das contingências externas
ou, pelo contrário, obscurecer essa tensão e revelar o caracter
plástico e ambivalente das formas culturais e simbólicas. Neste
sentido, a obra fornece uma interessante reflexão comparativa —
frequentemente unindo a antropologia à história — salientando uma
articulação singular entre conceitos como política, cultura e
simbolismo, os quais, aliás, têm sido protagonistas de longa data dos
debates antropológicos.
4 Finalmente, tal como Abner Cohen havia explicitado na sua obra
Masquerade Politics: Explorations in the Structure of Urban Cultural
Movements (1993, Berkeley, University of California Press) através do
conceito de masquerade (que poderíamos traduzir por mascarada ou
disfarce), também nesta obra é visível o uso de uma perspectiva que
contemple a dupla dimensão inscrita na acção política que decorre
das performances culturais: performance e transformação, expressão e
efeito, criação de conhecimento ou impedimento e empobrecimento
do mesmo conhecimento. Isto significa dizer que se o poder informa
os símbolos, seguramente também o processo de simbolização está
sempre a produzir novos efeitos políticos.
5 Deste modo, e na sequência do refinamento do pensamento de
Cohen, os ensaios aqui reunidos revelam como é no idioma, no
figurino ou na representação da máscara que repousam as grandes
questões sobre a agência humana e o conhecimento, a sua
justificação/função e representação — questões que sempre
preocuparam os antropólogos. Cohen, aliás, havia já sugerido que a
atenção fosse dada não às rotinas quotidianas, mas, e sobretudo, às
aparentes bizarrias que melhor permitem compreender os mistérios
da acção social e do pensamento que esta encerra. Do mesmo modo,
as performances culturais — como refere F. G. Bailey num dos ensaios
aqui reunidos — são supostas gerar uma pluralidade de significados
enquanto são exibidas, postas in actu (staged), e, portanto, resultam
difíceis de interpretar, uma vez que são fruto das tensões políticas ou
das relações de poder. Simultaneamente são portadoras de símbolos
culturais (textos e significados) que remetem para um contexto
cultural (modelos e padrões) que, no entanto, é suposto ser pensado
pelos seus membros apenas como “real” e “autêntico” na
materialidade da interacção social (e não da staged performance). Por
outro lado, a rigidez modelar desta última perspectiva é contrariada
sistematicamente pelo carácter plástico e transformativo com que os
indivíduos ou os grupos sociais estrategicamente exibem, deformam
ou omitem (de modo reflexivo) significados e acções políticas através
das mais variadas performances culturais. Trata-se, portanto, de uma
obra de referência, teórica e etnograficamente falando, para os
estudiosos dessa cada vez mais significativa articulação dos domínios
da acção política e das performances culturais.
Christopher Tilley, A
Phenomenology of Landscape: Places,
Paths and Monuments
Sandra Xavier
REFERÊNCIA
Christopher Tilley, A Phenomenology of Landscape: Places, Paths and
Monuments, Berg, Oxford, 1994.
1 Através da oposição kantiana e cartesiana entre o homem e o
mundo, que separa as ciências da natureza das ciências sociais e
humanas, o espaço tem sido pensado como uma entidade absoluta,
completamente presente no homem, como um enquadramento
anterior à sua percepção do mundo, ou na natureza, como um
recipiente independente das actividades humanas que nele têm
lugar.
2 É um espaço abstracto, geométrico, objectivo, universal, exterior ao
homem e à sociedade que é conceptualmente construído pela “nova
geografia” nos anos 60. O espaço é reificado, através do seu carácter
de dimensão comparável, e separado, como um continente, da
prática social. Também a “nova arqueologia” assenta neste conceito
de espaço. O significado simbólico e o papel social da cultura
material e do meio ambiente são negligenciados. Espaço e sociedade
são conceptual e fisicamente separados. As relações entre o homem e
o seu meio ambiente, pensadas como entidades independentes, são
reduzidas, pelas ciências sociais e pela arqueologia, a parâmetros
adaptativos e funcionais e a assuntos como recursos, níveis
populacionais e tecnologia. O espaço fica fora da sociedade, logo a
arqueologia separa-se das ciências sociais. Por outro lado, o mundo
natural torna-se irrelevante para os estudos da cosmologia e da
estrutura social e, quando considerado, é como um objecto
classificado por estruturas cognitivas e sociais dele independentes. A
sociedade e a cultura são reificadas, legitimando a autonomia das
ciências sociais que, ao pensarem o espaço, o reduzem a uma
organização simbólica.
3 Durante as décadas de 70 e 80, a geografia humana e a arqueologia
começaram a redefinir a relação entre natureza e cultura e,
utilizando a fenomenologia, a desconstruir a oposição
sujeito/objecto. O conceito de espaço socialmente produzido,
indissociável das relações e práticas sociais, substitui o conceito de
espaço recipiente, abstracto, absoluto e universal. A geografia e a
arqueologia recorrem, portanto, à teoria social para pensarem um
espaço humano e com significado, o qual combina o físico, o
cognitivo e o emocional, que, produzido pela interacção entre as
pessoas e entre estas e o ambiente não-humano, é o resultado e o
meio da acção. Por seu turno, a antropologia passa a considerar o
papel activo do meio ambiente (simbólica e politicamente marcado
mas não passivamente moldado ou enquadrado por estruturas
cognitivas e sociais a ele exteriores) na vida social, como uma forma
de ultrapassar o sociocentrismo ou a circularidade do determinismo
cultural. A não separação e a mútua constituição entre mente e
corpo, natureza e cultura, sendo agora reconhecidas acabam com o
determinismo cultural e ecológico e, assim, com as fronteiras entre
as ciências.
4 O próprio campo semântico da palavra ambiente e o contexto de uso
no qual surgiu a palavra paisagem demonstram como a reflexão sobre
o espaço esteve marcada pela dicotomia homem/mundo natural.
Segundo a Encyclopedia of Social and Cultural Anthropology, no seu uso
comum, ambiente refere a influência não humana sobre a
humanidade. A ele está associada a imagem da humanidade rodeada
por factores biofísicos relevantes (cf. Thin 1996: 185). Assim, ao falar-
se de ambiente separa-se o homem do mundo natural e se, por um
lado, se exclui o homem do seu contexto biofísico, por outro, este é
pensado através daquele. Ou seja, no termo ambiente está inscrito o
paradoxo de uma visão antropocêntrica de um mundo ao qual o
homem não pertence. Este mesmo paradoxo está presente no termo
paisagem que, no século XVI na Holanda, surgiu na linguagem da
pintura, para referir uma visão pictórica da natureza (Bell 1993: 5). O
mundo natural, do qual se afasta o citadino, é na e pela paisagem
representado, de uma forma distanciada, enquanto objecto distinto
do homem. A paisagem pictórica constitui um olhar humanamente
construído que subtrai o homem do mundo natural representado e,
assim, nela se separa o homem (sujeito) da natureza (objecto). Isto é,
paisagem evoca simultaneamente, mas como identidades distintas e
autónomas, homem e mundo natural.
5 É esta oposição, inerente à representação e conceito pictórico de
paisagem, entre homem e mundo natural, que Tilley procura
desconstruir neste livro. Ao reflectir sobre a paisagem, Tilley, como
arqueólogo, contribui para a humanização da topografia natural e,
como antropólogo, demonstra como esta participa activamente na
formação de biografias pessoais, de memória e identidade social e
dos sistemas de dominação (pp. 26 e 27), diluindo assim a fronteira
entre estas ciências.
6 Ao situar-se numa perspectiva fenomenológica, Tilley considera que
a paisagem não é um objecto da natureza que existe
independentemente do homem, nem uma representação mental ou
forma cognitiva, mas que é constituída pelo “estar com as coisas” (o
conceito de “residência” de Heidegger), no qual o corpo se torna na
forma de as entender e percepcionar e, assim, nela se ligam cognição
e realidade, mente e corpo, utilitário e simbólico, a forma física e
visual da terra (topografia, rios, relevo, formações rochosas) e os
significados, nomes de lugares e memórias, humanamente criados,
reproduzidos e transformados em relação com ela.
7 Assim, Tilley retém a palavra paisagem, porque, ao deslocá-la da
representação pictórica para o “vivido”, o homem e a natureza que
naquela estavam dissociados, passam a estar por ela interligados:
A paisagem tem importância ontológica porque se vive nela e através dela, é
mediada, trabalhada e alterada, repleta de simbolismo e significado cultural — e
não é apenas algo para o qual se olha ou acerca do qual se pensa, um objecto para
mera contemplação, descrição, representação e esteticização (p. 26).
8 O termo paisagem transforma-se naquele que, em geografia, melhor
é capaz de descrever a inter-relação entre o “lugar” meramente
humano e o meio ambiente:
Desejo defender neste livro que os locais humanamente criados utilizam as
qualidades da paisagem para criar, naqueles que o usam, parte do seu significado,
e a própria p ercepção da paisagem pode ser fundamentalmente afectada pela
localização destes locais (pp. 25-26).
9 Na segunda parte deste livro, Tilley utiliza este conceito de paisagem
e alguns trabalhos etnográficos — que demonstram a importância
simbólica das características topográficas em duas sociedades de
caçadores-recolectores (Austrália e Alasca) e em outras duas de
agricultores (México e Melanésia) —, para reinterpretar alguns
achados arqueológicos do País de Gales e Sul de Inglaterra,
constituídos principalmente por fragmentos de sílex mesolíticos e
monumentos neolíticos. Tilley propõe assim à arqueologia uma nova
agenda teórica e metodológica. Convida os arqueólogos, que apenas
têm em conta os locais em si ou os inserem num espaço pensado
independentemente deles como um dado da natureza, a
considerarem a inter-relação entre os locais arqueológicos e as
características dominantes da paisagem envolvente (rios, elevações
rochosas, costa, vertentes). O significado e localização dos achados
depende do impacte fenomenológico e do significado humanamente
construído das características da topografia natural. Por outro lado,
a construção perceptual e simbólica da paisagem pré-histórica deve
ser inferida a partir das evidências arqueológicas. Tilley sugere
também que, como instrumentos metodológicos, se devem substituir
os mapas pelo movimento e presença na paisagem. Os mapas não
permitem ver e compreender como os lugares se inter-relacionam
com as características topográficas. É através do corpo, como o lugar
universal das experiências espaciais, que podemos percepcionar e
conhecer a paisagem que construiu e foi construída pelos lugares
mesolíticos e monumentos neolíticos.
BIBLIOGRAFIA
BELL, Desmond, 1993, “Framing Nature: First Steps into the Wilderness for a Sociology of
the Landscape”, Irish Journal of Sociology , vol. 3, 1-22
REFERÊNCIA
Roy Ellen, Katsuyashi Fukui (eds.), Redefining Nature: Ecology, Culture
and Domestication , Oxford e Washington DC, Berg, 1996.
1 Na ressaca dos niilismos pós-modernos, após várias décadas de
debate filosófico em torno das condições de possibilidade do
conhecimento científico, e depois de a neurobiologia ter
desarticulado consistentemente os alicerces cartesianos de um saber
fundamentado nas oposições mente/corpo e homem/natureza, resta
agora às ciências sociais reformularem alguns dos problemas
centrais de que se têm ocupado e que permitiram a sua reprodução
institucional mais ou menos bem sucedida. A antropologia, por
virtude de uma promiscuidade teórica que revela incessantemente as
suas próprias potencialidades criativas, não poderia deixar de se
posicionar na linha da frente da renovação dos saberes. Um exemplo
interessante vem, justamente, de uma área tradicionalmente
associada com a economia, a ecologia e a análise das sociedades de
caçadores-recolectores. Trabalhos como os de Stephen Gudeman,
Tim Ingold ou Roy Ellen, para citar apenas alguns, têm vindo a
oferecer importantes contributos para a implementação de debates
alargados em torno da reformulação de problemas e categorias
herdadas das gerações precedentes.
2 Os textos que constituem esta obra são o produto de um simpósio
que teve lugar no Japão (Kyoto e Atami), em Março de 1992 — Beyond
Nature and Culture: Cognition, Ecology and Domestication — e onde se
confrontaram praticantes de antropologia cognitiva e ecológica,
biologia e etnografia. O texto introdutório, da autoria de Roy Ellen,
proporciona uma boa síntese dos vários e diversificados conteúdos
incluídos neste volume, evidenciando um conjunto de questões cuja
relevância se poderá, talvez, subsumir nesta interrogação: “Can
person and environment ever be anything but implicate in each
other?”
3 Destacam-se os contributos de Tim Ingold (“Hunting and Gathering
as Ways of Perceiving the Environment”), com um argumento que se
desenvolve através das etnografias provenientes dos Batek Negritos
da Malásia, dos Mbuti do Zaire e dos Nayaka do Sul da Índia; Peter D.
Dwyer ( “The Invention of Nature”), que é biólogo de formação,
explora a oposição visível/invisível com exemplos de três sociedades
da Papua-Nova Guiné; James Boster (“Human Cognition as a Product
and Agent of Evolution”) compara as taxonomias para classificar
aves usadas pelos Jívaros e pelos ornitólogos, para sugerir “a pan-
human (or possibly pan-mammalian) perceptual strategy for making
sense of biological diversity” (p. 274); e Emílio F. Moran (“Nurturing
the Forest: Strategies of Native Amazonians”), que esclarece uma
questão de suma importância:
The most recent views on human ecology no longer talk about adaptation to
physical environment as the most important dimension of ecological analysis
(...). Nor do they focus on nature or culture to determine which is causally prior.
Rather, the ecological behaviour of individuals is taken to be a product of
multiple sources of information and influence: history, demographic experience,
the cognized physical environment, social membership and political forces (p.
534).
George Marcus e Peter Dobkin
Hall, Lives in Trust: the Fortune of
Dynastic Families in Late Twentieth-
Century America
Antónia Pedroso Lima
REFERÊNCIA
George Marcus, Peter Dobkin Hall, Lives in Trust: The Fortune of
Dynastic Families in Late Twentieth-Century America , São Francisco e
Oxford, Westview Press, 1992.
1 Lives in Trust representa um passo importante na escassa produção
sobre elites no campo disciplinar da antropologia. É um livro sobre
famílias dinásticas americanas, unidades sociais que se constituem
quando o fundador transmite aos seus descendentes as empresas, a
família e a riqueza pessoal que criou durante a sua vida, e o faz de
uma forma integrada, utilizando estratégias jurídicas que organizam
burocraticamente a sua fortuna em trusts 1 , de forma a perpetuar os
seus impérios económicos e familiares. No entanto, o conjunto de
textos que constitui o presente livro não é exclusivamente uma
descrição etnográfica das famílias dinásticas estudadas por Marcus e
Peter Hall. Os autores utilizam o material empírico para elaborar
uma crítica à concepção clássica das elites, vistas como um grupo
social homogéneo, para reflectir sobre a natureza das famílias
dinásticas americanas, e para pensar na importância da lei e dos
instrumentos jurídicos na formação da elite norte-americana.
2 A forma como Marcus, nos textos que assina, desconstrói a ideia de
que as famílias dinásticas americanas são grupos de parentesco é
uma das contribuições mais importantes desta obra, tanto para os
trabalhos sobre elites, como para a reflexão sobre a família nas
sociedades capitalistas. Uma dinastia não pode ser considerada um
grupo de parentesco, pois ela é, fundamentalmente, uma
organização administrativa onde uma família e uma fortuna se
relacionam num conjunto de instituições não familiares que
interferem na continuidade de uma e outra. Como resultado do
processo de constituição dos trusts, as relações que têm lugar no
interior das famílias dinásticas são orientadas por arranjos jurídicos,
geridas por especialistas legais e financeiros e a única razão para a
sua continuidade são os constrangimentos decorrentes do facto de os
parentes partilharem uma riqueza hereditária. De facto,
é irónico que nas sociedades capitalistas esta forma de linhagem encontre a sua
força numa racionalidade estranha aos sentimentos que normalmente
atribuímos à motivação das relações familiares e que a durabilidade das dinastias
enquanto grupo de descendentes seja adquirida através da assimilação de
características pensadas como antitéticas aos grupos baseados no parentesco (p.
70).
3 Esta é a base de um dos argumentos centrais de Marcus segundo o
qual os conceitos legais são categorias culturais do sistema de
valores do parentesco no contexto da sociedade americana, pelo que
as regras e instrumentos legais devem ser considerados uma
dimensão fundamental das relações familiares nos trusts familiares
americanos. Assim, para dar conta etnograficamente da
complexidade sociológica destas famílias dinásticas, Marcus propõe a
utilização de uma forma alternativa de narrativa familiar que não se
centre nesta unidade, mas que seja analiticamente multicentrada, de
forma a permitir dar conta do conjunto de processos externos e
diversos que formam a história da família e tornar evidentes as
diversas esferas sociais implicadas na construção da sua identidade.
4 Nesta obra são abordados diversos temas (a domesticação do capital
feita por famílias dinásticas; os modelos de crescimento destas
formações empresa/família; a importância dos fiduciários na
manutenção destes impérios; as relações entre gerações; o carácter
abstracto do dinheiro para os herdeiros destas fortunas; a formação
de pessoas piedosas; a “falsa curiosidade” subjacente às fundações
artísticas criadas por estas famílias; e a descrição etnográfica de
Peter Hall sobre os Rockfeller e os problemas inerentes à produção
de uma imagem pública da família), que no seu conjunto poderiam
contribuir para a compreensão das formas de viver em trusts. No
entanto, os autores não elaboram uma etnografia “densa” que dê
conta das experiências de vida, valores culturais e visões do mundo
deste grupo social. Por outro lado, também não fazem, e é pena, uma
reflexão mais sistemática sobre questões de significado mais
abrangente que levantam, sem analisar, ao longo do livro. Como
exemplo disto podemos apontar a interessante sugestão de que os
trabalhos sobre este contexto social podem contribuir para uma
reflexão mais geral sobre a sociedade americana, pois o facto de as
dinastias darem prioridade à realidade colectiva sobre o self único e
autónomo dos seus membros faz com que elas se tornem num dos
poucos contextos onde se pode desenvolver uma crítica do
individualismo americano (p. 179). Da mesma forma, a ideia de que
ao estudar formações dinásticas a antropologia pode contribuir para
revitalizar a teoria das elites, “cuja importância se revela na
demonstração das conexões sistemáticas entre riqueza e poder nas
sociedades capitalistas” (p. 102) é referida sem qualquer tipo de
desenvolvimento. No entanto, trabalhos como este, que se debruçam
sobre contextos sociais normal-mente ignorados pela antropologia, e
que fazem uma análise cultural de categorias económicas
hegemónicas mostrando a variação contextual dos seus significados,
tornam bem clara a contribuição que esta disciplina pode dar para o
estudo das economias modernas.
NOTAS
1. Trust : entidade que detém material e juridicamente os bens de uma pessoa, ou pessoas,
passando estes a ser administrados por terceiros — os fiduciários.
Paul Stoller, Embodying Colonial
Memories: Spirit Possession, Power
and the Hauka in West Africa
Clara Carvalho
REFERÊNCIA
Paul Stoller, Embodying Colonial Memories: Spirit Possession, Power and
the Hauka in West Africa , Londres, Routledge, 1995.
1 “O cheiro acre das resinas ardentes espalha-se pela casa de Adamu
Jenitongo.” Desde a frase com que abre o novo livro de Paul Stoller,
encontramo-nos na presença do universo narrativo e etnográfico
que o autor foi construindo ao longo de diversas obras: os cheiros de
Africa que lhe servem em The Taste of Ethnographic Things para nos
guiar através dos Songhay do Níger e da sua experiência de jovem
etnógrafo aprendiz; o universo de encantações que impregna o
relato de uma imersão nas práticas rituais dos Sorki, mestres de
magia Songhay, em In Sorcery’s Shadow, escrito de parceria com
Cheryl Okes; e a presença de Adamu Jenitongo, seu mestre e mentor
na magia e metafísica Songhay, cuja referência recorrente em todas
as obras do autor as transforma (também) numa memória em
construção.
2 Em Embodying Colonial Memories, Stoller abandona os Sorki para se
debruçar sobre os Hauka, os espíritos que caricaturizam os Europeus
durante as sessões de possessão a que se entregam os “cavalos de
génio”, os possuídos e performers: no decorrer de um sessão em
Tillaberi, no Níger, o autor foi incumbido de escrever “sobre nós,
porque tu és um ‘europeu’ como nós” por Istambula, um dos
espíritos presentes. A referência aos Hauka remete-nos
obrigatoriamente para o impressionante retrato feito por Jean Rouch
em Les Maîtres Fous, filme realizado (igualmente) a pedido dos Hauka.
O cineasta previa que estas figuras caricaturais dos elementos da
administração colonial e do poder europeu desaparecessem com a
independência das antigas colónias. Contudo, as sessões de possessão
em que os corpos se tornam hirtos e rígidos como numa parada
militar, os olhos ora esbulhagados ora ameaçadores se fixam em
realidades distintas, as bocas espumam e gritam, continuaram em
todo o seu fulgor de representação dura e aumentaram a sua
influência nos últimos vinte anos. Para explicar esta permanência o
autor conduz-nos numa viagem pelo Níger independente,
mostrando-nos a criação de um tecido social esquizofrénico, em que
os assanara (branco em Songhay), aqueles que procuraram seguir o
modelo das burguesias ocidentais, se afastam cada vez mais da massa
da população concentrada no interior e nos subúrbios da capital,
onde o primeiro presidente do Níger independente, Hamani Diori,
cria em seu torno um governo e um grupo de clientes que recriam a
noção de poder como domínio exterior sobre uma população sem
voz activa. A revolta do exército coloca na presidência o general
Seyni Kountche, ele próprio um suposto “cavalo de génio” Hauka,
cujas atitudes públicas são para Stoller uma reinvenção dos
mimetismos deste grupo: a atitude ameaçadora, o poder como
purificação e como utilização da força sem justificação.
3 Mas a compreensão dos fenómenos de possessão não pode ser
reduzida a uma dimensão intelectualizante ou mesmo a uma teoria
da performance. Segundo Stoller, os Hauka mimetizam os elementos
caricaturais e incompreensíveis do poder, como tentativa de
incorporação e apropriação dessas mesmas forças exógenas, e como
forma de resistência à sua estranha hegemonia. Fiel aos princípio
vividos em In the Sorcery’s Shadow e Fusion of the Worlds, e depois
expostos em The Taste of Ethnographic Things, Stoller defende que só
se pode compreender a possessão como um acto de corporalização
de uma memória colectiva e, como tal, um fenómeno não textual mas
sensitivo, gravado num corpo sensível. A sensualidade da percepção
humana é expressa na transmissão de uma memória colectiva que
evoca os gestos, os cheiros e sabores, os medos e terrores, as
apetências e prazeres, como outros tantos elementos significantes
para além da difusão de conhecimentos textualizáveis.
4 Em The Taste of Ethnographic Things, o autor criticava uma “etnografia
sensaborona” face aos “factos etnográficos saborosos” e defendia o
“conhecimento profundo” obtido através de um longo envolvimento
que implica, sobretudo, uma ligação profunda e emocional com as
pessoas. Todas as suas obras se dedicaram a explorar os contornos
destas relações, ao longo de narrativas estruturadas como contos.
Embodying Colonial Memories é moldado num material mais fluido,
transportando-nos dos encontros pessoais em “clubes” de possessão
Hauka para a história recente da África ocidental e do Níger. Os
elementos que torna objectos de análise e significação são tão
díspares como os estados de possessão, a cinematografia de Rouch, o
estranho teatro dos jovens governos africanos, o corpo como
primeiro elemento de criação individual e cultural; contudo, eles são
já parte integrante de um imaginário sobre África. Mais alargada nos
seus objectivos e menos precisa nas relações que retrata — sobretudo
a sua interpretação da história do Níger é nitidamente novelística —,
a última obra de Stoller ganha em revelação o que perde em
precisão. A sua interpretação sobre os fenómenos de possessão como
mimetização do poder e corporalização da resistência é
profundamente apelativa e, mesmo tratando-se de um olhar
exterior, é uma visão comunicante. Ambiciosa nas hipóteses que
defende, esta obra é susceptível de relançar um debate sobre as
formas de recriação e reapropriação (e corporalização) dos
elementos de poderes exógenos.
BIBLIOGRAFIA
STOLER, Paul, 1987, In Sorcery’s Shadow , Chicago, Chicago University Press.
STOLER, Paul, 1989, Fusion of the Worlds: An Ethnography of Possession among the Songhay of
Niger , Chicago, Chicago University Press.
STOLER, Paul, 1989, The Taste of Ethnographic Things. The Senses in Anthropology , Filadélfia,
University of Pennsylvania Press.
Rita Astuti, The People of The Sea
Emília Lopes
REFERÊNCIA
Rita Astuti, The People of the Sea , Cambridge, Cambridge University
Press, 1995.
1 Esta é uma obra baseada em notas do trabalho de campo,
decorrentes da estada da autora na costa sudoeste de Madagáscar, e
consiste no estudo de duas formas diferentes de identidade social co-
existentes na mesma comunidade — os Vezo —, uma operando no
presente e outra reportando-se ao futuro. O objectivo principal da
obra é o de explorar a aparente incompatibilidade dessas
características identitárias.
2 The People of the Sea divide-se claramente em duas partes distintas. Na
primeira metade, Astuti descreve com rigor as acções que
diariamente “fazem” dos indivíduos Vezo, salientando toda a
contextualidade e efemeridade dessa forma de ser. Numa sequência
de eventos muito bem narrados, a autora leva-nos a descobrir como
os Vezo fazem e refazem diariamente a sua identidade numa única
dimensão temporal, o presente, e num único posicionamento
geográfico, o litoral — o seu afastamento do mar leva-os ao abandono
das performances a ele associadas, base da sua identificação colectiva.
3 Os Vezo são uma comunidade que foge aos padrões classificatórios
convencionais de grupo étnico. Como se irá descobrindo ao longo da
obra, não é uma língua nem um território comuns, nem tão-pouco
uma história partilhada que os define como povo. Qualquer um pode
deixar de ser Vezo e, paralelamente qualquer indivíduo pode tornar-
se num deles, basta que aprenda pela acção a sê-lo, e a repita
diariamente.
4 Esta é a primeira grande constatação de Astuti — não se é Vezo por
descendência mas pela acção. O seu grande desafio é perceber a
identidade Vezo através da definição de identidade que eles próprios
construíram, numa postura muito diferente da tradicional
aplicação/teste da grelha teórica do investigador.
5 A autora realça que os Vezo estão “algemados” ao presente e que o
passado, enquanto conjunto de acções donde decorre um saber
empírico, é-lhes alheio, descobrindo-lhes assim uma identidade
social transitória, mutável em que se é o que se faz.
6 Astuti introduz também a questão da identificação geográfica, como
possível enquadramento para esta peculiar identidade social dos
Vezo, propondo que a dependência do mar representaria uma
espécie de essência estruturadora da acção dos individuos. Como ela
própria constata e os seus interlocutores sublinham, não há
projecção no passado (posse de terras) nem no futuro (espera pelas
colheitas). A sua subsistência está no mar tal como ele se apresenta
quotidianamente.
7 Ancorados no presente, renegam também a sua sujeição no passado
ao poderoso reino vizinho de Sakalara. Negam assim uma
identificação histórico-cultural que os ligaria a um passado
genealógico comum. A história transporta a genealogia: ao negarem
uma, negam a outra.
8 Mas há um resíduo histórico que os prende ao passado e que os Vezo
não conseguem anular. Dele se ocupa a segunda parte desta obra,
centrada na incontornável existência do parentesco e no modo como
esta leva este grupo homógeneo a subdividir-se em grupos
heterogéneos com identidade própria.
9 Astuti tenta compreender a coexistência destas duas formas de
identidade, uma orientada pela prática e inclusiva, a outra pela
descendência e exclusiva.
10 A autora descreve como o parentesco, em presença da poligamia e
não estabelecendo relações preferenciais, se estabelece
geracionalmente, originando relações de afinidade indiferenciadas
entre vários grupos de ascendentes, descendentes e colaterais.
Contudo este parentesco plural e disperso é reconduzido após a
morte à unidade de uma única raza — grupo específico e identificado
de antepassados que os Vezo elegem em vida, e dentre vários
possíveis, como o grupo de ascendentes em que querem ficar
incluídos.
11 Se enquanto vivos os Vezo formam um grupo homogéneo e com uma
só identidade — a colectiva —, a morte impele-os a optarem por uma
identidade individual, dividindo o túmulo o que a vida unia. O futuro
é feito momentaneamente presente através da evocação do passado
e da opção que cada Vezo faz sobre a sua raza, estabelecendo-se duas
formas de parentesco distintas, uma operando no presente e outra
que irá ter lugar no futuro.
12 A explicação proposta por Astuti, na tentativa de compreensão desta
“bizarra” co-existência identitária, baseia-se no facto dos seus
interlocutores terem consciência de que com a morte a sua
capacidade de agir como Vezo cessa, como tal a sua identificação
formal com um grupo específico de indivíduos (raza) é a única forma
de identidade que lhes restará no futuro.
13 Nesta obra, a descrição dos rituais funerários é muito realista.
Salientaria o modo como o grupo dos vivos enfatiza a sua unidade e a
forma efusiva como celebram os seus mortos ( em especial se o
defunto for idoso), o que significa que viveu longamente agindo como
Vezo.
14 Numa apreciação geral, acrescentaria que a descrição de Astuti sobre
o dia-a-dia Vezo é muito rica, pautada por transcrições de diálogos
que sublinham toda a dinâmica da vida desta comunidade. Poderá
causar alguma surpresa a atitude aparentemente passiva a que a
autora se remete em termos analíticos. Contudo, a dado momento
começa a tornar-se perceptível que ela se retrai intencionalmente
nas considerações que tece sobre a matéria, deixando os Vezo falar e
agir. Narra, reflecte pontualmente, mas deixa ao leitor a tarefa de
extrair ilações sobre estas duas formas de identidade co-existentes,
associadas a dimensões temporais distintas. The People of the Sea
transmite-nos sobretudo um novo olhar sobre velhos conceitos da
cultura ocidental — “povo”, “cultura”, “parentesco” e
“temporalidade”.
Niko Besnier, Literacy, Emotion and
Authority: Reading and Writing on a
Polynesian Atoll
Filipe Reis
REFERÊNCIA
Niko Besnier, Literacy, Emotion and Authority: Reading and Writing on a
Polynesian Atoll , Cambridge, CUP, 1995.
1 Teoricamente ancorado no designado modelo ideológico proposto por
Brian Street ( Literacy in Theory and Pratice , CUP, 1994), este estudo
olha para a literacia como uma construção sociocultural, ou seja,
postula que as práticas de leitura e de escrita não podem ser
analisadas independentemente dos contextos sociais, económicos e
políticos nas quais têm lugar. Neste sentido, e contrapondo-se à
perspectiva defendida por Jack Goody desde os anos 60, o modelo
ideológico chama a atenção, por exemplo, para o facto de a introdução
da escrita em muitas sociedades não ter espoletado as consequências
sociais e cognitivas propostas pelo modelo autónomo , designação
proposta pelo mesmo Brian Street para definir a teoria do autor de
The Domestication of the Savage Mind . Nas palavras de Niko Besnier:
“The ideological reaction to autonomous approaches to literacy (...)
represents a call away from facile categorizations, a retreat from
hasty generalizations, and a return to the ethnographic drawing
board” (p. 4).
2 Os príncipios básicos deste tipo de abordagens podem sintetizar-se
em quatro aspectos fundamentais: em primeiro lugar, aquilo que é
tomado como objecto de inquérito é a diversidade de experiências de
literacia que emergem dentro e através das sociedades; em segundo
lugar, procura-se mostrar como dentro das sociedades a diversidade
se articula com diferenças entre contextos de uso da escrita e da
leitura, com diferentes tradições religiosas e com padrões de
desigualdade entre grupos; em terceiro lugar, particularmente nos
estudos que privilegiam uma perspectiva comparativa, analisa-se
como a heterogeneidade da literacia resulta de um conjunto de
factores incluindo a natureza das práticas pedagógicas ligadas ao
processos de ensino/aprendizagem da escrita e leitura, as suas
origens e evolução históricas, e as atitudes face à leitura e à escrita;
em quarto e último lugar, os estudos ancorados no modelo ideológico ,
em vez de se preocuparem com as consequências sociais e cognitivas
da escrita, centram-se nas actividades, acontecimentos e construções
ideológicas associadas com manifestações particulares de literacia.
3 O presente livro procura cruzar tanto a perspectiva que privilegia a
análise de acontecimentos ou práticas de literacia particulares — os
designados event-centered studies, metodologia mais frequentemente
usada nas análises sobre as sociedades ocidentais com longa tradição
escrita e escolarização massiva — e a perspectiva mais holista que
procura dar conta da totalidade e diversidade dessas práticas — mais
comum em contextos não europeus onde a escrita foi recentemente
introduzida, como é o caso de Nukulaelae, um pequeno atol situado
no Pacífico central. Deste cruzamento resulta, talvez, o aspecto mais
interessante e inovador deste estudo, ao mostrar como a análise
aprofundada de um assunto como a literacia faz dela um pivô que
permite entender múltiplos aspectos da vida social. Analisando os
sermões proferidos (e previamente escritos) pelos pastores e
membros da comunidade, o autor mostra como esta forma de
literacia é usada enquanto instrumento e justificação de estruturas
de desigualdade social. Examinando de forma detalhada as
complexas relações entre a autoridade, a verdade e a noção de
pessoa que a prática do sermão evidencia, o autor põe em evidência
duas coisas: em primeiro lugar, que, mais do que opor oralidade e
escrita, é necessário entender como ambas as categorias se articulam
num continuum; em segundo lugar, o modo como a prática do sermão
contribui para a manutenção do poder, a emergência de formas de
resistência e a definição e construção da identidade entre os
Nukulaelae. Por outro lado, através de um vasto corpo de cartas
recolhidas entre os habitantes do atol, o autor analisa a profunda
imbrincação existente entre esta forma quotidiana de escrita e
certos aspectos da expressão das emoções, assim como a relação que
existe entre a escrita de cartas (a troca de correspondência dá-se
entre habitantes do atol e parentes emigrados em ilhas vizinhas) e o
controlo das actividades económicas. Nas suas palavras “letters
become mediating tools between emotions and material
transactions” (p.16). É também analisada a relação entre literacia e
género: embora o acesso à escrita e à leitura não esteja condicionado
pelo género, certas formas de literacia assumem qualidades de
género (caso dos sermões e escrita dos mesmos, e certas formas de
expressão das emoções só possíveis, para os homens, através de
cartas). Por último, o autor discute ainda as questões que decorrem
da introdução da escrita num contexto não letrado (no caso
analisado a escrita é introduzida ao longo do século XIX por
missionários samoanos): os dados mostram intenções discrepantes
entre os introdutores e os recipientes da literacia, que a usam no
presente com objectivos (as cartas, por exemplo) muitos diferentes
das intenções dos seus pios alfabetizadores. Aqui sim, pode afirmar-
se que se virou o feitiço contra o feiticeiro.
Angelo Torre, Il Consumo delle
Devozioni: Religione e Comunità nelle
Campagne dell’Ancien Régime
Robert Rowland
REFERÊNCIA
Angelo Torre, Il consumo delle devozioni: religione e comunità nelle
campagne dell’Ancien régime , Veneza, Marsilio, 1995.
1 Que as práticas religiosas tenham (ou, pelo menos, possam ter) uma
dimensão política, ou que os rituais possam constituir uma
representação das relações entre grupos sociais, não é novidade para
os antropólogos. A investigação desse nexo político constitui, de
facto, muitas vezes o ponto de partida para investigações sobre
fenómenos e práticas rituais quer em sociedades exóticas, quer no
contexto europeu. Sirva como exemplo destas últimas o clássico
estudo de Jeremy Boissevain sobre as relações entre faccionalismo
político e a organização de festas religiosas em Malta (Saints and
Fireworks, Londres, 1965). Com o florescimento relativamente recente
de estudos de antropologia histórica, alguns historiadores
procuraram investigar o mesmo tipo de relação nas sociedades
europeias do passado. Entre outros estudos, merece ser aqui
recordado o ensaio de Giovanni Levi sobre a carreira de um exorcista
no Piemonte de seiscentos (L’Eredità Immateriale, Turim, 1985; trad.
fr. Le Pouvoir au Village, Paris, 1989), onde destaca a importância do
controlo político sobre as actividades das confrarias religiosas. Mas o
estudo de Levi, tal como a maioria dos estudos realizados por
antropólogos, concentra-se sobre o nexo religião-política e sobre as
utilizações políticas de instituições e de rituais de carácter
formalmente religioso no tempo breve. Esta visão puramente
instrumental da relação religião-política reflecte sobretudo as
limitações das fontes de informação disponíveis. Nem o historiador
empenhado numa penosa e minuciosa reconstituição das relações
sociais no interior de uma comunidade, nem — a fortiori — o
antropólogo, cuja investigação se encontra condicionada pelas
possibilidades de observação no terreno, têm a possibilidade de
adoptar um ponto de vista mais distanciado do ponto de vista
temporal e de investigar a interdependência de médio e longo prazo
entre as esferas política e religiosa.
2 O recente estudo de Angelo Torre sobre a religiosidade popular no
Piemonte nos séculos XVI, XVII e XVIII pretende justamente examinar
essa relação na sua dinâmica de longo prazo, utilizando para o efeito
a documentação das visitações pastorais entre 1570 e 1770. A fonte,
já abundantemente utilizada por historiadores para o estudo das
crenças e superstições populares, é aqui objecto de uma leitura
brilhante e inesperada. Concentrando-se sobre aquelas partes da
documentação geralmente menosprezadas por historiadores — as
minuciosas descrições do estado de conservação de cada igreja e
capela, dos respectivos altares e ornamentos, da organização de
procissões, etc. — e através de uma análise extensiva,
simultaneamente topográfica e diacrónica, o autor reconstrói, à
maneira de um arqueólogo, a distribuição no espaço piemontês, e a
evolução ao longo dos dois séculos que se seguiram ao Concílio de
Trento, das formas de devoção popular, relacionando-as com
fenómenos de carácter político, como a construção do território, as
dinâmicas dos grupos de parentesco e dos mecanismos de sucessão e
as relações centro-periferia durante a construção do Estado
moderno. Falta aqui espaço para mencionar exemplos específicos das
relações evidenciadas neste estudo. Mas pelo seu alcance mais geral
valerá a pena recordar a análise cuidadosa da maneira como, no
período que se seguiu a Trento, a Igreja logrou impor formas de
devoção baseadas no culto da eucaristia e no fortalecimento do papel
da paróquia, em substituição de formas de devoção anteriores de
carácter comunitário dedicadas ao culto do Espírito Santo e
caracterizadas pela distribuição ritual de alimentos por altura de
Pentecostes (tentando ao mesmo tempo transformar estas últimas
em manifestações de caridade), ou a demonstração de que as
discussões a respeito do carácter legitimador do sagrado, e das suas
fronteiras, tenham constituído um dos eixos principais da política
local nesta época.
3 Trata-se, em resumo, de um livro importante: não apenas pelo seu
contributo para a renovação metodológica no campo da história
social, como também, e sobretudo, pelo modo como exemplifica a
contribuição potencial dos estudos de antropologia histórica, em
particular daqueles que não menosprezem a importância da
dimensão temporal, para o enriquecimento da própria antropologia.
Inês Salema Meneses e Paulo
Daniel Mendes, Se o Mar Deixar:
Comunidade e Género numa Povoação
do Litoral Alentejano
Francisco Oneto Nunes
REFERÊNCIA
Inês Salema Meneses, Paulo Daniel Mendes, Se o Mar Deixar:
Comunidade e Género numa Povoação do Litoral Alentejano , Lisboa,
Edições do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa,
1996.
1 Como é sabido, a antropologia que se tem vindo a praticar em
Portugal há duas décadas tem-se debruçado, quase exclusivamente,
sobre universos rurais. A despeito da fama de país marinheiro e de
uma história geograficamente condicionada pela presença do
oceano, as comunidades piscatórias do nosso extenso interface
litoral não têm merecido a devida atenção pela parte dos
investigadores. O presente trabalho de Inês Salema Meneses e Paulo
Daniel Mendes surge, pois, como uma lufada de ar fresco neste
panorama. Trata-se de um ensaio etnográfico dedicado a uma
pequena povoação do concelho de Odemira — a Azenha — onde a
pesca constitui uma actividade muito recente, o que permitiu aos
investigadores situarem-se de forma peculiar na sua abordagem ao
terreno. Os pontos fortes deste estudo centram-se nos processos de
construção simbólica da comunidade, com destaque especial para a
análise das ideologias de género — temática esta, aliás, que foi
também abordada por autores estrangeiros (Sally Cole,
nomeadamente), que publicaram monografias sobre comunidades
piscatórias portuguesas e com os quais o presente trabalho mantém
um excelente nível de diálogo crítico. As elaborações em torno da
esfera conjugal e da densa trama de produção, negociação e partilha
de sentidos que operam a mediação entre estas relações diádicas e o
conjunto mais vasto de unidades domésticas são tratadas com
grande rigor e equilíbrio descritivo. Assim, o público e o privado, a
solidariedade e o conflito, a cooperação e a competição, formam uma
matriz de contrastes que nos leva a uma perspectiva histórica e
sociologicamente esclarecedora acerca dos processos de
autoprodução simbólica da identidade comunitária, isto é, sobre o
trabalho no mar: “A Azenha do Mar resulta da descoberta de uma
oportunidade económica: a pesca” (p. 97).
2 Este ensaio beneficia ainda de uma resenha bibliográfica sobre a
antropologia das pescas, assim como de um espaço introdutório em
que se procura “situar a temática das pescas na literatura
antropológica” (p. 20). Faço minhas as palavras finais do prefácio
escrito por João de Pina Cabral e Antónia Pedroso de Lima:
Na nossa opinião, a maturidade de uma tradição científica disciplinar — e muito
particularmente de uma tradição etnográfica — não se pode medir pela
quantidade de estudos realizados, nem até pela qualidade intrínseca de cada um
deles, mas antes pela forma como, do seu inter-relacionamento, surgem novas
temáticas e novas propostas teóricas. Para que tal ocorra, tem de haver
interconhecimento, tem de haver diálogo, debate e polémica. A nossa esperança
é que estudos exploratórios como este possam ter esta função fertilizadora,
dando vida a uma área disciplinar que em Portugal tem vindo a primar mais pelo
silenciamento mútuo do que pelo diálogo criativo (p.16).