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Etnográfica

Revista do Centro em Rede de Investigação em Antropologia

vol. 1 (1) | 1997

Vol. 1 (1)

Edição electrónica
URL: https://journals.openedition.org/etnografica/2636
DOI: 10.4000/etnografica.2636
ISSN: 2182-2891
Editora
Centro em Rede de Investigação em Antropologia

Edição impressa
Data de publição: 1 maio 1997
ISSN: 0873-6561

Refêrencia eletrónica
Etnográfica, vol. 1 (1) | 1997, «Vol. 1 (1)» [Online], posto online no dia , consultado o 09
abril 2022. URL: https://journals.openedition.org/etnografica/2636; DOI:
https://doi.org/10.4000/etnografica.2636

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International License.
SUMÁRIO
Editorial

Artigos

Ser português na Trinidad: etnicidade, subjectividade e poder


Miguel Vale de Almeida

The body of India: geography, ritual, nation


Jackie Assayag

O Islão plástico: transformações da intimidade em contexto popular


marroquino
Maria Cardeira da Silva

O corpo e a busca de lugares da perfeição: escritas missionárias da África


colonial portuguesa, 1930-60
Paulo Valverde

O pensamento sizígio: confronto, combinação e transformação nos bestiários


medievais
Manuel João Ramos

A cristandade dos leopardos, a objectividade dos antropólogos e outras


verdades igualmente falsas
Filipe Verde

Entrevista

Returning to the whole em Edimburgo: entrevista com James Fernandez


António Medeiros

Memória
Um “informante” do Pico: cartas de Francisco de Matos Bettencourt a
Ernesto Veiga de Oliveira
João Leal

Recensões

Ian Hacking, Rewriting the Soul: Multiple Personality and the


Sciences of Memory | Allan Young, The Harmony of Illusions:
Inventing Post-Traumatic Stress Disorder
Luís Quintais

Miguel Vale de Almeida, Corpo Presente: Treze Reflexões


Antropológicas sobre o Corpo
Luís Quintais

David Parkin, Lionel Caplan e Humphrey Fisher (eds.), The Politics of


Cultural Performance
Paulo Raposo

Christopher Tilley, A Phenomenology of Landscape: Places, Paths and


Monuments
Sandra Xavier

Roy Ellen e Katsuyashi Fukui (eds.), Redefining Nature: Ecology, Culture


and Domestication
Francisco Oneto Nunes

George Marcus e Peter Dobkin Hall, Lives in Trust: the Fortune of


Dynastic Families in Late Twentieth-Century America
Antónia Pedroso Lima

Paul Stoller, Embodying Colonial Memories: Spirit Possession, Power


and the Hauka in West Africa
Clara Carvalho

Rita Astuti, The People of The Sea


Emília Lopes

Niko Besnier, Literacy, Emotion and Authority: Reading and Writing


on a Polynesian Atoll
Filipe Reis
Angelo Torre, Il Consumo delle Devozioni: Religione e Comunità nelle
Campagne dell’Ancien Régime
Robert Rowland

Inês Salema Meneses e Paulo Daniel Mendes, Se o Mar Deixar:


Comunidade e Género numa Povoação do Litoral Alentejano
Francisco Oneto Nunes
Editorial

1 A Etnográfica é uma revista de antropologia da responsabilidade do


Centro de Estudos de Antropologia Social (CEAS) do ISCTE. O seu
lançamento corresponde, por um lado, à materialização de um velho
sonho, acalentado no Centro desde a sua fundação, em 1986. Mas
resulta também de novas possibilidades decorrentes do dinamismo
que tem caracterizado a actividade recente do CEAS, expressa em
inúmeros projectos de investigação, na organização de colóquios e
seminários e em actividades específicas na área da antropologia
visual.
2 Com uma periodicidade semestral, a revista Etnográfica alternará
números temáticos com edições de conteúdo mais diversificado.
Procurar-se-á, em qualquer dos casos, dar expressão às diferentes
sensibilidades temáticas e opções teóricas que percorrem a produção
antropológica portuguesa actual. Pretende-se também que a revista
possa abrir espaços de diálogo pontuais com alguma produção
internacional especializada.
3 O presente número reflecte essa dupla preocupação. Optou-se por
dar visibilidade à produção de antropólogos portugueses que
concluíram recentemente ou conduzem actualmente pesquisas de
doutoramento. Mas no interior desse critério procurou-se que a
escolha de artigos reflectisse tanto a pluralidade de contextos de
pesquisa — Trinidad (artigo de Miguel Vale de Almeida), Marrocos
(Maria Cardeira da Silva), missionários portugueses em África (Paulo
Valverde), bestiários medievais (Manuel João Ramos), a natureza da
interpretação antropológica (Filipe Verde) —, como a diversidade de
quadros de análise utilizados — desde as discussões contemporâneas
sobre etnicidade (Miguel Vale de Almeida), modernidade e tradição
(Maria Cardeira da Silva) corpo e corporalidade (Paulo Valverde) até
à antropologia literária (Manuel João Ramos) ou às propostas de
diálogo entre antropologia e hermenêutica (Filipe Verde).
Simultaneamente, no quadro da preocupação de abertura de espaços
de diálogo com a antropologia internacional, publica-se também um
artigo do antropólogo francês Jackie Assayag, centrado na análise
antropológica do nacionalismo hindu. A edição desse artigo na
língua em que foi originalmente escrito resulta de uma opção
tomada pela Comissão Editorial e que se manterá nos restantes
números da revista: a possibilidade de publicação de alguns artigos
numa das línguas internacionais de comunicação científica — inglês,
francês e castelhano.
4 A par dos seus objectivos de publicação e edição da produção
antropológica recente, a Etnográfica faz seu um programa editorial
mais vasto. Desse programa consta, antes do mais, a inclusão de
espaços mais informais de escrita e debate sobre a antropologia.
Procurar-se-á que esses espaços sejam de uma certa diversidade:
entrevista — neste número com o antropólogo norte-americano
James Fernandez —, uma secção intitulada Memória — consagrada à
publicação de materiais inéditos ou textos esquecidos do percurso
histórico da antropologia em Portugal — ou dossiers mais elaborados
sobre questões da antropologia portuguesa actual, seus dilemas e
desafios. Desse programa faz também parte a inclusão de um espaço
de recensões dinâmico que dê conta de títulos mais significativos da
produção antropológica portuguesa e internacional.
5 Como em tantos outros projectos similares, a Comissão Editorial da
Etnográfica inicia este projecto com o convencimento de que ele tem
condições para durar. Não só há espaço — no panorama das
publicações científicas disponíveis em Portugal — para esta revista,
como ela é um contributo necessário à afirmação da antropologia
portuguesa como uma disciplina com capacidade de gerar espaços
alargados de debate no seu interior e fora de si própria. Mas também
sabemos que o triunfo deste projecto depende em última análise da
capacidade de resposta e envolvimento de todos os que — como nós
— partilham a convicção de que ele vale a pena. A Etnográfica será,
nessa exacta medida, não apenas aquilo que a sua Comissão Editorial
fizer dela, mas também e sobretudo aquilo que os seus colaboradores
e leitores quiserem fazer dela.
6 A Comissão Editorial
Artigos
Ser português na Trinidad:
etnicidade, subjectividade e poder
Miguel Vale de Almeida

Nota prévia
1 Em 1994, visitei a Trinidad numa curta viagem de prospecção do
terreno, com a ideia de vir mais tarde a concretizar uma investigação
no local. O interesse pelas Caraíbas foi motivado pelo facto de se
tratar de uma região com formações sociais feitas — a partir do
extermínio das populações indígenas — pela própria expansão
europeia: um produto da economia mundo e não um caso clássico de
colonialismo. A Trinidad surgia como o terreno não turístico e mais
complexo do ponto de vista da variedade de grupos étnicos e raciais.
Interessava-me fazer a passagem da área do género para a área de
processos mais vastos de diferenciação baseados na naturalização do
poder (corpo, género, raça) em contextos multiétnicos. Não tinha
qualquer intenção de estudar os portugueses da Trinidad, de cuja
existência nem suspeitava. Mas a investigação tem acasos que
redireccionam a atenção ou apelam à sua análise: daí a narração da
história da minha relação com uma luso-descendente da Trinidad.
Ao fazê-lo, prestei particular atenção às questões da etnicidade e
raça, poder e diferenciação e identidade pessoal. O texto estrutura-
se, então, como um diálogo entre recordações de viagem e relação
interpessoal, por um lado, e aquilo em que elas iluminam os debates
teóricos ou são por eles iluminadas, por outro.

Diário de viagem I
2 Considerando a pequenez relativa da ilha de Trinidad, a viagem de
táxi do aeroporto até ao bed and breakfast foi longa. Tudo porque o
taxista necessitou de parar, por razões não explicadas, no campo de
críquete onde os seus correligionários da Igreja Mórmon promoviam
um convívio. Não tivesse sido a minha insistência em prosseguir —
provocada pela vontade urgente de tomar um duche que acalmasse
os efeitos do calor e da humidade — e ele teria achado natural que ali
ficássemos. Viria mais tarde a descobrir que não se tratava de uma
estratégia de conversão religiosa, mas tão-somente um caso de
adaptação dos procedimentos da igreja à instituição trinidadiana do
liming — deixar-se ficar, numa esquina de rua, em casa, ou num bar,
conversando pelo prazer de conversar, trocando informações sobre
as origens étnicas de cada um; sobre o que se viu nas múltiplas
viagens de visita a parentes em Miami, Toronto, Londres ou Nova
Iorque; sobre os mais recentes objectos de consumo; sobre as
polémicas em torno da canção que ganhou as últimas competições de
soka ( soul + calipso ), de steelbands , de críquete ou mesmo de política
partidária. Ou simplesmente exercendo o direito inalienável ao
picong , o gracejo irónico, mais ou menos ácido, mais ou menos
cortejante, sobre os atributos físicos ou comportamentais de quem
tem o azar de passar por perto.
3 Ao fim de duas horas chegava a casa da senhora Grace, minha
anfitriã. A casa fica em Diego Martin, um subúrbio da capital - Port of
Spain. Viúva, activa na Igreja Anglicana, entusiasta com as
possibilidades de expansão do seu negócio via internet , a senhora
Grace é uma anfitriã extremosa e conversadora para os seus setenta
e muitos anos. Fica-me reservado o rés-do-chão da sua vivenda ao
“estilo espanhol” (outros diriam ao estilo dos subúrbios de Los
Angeles), mas a primeira tarde passo-a com ela na varanda
refrescada pela sombra das buganvílias (esse nome extraordinário,
tomado do apelido do explorador francês de um outro arquipélago
de outro oceano). Ao princípio explico-lhe que a minha viagem à
Trinidad é exploratória: para ganhar um sentido do local de modo a
eventualmente ali realizar trabalho de campo. Apesar disso (ou por
isso mesmo, já que viria a perceber que as etiquetas étnicas são bem
mais do que isso), a minha portugalidade torna-se no centro da
conversa da senhora Grace. Peremptória, afirma: “Você tem de
conhecer os portugueses da Trinidad.” A vontade dela é apenas
reforçada quando eu demonstro a minha total surpresa:
“Portugueses, na Trinidad?” Eficiente, a senhora equipa-se da lista
telefónica e procura encontrar o senhor De Nobrega, presidente do
Clube Português. Não o encontra. Subitamente, lembra-se de um
facto mais interessante: “Saiu um livro sobre os portugueses na
Trinidad. Vamos telefonar à autora.” Dito e feito. No próprio dia da
minha chegada à ilha (e esta não é um mundo microscópico, pois tem
mais de um milhão de habitantes, concentrando-se a maioria na área
metropolitana da capital), encontrava-me ao telefone com a autora
de The Portuguese of Trinidad and Tobago, Portrait of an Ethnic Minority
— Jo-Anne Ferreira.
4 Nessa mesma tarde, Jo-Anne visitou-me, acompanhada pela irmã. A
conversa começou com alguma formalidade, talvez por eu ter sido
percepcionado como alguém bastante mais velho — uma vicissitude
de marcadores corporais como o cabelo branco. A autora ofereceu-
me o seu livro, que haveria de ler avidamente nessa mesma noite. Ali
começava, sem querer, uma estada que me levaria a fazer amizade
com Jo-Anne, a sua família, os seus amigos. Que levaria a extensa
correspondência — por carta e correio electrónico. E que culminaria
numa visita de Jo-Anne e da sua amiga Shelley a Portugal, um ano
depois. Antes de continuar, porém, vejamos o que diz o seu livro.

Etnicidades I: retrato de uma minoria étnica


5 De entre os vários grupos étnicos que imigraram para a Trinidad
como indentured labourers 1 para as plantações de açúcar e cacau, os
primeiros a chegar foram portugueses oriundos dos Açores. Corria o
ano de 1834, o da abolição da escravatura no Império Britânico, facto
que deixou os donos de plantações com problemas de mão-de-obra.
O seu estatuto era ainda ilegal, e tinham sido trazidos do Faial por
comerciantes de escravos.
6 As primeiras tentativas de iniciativa governamental concentraram-
se na importação de africanos, afro-caribenhos e escravos libertados
dos EUA, partindo do princípio de que se adaptariam melhor: as
relações de exploração laboral eram essencializadas racialmente,
muitas vezes através de um tour de force metafórico baseado na ideia
de adaptação ao clima. Algumas correntes locais preferiam europeus:
“A stabilizing influence [that] would increase the number of whites
in relation to blacks and coloureds” (Brereton 1981:98). Primeiro
vieram da França, Alemanha e Inglaterra, mas estes imigrantes cedo
partiram da Trinidad para os EUA. Os governos de Portugal e do
Reino Unido estabeleceram um acordo de migração de madeirenses
para a Trinidad em contratos com a duração de dois anos, na
sequência de anteriores fluxos para a Guiana desde 1835. O primeiro
grupo legal de madeirenses chegou à Trinidad em 1846. Ferreira
aponta crises económicas e sociais na Madeira como estando na
origem da emigração: crise da indústria do vinho, doença da batata,
surto de cólera, bem como histórias relacionadas com a fuga ao
serviço militar 2 . No entanto, Ferreira sublinha a questão religiosa.
Graças à acção do missionário e médico presbiteriano escocês Robert
Reid Kalley milhares de madeirenses haviam-se convertido ao
protestantismo na década de 1840. Segundo Ferreira, foram vítimas
de perseguição quer pela Igreja Católica, quer pelo governo,
perseguição essa que culminou nos Madeira outrages de Agosto de
1846. A simples tomada de conhecimento deste facto — largamente
desconhecido em Portugal — constituiu para mim uma lição sobre os
processos de ocultação histórica e de como essas ocultações podem
ser desveladas alhures, nos lugares mais insuspeitados.
7 A primeira leva foi de 219 imigrantes, chegados em Maio de 1846,
seguidos de 197 protestantes, em Setembro. Seguiram-se levas de
200, 160 e mais 216 protestantes noutros barcos, no mesmo ano. Os
católicos eram sobretudo trabalhadores rurais; os protestantes eram
profissionalmente mais diversificados, pois Kalley havia fundado
escolas em Machico, Santo António da Serra e São Roque.
8 Se no ano da abolição da escravatura se pensava que a imigração de
europeus poderia contribuir para o “branqueamento” da sociedade,
poucos anos depois achava-se que números significativos de
trabalhadores europeus “would have upset the racial structure of
society and undermined the dominance of the whites in the colony
where Europeans owned and managed, while the coloured races did
the manual labour” (Brereton 1981:99). A palavra-chave aqui é
“trabalhadores”: o desejo de branqueamento é menor do que a
necessidade de manter uma estrutura de classes baseada na raça.
Cedo os madeirenses seriam substituídos por indianos e chineses,
não sem antes ter havido uma segunda vaga de imigração, com a
crise provocada pela filoxera na década de 1870 na Madeira. Nos
finais do século XIX , a comunidade madeirense atingia as duas mil
almas. Esta população acabaria por não renovar os seus contratos.
Substituída nas plantações por indianos, ou emigrou para outras
paragens ou integrou-se na sociedade local como um grupo
intermédio.
9 Segundo Ferreira, os católicos abriram rum-shops (tabernas) e os
protestantes mercearias — uma divisão supostamente feita pelas
diferentes atitudes perante o álcool. No entanto, os protestantes
acabariam por optar por uma estratégia de ascensão social
internacional, emigrando para os EUA (onde constituíram
comunidades em Jacksonville e Springfield, no Illinois), e também
para o Brasil. A maioria dos que ficaram era católica, chamando mais
alguma imigração (já de tipo “mercado de trabalho livre”) na década
de 1930 e logo a seguir à Segunda Guerra Mundial.
10 Os portugueses foram-se assimilando, segundo Ferreira, a todos os
níveis: cultural, linguístico e racial. De facto, já em 1891 se afirmava
que “as with all other sections of the immigrant population, except
the East Indian, the descendants of the natives of Portugal are being
gradually absorbed in the native population” (Census of Trinidad
and Tobago 1891, in Ferreira 1994: 23). Ferreira afirma ainda aquilo
que é, também, opinião corrente no seu país: “No longer distinct as
an ethnic group, largely because of dilution and assimilation through
intermarriage with other ethnic groups, of both European and non-
European origin, their descendants remain relatively few in numbers
but great in influence and occupational status” (Ferreira 1994: 23).
11 Em relação à comunidade actual, Ferreira confronta-se com o
problema clássico das classificações étnicas e raciais dos contextos
plurais: após 1960, o sistema estatístico deixou de discriminar os
portugueses como minoria étnica. Os seus descendentes passaram a
ser incluídos numa de três categorias: Europeans , mixed e others . Se
em 1950 Smith (1950: 65) afirmava haver apenas 65 Madeiran-born
Portuguese , Ferreira só identifica 25 em 1994 (1994: 24). A dificuldade
em identificar os portugueses é, aliás, reconhecida como um
problema, pelo que Ferreira recorre às quatro categorias
estabelecidas por Reis (1945): a) os Madeiran-born ou madeirenses: b)
os creoles , produto de uniões endógamas de madeirenses, nas
segunda, terceira e quarta gerações; c) os mixed creoles : resultado de
uniões entre um progenitor português full blooded oriundo/a de a) ou
b) e outro progenitor de origem diferente; d) os outros, pessoas que
escolhem identificar-se como membros da comunidade, sejam ou
não vistos como tal pelos membros de a), b) e c).
12 Quanto às duas associações, o Portuguese Club e a Associação
Portuguesa, o critério de admissão para pessoas mistas de origem
portuguesa era primeiramente o aspecto sociológico do contacto e
mistura interracial, “rather than purely ancestral or biological ties”
(Reis 1945: 131 in Ferreira 1994). Por exemplo, “non-Portuguese
spouses of Portuguese members could become ordinary members of
the Portuguese Club under certain restrictions, but not at the
Associação Portuguesa” (1994: 25).
13 Ferreira defende uma visão histórica de grupo étnico contra uma
visão de auto-identificação, visão esta que informa toda a sua
pesquisa. Assim,
Those who “feel” or consider themselves Portuguese are generally those who
still prepare one or more Portuguese dishes, those who take part in informal and
formal Portuguese social functions and those whose families belong or have
belonged to either one of the Portuguese social clubs or both. However, they may
or may not agree that a community actually exists (Ferreira 1994: 26).
14 É nos últimos anos que se têm proporcionado ocasiões de
reafirmação da identidade portuguesa: o Dia Nacional de Portugal
promovido pelo cônsul, a apresentação das credenciais de Duarte
Vaz Pinto como embaixador, a celebração da indigitação do bispo
John Mendes feita na comunidade, em 1989. Estes esforços são feitos,
parece-me, por luso-descendentes que entretanto se inseriram no
segmento “branco” e podem recorrer às instâncias diplomáticas e ao
discurso oficial português sobre as “comunidades portuguesas”.
Surgem no momento histórico de mais drástica diminuição dos
efectivos, devido a exogamia, mortalidade e emigração. Ferreira dá
relevo ao facto de que, inicialmente, mais homens do que mulheres
vieram da Madeira, o que teria conduzido à exogamia:
One result of inter-racial marriages is the phenotypic immersion and absorption
of the historical Portuguese community, so that it is difficult to ascertain those of
Portuguese descent in the “mixed-blood” group, unless their surnames are
Portuguese and unless they still maintain social links with others of Portuguese
descent (1994: 27).
15 A imagem social dos portugueses ficou ligada às mercearias e rum-
shops. Até à sua substituição pelos chineses no nicho do pequeno
comércio, as lojas eram mesmo conhecidas como poteegee shops . A
ascensão social dos portugueses, com o abandono do pequeno
comércio e a passagem para a distribuição em larga escala é
explicada localmente, e por Ferreira também, como estando ligada à
natureza frugal e empreendedora dos portugueses, à sua experiência
prévia com o comércio a retalho, ao trabalho árduo, ao familismo, à
auto-exploração e à solidariedade comunitária — explicações que nos
soam familiares em termos da contestada ideia de “carácter
nacional” e por certo necessitando de explicação. No entanto,
Ferreira não deixa de duvidar destes estereótipos:
An informant from South Trinidad remembers that in the 1940s, so many people
in her village owed money to a particular shop owner that some of the village
children would sing ‘pay Serrão, Serrão’ (to the tune of ‘Que será, será’), so
notorious a reputation was this shopkeeper’s (1994: 34).
16 Hoje já não há, como se diz em crioulo, poteegee shops , mas sim
grandes negócios com nome português, de que se pode destacar JB
Fernandes, o grande produtor de rum. Ferreira, usando para o efeito
o dito português “nem carne nem peixe”, define o lugar ambíguo dos
portugueses na sociedade multiétnica:
In a sense they bridged the gap between the European Creole elite at one end of
the economic and social spectrum and the African and Indian proletariat at the
other end. As Europeans, they shared the racial and physical characteristics of
the “white” upper classes; as indentured labourers and shopkeepers, they
occupied the lower strata made up of non-Europeans (1994: 48).
17 Os portugueses não eram considerados sociologicamente brancos
nem por brancos nem por negros. Até 1960 eram colocados numa
categoria própria nos censos, que correspondia, nos epítetos étnicos
“de rua”, a rash patash poteegees , um termo pejorativo que brincava
com a sonoridade dos plurais da língua portuguesa. A elite não os
considerava brancos, quando muito Trinidad-white , e os não brancos
não os tratavam como superiores. Albert Gomes 3 afirmava,
repetindo uma imagem que nos é comum:
The Portuguese in Trinidad locked their colour prejudices in their minds so that
their loins might be unaffected by them. It is said that the Portuguese colonize in
bed; certainly those in Trinidad were assimilated into the population in this way
(Gomes 1968: 9-10).
18 Até à época do progresso económico gerado pela exploração do
petróleo nos anos 1970, os portugueses não se conseguiram assimilar
aos brancos: o “luso-tropicalismo” de Gomes e de Reis só se aplica às
relações com os negros e as outras categorias coloured .
19 O livro de Jo-Anne Ferreira não podia, no entanto, deixar de fazer
referência a um aspecto que todos os luso-descendentes na Trinidad
referem: o facto de a identidade étnica, na maioria das famílias, se
resumir já só à celebração de certos hábitos alimentares. E aqui há
um símbolo-rei: garlic pork , em inglês; carne de vinha-d’-alhos, em
português. Este prato é confeccionado no Natal, e é um prato
madeirense. Com Miller (1994), percebemos como o Natal é, na
Trinidad, a festa gémea do Carnaval: a primeira celebra as
solidariedades familiares e o sentido de permanência, a segunda a
mistura étnica e a volubilidade e transitoriedade. É esta carne de
vinha-d’-alhos, esta comida étnica cuidadosamente elaborada para o
momento da comensalidade familiar, que constitui o fulcro da
identidade portuguesa crioulizada. Note-se o seu nome local:
carvinadage ou calvinadage . Estranhas ressonâncias de “carnaval”,
numa, e de “calvinismo”, noutra, mas não me atreveria a
transformar esta blague numa exploração etimológica....

Diário de viagem II
20 Imediatamente se estabeleceu um acordo tácito entre mim e Jo-
Anne: eu leria e criticaria o seu livro, ajudá-la-ia inclusive na
tradução de um artigo seu para ser publicado em português numa
revista madeirense, e ela apresentar-me-ia o seu país. Fez muito
mais, pelo que lhe estou infinitamente grato: apresentou-me à sua
família e amigos e deu-me a ver as nuances dos processos de
identificação e diferenciação étnica e racial.
21 A casa da família de Jo-Anne é uma vivenda de classe média num
subúrbio da capital chamado Petit Valley. Jo-Anne, estudante
universitária, vive com os pais e os irmãos. Os pais são ambos
quadros profissionais. O pai é de origem portuguesa, conhecendo
muito pouco da língua. A mãe é de origem africana: segundo as
categorias portuguesas de classificação fenotípica, seria negra, mas
cedo me apercebi das infinitas gradações utilizadas na Trinidad,
onde a mãe de Jo-Anne é, antes, coloured . O ambiente caseiro é
acolhedor e a conversa boa e descontraída. Como professora, mas
certamente devido a qualidades intrinsecamente pessoais, a mãe
Ferreira tem um discurso de uma lucidez cortante sobre a estrutura
racial local. Como família “mista” não são de todo uma excepção.
Mas a sua condição mista parece dialogar sobretudo com a sua
posição de classe, o seu estatuto profissional e o seu capital
simbólico. É clara a consciência de que a família não pode aspirar a
pertencer à elite branca local, como não pode aspirar a pertencer à
classe detentora do capital económico (que não político, pois este
está há décadas nas mãos do funcionalismo negro de raiz urbana e é
cada vez mais disputado pelos indianos).
22 Toda a família de Jo-Anne tem um discurso anti-racista que não se
fica pela manifestação de boas intenções ou pelo uso de uma
linguagem politicamente correcta. O seu capital cultural permite-
lhes, sobretudo, ter uma visão histórica e sociológica sobre o que é
viver numa sociedade que nasceu da escravatura e do sistema de
classes com assento na raça, e dele fazerem uma crítica. Permite-lhes
ainda aderirem a uma utopia de multiculturalismo e
multirracialismo, sem que percam a perspectiva de suspeição em
relação a quanto essa utopia é contruída como uma ideologia do
jovem estado-nação, bastas vezes sem repercussão no bom
entendimento inter-racial no quotidiano e nas relações
interpessoais.
23 A família de Jo-Anne é o exemplo de um segmento da população
trinidadiana que ganha cada vez mais relevo: uma classe média culta,
com laços transnacionais, inserida na cultura global. Este segmento
não constitui um grupo, pois todos os casos individuais de famílias
semelhantes são constituídos através de cruzamentos diferentes.
Assim, a origem étnica e racial é da ordem da hegemonia na
Trinidad: é o grande modelo de referência para pensar e mapear as
identidades socais e é no seu seio e através da disputa semântica em
torno dos seus referentes que se dá a luta por emancipações várias e
mudanças de significados. Coube a Jo-Anne engajar-se activamente
neste processo, pois os restantes membros da família não
demonstram o mesmo interesse na “redescoberta das raízes
portuguesas”.
24 Ingenuamente pensei, ao princípio, que a pesquisa de Jo-Anne
constituísse uma tentativa de ascensão social num contexto em que a
origem étnica é determinante. O meu raciocínio era o seguinte:
oriunda de uma família mista, o reforço da sua portugalidade
aproximá-la-ia do grupo dos brancos. O raciocínio foi rapidamente
complicado pelo facto de historicamente os portugueses na Trinidad
terem sido considerados como “nem brancos nem pretos”, sobretudo
pela sua posição socioeconómica intermédia. Pensei então que a
recente promoção de Portugal à Europa político-simbólica pudesse
permitir uma reformulação dessa ideia, e isto justamente quando os
portugueses desapareceram como donos de tabernas e até como
comunidade: uma identidade a que pudesse recorrer quem quisesse.
25 Mas porquê e para quê pensar assim? Afinal de contas, a busca das
raízes não é muito diferente da que se faz nos Estados Unidos e cada
vez mais na Europa. Não estaria Jo-Anne simplesmente a ancorar a
sua identidade num sentido de história de família comum a largos
sectores da modernidade global e, de certo modo, a recusar mesmo a
lógica das categorizações por grupos raciais, reforçando antes a
“etnicidade” ou a “cultura”? Questão complicada, visto que o assunto
é tudo menos pacífico ou neutro na Trinidad, onde a tez da pele, a
raça, a origem étnica, a religião, são o centro das conversas, das
disputas, das alianças, até da vida política nacional e das produções
culturais expressivas, da música ao grande ritual do Carnaval. Para
que o leitor não se perca como eu me perdi, ao deambular por ruas
repletas de gente de todas as cores — onde numa esquina um templo
hindu se sucede a uma mesquita, esta a uma igreja evangélica, ou
pinturas rastafarianas decoram os muros de um campo de golfe para
crioulos franceses —, é necessária alguma sistematização da
etnicidade e da raça na Trinidad.

Etnicidades II: o contexto trinidadiano


26 O volume editado por Yelvington (1993) será o meu guia para esta
secção. Na Trinidad, a etnicidade está implicada nas lutas
quotidianas pelo poder, naquele que é um dos estados mais
multiétnicos e mais desenvolvidos das Caraíbas. Para Yelvington, a
história da Trinidad é uma história de clivagens que atravessam as
fronteiras étnicas, de classe, culturais, nacionais, religiosas e sexuais,
resultando numa hegemonia incompleta, o que deu espaço para
estratégias de ascensão naquilo que veio a ser conhecido como uma
estrutura de etnia/classe (1993: 3).
27 Durante três séculos foi uma colónia “esquecida” da Espanha, após a
dizimação das populações ameríndias. Em resposta à crescente
agressividade do Império Britânico no século XVIII , a Espanha tentou
tornar a ilha numa colónia economicamente viável, convidando
plantadores franceses católicos das Antilhas que entretanto se
encontraram perante uma situação de subalternidade face aos novos
senhores britânicos. Começava a economia de plantação em torno da
cultura do açúcar. Capturada a ilha pelos ingleses, em 1797, e
formalmente a eles cedida em 1802, chegaram também plantadores
britânicos, vindos de outras ilhas, assim como grupos de negros
livres: ex-escravos americanos, escravos libertados de navios
estrangeiros pela Royal Navy e imigrantes das Caraíbas. Desde o
princípio é, pois, grande a diversidade de origem geográfica e
linguística da própria população africana.
28 Três grandes grupos socioeconómicos — correspondendo a três
grandes grupos étnicos — se distinguiram desde cedo: os brancos,
donos de plantações, de casas mercantis e administradores,
controlando os recursos; os coloureds ocupando lugares intermédios;
e a grande massa de negros, desde escravos a camponeses, passando
por assalariados agrícolas. A rivalidade étnica verificava-se mesmo
dentro de cada grupo, como entre os chamados, ainda hoje, crioulos
franceses (querendo com isso dizer brancos franceses nascidos nas
Antilhas) e os ingleses, estes pressionando no sentido da anglicização
de um país maioritariamente católico e com uma cultura de
referência francesa (nunca chegou a estabelecer-se uma base
hispânica ) (Yelvington 1993: 5).
29 Com o fim, em 1834, deu-se a procura de trabalho estrangeiro,
sobretudo da Madeira e da China. Mas estes tornaram-se na classe de
pequenos comerciantes, a que se juntou, depois da Primeira Grande
Guerra, o grupo dos sírio-libaneses. A massa de mão-de-obra
necessária para prosseguir a economia de plantação foi encontrada
na Índia: 144 000 indentured labourers chegaram, via Calcutá e
Madrasta, entre 1845 e 1917. Tanto hindus como muçulmanos
resistiram mais do que qualquer outro grupo à crioulização,
estabelecendo-se como camponeses após o fim do sistema dos
contratos.
30 No século XIX , as divisões étnicas e de ocupação foram-se
redefinindo: os brancos continuaram como donos de plantações, os
chineses e portugueses estabeleceram-se no comércio, os negros e os
coloured ascenderam aos ofícios, e os indianos (East Indians , por
oposição a West Indians , isto é, caribenhos, na nomenclatura
“orientalizante” do Império Britânico) especializaram-se na
agricultura de pequena e média escala — nas zonas rurais do Centro
e Sul, por oposição à população negra das cidades do Noroeste
(Yelvington 1993: 7). O casamento entre negros e indianos tem
constituído desde então um interdito não dito, só recentemente
ultrapassado (e gerando uma nova categoria, o dougla ). Hoje, se a
população negra constitui mais de quarenta por cento, a indiana
atingiu já essa percentagem, pelo que é entre os dois grupos que
grande parte da rivalidade política actual se joga. O quotidiano
trinidadiano é atravessado pelas mútuas acusações estereotipantes:
os negros vistos (também pelos brancos) como preguiçosos,
irresponsáveis, bebedores, consumidores sumptuários, e os indianos
vistos como avarentos, inclinados para a violência doméstica,
submissos em relação à autoridade, clânicos e pagãos.
31 Yelvington desenvolve o argumento de que o processo de formação
da identidade étnica implica “percepcionar semelhanças e
diferenças, atribuindo significado — e portanto valor — a essas
identidades” (1993: 9). O recurso inicial para estas identificações é
feito, a partir “de cima”, pelos grupos detentores do poder na
sociedade esclavagista e em particular pelo poder colonial (ver Mintz
1976, e Wolf 1982). Este processo tem sido referido como um
processo de mercadorização ( commoditisation, Kopytoff 1986; ver
também Appadurai 1986): a formação da identidade étnica na
Trinidad ocorreu num contexto de crescente mercadorização (
commodification ) da força de trabalho, intimamente associado a um
processo de objectificação da etnicidade (Yelvington 1993: 10).
32 São estes processos que conduziram a uma mercadorização (
commodification ) da etnicidade: os grupos subordinados não só foram
incapazes de manipular os seus próprios símbolos étnicos; eles foram
também impossibilitados de desenvolver imagens nacionais que
dessem igual peso a todos os grupos étnicos ( idem 1993: 11) Este
processo afectou sobretudo o grupo que constituiu a base da
escravatura — os negros. Estes viram-se ainda alvo do facto de o
processo de mercadorização da etnicidade ocorrer à escala global. O
que se torna saliente são imagens geradas e transmitidas através dos
media internacionais, através do processo de migração internacional
e através do turismo ( ibidem 1993: 11). Eu acrescentaria, porém, que
este processo não leva só à objectificação global da negritude: como
no resto das Caraíbas, muitas famílias trinidadianas são
transnacionais e importam também modelos de rebeldia,
nomeadamente dos Estados Unidos.
33 À ideia predominante de que a cultura trinidadiana é sincrética — o
que se verifica no calipso, nas steelbands , no Carnaval — contrapõe-
se o facto de que a organização política se dá pela via da fidelidade
étnica. Os dois processos não são contraditórios, como veremos
adiante. Mas convém resumir aqui a evolução política nas últimas
décadas. O sufrágio universal foi estabelecido em 1946. Ainda sob a
administração colonial britânica (se bem que dentro de um quadro
de autonomia), Eric Williams e outros intelectuais negros urbanos
organizam o People’s National Movement, em 1955: o nacionalismo
do PNM, que veio substituir o governo do luso-descendente Gomes,
pretendia apagar as diferenças étnicas e forjar uma nova nação. Por
um lado, a Trinidad era representada politicamente como um melting
pot, mas, por outro, a etnicidade penetrou a ideologia do PNM, pois
os símbolos desse melting pot — as steelbands , o calipso, o Carnaval —
foram construídos como símbolos nacionais mas interpretados como
afro-trinidadianos (ver Eriksen 1991b). À bandeira da “crioulização
afro”, acenada por Williams, opuseram-se os indianos e as suas
organizações políticas emergentes.
34 O PNM permaneceu no poder até ao movimento do Black Power na
década de 1970, já depois da independência total: tratou-se de um
movimento de negros urbanos da classe trabalhadora que se
queixavam da dominação persistente da economia pelas
multinacionais e pelos brancos locais. O movimento forçou o PNM a
proceder à redistribuição possível graças ao boom do petróleo na
década de 1970. Mas as mudanças sociais geradas pelo petróleo e
pelas políticas redistributivas não resultaram na submerssão da
identidade étnica. Cresceu, sim, o patrocinato estatal, com os cargos
político-administrativos ocupados sobretudo pelos negros, uma
realidade que se tem acentuado face a um sector privado dominado
pelos indianos urbanizados nas últimas décadas. Em 1986, o PNM foi
derrubado pelo NAR, uma amálgama de partidos de base étnica e de
classe que cedo se fraccionou segundo as clivagens étnicas, tendo
forçado os indianos hindus a formar um partido. Em 1990, Robinson
e o seu gabinete foram feitos reféns de uma tentativa de golpe de
Estado pelos Black Muslims, tentativa essa que abortou.
35 A sociedade trinidadiana (à semelhança do contexto mais vasto das
Caraíbas e de partes da América do Sul) tem sido explicada por três
tendências diferentes. Primeiro, a teoria da estratificação, de cariz
estruturo-funcionalista e segundo a qual, apesar da diversidade, a
sociedade manter-se-ia coesa graças a consensos em torno de
normas e valores básicos. Em segundo lugar, a teoria da sociedade
plural, afirmando que tal consenso não existe, mas sim que cada
secção cultural mantém as suas próprias instituições sociais.
Finalmente, a teoria da sociedade de plantação, defendendo que as
relações sociais foram moldadas pela economia de plantação e que
essas relações, no fundo, não mudaram. Yelvington aponta para o
facto de nenhuma delas dar conta da mudança social. No meu ver,
tão-pouco dão conta do papel do Estado, da inserção na economia e
cultura globais, e dos processos de manipulação, criação e consumo
de símbolos de etnicidade e raça. Todavia, uma das contribuições ao
livro de Yelvington usa o exemplo de uma recente “moda”
trinidadiana, a da construção de uma identidade “espanhola”
(sobretudo através da música parang tocada no Natal, em espanhol,
oriunda supostamente de aldeias das montanhas no Norte, e isto
num país onde o único traço hispânico se reduz a alguma toponímia).
Aisha Kahn aborda, pois, a construção de identidades “mistas”.
Yelvington refere-se a Kahn dizendo:
Rather than a discreet and bounded entity, “Spanish” identity is ambiguous and
amorphous. (…) Kahn traces the contingent meanings of “spanish” to contexts of
hierarchy and stratification, showing that why, when and how ethnicity is
sensed, promulgated and contested is dependent on a wider network of relations
of power (Yelvington 1993: 19).
36 Embora introduzindo elementos de complexidade etnográfica cujo
esclarecimento não cabe neste artigo, a seguinte citação de Kahn
demonstra bem o campo semântico dos processos de classificação
locais:
…various perceptions of possible criteria for “Spanish” identity: a) “Spanish is
white Negro mixed with Indian. It also have red Negro and black Negro. White
Negro is fair, clear, with straight or straightish hair” (Indo-Trinidadian woman);
b) “My daughter-in-law is a Spanish. She have a East Indian mother and a
Spanish father, he is a red very light-skinned Afro-Euro mix 4 , with kinda curly
hair” (Indo-Trinidadian woman); c) “We went through purely mulatto villages
where the people were a baked copper colour, much disfigured by disease. They
had big light eyes and kinky red hair. My father described them as Spaniards” (V.
S. Naipaul, The Mimic Men , 1985 (1967): 121); d) “If I see the hair is straightish I
will say Spanish, and if it is more curly I will say red … I look for skin colour, hair,
and what not. I say mixed if they seem more whitish, and Spanish or Spanishy if
they seem more Negro (Indo-Trinidadian woman)” (Kahn 1993: 196)
37 Note-se que Kahn apenas refere as percepções de mulheres indo-
trinidadianas. Ao longo do seu artigo, as visões complexificam-se
consoante a auto-identidade dos informantes e a atenção prestada ao
fenótipo e/ou à posição social.
38 Apesar de a produção de ciências sociais ser significativa na
Trinidad (e no sistema da University of the West Indies, que abrange
vários estados-ilhas anglófonos), normalmente abordamos a
etnicidade enquanto formulação teórica ocidental. Mas esta tende a
ser excessivamente abstracta e pouco ancorada em realidades
multiétnicas da sociedade de origem do teorizador. Um exemplo é o
artigo de Anthony D. Smith na Companion Encyclopaedia of
Anthropology . A preocupação central de A. D. Smith parece ser com a
natureza dos laços e sentimentos étnicos (1994: 707). Estabelece a
distinção básica entre as perspectivas primordialistas e as
circunstancialistas. Introduz a distinção, porém, entre
primordialismo forte e fraco, baseando-se o primeiro numa analogia
da universalidade do parentesco e o segundo — o primordialismo
participante — na longevidade sentida dos laços étnicos pelos
participantes. As perspectivas circunstancialistas, por sua vez, vêem
a etnicidade como um recurso a usar para propósitos económicos e
políticos.
39 A. D Smith associa este debate a um outro que lhe é paralelo: o da
antiguidade ou modernidade das nações e do nacionalismo. A maior
parte dos autores parece considerar a nação e o nacionalismo como
fenómenos modernos. Veja-se, por exemplo, Anderson (1983) ou
Gellner (1973, 1983), para quem as sociedades pré-modernas eram
demasiado estratificadas e divididas para terem um sentido de
homogeneidade. Smith acha que tanto perenialistas como
modernistas exageram o corte da modernidade. Para ele há um
substrato (Smith 1988) que, para ser compreendido, necessita de
uma abordagem do papel de símbolos, mitos, valores e memórias na
formação e persistência de identidades culturais colectivas (1994:
709), aceitando a importância das fronteiras estudadas por Barth
(1969) e Armstrong (1982). Ao considerar os factores que facilitaram
a persistência étnica, A. D. Smith enfatiza a territorialização, a
guerra entre estados, a religião organizada, o isolamento cultural, os
mitos de eleição étnica. As duas principais vias seriam a ocidental,
cívica e territorial, e a étnica e genealógica (no Leste europeu, na
Ásia e, menos, em África). Reconhece porém outras vias: a imigrante
(América, Austrália, Argentina), e a colonial (América Latina e África
subsariana), resultando esta última num nacionalismo
desenvolvimentista (1994: 717-18).
40 A perspectiva de Smith não parece poder constituir um consenso
teórico quando se pensa na Trinidad ou quando estes assuntos
generalistas são trazidos para o nível da subjectividade actuante,
como no caso da minha amiga Jo-Anne. Algumas perspectivas
críticas recentes em torno da etnicidade ganham razão de ser se,
antes, o leitor descansar um pouco com um regresso à narrativa de
viagem.

Diário de viagem III


41 Interrompi a estada na Trinidad para passar uns dias na ilha de
Tobago, tida como o local de vilegiatura de Robinson Crusoe, mas na
realidade um território em processo de alienação territorial para as
mãos de proprietários alemães, que ali chegam no voo directo de
Frankfurt. Fiquei instalado em casa da senhora Sardinha, cuja
negritude absoluta já não me surpreendeu — considerando o
patronímico. Cheguei ao bed and breakfast convencido de que poderia
recompor do sono perdido na viagem de barco. Mas a anfitriã achou
por bem convidar-me para a festa de primeira comunhão de um
sobrinho. A nata social de Tobago estava presente. Não que eu o
tivesse percebido espontaneamente — tal era o à-vontade dos
convivas — mas porque fui apresentado ao senhor Robinson, ex-
primeiro-ministro de Trinidad e Tobago e ex-refém dos Black
Muslims. Ao responder à pergunta sobre o que tencionava fazer,
cometi o deslize de lhe dizer que eventualmente faria trabalho de
campo na Trinidad, por ser etnicamente mais diversificada do que a
Tobago afro-caribenha. A reacção que obtive foi de compaixão:
“Você nunca vai perceber aquilo. É muito confuso, há muitas
identidades. Fique aqui que é mais fácil. Aqui só há negros”,
respondeu o ex-primeiro-ministro, cujos inimigos políticos são
maioritariamente indianos. “Será?”, pensei para mim, enquanto
obtinha um sorriso enigmático da senhora Sardinha.
42 No regresso a Trinidad, Jo-Anne esperava-me para uma excursão.
Fomos com a sua amiga Shelley e o marido até uma remota aldeia da
costa norte chamada Matelot. O objectivo era um piquenique e uma
visita a uma freira católica, tia de uma amiga de Shelley, que também
viria connosco. Eu já conhecia estes personagens, descendentes de
portugueses, chineses e africanos em graus vários de mistura, mas
todos entusiasmados com a possibilidade de discutirem comigo a
portugalidade (ainda hoje não sei se me percepcionaram como a real
thing ). A caminho de Matelot passámos por Toco, onde Herskovits
realizou o seu trabalho de campo comparativo com a África
ocidental. A calma campestre, a praia, os banhos de rio, a comida
crioula, elevaram-nos os espíritos. No regresso, ao crepúsculo, Jo-
Anne fez-me a pergunta que abriria um longo debate que ainda hoje
temos: “Acreditas em Deus?”
43 Poupo o leitor aos conteúdos do debate, mas serviu este para ficar a
saber a história da opção religiosa de Jo-Anne. Tanto ela como a irmã
abandonaram o catolicismo há alguns anos. Definem-se a si próprias
como “cristãs”, querendo com isso dizer que cortaram com as
falsidades institucionais e rituais tanto do catolicismo como do
protestantismo. Do ponto de vista de um observador exterior, Jo-
Anne pertence a um grupo pentecostal e evangélico. Trata-se de uma
organização internacional, cuja principal tarefa consiste na tradução
da Bíblia para línguas que ainda não a possuam. Primeiro instada a
trabalhar em África, Jo-Anne optou pela Amazónia, para onde partirá
em breve para fazer o que nós, antropólogos, chamamos trabalho de
campo. No caso dela, trata-se de aprender uma língua nativa (além
de aperfeiçoar o português), evangelizar e eventualmente traduzir a
Bíblia. “O trabalho de uma vida” como ela define. E também o
trabalho de convencer os pais, que só aceitaram a opção de Jo-Anne
graças a uma atitude de tolerância e de reconhecimento do primado
da “liberdade de escolha”.
44 A opção religiosa de Jo-Anne é a escolha de uma trajectória de vida,
de um estilo de vida, de um conjunto de valores que desenvolveu nas
comunidades do seu grupo religioso em França e na Inglaterra. Ao
mesmo tempo prossegue o resgate da sua identidade portuguesa. E
ainda sente que participa legitimamente da construção da nação
trinidadiana como uma sociedade multicultural em que os símbolos
ancoradores são as formas expressivas de origem africana. Em suma:
as coisas são bem mais complexas do que uma simples opção entre
primordialismo e circunstancialismo, pelo menos quando chegamos
ao nível das pessoas concretas.

Etnicidades III: poder e diferenciação


45 No recente volume editado por Wilmsen e McAllister (1996)
encontra-se uma crítica pertinente a alguns pressupostos da análise
da etnicidade. Segundo Wilmsen, se a ideia de A. D. Smith de que a
etnicidade e a raça são versões de uma tendência humana para
categorizar e discriminar não satisfaz, tão-pouco afirmar que a
etnicidade é artificial nos dá licença para dizer que é ilegítima
(Wilmsen 1996: 3). Wilmsen desloca o centro do argumento para o
facto de que a etnicidade surge no exercício do poder ( idem 1996: 4).
Assim, têm sempre de coexistir várias etnicidades para que haja
etnicidade, e os grupos dominantes não são nunca etnicidades, pois
detêm eles o controlo definicional hierarquizante. Como diz
Comaroff no volume de Wilmsen, a consciência étnica é um produto
de contradições incorporadas em relações de desigualdade
estrutural. A política étnica é uma política da marginalidade. Nestes
termos, a etnicidade é um conceito relacional. Embora a meu ver isto
não contradiga Smith de forma absoluta, especifica que se trata de
uma relação em que o dominador pode definir o subordinado. A
dialéctica surge quando os subordinados adoptam os termos com que
foram definidos como base para a mobilização (Wilmsen 1996: 5). A
essência da existência étnica assenta no acesso a recursos e meios de
produção não só no sentido estrito, mas também no sentido de
produção simbólica.
46 Wilmsen reconhece que os termos étnicos funcionam como
condensa-dores de traços previamente independentes num único
símbolo de identidade generalizada, interior à ideologia dos
indivíduos que nele centram um sentido colectivo de selfhood
(Wilmsen 1996: 5). Etnicidade e identidade referem-se a processos
diametralmente opostos de localizar os indivíduos numa formação
social. Um refere-se às condições objectivas de desigualdade na
arena do poder social, o outro à classificação subjectiva num palco de
prática social ( idem 1996: 6). Assim, a identidade étnica surge
quando e se estes processos intersectam a consciência étnica e a
classe. Wilmsen parafraseia mesmo Silverman (1976: 633) dizendo
que etnicidade e classe representam dois sistemas entrelaçados de
estratificação.
47 Isto parece ser bastante claro quando se toma o caso trinidadiano.
Mas subjacente quer à perspectiva de Smith, quer à de Wilmsen (aqui
apresentada como ilustrativa de recentes tendências), parece
subsistir o eterno questionar sobre a identidade, um conceito que
não parece estar muito distante do seu uso pelo senso comum. Ora,
em 1995, Rita Astuti apresentou um modelo de identidade e
diferença alternativo ao de etnicidade, e que questiona também o
uso corrente de “identidade”. Baseando-se na ideia de que “os Vezo
não são um tipo de people ” — no sentido étnico usado pela
antropologia — mas sim o que fazem e quando o fazem, Astuti
propõe que a identidade é uma actividade e não um estado
existencial. Ela actualiza-se de forma performativa. A diferença é
construída por um processo análogo ao de identificação. Assim, nem
a identidade nem a diferença são inerentes às pessoas — ambas são
performativas. Esta abordagem constitui-se como alternativa àquelas
em que a etnicidade tem sido vista como uma forma de pertença
primordial ou de manutenção de fronteiras, entre outras.
48 Se nas abordagens tradicionais, a ênfase tem sido colocado na ideia
de “origens partilhadas”, já Poyer e Linnekin (1990) — em que Astuti
se baseia em parte — defendem a existência de construções
alternativas de identidade e diferença. Estas seriam “etnoteorias”,
cujas características não têm de ser necessariamente as de uma
teoria étnica. Em contextos marcados pela colonização e a
escravatura, como o Brasil ou a Trinidad, por exemplo, as noções de
raça têm constituído o recurso classificatório por excelência. Os
idiomas da classe e da cor são usados de forma racializada,
naturalizando assim as desigualdades sociais.
49 Se a isto acrescentarmos o facto de que nos anos mais recentes se
tem assistido à criação de um tabu em torno da utilização da
expressão “raça”, conduzindo não a uma ultrapassagem do racismo,
mas a um deslocamento dos conteúdos de “raça” para as expressões
“etnia” ou “cultura”, o quadro de referentes para a constituição de
identidades até aqui tidas como “étnicas” torna-se mais complexo e
fluido. Isto pode conduzir a formas de fundamentalismo cultural e
estratégias de exclusão, como as que se observam na Europa ao nível
das políticas dos estados e da opinião pública. Em contextos pós-
coloniais, as estratégias de exclusão levadas a cabo por grupos
sociais dominantes e pelos estados são confrontadas ou mitigadas
pelas estratégias de autodefinição subjectivas feitas a partir de
fundos tidos (muitas vezes ideologicamente) como crioulizados.
50 Uma abordagem da etnicidade desde o ponto de vista dos processos
de poder e diferenciação não significa, pois, passar carta em branco a
perspectivas circunstancialistas que se fiquem pela mera ideia de
manipulação oportunista pelos grupos. Passa pelo próprio
questionamento da ideia de identidade de grupo e pelo
questionamento de quem tem a autoridade para estabelecer as
definições. Estes processos são hoje complexificados pela
intensificação da interdependência global, curiosamente
simultâneos da intensificação do projecto moderno das escolhas
pessoais de identidades e estilos de vida.

Etnicidades IV: sujeitos e mundo, ou de como


os extremos se tocam
51 Daniel Miller tem uma frase no seu livro sobre a Trinidad que
marcou o meu ponto de vista durante a visita àquela ilha: “From its
inception Trinidad has been the creation of the global economy”
(1994: 24). Quer isto dizer que um território, uma história, uma
sequência de gerações que vieram a resultar no contexto
trinidadiano contemporâneo, são o resultado do processo de
expansão europeia, da escravatura, do sistema de plantação e da
criação de periferias económica e simbolicamente “feitas
dependentes” pelo colonialismo e mais tarde pelo capitalismo tardio
de cariz multinacional. Atrevo-me a dizer que este contexto (comum
a grande parte das Caraíbas, como nos ensinaram Mintz e Wolf, entre
outros) é diferente de qualquer das vias regionais delineadas por
Smith.
52 Segundo Miller (como vimos já com Yelvington), nenhum grupo
conseguiu, por si só, reclamar o tipo de dominação hegemónica que
permitisse uma trajectória histórica única que fosse transponível
para uma genealogia da Trinidad moderna (1994: 22). Nesse sentido,
a Trinidad é claramente uma sociedade crioulizada (e nalguns
aspectos plural) que continua a ter de se definir a si própria tanto
por relação a outras terras como por relação às suas origens. É por
isso que a construção de um sentido de ser trinidadiano tem de ser
feito debaixo de condições extremamente difíceis (compare-se com
os — questionáveis — “dados por adquiridos” do sentido de ser
português em Portugal). Tratase de uma sociedade com um forte
sentido de ruptura, uma radicalização do presente com o efeito
colateral de que não pode confiar num sentido claro de costume ou
tradição (1994: 22). A força da sua identidade assenta, porém, no
sentido forte da escravatura, do indentured labour e do colonialismo.
53 O que menos falta na Trinidad são origens, origens extra-Trinidad.
Isto leva a que hoje pareça existir uma mera cacofonia pluralista
feita de vozes e experiências diferentes — o que se parece com o tipo
de retrato pós-moderno tão em voga (1994: 288). Mas apesar das suas
origens crioulizadas, a Trinidad não é de todo uma cacofonia. A
análise que Miller faz do Natal, por exemplo, revela um ritual
altamente normativo que cria um sentido de uma cultura nacional
específica e enraízada.
54 Noutra obra, organizada por Miller (1995), ele usa o termo
“consumidor” não como o agente que escolhe (como na economia),
mas sim como o oposto do ideal estético do produtor criativo (1995:
1). Ele procura reflectir sobre a condição contemporânea, na qual
muito pouco do que possuímos é feito por nós: ser consumidor é
possuir a consciência de que se vive através dos objectos e das
imagens que não foram por nós criadas. É isto que, segundo Miller,
torna o termo sintomático do que Habermas (1987: 1-44) viu como o
significado nuclear de “modernidade” (Miller 1995: 2).
55 Assim, a crítica pósmodernista da superficialidade atraiu os
antropólogos porque opõe o antigo ao novo-rico, especialmente
quando manifestado nas classes baixas do Ocidente ou nas classes
médias do terceiro mundo (Miller 1995: 3). Isto não parece impedir
que se considere essas pessoas mais como consumidores do que
criadores das suas condições de cultura. A história da Trinidad foi
marcada pela experiência extrema da escravatura, depois sobreposta
com inúmeros grupos imigrados. Não há, pois, recurso fácil a
tradições e raízes, pelo que o caminho para a modernidade é muito
mais directo.
56 Nas Caraíbas, onde as famílias, até ao nível nuclear, unem muitas
vezes vários países, e onde as ilhas e estados têm estado desde
sempre atados a formações político-económicas e sociais bem mais
vastas, seria artificial uma pessoa considerar-se ligada apenas ao seu
“país” ( idem 1995: 12). Mas a pergunta que cabe fazer é: até que
ponto é tudo isto específico destes contextos crioulizados,
periféricos, dependentes? Ou: até que ponto não há nestas
atribuições de especificidade a criação de um novo exótico, por
oposição a identidades sólidas e perenes na Europa, que, assim,
parecem sair reforçadas da abordagem dos contextos multirraciais e
multiculturais?
57 A contribuição de Hannerz é a mais conhecida sobre os processos de
crioulização no contexto contemporâneo de globalização. Contextos
como a Trinidad e as Caraíbas em geral sempre foram ideais para a
verificação da metáfora elaborada a partir dos crioulos linguísticos,
através de qualquer um dos procedimentos identificados por
Hannerz: estudos de aculturação nos anos 30, teoria da
modernização nos anos 60, modelos das sociedades plurais, ou a
teoria do sistema-mundo. Hannerz propõe uma análise a partir da
metáfora-raiz de crioulização. Pouca gente na Trinidad se oporia a
isto. Jo-Anne não se oporia a isto. Mas… porquê então procurar uma
identidade portuguesa? Suspendo a resposta até mais adiante.
58 Barber & Waterman ( in Miller 1995) reconhecem as vantagens da
proposta de Hannerz (1991), mas chamam a atenção para os perigos
de bipolarização nela implícitos, ainda que Hannerz seja cuidadoso
em indicá-los: o risco de se continuar a ver as culturas como
unidades discretas, que se misturam, sim, mas de forma hierárquica
(Barber e Waterman 1995: 240). Note-se, aliás, que na Trinidad
“crioulo” quer especificamente dizer um branco nascido fora da
Europa, ele sim adaptado/adoptado pelo contexto local, se bem que
ele mesmo criador do contexto. Barber e Waterman rejeitam a noção
de hibridização, que pode separar os aspectos chamados indígenas
dos chamados importados. Dizem eles que assim como a cozinha
transcende os ingredientes, também outras expressões culturais (no
caso por eles estudado, a música) transcendem as suas fontes.
Todavia, parece-me que no caso da Trinidad — por não haver uma
“cultura local preexistente” e uma cultura colonial sobreposta —, a
hibridização global existe desde “o princípio”, isto é, desde a
escravatura, e contendo em si as desigualdades de poder implícitas.
59 Alguns dos problemas que o conceito de globalização coloca não se
ficam pelos fluxos e fronteiras. O chamado pensamento pós-colonial
teve o seu início com a obra de Said (1978), mostrando como os
dicursos sobre o Outro estavam implicados nos processos imperiais
(Kahn 1996: 5). Combinado com influências do pós-estruturalismo,
pós-modernismo e cultural studies , o resultado foi um perspectivismo
radical focado no nexo cultura/poder. O resultado tem sido o novo
chavão de “multiculturalismo”, que agora começa a apresentar
alguns problemas, sobretudo na apropriação pelo pensamento de
direita da ideia de que os valores supostamente universais são só
ocidentais. Estas contradições são hoje manifestas no movimento
anti-racista (a luta pelo direito à diferença não reifica as identidades
discretas, impedindo a cidadania plena?), e na tendência para a
substituição da noção de raça pela de cultura como sua máscara.
Segundo Joel Kahn, os discursos sobre alteridade cultural e
multiculturalismo terão substituído a linguagem novecentista de
civilização, de anterioridade temporal do outro e de emancipação
dos seres como sujeitos autónomos (Kahn 1996: 15). Passámos a ver
multiculturalismo onde antes víamos diversidades de povos
hierarquizados. Mas ambas as visões participam da lógica
denunciada por Said, assim como a globalização é um processo bem
mais antigo do que o momento actual das comunicações
electrónicas, ou a pós-modernidade não é mais do que o exacerbar
das características da modernidade. Ao dar voz aos Outros, o
discurso pós-colonial pode continuar a separar Nós de Outros.
60 É absurda a ideia de que só com a globalização surge a questão da
diversidade cultural. O que vemos hoje é a continuação da
modernidade, mesmo quando se chama a atenção para o facto de a
globalização não ser homogeneizadora, ou quando Appadurai (1990)
refere as desconexões entre os fluxos de pessoas, mercadorias,
dinheiro e culturas que garantem uma paisagem diferenciada. As
tendências actuais são tanto universalizantes como
particularizantes. Mas o acento tónico nos recentes discursos
académicos parece ser na crioulização, nas tradições inventadas, nas
comunidades imaginadas ou na inautenticidade cultural provocada
pelas “fragmentações”, perdas de ancoramento narrativo e outras
vicissitudes da “pós-modernidade”. É curioso verificar que isto se
aplica, como diz Kahn (1996), sobretudo a realidades com as quais
não estamos em empatia (ou não percebemos: as “crioulizadas”,
justamente).
61 Quando o expoente dos estudos pós-coloniais, Homi Bhabha, propõe,
a partir das literaturas de contextos subalternos, uma teoria da
hibridização cultural e da tradução da diferença social para lá das
polaridades Eu / Outro ou Ocidente / Oriente está a replantear
velhas questões da antropologia. Mas, reconheça-se, não está a fazer
o mesmo, pois os sujeitos falantes são pessoas que partilham mais
com Jo-Anne Ferreira, por exemplo, do que com um antropólogo
ocidental. Procurei em Bhabha (1994) referências explícitas ao
grande escritor de origem trinidadiana V. S. Naipaul. As poucas que
encontrei referiam-se ao conceito de mimesis (também explorado por
Michael Taussig) na relação entre colonizados e colonizadores. Mas
foi numa passagem de The Middle Passage (o título é uma referência
ao percurso dos navios de escravos) de Naipaul, referindo-se ao ano
de 1914 na Trinidad, que encontrei alguma iluminação:
Everyone was an individual, fighting for his place in the community. Yet there
was no community. We were of various races, religions, sets and cliques; and we
had somehow found ourselves on the same small island. Nothing bound us
together except this common residence. There was no nationalist feeling; there
could be none. There was no profound anti-imperialist feeling; indeed, it was
only our Britishness, our belonging to the British Empire, which gave us any
identity. So protests could only be individual, isolated, unheeded (1962: 45).

Diário de viagem IV
62 Quanto mudaram as coisas depois da recordação do início do século
registada por Naipaul…. No entanto, lembro-me de a mãe de Jo-Anne
dizer que era exactamente isso que sentia quando jovem. E que a
independência não lhe havia retirado o sentido de pertença a
“qualquer coisa de britânico”. Sobretudo não lhe retirara a língua, as
viagens a Londres, as referências cosmopolitas. Mas, aos poucos,
segundo ela, impusera-se a consciência racial, periférica, terceiro-
mundista, e a esperança de criação de uma sociedade mais justa na
dupla vertente da classe e da identidade etnorracial. E hoje ela sente
a Trinidad como um projecto. É esta, se calhar, a palavra-chave, tal
como surge em Giddens — os indivíduos da modernidade tardia
marcados sobretudo pelos projectos reflexivos do self ? Segundo
Miller, não é tanto assim: o que a etnografia da Trinidad lhe sugere é
que podem existir subjectividades radicalmente modernas e, no
entanto, distintas da autobiografia narrativa com que Giddens
caracteriza sujeitos implicitamente ocidentais:
Here individualism has to be constantly recreated at each event, in each
relationship (…) Its opposition to institutionalisation is therefore continued
through to a refusal to institutionalise the individual, even as biography (Miller
1994: 309).
63 Aqui está o começo de uma resposta para a pergunta anterior sobre
porque Jo-Anne procurava uma “identidade portuguesa”. É isto que
ela me tem vindo a “dizer” desde que nos conhecemos. Na ausência
de tradições nacionais e de grupos étnicos identificados como os
“verdadeiros locais”, muita antropologia tende agora ou a reificar a
confusão e a hibridez, ou a salientar o potencial de criação de
indivíduos modernos no sentido de homo economicus . O caminho
sugerido pela Trinidad e pelo caso pessoal aqui seguido parece ser,
antes, o de entender todos os contextos como contextos que já foram
ou são potencialmente como o trinidadiano, e os personagens como
potenciais versões da minha amiga. Faz lembrar Marilyn Strathern
(1988) escrevendo sobre os dividuals em vez dos individuals quando
usa a teoria Hagen para lançar luz sobre a teoria social ocidental: os
seres humanos têm fronteiras permeáveis e experimentam um
movimento constante entre diferentes aspectos da vida social.
Parece básico, mas é deste tipo de bases que nos esquecemos quando
começamos a reificar conceitos como “etnicidade”.
64 Um ano e muitas cartas depois, Jo-Anne, acompanhada de Shelley,
veio visitar-me em Lisboa. Era a sua primeira vez em Portugal. Aqui
ficou algumas semanas, antes de partir para a Madeira, onde ia
consultar os arquivos locais para reconstituir melhor a genealogia da
sua família paterna. O seu maior espanto foi sentir que não estava na
Inglaterra ou na França, os seus centros de referência. Mas tão-
pouco se sentia “do outro lado”, na Trinidad. O seu país, que ela
julgava ser uma espécie de ponto a meio do caminho entre o centro e
a periferia, podia ser facilmente substituído por Portugal. Pasmou
com a forma como foi entendida localmente como uma emigrante
portuguesa de visita ao país natal. Pasmou com a suspensão da
categorização racial, confirmando o que eu já lhe havia dito — que
“passaria” por portuguesa, o que quer que isso significasse.
Sobretudo se ela dissesse que o era.
65 Encontrar-nos-emos no Brasil, a julgar pelas promessas mútuas
feitas na última comunicação por e.mail . Ela estará explicando o que
é ser cristã aos índios, esses outros “vermelhos” tão diferentes do red
com que ela é por vezes classificada na Trinidad. Eu estarei
estudando os aspectos que constituíram a minha motivação para
estudar a Trinidad, só que, afinal, no Brasil. Um diálogo possível
entre nós surgiu-me numa divagação ou num sonho literário:
“Porque desististe da Trinidad como terreno?”— pergunta-me ela,
fingindo-se ofendida. “Porque percebi que no Brasil ia encontrar
problemas semelhantes”. “E assim é mais fácil por causa da história e
da língua, não é?”, pergunta ela. Penso um pouco e digo: “Porque sou
português. Ou se calhar poteegee ”. “E o que é isso?”, pergunta ela. E
ri.

Post scriptum
66 Depois de lhe ter pedido autorização para mencioná-la neste artigo,
Jo-Anne Ferreira enviou-me uma mensagem por correio electrónico
cujo conteúdo justifica a sua transcrição (que mantenho no inglês
original):
(…) Actually, for some reason I was musing on “(not) growing up Portuguese” in
Trinidad just this morning. It struck me that I never felt “Portuguese”, and never
realised that I never felt Portuguese. So there was no vacuum, so to speak, since
my identity was firstly based on being a Ferreira and Carter, a Trinbagonian (and
later on, when I left the country, a West Indian to a lesser extent), and within the
last 11 years, a Christian. But when I was in France, and Portuguese people asked
me if I was Portuguese, that had me wondering if it was a wild guess, or if I
indeed bore any phenotypic resemblance to my Portuguese forebears (because I
didn’t where local Portuguese were concerned). Then later I read Alfred Mendes’
and Albert Gomes’ novels and saw Portuguese surnames in the context of
Trinidad, and a chord was definitely struck, or plucked, whatever. And it was so
nice to see ‘normal’ names all over Portugal!
Oddly enough, though we never grew up in the ‘Portuguese community’ per se
(that can be defined as those descended from (mid) 20th century immigrants, not
like us, from 19th century or extremely early 20th century immigrants), all of my
parents’ friends were like them: each couple was made up of one Portuguese-
descended (Trini) spouse and one not: a Corbie married a Gomes (female), a
Cumming married a Gouveia (female), a de Silva married an Almondoz (female),
and a de Silva married a de Silvia (female, from Antigua). Not to mention my
paternal first cousins. Of Dad and his 13 siblings, 4 married Luso-Trinis (and
produced 22 children), one married a Sino-Trini (3 children), 4 married ‘mixed’
(including Mom, most of whom had Iberia in their family histories, total of 8
children), one married an Indo-Trini (no children), and 2 married other Euro
(one Trini, one Canadian, total of 4 children). None (except one) of our
generation went on to marry those from similar ‘ethnic’ backgrounds (class and
education are the factors now).
I suppose when I reached the age or stage of inquiry, which may have coincided
with a general, national quest for ethnic identity in the country, then I started to
ask questions. I wrote a bit about that in an article for UWI University of the
West Indies, St Augustine’s Oral and Pictorial Records Programme newsletter.. I
think Portugal was the first country (besides here) where I didn’t feel physically
different (culturally and linguistically of course, but I’m happy to learn like I did
with French and France). Anyway, I rant and I blab. Just thought I’d share that
with you for what it is (or isn’t) worth….
67 Como o leitor certamente sentirá, esta última contribuição de Jo-
Anne Ferreira não só foi útil como demonstra quanto o projecto
antropológico ganha quando se baseia no discurso dos informantes.
Por certo a reacção de Ferreira a este artigo trará ainda mais
surpresas.

Post Post Scriptum


68 E trouxe. De uma extensa mensagem por correio electrónico,
seleccionei as seguintes passagens do comentário dela à leitura deste
artigo que o leitor acaba de ler:
1) (...) It was very interesting to note that you carefully redefined Mom as
coloured, according to our definitions. Her parents looked like me... 2) I don’t
think it is true to say that we cannot “aspire” to penetrate the ranks of the local
white elite. The system here is not that rigid, and many races and mixtures are
now part of them (except maybe the Arabs, who are another story). If we
perceived them as something to aspire towards, we could if we wanted to, but we
would have to change our whole value system and attitudes, and most of all
professions and pasttimes! 3) If I was trying, by my research, to infiltrate the
local white group, well it surely backfired. Dad predicted I would make a few
enemies or at least a few detractors, and so said, so done. The non-white
Portuguese aren’t really concerned, and the Portuguese and part-Portuguese
whites aren’t all thrilled. The more realistic and down-to-earth ones are. For
those who are socially pretentious and snobbish and are trying to hide their past,
well, I’m little more than a thorn in their sides! 4) Yes, my church is
Pentecostal/Evangelical. But Wycliffe Bible Translators is an
interdenominational and non-denominational para-church organisation, and the
Summer Institute of Linguistics is its academic sister organisation. So they are
not church organisations, although they are made up of church members. In
France and England, I was at SIL, and in Brazil I will be working with SIL. Wycliffe
in T&T sends me out. Do these precisions make sense? 5) (...) my intensely keen
interest in things Portuguese stems from a love of family and love of country.
Growing up, I knew more of my mother’s extended family and much more of her
family history, despite the ethnic, linguistic, socio-cultural and international
diversity than I did of Dad’s side. I was very puzzled that Dad could claim to be
descended from one place and people and yet know nothing but garlic pork
(which Mom prepares, thanks to Granny’s recipe, and acquaintance with the dish
before marriage through Luso-Trini neighbours). It was the constant and
consistent lack of forthcoming information (whether voluntarily given or
reluctantly elicited) from Dad and his siblings (who really seemed to be strangely
ignorant, like many of those descended from 19th century immigrants) that
provoked my natural insistent curiosity and prompted me to start digging. My
digging was very personal before and was based simply on reconstructing my
family “forests”, and then naturally narrowed its focus (or expanded in some
ways) to one ethnic group. (...) I didn’t have a clue as to the research possibilities
at the time. He [o editor do livro de Jo-Anne Ferreira, que a estimulou a fazer a
pesquisa] asked me to go to the St. Ann’s Church of Scotland to find out about the
Presbyterians, of whose existence I was totally ignorant. And when the Scottish
reverend there actually gave me all of five articles, I was like “WOW”-HOW
interesting. Of course my interest was three-fold: local history, Portuguese stuff
and most of all, they were Christian refugees. So there was some measure of
identification with them, although I am descended from the Catholics. 6) I love
the word “portugalidade”! 7) I didn’t know you thought we were being formal
when we met you! That was very interesting, especially the part about the cabelo
branco .

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NOTAS
1. Contrato de trabalho temporário, localmente percepcionado como “escravatura
encapotada”, consistindo na deslocação de populações de umas colónias britânicas (ou
países dependentes, como Portugal) para outras.
2. Uma compreensão mais profunda dos processos socioeconómicos na Madeira
imediatamente anteriores a este período pode ser obtida em Freitas Branco, 1986.
3. Escritor e político da década de 1950, na origem da expressão gomesocracy. O primeiro a
promover formas expressivas definidoras da identidade trinidadiana: calipso, steelbands,
Carnaval.
4. Justamente a classificação de que Jo-Anne é alvo frequentemente, mas que recusa como
sendo resultado do que ela diz ser uma obsessão local com a definição de categorias.

RESUMOS
A narrativa do artigo baseia-se na relação simultaneamente profissional e pessoal entre o
autor e uma luso-descendente da Trinidad e Tobago, autora de um livro sobre os
portugueses daquele país das Caraíbas. A discussão desenvolve-se em torno das construções
de “raça” e “etnicidade” no contexto dos novos estados-nação pós-coloniais e multiétnicos.
A ideia central é a de que esta área de debate antropológico só pode crescer para lá das
quase-evidências do construcionismo social se incorporar na análise os processos de poder
simultaneamente ao nível das disputas políticas colectivas e ao nível do seu ancoramento na
subjectividade dos projectos de vida.
This paper is the narrative of a professional and personal relationship between the author
and the author of a book on the Portuguese of Trinidad and Tobago, herself of Portuguese
ancestry. The discussion revolves around the constructs of “race” and “ethnicity” within
the context of multiethnic and postcolonial new nation-states. The main notion is that this
area of anthropological debate can only overcome some unquestioned assumptions of social
constructionism if and when it incorporates the analysis of power processes — both at the
level of collective political struggles and at the level of life projects’ subjectivity.

AUTOR
MIGUEL VALE DE ALMEIDA
Departamento de Antropologia — ISCTE, Centro de Estudos de Antropologia Social
miguel.almeida@iscte.pt
The body of India: geography,
ritual, nation
Jackie Assayag

“The body is the first and most natural of man’s


instruments.”
M. MAUSS, “Les Techniques du corps” (1936), in
Sociologie et Anthropologie, PUF, 1960: 372.
1 1947. This date refers to one of the most dramatic moments in the
history of South Asia. Its political expression was the marking out of
new borders in Hindustan: on the one hand, between India and
Pakistan; on the other, between Hindus and Muslims on the
subcontinent. An excerpt from a work by pandit Jawaharalal Nehru,
Independence and After, echoes the consequences of this event:
All your communications were upset and broken. Telegraphs, telephones, postal
services and almost everything, as a matter of fact, was disrupted. Our services
were broken up. Our army was broken up. Our irrigation systems were broken up
and so many other things happened. But above all, what was broken up which
was the highest importance was something very vital and that was the body of
India 1 .
2 The body of India. Birth of a nation, or rather, of two nations,
contemporaneous with a formidable transfer of hundreds of
thousands of their members and by a particularly bloody loss of
their populations. Violent images present themselves: division,
separation, amputation, dismemberment, carving up, vivisection. An
obscure, brutal aspect of the struggle for freedom and accession to
independence. A film production by Mani Ratnam, which had an
enormous success in 1994, tells of it again synecdochially 2 . The
film relates the dramatic odyssey of twin brothers, sons of Hindu-
Muslim mixed pa rentage, at the time of the communal conflict
which ravaged Bombay in 1993. One twin was named Kabir
Narayanan, and the other, Kamal Baksha.
3 The integrity of the body of India is a source of constant concern
(Krishna 1994). A regular reading of the Indian press reveals a
haunting fear of national disintegration under pressures both
internal and external. On the one hand, there are the demands of
states, regions, castes or of secessionist movements; during elections
every political party asserts its capability to guarantee territorial
integrity and national unity, decrying among its rivals a tendency
towards balkanisation. On the other hand, there is the intervention
of the “foreign hand” which threatens to destabilise the country.
Hence, the fear of infiltration or violation of boundaries and
recurrent appeals to the lines of demarcation, barbed-wire barriers,
security belts, or to the strengthening of surveillance at the borders
and in proximity to the coast.
4 This obsidional perception is, of course, not without grounds. South
Asia is one of the Asian entities in which the frontiers were most
extensively reshaped since the nineteenth century. The western
boundary has remained a veritable front line since 1947. Apart from
the rivalry with China, three lines of tension subsist, namely with
Bangladesh, Pakistan and on the borders of Afghanistan (Foucher
1991: 322). Viewing matters over a long period of time, one would be
led to think that the leaders of India do not accept without ill-feeling
Pakistan’s independence, and that they consider the subcontinent,
from Durand to Burma, from the margins of Tibet to Sri Lanka, as
their domain of interest. This points to internal tensions which
paralyse exchanges between the seven countries of the South Asian
Association for Regional Cooperation (SAARC).
5 A constant theme in the campaigns embarked upon and conducted
by radical activists at the time of partition was: the land of Lord
Rama has been shamefully dismembered. But, the thematic is old, as
Sheldon Pollock has affirmed (1993). Since the twelfth century, the
Rāmāyana has been interpreted in North India as a
“protocommunalist” text 3 ; envisaged was the deification of the
king through the demonisation of the Central Asian invaders. Many
still consider the borders between India and Pakistan to be the result
of an Anglo-Muslim conspiracy. However, the Muslim-Other has
become forever the transgressor of sacred integrity, whereas the
British-Other remains the foreigner. The boundary division is
connected with desacralisation 4 , a violation of the land which the
Hindus readily personify as Mother India — title of a celebrated
allegorical poem by Bankim Chandra Chatterji, a Bengali writer of
the second half of the nineteenth century. The text was, and
continues to be, controversial because it identifies India with a
venerated goddess, an association held by the Muslims to be
idolatrous, and thus unacceptable. Proof, for the Hindus, that the
people of Mohammed do not recognise the legality of the Indian
motherland, Bande Mātaram .
6 Modern India is haunted by an idea of sacrifice which entails the
sense of scapegoat: the sovereignty of its political body was born of
the dismemberment of the original motherland by “foreigners”
(mleccha, yavana) 5 — a motherland which corresponds grosso modo
to the old boundaries of the british colonial empire. A consideration
of the body of India calls attention to three key periods in its
formation. During the first, between 1750 and 1830, the political
technology of the Raj regrouped Indian territory cartographically. In
the second, the construction of a Hindu identity, communalism and
the growth of the independence movement converged around the
metaphor of the cow, emotional symbol of the nation. Beginning in
the 1980s, the third major period has witnessed the endeavour to
conquer the State through the ballot-boxes by proposing to realise
the hindutva kingdom. The two latter phases are accompanied by a
series of ritual innovations which foster religious nationalism and
xenophobic violence 6 . Cartography, cow, Rāmrāj ; territory,
nation, State: such is the geo-political genealogy of India which we
shall now consider.

The colonial cartography of the body of India


7 Understood in the “Westphalian” sense of territory — from the
name of the treaty which opened a new era in international relations
in the seventeenth century —, India is a contingent historical
construction, the origin of which goes back to the late eighteenth
century. Evidence of this is provided by the immense production of
British colonial archives, accumulated in the course of the conquest
of Hindustan. The historical aspects of this enterprise have been
thoroughly studied. Rarely however, has attention been directed to
its geographic dimension, that is to say, to the effort which oversaw
the cartography of Indian territory.
8 The spatial representation of what was to become India is the
product of the cadastral technology applied by the colonial State.
With the domination of Bengal, in 1765, which made the Honourable
Company one of the principal territorial powers on the
subcontinent, the first piece of a future empire was put in place.
Administration of the growing empire soon required physically
defined territories, stable and clearly demarcated boundaries
supporting and framing localised communities which were liable to
fall into ad hoc classification. The demarcation of spaces, or of social
groups with long-standing attachment to the land, made it possible
to evaluate military needs and authorised the imposition of taxes; an
initial phase before improving the circulation of goods and the
control of men from centres of administrative decision with well-
established authority. The fundamental division in British
geopolitics was the administrative unit, the principle of the
subdivision of space to the purpose of organisation. Cartography
advanced with the military: army and naval officers were the first to
collect and provide material for programmes of agrarian
organisation and land taxation plans, for the establishment of
administrative zones and the codification of the rights of the people
(Bayly 1988: 87).
9 Regardless of how little interventionist “indirect rule” may have
been, territorial administration raised the question of the
management of populations whose destinies were to be regulated on
the basis of a process of (western) civilisation respectful of the
customs of new subjects. Nascent scientific cartography, in addition
to the application of a political economy which inspired triumphant
utilitarianism (Stokes 1959), became the instrument for controlling
the populations and for allocating resources through the medium of
land. The venture to seize territory in a manner both panoptic and
hegemonic brought about changes in the fluid conception of
boundaries and the heterogeneous conception of spaces and sites
which had until then prevailed. Behind the cartographic techniques,
with their patience, meticulousness, accuracy, and the perspective
which characterised them, a political ambition stands out which
progressively exacerbated imperial ideology.
10 The fascination of orientalist administrators for “Brahminism” and
the scriptures of ancient India was followed, in the 1770s, by a
preoccupation with social statistics which was also prevalent in the
home country.
11 The statistics enabled the quantification of goods and people, the
tabulation of groups and communities, most often according to
Linnaean classification. The greatest topographer, Buchanan, was a
medical doctor by profession and botanist by training (Vicziany
1986). The territorial grid, providing a support for the political order
and a frame for the allegiance of power, classified two hundred
million inhabitants on the basis of racial or social categories,
registering them in the course of the formation of a sovereign
nation-state. Surveying of land, measuring, the holding of inquiries,
investigation, classification, control, management, administration,
and penalisation inaugurated a new manner of governing learnt
from a calculating rationality (Appadurai 1994). Fear of the French
Revolution, above all of the propagation of its ideals, imposed the
implementation of new and more rational instruments of control
and surveillance in Hindustan; all the more so, because the economic
jewel of Hindustan was only a part of the great imperial meridian
(Bayly 1989: chap. V).
12 Topographic and trigonometric investigations and revenue surveys
were conducted in most regions of the country during the
nineteenth century. It was a matter of mapping India, in terms of
relief as well as of fields, villages and towns, on both regional and
continental levels. Beginning in 1830, maps for various purposes
were produced in ever greater numbers. There was, for example, the
booklet containing five maps of India by Parbury and Allen which, as
its sub-title indicated, was “illustrative of the European connection
with India and the British administration in its several
departments”. Classified in their order, these consisted of: a both
general and commercial map; a political map, the states including
chronological tables; a military map, indicating stations occupied by
troops; another concerning revenues, indicating districts (but not
roads) and a few place-names; and, a fifth map of a judicial nature
(Kalpagam 1995).
13 The first modern map of India, drawn by the Frenchman d’Anville,
dates from 1751-1752 and was based on the routes known to
travellers. However, the most celebrated is indisputably that by
James Rennell (1742-1830) who, with his Map of Hindoostan (1788),
presented for the first time a comprehensive view of India, on four
separate sheets which could be arranged together. Having been first
given responsibility for surveying the harbours on the Bay of Bengal
for the Royal Navy, in 1763, Rennell was named the following year
Surveyor General of Bengal. He published the Bengal Atlas in 1779.
The first edition of his map of Hindustan, dated 1781, was dedicated
to the greatest of the colonial authorities: Robert Clive, Warren
Hastings, Hector Munro, etc. The preliminary sketches served the
historian Orme for his three-volume History of Military Transactions of
the British Nation in Indostan (1745-1760), which appeared in 1763.
Rennell revised his atlas up to the year 1793, because, as he
explained in his preface, facts, keeping pace with the expansion of
the Company’s power, accumulated too rapidly. Commercial
enterprise was, in effect, militarised between 1780 and 1830 (Bayly
1988: 84ff). As Rennell himself remarked, in the factual tone
frequently assumed in colonial discourse, such a cartographic
project renders the world (India) visible and usable by and for the
enterprise of conquest. Technical progress in geography constituted
an essential element in colonial awareness and judgment. By means
of the array of maps prepared in the four corners of the empire, the
colonial world became accessible to scholars and merchants.
Members of these two groups were to conjointly transform the
world as it was into a unified country. Scholars contributed to this
transformation by “visualising” a territory whose codified grid
marked the end of an era of exploration 7 ; merchants, by
organising the material appropriation of mercantile capitalism.
14 This idea is ritualised allegorically in the lithograph embellishing
Rennell’s map. It shows surveying and cartographic instruments on
the ground at the feet of Europeans in civilian clothes — a
geographer and a merchant — who stand in the shadow of a goddess
with helmet and in arms, no other than Britannia. Somewhat above
and behind her is the imperial lion, one paw resting on the globe.
The Athena of Albion is receiving from the hands of a bowing
Brahmin (there are three pictured in the engraving) the “Shastras”,
the book of Hindu law (Ludden 1992: 254-255). The exchange of
customary services is in reality asymmetric. The gift of a map was
motivated, as has been mentioned, by a scholarly project in the
service of a predatory economy — one distinguishes in the
background of the lithograph a ploughman at work and dockers
lading a commercial vessel. The offering of Hindu law reflects the
will of the Company to make use of local Brahman experts. In fact,
according to a decision taken by Warren Hastings, first Governor-
General of India, in 1773:
In all suits regarding inheritance, Marriage, Caste, and all other religious Usages
or Institutions, the laws of the Koran with respect to the Mahometans, and those
of the Shaster with respect to the Gentoos, shall be invariably adhered to....
15 It was, therefore, in accordance with local customary practices, the
principle of which was maintained in the Act of Settlement of 1781,
that he confided to Nathaniel Brassey Halhed the creation of distinct
bodies of civil laws for Hindus and Muslims. In 1776, Halhed
published his translation (on the basis) of the Dharmasastras under
the title, Code of Gentoo Law, or Ordinations of the Pundits, from the
Persian Translation Made from the Original, Written in the Shanscrit
Language. In 1788, at the request of Charles Cornwallis, second
Governor-General of India, the famous orientalist Sir William Jones,
began in his turn to work with the assistance of pandits and of
maulvī- s. His compilation of texts translated from the Persian and
entitled Digest of Hindu and Mohammadan Laws, was published after his
death by his student Henri Thomas Colebrook, in 1789 (Cohn 1987).
16 The formation of the geographic body of India was thus
contemporaneous with a separate civil law for each community. The
law itself was founded on a historiographic concept which viewed
the succession of Hindu, Muslim and British Indias in terms of the
evolutionary scheme systematised by James Mill in 1820 (Majeed
1990). However, progress in the cartographic representation of the
empire did not of itself ensure the transition to a linear concept of
boundaries, that is, of the contours of the whole perceived as having
homogeneous elements and cohesion. When all is said and done, it is
the way in which the rulers and subjects view their community, their
territory and its history, which lends unity of meaning to the
geographic entity in which they live. This is an extensive question
involving the establishment of national sentiment.

The nationalist construction around the body


of the cow
17 Nations, as has been repeatedly said since the publication of the
work by B. Anderson (1991), are “imaginary communities”. The
production of cultural meanings and social practices fosters the
historical formation of national identities. And, religion is one of the
principal purveyors in this construction. This observation is verified
in India by the image of the cow, both symbol and embodied reality
of the nation in the second half of the nineteenth century. It was, in
fact, around this powerful unifying icon that an aspect of the
ideology of the Hindu community was consolidated in its opposition
to the Other (the Muslims). For, “Hindus revere the cow, whereas
Muslims eat it” (Robinson 1974: 13). Worse, the latter are butchers
by profession and sacrifice (qurbānī) cows at the time of certain
religious festivals, namely during Bakhr-Īd , which commemorates
the sacrifice made by Abraham.
18 The cow, of course, has been a constitutive symbol of Hindu identity
for a long time. That this animal was held to be sacred was
recognised in the pre-colonial period, sacred also to Muslims:
medieval sultans such as Zainul Abidin of Kashmir, or Zahiruddin
Babur, the founder of the Moghul empire, placed a ban on its
slaughter (Hasan 1991: 216). Conversely, clashes subsequent to the
slaughtering of cows were not unknown, at least since the sixteenth
century (Pandey 1983: 79). But, the practice became a subject of
serious controversy and conflict between Hindus and Muslims in the
1880s. The protection of the “mother cow”, gom ā tā, a rallying
symbol for mobilising the Hindu community, continued to be a
major problem for Hindu nationalism, at least until 1920 (Robb
1986).
19 The first registered society for the protection of the cow (Gorakṣinī
Sabhā) was founded in 1882 by Dayanand Saraswati (1824-1883), the
founder of the Arya Samaj, the “society of ārya-s ”. The previous
year, he had published a tract entitled Gokaruṇānidhi (“Ocean of
benedictions to the cow”) in which he defended the idea that the
slaughter of cows was anti-Hindu. He took his militant pilgrim’s staff
to propagate this teaching throughout India, using modern means of
transport and communications. Within the framework of his reform
(neo-)Hinduism, advocating the regeneration of Vedic civilisation
which embraces the territory of the Ā ryāvarta, the first land to have
emerged from the ocean 8 , his objective was to re-integrate the
Hindu family into the body of the cow by rallying the minor rājās,
lords of men, of cattle and of territories. It is, in fact, by the
protection accorded to the cow that one can recognise a just
kingdom, in good health and prosperous.
20 The relation thus established between family and nation defines yet
today the conservative concept of the fundamentalist hindutva
movement. The cow, image of the female body, is the paradigm of a
strictly patriarchal matrimony conceived on the model of the divine
couple Rāma and Sīt ā . Rāma is the ideal husband, virtuous king and
guardian of the social order; Sīt ā is the symbol of loyal submission
to the husband (pativratā) who protects her and whose family she
nourishes, ready to follow him to the funeral pyre as a satī . The
opposition between gender categories is a political relation. To
sacrifice a cow is to violate the (interrelated) conjugal, family,
patriarchal and national orders.
21 Societies for the protection of the cow rapidly branched out to
Bengal, the Punjab, Uttar Pradesh and Maharashtra and, more
diffusedly, over almost the entire subcontinent, including Burma.
Comprised of very active pressure groups in the North, they
demanded of the colonial government the banning of slaughter. In
1886, the movement intensified dramatically when the Allahabad
High Court ruled that the cow was not a sacred “object”, in
conformity with Article 295 of the Indian penal code. This signified
that Muslims and British were simply considered as meat-eaters and
not as barbarians! The denial of sanctity radicalised the activists of
the movement, who then attempted to physically oppose slaughter.
Thus, the conflict pitted Hindus against British, but above all, Hindus
against Muslims (as well as against Christians [Freitag 1990: 151]).
Violent and bloody clashes occurred in Bojpuri in 1893, in Ayodhya
in 1913, and in the district of Shahabad in 1917 (Pandey 1983).
22 It would be a misinterpretation to reduce the cow to a mere symbol,
however emotionally charged it may be. The movement for cow
protection corresponds to a mobilisation which reflects a
multiplicity of interests, both economic and political. It covers a
diversity of urban and rural actors: maharajas or minor government
officials, large landowners or landless peasants, traditionalists,
reformists or agitators for independence. Its development responds
to the need for unity of a Hindu community, which its new
organisers find excessively fragmented. They are also at the origin of
ritual innovations linked to the foundation of an organisational
framework intended for the expression of (Hindu) sanctity in the
public space of society (Yang 1980). Most of the time, it is
constructed at the expense of the Muslim scapegoat. Thus, in the
district of Azamgarh, in the 1890s, the organisers of a gathering of
6000 persons had circulated the imposing image of a cow, the body
of which contained (nearly) all the gods of Hinduism. Placing various
ritual implements before this image, the sacrificer exhorted the
participants to protect the cow. Everyone present received a little
milk, but only after a calf had been satisfied. After the milk had been
drunk, the cow was solemnly proclaimed “Universal Mother”. It was
declared that the killer of a cow was a matricide. A new image
reinforced this idea: it represented a cow flanked by a Muslim
drawing a sword. To the purpose of preventing such “matricides”,
the participants founded an association (sabhā), adopted common
rules, elected officials and chose a prestigious leader. The maharajas
presided over organisations of this type which could extend over
vast networks. The symbol was capable of linking agrarian and
urban imaginations. Another example: the Rani of Majhauli had
eighty heads of decapitated cows to be bought and then carried in
procession through the town by Muslim butchers recruited for the
occasion (Freitag 1990: 152-153).
23 An exploration of the blending of the image of the cow and the
concept of nation calls for an explanation of the extraordinary
proliferation of meanings and associations which have been linked
with the cow in Indian civilisation for ages. Without wanting to
develop here a well-known symbolism, one should nevertheless
recall how the sanctity of the body of the cow, the prohibition on
killing or eating its meat, has made the question of its flesh vitally
important in the organisation of society. Meat par excellence, it
regulates the due portions of commensality on the hierarchic model
and the principle of stigmatisation.
24 This veneration is connected with the idea that the human body
depends entirely on the cow, as a child depends on its mother. The
animal is a symbol of nourishment and, therefore, a symbol of the
earth. This power is not only attached to the cow itself, but also to its
products, so many substances associated with life and which play an
important role in rituals. Daily milk is more than nutritious and milk
products are food which will make pure (sāttvik) . The mixture of the
five products (pañcagavya), milk, yoghurt, butter, urine, dung, is
highly valued in rituals, in particular those of expiation.
25 This adulation also reflects other forms of devotion (bhakti) . Myths
centred on Krsna, the child who grew up in a pastoral environment,
and the young lover surrounded by cowherdesses (gopī-s), are well-
known. Adulation is also expressed for the goddess, mother of life
and substance of all things, who satisfies all desires (kāmadhenu) ,
who vouches for wealth and favours prosperity (lak ṣ mī). In her
malevolent and unmarried form, she is no less venerated and
similarly called “Mother”. Kālī and Durgā were, moreover,
frequently invoked at gatherings for cow protection. When Hindu
society is under threat, the goddess assumes a terrible aspect to
combat the attacking demons. When a cow is killed, a crime
equivalent to the murder of a Brahman, Durgi, armed and astride
her tiger, demands bloody sacrifices.
26 The iconography of Hindu nationalism has made abundant use of
this ambivalent archetype of the mother; nourishing cow and
destroying goddess. The symbol of the cow was constantly employed
in the struggle for independence (McLane 1977) to symbolize the
body of India sucked by the british colonial power. Thus, since its
foundation in 1885, but not without internal debate regarding the
danger of division of united Hindu-Muslim action in the anti-British
struggle (Brown 1984: 179), the Congress Party associated itself with
the movement for cow protection. It profited from its fund-
collecting network which also made the circulation of information,
pamphlets and other “snowball” ( patia ) propaganda letters possible
in all corners of the country (Pandey 1983: 90-91; 109 ff). In
Maharashtra, for example, B. G. Tilak, member of the independence
movement, accorded an essential place to the cow symbol in the
celebration of the regional hero, Shivaji, and played a determining
role in the activities of the Society for Cow Protection in the town of
Poona. The golden legend of the “freedom fighters” in the resistance
struggle against the occupying power has for a long time eclipsed
the common source of inspiration of several nationalist themes
among communalist organisations and the independence movement.
27 In the decade 1930-1940, Mohandas Karamchand Gandhi utilised the
image of devotion to the cow to foster his dream of an independent
and autonomous India; the image of the calf attached to its mother
symbolised the relation of Indians to the nation, most particularly
his own. He presided over conferences on cow protection in Belgaum
(in Karnataka), participated in meetings in Delhi and Bombay,
worked on a charter, saying, “I keep all the time thinking of it and
also discuss it” (quoted by Hasan 1991: 219). The Gandhian genius
consisted in embodying this devotion, conceptualised as feminine
and non-violent (ahiṃsā), but having passive resistance as a weapon
in the fight against the emasculation of the nation under colonial
domination. The Mah ā tm ā thought, in fact, that he possessed a
feminine power ( śakti ) over events, a power acquired through
celibacy (brahmacarya), and by adopting a model of renunciation
(saṃnyāsin) which involved the retention of the semen by means of
meditative heat (tapas) (Brown 1990: 282 ff). The purpose of this
rigorous bodily discipline — experimenting with left-handed Tantra
which uses the female body as an instrument to attain a dimension
of higher self — was in part to lend the nationalist leader greater
strength. At the worst period of bloody conflicts between Hindus and
Muslims, the Mahātmā attempted to further enhance his power by
sleeping beside naked young girls, thus measuring his detachment
from the world — real-life experimentation with the recurrent
Sivaite mythological motif of the seduction of the ascetic by a
courtisane (O’Flaherty 1973).
28 It was against this sublimation into the service of the holy idea of
the nation that his assassin, Nathuram Godse — who, on the
contrary, was nurtured on Maratha martial ideology — declared: “I
firmly believed that the teaching of absolute ahimsa as advocated by
Gandhiji would ultimately result in the emasculation of the Hindu
Community...” (Mehta 1977: 175-176). This man was a militant of the
Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), the Association of National
Volunteers, founded in 1925. The organicist ideology of this party is
based on the aṅgāṅgibhāva doctrine, limb-body relations, which
postulates a hierarchy: individual (vyakti) -society (samāj) / family
(parivār) -nature (prakṛti) -divinity (paramātma) . That is to say, man
can only attain god through reverence for “family-society” and
nature (Basu et al. 1993: 32). Based on this concept, the organisation
is structured in numerous sectarian units, called śakhās (branches),
following the example of monasteries of combatant ascetics
(akhāras), which constitute a network of brotherhoods (Andersen &
Damle 1987). In each of them, gymnastics and martial exercises,
inspired by the traditional Indian wrestler, that “meeting of muscles
and morals” (Alter 1992: 17), together with mental discipline, in this
case characteristic of renunciants, train the disciples (śiṣyas) under
the guidance of a venerated master (guru). Duty to the familial
community, of which the guru embodies the father, is primary. The
model is patriarchal and reactionary: it is a question of refuting the
Hindu intelligentsia, who are feeble and effeminate (Nandy 1983: 4-
11). This is an obsession and an historical explanatory principle for
M. S. Gowalkar: “The sudden and total collapse of France [à propos of
1914] was due to effeminacy which had sapped the energy of the
heroic manhood in France” (quoted by Pandey 1993: 263).
Contrariwise, the militant bodies work at the militarisation (or
“kshatriyation”) of the members of society and are ideally integrated
in the body of dharma .
29 Some fifty years later, there still exists a department for cow
protection in the organisation chart of the Vishva Hindu Parishad
(VHP), the Universal Hindu Association, one of the components of
the hindutva movement 9 . Led by Paramanand Mittal, it continues
the old tradition of “cowsheds” (go-sthalas), but functions with
greater willingness as a dispensary of agitation, for example, against
the free sale of beef in Kerala or Bengal. Its activity draws inspiration
from an idea as simple as it is radical: “It is the duty of Hindus to kill
Muslims who kill cows”. This slogan could be read ad nauseum on the
walls of Ayodhya and Faizabad in 1990 10 .
30 More recently, in November 1995, in view of the weak response to
the activities conducted by the hindutva movement in the towns of
Kashi and Mathura, the VHP, under the direction of Ashok Singhal,
decided to revive the slogan of cow protection, no doubt
remembering the electoral success of the Jan Sangh (JS), Union of
the People, in 1976, notably in Uttar Pradesh, which was attributed
to a large extent to the emotion provoked by an anti-slaughter
agitation launched the previous year. Today, the VHP has produced a
video cassette which extols the importance of the animal and
castigates the menace hanging over it. To this purpose, the film
reveals religious, social, economic and environmental dimensions of
the central government’s export policy regarding cow meat. The
government is accused of wanting to increase therefold the expected
revenue (from thirty million to one hundred million rupees). To
introduce the documentary, a branch of the VHP, the Bharatiya
Govansh Rakshan Samvardahan Parishad, organised a conference
bringing scientists and other experts together who explained why
cow protection was of vital importance and elucidated the reasons
which would make the closure of abattoirs necessary. A census of all
such establishments in the country was taken and the list was
circulated. The Bajrang Dal (BD), an activist movement of nationalist
RSS youth for which the muscular monkey god, Hanuman, is the
eponym, planned a rally. More than a hundred jeeps, called “cow
protection chariots” (go-raks-rath-s), traversed six hundred districts
of the peninsula. For its part, the RSS promised to join the agitation,
the high point of which was reached in January 1996. One of its
organisations, the Swadeshi Jagran Manch, already an outpost in the
struggle against the installation of the American power plant, Enron,
in Maharashtra, decided to undertake, on 15 November, a
“pilgrimage on foot” (pādayātrā) from the town of Sevagram, near
Nagpur, to AI-Kaveer in the district of Medak, Andhra Pradesh, to
protest against the industrial abattoirs established there. The head
of the Bharatiya Janata Party (BJP) 11 , L. K. Advani, joined the
march which reached its destination on 6 December, the anniversary
of the demolition of the mosque at Ayodhya (1992). The aim of the
Bajrang Dal members is to “free cows from the abattoirs”, whatever
the human cost (Indian Express, 10/11/95). It is foreseen to assemble
ten million activists on 14 January 1996 at Sangam, at the confluence
of the Ganga and Yamuna Rivers (and the mythic Saraswati), so as to
take an oath to obtain, by any menns, a ban on slaughter. This vow is
similar to that taken by sadhus on the banks of the Saryu River to
demolish the Babri Masjid. This is the only way to quell “the stream
of blood which flows in every river of India, where there is no longer
any place to perform religious rites”, said Ashok Singhal, on 20
October in Nagpur. He estimated that the “massacre” would amount
to more than 50 000 cows yearly (India Today, 15/11/95).

Ritual, territory and nation


Sacred geography and god of the microcosm

31 The development of the idea of the Hindu Rāj is linked to a


dramatised undertaking to re-map the Indian subcontinent, a
cartography based on two correlated concepts of the country. One of
these concepts refers to the physical geography of Mother India,
immemorial motherland of the Hindus; the other, to the sacred
geography of the land of India, traversed by pilgrimage routes,
covered with religious centres and places consecrated to several
chosen deities of the Hindu pantheon. So many passages or places
where events have taken place which can scarcely be qualified as
mythological, as they have today acquired, with the complicity of a
few of Clio’s mercenaries, an historic reality. Rāma was born 900 000
years ago in Ayodhya, very precisely at the present location called Ň
´ Sri Rām Janmabhumi. He was reincarnated in 1949, when his effigy

suddenly appeared at the site destined to become the heart of the


new Indian history. The god, counterpart henceforward of Jesus and
Mohammed, is an incarnated personality who leads a very real life in
historic countrysides. Leaving the mythological universe, timeless
and without precisely defined localisation of the epic, as the
narrative is first a semiological countryside, the terrestrial symbol
henceforth concentrates around himself the whole of hinduness,
including its proclaimed enemy: the historic Muslim whose
contemptible metonymy is Babur, and no longer the demonic
hyperbole, Rāvana. Today, Rām is the microcosm in which a new
Bhārat is drawn together. And, never has Mother India appeared so
virile! Rām’s throne at Ayodhya is the epicentre, the seat of the
central power of a State which requisites devotion. The body of the
god, which has grown muscular following the example of a film icon
of the realistic type, is the symbol of a warlike hinduness: Rām(bo)
beckons and militates for new geographic, territorial and religious
boundaries (Kapur 1993). The territorialisation of Rām enables the
reconstruction, which earlier was conceptual, but in later times has
become a call to action, of a space for and an exclusive history of
hinduness, a national history, the motive force of which is
antagonism towards Muslims.
32 A recent innovation, the popular cultural integration of hinduness
conforms to the teaching of V. D. Sarvakar, head of the Hindu
Mahasabha, the Grand Association of Hindus, from 1937 to 1942. In
his work, Hindutva, who is a Hindu? , published in 1924, he links
identity to a territory conceived of as “land of the fathers”
(piīrbhūmi) — the meaning has lineage implications, if not racial —,
but in so far as it is founded on a devotion to the “sacred land”
(puṇyabhūmi) of Hinduism through its geographic and historic
character; it has almost the sense of Geist (as in Herder or Fichte).
The message is still very much alive. H. V. Seshadri, a “preacher”
(pracārak) from Karnataka, describes the true Hindu motherland as a
space sanctified by diligently attended domestic shrines and of
piously venerated icons. One offers there daily worship (puja) and
receives the minimum sacraments (saṃskāra-s) — conferring of
names, marriages, funeral ceremonies —, briefly, the entire arsenal
of the bigotry of a Hinduism which defines itself as orthodox.
33 M. S. Gowalkar added a zoological dimension to sacred geography by
proscribing respect for cows as a basis of Indian national unity in his
charter of the RSS movement entitled, We, or Our Nationhood Defined
(1949). The cow is the Indian symbol of social organicism, inspired by
European fascists, of which M. S. Gowalkar saw himself as
theoretician, as well as architect: he organised the “branches”
(śākhā-s) of the RSS, paramilitary units in the service of a utopia
responding to the nostalgia of a Hindu golden age which lasted “over
eight or ten thousand years before the land was invaded by any
foreign race”, as Gowalkar wrote (1949: 49). However, India is
actually in an antithetical, calamitous state: the sacred territory of
the ancestors was devastated first by Muslim, then by English
invasions. It is thus only proper to restore by conquest this space of
spurious rights. While for the Hindu Mahasabha, this would mean
recovering the do-main of ideal ancient kingship (Hindu Rāj), the RSS
would have it preceded by the nation-state (Hindu rāṣṭṛa) 12 . In
either case, the sovereign model is Rām, both unifier of Hindus
(cakravartin) and destroyer of foreigners (vikramāditya). His odyssey,
in fact, is one and the same with an epic voyage across the
subcontinent, hunting demons: the second Aryan raid, no less
imaginary than the first (Thapar 1989).

Akhaṇḍ Bhārat, a utopian cartography

34 Since at least 1977, the Congress (I) Party has played the
cartography of India against the balkanisation of the country.
However, it was during the 1989 parliamentary elections that one
witnessed a veritable card game played by political parties which
made unprecedented use of the media to win popular support
(Sarwate 1990). Congress, Janata Dal, and the BJP (as well as the DMK
in the South) launched publicity campaigns centred around physical
maps of India, published in newspapers and magazines. In the
caption beneath one such map, the Congress Party asked: “Will this
be the last time you see India in this shape?” By way of response, the
BJP issued a map of territories “lost” by the Congress government.
The argument refers to the Hindu fundamentalist geography of the
Akha ṇḍ Bhārat , “undivided India”, the boundaries of which extend
from Afghanistan in the west, to Burma in the east, inclusive of
Nepal, Bhutan, Tibet and other neighbouring regions. The Akha ṇḍ
Bhārat serves as frontispiece of the RSS publication, The Organiser ,
and it is regularly used in pamphlets, posters and other
propagandistic literature. According to that organisation, not only is
India no longer India, because some of its parts have been
amputated, but its body is already decayed by social maladies and
impurity. The editors of the review, The Organiser, systematically
employ the word “ Napakistan ” (“Land of the Impure”) to designate
Pakistan.
35 One recognises in this India, the vital space of which is expanding,
the cosmologic will of the hindutva movement. Thus, the first of the
video cassettes produced by the VHP, entitled Bhāyī pṛakat krpālu
(“The forgiving brothers are brought together again”) presents
precisely this sacred land whose capital is Ayodhya. Bhārat, an off-
camera voice says, is a gift from the superior wisdom embodied in
Rām. And, to assist in the big-bang transforming the cosmos into a
saffron-coloured map, that of Akha ṇḍ Bhārat, a beam of light
illuminates Ayodhya — the heart of the body of hindouité . India is,
thus, less a geographic entity than a cosmological product, born at
the same time as Rām. Once again entering history, which consists of
a summary of the life of Rām, if one is to believe the commentator,
brutal images suddenly appear on the screen: Babur invades Indian
history. Battle upon battle, one sees the Hindu people valiantly
resisting the Muslim invasion under the leadership of kings and
sādhu-s . Sections of a miniature represent a Muslim killing a doe,
shadows of daggers on the wall testify to the perversity of the
barbaric violence. At this moment, Rām re-appears, finally
reincarnated, directing an arrow from his bow and a seductive smile
at the viewer.

A (re-)mapping of territory

36 In 1995, the combined BJP-VHP-RSS set the programme for a vast


agitation campaign which was to continue until regional elections,
foreseen for February 1996. Corresponding to a strategy of both local
and global character, it was highlighted by two major moments: the
re-conquest of temples in Kashi and Mathura, and the launching of
processions throughout the width and breadth of Indian territory.

A local strategy: Kashi (Banaras)-Mathura


37 The first campaign began in the second week of July. It was in
keeping with the orientation of the Ayodhya campaign (1992), as it
was a question of “liberating” temples in the towns of Kashi and
Mathura. More precisely, it concerned the performing of
“adoration” (pūjā) , called jalābhiṣek, to Lord Srng ā r Gaurī in Kashi,
and of making a great sacrifice to Lord Visnu (Mahaviṣṇu yajña) in
Mathura. In anticipation of national elections in 1996, the leaders
wanted to prevent demonstrations from getting out of hand this
time by instructing the devotees to fight within the law. Religious
manifestation borders on the political: the caste of Lord Krsna of
Mathura is Yadava, the caste which is presently dominant in the
state of Uttar Pradesh 13 . It is also a question of radical
organisations galvanising the upper castes, which are disconcerted
by the BIP support of the Bahujan Samaj Party (BSP). The latter is a
defender of the Untouchables (Dalits) and favourable to Muslims, to
whom quotas for job reservations were promised during the
elections.
38 The results of this agitation bear witness to the tactical hazards of a
strategy of conquest which aims at encompassing sacred places. In
1984, when the Ayodhya campaign was started, the hindutva
movement had no headquarters in the town. But, within a few years,
the institutions opposed to the hegemony of the saffron militants
(parīvār-s) were either destroyed or had been definitively secured by
force in 1991. Beginning with these offensive positions, the final
assault took place in 1992. Identical courses of action were drawn up
in Kashi and Mathura. In the first town, the strategy was successful:
the base of a cult has today been established, along the western wall
of the mosque, near to the site where the effigy of Lord Sṛṇgar Gauri
is allegedly buried beneath débris. A new cultural tradition has been
born: every Monday during the month of ṣrāvaṇa (July/August),
devotees have gone there to perform “adorations” (mahāpūjā-s) . In
Mathura, a similar enterprise failed as a result of the firmness of the
central government’s interventions and of the agreement made with
the regional state authorities. The large sacrifice to Visnu did indeed
take pla c e there, but at four kilometres distance from the temple
and not near the prayer wall (‘Idgāh) which adjoins it, as the
militants had intended.

A global (re-)mapping

39 In the beginning of September 1995, the VHS started the “unity


procession”, the Ekatmata yātrā . Nine large processions and 2800
small pilgrimages traversed 50 000 villages covering more than two
million kilometres to reach 150 000 000 people, according to Ashok
Singhal, the international general secretary of the VHP. Thus, a net
was cast over the entire territory of India, in north and south, east
and west, during a period of twenty-five days. The processions
converged, on 18 October, in Ramtek, forty-five kilometres from
Nagpur, a town situated in the geographical centre of India and
where the general headquarters of the RSS is located. According to
legend, Ramtek, or Raktekdi, the “hill of Rāma”, is the place where
the god put to death the outcaste ascetic, Sambuka. Subsequent of
this crime, a demon (rakṣasa) or a Brahmin constructed five temples
on the hill: one is dedicated to Rāma — it shelters images of Rāma
and Sita —, a second is consecrated to Lakṣmaṇasvami, a third, to the
goddess Ekadasi, one to Hanuman, the last to Lakṣmi-Narayaṇa. The
ruins of the cultural complex date from the end of the thirteenth
century and the beginning of the fourteenth, a period in which the
cult of Rāma was created or revived (Pollock 1993: 266-267).
40 The purpose of this network of processions, conducted by Hindu
religious leaders (sadhu-s), of which groups of renunciants march at
the front to ensure protection, is officially non-political. It is a
question of sounding an alarm respective of the “antinational
activities such as cow-slaughter, proselytisation by Muslims and
Christians, missionaries and infiltration of Bangladeshi nationals
into India”. The other avowed aim is to “build up public awareness of
the need to maintain the sanctity of the Ganga and against its
pollution” 14 . Acharya Giriraj Kishore, joint general secretary of
the VHP, said that the actual deities of the procession: Gang ā m ā t ā
, Gom ā t ā and Bh ā ratam ā t ā — the latter is the central idol,
flanked by portraits of legendary heroes of Hindu nationalism at the
(Sarasvatī Śiśu) temple of the RSS in Delhi — well express these
concerns. Sudhakar Kakade, convener of the processions,
emphasises that no political leaders had been invited to share the
dais during the celebrations.
41 At the end of the itinerary, the march came together at the Dīksā
Bhūmi (“land [or place] of initiation”), that is, at the stūpa of Dr.
Babasaheb Ambedkar — the leader of the Untouchables who
converted to Buddhism to escape the stigmatisation of Hinduism —
in order to rally the Dalits and Adivasis who have hitherto remained
aloof from the hindutva movement. The programme called Rām kichdi
(“R ā m mixture”) has been implemented from the second week of
the yātrā . It consists of bringing together Dalits, Adivasis and other
low castes and having them share a meal with high castes. In the
beginning, the yātrā had great success in Uttar Pradesh, because the
BJP had, since June of 1995, given its support to the BSP, the Dalit
party in power in the state. Its leader, Mayawati, was the only
Untouchable Chief Minister in all of India: she remained in that
position for 147 days. However, following the defection of the BJP, in
September 1995, the enthusiasm of the lower castes began to wane.
The reaction to the yātrā which set out from Hardwar, and was also
to cross Uttar Pradesh, was identical. That which set out from
Somnath, a town symbolising Hindu humiliation since the immense
Siva temple was destroyed by Mahmud of Ghazni in the eleventh
century, was disrupted by the near collapse of the BIP government in
Gujarat. Heavy rains got the better of the yātrā-s in Arunchal
Pradesh, Orissa and West Bengal. Only the procession in the South,
which set out from Rameshwaram, received a favourable welcome,
even though the supervision was much less structured than in the
North; an evident sign of the hindutva movement’s propagation in
the cone of India.
42 It was again at Nagpur that sant-s and mahant-s, together with the
Deputy Chief Minister of Maharashtra, Gopinath Munde, an Adivasi,
paid homage to Dr. Ambedkar, the “awakener” of the Untouchables.
In 1993, the VHP had decided to win over the Dalits to the Hindu
current by raising Ambedkar to the status of “Manu”, the lawmaker
of Hinduism. At the first anniversary of the demolition of the
mosque at Ayodhya, his portrait, among those of Hindu deities,
decorated the dais of the VHP meeting. While Swami Vishwesa
Theerta, from the Pejawar monastery (math) at Udipi, and Swami
Paramanand Maharaj participated in the ceremony, other religious
leaders such as Swami Vasudevananda Shankaracharya and
Ramachandra Parambhans refrained from attending so as to
participate in the Dīkṣā Bhūmi, also held at Nagpur. Sadanand Fulzule,
secretary of the Ambedkar stūpa, explained to the press that it was
inconceivable to refuse such a homage: Ambedkar himself would
have authorised it. Had he not fought for the right of the
Untouchables to enter temples? But, when the VHP members
chanted “ Jai Śrīrām! ” (“victory to Lord R ā m”), the neo-Buddhists
began to sing “ Buddhaṃ, Saraṇaṃ, Gacchami ” (“I shall seek refuge in
Buddha”), which they punctuated with “ Ambedkar Zindabad! ”.
43 The aim of the reverence paid to Dr. Ambedkar by the hindutva
movement was the restoration of harmony in India — which would
have existed prior to the Muslim and British invasions — between
Hinduism and the other forms of Hindu religious expression 15 :
Buddhism and Jainism. On the short term, it is a question of
constituting an international axis between Hindus and Buddhists. A
conference is to be held in Bangkok in February 1996. Regarding the
fate of non-Hindu religions, Hindu leaders had, during the previous
days in Ranktek, politically called for the extermination of the
demons, by which is to be understood the anti- Bhārata-s . The head
of the Bajrang Dal, Jaibhan Singh Powayya, flanked by Sadhavi
Rithambara and Ramchand Paramahans, had promised the
application of the lex talionis to Christian and Muslim races in the
case of discrimination against Hindus, wherever they live 16 !
44 In 1983, the VHP had undertaken the first large-scale processions in
the “sacrifice for unity”, the ekatmātāyajña . The leaders of the
hindutva movement wanted therewith to mobilise Hindus in view of
the next elections. According to an official publication of the
organisation, the three processions would have reached sixty million
persons. The first left Hardwar, in the north, on 16 November, to
reach Kanyakumari, in the extreme south, on 20 December. The
second, inaugurated by the King of Nepal, started from Kathmandu
on 26 October and arrived in Rameshwaram, in Tamil Nadu, on 16
December. The third procession started in Gangasagar, near
Calcutta, and reached Somnath on 17 December. They crossed each
other in the centre of the country, at Nagpur, following the
paradigm of the confluence ( triveṇī ) of the three sacred rivers
(saṅgam) at Prayag (Allahabad). The itinerary of the march thus
followed the hydrography sacred to the Mother. And, comparable to
so many afluents not less than forty-seven small processions
(upayātrā-s), lasting five days, crossed other parts of the country,
each of which joined one of the three larger processions at assembly
places organised by the RSS. They followed the traditional
pilgrimage routes which link the principal religious centres, thus
suggesting the geographical unity of India (Bhāratavarṣa) in the sense
of sacred land (kṣetra) which the modern Hindu crusaders tread.
Each of the three large processions included a temple chariot (ratha),
that is, a Honda or Toyota van fitted out and decorated in the
manner of Arjuna’s chariot in the Bhagavad Gītā . The three vehicles
had been christened: Mahadevaratha, Pasupatiratha, Kapilaratha,
from the names of the local deities at each of the places of departure.
The “chariots” of the VHP, white and surmounted by a lotus, symbol
of the BJP, also contained an image of Bhārat Mātā, Mother India, and
an enormous receptacle (kalasa) with water drawn from the Ganga.
A lorry followed the “chariots”, transporting small bottles of the
precious liquid which could be purchased. Whoever did not
participate in the ritual of lustral distribution was considered as
outside the fold of the Indian unity which was being circumscribed.
The presence of a “chariot” sent by Nepal, of a delegation from
Burma bringing water from the Irrawadi River, of a procession from
Bhutan paying its tribute, of vessels of water brought from the
religious sites of Ramsar, Mauritius, from Bangladesh and Pakistan,
confirmed that Akha ṇḍ Bhārat , integral India, was indeed alive.
45 Ashok Singhal, general secretary of the VHP, started a yātrā from
Janakpuri to Ayodhya, in November 1984, just prior to the general
elections. Janak whose name was given to this small town, was the
king who broke with his ploughshare the earthen pot from which his
daughter, Sītā, was born. It was the year in which the agitation
campaign for Ayodhya was begun. But, the idea of “liberating the
temples” of Ayodhya, Kashi and Mathura, had been called off at a
meeting held clandestinely in the course of 1980. One wished to
enlarge and strengthen the militant, social and political base of
hindutva.
46 In 1985, a symbol was conceived which had the strongest emocional
impact in India. The VHP conspicuously carried throughout the
country an image of Lord Rām, held in a locked cage, an allusion to
the impossibility of gaining access to his place of birth, janmabhūmi.
Five years later, just before new elections, a yātrā was organised to
take to Ayodhya bricks consecrated to Rām (rāmśilā) from all Indian
villages, as well as from communities of the Hindu diaspora
throughout the world, who are essencial for the financing of the
hindutva movement and the eventual edification of the temple
(mandir) of Rām on the site of the Babur mosque. Excesses during the
procession resulted in three hundred deaths, primarily of Hindus.
47 In 1990, the BJP launched the “mother” of all yātrā-s , which the
press characterised as the “ hindutva juggernaut”, to protest against
the decision of V. P. Singh, leader of the National Front government,
to implement the policy of job reservations as recommended by the
Mandal Commission. Nationalists proclaimed that this policy had
only in view the division of Hindus. In August, L. K. Advani
conducted the Rath yātrā (the drivers of which were Muslim!) from
Somnath to Ayodhya. Young members of a new section of the
Bajrang Dal offered him a goblet filled with their blood as an
expression of their determination 17 . L. K. Advani was jailed for a
time in Bihar; nevertheless, his supporters continued but were
stopped by police firing. The campaign was promulgated by a
massive circulation of a video cassette bearing witness to the fact
that thousands of militants (kar-sevak-s) had been killed by the forces
of law and order, that those “martyrs” had been cremated and that
the bones and ashes were to be put in ritual urns (asthi-kalaśa-s) .
These were to be carried in procession throughout India before
being immersed in the holy rivers. The emotion aroused by the
“martyrdom of saffron brothers” worked towards the success of the
movement. It provoked the fall of the V. P. Singh government by
strengthening the electoral power of the BJP to an unprecedented
extent.
48 In November 1992, the leaders of the BJP, L. K. Advani, and of the
Shiv Sena, “the army of Siva”, Murli Manohar Joshi, led two yātrā-s
which set out from Ayodhya in the direction of Kashmir. It was a
matter of attracting attention to the situation of the Hindus
martyred in that state. These marches prepared the atmosphere
which was to lead to the destruction of the mosque in Ayodhya in
the same year. During the assembly elections in Uttar Pradesh,
Andhra Pradesh and Rajasthan, in 1993, a yātrā was organised from
Mysore to Bhopal, this time to protest against the “pseudo-
secularism” of the government — an expression which designates
members of the Congress Party and politicians allegedly favourable
to Muslims.

Body celebrated, body wounded


The Hindu body

49 The capillary network drawn by the militant cartography of the


hindutva processions periodically revitalises the body of India. This
“high-tech” ritual activity 18 is original and combines a few
structural elements of Hindu tradition: “adoration” (pūjā) , sacrifice
(yajña) , procession (yātrā), and the following of the principal ancient
pilgrimage routes, halting at a few sacred sites which the selective
memory of the community has transformed into so many “traumatic
places” of humiliation inflicted by the (Muslim) “foreigner”. It is
thus less a question of traversing the “ford” (tīrtha) , with the
objective of seeing the abolishment of evil, than of activating the
familiar battery of a few emocional stereotypes: Bhārat, the cow,
Rāma, Babur, Gaṅgāmātā, etc., achieving the greatest possible public
resonance by means of an intense use of the media. Through this
mobilisation rising in a crescendo, a unity of the saffron cult,
enlarged to the magnitude of the continent, crystallises. The ritual
activity can extend over months, corresponding to a calendar of
reorganised festivals and in which elections are integrated — and the
exclusive society of Hindus celebrates itself in the apotheosis of the
nation. The covering of the peninsula is nothing other than a social
and political production of Hinduised nationalism, or of the
Hinduisation of nationalism, as defined by M. S. Gowalkar in 1938:
... this great country of ours, extending in the North from the Himalayas — with
all its branches spreading North, South, East and West, and with the territories
included in those great branches right up the southern ocean, inclusive of all the
islands, is one great natural unit. As the child of this soil, our well-evolved
society has been living here for thousands of years. The society has been known,
especially in modern times, as the Hindu society. This is also historical fact. For it
is the forefathers of the Hindu People who have set up standards and traditions
(...), prescribed duties and rights (...), shed their blood in defense of the sanctity
and integrity of the Motherland. That all this has been done only by the Hindu
People is a fact to which our history of thousands of years bears eloquent
testimony. It means that only the Hindu has been living here as a child of this
soil (1949: 333-334).
50 This description may serve to explain the function allotted to the
numerous processions set in motion by the electoral-theological
machinery devised by the BJP and its accomplices since the 1980s.
The discourse on hindutva is an essencial part, as the anti-Semitic
ideology was for National Socialism — the “intentionalist” approach
in history is also applicable in contemporary India 19 . Its objective
is to (re)produce the boundaries at each procession. An external
boundary of the country which incorporates expatriates haunted by
nostalgia and wanting to still be there — the Hindus of the diaspora.
Thus, the diastole of the “saffron” movement marks its area of
expansion, by exclusion and inclusion, by and beyond territorial
lines. Paying little heed to presently existing borders, it constructs
the nation as a sovereign entity designated as the body of hindutva.
Not all those living within the geographical frontiers constitute the
nation, contrary to the ideal of composite nationalism defined by the
secularist constitution of India. The only valid test of patriotism is
allegiance to a religion of the land India, whatever name it should
bear — Bhārat , pitṛbhūmi , mātṛbhūmi , puṇyabhūmi or karmabhūmi —
as the body of dharma has always summed up the laws of Hindus
(Basu et al. 1993: 77). The purpose of the type of ritual activity
represented by mass processions is to demarcate the spatial
extension of hinduness, to show the extent of its authority, and to
distinguish its members in a manner both concrete and symbolic.
Deployed over the public space which they at the same time
“saffronise”, these solemn rituals attest to the sharing of an
immemorial identity, determined at the outermost bounds of a
culture and the race 20 ; space rather than territory, rite rather
than contract, hinduness rather than indianess, authoritarian
monarchy rather than democracy. The nation of Rām is a ritual
activity which Hindus alone periodically renew 21 .

The Muslim body

51 However, this ostentation of the glorious body of hinduness has its


reverse side. The ritual action, in effect, conceals another social
manifestation which extends and completes it in violence. For the
wounded body of India is that of the Muslims. What is called
communalism is, in fact, a euphemism which designates the often
planned massacre of Muslims. One means of mobilising the Hindu
community against them is to circulate inflammatory pamphlets, in
the style of that by Ahmedanad in 1969: “Wipe out those who have
dishonoured your mothers and sisters; show them that the Muslims
who have insulted Hindu religion and molested our mothers and
sisters will not be able to stay in India (quoted by Mukhia 1995:
1365). In this short sentence are superimposed the body of women,
honour, religion and history. Not only is the Indian nation identified
with the vulnerability of women, but the entire Muslim community
is perceived as an Other, phallic and agressive. Woman’s body is the
mediation through which territory, religion, honour and nation are
violated or defended by men (Butalia 1995). Mob rape, such as
committed during partition in 1947, belongs not only to the
archaeology of horror. Communalist riots allude to this memory by
repeating it on a reduced, but not negligible, scale. Attested or
produced by rumour, rapes are added to murders to engender the
sentiment of fear in the respective communities: henceforth, both
consider themselves to be persecuted minorities (Agarwal 1995: 35).
Conversely, the image of a motherland in which pure Hindus are
conquered, raped, defiled and enslaved like women — first by the
Muslims, then by the British — has added substantially to the
nationalist historiography of the subcontinent.
52 In his inquiry into the communal carnage in Surat, in December
1992, Jan Breman confirms that one of the most frequent scenarios
was the organised murder of the enemy in front of a group of
women, including their children, followed by their rape, or inversely
(1993: 734-741). Because of the extreme violence of the situation,
rape is viewed both as an individual and private shame for the victim
and its family, if members survive, but also as a collective and public
celebration: the rapist is a hero. Video- rath -s and cassettes echo on
a large scale testimonies given by violated women of the community;
in addition, infamous filmed simulations are widely circulated. The
real becomes “cinema truth” by the transfer of violence without
restraint, with which is mixed the most vulgar sexual symbolism of
mediatised popular culture (Dickey 1993: 124-128). The mystification
is all the more manifest as these films depict Hindu men, women and
children being brutalised by a gang of Muslims!
53 The inversion of the aggressor to the aggressed goes back at least to
the propaganda of Dr. Hedgewar, the founder of the RSS (in 1925). In
the 1930s, he railed against the Hindu Congress members, applying
to them the insult “snake-foreigners” usually reserved for Muslims:
“The yavan -snakes reared on the milk of Non-Cooperation were
provoking riots in the nation with their poisonous hissing” (quoted
by Basu et al. 1993: 14). This is, moreover, the manner in which the
officially recognised historians of the hindutva movement re-write
history, spreading notably the idea that the Islamisation of the
subcontinent is related to an advancing tide of barbarians thirsting
after sex and blood. Or, they are occupied with the maligning of
their co-religionists: the first page of the issue of 14 August 1947 of
the RSS paper, The Organiser , presents a map of India covered by the
body of a woman whose arm (= Pakistan) has been cut off; Nehru
holds the severed arm by the hand!
54 The use of the distorted mechanism of reversing the situation from
persecutor to persecuted, and the simultaneous designation of the
scapegoat, marginalises all those who do not profess collective
vengeance. The imagery of the severed, amputated, violated bodies
of women, of Hindus, of Hindustan, and the trope of the impotence
of those who neither aggress nor kill Muslims, dominate the
discourse of the virulent oracle of the BJP, Sadhavi Rithambara 22 .
Her name has a high mythological charge: “Sadhavi” is an epithet
describing a female hermit, and “Rithambara” that of a celestial
nymph using its physical beauty and its charm to seduce the
saṃnyāsin whose penitence is perceived as menacing the order
established by the benevolent gods; having been ravished, the
saṃnyāsin loses the sacred effects of his penitence and becomes
powerless. A tragic reversal of the mythology, as well as of the
history, of nationalism. Whereas Mahatma Gandhi had adopted the
model of the renunciant, mortifying his body to the extreme limit of
his life, with the objective of bringing inter-communitarian violence
to an end — he had said: “If the Congress wishes to accept partition,
it will be over my dead body” (quoted by Nandy 1990: 88) —, the
young passionaria of the BJP, bearing a name exemplifying the
seduction of renunciation, rather than the renunciation of
seduction, publically provokes the militants, calling them impotent
if they do not massacre Muslims. An example of this fabrication of
hate:
We Hindus face this way, the Muslim the other. We Hindus write from left to
right, the Muslims from right to left. We Hindus pray to the rising sun, the
Muslim faces the setting sun when praying. If the Hindu eats with the right hand,
the Muslim with the left. If the Hindu calls India “Mother”, she becomes a witch
for the Muslim. The Hindu worships the cow, the Muslim attains paradise by
eating beef. The Hindu keeps a moustache, the Muslim always shaves the upper
lip. Whatever the Hindu does, it is the Muslim’s religion to do its opposite. I say,
If you want to do everything contrary to the Hindu, then the Hindu eats with his
mouth; you should do the opposite in this matter too! 23 .
55 To the violence perpetrated on the body of the Muslim is added the
idea that its men marry several wives, and that the latter are
excessively fertile. At the time of the clashes in Bombay, in 1982, a
pamphlet stated:
There is a well-planned conspiracy behind the riots continuously occurring in
the country. From Morocco to Malaysia, India is the only country where Muslims
are still a minority. Therefore, constant efforts are being made to increase the
Muslim population by not accepting the family planning programmes of the
government, by producing more children, by keeping more than one wife and
converting Hindus to Islam. They are dreaming of installing a Muslim
government in this country by taking advantage of the democratic system of
India (Mukhia: 1995).
56 Sexual phantasy, demographic fear and foreboding of a political plot
foster the idea that India has too many Muslims. This is a call to
implement any measure, including the most anti-democratic, to
render non-Hindus sterile. Measures which “pseudo-secularists” are
reluctant to take, according to Sadhavi Rithambara, who
enthusiastically repeats the following apologue:
When Rāma was banished from Ayodhya many citizens accompanied him to the
forest and stayed there overnight. In the morning, Rāma said: “Men and women
of Ayodhya, go back to your homes”. The men and women went back but a group
of hermaphrodites, who are neither men nor women, stayed back and asked:
“Lord, you have not given us any instructions”. Rāma is kind. He said: “In the
future Kaliyuga you will rule for a little while”. These, neither-men-nor-women,
are your rulers today. They will not be able to protect India’s unity and integrity
(translated and quoted by Kakar 1995: 213).
57 The West was for a long time inclined to retain from India only the
stereotype of a body meditating. Some from the generations of the
sixties sacrificed to this delight, adding that of the liberation of
morals through “flower power”. Today, owing to “globalisation” and
“information highways”, to use recent jargon, the West discovers the
image of bodies ravaged by inter-communitarian hand-to-hand
fighting, product of the ritual activities conceived by hindutva . The
fascistic movement is spreading in modernity: it adopts the
instruments, but reformulates the norms and values which must
accompany it on an ethnico-racial basis. Reinforced by structural
adjustment, the crisis of state legitimacy and the development of
forms of radicalism, it is to be feared that a growing proportion of
new generations will give way to this hate. Considering the vastness
and diversity of India, let us hope that such a prognosis will only
mean replacing one stereotype with another.
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NOTES
1. The complete title is: Independence and After: A Collection of Speeches 1946-1949, 1956: 247.
2. It is a question of the now famous film Bombay , which was banned from showing in
Maharashtra, in particular because it caricatured Bal Thackeray, the president of the Shiv
Sena. The Muslims were just as discontent: they demonstrated against its distribution, but
for other reasons. Maharashtra, which is the most industrialised state in India, is today
governed by the Hindu nationalist alliance BJP-RSS.
3. I use the word “communal” in its Anglo-Indian sense (and not the Anglo-American)
which designates an exclusive attachment to one’s community combined with an active
hostility towards one or more communities which share one’s geographical and/or political
space. For an exposition of this type of conflict, its magnitude and its characteristics on the
basis of case analyses, refer to A. A. Engineer (1985). On the other hand, the work of J.
Assayag (1996) endeavours to show the complexity of relations between Hindus and
Muslims in situ , in routine life and at the time of festivals.
4. A passage from an article by A. Varshney underlines the specificity of the problem in
South Asia: “Politics based on this imagination [of “partition”] is quite different from what
was seen when Malaysia and Singapore split from each other, or when the Czech and Slovak
republics separated. Territory not being such an inalienable part of their natural identity,
these territorial divorces were not desecrations. In India, they become desecrations of the
sacred geography” (1993: 231).
5. The Indian “xenologic” tradition is commendably explored by Halbfass (1988: chap. 11).
6. As concerns the political, ideological and institutional history of Hindu nationalism, one
may refer to the work of Jaffrelot (1992) and, regarding Hindu and Muslim religious
nationalism, Van der Veer (1994). As pertains to violence and xenophobia, vide Das (1990)
and Kakar (1995).
7. James Rennell later prepared the maps for the journal of Mungo Park’s African
expedition, which became a best-seller (Ludden 1994: 258).
8. The notion that Tibet, and more generally the Himalayas, would be the birth-place of the
Aryan race, was without doubt prompted by Dayananda Sarasvati’s reading of British
writers, as this idea is to be first found among European philosophers, notably Kant and
Herder (Poliakov 1987: 210-213). For a genealogy of the theory of the Aryans as applied in
India by the British, vide J. Leopold (l974).
9. The very vague political programme of the VHP is inspired by two treatises, the
Arthasāstra and the Manusmrti . The first defines a highly organised surveillance system of
the monarchic type and under meddlesome bureaucratic control. The second treatise
elucidates the manner of governing well, that is in particular, how to ensure domination
over Sudras and women (Basu et al. 1993: 78).
10. An article by Pandey (1993) provides a compilation, with commentaries, of some of the
anti-Muslim slogans which are extensively propagated on the subcontinent.
11. Y. K. Malik and V. B. Singh (1995) trace the history of the development of this
nationalist party, from its roots in the RSS and Jana Sangh.
12. Contrary to current nationalists, M. S. Gowalkar distinguished the nation ( rāṣṭṛa) fro m
the state, because he defined it in the first place as “cultural”, that is, embracing a living
community on a territory to which it would have both organic and emotive relations.
13. For a description of the regional configurations of (dominant) castes, vide Assayag
(1995).
14. This struggle, expanded to that for the protection of rivers and cows, is described as
“ecological”. Such an “environmentalist” ideal is purported to be present in the most
ancient religious texts of Brahminism (Basu et al. 1993: 32-33).
15. For a description of the relations between Islam, Christianity and Hinduism, cf. J.
Assayag & G. Tarabout (l996).
16. One should remember the racial tendency of the hindutva movement, notably the
opposition between Aryan and Semitic blood, that is to say, of Muslims and Christians who
sully the body of Bhārat . Only true Indians (i.e. descendants of Aryans) have inherited the
blood of Rām. Regarding the concept of “race” in Hinduist nationalist currents of the years
1920-1930, one may refer to C. Jaffrelot (1995), although he clears them of all (biological)
racism by maintaining a “holistic hierarchic” model based on Dumont (1995: 349). That is to
show little regard for their obsessional and inflationist utilisation of terms associated with
“blood” and “purity”. A quote from M. S. Gowalkar is, in this respect, illuminating: “German
national pride has now become the topic of the day. To keep up the purity of the nation and
its culture, Germany shocked the world by her purging the country of the semitic races —
the Jews. National pride at its highest has been manifested here. Germany has also shown
how well-nigh impossible it is for races and cultures, having differences going to the root,
to be assimilated into one united whole, a good lesson for us in Hindustan to learn and to
profit by” (1949: 27). Cf. P. Robb concerning the concept of race in South Asia (1995).
17. This symbolic violence — in which one recognises the identification of the sacrificer
with the sacrificed victim, according to the mechanism discerned and very well elucidated
by M. Mauss —, serves to show the participation of the militants in the fabrication of the
transcendent and imperishable entity which is the Hindu nation. This interpretation is
drawn from the theory of Bloch (1992).
18. Any action can probably become ritual to the extent that it is endowed with
intentionality (Humphrey & Laidlaw, 1993: 3). Hence, the employment of the notion of
ritual action, namely the idea that an action is transformed through ritualisation (Assayag,
1996). This shows to which extent the argument of the “manipulation” of credulous people
by a political elite, by means of the “instrumentalisation” of religious figures, disregards
adherence of the masses to politicians, who, moreover, are pragmatic or cynical. The
diabolical malignity of A. Hitler no more explains Nazi National Socialism, than the
idiosyncrasies of L. K. Advani or B. Thackeray explain the fact that more than one hundred
million Indians vote saffron. Cf. note 20.
19. This is an allusion to the German controversy between “intentionalist” historians, who
attempt to explain the exceptionality of the Nazi regime by that of its leader, of his ideology
and, notably, of his visceral anti-Semitism which led to genocide, and the “functionalists”,
who characterise the régime as polyarchic, that is, a (dis)organisation constituted of
numerous centres of power and more or less autonomous bureaucratic institutions,
federated through the person of Hitler alone.
20. This conforms to the idea of V. D. Savarkar, according to which there exists a
substratum common to all Hindus, irrespective of ethnic group, status, caste or practices:
“We are all Hindus and own a common blood” (1969: 89). A state-ment which today
authorises the hindutva movement to induce Untouchables to enter into the fold of a unified
“saffron” Hinduism.
21. Thus, as P. Lutgendorf has noted, the essential element in the interpretation of the Rām
rāj is present in the rhetoric of the nationalist parties, notwithstanding the slogan used:
Rām rājya for the Rama R a jya Parishad (RRP), dharma rāj for the Jan Sangh (JS), Hindu rāstra
for the Hindu Mahasabha (MH), Bhāratīya Maryādā for the Swatantra Party (SP) (1995: 276).
22. An article by A. Basu presents the three renunciant viragoes, furious prophetesses of
hindutva . Vijayraje Scindia, who was at the avant-garde in defence of the custom of satī ,
Uma Bharati, known as the “sexy saṃnyāsin ”, and Sadhavi. Rithambara. A transcription of a
discourse by the latter can be read in the magazine Manushi (Kishwar 1990). S. Kakar has
given psychoanalytic commentaries on longer passages from a speech given by Sadhavi
Rithambara (1995: 197-214) which he has translated.
23. This passage is cited by A. Basu (1995: 164) and Kakar (1995: 213) in two slightly
different forms. This invective clearly brings out the fact that the theory of the political
instrumentalisation of religious figures explains nothing, or very little, as far as it is here a
question of conviction, and not only of Sadhavi Rithambara, but of more than one hundred
million voters; cf. note 15.

ABSTRACTS
This essay is focused on the construction of the geopolotical and symbolic “body” of the
Indian nation in three distinct periods: the British raj ; the movement that precedes and
follows independence in 1947; and the controversial and troublesome times which began in
the 1980s.
In each of these moments, several resources allowed for the conceptualization and
imagination of the body of India — British imperial cartography, the centrality of the cow,
and Ramraj (the realm of the Hindu god Rāma , an avatar of Vi ṣṇ u ). Asserting the integrity
of the symbolic body of India, these resources have also been used as tools for a disquieting
Hindu integralism, in the conditions of religious and ethnic strife of contemporary India.
Este texto centra-se na construção do “corpo” geopolítico e simbólico da nação indiana em
três grandes períodos: o raj britânico, o movimento que precede e se segue à independência,
em 1947, e os tempos controversos e convulsos iniciados nos anos 80.
Em cada um destes momentos foram vários os recursos que permitiram conceptualizar a
imaginação do corpo da Índia — a cartografia imperial britânica, a centralidade da vaca e o
rāmraj (o reino do deus hindu Rāma, avatar de Viṣṇu). Na actualidade esses recursos, mais
do que postularem a integridade do corpo simbólico da Índia, são objecto de apropriações
que, no quadro dos actuais conflitos que atravessam o subcontinente indiano, remetem para
expressões de um inquietante integralismo hindu.

AUTHOR
JACKIE ASSAYAG
CNRS École Française d’Extrême Orient 22, Av du Président Wilson, Paris
O Islão plástico: transformações da
intimidade em contexto popular
marroquino
Maria Cardeira da Silva

1 Noutro lugar (Cardeira da Silva 1996a), desenvolvi a ideia de que o


Islão, tal como se demonstrou compatível com a modernização
(contra as expectativas de Weber e seus seguidores, cf. Turner 1994:
78), acolhe práticas e performances individuais que entendemos como
típicas da pós-modernidade. Tentei aí argumentar, através de
leituras sobre as performances corporais e indumentárias de um grupo
de mulheres em meio urbano tradicional e popular marroquino, que
existem nesse contexto disposições favoráveis à constituição daquilo
que veio a designar-se, no quadro da alta modernidade, pelo corpo
como projecto (Giddens 1994 [1991]; 1995 [1992]). Pressupunha esta
minha postura a ideia implícita de uma reflexividade subjacente aos
processos de construção do self entre aquelas mulheres. Queria agora
aqui prosseguir o mesmo argumento, servindo-me de narrativas
individuais das mesmas mulheres, construídas em torno da
sexualidade e do género, em busca de indícios de um eventual
processo de democratização da intimidade que Giddens encontra na
modernidade tardia ocidental protagonizado pela sua metade feminina
(1992).
2 Trabalhando em contexto marroquino, submeterei os meus
argumentos ao desafio constituído pelo pressuposto de que a
democratização da vida privada prossegue a — e procede da —
democratização da vida pública. Aceitá-lo-ei mantendo a dicotomia
público/privado por questões meramente operatórias e mantendo a
acepção que Giddens confere a cada um dos termos. Ainda assim,
creio que as narrativas e trajectórias do self no feminino aqui
delineadas justificam o risco de transplante e expansão de uma
teoria ocidental que ali pode encontrar ilustração para o risco, o efeito
de colagem o projecto reflexivo do self típicos da modernidade tardia, a
par da segurança ontológica do recurso à tradição. Para evitar a
diluição da etnografia nas discussões epistemológicas sobre
modernidade e pós-modernidade, cingir-me-ei à perspectiva de
Giddens e utilizarei, por minha conta, o termo contemporaneidade,
fazendo-o corresponder ao período em que vivi em Marrocos e
partilhei o quotidiano de uma rede de proximidade — qarabâ —
feminina na medina de Salé 1 .
3 Tal como fiz anteriormente, utilizarei aqui descrições sumárias de
situações vividas durante a minha estada em Salé que possibilitem
um adensamento descritivo (Geertz 1978 [1973]) da realidade
etnográfica a que dizem respeito. Em muitas das situações, as
protagonistas são as mesmas de então, o que não só articula os dois
textos a nível teórico como os remete para um campo empírico e
quotidiano comum.

Tabitgate
4 Um episódio que me levou a querer experimentar em contexto
marroquino a proposta de Giddens foi o Tabitgate (como vinha
rotulado em um dos muitos jornais marroquinos que durante
semanas se debruçaram sobre o assunto): em 1993, descobriuse que
um comissário da polícia de Casablanca — Tabit — violara centenas
de mulheres, registando em vídeo as atrocidades cometidas com
requintes de malvadez. O caso, que envolvia a cumplicidade de
outros agentes e que ganhou contornos políticos difíceis de
acompanhar, fez espoletar uma crise de consciência em torno da
prepotência institucional e das relações de género. Da oportunidade
política deste debate não me ocuparei aqui. O que é facto é que,
enquanto nos corredores do palácio se preparavam comunicados
reais, o assunto era discutido em cada esquina da medina pelos
rapazes desempregados, em cada sala da universidade pelos
estudantes e em cada cozinha ou terraço pelas mulheres. Um assunto
tão privado e protegido pela tradição como o da sexualidade — ilícita
e aberrante ainda por cima — era exposto e discutido privada e
institucionalmente, inflamando questões latentes como as dos papéis
das mulheres e da prepotência masculina. A materialidade das
cassetes – que em última análise impossibilitara qualquer tentativa
de vilipêndio do processo judicial — aparecia em muitos dos relatos
detalhados como uma perversidade maior, mais desconcertante. A
exposição pública do harām — do sagrado, do interdito — perpetrada
por meios de difusão moderna surgia como um elemento
perturbador central. Na verdade, o que o caso Tabit fez foi espoletar
um processo de reflexividade social e institucional que, por outras
razões acumuladas, já se encontrava em curso a outro nível: as vozes
agora mais sonantes das mulheres testemunhavam uma longa
experiência reflexiva. Manifestava-se essa experiência (como para as
raparigas entrevistadas por Thompson, em 1989) na fluência
narrativa que acompanhava as suas opiniões, treinada, sem dúvida —
e então, mais uma vez praticada —, nas tardes de conversa ao lado do
chá de menta, em frente à televisão, nas idas ao hammam (banhos
públicos) ou ao marabuto (santo local), nos encontros com as
vizinhas no suq. Não era, evidentemente, a primeira vez que elas se
lançavam nessa empresa reflexiva do self.
5 Na introdução de Transformações da Intimidade, Giddens diz que o
declínio do poder dos homens sobre as mulheres produz
simultaneamente um fluxo crescente de violência entre sexos. É fácil
relacionar isso com o que disse antes sobre a sociedade de risco (1994
[1991]): as mulheres estão mais protegidas na pré-modernidade. É a
relutância em relação à mudança que transforma a violência
masculina numa base de controlo sexual, mais comum na
modernidade do que nas sociedades pré-modernas: “Por outras
palavras, uma larga percentagem de violência sexual masculina
decorre actualmente mais da insegurança e da inadequação do que
de uma dominação patriarcal”(1995 [1992]: 85). Ora a discussão em
torno do caso Tabit era equívoca: a par dos comentários revoltados
das minhas vizinhas contra a prepotência dos homens — e mais
controlados contra o sistema político em geral —, não foram raras
outras reacções, femininas e masculinas, que se apressaram em
culpabilizar também as vítimas pela exposição a situações cujas
consequências, dentro do quadro de uma tradição, conheciam bem.
Negligenciando-se a prepotência policial evidente, estas mulheres
eram proscritas por terem possibilitado um encontro com um
homem, que não o seu, num local que não a sua casa. As vítimas
foram castigadas — muitas delas repudiadas pelos seus maridos —
por terem arriscado sair da segurança da redoma estrita dos códigos
tradicionais. Estas mulheres eram acusadas, dentro de uma lógica
patriarcal, pela modernidade dos seus comportamentos. Por seu
turno, as reacções mais comuns das minhas vizinhas que as
defendiam — e se solidarizavam contra a arbitrariedade masculina,
nomeadamente dos maridos desleais — eram de alguma maneira
interpretáveis à luz das relações puras que Giddens formula para a
modernidade: centradas sobre o compromisso e a história partilhada.
Aicha passa-me sempre os artigos de jornais sobre o caso de Tabit. Desta vez
mostroume mais outro para confirmar o que me havia dito anteriormente: todos
os maridos das implicadas no caso tinham pedido o divórcio. Ela estava muito
revoltada (e Melika também) e, por isso, pude dar largas à minha indignação.
Quando lhe disse que os homens deviam perceber que as suas mulheres não eram
culpadas, ela retorquiu que isso eles percebiam, mas que não aceitavam que as
mulheres lhes tivessem escondido o facto, o que, para ela, também era
compreensível.
6 A questão que se me punha então era a de saber se a violência em
causa (não falo apenas da de Tabit mas daquela mais geral, entre
géneros, que no fundo era a que se debatia para além da prepotência
institucionalizada) era de tipo patriarcal, ou dessa outra — de que
Giddens fala — desencadeada pela reacção destrutiva a uma
progressiva perda de controlo dos homens sobre as mulheres. A
tensão entre géneros very typical dos contextos muçulmanos seria
genuína, isto é, tradicional? Dito de outro modo mais básico mas mais
operacional: era essa violência de tipo pré-moderno ou moderno?

A guerra dos géneros no “golfo” islâmico


7 O Ocidente conhece a mulher muçulmana, mas continua a conhecer mal
as mulheres muçulmanas. A literatura mais divulgada em meios
europeus e americanos — em que o tema hijab (véu) é quase uma
constante quanto mais não seja para efeitos de marketing 2 —
continua a privilegiar as abordagens centradas no “estatuto da
mulher islâmica”, oferecendo um modelo uniformizado sob a
pressão de uma religião abrangente e constrangedora. De um modo
geral, nestas abordagens as relações de género aparecem tensas,
como o demonstra Ait Sabbah em La Femme dans l’Inconscient
Musulman (1986 [1982]), entre outras variadíssimas obras. O que ali
ressalta é o medo masculino perante uma sexualidade feminina
devassa, que justifica a necessidade de controlo rígido das mulheres.
Mernissi (1983 [1975]) desenvolve também esta ideia através da
decomposição da noção de fitna (desordem, caos), associada pelo
discurso hegemónico à sexualidade desregrada das mulheres. O
princípio da segregação dos sexos constitui um dos pilares do Islão
comandado por um Deus ciumento que contraria os relacionamentos
heterossexuais (idem: 126), sobrecarregando-os de normas e
interditos com vista a regulamentar o estado da jahillīā (barbárie,
período pré-islâmico), durante o qual as mulheres detinham um
poder político e sexual (ou vice-versa) assinalável (1983 [1975] e
1987). No entanto, segundo Mernissi, a subordinação feminina não é
inerente ao discurso religioso, mas produto de deturpações
póstumas à palavra veiculada pelo profeta: o período da Hégira
aparece como a Idade de Ouro, de uma espécie de matriarcado,
entendido como momento prestigiante e justo para as mulheres.
8 Independentemente da qualidade e pertinência desse tipo de
análises, será prudente sublinhar que a difusão do conhecimento da
realidade feminina por via exclusiva do discurso religioso (mesmo
quando o objectivo é contestá-lo nos seus fundamentos) transporta o
risco de cometer os dois erros que, paradoxalmente, estas
abordagens mais se esforçam por combater: 1) o de perpetuar a
imagem — qualquer que seja — estereotipada da mulher em contexto
islâmico (que tanto acusaram ao orientalismo); 2) o de vincular
atávica e exclusivamente o modelo de conduta feminina ao Islão (o
que pode ser entendido como um pressuposto escrituralista de
submissão feminina). De facto, ao circunscreverem (generalizando)
as relações de género e a sexualidade ao discurso hegemónico
inspirado pelo Islão, e pela reconstituição mais ou menos mítica da
sua história, negligenciando as práticas e vivências contextuais, estas
abordagens feministas reproduzem em alguns casos o discurso e a
estratégia fundamentalista que pretendem combater. Em Le Harem
Politique (1987) Mernissi defende (com alguma incongruência em
relação ao que escrevera em 1983 [1975]) que o ímpeto igualitário do
Islão original permitiu à mulher emergir como sujeito, enquanto na
jahillīā ela tinha o “estatuto de objecto” (Mernissi 1987; 1992: 241 n
16). Em tempo de vida do Profeta as mulheres foram admiradas e
politicamente respeitadas. Foi o despotismo dos califas —
precisamente aquele em que alguns autores (cf. Eickelman e
Piscatori 1996: 46,47) reconhecem a separação entre a “religião” e o
“estado” (dīn ūa daūla) no seio do Islão — que recuperou novamente
para as mulheres o seu estatuto pré-islâmico de escravas. Mernissi
arrisca-se ao equívoco de uma possível interpretação
fundamentalista da sua obra pela utilização que faz do vocabulário
religioso: conceitos como os de jahillīā e de fitna são suportes
fundamentais de muitos discursos escrituralistas que utilizam o
paradigma da sociedade pré-islâmica (pré-civilizacional e caótica),
projectando-a no Ocidente e nos seus modelos importados e
desestabilizadores, para forjar, por oposição, um modelo
civilizacional de inspiração divina para os muçulmanos.
9 É verdade que as assimetrias de inspiração religiosa que os códigos
legais reconhecem ainda tornam inevitáveis as tensões entre sexos
inflamadas pelas mudanças demográficas e sociais em curso. Mas, tal
como a análise cultural, a compreensão das relações de género exige
mais do que a mera enumeração exaustiva das normas e valores
institucionalizados e sem dúvida muito mais do que o desfiar
paternalista do rosário das injustiças sexistas. O problema destas
aproximações redunda no facto de insistirem no Islão como produtor
exclusivo e incontornável das normas e valores, em vez de o toma-
rem como o idioma que a ordem social e suas hierarquias utilizam
para legitimá-los, em determinado momento histórico, social e
económico. É também nesse ponto de vista que as condutas e
práticas sexuais desviantes do modelo hegemónico islâmico aparecem
confortavelmente arrumadas, como subversões compensatórias
(entre outros: Chebel 1988; Couchard 1994; e, também de certo modo,
Wikan 1977), nestas diferentes teorias hidráulicas da sexualidade (o
termo é de Eickelman 1989 [1981]), de inspiração mais ou menos
psicanalítica, que constituem outra parte da literatura sobre o
assunto. A maioria destas abordagens negligencia a ideia de que as
práticas culturais locais em torno da sexualidade e do casamento
nem sempre se conformam com a “ortodoxia” da lei islâmica, e
desprezam o desenvolvimento de tácticas e enunciados,
determinados pela realidade social e por outros códigos igualmente
constituintes do habitus (Bourdieu 1972, 1979). Esta negligência é não
apenas falaciosa do ponto de vista analítico, mas também inibidora
do diálogo intra e intercultural.
10 Menos conhecidas são obras como a de Abu-Lughod (1986) que, ao
mesmo tempo que inaugura uma antropologia preocupada com as
emoções, revela um outro mundo secreto das mulheres muçulmanas,
no caso as de um grupo de beduínos do Egipto (os Awlād Ali),
relacionando equilibradamente discursos antropológicos
preexistentes, códigos institucionalizados (honra e modéstia) e
práticas discursivas em torno do self e do sentimento (poesia). Ao
libertar a literatura do género no Islão do estigma desvitalizante das
dicotomias obsessivas entre teoria e praxis, representação e prática, e
norma e desvio, Abu-Lughod liberta também as mulheres
muçulmanas da alternativa entre o conformismo e a subversão a que
grande parte da literatura sociológica e antropológica as havia
votado. Na verdade, ao desmontar o processo de negociação
feminina daquelas mulheres em torno dos idiomas (incluindo o do
Islão) que lhes permitem a constituição do self, Abu-Lughod permitiu
a renovação de um campo de análise que, a seguir o esteio clássico,
ameaçava sucumbir à reprodução estéril de estereótipos. O caminho
a seguir é, sem dúvida, o seu.

Amor romântico
11 O Islão não se limitou — como o cristianismo — a associar a
sexualidade à reprodução. Enquanto código de conduta estipulou a
sexualidade não reprodutora dissociando-a da outra, que associava
ao casamento, e colocando-a historicamente no quadro da
concubinagem legítima. Antigamente, este regime (a lei islâmica
previa, para além das quatro esposas legais, um outro tipo de união
com concubinas) albergava o domínio do sexo e erotismo,
despoluindo o outro mundo das esposas legais, mães e reprodutoras,
e dividindo o feminino entre esposas e antiesposas (Bouhdiba 1982
[1975]). A decadência da prática da concubinagem desfuncionalizou
um sistema que, pelo menos do ponto de vista masculino, punha
tudo no seu lugar. No entanto, a poligamia, em sentido contrário mas
de certo modo convergente, permite a adequação do desejo múltiplo
masculino ao quadro legal da reprodução mais alargado para ele do
que para a mulher: a separação entre as mulheres/sexualidade e as
mulheres/maternidade mantém-se e expressa-se facilmente pela
acumulação de esposas de “estatuto” diferente permitida pelos
casamentos múltiplos. Mais do que recusar uma sexualidade erótica
a par da outra mais funcional, o Islão reconheceu-a, concedendo-lhe
lugar próprio para melhor poder controlar uma e outra, construindo
um desses lugares em que a ars erotica era limitada a grupos
específicos.
12 Hoje em dia, o regime de concubinagem não é legal e a poligamia foi
já proibida em alguns países islâmicos como a Tunísia. Em Marrocos,
as taxas oficiais de poligamia rondam os três por cento, embora estes
valores não contemplem certamente muitos dos casos em que o
homem mantém, algumas vezes em segredo, diferentes relações no
que hoje vem a assumir formas semelhantes a uma
extraconjugalidade dispersa em apartamentos montados, vagamente
legitimada por códigos mais ancestrais e convenientes (para os
homens). Independentemente dos procedimentos legais de
desencorajamento a estas práticas 3 , o que é facto é que, ainda hoje,
a separação dos dois tipos da sexualidade é estruturante do discurso
masculino sobre o género, embora esse código seja articulado com
novos vocabulários: em muitos casos são as estrangeiras que
ocupam, em termos de imaginário, o antigo lugar das concubinas. É
assim que é comum ouvir os homens dizer que querem uma
namorada europeia e uma esposa marroquina. Mas não são apenas os
homens que retêm essas ancestrais oposições:
Melika discutia com Miriam na cozinha a propósito de mais uma das crises
conjugais de sua mãe. Falavam da mulher com quem Monsieur Samir se
encontrava em Kenitra e das possibilidades que Aicha teria para afastá-lo
daquela puta. Melika dizia que a mãe era muito agressiva e que tinha até batido
no pai. Miriam retorquiu: “Sim, mas a Aicha — meskinâ (coitadinha) — não tem
hipóteses porque ela não sabe fazer aquelas coisas à europeia que a outra faz.”
Eu, que estava a ouvi-las enquanto trabalhava no computador, não resisti e desci
à cozinha para perguntar o que é que isso queria dizer: “Então, tu deves saber...
(disse Miriam com malícia): fazer amor com as luzes acesas e outras coisas...”.
13 As mulheres da medina temem especialmente as concorrentes
europeias: o imaginário marroquino erotiza e disponibiliza
sexualmente as estrangeiras 4 , para além de, nos meios mais
pobres, as tornar acrescidamente atractivas para os homens por
potencialidades económicas.
14 Mas, se para os homens a dicotomia é resolvida por reinterpretações
confortáveis de códigos ainda vigentes, as mulheres experimentam o
desconforto de uma atracção por um modelo moderno, que lhes
permite ao mesmo tempo ser esposas e amantes, contrariada pela
compulsão masculina que só as protege enquanto esposas e mães.
Elas exigem, para a constituição da sua feminilidade, essa
componente erótica que lhes era negada, e treinam-na mesmo, nas
suas matinées em torno dos vídeos das tradicionais xikhâs (dançarinas,
prostitutas) que sempre invejaram secretamente e cujos movimentos
de corpo podem agora melhor imitar. Mais do que um amor
romântico, as mulheres chegam mesmo a sonhar com um amor
confluente, nesse sentido em que pressupõe o desaparecimento da divisão
entre mulher respeitável e aquelas que de algum modo estão fora da vida
social ortodoxa (Giddens 1992).
15 Mas estes sonhos de amor inteiro não são inéditos, nem foram
negligenciados pela literatura islâmica. Na verdade, não será de mais
sublinhar o impacte (se não a influência) que textos como o de Ibn
Hazm (O Colar da Pomba) exerceram sobre o amor cortês, essa
primeira forma ocidental de amor romântico. E mesmo o paradigma
do romantismo condenado de Tristão e Isolda tem correspondência
na história de Urwa e a filha do seu tio paterno Arfa, castigados por
terem sobreposto o seu amor — que também foi fatal — à prescrição
natural do casamento entre primos. O amor romântico existe em
múltiplos lugares do tempo e do espaço islâmico e muito foi escrito
sobre isso. E se, na maioria dos casos, como Giddens refere, as
histórias e mitos criados a seu respeito condenam quem procurava criar
ligações permanentes através do amor apaixonado (1995 [1992]: 26), pelo
menos em uma delas, que nos toca mais de perto, é o amor puro que
triunfa, ultrapassando fronteiras entre categorias inconciliáveis: não
viveu Al Mutamid — o príncipe de Sevilha, nascido em Beja e que
animou os saraus de poesia de Silves — uma relação de amor
duradoura com Intimad, a escrava de Romaik? Mesmo a
especificidade europeia da associação dos ideais amorosos aos
valores morais da religião, onde Giddens encontra a emergência de
uma certa reflexividade, deve ser revista se tivermos em conta sufis
platonizantes como Ibn Hazm ou Ghazali. Não reconhecer estas
coincidências é cair precipitadamente numa perspectiva weberiana:
aquela que recusa ao Islão qualquer possibilidade de modernização —
quer ela se refira à economia, quer se circunscreva à construção da
personalidade entendida como um projecto racional (ideia em que,
de resto, Giddens se inspira. Ver Turner 1994: 189,190) —, alegando o
óbice de uma sensualidade islâmica, contrastante com a negação da
luxúria típica da espiritualidade ascética protestante que foi o motor
da modernidade (Weber 1967 [1947]).
16 Não queria, nem posso, desenvolver o argumento histórico que
alimentaria esta discussão (levantada, entre outros, por Turner em
1974 e 1994). A minha intenção é a de demonstrar que, contra as
expectativas de Weber (e também contra a proposta evolutiva
implícita de Giddens), o Islão não parece incompatível com os
processos descritos como típicos da alta modernidade no que respeita
à construção do género e do self.
17 Tal como as mulheres dos Awlād Ali, também as marroquinas
utilizaram de diferentes modos a poesia da vida pessoal (Abu-Lughod
1986), como forma de expressão e reaferimento do self. O exemplo
mais bem documentado é o dos antigos cantos (arubi, corruptela de
rubai, que significa quadra) das mulheres de Fez, recolhidos por
Mohamed al-Fassi 5 . Estes cantos, à semelhança do amor cortês dos
trovadores e daquilo que acontece em outros contextos islamizados
6 , eram por vezes pronunciados de forma travestida, dirigindo-se

neste caso a amores masculinos utilizando o feminino:


Considerez moi comme un esclave.
Je ne compte plus parmi les hommes libres.
Et cherchez la personne que j’aime pour qu’elle m’achète.
Dites: “C’est un jeune esclave amené de loin par des commerçants....”
18 Tal como as ghinnāwa dos Awlād Ali, este tipo de poesia fornece às
mulheres um outro vocabulário, uma outra linguagem paralela à da
ideologia hegemónica. Esta linguagem alternativa, como Abu-Lughod
sugere, ao permitir a expressão das suas experiências mais íntimas,
pode permitir-lhes também a sua vivência (1986: 258). Como
sublinha al-Fassi, o que é surpreendente nestes poemas é o facto de,
apesar da redundância no mesmo sentimento amoroso, não emanar
deles nenhuma monotonia ou uniformidade: cada um exprime o
amor de modo próprio e pessoal. Assim sendo, mesmo no quadro pré-
moderno da antiga sociedade fassi em que os arubi eram declamados, a
recorrência a outras ideologias que não a do Islão para a expressão da
vida pessoal era evidente.
19 Também noutros contextos, como o do meio pobre e popular em que
trabalhei em Salé, o quadro tradicional fornece linguagens
alternativas à hegemónica, que permitem às mulheres a construção e
reconstrução do self de forma integrada na tradição. Aos tons da
clausura com que o imaginário ocidental pintou os haréns,
correspondem paletas multicolores de uma sociabilidade feminina
intensa que lhes oferece múltiplas ocasiões ritualizadas de encontro,
exibição e reaferimento do self por consenso. Em 1996 (1996b),
demonstrei como estes momentos rituais são lugares de práticas
comunicativas, que vão desde a partilha das angústias de cada uma
nos marabutos (santos locais) ou nas lilâ-s (noites de dança
extáctica), à exibição das indumentárias e dos talentos musicais e
dançarinos nas sb’u-s (celebração do nascimento), passando pela
ostentação do ājr (mérito religioso) na Peregrinação, pela
generosidade no Ramadão, pela haxūmā (vergonha, pudor) comedida,
alternada com o desembaraço nos casamentos. Estas ocasiões rituais
podem ser encaradas, sob o ponto de vista da antropologia das
emoções, como palcos para performances comunicativas (Lutz e Abu-
Lughod 1990), como práticas discursivas para o exercício da retórica
que permite a definição do self, testado e negociado na interacção
social, ultrapassando de longe a imposição unidireccional das
posturas ditadas pela tradição, embora testem nos tempos
ritualizados os seus limites sociais (Cardeira da Silva 1996b: 205-254).
20 Hoje em dia, num quadro aberto e dinâmico de globalização, os
idiomas multiplicam-se e as mulheres podem recorrer a discursos
variados, de modo articulado ou fragmentário, para a definição da
sua auto-identidade e para a construção do género. E fazem-no, com
uma perícia para a rentabilização dos escassos recursos simbólicos
treinada pela tradição e pela sua condição social. Em 1996,
demonstrei também, por exemplo, como as matinées em torno da
televisão e do vídeo são plenamente integradas nos estilos de vida da
medina. Ao visionar em vídeo uma cerimónia de casamento as
mulheres podem discutir a vida de cada um dos participantes,
admirar indiscretamente cada um dos convidados em busca de
cônjuges potenciais para as filhas ou filhos, obter in loco informações
a seu respeito, actualizar as suas referências sobre a moda feminina,
enfim, fazer tudo aquilo que fariam se lá estivessem, mesmo sem
serem convidadas.
21 A televisão e o vídeo, ao contrário de acentuarem a fenda entre o
local e o global, alargam — em quantidade e profundidade — as
formas de interacção preexistentes. Mais do que introduzirem novos
códigos, esses instrumentos são postos ao serviço de redes e valores
familiares, transformando as visitas singulares em fora femininos
mais alargados e actuando como “multiplicadores de redes”. Com
outra função, os vídeos de xikhâ-s permitem experimentar os limites
possíveis da definição de um self feminino para além dos
constrangimentos públicos sobre o corpo enunciados pelo discurso
hegemónico masculino, mas mediado pelo consenso social da
assistência feminina 7 . Televisão, vídeo e radio medina (ou telephone
arabe — os rumores e boatos que circulam intensamente na medina),
são canais privilegiados de uma informação que as mulheres
recolhem e multiplicam nas suas visitas: uma parte é armazenada
com o stock de referências para a definição de um self feminino; outra
como poupança simbólica para os investimentos domésticos
próprios à sua condição de intermediárias entre a casa e o mundo
(1996b: 167-172).
22 Como Eickelman referiu 8 para o Médio Oriente, a proliferação de
meios de comunicação utilizados informalmente (fotocópias que
circulam de mão em mão, cassetes audio e vídeo, espectáculos
semiclandestinos) desafia — ao fragmentá-la — a autoridade e recria
os modos como a política e a religião são percebidos e reimaginados.
E como Giddens diz, para o Ocidente, o “self é hoje para todos (...) um
projecto levado a cabo no interior de uma profusão de recursos reflexivos:
terapia e manuais de auto-ajuda de todos os tipos, programas de televisão e
artigos de revista.” (1995 [1992]: 21). O que separa os contextos não é
tanto a forma senão o conteúdo; não são tanto os processos, senão os
adereços culturais em stock.

O corpo de plástico
23 O tema de Tabit manteve-se durante algum tempo como tónica de
conversa na medina.
Aicha começou então a fazer descrições das barbaridades com a crueza que
caracteriza as mulheres da medina e por fim a ironizar, sobretudo quando se
tratava das cenas com henna [as descrições das sevícias que circulavam na medina
incluíam detalhes com pinturas de henna sobre os corpos das vítimas], que não
sei se se passaram de facto. O cúmulo da crueza e do humor cortante é sem
dúvida Miriam quem o consegue: quando se falou de um médico envolvido no
caso que repunha o hímen das vítimas e que provocava abortos, ela disse: “Um
fazia, o outro desfazia, ou vice-versa”. E riram todas.
24 A reposição do hímen não é um fenómeno meramente proverbial em
Marrocos. De resto, autores como Guessous (1989) referenciam-no a
par de outras tácticas adaptativas do corpo e da sexualidade aos
constrangimentos sociais. Na verdade, a inadequação entre normas
islâmicas e sociais a propósito da sexualidade e as práticas sexuais
correntes é por vezes tão desconcertante que um olhar estrangeiro
desprevenido, conhecedor apenas dos estereótipos de uma literatura
largamente divulgada no Ocidente e que acentua a rigidez dos códigos
islâmicos, pode aí encontrar alguma hipocrisia. Lembro-me de ficar
surpreendida com as primeiras conversas com as mulheres da medina
que, provavelmente também de modo provocatório (porque as
mulheres sabem bem o que se diz no estrangeiro a respeito delas),
discorriam brejeiramente sobre o assunto envolvendo mesmo
(também provocatoriamente) alguns homens nas suas interpelações.
Existem espaços e tempos especialmente apelativos para a conversa
sobre temas sexuais: o hammām e o mês do Ramadão (em que a
abstinência é sobrecarregada pela malícia feminina que condimenta
o fTūr — refeição que quebra o jejum — com produtos afrodisíacos)
são os paradigmas disso. Mas a fluência sobre o assunto ultrapassa-os
e perpassa as conversas quotidianas onde são reconhecidos prazeres
e desprazeres e descritas anatomias. Para além disso, existe mesmo
um acervo considerável de técnicas mais radicais — quando a
cosmética não funciona — de atrair os homens, de torná-los mais ou
menos fogosos, enfim, uma panóplia cujos segredos femininos
mesmo eu fui obrigada a comprometer-me a não desvendar.
25 Giddens fala da importância do desenvolvimento moderno de uma
sexualidade plástica para a democratização da intimidade em curso
nas sociedades ocidentais (1995 [1992]). Resume-a como uma
sexualidade desligada da sua conexão ancestral com a reprodução,
com o parentesco e com as gerações. Ora em contexto marroquino, o
primeiro obstáculo a uma sexualidade plástica (isto é, no seu sentido
mais restrito, isenta do medo com que a sua associação à anatomia o
sobrecarrega) é o controlo sobre a virgindade, que é exercido não
apenas pelo marido mas pelos dois grupos domésticos envolvidos no
casamento, e pela exibição do lençol do desfloramento. Este primeiro
obstáculo pode, no entanto, ser contornado pelo menos de três
modos: pela reposição cirúrgica do hímen; pela falsificação da
mancha virginal no lençol — através da sua substituição pelo sangue
de um animal, implicando a conivência do noivo, à qual não se
esquiva necessariamente, pois as represálias sociais também o
atingiriam independentemente da responsabilidade na transgressão;
pelo exercício de uma sexualidade que procure o prazer em práticas
alternativas à penetração.
Sumia andava muito preocupada, porque Uacila — sua sobrinha, ainda noiva —
dormia frequentemente com o seu namorado. Ela não tinha, no entanto, coragem
para falar com a rapariga. Como Uacila costumava vir a casa de Miriam fumar
uns cigarros — o que instalara alguma cumplicidade entre as duas —, pediu a esta
que lhe dissesse alguma coisa. Uacila virou-se para Miriam e disse-lhe: “Eu não
sou parva: nós dormimos juntos, mas eu não tiro as cuecas, e temos prazer assim,
sem penetração.”
26 A tal ponto é comum a contravenção das normas sexuais explícitas
que o desvio passa a ser, em alguns momentos, culturalizado: fazer
amor a la marocaine é a designação corrente para esse tipo de relação
sexual sem penetração vaginal efectiva, praticada por algumas
raparigas antes do casamento sem pôr em risco a sua virgindade.
27 O segundo obstáculo para uma sexualidade plástica é o da associação
da actividade sexual à reprodução. Mas também esse tabu é
ultrapassável de vários modos.
Tinham-me dito que muitas das mulheres que “iam com homens” em Kenitra 9

vinham de Salé. Quando o referi a Miriam, ela confessou-me que era verdade,
apontando algumas das nossas conhecidas. Depois de refeita do espanto
perguntei-lhe porque o faziam, ao que ela me respondeu que era apenas para se
divertirem e para terem dinheiro para jilābâ-s e pulseiras. Fez-me depois ver que
— ao contrário das raparigas mais novas que o faziam, muitas vezes, como modo
de subsistência — estas eram em geral mulheres casadas, mais “atractivas para os
homens” por estarem protegidas pelo casamento do tabu da virgindade ou de
uma eventual gravidez.
28 Embora os métodos contraceptivos sejam relativamente difundidos
em Marrocos, a sua utilização não é ainda regular nalguns meios
populares. Para além disso, sendo os métodos femininos — como a
pílula — os mais correntes, os homens nem sempre confiam na sua
“eficácia” (não confiando também, de um modo geral, nas mulheres),
pelo que são as casadas — ultrapassado o estigma da virgindade e
com a gravidez legitimada pelo casamento — que dispõem de mais
liberdade para uma sexualidade conjugal ou extraconjugal que, na
verdade, algumas praticam a coberto da sua protecção institucional.
O tabu da virgindade faz com que homens e mulheres se relacionem
mais descontraidamente depois da “primeira vez”. Os homens não
temem assim ser acusados de um crime mais grave do que o próprio
adultério e as mulheres, tendo escapado já ao controlo sobre a sua
virgindade têm, apesar de tudo, mais liberdade para a infidelidade.
29 Deverá isto tudo ser simplesmente encarado como subversão ou
desvio, ou mesmo hipocrisia? Pode ser, mas isso limita-nos
novamente a uma noção de cultura essencialista, estática e
imperturbável ao uso que as pessoas fazem dela, eventualmente
moralista, inspirada num modelo do pecado cristão. É talvez nessa
linha que, em 1992, Bouhdiba reage exaltadamente a algumas
apreciações ocidentais sobre a sexualidade no Norte de África,
denunciando o simplismo orientalista da dicotomia proposta entre
condutas aderentes e não aderentes à tradição. O seu contra-
argumento de fundo é o de que o Islão e as suas interpretações
magrebinas são, por si, integrativos de práticas “desviantes”, através
de teorias tampão que fornecem um sistema institucionalizante da
sexualidade, suficientemente plástico para minimizar os efeitos
sociais de práticas pouco conformes. Falando da complacência
original da xarīa, ele refere a aplicação da pena máxima para o
adultério apenas quando cometido entre duas pessoas casadas
legalmente e na situação (improvável) de que quatro homens
testemunhem ter visto os órgãos sexuais dos envolvidos. A esta
cláusula ardilosa poderíamos juntar muitas outras, como as que,
durante o período de jejum do Ramadão, proíbem aparentemente a
relação sexual mas fazendo apenas referência explícita à ejaculação.
Desta engenhosa “racionalidade” islâmica falaremos adiante. Para já,
são sobretudo as teorias tampão — que se constituem de modo
complementar ao Islão sobre a vida quotidiana dos magrebinos — que
melhor confirmam essa ideia de plasticidade integrativa que
Bouhdiba quer acentuar para os códigos sexuais. A mais
interessante, para mim, é a teoria do bebé adormecido (al raGad).
Miriam contou-me como uma mulher sua conhecida, passados dez anos de o
marido ter morrido, foi ao médico e este lhe disse que ela estava grávida. O filho
mais velho, já grande e casado, que sabia que a mãe não era uma puta, deu uma
grande festa no dia nascimento do irmãozito. Uma outra mulher sua vizinha teve
três filhos com uma gravidez de sete anos para cada um. Um destes rapazinhos
brincava no grupo de amigos do filho de Miriam, onde era conhecido pelo “Rapaz
dos Sete Anos”.
30 A função integrativa desta teoria, a margem de manipulação da
paternidade que concede às mulheres e a possibilidade de inscrição
de um projecto no seu corpo, não deixa de ser surpreendente, embora
ela deva ser também entendida de modo mais lato como uma medida
preventiva da sexualidade ilegítima (zīna). Até 1957, o regime
malikita (o sistema jurídico em vigor em Marrocos, fundado por
Maliki, que se diz ter sido, ele próprio, um bebé adormecido)
contemplou-a e, mesmo hoje, na Moudawwana — Código do Estatuto
Pessoal — é visível a sua influência no artigo 76, que refere que em
situação de dúvida relativamente à gravidez de uma mulher passado
um ano do divórcio ou da morte do seu marido o caso deve ir a
tribunal e ser decidido em função de observação médica. Embora
tenha perdido a sua sanção legal, a teoria do bebé adormecido
continua a ser eficaz em termos sociais (pelo menos em meios
populares), denunciando o princípio de uma matrifocalidade real,
reforçada pela entrada das mulheres no mercado de trabalho (Mir-
Hosseini, 1991).
31 Muito foi escrito sobre esta teoria, mas é interessante referenciar a
curiosidade que ela espoletou entre os ginecologistas franceses
(Champagne 1955; Jahir e Bousquet 1946; Lalu (Ksiri) 1954),
paradigmas do instrumento do biopoder assinalado por Foucault. Em
primeira instância, o que a crença no bebé adormecido demonstra é
o acolhimento social de uma sexualidade desvinculada dos seus
constrangimentos naturais. Mas existem outros dispositivos
tradicionais que vão nesse sentido. Uma técnica tradicional que pode
permitir a negociação da sexualidade simétrica à do raGad é o
recurso à prática da tqāfâ. O termo indica a noção de fechamento —
fechamento do corpo — e refere-se a formas de shur (feitiçaria) que
podem utilizar o henna das noivas na festa que antecede a do
casamento ou outras tácticas para impedir a penetração sexual ou,
simetricamente, a impotência aos homens. Todos estes estratagemas
são bem o exemplo dos expedientes culturais vários para justificar
socialmente a impotência ou a esterilidade, mas, novamente,
também devem ser interpretados como idiomas que podem ser
manipulados e negociados para justificar escolhas pessoais.
32 O que eu estou a tentar aqui dizer é que existem neste Islão local e
popular disposições várias que desvinculam a sexualidade da
anatomia bruta, quer isso seja feito pela própria ortodoxia ao criar
zonas de vazio interpretativo, pela feitiçaria ao justificar insucessos,
ou por teorias socialmente aceites que legitimam o que
naturalmente seria ilegítimo. Criado este espaço de manobra
treinado tradicionalmente, que permite a integração de condutas
sexuais teoricamente desviantes, as práticas da reposição do hímen
ou do amour a la marocaine deixam de ser tão surpreendentes: elas
seguem uma lógica tradicional que continua de certa forma a
submeter o corpo, mas não necessariamente a sexualidade.
33 Existe porventura algo de mais profundo no Islão que permite esta
paradoxal “liberdade” sexual: a ideia de poluição. Muito foi escrito
sobre a ausência da noção de pecado no Islão e da sua substituição
pela ideia de impureza que, na praxis islâmica, se traduz na
preocupação quase ansiogénica com a purificação, tanto pelas
abluções como pelo jejum (cf. Bouhdiba 1964; 1982 [1975]). Esta
orientação colocaria as sociedades islâmicas no grupo daquelas que,
naquilo que respeita a regulamentação dos instintos, privilegiam a
estratégia das regras de conduta segregacionistas, em detrimento da
interiorização dos interditos sexuais durante o processo de
socialização (Murdock 1965). Já em 1996 (1996a) sublinhei a
facilidade com que o discurso sobre a abstinência é transformado em
discurso higienista ou/e, de certo modo, calvinista, no sentido em
que demonstra a capacidade individual de autocontrolo e contenção.
O mesmo pode ser aplicado às abluções hoje justificadas não pelas
“impurezas da alma” mas pelos “micróbios” do corpo. Desse ponto
de vista, e independentemente do seu sentido original, a assepsia
islâmica, contrária ao imaginário luxuriante de Weber, coaduna-se
bem com o discurso higienista racional da modernidade. Na verdade,
ela permite queimar as etapas do depuramento moral pelo
ascetismo, até chegar a um controlo racional sobre a sexualidade e o
corpo individual. De um ponto de vista mais lato, e isto merece
desenvolvimento, esta é mais uma pista que nos permitiria
contradizer o princípio weberiano da “irracionalidade” implícita às
religiões orientais e a ideia de que o Islão, vinculado ao princípio da
predeterminação (Weber 1967 [1947] 130: 37) inibe a emergência de
narrativas individuais.

“Quantos Tabits medram entre nós?”


34 Giddens relega a violência, nos quadros pré-modernos, para os
espaços tradicionalmente feminizados e sobre os quais os homens,
enquanto indivíduos, exercem o seu controlo de forma mais
evidente: a casa (1992: 84-85). A casa é ao mesmo tempo o espaço de
eventual prepotência masculina, mas também de protecção
feminina; sair dela é, para a mulher, incorrer no risco de ficar sujeita
a outro tipo de prepotências. Eu diria que hoje em Marrocos — onde
encontramos, nesse sentido, traços daquilo que Giddens chama de
pré-modernidade —, as mulheres estão conscientes destas
armadilhas e que a tensão constante nas suas relações com os
homens passa pela alternativa entre a sujeição a um despotismo
tradicional e as diferentes formas de arbitrariedade masculinas a que
ficam expostas pela insurreição. Fora das “unidades de segurança”
tradicional (dar), as mulheres podem apenas contar com a protecção
que o Estado lhes assegure; e assim sendo — retomamos Giddens — a
violência que ali se pode instalar depende, até certo ponto, do grau
de prepotência dos sistemas sociais e políticos em acção. Ora como
Mernissi refere, tentando explicar o estado de anomia que caracteriza
as relações entre sexos em Marrocos, a crise é o reflexo de um
processo abortado de evolução sexual prometido pelos movimentos
nacionalistas, no qual as reivindicações feministas não conseguiram
impor-se como modelos legítimos nos aparelhos ideológicos depois
da independência. Isto faz com que a situação actual seja
caracterizada por uma contradição flagrante entre os novos direitos
das mulheres para utilizar espaços tradicionalmente masculinos — a
rua, as salas de aula, os escritórios — e a ideologia tradicional que os
interpreta como uma violação de propriedade (Mernissi 1983 [1975]:
178). É esta situação que conduz à síndroma do peur-modernité (idem
1992). Se interpretarmos assim as coisas, o tipo de violência em causa
será de uma terceira ordem, inscrito num vazio ideológico entre a
ordem patriarcal e a modernidade. Mais ainda do que um estado
moderno, aberto ao risco como Giddens o refere, este estado de coisas
está aberto à violência entre sexos, espoletando agressividades
bilaterais, no sentido em que, para além de constituir um desafio à
masculinidade clássica, não assegura qualquer tipo de garantia às
mulheres. Se os homens são violentos para com as mulheres, porque
perderam o controlo sobre elas, as mulheres são agressivas para com
os homens, ressentidas pelo malogro das promessas de emancipação
pelas quais pagaram a segurança tradicional agora perdida.
35 “Os homens são bons para cortar aos bocados e meter em sacos de
plástico”, disse-me Aicha, exprimindo bem essa amargura cortante
perante o “macho”. A agressividade face ao “sexo oposto” na medina
não é apanágio dos homens, embora eles a transformem mais
facilmente em violência física. Para além de um manancial de
sabedorias (shur — feitiços) e aliados tradicionais a que continuam a
recorrer (jnūn — génios —, marabutos, outros especialistas — qāblat,
fqih-s, etc. —, pais, mães, irmãos, outros parentes e vizinhos), as
mulheres contam hoje com o potencial acrescido de represálias
contra os homens pelo facto de entrarem progressivamente no
mercado de trabalho e nos circuitos da educação. E mesmo quando
nos meios mais populares a panóplia feminina ostenta apenas os
antigos — mas temidos — feitiços, a sua força é maior, quanto mais
não seja pela vulnerabilidade que espreita os homens sós,
desarmados que foram os grandes grupos agnáticos em detrimento
dos laços maternais, ou substituídos por novas redes de proximidade
e vizinhança cuja manutenção fica amplamente a cargo das mulheres
(Cardeira da Silva 1996b). Ademais, elas beneficiam também,
circunstancialmente, da ordem tradicional que o Estado assume e
que as liberta do controlo político institucional, tantas vezes
violento, o que lhes permite, paradoxalmente, uma liberdade de
expressão e movimentação que, em muitas circunstâncias, é maior
do que a dos homens 10 .
36 Poucos meses depois do caso Tabit, perante um público de milhares
de pessoas em Agadir, as raparigas do coro de Ahmad Sanussi — um
popular entertainer mal-querido politicamente — dançavam cantando
um refrão ambíguo:
Quantos Tabit medram entre nós?
A nossa sociedade está fora de controlo,
Sem remorso 11 .
37 Dir-se-ia, com Mernissi, que este era um canto épico das mulheres
contra as grilhetas islâmicas. Concordaria com ela, menos no tom
épico e colectivo da revolta. Mernissi procura força feminina na
frustração de uma promessa de modernidade falhada que é, talvez,
aquela que move as jovens letradas mais libertas de
constrangimentos sociais e económicos. Não são, por certo, as
mulheres da medina de Salé que encontramos no coro (nem na
plateia) de Ahmed Sanussi. Eu procuraria antes o impulso das
transformações no lugar mais profundo da intimidade doméstica, onde
as mulheres da medina gozam o legado intocável da modernidade — o
da maternidade — e tecem sobre ele uma democratização por dentro,
com os pontos treinados nas longas matinées de partilha e
sentimento que agora ensinam também aos seus filhos, homens e
mulheres. É talvez esta via, lenta, informal e interna, aquela que
melhor pode contrariar a ideia de uma oposição essencial entre Islão
e democracia.
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NOTAS
1. Um período de vinte meses — entre 1991 e 1993 — em que desenvolvi trabalho de campo
com vista à minha tese de doutoramento: Redes e Enredos na Rua de Mul Habib. Tácticas e
Enunciados da Contemporaneidade entre as Mulheres da Medina de Salé. Este meu trabalho foi
apoiado, em diferentes períodos e de modos diferentes, pela Junta Nacional de Investigação
Científica, pela Fundação Calouste Gulbenkian e pelo Centro de Estudos Africanos e
Asiáticos do Instituto de Investigação Científica e Tropical.
2. Muitas vezes com a cumplicidade ambígua dos autores muçulmanos. Veja-se, por
exemplo, Mernissi 1992: 247 n 10.
3. O próprio texto corânico parece já preocupar-se com os distúrbios eventuais decorrentes
das suas disposições, impondo aos polígamos a obrigatoriedade de uma distribuição
equitativa de bens e afectos pelas esposas, no que algumas leituras mais conciliatórias vêem
uma forma subtil de proibição. A Moudawwana — código do estatuto pessoal e das sucessões
em Marrocos — prevê, no seu artigo 31, a possibilidade de a mulher exigir compromisso de
monogamia ao marido no momento da acta de casamento, permitindo-lhe o divórcio em
caso de não cumprimento por parte do cônjuge.
4. De um modo geral, as representações das mulheres marroquinas sobre o género no
Ocidente apresentam-se, em muitas vertentes, simétricas àquelas que o orientalismo
projectou no Oriente e, ao mesmo tempo, cruzadas com as do imaginário relativo aos
homens. Para elas, os homens europeus, ao contrário das mulheres, são apresentados com
uma sexualidade mais controlada do que os seus compatriotas, o que pode ser interpretado
contextualmente de forma positiva — contra a “bestialidade” dos machos marroquinos — ou
negativamente como impotentes pelo facto de não serem circuncisos — quando entendidos
como representantes de outra “religião”.
5. Não foi por acaso que a recolha foi elaborada por al-Fassi, uma das figuras proeminentes
do renascimento nacionalista marroquino, cujo empenho na revalorização das mulheres
enquanto guardiãs da identidade cultural foi evidente.
6. Como na Mauritânia: Aline Tauzin, comunicação verbal.
7. Hannah Davis (1990) fala também do visionamento de vídeos pornográficos e da sua
função catalisadora relativamente às representações sobre a sexualidade em meio popular
marroquino.
8.Conferência não publicada de Dale Eickelman na FCSH — UNL, Dez. 1996:
“Communications and the Fragmentation of Authority in the Middle East and North Africa”.
Ver também Eickelman & Piscatori 1996.
9. Kenitra é uma cidade a cerca de trinta quilómetros de Rabat que, tal como Salé, preservou
de certa forma a ordem espacial — e não só — da capital. Acolheu a miséria dos migrantes
que a procuraram não como cidade, mas como franja urbana de Rabat capitalizada pela
colonização francesa.
10. Em Marrocos, por exemplo, o porta-voz oficioso de um dos líderes fundamentalistas
mais carismáticos é a sua filha.
11.Tradução livre com base no texto em inglês cedido por Dale Eickelman: © 1993.
Translation from Moroccan by Rachid Aadnani and Dale Eickelman © 1995. A tradução
inglesa sublinha a ambiguidade do título e do refrão: La Tabet — “não a Tabit” — pode
também significar em dialectal “sem remorso”. Sublinha ainda a recorrência ao termo siba
(fora de controle) que na história marroquina designou os grupos tribais rebeldes à política
central (makhzan).

RESUMOS
Seguindo um argumento anterior, tento aqui encontrar vestígios das transformações da
intimidade que Giddens detectou na modernidade ocidental entre as mulheres de um bairro
popular da medina de Salé, em Marrocos. Começo pela interpretação do processo reflexivo
espoletado em torno do Tabitgate (1993) — o caso de um comissário da polícia que violou
centenas de mulheres — e prossigo etnograficamente outros domínios que sugerem, contra
Weber e seus seguidores, que existem dispositivos islâmicos abertos à modernidade no que
respeita a concepção do corpo e do self como projectos individuais e racionais. Argumento
também que só através da análise dos contextos informais e domésticos em que as mulheres
desenvolvem as suas redes sociais se podem compreender as noções de pessoa, self e
comunidade, bem como o modo como o género e a religião são reimaginados num processo
de bricolage que recicla tradição e modernidade.

Following a previous argument I will try to find traces of the transformations of intimacy
which Giddens found in the western modernity among women of a Moroccan lower class
quarter in the medina of Salé. I begin with the interpretation of the reflexive process built
around the Tabitgate (1993) — the case of a police officer which raped hundreds of women —
and pursue ethnographically through a number of domains that suggest, against Weber and
his followers, that there are some Islamic predisposals for modernity in what regards the
body and the self as individual and rational projects . I will also argue that only through an
assessment of the informal and domestic contexts in which women form social
relationships may one attain an understanding of the ideas of person, self , and community,
and get a sense of how gender and religious roles are reimagined through a bricolage which
makes it difficult to separate the traditional from the modern .
AUTOR
MARIA CARDEIRA DA SILVA

Departamento de Antropologia Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (UNL) Av. Berna,


26-C, 1050 Lisboa
O corpo e a busca de lugares da
perfeição: escritas missionárias da
África colonial portuguesa, 1930-
60 1
Paulo Valverde

Introdução: a emergência do tema


missionário e a questão da corporalidade
1 As experiências missionárias estimularam, a partir do final dos anos
70, um notável conjunto de estudos filiados em diversas tradições
disciplinares 2 . Além dos inevitáveis efeitos de moda — que podem
ser parcialmente dissipados pela possibilidade de análise de quase
vinte anos de reflexões —, é surpreendente notar como o interesse
nesta temática se articulou estreitamente com alguns dos esforços,
por vezes marginais, que forjaram a transformação das ciências
sociais contemporâneas. Os estudos antropológicos e historiográficos
sobre os missionários não se limitaram à compilação de materiais
empíricos suplementares — decerto importantes — para melhor
compreender as vicissitudes dos projectos coloniais e religiosos. Em
alguns dos autores mais significativos (v. g. Beidelman 1982;
Comaroff 1985; Comaroff e Comaroff 1991; 1992), foi, em particular,
valorizada a afinidade electiva entre os projectos de evangelização
missionária e a reconstrução do corpo e da subjectividade quer dos
habitantes das terras de missão, quer dos próprios missionários. Por
isso, não surpreende que estes antropólogos tendam a atribuir aos
missionários uma vocação especial para situar as suas lutas nos
campos da subjectividade. Este reconhecimento permite, ao mesmo
tempo, ligar os estudos missionários a uma das questões mais
influentes da antropologia contemporânea: a corporalidade e a
pessoa humana e os modos socialmente diversos de as fazer e dizer.
Isto é, uma temática que parece usurpar, neste final de século, o
lugar da “cultura” e da “sociedade” como sujeito prioritário da
indagação antropológica (cf. Taylor 1996: 201) 3 .
2 As praxis missionárias e a sua organização textual oferecem, assim,
um excelente estudo de caso para avaliarmos os modos de
experiência e de avaliação do corpo no contexto de um grupo
eurocêntrico que manifesta a particularidade de uma confrontação
existencial penosa e, muitas vezes, fatal com terras e hábitos
diferentes. Trata-se, porém, de modos de experiência plurais,
algumas vezes ambíguos e conflitivos, independentemente de o
referente ser o corpo alheio e repulsivo — o dos habitantes das terras
de missão — ou o corpo próprio, aquele só aparentemente familiar.
Seja como for, ao invés do que Michael Jackson sugere para o caso da
burguesia (1989: 121), é possível reconhecer que, entre os
missionários — que, a partir da segunda metade do século XIX ,
constituíram sectores influentes, mesmo no seio da burguesia
europeia hegemónica, em especial a sua facção colonial e
imperialista —, os modos de conceber e descrever o mundo e a sua
transformação não “eterealizam” o corpo. Apesar da suspeição face
às surpresas do corpo, apesar da “negação do somático” quando o
corpo suposto desregrado e dissoluto está em questão, apesar de a
recusa da materialidade e da biologia ser a condição prioritária para
a produção da utopia do reino de Deus, é também na base de uma
corporalidade purificada e virtuosa — uma espécie de androginia
conceptual — e de uma linguagem dominada por tropos somáticos
que são pensados o lugar da Igreja neste mundo e a própria
possibilidade da conversão e da salvação e, portanto, da
transformação do mundo presente.
3 Inscrevendo-se numa longa tradição antropológica de suspeição face
aos agentes missionários (cf. Bonsen et al. 1990; Van der Geest 1990;
Valverde, 1992b), Thomas O. Beidelman, em 1982, num dos livros
mais influentes nesta área de estudos — e, a par da biografia de
James Clifford sobre Maurice Leenhardt, também publicada em 1982,
um dos textos fundadores deste novo interesse antropológico —,
argumentou que as missões cristãs representaram a faceta mais naïve
e etnocêntrica do projecto colonial (1982: 5-6). Segundo Beidelman,
ao contrário dos administradores e dos colonos, que visavam fins
limitados (por exemplo, ordem, tributação, lucros, trabalho barato),
os missionários pretendiam uma transformação radical dos povos
locais ao nível das crenças e das praxis : pretendiam uma
“colonização do coração e da mente” e também uma “colonização do
corpo” ( ibid .: 6). Beidelman considera, assim, que o trabalho de
dominação missionária privilegia a pessoa humana na sua
pluridimensionalidade. Nesta leitura, é sublinhado o facto de a
materialidade da dominação, ambicionada pelos diversos projectos
missionários, possuir um carácter ontológico, tentando, em
particular, remodelar a pessoa, os seus limites e o seu lugar no
mundo. O exercício da violência colonizadora dos missionários seria,
por isto, um exemplo da violência simbólica teorizada por Pierre
Bourdieu (1980: 216-220). O carácter fracamente politizado destas
modalidades de dominação parece inibir a articulação das
mensagens e das práticas de resistência, apesar de os seus efeitos
poderem ser quase indeléveis na corporalidade e na história pessoal
de cada ser humano. Alguns autores, por exemplo Jean Comaroff
(1985), sugeriram que, por este motivo, o êxito do trabalho da
propaganda missionária foi, em alguns casos, tão radical que, depois
de uma tradição de longas décadas de luta e crítica anticolonial, as
ideias religiosas e sociais difundidas pelas denominações
missionárias continuam hoje a ser influentes ou mesmo
hegemónicas. E, numa perversidade quase irónica, os grupos
religiosos contestários e dissidentes tendem a reutilizar os mesmos
dispositivos ideológicos e simbólicos — ou as suas exactas antíteses
— que sustentam os programas missionários sobre o mundo.
4 A despeito das limitações de algumas críticas dirigidas aos
missionários -que, algumas vezes, desconhecem a relativa
heterogeneidade das suas ideias e das suas práticas, em particular
entre denominações católicas e protestantes, que tendem a
preservar o estereótipo dos missionários como clones caricaturais de
David Livingstone e que, fundamentalmente, subestimam a
capacidade de resistência e de criatividade das populações locais 4
—, estes textos valorizam, assim, um aspecto fundador das praxis
missionárias e das reflexões que os missionários articularam sobre si
próprios e sobre aqueles que desejavam missionar. Ou seja, tal como
notei antes, além do — ou mais do que o — trabalho de conversão
religiosa, os missionários — por exemplo, pelos seus domínios
electivos de acção social que são a saúde e a educação —
privilegiaram a reformulação dos sistemas de incorporação e as
dimensões mais íntimas e obscuras da subjectividade e de um
conjunto de praxis corporais cuja importância, em termos da
reprodução das relações de poder só mais recentemente foi
sublinhada (cf. Bourdieu 1972, 1980; Foucault 1976, 1984a, 1984b). Em
suma, a ênfase missionária nos domínios da subjectividade e do
corpo e a utilização de um discurso baseado em conceitos morais e
metafísicos, que anunciavam a salvação futura e que podiam esboçar
mesmo “um sentido de eternidade no presente” (cf. Murdoch 1987:
6) — um presente muitas vezes opressivo para os habitantes locais —,
cumpre a função ideológica da moralidade, nos termos de Max
Horkheimer: a transposição de problemas socioestruturais para as
vidas interiores dos indivíduos (cf. discussão em McCarthy 1994: 24
ss.).
5 Porém, a componente politizada e, por vezes, repressiva das práticas
e das avaliações sobre o corpo que encontramos, de um modo
generalizado, entre os missionários até aos anos 1960 não deve fazer-
nos deslizar para o maniqueísmo. É necessário interler esta
componente com os trajectos problemáticos e, muitas vezes,
angustiados de pessoas — os missionários — em mundos real ou
imaginariamente hostis. E a articulação do corpo com a linguagem é,
neste aspecto, importante. De facto, a corporalidade e os recessos da
pessoa humana — conceptualizados segundo os cânones judaico-
cristãos que insistem na fissura ontológica entre o interior e o
exterior do ser humano — fornecem, em profusão, metáforas e
linguagens por vezes sofisticadas para os missionários analisarem as
suas experiências. Devo acrescentar, em ligação com uma concepção
pragmática da produção linguística (cf. Crapanzano 1992: 301) — que
admite que a linguagem, os seus significados e as suas sonoridades
podem gerar, potencialmente, efeitos de transformação no real de
que fazem parte e que, ao mesmo tempo, reexprimem —, que as
narrativas missionárias são mais do que simples estórias mais ou
menos interessantes. Em muitos casos, elas são o lugar de
refundação e de reenergização da praxis social missionária que nelas
reencontra um conjunto de prescrições programáticas para não só
tornar coerentes e legitimar as acções passadas — que, a despeito da
sua complexidade existencial, são relidas na base apriorística do
pensamento cristão que retira, em parte, a sua eficácia de
legitimação da sua longevidade duplamente milenar —, mas também
para orientar as acções presentes e futuras. Seguindo a sugestão de
Victor Turner (1974: 67-8), na sua notável leitura da morte do bispo
inglês Thomas Beckett, sobre a importância dos root paradigms 5 ,
admito que há ideias particularmente influentes que, por vezes, nos
podem impelir, fatalmente, a adoptar projectos de morte que outros
já praticaram, no passado, e que outros celebraram pela oralidade e a
escrita. Em suma, paradigmas que, como foi o caso de muitos
missionários, nos podem impelir a partilhar a familiaridade trágica
de uma comunidade de sofrimento dotada da força do tempo longo.

Cristianizar, civilizar, portugalizar!


6 Neste texto, em que valorizo o lugar central de um conjunto de
reflexões de missionários sobre a qualidade das pessoas e, em
particular, da sua corporalidade, tomo como meu “campo de
coerência” (cf. Muchembled 1991: 129) diversas narrativas, redigidas
por missionários portugueses e estrangeiros 6 , sobre as ex-
colónias portuguesas de África, no período que vai dos anos 30 ao
início dos anos 60. A minha preocupação aqui não é refazer uma
história linear dos trajectos missionários e sim notar como, além da
maior ou menor efervescência dos acontecimentos quotidianos, há
determinados modos da acção humana e da sua descrição que
desfrutam de uma particular resistência histórica — o que é, decerto,
possibilitado por circunstâncias sociais favoráveis 7 .
7 A ideologia missionária católica portuguesa, no período histórico
seleccionado, que, no caso português, corresponde à vigência do
Estado Novo anterior à irrupção das guerras coloniais, pode ser
caracterizada, em termos gerais, pela confluência de três
constelações de ideias que designo de paradigmas: (1) o paradigma
da primitividade que, emergindo no século XIX , qualifica um
conjunto de populações, em particular as africanas, como
“primitivas”, ou seja, como a antítese do modelo da civilização
burguesa eurocêntrica (cf. Kuper 1988; Mudimbe 1988); (2) o
paradigma do sacrifício e da redenção que tende a enquadrar o
trabalho do missionário como uma imensa dádiva, realizada em
circunstâncias difíceis, podendo levar à morte, e que visa a salvação
dos africanos e, como corolário, a salvação do próprio missionário;
em alguns casos, a consequência é um exercício de auto-heroicização
do missionário; e (3) um paradigma ajustado à situação colonial
portuguesa que é traduzido na descrição frequente do projecto
missionário católico como um trabalho simultâneo que visa
cristianizar — ou antes catolicizar —, civilizar e portugalizar.
8 Este último paradigma foi celebrado por um vasto conjunto de
textos e possui uma longa genealogia iniciada no século XIX . O
pressuposto que fundamenta tal longevidade — e que solidariza
personalidades de quadrantes ideológicos diferenciados, mas todos
crentes na importância do colonialismo português — foi aquele
formulado, em 1944, pelo padre Clemente Pereira da Silva: “E o
Terceiro Império é um facto, um facto glorioso para o qual é preciso
chamar a atenção de todos os filhos de Portugal, porque, sem a
colaboração de todos eles, não poderá firmar-se, organizar-se,
desenvolver-se” (1944: 7); a vocação portuguesa é “ universalmente
humana e fundamentalmente missionária , (...) [os seus] esforços visarão
sempre a evangelização e civilização dos povos inferiores,
especialmente daqueles que a Providência Divina confiou a Portugal,
na convicção da unidade fundamental da Raça Humana, para além
das distinções acidentais de cabeleira, de lábios ou de pigmentação” (
ibid .: 9). Na realização da vocação portuguesa no mundo, os
missionários seriam cruciais, “sabido como é, nem hoje nenhum
espírito desempoeirado o nega, serem as Missões Católicas
Portuguesas o primeiro e mais eficaz meio de civilização ultramarina
e, portanto, de engrandecimento de Portugal” ( ibid .: 9).
9 Este conjunto de ideias foi quase hegemónico ao longo do período
estudado apesar dos usos diferentes por parte dos missionários
individuais, apesar de esporádicas figuras religiosas e, em particular,
missionárias claramente dissonantes, que surgem sobretudo a partir
dos anos 50, como, no caso português, o cónego Manuel das Neves,
presumível cérebro do assalto às prisões de Luanda em 4 de
Fevereiro de 1961 — que representaram o início da luta armada
anticolonial em Angola (cf. Agualusa 1996: 107-8) —, e D. Sebastião
Soares de Resende, bispo da Beira entre Dezembro de 1943 e Janeiro
de 1967. Estas ideias começaram a ser questionadas e a perder
importância só a partir dos anos 50 e 60 com as profundas mutações
intelectuais e políticas — em especial as independências de muitos
países africanos — deste período. Nesta conjuntura, foi também
fulcral a realização do Concílio Vaticano II, que levou a importantes
transformações no próprio interior das fileiras missionárias católicas
com a progressiva implantação das teses da “inculturação” que
ensaiaram formas de colaboração ou mesmo de fusão entre os
modelos católicos ortodoxos e os modelos locais ditos “tradicionais”
(cf. Hastings 1989). Até esta viragem, a influência dos referidos
paradigmas foi fundamental, a despeito de algumas excepções, nos
modos de cognição dos missionários sobre os africanos,
sobredeterminando os processos de conhecimento, descrição e
interpretação das populações das terras de missão — o que é
evidente, umas vezes de forma visível em textos decididamente
etnocêntricos, outras vezes funcionando como um sub-texto que
suporta descrições aparentemente mais liberais. A influência destes
paradigmas foi também, obviamente, relevante ao nível da acção
social, no modo como os missionários organizavam o seu
comportamento e, em particular, como interagiam com os africanos.
10 É com base neste quadro intelectual que melhor poderemos
compreender um dos temas mais constantes nos textos missionários
deste período, isto é, o corpo concebido, de forma mais ou menos
articulada, como uma espécie de tabula rasa que podia ser
manipulada, moldada, destruída mesmo, de modo a ser alcançado o
objectivo estratégico fundamental da missionação — a redenção,
obtida, no caso dos africanos não cristãos, pela conversão, que
permitia o acesso ao reino de Deus. A biologia do corpo — ou antes,
do corpo concebido à luz da cultura cristã e eurocêntrica — e o seu
papel poderoso como referente simbólico originam, na concepção
missionária e, mais em geral, católica do mundo, uma linguagem e
uma materialidade que são importantes não só para a comunicação e
a acção social neste mundo, mas também para a instalação de
utopias neste ou num outro mundo. O corpo como objecto simbólico
e pragmático, é um locus fundamental, embora não o único, para os
missionários agirem e pensarem a utopia, quer aquela que
corresponde ao reino de Deus, quer aquela, típica de uma fracção do
colonialismo português, influente nos anos 50 e 60, que corresponde
à tentativa de criação de um mundo luso-tropical (cf. Freyre 1958).
Nos textos missionários, são também importantes processos
simbólicos que se articulam com o corpo: a reconstrução da ligação
entre o sexo e o género; operações intelectuais — e, obviamente,
político-morais — que reconfiguram, simbolicamente, a escala do
corpo, por exemplo, a reconceptualização de homens e mulheres
como crianças, ou que reconfiguram o próprio estatuto ontológico
dos seres humanos africanos, confundindo-os, por exemplo, com a
animalidade e o diabólico e excluindo-os da temporalidade.

O corpo como lugar de salvação: o corpo


sacrificial e a metáfora do corpo andrógino
11 No caso dos missionários, à semelhança do que ocorre com outros
religiosos, mas talvez de uma forma mais dramatizada, o
cristianismo reorganiza a biografia dos indivíduos segundo um
cânone geral ou, se se quiser, justapõe uma biografia supra-
individual — que tem a ver com uma espécie de “corpo espiritual” —
à biografia singular de cada indivíduo. O missionário nasce com a
“chamada” para a vocação que pode suceder em qualquer momento
da sua vida: pode ser uma “chamada” mística, em que o corpo é
preenchido por uma espiritualidade acrescida, ou, por exemplo, a
“chamada” de África, o que sugere, para além do nível da convicção,
o fascínio da viagem presente em alguns missionários; ele cresce
pelo sofrimento, pelas dificuldades experimentadas em climas
tropicais, pelas doenças, pelos encontros e desencontros com as
populações locais; e o missionário, nos casos mais graves mas mais
libertadores, volta a renascer, em termos espirituais, quando se
extingue a sua vida terrena, em particular nos casos do martírio.
12 Noto que o martírio não depende, necessariamente, nas narrativas
missionárias deste período do século XX , de uma experiência violenta
infligida por inimigos reais: podia ocorrer no leito e mesmo na
Metrópole (cf. Valverde s.d.). Em alguns casos, podia ocorrer uma
curto-circuitagem dos três momentos referidos: a morte de um
simples postulante a missionário sem qualquer experiência de África
ou de outros continentes podia ser narrativizada como um sacrifício
pleno. Nos anos 30 e 40, as páginas da imprensa missionária foram
percorridas por um tom fortemente necrológico. Os obituários ou
lutuosas incluíam, por vezes, descrições intensas e melodramáticas
da agonia, que retomavam não só uma característica narrativa da
época, que é reconhecível em outros universos culturais da
sociedade portuguesa, mas também glosavam o tema crucial do
cristianismo, a associação simbólica entre a morte e o renascimento.
13 Um excerto de uma descrição prolixa da morte de um espiritano, em
1949, confirma-o:
Dando-se-lhe a beijar o crucifixo, os seus olhos febris tomaram uma placidez e
brilho de agonia e êxtase. Parecia que Cristo agonizava nele e que ele com uma fé
ardente vivia muito unido à vontade do Senhor, mesmo quando o purificava do
crisol da dor (in Acção Missionária , 119, Novembro de 1949: 6).
14 A morte do missionário é, assim, conceptualizada como uma
performance em que o moribundo e Cristo se confundem, onde no
espaço infinitamente pequeno do corpo do missionário se reproduz o
sacrifício redentor de Cristo que visa a purificação do espaço
infinitamente grande do mundo. A morte, na discursividade
missionária — de acordo com uma influente matriz cristã —, é
fecundadora quer para o indivíduo que se extingue, quer para
aqueles que lhe sobreviveram. Em 1943, a morte de três missionários
no naufrágio do Afrique foi assim descrita:
[A] olhos que só vêem superfícies, pareceu a perda de uma grande soma da
potência apostólica: de facto redundou em enchentes de vocações decididas (...) E
daqui a anos não serão dúzias de brandões animados e espirituais que se moverão
do Tejo a incendiar de amor as selvas onde reina a sombra, serão centos de almas
irmãs que voarão de aqui para atear ao longe o fogo da Divina Caridade” (Correia
1943: 6).
15 Podemos, além disso, encontrar diversas ilustrações gráficas do
simbolismo da morte como factor poderoso de missionação: por
exemplo, uma criança negra ajoelhada diante de uma campa de um
missionário na qual está uma cruz que fulgura raios de luz (in Acção
Missionária , 37, 1943).
16 Os missionários ofereciam-se para prodigalizar a luz e a salvação aos
pagãos, “pequeninos entre os mais pequeninos dos irmãos de Cristo”
(Moura 1947: 58). Seguiam, assim, o preceituado por São Mateus: “Ide
e ensinai todos os povos, baptizando-os em nome do Pai e do Filho e
do Espírito Santo” (Mateus XXVIII, 19). Era um acto consciente de
redenção dos próprios missionários, porque se verifica “a
preferência do Senhor pelos mais pequeninos de Seus Irmãos,
aceitando como feito a Si próprio, o que a eles se fizer, tomando
como negado a si próprio o que a eles se negar” (Moura 1947: 57).
Mas era, fundamentalmente, um acto de generosa caridade,
resultado do “remorso colectivo”. Na expressão do padre Agostinho
de Moura, “poderá algum católico contemplar conscientemente o
mundo pagão, sem que o remorso da caridade cristã lhe dilacere a
alma?” ( ibid .: 80).
17 Este exercício de caridade cristã significou, em alguns casos, a morte
mais ou menos heróica do missionário. Filiando-se no binarismo
entre o corpo e a alma — ou a mente —, característico da civilização
ocidental, em que o segundo termo é moralmente superior ao
primeiro, o trabalho e o discurso missionários tomaram, como notei,
a materialidade biológica como um locus fundamental de intervenção
— nos casos extremos, pela erosão ou pela destruição — para tentar
produzir a utopia do reino de Deus. Um modelo que, é importante
sublinhá-lo, não é um mero artifício ideológico ou o resultado de
uma qualquer astúcia. Para além de ser informado pelo paradigma
da vida e morte dos mártires — onde o sofrimento e a dor são
transfigurados em princípios de prazer (cf. Le Breton 1995: 173-184;
Synnott 1993: 11ss.) —, ele pode influenciar a acção real dos
indivíduos. Este modelo ajusta-se à experiência real dos missionários
em África: embora falíveis, as estatísticas oficiais, publicadas no
jornal Acção Missionária (n. os 37, 1943: 3), indicam que, entre 1845 e
1875, a média da vida missionária dos padres do Espírito Santo era de
31 anos e meio, de 1875 a 1910 de 37 anos e 4 meses, de 1910 a 1930
de 46 anos e meio.
18 Neste modelo do corpo santo, o corpo está disponível para a usura e
a destruição sacrificial, porque está subjugado pela mente e pela
alma — e, por isto, aliás, não pode ser confundido com o suicídio, a
autodestruição voluntarista resistente aos modelos da acção
colectiva católica. Esta é uma versão extrema do modelo do corpo
civilizado europeu — ou antes do corpo masculino burguês —, que
emergiu, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX (cf.
Vincent-Buffault 1986): um corpo civilizado, disciplinado, regulado
nos orifícios e nas fronteiras com o exterior, nas suas manifestações
emocionais e, em particular, controlado pela razão, por essa
“substância insubstancial” como ironizava Norbert Elias (1994: 81),
que é um dos grandes legitimadores da suposta superioridade da
civilização ocidental.
19 A plasticidade metafórica do corpo e a sua disponibilidade para uma
poderosa polivalência semiológica é notória numa outra versão
benigna da sua utilização nas narrativas missionárias que opera a
reificação dos corpos santos dos mártires. A Igreja e o seu lugar no
mundo são pensados, em alguns textos, na base de um corpo
assexuado. O corpo disciplinado, em que o sexo e os incidentes
imprevisíveis da biologia são domesticados, transforma-se numa
máquina metafórica eficaz. A androginia conceptual oferece uma
metáfora perfeita para pensar a desejável perfeição institucional da
Igreja. Um exemplo é a concepção de Silva Rego, um dos teóricos da
missionologia mais influentes, nos anos 1950 e 60, em que a Igreja é
organizada segundo a metáfora da pessoa. Para além da “alma”, a
Igreja possui uma estrutura anatómica:
Constitui o corpo da Igreja tudo quanto se pode abranger normalmente com os
olhos e os outros sentidos: os sacramentos, o culto externo, o regime de governo,
etc., etc. (...) Considerados conjuntamente, o corpo e a alma formam uma
sociedade, isto é, a pessoa moral e social viva da Igreja , cuja cabeça é o próprio
Cristo. Por outras palavras: o Corpo Místico de Cristo, o reino de Deus, que,
embora não sendo deste mundo, neste mundo existe (1961: 44).

Corpos suspeitos, corpos fragmentados, a


sexualidade
20 A estes modelos benignos da metáfora corporal contrapõem-se, nas
narrativas missionárias, concepções do corpo dos africanos como um
corpo do mal ou, na melhor das hipóteses, como um corpo primitivo
ligado a uma mente infantil — o que se liga à instabilidade e à
insuficiência morais que os missionários atribuíam aos africanos em
consequência, em muitos casos, da irrupção, para eles perturbadora,
da sexualidade. Daqui decorre a suspeita sobre a qualidade humana
dos africanos e a discussão polémica sobre os seus atributos
selvagens. Estas concepções evolucionistas filiam-se na hipótese do
criminólogo italiano do século XIX , Cesare Lombroso, segundo o qual
tanto o corpo do criminoso contemporâneo como o corpo primitivo
seriam sobrevivências fossilizadas do início da história da
humanidade: o corpo do mal é um corpo suspenso no processo de
evolução, teria uma “temporalidade doente” na expressão do
psicanalista Jean-Michel Labadie (1988: 27). No caso das mulheres —
e tanto mais no caso das mulheres africanas —, Gustave Le Bon
concluía, em 1879, com base na medição de treze crânios, que elas
“representam as formas mais inferiores da evolução humana e estão
mais próximas das crianças e dos selvagens do que um homem
adulto e civilizado” (cit. in Shilling 1993: 45).
21 No seio dos missionários católicos, tal como no seu exterior, a
discussão sobre o carácter selvagem ou não dos africanos manteve
relevância cognitiva em pleno século XX . Um missionário espiritano,
o padre Domingues, confirmando implicitamente esta relevância,
sentiu-se obrigado a escrever, embora num tom paternalista, que
aproximando-me dos indígenas de África e mesmo de São Tomé, nunca encontrei
os selvagens de que ouvia falar; todos me mereceram simpatia e, dos que tive ao
meu serviço, tenho mesmo gratas recordações. (...) Estas criaturas que assim
mostram o vivo desejo de civilizar-se, segundo a sua própria expressão, imitando
o branco (o português) e esforçando-se até onde podem por se lhes assemelhar,
mas excedendo muitos em muitas aptidões, não podem ser considerados
selvagens (1943: 7).
22 Esta foi, porém, uma questão que atraiu a polemização. Seguindo
uma argumentação oposta, o padre António Dias Dinis, em 1951,
enunciou as vulnerabilidades e os vícios que acometem o “homem
primitivo” e que deveriam ser erradicados a fim de ser assegurado o
êxito da missionação:
O africano selvagem ou indígena tem corpo e alma como nós, porque é membro
da una espécie humana; é filho de Deus como nós, pela criação; tem direito às
mesmas felicidades, temporais e eternas; também por ele sofreu e morreu Cristo;
enfim, não lhe cabe a culpa de ter ficado estagnado em determinado estádio
evolutivo da Humanidade, enquanto a civilização ariana lhe passou pelo Norte do
continente (...).
Mas, se o primitivo é homem como nós, ele não é, porém, ser humano, no
significado preciso do termo; quero dizer: homem verdadeiramente consciente e
livre (1951: 2). Pagãos e selvagens nas ideias, nos trajes e nos lares, os Africanos
não o são menos nos campos e em todas as suas ocupações e desocupações
sociais. Indolentes por natureza, entretêm-se sobretudo com a ociosidade, mãe
de todos os vícios, e, frequentemente, também com a embriaguez, fonte do maior
aviltamento e entorpecimento (1951:19).
23 O trabalho missionário, portanto, além da sua intervenção no plano
da reconstrução da individualidade e da subjectividade, visaria
também eliminar os vícios morais que assediam os “Africanos” de
modo a transformar o seu papel nos processos de produção e, assim,
adequar a sua praxis económica às necessidades materiais das
instâncias coloniais. A construção da alteridade na versão da
“primitividade” concebe-a como o lugar do império das paixões e
dos sentidos, do desregramento inquietante da economia libidinal.
Por isso, os esforços da missionação, pelo menos ao nível
programático ideal, convergem na tentativa de instaurar a disciplina
e a contenção a todos os níveis: nas palavras, nos gestos, na
sexualidade, no trabalho e, em geral, nos hábitos corporais
quotidianos. Estas questões são reconhecíveis no modo como, em
geral, os missionários representam e reflectem, no período em
análise, os temas da sexualidade, da mulher e da criança. Trata-se de
representações e reflexões que o leitor pode reencontrar em
múltiplos textos, com um carácter obsessivo e monótono, o que é um
índice da sua hegemonia ideológica.
24 O caso das reflexões sobre a feminilidade é exemplar. Além da
previsível associação da mulher ao corpo da tentação, podemos
encontrar narrativas que pensam a mulher por relação à
temporalidade e à própria (im)possibilidade da transformação do
mundo. Pelo facto de, como é evidente no texto seguinte, a mulher
ser considerada como “psicologicamente” conservadora, sendo, de
algum modo, rejeitada a sua inscrição no tempo, ela emerge como o
baluarte privilegiado da primitividade. Tanto a mulher como a
sociedade primitiva são, conceptualmente, localizadas no princípio
da temporalidade, parecendo constrangidas a uma infindável
repetição de si próprias. Tal é evidente na afirmação de 1946 do
bispo de Lourenço Marques, D. Teodósio Clemente de Gouveia:
Nos países católicos da Europa atribui-se à mulher o baluarte de melhor defesa
contra as ideias novas de anarquia social e de descristianização das famílias.
O mesmo facto psicológico se dá em África com a mulher indígena. É esta quem
oferece maior resistência à evangelização e se opõe mais tenazmente a todo o
esforço civilizador. Obcecada pelos preconceitos da raça, da superstição, e com o
coração escravizado a um atavismo secular, a mulher indígena é um peso morto
contra o qual naufragam belas e arrojadas iniciativas de civilização cristã (1946:
10).
25 No caso da teorização missionária sobre a mulher africana,
descobrimos, assim, uma significativa proximidade conceptual entre
a primitividade e o feminino que, assim, passivo ou conservador,
representa o cerne da própria primitividade: ambos
destemporalizados e no limiar entre o universo cultural (cristão) dos
seres humanos e a animalidade. As mulheres e, em geral, os
“primitivos” possuem, nesta teorização, um estatuto ontológico
ambíguo. Por isso, em textos religiosos e puritanos, era possível a
representação iconográfica da nudez feminina que seria
insustentável no caso da mulher branca: essas imagens da nudez
figuravam seres humanos rudimentares ou mesmo seres excluídos
da humanidade.
26 Os modos de narração da sexualidade são, de algum modo, a
transposição para a escrita da relação iconográfica com a nudez: a
linguagem, tal como as imagens, pode operar como um dispositivo
de reinterpretação e, no limite, de apagamento ontológico da
sexualidade. Nos textos missionários, o sexo, quando não é
meramente excluído da economia textual, tende a ser reduzido a
uma manifestação do pecado e a retórica utilizada para o descrever
baseia-se em clichés negativos e exorbitantes. É frequente a omissão
narrativa do sexo que é consagrada pela expressão favorita de que
“não há palavras para descrever” tal ou tal questão indecorosa.
Mons. Luiz Keiling, um missionário alsaciano que evangelizou em
Angola, escrevia, em 1934, a propósito de um povo local:
“Infelizmente, os Bienos são de uma moralidade ultra-relaxada e de
uns costumes que nem em latim se podem contar” (1934: 26). No caso
da sexualidade, esta retórica, baseada em estereótipos e em
dispositivos de omissão, pode funcionar como um instrumento de
dessexualização discursiva. Ou, mais rigorosamente, como uma
estratégia de categorização do mal do sexo segundo estereótipos
culturais europeus, pelo que aquele, ao ser deste modo identificado,
pode ser mais facilmente combatido.
27 Porém, as estratégias retóricas e ideológicas dos textos missionários
não se limitam a uma linear dessexualização discursiva. Parece
ocorrer, de modo complementar, uma deslocação do discurso da
sexualidade onde ela se desenvolve, para outros domínios onde a
sexualidade só pode ser exercida metaforicamente. Tal é visível nas
expressões comuns — que possuem, além disso, um conteúdo
economicista e militar — utilizadas para descrever a missionação
como a “conquista” e a “posse” de terras, de gentes e de almas. O
missionólogo Silva Rego escrevia: “Não interessa possuir terras e
riquezas, se se não possui a alma dos seus habitantes” (1962: 41). A
utilização do termo “posse”, com as suas conotações sexuais e
económicas, não é irrelevante. Sinaliza a feminização dos outros
africanos, o que se liga à passividade que, em muitos contextos, lhes
é atribuída. Esta manipulação em termos de género retoma, aliás,
uma tradição intelectual europeia com um longo passado. Por
exemplo, no discurso protocolonialista desenvolvido com a
descoberta da América, as regiões do Novo Mundo foram, muitas
vezes, conceptual e iconograficamente feminizadas e os fenómenos
da exploração e do povoamento foram também sexualizados (cf.
Montrose 1991).
28 Se a conquista missionária é vertida, em termos discursivos, na
linguagem sexual e económica da posse — onde os missionários são
os potenciais “possuidores” —, há um outro conjunto de proposições
que operam uma inversão metafórica. Refiro-me à imagem da
“África Voraz” (cf. Sório 1956: 20), do continente hostil onde muitos
missionários perderam as suas vidas. Esta imagem, além do seu mais
imediato papel na comemoração da vertente sacrificial da vida
missionária, tem, na minha interpretação, uma forte conotação
sexual: a África, feminizada, “devora” e “possui” os missionários. A
África associada, muitas vezes, ao lugar do mal e da lascívia,
traveste-se na imagem do terror para o homem puritano: a imagem
da vagina dentata , a imagem metafórica em que a morte e o mal do
sexo (sinalizado pela líbido feminina exorbitante) se tornam
cúmplices.
29 Podemos, todavia, localizar alguns textos missionários em que os
trabalhos do sexo e do corpo são narrativizados. No seu livro, No
Coração da África Negra (1947), o missionário espiritano Augusto Maio,
depois de 187 páginas modeladas sob um registo irónico e tolerante,
onde ele evoca as suas deambulações pelas missões do Cubango em
Angola, faz irromper a descrição de uma miragem num tom trágico e
escatológico (no duplo sentido):
Regressávamos agora, cansados e doentes, com a batina coberta de pó e de suor.
Atrás de nós víamos como que um céu pesado e negro, com laivos de pus e
sangue: a imagem do mundo gentio que percorrêramos. Aqui e além, uns
pontinhos de luz a tentarem rasgar o manto da escuridão: as escolas cristãs.
E então, como em visão apocalíptica, representou-se-nos um quadro de indizível
tragédia. É um batuque infernal ecoando, ora lúgubre e dolente, ora
diabolicamente frenético. Os tocadores parecem fantasmas do Inferno,
chamejando sarcasmos e lubricidades. A dança não se descreve. O ambiente é
uma penumbra afogueada. Envolve tudo uma nuvem de vapores de carne e
bebidas alcoólicas. A comandar tão terrível espectáculo, os feiticeiros em
gargalhadas satânicas. Olhos vermelhos; penachos de plumas; rosto sarapintado
de cal e vermelhão. À cinta peles variadas; ao peito e nas mãos amuletos vários:
unhas de onça e de leão, chifres de pequenos antílopes, excrementos de animais e
até humanos, espelhos, sangue de mulher puérpera, caveiras, guizos,
campainhas, manipanços... Mistura nojenta, horripilante mistifório!
Ao lado do desaforo desavergonhado de mulheres perdidas em ademanes
provocadores, dançam forçadas, presas pelos braços e pelo colo, as raparigas
sérias, pudibundas, a quem os comparsas despudorados vão rasgando os vestidos
do recato. Elas movimentam-se ao ritmo infernal, mas choram inconsoláveis. O
batuque afoga-lhes o clamor aflito. No côncavo do céu ecoa só o regougar da
orgia.
Novos e velhos, adultos e crianças; todos possuídos de idêntica loucura. Aquilo é
uma fantasmagoria epiléptica...
Grandes talhadas de carne, volumosas cabaças de cerveja..
Já saem de escantilhão uns sobre os outros, ébrios do espírito daquela bacanal
infame, inominável. Logo se insultam desvergonhadamente e se ferem sem dó
nem piedade. Atropelam os velhos, pisam as crianças, enxovalham e desprezam
as mulheres e todos os fracos!
E o batuque infernal não cessa. Atroa e embebeda ferozmente aquela horrenda
noite de pus e sangue (ibid.: 188-190).
Acordámos desta miragem sombria, ao entrar na ponte do rio Cubango.
Pergunto ao P. Pedro, esfregando os olhos, arregalando as pálpebras:
— Isto foi sonho?
— Sim, um sonho, mas um sonho verdadeiro... (ibid.: 195).
30 Além dos elementos relativos às concepções missionárias sobre os
sistemas de incorporação, que refiro adiante, este texto mostra que,
na sua imensa curiosidade — que é também um trabalho estratégico
de apropriação — pela construção da subjectividade, alguns
missionários procederam a uma cooptação do domínio onírico como
um lugar significativo para o seu projecto. Neste caso, o sonho
restitui o sentido do real que foi obliterado pela confusão empírica
produzida pelos olhos — pelo que estes percebem - e pelas palavras
fugazes das conversas. É o resultado de uma desconfiança sobre a
qualidade ilusória e ontologicamente incompleta da própria
cognição, influente na tradição da Igreja Católica conforme a
advertência de Santo Inácio de Loyola sobre a ilusão das aparências:
“Esta é a atitude da mente que devemos manter: eu acreditarei que o
objecto branco que eu vejo é preto se tal for a decisão da Igreja
hierárquica” (in Os Exercícios Espirituais [1548], cit. in Synnott 1993:
138). Esta é a suspeição dos sentidos, comum em muitos autores
religiosos, que se inscreve, porém, numa avaliação ambivalente,
porque é também, muitas vezes, pela visão que se pode aceder à
beleza de Deus. No caso dos sonhos, como o do padre Augusto Maio,
em que o indivíduo reencena, no interior do seu próprio eu, o mundo
e a sociedade, numa solidão intensamente habitada, não está em jogo
meramente um real simulado. É antes uma espécie de hipermundo
não empírico, mas que verifica o mundo real e permite recuperar
lucidez e legibilidade.
31 Acrescento, no entanto, que a valoração dos sonhos, entre os
missionários, é ambígua. No contexto africanista, diversos
missionários sublinharam a importância dos sonhos como os
activadores da conversão individual. Mas este aspecto desconcertou,
muitas vezes, o missionário. Segundo Bengt Sundkler, “os
missionários ficam quase chocados por uma revolução espiritual tão
importante como a conversão parecer dever-se, em muitos casos, a
um qualquer sonho absurdo e não a uma decisão consciente da
vontade” (1961: 267). A actividade onírica é, assim, um lugar obscuro
mas activo nos trabalhos de transformação religiosa e nas suas
modalidades de reinterpretação do mundo. No caso missionário, a
sua apropriação é a extensão última de um processo metódico de
colonização do eu orientado para a transformação do próprio
mundo.
32 A alegoria de Augusto Maio é iluminante também sobre a avaliação
negativa, comum entre os missionários deste período, sobre os
sistemas de incorporação das culturas africanas. Apesar dos
frequentes dispositivos de omissão — “indizível tragédia”, “dança
que não se descreve”, “bacanal inominável” —, este exercício
alegórico demonstra que, na ideologia missionária católica da
primeira metade do século XX , os detalhes da biologia do corpo
humano, os seus fluidos e as suas excreções segregam metáforas para
designar a inquietação e os cenários sociais mais reprováveis. É pelo
corpo e pelos seus fluxos mais ou menos discretos que este
missionário faz sentido da sociedade que detesta ou que o
desassossega: “aquela horrenda noite de pus e sangue” é frequentada
por fluidos e fragmentos do corpo — excrementos humanos, sangue,
sangue menstrual, caveiras, lágrimas; o corpo e a comunicação
corporal desfiguram-se — olhos vermelhos, gargalhadas satânicas,
regougar da orgia, insultos desvergonhados, batuque infernal; os
sentidos são dominados pelo cheiro da carne e das bebidas alcoólicas
e a carne é exibida em grandes talhadas, convocando a fragmentação
e a dissolução do corpo humano: ferem, pisam, atropelam... E a
sociedade é transformada na performance de uma doença, num
imenso corpo patológico — uma fantasmagoria epiléptica em que
todos, sem distinção etária, são possuídos pela loucura — e na
performance da própria morte: a noite em que o pus e o sangue fluem
profusamente.
33 Este caso articulado de uma descrição somatizada e biologizada de
uma sociedade africana em festa — mais ou menos imaginária —
mostra que a curiosidade dos movimentos do corpo e dos seus
elementos está, muitas vezes, para os efeitos da descrição, associada
a uma perda de contexto. As partes do corpo podem ser literalmente
“desencorporadas”. O corpo torna-se no corpo grotesco que, na
sugestão de Susan Stewart — que retoma Mikhail Bakhtin —, é “um
corpo de partes”, em que a ordem funcional dos seus elementos é
desmantelada (1984: 105). A dissolução da sociedade é congruente
com uma dissolução do corpo e dos seus limites, com uma
incapacidade em pensar as fronteiras do corpo como linhas estáveis
(cf. Douglas 1966), porque a sobreactividade dos fluidos corporais
implica a fragilidade da unidade do corpo e a sua iminente
desconstrução. As metáforas do corpo fragmentado, que se parte,
que se divide em pedaços e talhadas, são as mais adequadas para
impregnar de pathos e de um sentido de morte as experiências
perturbadoras de confronto com sociedades diferentes.
34 É elucidativo que as metáforas benignas do corpo, nas narrativas
missionárias, seleccionam um corpo incólume, inteiro, reificado
numa stasis em que os fluxos são esquecidos — um corpo imóvel que
é, afinal, a negação dos princípios da vida biológica. Mesmo o corpo
do missionário disponível para a erosão do sacrifício e da morte —
em contraste com os modelos clássicos do sacrifício cristão que
hipervalorizavam a desconstrução do corpo — é, em alguns casos,
um corpo íntegro, uma “superfície impenetrável” (Stewart 112),
aguardando no seu leito, mais ou menos placidamente, a morte cujos
efeitos de desestruturação biológica são ignorados. A fragmentação
do corpo é desvalorizada e, em alguns casos de odor de santidade (cf.
Pina Cabral 1986: 230-3), pode realmente não ocorrer.

Crianças, gordos e canibais


35 A conceptualização do africano, nos textos missionários, não se
limitou, no período em análise e, aliás, em períodos anteriores, a
uma manipulação em termos de género e à sua feminização. Em
alguns contextos, o Africano foi caracterizado por uma actividade
exorbitante como feiticeiro, canibal, antiportuguês — uma sobre-
actividade sempre negativizada e ligada a manifestações perniciosas
do mal — e, em outros contextos, a conceptualização missionária
envolveu uma manipulação da escala do corpo representando os
Africanos como crianças, como miniaturas domesticadas do ser
humano. Uma operação que não é irrelevante em termos da cognição
e reinterpretação das populações africanas: como nota Susan
Stewart, nas culturas ocidentais, “a miniatura, ligada a versões
nostálgicas da infância e da história, apresenta uma versão
diminuída e, portanto, manipulável da experiência, uma versão que é
domesticada e protegida da contaminação” (1984: 69).
36 A conceptualização do Africano como uma criança é manifesta nas
estratégias de eufemização e de infantilização que marcam a retórica
missionária de alguns textos. Tal não é ideológica e politicamente
inocente. A presença colonial portuguesa em África implicava, de
facto, a preservação de grupos inferiores e excluídos embora
subordinados e obedientes. Um desejo de dominação que, no
entanto, chocava com os objectivos da missão civilizadora e
cristianizadora dos Portugueses e, em particular, dos missionários:
se os Africanos se tornassem cidadãos plenos, tal missão ficaria
esgotada. Mons. Luiz Keiling, em 1934, notava já tal paradoxo, ou
seja, a tensão entre o desejo da missionação — concebida como
permanente — e o seu eventual fim — quando os outros estariam
convertidos. A questão é, de algum modo, resolvida pelo recurso à
lógica do paternalismo, sendo os Africanos entendidos como crianças
quase intemporais:
Não nos fica bem querermo-nos iludir: se nestas obras de seminários, não raro há
surpresas na Europa, não estranhemos se as aqui houver também. Um preto
ficará sempre preto, enquanto não tiver algumas gerações atrás de si. Conservará
ainda muito tempo o espírito criança que distingue a sua raça. É esta uma das
nossas principais dificuldades, e por muito tempo ainda será imprudente dar a
estes filhos da selva uma confiança absoluta. A vaidade de se ver elevado acima
dos seus congéneres reaparece muitas vezes com uma instantaneidade
desconcertante, em tal ou tal indivíduo, que durante muito tempo tinha um
comportamento exemplar (1934: 122).
37 Este comentário prenuncia os múltiplos conflitos e tensões que,
sobretudo a partir dos anos 50, opuseram as estruturas eclesiásticas
europeias, apoiadas, muitas vezes, pela acção missionária, e as
estruturas eclesiásticas locais (cf. Hastings 1989: 21-35). É elucidativo
que, em Angola, depois de D. Henrique, filho do rei D. Afonso do
Congo, ordenado bispo em 1520, só em 1970 foi ordenado um novo
bispo angolano: D. Eduardo André Muaca (cf. Henderson 1990: 366-
7).
38 Este aspecto da acção missionária e, mais em geral, católica é
articulado pela reiteração dos estereótipos dos Africanos como seres
infantis e pela utilização frequente de eufemismos e diminutivos
para os descrever. Escrevia, por exemplo, o missionário espiritano
Leão Fuchs: “Que engraçadinhos os bebés dos pretos! Nas primeiras
semanas são quase brancos, e pouco a pouco vão-se tornando
morenos” (1950: 339). O padre André Brouchoud, missionário da
missão dos Padres Brancos em Chemba (Moçambique), escrevia,
também em 1950: “Os nossos pretinhos! É um prazer trabalhar por
eles! (...) apesar de tudo, os nossos pretos são de facto boa gente. É
verdade que não são perfeitos (se o fossem não teriam necessidade
de missionários), mas temos de considerar que os seus grandes
defeitos são ainda bem pequenos, se atendermos à educação que
receberam, num meio sem civilização” (1950: 20-1).
39 Em última instância, o propósito é fazer das pessoas, que são objecto
das estratégias de eufemização, agentes que celebram a sua própria
eufemização num processo paradoxal de auto-eufemização — fazer
dos Africanos seres obedientes e crentes na legitimidade da presença
colonial, crentes em Deus e na Pátria, mas sobretudo no trabalho.
Fazê-los entoar cantigas como o “Balancé, balancé” que Luís Keiling
(1934: 121) escutou em Angola:
Pretos, pretinhos, cá ‘stamos
Originários d’Angola
Deus e Portugal amamos
Trabalho, bem como escola.
Preta, sim, temos a tez!
D’oiro é nosso coração:
O peito é de português,
A nossa alma é de cristão.
40 A partir dos anos 60, em parte devido às transformações políticas
que ocorreram em África — as independências e as guerras de
libertação implicaram uma revisão da noção do africano como um
ser passivo ou infantil —, as estratégias de infantilização perdem
importância. São mesmo criticadas pelo missionólogo Silva Rego que
as qualifica como o “romantismo missionário”, como a “compaixão
piegas pelos ‘pretinhos’” (1961: 262).
41 Os “primitivos africanos” são, portanto, em alguns contextos,
aproximados das crianças nos planos psicológico, cultural e moral.
Mas, como sublinhei, em outras instâncias, eles são tomados como
equivalentes simbólicos do mal: encarnações satânicas e diabólicas,
sobretudo no seu suposto frenesi carnal e canibal. Ou então podem
coexistir pagãos satânicos e infantis. Na frase exemplar de Rudyard
Kipling, os nativos “são meio diabos, meio crianças” (cit. in
Beidelman 1982: 51). Luís Keiling evocava, estupefacto, o relato de
uma criança: “Nunca me há de esquecer a naturalidade com que me
contava um dia um pretito, que uma das partes mais saborosas do
corpo humano é a carne que rodeia as falanges dos dedos!” (1934:
116). Notemos, porém, que não é contraditória, na economia do
pensamento colonial e missionário, esta justaposição das crianças e
dos demónios. Ambos, embora de modos diferentes, são excluídos do
espaço da moralidade cristã: as crianças são, nesta perspectiva,
consideradas como irresponsáveis, isto é, as suas faculdades para
discriminar entre o bem e o mal não estão ainda plenamente
desenvolvidas — são seres amorais, marcadas por um défice da sua
actividade moral; os demónios, por seu lado, são também
caracterizados por uma desregulação da actividade moral na medida
em que invertem a hierarquia cristã que coloca o bem acima do mal
— são seres antimorais.
42 Notei antes a importância das metáforas da fragmentação do corpo
para ser pensada, em alguns textos missionários, a dissolução social
e a incerteza existencial. O canibalismo pode ser integrado neste
conjunto de proposições como a sua manifestação mais radical,
porque ele envolve, obviamente, a perda da unidade do corpo, a sua
desconstrução antes ou depois da morte. Volto a Luís Keiling e ao seu
livro notável de 1934:
Os Galangues eram antropófagos, e ainda não há muito que deixaram este
costume dos antepassados. Apresso-me todavia a dizer, para honra da verdade,
que, ao notar que os Galangues eram antropófagos, não quero significar que, de
um modo ordinário, se saciassem de carne humana. Entretanto, nas grandes
solenidades religiosas, ou seja, umas quatro vezes por ano, era de obrigação
cevarem-se em carne dos seus semelhantes. Para isso, alguns meses antes da
festa, enviava o soba emissários, que percorriam montes e vales à cata da vítima,
que devia por força de imposição religiosa, ser uma pessoa nova e estranha à
tribo. Ainda em 1909, numa viagem que fiz de Cubango a Caconda, pude
presenciar uma dessas desgraçadas vítimas, e hoje, ao lembrar-me, sinto como
calafrios, que me percorrem todo o corpo. (...) De repente, chega-me aos ouvidos
não sei que apagado eco longínquo de vozes que disputam. Os carregadores
puseram em mim os olhos, e fazendo das mãos pavilhão postaram-se à escuta. A
pouco e pouco, começaram-se a ouvir algumas palavras incoerentes: Evando,
sanga ofa — Com jeitinho, senão morre . Estava verdadeiramente impaciente por ver
o que queria aquilo dizer. Em frente de nós dava o caminho uma volta quase em
ângulo recto. Eis senão quando desemboca na curva um magote de gente, que
marchava a passo de procissão. Ao darem comigo ali, ficaram aterrorizados como
se lhes houvesse caido um raio ao pé. Levado pela curiosidade, adiantei-me para
ver do que se tratava. Entre os pretos, sobressaía um, de estatura mais que
ordinária e cujo bíceps demonstrava força hercúlea. Reconheci-o pelos enfeites
de que usava: era o feiticeiro. Tudo o denunciava: as cabaças que trazia a tiracolo,
as facas pendentes da cinta, o penacho que lhe ornava a cabeça, o respeito de que
era alvo por parte de todos. Fixou em mim uns olhares capazes de infundir medo
ao próprio diabo do Inferno. Os outros, como que interrogando-o com o olhar,
perguntavam o que haviam de fazer: se lhes convinha avançar ou parar, até que
eu me houvesse retirado com os meus. Cada vez compreendia menos o que
queria dizer semelhante ajuntamento, quando consegui descobrir no meio
daquela gente uma espécie de casa ambulante, feita de ervas, que marchava a
compasso, muito devagar. Firmo-me bem, e descubro dentro um vulto... Horror!
Pois é lá possível que uma pessoa possa engordar tanto, como aquele desgraçado
que em face de mim tinha? Não conheço em português palavras capazes de
traduzirem um fenómeno daqueles. Qualquer exemplar de cevados alentejanos
fica muito aquém daquele homem! Deu-me um desses ataques de riso, como
talvez nunca antes conheci, e se não me deixei dominar por ele foi porque um
dos meus carregadores, que me lera na fisionomia todas as impressões, se chegou
para junto de mim e me segredou ao ouvido: É uma vítima humana .
Ao primeiro pasmo, sucedeu a compaixão. Sim: compreendi. Já tinha ouvido
contar que, quando esta gente prepara um sacrifício humano, é a pobre vítima
mutilada: fecham-na depois num quarto e aí lhe dão de comer e beber com
abundância, fazendo-lhe engurgitar à força os alimentos, se o desgraçado,
cônscio do que o espera, se recusa a engoli-los. A princípio há-os e quase todos,
que não querem comer; servem-lhe neste caso uma beberagem que priva o
mortal do uso pleno das suas faculdades e em seguida, se ainda por acaso faz
oposição, lá estão as pancadas, que se encarregam de vencer a vontade, e ele
come só com avistar o azorrague diante dos olhos. Sem querer, pensei que os
cevados não comem contra vontade, e a quem ali estava haviam obrigado a
engordar, mesmo sem ele querer. Enquanto tinha consciência dos seus actos,
bem sabia o desgraçado, para que lhe forneciam tanto alimento. (...)
Sabendo eu que o preto, dum modo ordinário, é medroso, quando se vê em face
dum homem armado, tomei a resolução de assumir a defesa do desgraçado.
Porém, mal tinha abrido a boca para falar, vi o homem gordo esgazear muito os
olhos e ruir no chão, como massa inerte. Estava morto. Sufocara-o o excesso de
gordura (1934: 110-2).
43 Neste relato, é-nos oferecida, entre outras coisas, uma apreciação —
invulgar nos textos missionários — sobre o corpo obeso e
hipertrofiado. Ele contrasta com o corpo previsivelmente musculado
do feiticeiro, “cujo bíceps demonstrava força hercúlea”. Um
contraste, fulcral nesta descrição, que é organizado entre a ausência
e a presença do movimento (existencial), entre a extrema e abjecta
subordinação e a autoridade temível, elementos que são
consolidados pelos usos diferentes da comunicação visual entre
olhos esgaseados, incapazes de aperceberem a iminência da morte, e
“olhares capazes de infundir medo ao próprio diabo do Inferno”. O
gigantesco aqui descrito, em que o movimento e o próprio sentido da
humanidade foram suspensos, prefigura um corpo ineficaz para a
socialidade humana — afim dos cevados alentejanos e marcado pela
perda de consciência e inábil para a reprodução — porque,
possivelmente, mutilado nos órgãos sexuais. O desventurado gordo
foi transformado num órgão unifuncional, numa imensa boca, numa
“superfície penetrável” por excelência, reduzido à função exclusiva
da ingestão de alimentos para, a prazo, ele próprio se transformar
em alimento. Ele constitui também um elemento de diferença face ao
sistema de incorporação valorizado pelo regime corporal
disciplinado e, ao nível programático, espartano dos missionários.
Este hiperobeso materializa, na interpretação missionária, uma
corporalidade excedentária e ridícula. De facto, o hiato cultural
figurado por esta obesidade é articulado sob o signo da irrisão e, por
isso, a sua morte, provocada pela implosão do corpo, foi anedótica. É
um riso que prenuncia os modos explorados pelos manuais do Estado
Novo, algumas décadas depois, em que o obeso Gungunhana era o
sinónimo do africano derrotado e risível. Mas é um riso que se liga
aos temores do desmantelamento do corpo que o canibalismo
implica, ou seja, um dos terrores culturais mais intensos das
civilizações eurocêntricas (Brown e Tuzin, 1983).
44 A questão do canibalismo e das suspeitas da sua prática não foi
aproximada apenas na base do riso ou do pânico que pode gerar. Ela
foi colocado, por alguns autores, no centro da justificação histórica
do colonialismo português. Adriano Moreira argumentou, assim, que
“obrigados a pregar o Evangelho a todas as criaturas, os cristãos
podiam fazer a guerra para defender o seu direito de missão e para
defender os convertidos das pressões destinadas a fazê-los abjurar. A
obrigação de cuidar do próximo impunha-lhes a defesa dos inocentes
contra uma morte injusta e a intervenção para acabar com práticas
contrárias aos ditames da humanidade, tal como o sacrifício de
homens para os comer” (1960: 19). E, em 1947, Henrique Galvão
publicou o livro Antropófagos , baseado em testemunhos de práticas
canibais, supostamente verdadeiras, ocorridas no Norte de Angola
nas décadas de 30 e 40. Deste modo, era reconfirmada a legitimidade
da continuada presença portuguesa com vista à erradicação, em
pleno século XX , de “práticas contrárias aos ditames da
humanidade”.

Em busca da sociedade perfeita


45 Entendido como um lugar potencial do mal, o corpo do “primitivo”
era o lugar de mediação entre as trevas do paganismo e a luz do
cristianismo. As expressões do missionário espiritano e etnógrafo de
Angola Charles Estermann, “ir às almas através dos corpos” e “fazer
obra civilizadora actuando sobre as faculdades psíquicas” (1983, I:
33) nomeiam dois aspectos cruciais da reflexão e da acção
missionárias. Por isso, a educação e a medicina, tão importantes na
penetração missionária em África, para além da generosidade que
poderia mover os missionários, têm uma fundamentação conceptual
singular: é através da cura (metafórica e pragmática) dos corpos
individuais que é possível a cura — na interpretação cristã — do
mundo paganizado. Tanto nas missões católicas como nas
protestantes, é feita uma associação explícita entre a salvação e a
saúde: ambos os termos são derivados, aliás, do latino salus (cf.
Henderson 1990: 200; e sobre as religiões cristãs como religiões de
cura, Rosny 1992: 41).
46 As metáforas organizadoras do discurso missionário católico são,
muitas vezes, como notei, somáticas e emocionais. O corpo como um
todo ou fragmentos, órgãos ou fluidos do corpo — em particular o
sangue —, algumas secreções como as lágrimas, o nascimento e a
morte — simbolicamente associada à regeneração espiritual — são
temas que, metaforicamente, permitem aos autores reflectirem não
só sobre o seu próprio destino — terreno ou extraterreno —, mas
também sobre o destino e a experiência dos outros e, em particular,
sobre os habitantes das terras de missão. São tropos que permitem,
através de uma poderosa extensão simbólica, que apaga as fronteiras
entre o mundo terreno e o não lugar utópico do reino de Deus,
reescrever o passado, o presente e o futuro de indivíduos cujo
trajecto, à luz de um outro tipo de discurso e de outras metáforas,
seria monótono. Os modelos do corpo e do ciclo de vida da pessoa
organizam-se, nas narrativas missionárias, segundo uma hierarquia
moral: ao modelo hiperideal do missionário que oferece,
sacrificialmente, a sua vida e o seu corpo — segundo modalidades
violentas ou sucedâneas e em que a erosão biológica do corpo,
incólume na superfície e nos seus contornos, é narrativamente
desvalorizada, em que, se quisermos, não ocorre a transição entre o
corpo e o cadáver — responde o nadir do corpo desregrado do
“pagão” escravizado pela sensualidade carnal e pela exuberância dos
sentidos, marcado, simbolicamente, por uma espécie de instabilidade
somática, porque, para a maioria dos missionários deste e de
períodos anteriores, ele pode ser, ao mesmo tempo, homem, mulher,
criança, diabo ou animal, e porque a corrupção moral parece induzir
a iminente desestruturação, em alguns casos metódica, do corpo em
fragmentos. Aqui a debilidade da integridade moral articula-se com
uma unidade corporal fragilizada em que, real ou metaforicamente,
o corpo ameaça partir-se.
47 Apesar da diversidade e da ambiguidade que os impregna, os
modelos missionários do Africano e do seu corpo invertem, na
leitura missionária e, em geral, imperialista, a hierarquia ocidental
entre a mente e o corpo. E é esta inversão — uma petição de
princípio — que leva à suspeita ou, em alguns casos, à certeza de que
o Africano não é um ser humano ou é apenas um ser humano
rudimentar — uma criança. O missionário debate-se, no seu trabalho
evangélico, com seres cujo corpo exorbita nas suas manifestações
devido ao que ele admite ser uma mente diabólica e extra-humana —
seres cujo corpo é intransigente e irredutível à salvação; com as
mulheres dotadas, na interpretação missionária, de um corpo de
tentação e de uma mente rudimentar, constituindo outro obstáculo
difícil; e com seres que, independentemente da sua idade, são
aproximados das crianças. É este corpo infantil, simbolicamente
suspenso na sua temporalidade, que vai de par com uma mente
infantil e incipiente, que é o mais prometedor para a acção
missionária. A ingenuidade das crianças e a plasticidade da sua
mente e do seu corpo em formação parecem ser a tabula rasa ideal
para a inscrição da mensagem missionária.
48 Esta intervenção material e simbólica sobre o corpo não seria,
porém, no discurso missionário, apenas um trabalho com vista ao
acesso à utopia do reino de Deus. No caso da missionação
portuguesa, em estreita articulação com o programa colonial mais
geral, visava-se também, pelo menos numa fracção influente nos
anos 1950 e 60, a instalação, na África colonial portuguesa, de uma
espécie de utopia luso-africana: um híbrido político-social feito, em
larga medida, da nostalgia da ruralidade portuguesa de acordo com
as tentativas de uma primeira fase do Estado Novo, que vai até ao
início dos anos 50, de reeditar o Portugal rural em África. Uma
utopia que implicava uma transformação da relação do corpo com os
objectos, pela introdução de novos ofícios, e uma transformação dos
hábitos corporais quotidianos.
49 Apesar do evidente fracasso deste projecto, ele é evocado não só na
narrativa, mas também na iconografia missionárias. Para Silva Rego,
tratava-se de “impregnar de portuguesismo a paisagem africana. Os
estrangeiros que visitam a nossa África ficam agradavelmente
surpreendidos ao verem transplantadas para a paisagem africana as
nossas cidades, vilas e até aldeias, os nossos parques e jardins, hortas
e pomares, hortaliças e frutas, flores e plantas, romarias e arraiais”
(1962: 32). Algumas fotografias das missões em África são
elucidativas: em Portugal Missionário: Cadernos do Ressurgimento
Nacional , editado pelo SNI (s.d., presumivelmente no final dos anos
1940), podem vislumbrar-se trabalhadores africanos, com
indumentárias mistas europeias e africanas, mas em ofícios
europeus, evocando a ruralidade do Portugal salazarista: raparigas
lavrando a terra; aprendizes de forja sob o olhar atento do ferreiro
europeu; meninas fabricando cestos ou em lições de costura diante
de duas máquinas postadas no terreiro da missão... O missionólogo
Silva Rego não se coibe mesmo de articular este novo projecto
civilizacional em termos de novos hábitos de consumo alcoólico:
É frequente ouvir zombar da chamada colonização do barril ou do garrafão, em
comparação com a colonização da máquina agrícola, que se atribui a outros
nacionais. As comparações são, regra geral, odiosas. O ideal seria que emigrassem
barris, garrafões e máquinas agrícolas. O facto, porém, de estas não chegarem lá
em quantidades que seriam para desejar não deveria bastar para minimizar a
exportação do nosso vinho. A não ser que a nova cultura luso-africana prefira a
cerveja, ou o uísque, ou qualquer álcool lá fabricado ( ibid .: 33).
50 Esta reflexão, ligada a outras a que me referi antes, mostra a
vontade inequívoca, fortemente política, de muitos missionários em
colaborarem na transformação do mundo imediato. Um desejo que
os filia numa das formas de tentativa de organização do futuro mais
influentes nas civilizações judaico-cristãs: a busca da sociedade
perfeita. Segundo a formulação brilhante de Isaiah Berlin,
[o] conceito da sociedade perfeita é um dos elementos mais antigos e mais
pervasivos no pensamento ocidental, sempre que, com efeito, as tradições
clássica ou judaico-cristã são dominantes (…); há uma presunção comum
subjacente a (...) doutrinas conflituais: ou seja, que uma sociedade perfeita é
concebível, quer como um objecto de oração ou esperança, uma mera visão de
potencialidades humanas irrealizadas ou irrealizáveis, a meta final para a qual a
história marcha inexoravelmente, quer como um programa prático que a
aptidão, a energia e a clareza moral em grau suficiente podem, em princípio,
realizar (1991: 120-121).
51 Neste meu estudo, o interessante é valorizar o facto de esta vontade
de transformação social estar articulada, quase definicionalmente, a
uma concepção do corpo como um locus de transformação ou como
um lugar em que as mudanças devem ser, prioritariamente,
negociadas — até porque, segundo as concepções missionárias, os
corpos das mulheres e, em geral, dos primitivos podem ser lugares
de resistência à mudança evangélica. Em muitos missionários, a
materialidade biológica, pelo que é e, em particular, por ser um
referente prolixo da produção de metáforas, é um activador
privilegiado da mudança das regras da socialidade 8 . Nas
narrativas missionárias, a utilização profusa de metáforas somáticas
é, além disso, o sinal de que a transformação da sociedade e as
ambiguidades e os perigos da sociedade presente podem ser
discursivamente somatizados. É uma espécie de escora metafórica
que permite, por uma reclusão no corpo, uma paradoxal extensão
dos modos de conhecer e interpretar o mundo mutável. A
plasticidade do corpo e os seus fluxos originam metáforas que têm o
movimento inscrito no seu interior conceptual e, por isso, permitem
reinterpretar ou mesmo controlar o movimento existencial e, em
particular, a mudança social.
52 Para além da ineficácia etnográfica geral dos missionários — pelo
seu desinteresse ou pela rejeição irada dos hábitos estranhos —, é
importante reflectir também sobre as informações que os
missionários fornecem sobre si próprios. O narcisismo pontificou no
período em análise. Mas ele é-nos precioso para estabelecer uma
conjuntura dos trajectos históricos de concepções e práticas de auto-
avaliação de um grupo eurocêntrico que evoluiu em contextos
culturais radicalmente diversos que, por vezes, foram contextos de
risco. Ele informa-nos, além disso, sobre os modos como os
indivíduos refazem narrativamente a sua subjectividade quando ela
é ameaçada, real ou metaforicamente, de dissolução, ou seja, neste
caso, informa-nos sobre a componente trágica da aventura
missionária.
53 Uma questão diversa é a eficácia pragmática dos esforços
missionários de transformação. Apesar da extraordinária influência
missionária em muitos países africanos, que vem até aos nossos dias,
é claro que estes esforços não resultaram sempre. Mas este é o outro
lado da estória — o lado tornado obscuro pela escrita monológica dos
missionários — protagonizado pelos Africanos e feito, muitas vezes,
de indocilidade (cf. Mbembe 1988), resistência e, felizmente, também
de ironia.
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NOTAS
1. Este texto foi apresentado, numa primeira versão muito diferente, no colóquio “Ver
África, Imaginar os Africanos”, realizado, em Maio de 1995, no Museu Nacional de Etnologia
de Lisboa. Agradeço, em particular, a Joaquim Pais de Brito, co-organizador do colóquio,
pelo desafio que então me formulou. Nesta versão mais alargada, retomo alguns fragmentos
de textos de circulação universitária restrita (em especial, Valverde 1992a; 1992b) — em que
as leituras críticas de João de Pina Cabral foram preciosas.
2. Dentre as muitas referências bibliográficas, saliento alguns textos significativos, com uma
especial referência ao contexto africanista: Beidelman 1982; Benoist 1987; Bernand e
Gruzinski 1988; Blakely, Van Beek e Thomson 1994; Blanckaert 1985; Bonsen, Marks e
Miedema 1990; Bowie, Kirkwood e Ardener 1993; Bureau 1996; Burridge 1991; Chrétien 1993;
Clifford 1982; Comaroff 1985; Comaroff e Comaroff 1991,1992; Duverger 1987; Garvey 1994;
Gifford 1995; Goodman 1994; Hastings 1989, 1994; Hefner 1993; Huber 1988; Kabongo-Mbaya
1992; Kulp 1987; Landau 1995; Mbembe 1988; Monnier 1995; Mudimbe 1988; Oosthuizen
1992; Oosthuizen e Becken 1994; Péclard 1995; Piepke 1988; Quenum 1993; Rafael 1993 (1988
1 ); Raison-Jourde 1991; Rambo 1993; Salamone 1983; Salvaing 1995; Stromberg 1993;

Sundkler 1960; 1961 2 (1948 1 ); Thompson 1995; Zorn 1993.


3. A bibliografia antropológia sobre o corpo é prolixa. Selecciono apenas alguns textos
importantes na argumentação do meu estudo: Csordas 1994; Good et al. 1992; Jackson 1989;
Scarry 1985; Shilling 1993; Turner B.S., 1992; Vincent-Buffault 1986. Para matizar esta
“corrida ao corpo”, nada melhor do que ler Bynum 1995.
4. Os textos recentes permitiram revalorizar a experiência dos habitantes das terras de
missão, sendo notado, de uma forma quase constante, o modo decididamente estratégico
com que muitas populações ou determinados grupos sociais negociaram os recursos
simbólicos e materiais oferecidos pelos missionários — desde a educação e a saúde a meios
logísticos militares, gerindo, algumas vezes habilmente, as rivalidades entre diferentes
denominações missionárias (cf. o excelente Hastings 1989, e os inevitáveis textos dos
Comaroff). Ou seja, e circunscrevendo-me ao contexto regional deste artigo, as populações
africanas não foram sempre receptáculos passivos do trabalho da missionação. Se a
mensagem cristã, em muitos casos, se articulou com a imposição de formas políticas
opressivas — explorando a mistificação de uma indistinção entre a supremacia do capital
político e económico das potências coloniais e o valor ontológico do cristianismo —, as
leituras e reinterpretações locais foram também marcadas, em muitos casos, pela
criatividade, resultando na proliferação de sincretismos, mobilizando, por vezes, formas de
resistência mais ou menos violenta e, finalmente, provocando situações irónicas que,
algumas vezes, assim foram apercebidas pelos seus protagonistas.
5. Cf. a noção próxima de “argumentos [ scripts ] culturais para a acção humana”
significativa na reflexão contemporânea da antropologia cognitiva (cf. Quinn 1996: 416).
6. Privilegio, em especial, as narrativas e testemunhos dos membros da influente
Congregação do Espírito Santo — dominante em Angola e Guiné — que, em particular nas
páginas da sua revista Portugal em África e do seu jornal Acção Missionária , estimulou uma
invulgar reflexão missionária. De igual modo, oferecem informações significativas os
membros da Missão do Sagrado Coração de Jesus, os chamados Combonianos — por
referência ao seu fundador Daniel Comboni (1831-1881) —, em especial na revista Além-Mar,
que, desde 1956, data da sua fundação, até aos nossos dias, tem sido uma publicação com
uma larga divulgação em Portugal — e das Missões Franciscanas muito activas em
Moçambique (cf. Lopes 1972). Existem, além disso, numerosas denominações missionárias
católicas com graus de importância diversos, o que pode ser avaliado no Anuário Católico do
Ultramar Português (1960) , organizado pelo padre Albano Pedro e publicado em 1962.
7. Em todo o caso, é fundamental sublinhar que estes cerca de trinta anos correspondem a
uma espécie de pax lusitana , sob a égide do Estado Novo salazarista, que inicia com projectos
de reedição de um Portugal rural em África e fecha, nos anos 50, com tentativas de
desenvolvimento económico que viriam a ser aceleradas pelos esforços de guerra a partir
dos anos 60 (Clarence-Smith 1990; Newitt 1981; Pereira 1986).
8. Estas sugestões devem muito às propostas de James Fernandez (1974; 1986), que
sublinhou que as metáforas, além do seu papel expressivo, possuem um conteúdo
experiencial fundamental na comunicação humana.

RESUMOS
Nas narrativas missionárias sobre a África colonial portuguesa (1930-60), as reflexões sobre
o corpo são centrais. A materialidade biológica origina uma linguagem, dominada por
tropos somáticos, que é utilizada pelos missionários para avaliarem a sua experiência do
mundo. Os modelos missionários, plurais e mesmo conflitivos, da corporalidade permitem
interpretar e controlar as ambiguidades e os perigos de um mundo mutável muitas vezes
hostil. E, de um modo crucial, é largamente através de uma praxis de reconstrução e, no
limite, de destruição sacrificial do corpo e da subjectividade que os projectos evangélicos
reflectem a transformação da sociedade presente e a possibilidade da salvação e da utopia
do reino de Deus.

In missionary narratives on colonial Portuguese Africa (1930-60), embodiment is a central


subject. Biological materiality brings forth a language, pervaded by somatic tropes, which
missionaries use to assess their world experience. The multifarious and even conflictive
missionary models of bodiliness enable the interpretation and control of ambiguities and
dangers in a changing and often hostile world. And, in a crucial way, it is largely by a praxis
of reconstruction and, in limit cases, of sacrificial destruction of body and subjectivity that
evangelical projects approach the transformation of present society and the possibility of
redemption and the utopia of the kingdom of God.

AUTOR
PAULO VALVERDE

Departamento de Antropologia – ISCTE, Centro de Estudos de Antropologia Social


paulo.valverde@iscte.pt
O pensamento sizígio: confronto,
combinação e transformação nos
bestiários medievais
Manuel João Ramos

1 Em astronomia, o termo sizígia pode ser aplicado para descrever


tanto uma conjunção como uma disjunção extremas entre corpos
celestes (por exemplo, um plenilúnio, ou um novilúnio); num
qualquer sistema gravitacional, uma sizígia designa, mais
especificamente, uma configuração linear de corpos celestes (por
exemplo, o Sol, a Terra e a Lua, durante um eclipse solar ou lunar).
Uma sizígia é, portanto, uma combinação particular entre corpos
celestes (por exemplo, o Sol e a Lua) em que, em termos de emissão
de raios luminosos, uma continuidade total ou uma descontinuidade
máxima ocorrem em função da posição de um terceiro corpo (a
Terra) que serve de ecrã e reflector. Mais genericamente, o termo
sizígia (do gr. sysygos ) representa uma combinação ou pareação entre
dois elementos distintos e implica que um estado ou posição de
oponibilidade é função da existência de uma força ou núcleo
atractor.
2 Na elaboração de tipologias e taxinomias medievais, é
frequentemente reconhecível a manipulação de um conjunto de
vectores de oposição e de combinação assentes numa sizígia de
natureza teológica: Cristo (gerador/gerado, divino/humano) que,
descendente de Adão, é simultaneamente consubstancial com Deus-
pai e produto, por via uterina, da semente do mal; e o Diabo,
identificado com a própria semente do mal, só inferior a Cristo
porque, sendo anjo — e o mais elevado dos anjos — lhe é superior 1
. A caracterização das serpentes e escorpiões como animais
portadores de veneno associados ao Diabo e ao mal, corrente na
simbologia e na mística cristã, é evidenciada, com uma função
explicitamente tipológica, nos bestiários moralistas medievais que
constituem elaborações do texto alexandrino do Fisiólogo (Wittkower
1987: 31-32). A classificação que orienta este tipo de textos introduz
um critério dualista vertical, que percorre as várias tipologias
vegetais e animais (divisíveis em aquáticos, terrestres e celestes,
ocupando os répteis uma categoria autónoma): as diversas espécies
descritas são definidas pela sua associação alegórica a Cristo ou ao
Diabo.
3 Neste contexto simbólico, Richard Warburg chama a atenção para o
conteúdo de uma passagem do Comentário ao Apocalipse pelo Beato
Espanhol (século VIII ), onde uma “ave do Oriente” ornamentada de
pérolas representando Cristo combate uma serpente, figuração do
Diabo, cobrindo-se de pó para dissimular a sua natureza e a sua
presença 2 (Warburg 1937-38: 253). Esta passagem explora a
imagética da simbolização de Cristo como águia que combate a
serpente (o Diabo), fundada na tradição hermenêutica dos escritos
dos primeiros autores cristãos 3 . Beato menciona ainda que a “ave
do Oriente”, coberta de pó, protege a cabeça com a cauda, para
depois atacar com o bico a cabeça da serpente e perfurarlhe o
cérebro. E explicita a associação alegórica entre a “ave do Oriente” e
Cristo: este, à imagem daquela, “vestiu-se com a fraqueza humana e
cobriuse com o pó da nossa carne para lutar sob a forma humana (...)
tapando, assim, com a cauda da humanidade, a face da divindade e
extinguindo, como que com um longo bico, a malícia venenosa do
velho assassino dos homens [o Diabo], através da palavra da sua
boca” (Warburg 1937-38: 253). A “ave do Oriente”, descrita por Beato
como representação de Cristo, evidencia uma conjunção
morfológico-comportamental interessante: tornase invisível ao olhar
da serpente dissimulando-se sob o pó levantado, e escuda-se do seu
veneno protegendo a cabeça (identificada com a divindade) com a
cauda (identificada com a humanidade).

4 Alegoria sobre o par antitético Cristo/Anticristo, a descrição da luta


da “ave do Oriente” parece constituir uma transformação da luta do
mangusto icnêumone (gr. ichneumon, “perseguidor”) contra uma
serpente, relatada na literatura enciclopédica clássica 4 e que é
retomada no Fisiólogo: o icnêumone egípcio, para além de roubar os
ovos dos crocodilos (Plínio, Hist. Nat., VIII, 36), caça cobras venenosas
começando por cobrir a cauda e o corpo com camadas de lama ou
areia que seca ao sol, criando assim uma protecção eficaz contra o
seu ataque. Combate-as levantando a cauda à sua frente para
proteger o focinho descoberto, único ponto vulnerável à picada de
serpentes. Ataca-as pelo flanco, estrangulando-as pelo pescoço
enquanto elas tentam em vão morder-lhe a cauda levantada 5 . Esta
classificação bipartida que opõe a parte superior do corpo à parte
inferior, que define a “ave do Oriente” e o icnêumone, é também
curiosamente aplicada à serpente, no Fisiólogo: o corpo da serpente é
identificado com o Homem, a sua cabeça representaria Cristo 6 .
5 AVE DO ORIENTE ≈ SERPENTE
6 Naturalmente que, em termos exegéticos, a interpretação desta
bipartição é possibilitada pelo facto de a grelha classificatória dual
ser aplicada, não apenas a espécies, mas a partes de corpo. Mas não
deve ser esquecida, neste contexto, a advertência do autor medieval
de Dos Animais sobre a fluidez que subjaz às diversas classificações
fisiológicas: “Se alguém se espanta que animais imundos, tais como a
serpente, o dragão, o leão, a águia e outros semelhantes, possam
significar algo de bom, como a purificação e os ensinamentos da
consciência, saiba que eles representam umas vezes a força e o
reinado de Cristo, e outras a rapacidade do Diabo, podendo aplicarse
de diversas formas” (§ 215, in Pernoud, Davy e Davy 1973).
7 A questão essencial por trás destas associações e aparentes confusões
é mais bem explicitada pela retórica particular das descrições
enciclopédicas e literárias de seres “maravilhosos”, onde é mais
marcante a ênfase posta na combinação, na agregação, na
ambiguidade. Os exemplos abundam, da quimera das Metamorfoses de
Ovídio (Met., IX, 647) — monstro ígneo com cabeça humana sobre um
corpo de leão e cabeça de cabra no fundo de uma cauda de serpente
que, segundo Alberto Magno, habita na Babilónia (Animalia, 58a) —,
ao Leviatã, o serpens diabolus de Isidoro (Etimologias, VIII, 11, 27),
dragão apocalíptico lançador de chamas, com barbatanas e asas,
segundo a descrição de Vincent de Beauvais (Espelho da Nat., XX, 29).
Mas dois monstros merecem particular atenção para a compreensão
da problemática relação entre a “ave do Oriente” e a serpente. Um
deles é o basilisco [gr. basilískos, lat. regulus, “pequeno rei”], o “rei
das serpentes” 7 , que ocorre na literatura zoológica fantástica,
desde Aeliano, Plínio e Júlio Solino. Nascido do ovo de um galo e
chocado por um sapo, tem corpo de serpente e cabeça de pássaro;
mede apenas meio-pé, mas, tal como o seu silvo estridente põe em
fuga todos os répteis, o seu poderoso veneno é fatal para os homens,
para os animais, para a vegetação e para a própria terra; vicia o ar
com o seu sopro impuro e qualquer pássaro que voe próximo dele cai
morto. Só a doninha lhe é imune e é mesmo capaz de o matar,
quando fechada numa toca ou buraco com ele. Aeliano adianta ainda
que também o canto do galo lhe é fatal. Note-se que o basilisco
recebe na Idade Média uma característica complementar importante:
o seu olhar fulmina 8 .
8 O carácter combinatório deste animal monstruoso é óbvio e alguns
dos elementos que o descrevem são facilmente inteligíveis. O seu
estatuto de “rei das serpentes” e o imenso poder do seu veneno são
função da sua natureza ambígua de réptil rastejante e venenoso e de
galináceo de canto estridente e comportamento emproado 9 . A sua
caracterização iconográfica é geralmente a de um ser larvar, como
um girino de batráquio, ou combinatória – cabeça e patas de galo,
asas de dragão, corpo de ofídeo (Lecouteux 1982, II: 169;
Malaxecheverría 1989: 146-156) 10 . Do seu nascimento monstruoso
herda a crista ou coroa, o bico, a plumagem facial, e a estridência do
seu silvo; por outro lado, do sapo retém a natureza ctónica (o sapo
esconde-se sob a terra), a venenosidade e o olhar fulminante (o sapo
lança o seu veneno contra aqueles que olham para ele). É
interessante notar como a elaboração de um monstro de poderes
hiperbólicos, tão universalmente nocivos, se funde com informações
inversas sobre a sua quase caricatural fragilidade e vulnerabilidade
ao canto do galo. Se o seu terrível silvo exprime, entre os répteis,
uma marca da sua diferença (a estridência do seu silvo advém da sua
origem galinácea), o facto de sucumbir ao canto igualmente
estridente do galo surge como resultado de um cúmulo notável de
elementos de valor idêntico. Esta conjunção intolerável exprime-se
através de um verdadeiro curtocircuito simbólico: definido à partida
como uma super-serpente, o basilisco não passa, no entanto, de um
infragalináceo.
9 Esta interpretação pode ser confirmada por informações
complementares referentes ao seu irredutível inimigo. A doninha
(lat. mustela, de musteus: “fresco”, “novo”) é um pequeno predador
voraz, de aspecto vagamente serpentilíneo. Tal como o basilisco
exala um hálito impuro, a doninha caracteriza-se pelo seu cheiro
fétido: Plínio refere explicitamente que o basilisco sucumbe, no
interior da sua toca, ao mau cheiro da doninha (VIII, 33). O basilisco,
cujo mau hálito mata animais do alto (aves em voo), morre, portanto,
devido ao hálito fétido de um animal que é etologicamente marcado
por uma grande polivalência cinegética: a doninha (ordem dos
mustelidae) caça pássaros nas árvores, peixes nos rios, roedores e
pequenos répteis sob a terra. Se os odores congénitos dos dois
animais são fétidos, são, no entanto, desigualmente fétidos. O
basilisco é venenoso, portanto categorialmente associado à
putrefacção; a doninha é considerada imputrescível (o seu próprio
nome latino a identifica com o “fresco” e o “novo”).
10 Por outro lado, desde pelo menos Plínio que a doninha é associada a
uma erva medicinal, a arruda (lat. ruta): antes de penetrar nos
buracos onde o basilisco se esconde, a doninha, como protecção,
ingere ramos de arruda. A arruda que é na tradição europeia da
ervanária uma das mais poderosas plantas medicinais, para resolver
disfunções relacionadas com o estômago e a digestão, com a visão em
geral e com envenenamentos diversos, exala um odor igualmente
fétido 11 . Hildegard de Bingen informa que a doninha conhece uma
erva secreta que tem o poder de a curar e fazer reviver, quando
misturada com o seu hálito e urina malcheirosos; sugere também
que ela é imputrescível, e que o bálsamo aplicado com uma pele seca
de doninha nas orelhas serve para curar problemas de audição no ser
humano (Física, VIII, 38).

11 É importante notar como as características definidoras destes seres


são retidas e manipuladas nos termos de uma lógica exploratória: a
mesma planta de odor fétido que serve de protecção e garantia de
imputrescibilidade a um animal também fétido, e que constitui um
antídoto eficaz contra envenenamentos, tem um efeito aniquilador
num monstro venenoso de hálito tão impuro que mata qualquer ave
que voe por perto; este par, a arruda e a doninha, têm,
complementarmente, virtudes medicinais que invertem o efeito
nocivo atribuído ao olhar fulminante e ao silvo estridente do
basilisco: a primeira resolve problemas de visão, e a segunda,
problemas de audição.
12 A mesma Hildegard de Bingen, ao descrever uma cura para as
escrófulas, por secamento, através do recurso ao fígado de um sapo
(um animal “quente” e venenoso) e de terra aquecida, nota,
referindose ao linho a usar com a mistura: “É necessário que
contenha suor humano, para que tudo o que é podre fuja desse suor,
que tem um cheiro fétido; porque, muito frequentemente, é o mal
que afasta o mal” (Física, IX, 4). As escrófulas, que ao rebentarem a
pele a transformam em chaga putrefacta, são supostas exalar um
cheiro fétido. São concebidas como secrecções sudoríferas
putrefactas e malignas (Bloch 1983: 28) 12 . Alguns tratamentos
listados por Plínio para a cura das escrófulas sugerem ser a aplicação
de um princípio de invocação metafórica, em que é buscada a
equivalência entre o carácter reticular da expansão subcutânea das
escrófulas e a acção de certos animais escavadores: a toupeira, a
minhoca, a formiga, o grilo, a doninha. Mas outros remédios
obedecem ao mesmo princípio de acção por aversão ou repulsa
metonímica evocado por Hildegard de Bingen. Através do uso de
animais conotados com a putrescibilidade, esses remédios têm o
efeito de expelir a putrefacção do interior do corpo: comer a parte
central de uma víbora, ou atar um cordão de linho no qual foi
suspensa uma víbora até morrer; aplicar unguento feito de caracóis
ou lesmas esmagadas; usar um lagarto verde como amuleto (Física,
XXX, 12).
13 Estas informações, serão mais bem inteligidas se forem retidas
algumas considerações sobre as particularidades do que as ciências
sociais convencionam designar como o “pensamento simbólico”.
Émile Durkheim, reflectindo sobre lógica simbólica e científica, nota
que, quando elementos heterogéneos são ligados por um laço lógico
interno, se identifica uma relação de contrariedade e, quando se une
termos homogéneos, se estipula uma relação de identidade. A partir
desta constatação, Durkheim descreve a retórica inerente à lógica
simbólica nos termos seguintes: como “um gosto natural, tanto pelas
confusões intemperadas como pelos contrastes excessivos (...).
Quando aproxima confunde, quando distingue, opõe” (Durkheim
1968: 341-342) 13 .
14 Françoise Héritier, a propósito da simbólica do incesto em
sociedades não ocidentais, demonstra que, nos termos de uma lógica
classificatória e proposicional, em circunstâncias particulares
elementos simbólicos idênticos se atraem e noutras se repelem
mutuamente (Héritier 1979: 232-233). O “cúmulo de idêntico” pode
ser buscado ou pode ser proibido quando se trata, sugere, de regular
a ordem das relações entre sexos opostos. Os conceitos
complementares de “contágio” e de “curto-circuito” subsumem no
âmbito do simbolismo esses dois movimentos discursivos inversos.
Este princípio analítico, para que tenha aplicação geral, deverá ser
complementado com a demonstração inversa, proposta por Gomes
da Silva na sequência das considerações de Claude Lévi-Strauss sobre
a simbologia da piroga ameríndia (Lévi-Strauss 1968: 157-160): os
movimentos de conjunção e de disjunção mútua (moderados ou
excessivos) que afectam termos logicamente idênticos são
igualmente evidenciados por elementos oponíveis como termos
contrários (Gomes da Silva 1989: 33-40).
15 Os contornos heurísticos desta conceptualização têm o interesse de
permitir enquadrar e sistematizar a constante ambiguidade formal,
que parece ser um traço definidor dos elementos relacionados nos
diversos contextos simbólicos e enciclopédicos mencionados. O
exemplo específico do basilisco reflecte explicitamente a
centralidade dessa categoria lógico-retórica, a ambiguidade. Esta é
porventura a razão mesma da existência discursiva do basilisco e dos
monstros em geral. Bruno Roy sublinha, a partir da teorização
teológica de Agostinho (Cidade de Deus, XVI, 8), que a noção de
“monstro” (lat. monstra, de monstrare: “mostrar”) se integra num
complexo lexical mais vasto onde se incluem o portento (lat.
portenta, de prae-ostendere: “predizer”) e o prodígio (lat. prodigia, de
porro dicere: anunciar) (Roy 1975: 75). A definição semântica da noção
de “monstro” no imaginário europeu clássico e medieval resulta na
acepção de que os monstros existem, porque, enquanto tais, têm algo
a mostrar, a anunciar, algo para tornar manifesto; acomodandose
com a teologia cristã, a imaginação da monstruosidade condicionaria
assim a construção da normalidade natural ou social (Roy 1975: 76).
O argumento é desenvolvido a propósito da “humanidade
monstruosa”, não da categoria dos “monstros quiméricos” em que o
basilisco se integra. Mas a função “mostrativa” é equivalente: o
basilisco torna retoricamente manifesta, na sua morfologia e
comportamento, a ambiguidade que se esconde na natureza das
classificações zoológicas.
16 Retenha-se ainda a possibilidade de correlacionar a oposição
doninha/basilisco com a já mencionada oposição
icnêumone/serpente, segundo os mesmos princípios formais:
mamíferos predadores que assumem uma posição baixa (o
icnêumone cobre-se de lama e pó; a doninha penetra na toca do
basilisco) para combater seres rastejantes mortalmente venenosos
14 . Mas note-se que enquanto a doninha evidencia uma forte

capacidade de mediação espacial entre o alto e o baixo


(demonstrando uma polivalência genérica nos seus métodos de caça,
subindo às árvores e descendo a buracos subterrâneos), que, em
conjugação com as outras características complementares já
referidas, fazem dela o perfeito rival e contrário do terrível basilisco,
o icnêumone apresenta uma capacidade dialéctica limitada à
manipulação dessas categorias alto/baixo ao nível morfológico no
combate contra a um pouco menos terrível serpente (levanta a cauda
para se proteger do seu veneno e ataca-a por baixo).
17 Esta associação permite também enquadrar o carácter combinatório
do “pássaro do Oriente” mencionado no Comentário de Beato (a
conjunção entre as extremidades alta e baixa do seu corpo no
momento do ataque à serpente): a dissimulação no ataque tem a
função dupla de tornar o atacante invisível ao olhar da serpente e de
o proteger do seu veneno (penas da cauda levantadas; nuvem de pó).
Nos mesmos termos deve ser também interpretado o ataque do
icnêumone e o encerramento da doninha no interior dos buracos:
trata-se, nos três casos, de impossibilitar a visão ao adversário como
condição prévia para anular a sua nocividade. A correlação entre os
dois traços é evidente na informação de que o basilisco é tão
venenoso que mesmo o seu olhar fulmina (tema que se torna central
na caracterização do monstro na Idade Média, sobretudo no Romance
de Alexandre).
18 O outro exemplo proposto atrás relaciona-se directamente com o
texto medieval da Carta do Preste João. Aí, é relatada a existência nas
proximidades da zona tórrida da salamandra, descrita como um
“verme” que vive no meio do fogo em buracos no interior de certas
montanhas e que produz uma película usada para tecer o vestuário
incombustível do rei indiano Preste João (Carta-Urtext, § 42-43, in
Zarncke, 1879). Privilegiando o seu carácter incombustível, a
descrição resumida da Carta omite a informação, corrente nos textos
enciclopédicos antigos e medievais, segundo os quais a salamandra é
um animal extremamente venenoso que tem a capacidade de apagar
fogos. Se sobe a uma árvore apodrece todos os frutos e se cai a um
poço envenena a água 15 . “Verme” na Carta, “lagarto” para Isidoro
ou Plínio, a salamandra surge em certos textos, como no Livro dos
Monstros de Diversos Géneros e na Física de Hildegard de Bingen,
classificada entre as “serpentes” 16 . Em qualquer dos casos, define-
se segundo os mesmos princípios codificadores: animal rastejante,
incombustível e ctónico, mas como o basilisco combinando
características contrárias. Ressalve-se, no entanto, desde já que o
Bestiaris (ms. A; in Panunzio 1963, I: 85) afirma explicitamente que a
salamandra é uma ave branca 17 , e que textos como o Fisiólogo Grego
(XXXI, in Zambon 1982: 67-68) e o Bestiário de Philipe de Thaün
(vs.1305-1358, in Walberg 1900) acentuam a natureza
particularmente fria da salamandra, que a torna apta não só a apagar
fogos (da forja, de lareira, de caldeiras), mas a viver correntemente
em fogos perenes (dos vulcões, em particular).
19 A capacidade de resistência permanente ao fogo inextinguível (pelo
menos ao fogo ctónico, dos vulcões) como um dos elementos centrais
na definição genérica da salamandra, bem como a sua venenosidade,
permitem relacioná-la com as simbolizações monstruosas do Diabo
(o dragão, a quimera, o basilisco, etc.) e com regiões infernais (pela
dupla referência ao mundo cetónico e à zona tórrida) correntes na
literatura e na arte cristã. É por isso de reter como relevante a
omissão expressa na Carta em relação à venenosidade, sublinhando
apenas o duplo carácter incombustível e ctónico, e, através dele, a
sua ligação metonímica ao Preste João (através do motivo da
confecção do vestuário). Esta omissão é concomitante com a
atenuação do poder nocivo dos seres rastejantes e venenosos no
território indiano, mencionada atrás. Mas a referência à natureza
particular da salamandra não pode deixar de ser equacionada com
outros elementos presentes no texto de referência: para além do
facto de o Preste João se vestir com roupas temperadas [purificadas]
pelo fogo, descreve-se também a resistência da pimenta ao fogo
ateado pelos súbditos do soberano, fogo que destrói as serpentes que
vivem junto das pimenteiras; é ainda mencionada a existência na
Índia da fénix, a ave que ressuscita do fogo que a consome (Zarncke
1879; cf. Ramos 1993). Entre a roupa do Preste João, fabricada por
salamandras, as tradições clássicas relativas à plumagem da fénix —
ave consubstancial com os aromatos (Detienne, 1989: 59) —, e a
roupa de Alexandre Magno, que, no Romance de Alexandre, exala o
perfume dos aromatos, é claramente perceptível a existência de um
grupo de correspondências simbólicas complexas que expressam o
poder mediador destas personagens (entre o mundo elevado a
Oriente e as regiões inferiores a Ocidente 18 ).
20 A temática do maravilhoso vestuário incombustível do Preste João
19 encontra, por outro lado, curiosos paralelos na literatura cristã
antiga, tanto ocidental como oriental. Alguns exemplos deverão aqui
ser considerados, já que permitem tornar mais claro o conteúdo algo
enigmático da indumentária do Preste João e a sua inesperada
associação a répteis (ou “vermes”, segundo a Carta) incombustíveis,
ctónicos e venenosos. Como foi afirmado anteriormente, o motivo do
olhar fulminante e letalmente venenoso é corrente na literatura
medieval sobre o pequeno e poderoso monstro que é o basilisco. Este
motivo inspira um episódio do Romance de Alexandre 20 : aquele em
que escudos polidos como espelhos são usados como meio de
protecção e simultaneamente como arma contra o basilisco (os
escudos-espelhos, reflectindo o seu olhar venenoso, causam-lhe a
morte, salvando assim Alexandre e o seu exército).
21 Este curto-circuito da visão provocado pelo uso de um espelho ou de
um cristal, de algum modo equivalente à caracterização da natureza
das figuras da doninha e da arruda, assim como das aves e mamíferos
predadores de cobras, pode ser revisto numa versão trecentista do
Fisiólogo, o Bestiário de Pierre de Beauvais (in Cahier e Martin 1847-
56). Aqui, é apresentada sob a forma de alegoria comentada uma
elaboração particularmente interessante sobre o uso de um artifício
para vencer o monstro. Pierre de Beauvais comenta uma narração de
origem não identificada em que um “filho de um rei” liberta os seus
companheiros mortos e aprisionados por um basilisco graças a um
original recurso: aquele envolve-se num “invólucro muito mais
transparente que o vidro ou o cristal”, no qual o veneno lançado
pelos olhos do basilisco resvala e ricocheteia de modo a atingi-lo e a
entorpecê-lo; ultrapassado o obstáculo, o “filho do rei” penetra
numa “velha cisterna” 21 onde os companheiros mortos se
encontram e encaminha-os para a claridade. Este episódio é
interpretado por Pierre de Beauvais como uma alegoria sobre a
vinda de Cristo à terra, em que o basilisco representa o Diabo, o
“invólucro” é o ventre de Maria e a libertação dos companheiros a
remissão dos pecados da humanidade através da morte e
ressurreição de Jesus (Bestiário, in Cahier e Martin 1851: 213-215).
22 Desconsiderando momentaneamente a associação metafórica do
“filho do rei” a Jesus Cristo, expressa por Pierre de Beauvais — a qual
é também recorrente na definição da figura do Preste João, na Carta
(Albert 1991) —, importa notar que o referido “invólucro
transparente” tem, dir-se-ia, a mesma função que os espelhos usados
por Alexandre: ambos se definem como meios de protecção contra o
basilisco, uma manifestação monstruosa do Diabo. A
permutabilidade entre espelhos e objectos transparentes está aliás
bem expressa em várias descrições sobre uma variedade de
“serpente” azul, o tigre: o artifício utilizado por caçadores de crias
de tigre é, no Bestiaris, a colocação de espelhos no percurso por onde
aqueles fogem com as crias raptadas, para que a progenitora se
distraia da perseguição ao contemplar e admirar o seu reflexo (in
Panunzio 1963, I: 86) 22 ; no Bestiário de Cambridge, não são utilizados
espelhos mas bolas de cristal transparente, onde o tigre vê o seu
reflexo e, julgando tratar-se das crias, em vez de perseguir os
caçadores, imobiliza-se para as proteger e amamentar (in White
1960: 12-13). Na Imagem do Mundo, Gossouin de Metz nota que este
procedimento pode inclusivamente servir para capturar o próprio
tigre, além das suas crias (II, 2, § DB).
23 Por outro lado, certos elementos constituintes do episódio narrado
por Pierre de Beauvais são comuns aos relatos presentes nas
enciclopédias sobre predadores de serpentes e de basiliscos: aqui e
ali são propostas elaborações, convergentes quanto aos princípios,
de uma dialéctica da continuidade e da descontinuidade entre
antagonistas com naturezas contrárias. Assim se enquadra uma
relação dinâmica de movimentos de conjunção e disjunção entre
termos simbólicos opostos (luz/trevas, vida/morte, alto/baixo,
visão/cegueira) que permite, consoante os casos, a apropriação, a
rejeição, ou a inversão de certas características de um personagem
pelo seu adversário. Por isso, mesmo antes de procurar explicitar a
natureza particular deste “invólucro transparente”, será
conveniente sistematizar as outras referências até agora
apresentadas, onde se adivinha uma curiosa codificação do olhar
(também presente, ainda que de forma indicial, na Carta do Preste João
23 ).

24 As características ópticas dos espelhos possibilitam uma elucidação


— clara e metaforicamente rica — de pelo menos uma vertente do
problema proposto nas descrições de confrontos entre adversários
com naturezas contrárias. Como foi sugerido, os vários combates
referidos entre répteis, monstruosos ou não (o basilisco, as cobras), e
oponentes animais (a doninha, o icnêumone, o pássaro do Oriente)
ou humanos (Alexandre e o “filho do rei”), deixam entender uma
relação de causalidade dialéctica entre o código visual e o papel do
veneno como factor de morte. São assim evocados dispositivos
diversos que, introduzindo uma descontinuidade visual entre
oponentes, tornam possível inverter a direcção do ataque fulminante
e mortal que caracteriza as serpentes. Mas é a ideia de espelho que
melhor permite conceptualizar o carácter inextricável dessa relação.
A venenosidade e nocividade do basilisco estão em parte associadas
ao seu olhar “fulminante”. O seu suicídio involuntário, através de um
cúmulo de venenosidade ao confrontar-se com o reflexo da sua
própria imagem, é por isso particularmente ilustrativo. Por um lado,
o espelho serve como escudo na medida em que impede que um
olhar carregado de veneno se projecte, se estenda ao adversário do
basilisco. Mas, por outro, ao reflectir a imagem transforma-a no seu
inverso, causando como que um curto-circuito no fluxo de veneno.
Tal ideia está também presente em algumas histórias sobre o tigre: o
espelho ou a bola de cristal permitem transformar um ataque
fulminante e letal numa imobilidade feita de autocontemplação ou
de preservação da descendência 24 .
25 Esta tripla função do espelho (de ecrã, de reflector, de inversor)
encontra-se combinada de modos divergentes nos vários relatos. Mas
em todos os casos trata-se de possibilitar, através de um dispositivo
de decepção, a sobrevivência de um contendor temporariamente
invisível, causando em simultâneo a morte ou entorpecimento (ou,
no caso do tigre, encantamento) de um adversário letal: devido à
erecção de uma cauda enlameada (icnêumone) ou do levantamento
de nuvens de pó e erecção das penas da cauda (pássaro do Oriente),
em combinação com um ataque lateral rápido e inesperado; graças à
ausência de luminosidade (e, portanto, de visibilidade) no interior de
um buraco, ausência conjugada com o recurso a um cúmulo de mau
cheiro (a ingestão de arruda pela doninha permite reflectir e
inverter o fluxo de hálito impuro do basilisco); ou recorrendo a um
artifício único que integra em si as várias funções (o espelho, a bola
de cristal, ou o invólucro transparente).
26 A riqueza semântica da noção tripla de ecrã, reflector e inversor,
subsume-se no facto de o espelho exprimir de forma económica o
carácter de total interdependência que marca a relação entre os
adversários em confronto: a relação da imagem com o seu reflexo. A
possibilidade de sobrevivência ao ataque fulminante das serpentes,
dos tigres, ou dos basiliscos passa sempre pela introdução prévia de
uma descontinuidade visual temporária e, o que é fundamental, uma
apropriação de alguns dos seus traços definidores. Esta apropriação,
equivalente à de uma imagem pelo seu reflexo (literal ou
metaforicamente), impõe uma imobilização mais ou menos
suicidária do atacante, ou sujeita-o a um contra-ataque ainda mais
fulminante.
27 Este jogo dialéctico só é possível em função de uma peculiar
insistência na indissociabilidade lógica que afecta a definição dos
termos em relação. Tal indissociabilidade é expressa na ideia de que,
perante um ser ambíguo e negativamente caracterizado, o seu
oponente deve encontrar e evidenciar, na sua morfologia ou na sua
etologia, algo da natureza do inimigo. Como foi visto antes, os
caçadores de cobras (o pássaro do Oriente e o icnêumone)
manipulam, ao nível das partes do próprio corpo, a mesma dualidade
entre alto/baixo que se exprime na sua relação com a serpente e,
invertendo as posições relativas da cabeça e da cauda, matam-na
num ataque fulminante espelhado do seu. O mesmo princípio rege o
comportamento da doninha perante o basilisco, produzindo, através
das glandes anais, um odor fétido capaz de se sobrepor ao hálito
impuro do inimigo.
28 Mas esta operação da doninha merece alguns esclarecimentos
adicionais. O mau cheiro associado à zona anal da doninha é, como
foi mencionado, função da ingestão de uma planta fétida, a arruda.
Mas o Bestiaris informa que a doninha concebe pelo ouvido e pare
pela boca, dando à luz as crias mortas, que ressuscita ingerindo a
arruda (in Panunzio 1963, I: 76-77). Por outro lado, é importante
reter uma informação, fornecida no Fisiólogo Grego, sobre o processo
de concepção das víboras: depois de sublinhar a semelhança física
entre o rosto das víboras e dos humanos, o texto lembra que a fêmea
não tem vagina e que por isso o macho ejacula na sua boca 25 ;
depois de engolido o sémen, mata o macho cortando-lhe os órgãos
genitais; as crias crescem no ventre da progenitora e, para saírem
para a luz, devoram-na por dentro (Fisiólogo Grego, X, in Zambon
1982). Se a doninha parece realizar literalmente uma concepção
maravilhosa atribuída à palavra divina (“o verbo fez-se carne”, João,
I, 14), é então significativo que o faça nos termos de uma inversão
parcial do processo de concepção das víboras, representantes
zoológicos do Anticristo. Mas se o processo generativo (do ouvido à
boca) é metaforicamente equivalente ao da mãe de Cristo, ele é, no
entanto, um processo falhado: as crias da doninha nascem mortas e
só ressuscitam graças à ingestão de uma planta de odor fétido. Nessa
medida, e também porque a ingestão da arruda permite como que
duplicar o mau odor anal da doninha, o processo natológico é
também evocador do das víboras: o nascimento é, num caso, função
da ingestão de sémen venenoso e, no outro, da ingestão de uma
planta de valor ambíguo 26 .
29 Note-se ainda que a surpreendente solução, proposta no Romance de
Alexandre, de fazer levantar escudos polidos ao nível dos olhos para
impedir uma conjunção visual letal e aniquilar o basilisco através do
seu reflexo, tem como pano de fundo a própria definição deste como
“espelho”. Isto é, sendo o princípio estruturante da narrativa um
movimento contínuo de conjunção geográfica (entre o Ocidente e o
Oriente), o basilisco que impede o avanço do exército de Alexandre
ataca apenas estrangeiros, não os autóctones. Ele próprio deve ser,
em última análise, entendido como um ecrã e um reflector de um
fulminante movimento de agressão guerreira inicial.
30 No Bestiário de Pierre de Beauvais, a noção de “invólucro
transparente” com que o “filho do rei” se cobre para se defender do
veneno do basilisco é enquadrada pelos mesmos princípios formais
expressos atrás, e constitui uma outra forma de colocar um
problema lógico comum: o da definição de termos em relação
definíveis como contrários e simultaneamente como
indissoluvelmente ligados 27 . Esta interpretação é confirmada pela
permutabilidade evidenciada, em várias versões da descrição da
“serpente” tigre, entre espelhos, bolas e invólucros de cristal. Mas o
motivo do “invólucro mais transparente que o vidro ou o cristal”
introduz uma novidade importante, onde é reconhecível uma
formulação próxima, se bem que inversa, daquela apresentada pelo
vestuário do Preste João na Carta.

31 Como os escudos polidos do exército de Alexandre, o motivo do


invólucro explora evidentemente as mesmas capacidades reflectoras
dos dispositivos de combate ao basilisco. Mas aqui trata-se de um
dispositivo transparente, isto é, que deixa passar luz e imagem ao
mesmo tempo, que, poderia especular-se, providencia de algum
modo invisibilidade ao seu utilizador. A presença do invólucro
transparente num contexto que opõe explicitamente um “filho de
rei” a um basilisco venenoso e as trevas de uma “velha cisterna” à
claridade exterior favorece uma aproximação temática com o Preste
João: na Carta, o soberano cristomimético, claramente associado ao
alto e à luz, e em explícita oposição ao mal e ao Anticristo, tudo vê e
conhece do mundo ocidental, permanecendo, ainda assim, invisível e
inatingível. Mas a proveniência peculiar, ctónica, do seu vestuário, é
formalmente distinta da conceptualização do invólucro transparente
do “filho do rei”: o primeiro, brilhante, é produzido a partir das
secreções das salamandras; o segundo, transparente, é concebido
para resistir às secreções dos basiliscos.
32 Esta variação importante é interpretável à luz da complexa
dialéctica, marcada pelo contraste entre a “roupa imunda” e a
“roupa de glória”, que toca os modelos ideológicos da soberania
cristã europeia (Kantorowicz 1957). O vestuário brilhante produzido
por monstros venenosos é uma expressão eloquente dos limites
formais da Cristomimesis (isto é, da imitação de Cristo-rei por um
soberano terrestre): mesmo quando é idealizada na região “elevada”
do Oriente, a soberania temporal, expressa através de símbolos
externos de uma glorificação material, não está isenta de
perigosidade, de elementos de desafio à soberania espiritual divina
— por outras palavras, o vestuário do soberano cristão é sempre uma
“roupa imunda”.

33 A questão suscitada no início deste texto — que aponta para a


necessidade de reconhecimento da importância discursiva da
ambiguidade lógica —, é frequentemente ignorada na tradição
antropológica de análise das chamadas “classificações simbólicas”
(Ramos 1996). Note-se, no entanto, que C. Lévi-Strauss — referência
incontornável nesse âmbito de estudos — constata, num pequeno
texto de 1980, a recorrência de fenómenos de reversibilidade
simbólica, que afectam a relação entre “gerador” e “gerado”, no
“contexto etnográfico” europeu (sic) (“Un petit énigme mythico-
littéraire”, in Lévi-Strauss 1983: 291-299). Especificamente, este autor
evidencia a ambiguidade estatutária que define a relação, no ciclo
arturiano, entre o Preste João e Perceval (pai e filho, ou vice-versa,
consoante as versões do romance arturiano). Embora C. Lévi-Strauss
não se pronuncie sobre a problemática cristológica, não pode deixar
de ser aqui referido que a ambiguidade estatutária que caracteriza
um cavaleiro directamente relacionado com o Santo Graal e um
soberano oriental cristomimético é afinal identificável com o próprio
cerne da proposta evangélica: o Filho é (tornase) o Pai, o gerado é
(torna-se) gerador de si próprio. O problema que a narrativa bíblica
coloca em termos teológicos não se distingue, por sua vez, daquele
que Aristóteles identifica, na Metafísica, através de duas associações
lógicas complementares: entre termos de geração e degeneração
(reversibilidade), e entre atributos incompatíveis de uma matéria
que é receptível de ambos (contrariedade) (cf. Metafísica, II, 2, e
Organon I, V e XI) 28 .
34 C. Lévi-Strauss, ao constatar (não sem algum incómodo) que a
relação entre “significante” (gerador) e “significado” (gerado) tem a
propriedade essencial de ser reversível 29 , mantém, no entanto, um
silêncio absoluto sobre as consequências teóricas e heurísticas que
tal constatação é passível de implicar — em particular sobre a noção
de relação, tal como o autor a definiu e aplicou ao longo de vários
anos, sob a inspiração da fonologia estrutural (cf. Pavel 1988: 45-59).
É que, inevitavelmente, a noção de reversibilidade, tal como C. Lévi-
Strauss a delimita (seguindo R. Thom), só é inteligível se for feito o
reconhecimento prévio e explícito de que, numa dada relação, o
estatuto dos termos não é apenas definido por traços opositivos, mas
por uma efectiva consubstancialidade. Decorre daqui que, mesmo em
contextos onde a reversibilidade entre termos contrários é
explicitada, “à superfície”, através de uma relação de confronto
(como nos diversos casos apresentados atrás), são perfeitamente
reconhecíveis as forças centríptas que mantém indissoluvelmente,
inextricavelmente, fundidos os agentes dessa relação sizígia.

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NOTAS
1. Cf. Isaías (XIV, 12-15) e a Epístola aos Hebreus (II, 7).
2.O texto completo da passagem, apresentado por R. Warburg, é o seguinte: “Afirma-se que
existe uma ave num país do Oriente que, armada apenas com um grande e forte bico,
provoca, com gritos audaciosos, a serpente que pretende combater. Cobre
propositadamente com poeira o corpo, assim como o colar de pérolas de diferentes cores
com que a natureza generosamente o adornou. Tomando assim uma aparência
insignificante, a ave surpreende o inimigo com esta aparição invulgar e engana-o, por assim
dizer, pela segurança que este sente perante tal miserável aparência. Colocando a sua cauda
como o escudo de um guerreiro frente à cabeça, ela ataca audaciosamente a cabeça do seu
furioso adversário, perfura o cérebro do espantado animal com a inesperada arma que é o
seu bico e assim mata o seu monstruoso inimigo, graças à sua maravilhosa inteligência.
Cristo vestiu-se com a fraqueza humana e cobriu-se com a sujidade da nossa carne para
combater na forma de um homem pelo benefício da salvação e para enganar o ímpio
enganador com a sua piedosa fraude, e escondeu a sua forma original com esta última, lançando,
por assim dizer, a cauda da humanidade sobre a face da divindade, e extinguiu como que com um
forte bico a malícia venenosa do velho aniquilador dos homens, através da palavra da sua
boca. Por isso, o Apóstolo diz: ‘Através da palavra da sua boca ele matará os malditos’”
(Warburg 1937: 253).
3. Pelo menos desde Ambrosio, De Jacob e da Vida Feliz , I,3 (Warburg 1937: 254 n. 7); sobre
este tema ver Wittkower 1987: 15-44.
4. A luta entre o icnêumone e as serpentes é narrada por Aristóteles (Hist. Anim., IX, VII, 3),
por Estrabão (Geografia, XVII, 812), e Aeliano (Caract. Anim., VII, 38), sempre evocando o
mesmo pormenor: cobre-se de pó, antes do combate que trava contra as serpentes (não para
Plínio, que o descreve como caçador de ovos de crocodilo, Nat. Hist., VIII, 36); o seu nome
grego deriva das suas características etológicas (gr. ichneuein: “perseguir”);
taxinomicamente corresponde ao mangusto (mangustus herpestes), predador de média
dimensão, que se alimenta de roedores e répteis (entre os quais, pequenas cobras e víboras);
o mangusto do Norte de África (Herpestes ichneumon) era cultuado no Egipto, de acordo com
R. Warburg, desde pelo menos a 12.a dinastia (2000-1788 a.C.).
5. O Fisiólogo reporta o combate do icnêumone contra o “dragão”, em complemento da
descrição do enudris (transformação da descrição de Plínio): “Existe um animal chamado
enudris, que tem forma de cão e é inimigo do crocodilo. Quando dorme, o crocodilo deixa a
boca aberta; nessa altura, o enudris unta o corpo de lama e, quando esta seca, penetra na
boca do crocodilo, rói todos os canais do corpo e devora-lhe os intestinos” (Fisiólogo Grego,
XV, in Zambon, 1982).
6.Fisiólogo (in Cahier e Martin 1851, II) para os mss. A, B e C. A descrição da víbora de cabeça
humana, no Fisiólogo, identificada como a serpente dracontopodes (“com pés de dragão”) por
Thomas de Cantimpré (Da Natureza, VIII, 17), Vincent de Beauvais (Espelho da Natureza, XX,
33), etc., tornou-se um motivo abundantemente representado na iconografia medieval (cf.
Lecouteux 1982, II: 241-242).
7. Segundo Agostinho: “O basilisco é o rei das serpentes, tal como o Diabo é o rei dos
demónios” (Comentário aos Salmos, XC, 9, in Lecouteux 1982, II: 170).
8. Uma lista bastante completa de referências literárias clássicas e medievais ao basilisco e
suas propriedades pode ser consultada em Lecouteux 1982, II: 169-173.
9. Dualidade expressa na própria forma de locomoção: “Quando se põe em movimento,
metade do seu corpo rasteja pela terra, a outra metade apresenta-se alta e endireitada”
(Solino, Colectânea das Coisas Memoráveis, XXVII, 52; in Lecouteux 1982, II: 169).
10. Por vezes, como numa gravura de uma versão inglesa do Hortis Sanitatis, o basilisco
surge representado como um galo com cauda de serpente, representação que deve ser
correlacionada com uma informação de Plínio, segundo o qual o galo-da-índia tem uma
plumagem traseira pendente como a cauda de serpente (Hist. Nat., VIII, 80), e com uma
passagem do Animalia de Alberto Magno: “Sobre a afirmação segundo a qual (...) o basilisco é
uma serpente em tudo semelhante a um galo, excepto que tem uma longa cauda de
serpente, não acredito que seja verdade” (XXV, 13); a tradução inglesa das Maravilhas do
Mundo, incluída no Livro dos Segredos, do Pseudo-Alberto Magno, sugere, por sua vez, a
existência de um jogo de palavras à volta da associação entre o galo (cock) e o basilisco: “...a
serpente chamada regulus em latim, em inglês cockatrice” (in Best e Brightman 1973: 85); este
termo é, curiosamente, por vezes aplicado ao crocodilo (segundo o Bestiário de Cambrai: “O
crocodilo, ao qual chamam kokatris, é uma serpente de água...”, CCXXXV, 15, in Ham 1939).
11. Plínio, Hist. Nat., XX, 51; Isidoro, Etimologias, XVII, XI, 8; Hildegard de Bingen, Física, I, 64.
12. É surpreendente a ligação onomástica entre as “escrófulas” e o “antrax” (lat.
Carbunculus) e uma pedra semipreciosa cor de fogo, o carbúnculo (também chamado
anthrax), frequentemente associado a Cristo, e que, segundo Isidoro, produz luz nas trevas,
emitindo raios que são projectados directamente aos olhos (Etimologias, XVI, XIII, 14); ao
referir as suas propriedades curativas, Hildegard de Bingen nota que o carbúnculo tem,
entre outros, o curioso poder de afastar espíritos e de evitar o apodrecimento das
“vestimentas” (Física, X, 14). Por outro lado, Bruneto Latini afirma que a áspide, serpente
particularmente perigosa, guarda um carbúnculo e que, tapando as orelhas com a cauda, se
mantém surda aos encantamentos de quem procura capturar o carbúnculo (O Livro do
Tesouro, I, CXXXVIII).
13. Sobre as implicações metodológicas decorrentes de uma retórica científica com “gostos”
(segundo a expressão Durkheimiana) comuns à chamada lógica simbólica, ver, Gomes da
Silva 1989; Ramos 1996.
14. As doninhas (ord. mustelidae) (que tem, em grego, o mesmo nome que a deusa Deméter
quando surge como profetisa: Cerdo) são pequenos mamíferos predadores extremamente
vorazes, de corpo serpentilíneo; o mangusto (m. herpestes, a cuja espécie pertence o
icnêumone) tem hábitos e morfologia semelhantes à doninha (pertencem, no entanto, a
genus diferentes).
15. Uma lista pormenorizada de referências clássicas e medievais ocidentais à salamandra
pode ser consultada em Lecouteux 1982, II: 236-239.
16. O termo “serpente” tem nos bestiários, no entanto, um campo semântico distinto
daquele que a taxinomia moderna sobre ofídeos lhe atribuiria: no Bestiário de Pierre de
Beauvais, por exemplo, o tigre é classificado como serpente (in Cahier e Martin 1851, II: 140).
Em certos bestiários, a salamandra é incluída num grupo particular: não entre os monstros,
como a áspide, o basilisco ou o dragão, mas no bestiário ígneo, com a fénix.
17. Como o basilisco, no Livro das Maravilhas do Mundo , do Pseudo-Alberto Magno (ou
cockatrice , na versão inglesa, do século XV ; in Best e Brightman 1973: 85).
18. Sobre as relações entre as visões cosmográficas cristãs ocidentais e a cartografia
medieval, cf. Lecoq 1989.
19. Da temática do vestuário maravillhoso do Preste João são audíveis ecos longínquos em
certos motivos presentes na literatura popular europeia (tanto germânica, como italiana e
peninsular) que reverteu no conhecido conto de Andersen: Kejserens nye klaeder, ou O Rei Vai
Nu.
20. É talvez este episódio, ou o do combate contra vários dragões, corrente em várias
versões do Romance de Alexandre (Lecouteux 1982, II: 172), que surge indiciado na Carta
(Carta-Urtext, § 53, in Zarncke 1879).
21. O basilisco é suposto viver em cisternas abandonadas e buracos húmidos (cf. Lecouteux
1982, II: 169-173).
22. Cf. também a Imagem do Mundo, de Gossouin de Metz, II, II, § DB, e Fisiólogo Valdense, LV
(in Mayer 1890); sobre este tema, ver Malaxecheverría 1986: 156-168.
23. Os “espelhos” que permitem ao Preste João ver a grandes distâncias sem ser ele próprio
visto, a pedra midriosis que o torna invisível, etc., são atributos ópticos que evidenciam o
poder invisível, intangível e omnisciente do soberano oriental.
24. Veja-se, por exemplo, o Bestiaris (in: Panunzio 1963,I: 86), no Bestiário de Pierre de
Beauvais, (in: Cahier e Martin 1861,II: 140).
25. A noção de conjunção problemática entre parte anterior e posterior do corpo, ou entre
orifícios em extremidades opostas do corpo ou da cabeça, tem na descrição da áspide um
interessante desenvolvimento, de certo modo complementar da concepção perversa da
víbora: tal como o tigre é capturado, ou vê as suas crias serem capturadas, graças a um
espelho que tem sobre ele um efeito encantatório, a áspide pode ser capturada, mas através
do recurso à melodia de uma flauta (Fisiólogo Grego, in Carlill 1924: 234). No entanto, ela
recorre a um artifício curioso para resistir ao encantamento: deitando a cabeça sobre o solo,
de modo a tapar um ouvido, introduz a extremidade final do seu corpo no interior do outro,
deixando assim de ouvir a música do encantador (Bestiário de Pierre de Beauvais, in Cahier e
Martin 1851, II: 157). Se o processo encantatório pela música é formalmente análogo da
concepção da Virgem Maria (pela palavra), o modo de resistir evoca o mesmo procedimento
usado para combater serpentes e basiliscos: uma conjunção entre extremidades opostas do
corpo provoca uma descontinuidade (neste caso não visual mas auditiva) que é garantia de
sobrevivência da áspide.
26. É interessante notar, de passagem, que os bestiários sugerem uma forte equivalência
entre a natureza ambígua da doninha e a de uma ave predadora de serpentes, de origem
asiática como o “pássaro do Oriente”: a cegonha. O Bestiário de Philipe de Thaün designa a
cegonha como um animal impuro porque, graças ao seu longo pescoço, lava o anus com o
seu bico; nota também que, ao contrário do que acontece com as víboras (parricidas e
matricidas), demonstra um continuado afecto em relação às suas crias, que resulta no facto
de estas tratarem os progenitores envelhecidos do mesmo modo (vv. 2631-2746, in Walberg
1900). A mesma configuração envolve ainda um outro animal, fortemente identificado com
Jesus Cristo, nos bestiários: o leão, como a doninha, ressuscita as crias mortas, bafejando-as,
ao terceiro dia (evocação da ressurreição); de olhar ardente e busto soberano que o
associam à divindade, o leão é também caracterizado pelo rastejar da cauda no pó, para se
esconder dos caçadores (representação da encarnação); a sua parte posterior é delgada,
indicador da humanidade de Cristo, distinta da sua divindade. “Pelo leão, entendemos Jesus
Cristo, e nós somos a sua terra em figura humana” (Bestiário de Philipe de Thaün, vs. 25-390,
in Walberg 1900); sobre esta temática, ver análise mais adiante.
27. No sentido em que Radcliffe-Brown usa o termo (Radcliffe-Brown 1951: 20).
28. Sobre Aristóteles e os processos classificatórios, ver P. Pellegrin, La Classification des
Animaux Chez Aristote. Statut de la Biologie et Unité de l’Aristotelisme, Paris, 1982, in Gomes da
Silva 1994: 14-15; ver também 20-21).
29. Lévi-Strauss 1983: 297; C. Lévi-Strauss segue aqui a formulação proposta por René Thom
(Modèles Mathématiques de la Morphogenèse, Paris, 1974).

RESUMOS
Através da análise de certas informações provenientes da literatura enciclopédica clássica e
medieval europeia, é possível evidenciar a riqueza de um quadro discursivo fortemente
associado à manipulação de sistemas taxinómicos por uma lógica que poderia ser designada
como sizígia. A dialéctica da confrontação entre adversários com naturezas oponíveis, a
reversibilidade de certas transformações morfológicas ou comportamentais, sendo
configurações diversas dessa lógica combinatória (apareadora ou sizígia), expressamse com
frequência através de uma metáfora especular (ou da continuidade/descontinuidade visual).

The analysis of information deriving from European classical and medieval encyclopedias
reveals a profound discursive complexity. This complexity is specifically connected with an
instance of manipulation of the taxonomic systems that one may define as sysygian. The
dialectics of confrontation between antithetical opponents, or the reversibility of certain
morphological and behavioural transformations are special configurations of such
combining (or sysygian) logic; and they are frequently rendered manifest through the
metaphorical use of mirrors (or of visual continuity and discontinuity).

AUTOR
MANUEL JOÃO RAMOS
Departamento de Antropologia Social – ISCTE Membro da Sociedade de Geografia de Lisboa
Manuel.Ramos@iscte.pt
A cristandade dos leopardos, a
objectividade dos antropólogos e
outras verdades igualmente falsas
Filipe Verde

1 O modelo funcionalista da sociologia de Durkheim desempenhou nas


primeiras décadas deste século um papel fundamental na
antropologia, que aliás se manteve a múltiplos níveis e sob diferentes
formas ao longo da sua história subsequente. Uma das principais
razões dessa inicial e perene influência parece residir no facto de o
modelo funcional da sociedade se ter adequado de forma
particularmente apta às tarefas que os antropólogos, enquanto
etnógrafos, se propuseram realizar. Perante a tarefa de descrever e
dar a conhecer retratos credíveis (“objectivos”) de universos
socioculturais estranhos, a metáfora organicista de Durkheim serviu
como orientação mais ou menos explícita do trabalho etnográfico.
Em obras que permaneceram durante muito tempo como modelos
canónicos do texto etnográfico, as componentes económica, política,
religiosa, ecológica ou outras que a analiticidade a um momento
isolava, eram noutros momentos reunidos enquanto elementos
articulados de um todo autocontido, de uma sociedade e cultura
particular, concebida como uma entidade uniforme e orientada para
a sua auto-reprodução e preservação. Sem dúvida que a condição
básica para o sucesso do durkheimianismo foi a aceitação tácita de
que as articulações descritivas e textuais entre esses domínios
correspondiam a uma lógica de relações institucionais, isto é, que a
interpretação e descrição que o antropólogo fazia a partir de um
método, de um sistema de categorias e do seu ponto de observação
transcendental, traduzia ou reflectia sem distorção uma ordem
factual em que se alicerçaria o objectivo último de chegar a construir
uma ciência indutiva e objectivista da sociedade.
2 Uma escolha é sempre acompanhada por uma exclusão, e o que a
influência de Durkheim afastou, no campo da teorização sociológica
clássica, foram as influências alternativas, ainda que muito
diferentes entre si, de Marx e, sobretudo, de Weber. Uma possível
linha de divisão entre funcionalismo, por um lado, e a sociologia
deste último autor é a que separa uma estratégia puramente
empirista e positivista de explicação de outra que, ainda que também
orientada pelo ideal objectivista, reconhece, por via da partilha da
referência ao tema hegeliano da compreensão histórica e ao projecto
epistemológico de Dilthey, a necessidade de também pensar o
conhecimento sociológico por referência a um princípio de
compreensão — isto é, a uma dimensão de sentido jamais passível de
ser apreendida por referência a princípios de causalidade e que
requer uma competência interpretativa.
3 Se a componente organicista do pensamento de Durkheim, assim
como o prestígio então assumido pelo seu ethos positivista, estão por
detrás da sua influência na antropologia, a componente
compreensiva do modelo weberiano justifica a prolongada e geral
indiferença da antropologia em relação a ele. Com efeito, a ideia já
apontada por Dilthey, e desenvolvida por Weber, segundo a qual a
compreensão supõe um princípio de acordo comum entre
observador e observado, levanta aos olhos do antropólogo um
obstáculo inultrapassável no terreno de diferença cultural em que
ele se move. Não podendo, como o filólogo interessado nos textos
clássicos, reivindicar um laço histórico e cultural comum, a pertença
a uma mesma tradição, o antropólogo vê-se perante
comportamentos, ideias e crenças que são mudos enquanto
elementos de compreensão, cujo sentido lhe escapa e cuja própria
identificação assim se torna problemática. Wittgenstein disse que se
os leões falassem nós não os compreenderíamos. O problema que um
hipotético antropólogo weberiano enfrentaria pode ser posto em
termos relativamente semelhantes. É que não é possível compreender
a afirmação segundo a qual “os leopardos são animais cristãos que
cumprem os jejuns da igreja etíope”, dita por alguém que expressa
através dela uma crença consensualmente partilhada no seu
contexto cultural. O que os outros dizem sobre os leopardos torna-os
tão incompreensíveis quanto os leões.
4 De alguma forma a situação aqui descrita é um resultado perverso da
ideia-base de toda a antropologia — a noção moderna de cultura, que
a define como padrão discreto de ideias e valores, que existe
independentemente da sua relação com outros padrões do mesmo
tipo, incomensuráveis em relação a ele. A possibilidade hipotética de
o antropólogo chegar a compreender, no sentido de experienciar
subjectivamente como verdadeira, a ideia de que os leopardos são de
facto cristãos, torná-lo-ia irremediavelmente um estranho por
relação à sua comunidade de origem, dado que esse conhecimento
por si adquirido não é partilhável com aqueles que, diferentemente
dele, não conheceram a partir de uma perspectiva interna, não
experienciaram subjectivamente a outra “forma de vida” no interior
da qual, a partir desse momento, ele encontraria os seus únicos
interlocutores, pelo menos no que diz respeito à questão da
cristandade dos leopardos...
5 A solução dada pelo antropólogo durkheimiano ao problema do
obstáculo levantado à compreensão pela incomensurabilidade dos
“mundos da vida” foi, dentre todas as possíveis, a mais simples. Na
verdade nunca teve de lhe dar uma solução, pois que para ele o
problema não chegou sequer a existir. Na sua perspectiva cada
sociedade é como um puzzle que é preciso reconstituir na sua
totalidade. A peça que por si só parece não inteligível é afinal um dos
elementos de uma totalidade no quadro da qual se torna emergente
uma racionalidade que as partes individualmente não contêm, mas à
luz da qual cada uma encontra o princípio da sua própria
racionalidade (podemos dizer, afirmação algo maldosa, que o círculo
hermenêutico guiou os antrópologos a um nível pré-consciente,
servindo não apenas o seu objectivo descritivo, mas também a sua
tarefa ideológica de portadores especializados da bandeira do
antietnocentrismo). Para Malinowski e seus pares essa totalidade era
dada a nível de cada contexto sociocultural. Para Sperber — o
antropólogo que ouviu a afirmação sobre a cristandade dos
leopardos — essa totalidade é dada enquanto um modus operandi
cognitivo universal, e a solução da irracionalidade da crença (isto é,
da sua incompreensibilidade) é a criação de uma tipologia dos
comentários descritivos das entradas enciclopédicas da memória
cujo conteúdo é considerado localmente como verdadeiro, apesar de
contraditório em relação aos dados da observação (Sperber 1974) —
pois que o etíope, pelo sim pelo não, apesar de saber da cristandade
dos leopardos, guarda o gado mesmo nos feriados da igreja cristã da
Etiópia...
6 O espaço de tempo compreendido entre o funcionalismo e
empirismo de Malinowski e a reinterpretação cognitivista do
estruturalismo de Lévi-Strauss por parte de Sperber — durante o
qual o estruturalismo emergiu e desapareceu como “paradigma”
dominante na antropologia e os debates sobre a racionalidade
continuaram vivos e sempre actuais na perseguição dos mesmos
leitmotifs (Wilson 1981 [1970]; Hollis e Lukes 1985[1982]; Sperber
1985[1982]; Hollis 1994) — preservou o traço essencial da identidade
da disciplina que temos vindo a sublinhar. Perante os fenómenos que
subsumiu sob o rótulo de “crenças rituais”, “sistemas mágico-
religiosos”, “crenças locais”, “mito” ou “rito”, a antropologia
apostou na ideia de que o que carece e parece não poder ser
compreendido pode talvez, no fim de contas, ser explicado. Essa
explicação consistiu sempre na reconstrução de um contexto, de
natureza cultural, social, psicológica, cognitiva ou semiótica (e todas
as formas de explicação tentadas se recortam na intersecção entre
alguns desses domínios), através do qual, se não podemos concordar
com o que o outro diz, podemos, pelo menos, explicar porque o diz. O
antropólogo vive num contexto de relativismo que o impele, por
dever e ideologia profissional, a escrever páginas e páginas de livros
que explicam por contextualização (da parte no todo do
“organismo”, do “sistema” ou, como veremos, do “texto”) a
racionalidade do que só aparentemente é não racional, a lógica do
que pareceu pré-lógico, a sistematicidade do que pareceu arbitrário,
o sentido do que pareceu absurdo.

7 O período que viu o nascimento e a afirmação institucional e teórica


da antropologia foi também aquele em que, por força de pressões
provenientes de diferentes locais, o ambiente epistemológico
objectivista se desfez. Einstein relativizou Newton e a ideia de que a
teoria científica mais bem sucedida de todos os tempos era um
espelho da ordem natural. Popper refutou a ideia de que a indução
era um instrumento lógico e metodológico de obtenção de
conhecimento, no mesmo passo em que afastou a experiência
enquanto elemento da sua confirmação (Popper 1982 [1972]). Kuhn, ao
iluminar o carácter não teleológico da história da ciência e ao
colocar o consenso psicológico e social, e não um princípio de
método, como fundamento das descontinuidades teóricas que
marcam essa história deslocou, nas interpretações mais radicais do
seu pensamento, a própria ciência para a área da crença (Kuhn 1970).
E Godel, ao pretender axiomatizar o modelo por excelência do
método (a linguagem não referencial da matemática, que desde os
Gregos serve para evitar os pseudoproblemas colocados pela
linguagem comum), descobre que nem uma linguagem desse tipo se
pode aplicar a si mesma (e assim fundamentar-se da única forma
como se pode fundamentar, como internamente coerente) sem se
tornar autocontraditória, uma mentira de Creta, o análogo
epistemológico das paradoxais escadas sem fim de Escher
(Hofstadter 1979; Sainsbury 1995 [1987]). De alguma forma, ao longo
desse processo, o método voltou-se contra si mesmo e destruiu-se a
si próprio, ou pelo menos destruiu a imagem que dele tão
cuidadosamente construíram todos aqueles que ao longo de todo
esse tempo propuseram as diferentes e cada vez mais sofisticadas
versões de uma ciência positivista unificada nele fundada. Um dos
mais importantes resultados da autodestruição epistemológica da
tradição que emerge com Bacon e Descartes, e que vai até ao
positivismo lógico do século XX, foi o abandono, com Popper, Lakatos
e Kuhn, da noção de verdade enquanto elemento do vocabulário da
filosofia da ciência, a afirmação progressiva de um relativismo e o
concomitante encontro com uma ideia básica da filosofia
hermenêutica contemporânea, a ideia de que a verdade é dada em
qualquer asserção ou expressão capaz de ligar num contexto de
diálogo particular dois indivíduos que nessa e através dessa
expressão (e independentemente de qualquer método) partilham
entre si um acordo sobre algo. No seu respectivo contexto, como o
sabem os antropólogos que mais seriamente consideraram os
problemas levantados pelo simbolismo, a ideia que os leopardos são
cristãos e a ideia que E = MC2 são ambas verdadeiras. Mas, entre esses
contextos, assim vistos, há uma relação de incomensurabilidade
intransponível — o antropólogo são nunca chegará a acreditar na
religiosidade dos leopardos, do mesmo modo que quem nela acredita
jamais estará em posição de chegar a compreender a formulação
matemática da convertibilidade entre matéria e energia ou a
estranha importância do barbeiro que corta e não corta o cabelo a si
próprio.
8 O que importa sublinhar é que ao longo do processo que temos vindo
a descrever de forma excessivamente abreviada a filosofia da ciência
se encontrou lado a lado com uma tradição de pensamento contra a
qual sempre se ergueu ou que, no mínimo, ignorou, uma tradição
que mergulha as suas raízes modernas na sola scriptura de Lutero e
nos filólogos que apuravam as técnicas de crítica textual dos textos
da Antiguidade Clássica, e que conduz sucessivamente (mas nunca
teleologicamente!) a Schleiermacher, Dilthey, Husserl, Heidegger e,
por fim, à contemporaneidade da hermenêutica geral de Gadamer,
ao niilismo hermenêutico de Derrida e à hermenêutica
fenomenológica de Ricoeur. É exactamente em Verdade e Método, a
obra magna de Gadamer, e em algumas concepções dispersas sobre o
símbolo, que encontramos os elementos de base que guiarão o nosso
questionamento. A atenção dada aqui à hermenêutica segue até certa
medida, no domínio restrito da antropologia e com os recursos
modestos do seu autor, um exercício semelhante ao empreendido
por Rorty em relação à filosofia (Rorty 1988 [1979]). Essa atenção não
deve ser interpretada como uma tentativa de através dela se
preencher o vazio deixado na antropologia pela “morte da
epistemologia fundacional” (as palavras são de Rorty), mas tão-só
como a procura de adequar os termos da reflexão dos antropólogos
sobre a sua disciplina com aquilo que é e sempre foi a sua prática
enquanto antropólogos. É que, assim como os historiadores que,
“conscientemente ou não, são todos praticantes do método
hermenêutico” (Kuhn 1977), os antropólogos estão, conscientemente
ou não, enterrados até ao pescoço no problema dos discursos
incomensuráveis e no exercício interpretativo dele decorrente. Mas
alguma antropologia não tem ignorado a hermenêutica e a
componente interpretativa do seu trabalho, e é por aí que agora
importa seguir.

9 A antropologia, apesar do seu pendor objectivista, não deixou,


porém, de reconhecer o carácter interpretativo do seu “método”,
pelo menos no que à observação e descrição etnográfica diz respeito.
Como exemplo precoce, segundo Leach, “os dados que se obtêm no
trabalho de campo são subjectivos e não objectivos. Qualquer
observador antropólogo, não importa como esteja treinado, há-de
ver algo que nenhum outro observador semelhante há-de
reconhecer, isto é, há uma espécie de projecção harmónica da
personalidade do observador”. Além disso, “quando essas
observações são escritas na monografia ou em qualquer outra forma,
a personalidade do obervador irá novamente distorcer qualquer
pretensão de objectividade” (Leach 1984). Embora expressa num
vocabulário marcado pelo sempre latente ideal do objectivismo, há
aqui uma singular profissão de fé hermenêutica, que inclui não
apenas o reconhecimento da presença de uma consciência não
dominada pelo método (porque não “objectiva”), como a
concomitante inevitabilidade de uma pré-compreensão, expressa
como conjunto de expectativas que guiam o processo de
compreensão. Da Matta colocou a questão em termos singulares —
“cada antropólogo tem o nativo que merece, de modo que, para
antropólogos paranóicos, existem tribos paranóicas; a estudiosos
místicos, correspondem sociedades crentes e, last but not the least, a
etnólogos incompetentes nativos do mesmo teor” (Da Matta 1983).
10 Tendo nascido e tendo-se desenvolvido de costas voltadas para a
tradição teórica do pensamento sociológico que fixou como uma das
suas tarefas “compreender pela interpretação a actividade social”, a
antropologia, ao reconhecer-se como disciplina que, pelo menos na
sua componente etnográfica, também é interpretativa, achou-se
numa situação difícil. É que, como já vimos, a tradição weberiana viu
na particular adequação ideológica e pragmática realizada no
Ocidente entre os fins e os meios da acção uma condição da ciência
social, mas também os limites do seu campo de aplicação — a acção e
o pensamento não racionais (tradicionais ou primitivos) não são
passíveis de ser “compreendidas”, e assim identificadas e
enquadradas numa “explicação”.
11 No entanto a antropologia, através de Geertz, encontrou-se com
Weber e com o pensamento (e o rótulo) hermenêutico. Estamos a ser
demasiado breves, mas a pista a seguir é a seguinte: é que esse
encontro é mediado por Ricoeur e pela sua generalização da noção
de texto, e o papel desempenhado por essa noção no quadro da
actual “antropologia hermenêutica” — toda ela erguida a partir de
questões levantadas pela etnografia — parece ser semelhante ao
papel desempenhado, no início da história da disciplina, pelo modelo
orgânico. Com Geertz adquiriu-se de uma vez por todas a consciência
de que as articulações textuais não são o equivalente de correlações
causais ou institucionais de alguma realidade tão neutralmente
apreensível como um mineral (como acreditavam, terão acreditado
realmente?, os durkheimianos), mas essas articulações textuais (as
interpretações do antropólogo) erguem-se sobre outras (as
interpretações indígenas), que por seu turno, não são senão a
expressão da coerência global já não de algo como um organismo,
mas como um texto. A ideia de texto fornece não apenas um “todo”
de referência à luz do qual as partes são interpretadas, mas também
a concepção implícita de que, enquanto texto, parte e todo estão
coordenadas no domínio do sentido. Quando se enfrenta assim a
tarefa de apreender o sentido subjectivo de uma acção ou de um
discurso afastou-se o espectro weberiano da não partilha de um
princípio de racionalidade comum, essa racionalidade é uma
propriedade intrínseca da(s) cultura(s), é, numa palavra, algo de
plural, relativo e que se expressa sempre de forma singular, no
mundo incomensurável que cada “texto” é em relação aos outros.
12 Geertz fica na situação que desde sempre caracteriza o antropólogo,
mas acrescenta-lhe um sentimento de desencanto epistemológico. O
antropólogo objectivista duvidava da religiosidade dos leopardos, o
antropólogo hermeneuta duvida não apenas disso como também da
própria possibilidade de, como o pretenderam os seus fracassados
antecessores, poder alguma vez solucionar, por via do método e da
“explicação”, o problema do relativismo inerente à noção moderna e
antropológica de cultura. Mas por isso se torna hermeneuta, termo
que parece funcionar como passaporte de resignação a um
relativismo que não reside apenas na incomensurabilidade dos
“textos” com que os antropólogos lidam, como também no
reconhecimento das suas qualidades e perspectivas enquanto
“leitores” e autores, ou seja, um relativismo que agora já não é
apenas cultural mas agora também epistemológico. Do mesmo modo
que para Nietzsche a inexistência de deus torna tudo possível, para o
antropólogo que veste a última e pós-moderna moda criada pelos
herdeiros de Geertz, a ideia da morte do método abre a possibilidade
de puxar os seus galões de autor (paranóico, místico ou
incompetente, retomando os termos irónicos de Da Matta) que vai
buscar o antigo e esquecido vocabulário da retórica para se entregar
à paradoxal tarefa de descrever e dar a compreender nos seus
próprios termos de autor um texto que só é coerente globalmente e
em cada uma das suas partes nos seus próprios (e outros) termos... —
mas não há problema, pois que nesse caminho destrói-se a própria
noção de autor (dissolvido num estilo “heteroglóssico”) e alguma
outra obrigação que não a de discorrer sobre a supostamente
interessante “hipocondria epistemológica” dessa entidade
entretanto destruída...
13 Deixando de parte os desconstrutores pós-modernos e dando um
passo atrás (ou talvez à frente) até Geertz, podemos, no entanto, ver
que, exceptuando o momento em que filosofa em termos
relativamente abstractos sobre os problemas levantados pela
incomensurabilidade dos mundos culturais (e concomitante
incompreensibilidade), Geertz não se distingue afinal de todos os
seus predecessores, pois que nos seus textos etnográficos esquece ou
deixa num segundo plano as suas premissas relativistas. Como muito
bem disse Gellner, “nenhum antropólogo, que eu saiba, voltou do
terreno com o seguinte relatório: os seus conceitos são tão diferentes
que é impossível descrevê-los” (Gellner 1985 [1981) — afinal não há
etnógrafo que não tenha sido capaz de em alguma medida
compreender e descrever a “experiência humana” de outros povos...
A empatia, os frutos do contacto directo, prolongado e vivido com
uma sociedade estranha, e os recursos conferidos pela posição de
autor permitem que se dissolva a ideia teórica da
incomensurabilidade na prática (antiga na disciplina...) de descrever
e fazer compreender outros mundos culturais. Da mesma forma que
qualquer leitor normal pode chegar a compreender Guerra e Paz,
Geertz pode chegar a compreender as culturas-textos que encontra,
pois que percorrer (experienciar) os seus elementos condu-lo
progressivamente à descoberta e compreensão daquilo que cada uma
delas é — uma configuração particular de ideias e valores, de
esquemas interpretativos do mundo e orientadores da acção, em
suma, uma estruturação particular de “símbolos”, entidades que
Geertz considera tão públicas como um mercado e tão observáveis
como a agricultura (Geertz 1993a [1973] e 1993b [1983]).
14 Mas a “antropologia hermenêutica” de Geertz não se confronta
assim com algo de essencial e definidor de todo o pensamento
hermenêutico. Desde sempre, este emerge e torna-se autoconsciente
quando e sempre que um texto ou uma parte de um texto (ou, em
termos mais gerais, uma expressão humana qualquer) vai contra a
realização da expectativa do leitor — a compreensão do seu sentido
ou de um sentido conforme ao que o leitor nele espera encontrar. O
problema da interpretação é indissociável do problema da
incompreensão de um particular. O que parece mais paradoxal quando
olhamos para essa “antropologia hermenêutica” é, porém, o facto de
nunca se enfrentar aí, ou sequer colocar no âmbito dos seus
questionamentos, o problema da opacidade, da dificuldade da
compreensão de nenhum item da cultura. A metáfora textual, como
antes dela a metáfora orgânica ou sistémica, anula um elemento
central de qualquer antropologia verdadeiramente hermenêutica —
uma antropologia que colocaria no centro da sua atenção não aquilo
que mais ou menos facilmente chega a ser compreendido, mas sim o
seu exacto oposto, o que na cultura estudada aparece ao olhar
particular do antropólogo como contraditório, absurdo, não
pertinente ou, numa palavra, não compreensível, e que persiste
como tal qualquer que seja o seu grau de familiarização,
conhecimento ou experiência de empatia por relação a essa cultura.
Voltamos à cristandade dos leopardos, frase cujo sentido literal e
imediato compreendemos todos, mas de que estamos infinitamente
separados quanto ao que é significativo na compreensão, isto é,
quanto ao conteúdo de verdade e a natureza da verdade que ela
contém.

15 A ideia central de Verdade e Método de Gadamer é a de que não


podemos confundir ou fazer coincidir simplesmente o conhecimento
verdadeiro com o conhecimento que se obtém através do método
tomado na sua acepção geral que destaca as ideias de causa, indução,
dedução, prova e mútua autonomia de sujeito e objecto. E se uma tal
crítica é válida na consideração das ciências naturais e da sua
história (como o parece evidenciar a evolução recente da
epistemologia, de que falámos atrás), muito mais válida o é no caso
das ciências humanas, onde não apenas fracassaram os intentos de
mimetização do método, mas onde, sobretudo, sujeito e objecto estão
incontornavelmente ligados por uma relação de mútua pertença.
16 Esta ideia de que o conhecimento verdadeiro em alguma medida
excede o método é forçosamente um fundamento da antropologia,
ainda que talvez pouco consciencializada por muitos dos seus
autores, e é uma ideia fundacional na medida em que a antropologia
depende ou pelo menos supõe a concepção de que as outras
sociedades contêm elementos a partir dos quais nós podemos
aprender algo. Ora, se essas outras sociedades não conhecem o
método, a validade dos conhecimentos que elas nos possam
transmitir, é ela própria uma validade não metodológica. Numa
palavra, a antropologia, ao supor a multiplicidade e
incomensurabilidade dos planos da verdade, supõe ao mesmo tempo
a transcendência da noção de verdade em relação à noção de
método, o que em alguma medida mina a validade do próprio
método de que ela se pretende seguidora, dado que o
reconhecimento dessa pluralidade da(s) verdade(s) é contraditório
em relação à noção de que o conhecimento metodológico é
universalmente válido.
17 Uma segunda ideia central em Gadamer, é a de que a distância
(histórica ou cultural) entre interlocutores, embora sob uma certa
perspectiva seja um obstáculo ao conhecimento e à compreensão, é,
sob uma outra e sem dúvida mais rica e fecunda perspectiva, um
elemento potencial de aprofundamento da compreensão a que se
pode aceder no tema ou assunto que liga os interlocutores que essa
distância história e/ou cultural separa. Essa ideia é por vezes
exemplificada por referência à história e à ideia do “cronista ideal”.
O cronista ideal é a instância histórica do modo como o antropólogo
objectivista que temos vindo a retratar se concebe. O cronista ideal é
uma máquina que regista tudo o que acontece em cada momento tal
como aconteceu — o antropólogo diria: nos seus próprios termos. A
sua condição de máquina exclui-a do mundo humano, das suas
avaliações, erros e contradições, possibilitando o registo totalmente
objectivo dos acontecimentos. Mas o registo dessa máquina sobre os
acontecimentos ocorridos na Europa no Verão de 1914 torna-os mais
compreensíveis do que eles o são para o observador posterior?
Segundo Gadamer, que vê o conhecimento, todo o conhecimento,
como historicamente condicionado, não. Essa máquina não pôde
registar alguns desses acontecimentos, como o início da I Guerra
Mundial, pois que a sua percepção como tal supõe uma perspectiva
retrospectiva que ela, pela sua própria natureza de cronista ideal,
não pode assumir. A distância histórica fornece a possibilidade de
uma compreensão desses acontecimentos que os seus agentes e
contemporâneos não podem deter, exactamente porque lhes falta o
elemento perspectival que essa distância permite. A ideia implícita é
a de que um conhecimento que se constitui em função do objectivo
de compreender algo pela reconstrução dos motivos, intenções ou
sentidos dos seus agentes (da compreensão que eles têm da situação
em que agem ou do tema que discutem) é pobre em relação a um
conhecimento capaz de integrar a compreensão desses motivos ou
sentidos (quando estes são acessíveis e nos termos em que o são) com
a compreensão que deles podemos ter à distância, da cómoda
perspectiva em que os podemos colocar em campos de
contextualização e de compreensão histórica mais vastos. Pode
ilustrar-se tal facto por relação a uma obra literária. Três séculos de
exegese e de representações das peças de Shakespeare contribuíram
para que delas possamos ter uma compreensão mais diversificada e
rica do que a que tiveram os seus contemporâneos e o seu próprio
autor — o que não é dizer, porém e simplesmente, que as
compreendemos por isso forçosamente melhor que Shakespeare,
dado que a distância em si mesma não garante ao leitor uma
superioridade ou autoridade especial sobre o texto. O que está em
causa na percepção da distância histórica como elemento potencial
de compreensão não é uma hierarquia de poderes ou insights
interpretativos entre o autor e os seus sucessivos intérpretes, mas
tão-só o facto de a historicidade permitir, como o diz Ricoeur,
colocar o discurso do autor para além do horizonte limitado da sua
situação existencial (Ricoeur 1986).
18 A referência a Shakespeare permite-nos entrelaçar as duas
concepções de Gadamer que temos vindo a discutir. Shakespeare
como dramaturgo não estava certamente a procurar fazer ciência, no
sentido de produzir um conhecimento metodologicamente baseado e
provado. No entanto, as suas peças têm inegavelmente uma
importância cultural fundamental. A sua importância cultural e
histórica não advém, portanto, do facto de elas provarem alguma
coisa, mas do facto de através delas os homens terem tido acesso a
experiências que são talvez, em primeiro lugar, de natureza estética,
mas que ultrapassam largamente o domínio estético no sentido em
que se constituíram (apesar do seu carácter não metodológico, não
“demonstrável”, “testável” ou “falsificável”), como elementos de
conhecimento. Em tempos diferentes, perante representações
diferentes, fazendo apelo a backgrounds interpretativos diferentes
(no sentido em que cada compreensão supõe um princípio de pré-
compreensão, um entendimento histórica e culturalmente localizado
do objecto-tema em discussão), audiências diferentes chegaram a
compreensões elas próprias inevitavelmente diferentes do texto em
causa — embora este em si mesmo tenha permanecido inalterado. A
importância cultural dessas peças, a grandeza de Shakespeare, está
no facto de nelas, através delas e para além delas, e segundo
circunstâncias sempre particulares, os homens terem tido acesso
uma compreensão, subjectivamente pressentida como significativa e
verdadeira, do que é ser-se humano. Essa compreensão, essa
experiência de conhecimento, é dada enquanto princípio de
unicidade e de coerência em cada representação-interpretação, mas
é dada também historicamente, por referência ao conjunto das suas
compreensões particulares, por referência a um contexto sempre
alargado de uma compreensão ela própria, assim, sempre alargada —
para quem não despreza, como a ciência o fez, a historicidade do
conhecimento.
19 O que é fundamental em Gadamer e na sua reconceptualização das
noções de verdade e método e das suas relações, é o reconhecimento
de que a historicidade da compreensão é concomitante da sua
relatividade, mas não da sua arbitrariedade — o que é fundamental na
sua obra é um modo de pensar a arte, a história, a interpretação e a
verdade que, nas palavras sintéticas de um dos seus mais profundos
exegetas, J. C. Weinsheimer, permite explicar “first, the fact of
multiple interpretations; second, that multiple interpretations can
all be true to the work; and third, that the work can be multiply
interpreted, multiple true, without desintegrating into framents or
degenerating into a an empty form. It is a formidable task”
(Weinsheimer 1985) — tarefa que foi levada a cabo por recurso a um
fôlego raro e que só a tradição erudita alemã permite.
20 O que é válido para a distância histórica é-o certamente para a
distância cultural, e a antropologia, uma disciplina que por todas as
razões e mais uma é incontornavelmente interpretativa e que
assume por vezes até à demência a validade, coerência ou
sistematicidade (numa palavra, a verdade) do conhecimento
produzido por outras culturas que não conheceram o método e a
ciência, tem de olhar e de trazer para o seu campo e para a sua
autocompreensão as tão fecundas ideias que a tradição
hermenêutica desenvolveu. Talvez que assim se evitem os muitos
paradoxos que o ideal cientista trouxe tanto àqueles que o
adoptaram, como àqueles que o criticaram, trocando o ideal vão da
objectividade pela facilidade de um relativismo onde jamais se
poderá realizar a sua única finalidade credível — a de conhecer e
compreender, e dar a conhecer e compreender, o que é social ou
culturalmente distante, e de nesse passo se dar a conhecer e a
compreender a si mesma como pensamento que se constrói entre e
nessa distância.
21 Na história como na antropologia, o conhecimento constrói-se pelo
que Gadamer chama de fusão de horizontes. A situação de
compreensão pode ser vista como o horizonte de observação
disponível a partir de um determinado lugar. O campo do visível
correspondente ao nosso horizonte não equivale, porém, à totalidade
dos elementos que nele podemos reconhecer. O facto de um pintor
ter observado cem, mil vezes a paisagem de que fez uma cuidadosa
representação não impede que alguém que olha essa mesma
paisagem lhe indique nela algo em que ele não havia reparado. Do
mesmo modo, nada impede que no regresso ao seu atellier o pintor
observe o quadro e repare que o elemento que lhe apontaram está
nele representado. Preocupado com outros aspectos, com o
alinhamento e proporcionalidade de um conjunto de elementos no
quadro geral da pintura, o pintor não consciencializou nem no
objecto da sua representação nem nesta mesma, a singularidade e
significação de um particular presente em ambos e que,
eventualmente, uma vez reconhecido, pode alterar em algo a sua
percepção (compreensão) de uma e outra. Por referência a um
aspecto determinado e preciso da realidade, a uma paisagem e à sua
representação, o pintor, através do encontro com um outro
intérprete da mesma paisagem, através do contacto com outro
horizonte de compreensão da mesma, toma assim consciência de si
como intérprete, do lugar do outro como intérprete do mesmo e do
conhecimento como o resultado do deslocar por esse encontro dos
limites recíprocos de um e outro desses horizontes. O conhecimento
e a relação de compreensão põem em contacto dois pontos de
observação por referência a um mesmo objecto, a um mesmo tema
ou conjunto de temas, e o diálogo estabelecido entre um e outro não
é sobre um ou sobre o outro, mas sobre o tema ou assunto que assim
os une. Quem perante o quadro quiser ver nele o que o pintor nele
viu no acto da sua criação, não verá o que, podendo ver-se nele, não
foi pelo seu autor visto, porque a fixação na reconstrução da
representação do pintor é o abandono da possibilidade de ver, com o
pintor, para além da pintura, e através dela, a própria paisagem —
Gadamer diria a verdade da pintura como representação da verdade
nela representada. Conhecer um elemento histórica ou
culturalmente distante supõe partir da situação e do lugar do
intérprete em direcção à distância de uma expressão humana
significativa, aos elementos contextuais da sua produção e existência
e à historicidade das suas interpretações, num esforço de mediação
de sentido que pode ser descrito como uma integração e assimilação
compreensiva de vários olhares. Dessa integração e assimilação
desses olhares sobre um mesmo objecto resulta uma nova
compreensão deste, que não é certamente fiel às intenções e sentidos
originais, mas que, por isso mesmo, por beneficiar da componente
perspectival inerente à distância e à diferença, pode conduzir à fusão
e alargamento dos horizontes do visível e do compreensível.

22 Acontece na antropologia o mesmo que sucede noutras áreas do


conhecimento quando a noção de símbolo é evocada. A polissemia do
termo faz com que o seu emprego nos conduza à mais vaga das
indefinições sobre o terreno em que nos movemos. U. Eco, num
inventário das diferentes formas de a compreender, comenta assim
um esforço anterior conduzido por Lalande no mesmo sentido: “A
conclusão indirecta a que somos convidados é que o símbolo são
demasiadas coisas e nenhuma. Em suma, não se sabe o que seja” (Eco
1994). O que é o simbólico no quadro geral da cultura? Não se sabe o
que seja, porque são demasiadas coisas — a título de exemplo, em
1977, num volume colectivo sob o título Symbolic Anthropology: a
Reader in the Study of Symbols and Meanings , reuniram-se ensaios
sobre temas tão diversos quanto parentesco e organização social,
arte, a organização da percepção, ideologia, categorias culturais da
história, linguagem e códigos, e a noção de pessoa... (Dolgin,
Kemnitzer e Schneider 1977).
23 P. Ricoeur, num exercício semelhante ao de Eco, contrapôs ao que
considerou uma concepção de símbolo demasiado lata (a de Cassirer)
uma definição mais restrita, que o identifica com as expressões cuja
compreensão faz apelo ao acesso a um nível de sentido que
ultrapassa o literal, um sentido secundário, conotativo, figurativo
(Ricoeur 1991 [1965], 1987 [1976]).
24 A crítica ao carácter demasiado lato da noção de símbolo e das suas
palavras irmãs “simbólico” e “simbolismo” é inevitavelmente uma
crítica às nossas próprias classificações. Talvez que um dos maiores
equívocos que envolvam o uso de tal noção resida no facto de o
agrupamento de espécies no interior da classe “simbólico” conduzir
a uma identificação inconsciente, ou pelo menos não tematizada,
entre realidades que são afinal demasiado díspares entre si. E aqui
Ricoeur não nos serve de auxílio, dado que, apesar de “restrita”, a
sua definição, quando transportada para o campo da antropologia,
resulta afinal e ainda assim como demasiado lata. Com efeito, o
símbolo definido como campo da dupla ou da pluralidade do sentido
permite enquadrar várias discussões que fizeram história na
antropologia sob um rótulo diferente daquele que escolheram os
seus autores, sem que nada, porém, mude a não ser o rótulo. A
“magia”, o “mito”, o “rito”, em suma, as “crenças rituais” ou as
“ideias e práticas aparentemente irracionais”, podem ser descritas
como instâncias do símbolo tal como Ricoeur entende a noção, pois
que tais práticas ou formas de pensamento têm sido vistas na
disciplina como supondo todas elas um uso dos signos onde a
referência e a precisão semânticas, a economia de meios, a
literalidade e a denotação, dão lugar aos seus simétricos e que dessa
forma apelam a uma tarefa de reconstrução contextual (de
interpretação) de que resulta o acesso ao segundo (e supostamente
correcto) plano de significação.
25 Talvez que qualquer discussão sobre o tema que se alicerce nesse
plano de generalidade seja no fundo vã para as questões que
perseguimos, mas a concepção de símbolo como campo do duplo
sentido de Ricoeur parece poder pelo menos servir os propósitos de
identificação no quadro geral de uma cultura de um campo restrito e
que como tal não se identifica, como em Geertz — que aqui segue a
tradição de Cassirer —, com a noção holista de cultura. Do mesmo
modo que somos capazes de distinguir entre um romance realista e
uma poesia simbolista, o antropólogo-etnógrafo pode ao fim de
algum tempo distinguir entre dois níveis que exigem um trabalho de
interpretação. Por um lado, há os elementos cuja não pertinência
resulta da sua pouca familiaridade com a cultura que estuda e que,
ao longo do processo de conhecimento e familiarização com essa
cultura, através de um alargamento do campo contextual, adquirem
a pertinência que de início não tinham — é o que podemos chamar
de componente “fraca” e geral da interpretação, e que se coloca nos
termos em que a antropologia tem discutido e interiorizado a noção
de interpretação e a sua componente hermenêutica, nos termos do
exercício de participação, compreensão e descrição etnográfica. Por
outro lado, existem elementos que, pela sua própria natureza do uso
dos elementos de significação, resistem à identificação dos seus
elementos de pertinência — e que fazem apelo a uma interpretação
“forte”. No primeiro caso, o que apareceu como símbolo, o que
parecia vago e equívoco, adquiriu uma referência e um princípio de
coerência. No segundo caso, o que apareceu como equívoco
permaneceu como tal, como um campo aberto de questionamento e
interpretação, que o antropólogo como os nativos partilham —
espaço em que se coloca uma obra como a de V. Turner. O
antropólogo pode chegar a compreender a plausibilidade da
finalidade de um rito que inicialmente lhe era misterioso (por
exemplo, curar um doente), sem conseguir detectar qualquer
plausibilidade na relação entre essa finalidade e meios seguidos para
a atingir. É esta segunda situação que nos reenvia à definição de
Ricoeur, que devemos compreender não como designando uma
relação mais ou menos directa e previamente codificada entre
diferentes planos ou níveis de sentido, mas como designando a
componente potencialmente infinita da exegese de elementos que,
no interior do seu contexto de produção e existência e pela sua
própria natureza (como entre nós uma poesia simbolista ou o Ulisses
de Joyce), abrem à infinitude o trabalho de interpretação e que
constituem assim princípios ou elementos de questionamento — e
conhecimento.
26 Neste domínio, Eco adopta uma concepção de símbolo que, embora
recondutível à de Ricoeur, nos parece, porém, mais completa:
segundo ele, o qualificativo de “simbólico” designa uma modalidade
do uso de signos de que resultam “experiências semióticas
intraduzíveis, onde a expressão é relacionada (quer pelo emissor
quer por uma decisão do destinatário) com uma nebulosa de
contéudo, ou seja, com uma série de propriedades que se referem a
campos diversos e dificilmente estruturáveis de uma dada
enciclopédia cultural: de tal modo que cada qual pode reagir perante
a expressão enchendo-a com as propriedades que mais lhe aprazem,
sem que nenhuma regra semântica possa prescrever as modalidades
da recta interpretação.” (Eco 1994). É uma decisão que seguiremos
até certo ponto, porque nos parece poder ser o ponto de apoio de
várias coisas. Primeira, como já vimos, de uma delimitação no campo
geral da cultura (das culturas) de um núcleo de fenómenos que
permitem circunscrever a noção de simbólico em termos que tornam
possível separar o que Geertz e muitos outros tendem a identificar,
isto é, o simbólico e o cultural, e que exige uma concepção “forte” de
interpretação. Segundo, permite equacionar o lugar respectivo do
produtor e receptor, do conhecimento local e do conhecimento
antropológico, perante as expressões culturais que são colocadas por
este último no campo das “experiências semiológicas intraduzíveis”
— e este é um dos pontos em que as ideias de Gadamer são decisivas.
Por último, permite assim pensar, por referência às questões
“fortes” da ambiguidade do sentido e da interpretação, a
possibilidade (e modalidades) da compreensão no domínio que mais
contribuiu para a recusa da antropologia, na sua história, de integrar
a componente compreensiva (hermenêutica) da teoria social. Se os
leões falam e (por vezes) os podemos entender, que linguagem falam
eles que nós também falamos?

27 A possibilidade de estabelecer, no domínio que temos vindo a


circunscrever, uma fusão entre o nosso horizonte de compreensão e
o horizonte de outros assenta numa dupla condição. Por um lado, em
termos de objecto, funda-se na possibilidade de um encontro
temático, na identificação de um tema ou assunto comum a
universos culturais diferentes, de um particular partilhado na
diferença. E funda-se, por outro lado, e nos termos teóricos que
seguims neste ensaio, em mais um passo na discussão sobre o
símbolo, e que é afinal um passo em direcção à sua concepção mais
difundida e consensual.
28 G. Steiner num conjunto de ensaios publicados sob o título geral
Linguagem e Silêncio, discorre sobre as insuficiências descritivas da
linguagem verbal (Steiner 1988 [1958]). Certos aspectos do mundo
físico, tal como são revelados pela física contemporânea, e certos
aspectos da experiência humana, parecem não poder ser fielmente
traduzidos pelo recurso às formas de uso da linguagem verbal que
caracterizam a nossa prosaica vida comunicacional quotidiana. Do
mesmo modo que o físico não encontra nessa linguagem as formas
de transmitir aos outros, ou representar para si mesmo, o que
revelam os teoremas que descrevem a natureza do comportamento
da matéria, aquele que experienciou a sensação esmagadora de
percorrer os planaltos tibetanos não vai provavelmente conseguir
comunicá-la a ninguém com a eficácia desejada. Podemos talvez
dizer que estes são possíveis exemplos extremos de uma situação que
Schleiermacher generalizou e colocou como fundamento de uma
hermenêutica que assim se tornou pela primeira vez geral — a
situação da incompreensão ou da dificuldade de compreensão entre
sujeitos. Entre a linguagem verbal e certas realidades do mundo e
certas experiências humanas há um hiato, uma insuficiência de
capacidade descritiva que, quando surge, apela a uma ultrapassagem
das formas padronizadas e habituais, ou mesmo “racionais”, do seu
uso. Do mesmo modo que o físico, na impossibilidade de parafrasear
neste domínio o que essa outra linguagem que é a da matemática
revela, inventa algo como um análogo figurativo que deixa entrever
em termos aproximativos alguns aspectos da absurda realidade que
quer representar e descrever, também aquele que visa transmitir
certas sensações ou experiências que sabe serem dificilmente
transmissíveis desembocará na inventividade figurativa. O
comportamento da matéria é como um gato vivo-morto numa caixa, e
a sensação transmitida pela paisagem tibetana é como a experiência
da transcendência religiosa induzida por um referente não
sobrenatural mas natural.
29 Nos momentos em que a linguagem referencial e denotativa do signo
e da sua arbitrariedade soçobra, emerge a linguagem evocativa e
motivada — e é este o sentido mais geral da noção de símbolo, a
expressão que tende à identificação analógica (explícita quando se
diz é como) entre os meios e o conteúdo da expressão. E repare-se que
permanecemos no campo definicional de Ricoeur do símbolo como
campo do duplo sentido (recebido da tradição hermenêutica e, em
alguma medida, da retórica), pois que o estabelecimento dessa
relação analógica supõe necessariamente o sentido dos elementos da
expressão — estes não são aqui elementos significantes vazios aptos
a veicular um qualquer significado, são à partida elementos de
significação que, precisamente porque o são, vêem restringidos os
significados que podem denotar (a ideia de leão não “serve” para
significar cobardia e a ideia de gazela não “serve” para conotar
agressividade). No entanto, e é essa a ideia que pretendemos
sublinhar, essa restrição implícita ao estabelecimento da relação
analógica entre expressão e conteúdo é concomitante da
sobredeterminação do discurso que a utiliza e, como consequência,
do reforço da sua capacidade expressiva.
30 Este exercício de comparação em que algo é de alguma forma como
uma outra coisa de que, no entanto, é diferente, com a qual se não
confunde mas que serve de veículo para a sua expressão (que aliás, e
como vimos, caracteriza também os antropólogos, que nas
perplexidades da sua tarefa não se cansam de dizer que a cultura é
como um organismo, ou como um sistema, ou como um texto),
depende necessariamente da capacidade de emissor e receptor
serem capazes de reconhecer algum tipo de similitude entre os
elementos ligados pela expressão é como (explícita ou implícita). Por
outras palavras, a eficácia do discurso simbólico está dependente de
um acordo e cooperação entre os seus interlocutores, de uma
partilha de postulados e concepções. É por isso que é exactamente a
este nível que parece soçobrar a compreensão que se joga na
distância cultural (e é aliás o carácter analógico de muitas das
noções-chave da antropologia que conduz ao cepticismo de muitos
dos seus autores em relação ao conhecimento por eles produzido —
que fazer com um conhecimento que visa compreender realidades
“nos seus próprios termos” por referência a noções como as de
“organismo” ou “sistema”, desconhecidos desses contextos que não
se compreendem a si mesmos por relação a eles?). Nessa distância
quebrar-se-ia inevitavelmente não apenas o acordo na qualidade
imputada aos elementos da expressão, mas também, muitas vezes, o
acordo quanto à qualidade ou mesmo realidade do conteúdo. Como
alguém disse, quando escutamos a ideia de que uma pedra
transportada é a alma de um antepassado (ou a da cristandade dos
leopardos), depara-se-nos com uma parede branca, e foi desde
sempre essa parede branca que afastou a antropologia das
componentes compreensivas do pensamento sociológico.
31 No entanto, nós apostamos no carácter profundamente ilusório
dessa ideia. É que, neste domínio, o cientista, o poeta, ou o místico
estão unidos numa procura comum de estabelecimento de uma
relação de motivação que, embora não se encontre estruturada clara
ou precisamente no interior da enciclopédia cultural (o traço que lhe
confere uma natureza simbólica, espoletadora de um exercício
potencialmente ilimitado de interpretação), só é eficaz na medida em
que, apesar disso, se oferece à compreensão. Mesmo quando se
abandona o uso “racional” da linguagem não deixa de se procurar
ser-se compreendido, pelo contrário, abandonamos esse uso e
adoptamos um uso “irracional” exactamente para que se possa ser
melhor (embora mais dificilmente) compreendido.
32 É claro que arbitrariedade e motivação são os pólos extremos de um
contínuo que em si próprio é uma abstracção, e é claro que não
dispomos de nenhum critério que o permita colocar em termos
absolutos de uma expressão como pertencendo em exclusivo a um ou
outro desses pólos, à “classe” símbolo ou à “classe” signo — a
linguagem humana é demasiado complexa para se deixar reduzir a
tal simplificação. Mas aceitando a existência desses pólos e a
possibilidade de identificar cada expressão segundo o seu maior ou
menor grau de motivação, estamos na situação em que se torna
possível pensar que é justamente aí que se reúne o que Babel para
sempre afastou.
33 Não devemos certamente negar que o estabelecimento dessa
motivação segue vias culturalmente diferenciadas, que diferentes
universos culturais constroem os seus campos conotativos de
maneira diversa, de tal forma que o elemento que num contexto
conota uma dada ideia ou qualidade, num outro conota outra,
eventualmente até oposta, mas a hipótese que perseguimos é a de
que a assimetria entre a arbitrariedade e a motivação é também a
assimetria entre a quase infinita diversidade linguística e a
identidade ou similitude pontual dos idiomas temáticos e figurativos
através dos quais em diferentes sociedades se expressam ideias ou
experiências elas próprias semelhantes. É como se acontecesse no
domínio da expressão o mesmo que sucede noutros níveis da vida
dos homens. Na sua relação com o mundo natural, como o sugere
Lévi-Strauss a propósito da “revolução neolítica”, o homem é um
experimentador atento e que dirige essa sua actividade em função
não apenas de objectivos precisos mas também da aprendizagem
adquirida a cada passo dessa actividade experimental. As
experiências fracassadas são postas de parte, esquecidas e
substituídas por outras que, a serem bem sucedidas, serão retidas.
Perante condicionalismos semelhantes, em processos que se
estendem por longos períodos, não é surpreendente que em
contextos diferentes se chegue a soluções semelhantes, que em locais
muito distantes e com histórias que não se tocam se encontrem os
mesmos instrumentos, técnicas ou formas de actividade. Não parece
disparatado supor que o mesmo se passou e se passa no domínio das
actividades e actos de comunicação e expressão, actividades não
técnicas, mas com uma componente de pragmatismo social que não
lhes é certamente inferior. Aqui, talvez mais ao sabor do improviso e
do talento individual do que como resultado de um esforço
sistemático e dirigido, também os homens foram experimentando,
testando, abandonando os inêxitos, e fixando e imitando as formas
de expressão que lhes pareceram mais eficazes. E se de facto a certos
níveis da expressão da experiência a motivação é procurada, não
será surpreendente que em universos culturais e históricos
diferentes se possam encontrar não apenas as mesmas técnicas, mas
também os mesmos símbolos. A selecção da técnica mais eficaz entre
as disponíveis não é de natureza diferente da selecção da mais eficaz
dentre as diferentes e possíveis formas de expressão de algo, da
selecção dentre um campo motivacional quase infinito dos
elementos e associações que se revelam mais eficazes.
34 Não parece absurdo pensar que as sociedades humanas sejam aliás
mais semelhantes ao nível das suas linguagens simbólicas do que ao
nível das suas técnicas — e não depende a antropologia, enquanto
disciplina compreensiva dessas proximidades inusitadas, dessa
partilha eventual de temas universais de reflexão e expressão? Sem
prejuízo da diversidade cultural, e na fecundidade potencial dessa
mesma diversidade, perseguimos a ideia de Ricoeur expressou por
referência ao mito mas que é coextensiva ao símbolo —
Myths have a horizon of universality which allows them to be understood by
other cultures. (...) One possible explanation of the universally common
dimension of myth might be that because the myth-making powers of the human
imagination are finite, they ensure the frequent recurrence of similar archetypes
and motifs. (...) The mythos of any community is the bearer of other possible
worlds. And I think it is in this horizon of the “possible” that we discover the
universal dimensions of symbolic and poetic language (Ricoeur in Valdés, 1991).
35 — uma ideia que não é estranha a Gadamer, que, na esteira de
Heidegger, coloca a condição da compreensão em termos ainda mais
gerais e abertos do que Ricoeur, dado que ela seria dada como
possibilidade na linguagem e não apenas na linguagem que privilegia
uma relação de motivação entre expressão e conteúdo.

36 A seguirmos a leitura que M. Detienne faz dos autores e obras que


coloca na genealogia da formação e desenvolvimento de uma ciência
que se ocupa da “mitologia”, o impulso que está por detrás desta não
é muito diferente do que levou outras tradições ao desenvolvimento
de hermenêuticas (Detienne 1981). Por detrás do questionamento da
“mitologia” por parte de autores como Max Müller, A. Lang ou E.
Tylor não estaria senão a repetição, por referência a uma tradição
externa, de um sentimento que os Gregos do século IV e o mundo
cristão desde muito cedo sentiram em relação às suas respectivas
tradições internas, os primeiros em relação aos textos homéricos e o
segundo em relação ao texto bíblico — a existência de contradições
entre o conteúdo suposto e o conteúdo literal do texto.
37 Com efeito, os gregos do século IV não conseguem conceber como
verdadeiro o carácter indigno e a natureza conflitual das relações
entre os deuses que Homero descreve; os cristãos definem como
apócrifos todos os textos contraditórios em relação a uma
determinada (e cambiante) concepção do que foi o conteúdo e o
sentido da acção de Cristo, criando desde muito cedo um aparato
exegético de natureza finalista que durará mais de um milénio e que
permite transpor as inverosimilhanças materiais, doutrinais ou
morais que o texto bíblico apresenta na sua literalidade, para
diversos planos de sentido secundário (“espiritual”), onde, aí sim, ele
diz o que deve e tem de dizer (Todorov 1980 [1978]; Jaeger 1995 [1936];
Thiselton 1992)
38 Mas há uma diferença fundamental entre o que está por detrás dos
aparatos exegéticos desenvolvidos pelos Gregos e pelo cristianismo,
por um lado, e o que constituiu um dos principais impulsos para a
criação de um campo e de uma ciência da mitologia. É que o esforço
interpretativo, quando se exerce no interior de uma mesma tradição, é
dirigido por uma pré-compreensão que compulsivamente procura e postula
um acordo no plano da verdade entre o conteúdo dos textos históricos
interpretados e os dogmas, crenças e tradições interpretativas do intérprete;
enquanto, pelo contrário, como o demonstra toda a história da
reflexão da antropologia sobre o tema, o exercício da interpretação
que põe em diálogo diferentes tradições (diferentes “culturas”) se
baseia sempre no postular da multiplicidade e recíproca
incomensurabilidade entre os planos da verdade.
39 Tocamos aqui vários pontos já referidos neste texto, dado que estes
dois planos de exercício da interpretação estão relacionados quer
com o olhar tradicional da antropologia sobre o simbólico, quer com
a leitura que Gadamer fez da história do pensamento hermenêutico.
Quando se parte da concepção relativista tradicional da antropologia
que supõe a incomensurabilidade entre os planos da verdade, o
exercício interpretativo, exactamente devido a essa premissa, só
pode ter por finalidade a reconstrução (sempre por contextualização)
das intenções e sentido originais do texto — sendo que, chegados ao
fim desse exercício, tudo o que de essencial obtemos estava afinal já
contido no ponto de partida — sabemos o que o outro diz e pensa
sem que, porém, possamos adequar as suas palavras e sentido a algo
que possamos considerar subjectivamente como verdadeiro. Dilthey
colocou a emergência da hermenêutica moderna exactamente no
ponto em que Schleiermacher adoptou essa atitude. Foi no momento
em que nos mostrámos capazes de inquirir os textos legados pelo
passado segundo uma perspectiva que abstrai do seu conteúdo de
verdade, e que, portanto, já não se guia pela procura finalista de
integrar e assimilar o seu sentido a uma pré-compreensão do que este
deve ser, que se abandonou, segundo Dilthey, a interpretação
dogmática e se possibilitou uma objectivação da interpretação
(Dilthey 1976 [1970]). O que esta deve procurar compreender são as
intenções e sentidos originais dos textos e dos seus autores, isto é,
aceder por reconstrução às condições da sua génese e existência no
seu contexto histórico, no reconhecimento da diferença e
incomensurabilidade entre esse contexto de origem e o contexto da
sua presente recepção. (Não admira assim o fascínio de alguma
antropologia pela obra de Dilthey, que, no entanto, tendeu a fazer-se
sobretudo por uma muito pouco sofisticada apreensão e uso da sua
muito sofisticada noção de “experiência”.)
40 Gadamer, o inveterado céptico quando ao carácter monopolístico da
ciência e do método como instâncias de determinação do que pode
ser considerado como “verdade”, inverte o olhar de Dilthey sobre a
história do pensamento hermenêutico e sobre a própria noção do
que é significativo e essencial na interpretação-compreensão. Como
vimos, segundo Gadamer, a simples busca da reconstrução dos
motivos e dos sentidos (a reconstrução do outro na sua diferença e
por relação ao seu próprio universo de acção e pensamento), para
além de ser quimérica é pobre em relação à possibilidade real (e
inevitável, por muito que se o queira negar ou afastar) de os
considerar à luz da compreensão que temos do “acontecimento” ou
“tema” em causa. Ademais, e esta é a ideia central, a compreensão
pela reconstrução da diferença como diferença é uma falsa
compreensão no sentido em que deixa fora do plano de partilha o
essencial: o acordo subjectivo no plano da verdade. Não se trata de
muito simplesmente postular a verdade do texto no seu contexto e
para o seu autor, não se trata de postular que somos capazes de
aceder a ele “nos seus próprios termos” (“from the native’s point of
view”) e descobrir a sua coincidência em relação a uma verdade “nos
nossos próprios termos”, trata-se antes de reconhecer que a
condição do exercício interpretativo reside no interpelar do
intérprete pelo texto, porque ao seu olhar este contém um plano
significativo de compreensão e conhecimento de algo. A
interpretação neste sentido é sempre dogmática, constitui-se como
uma integração e recontextualização da compreensão de algo nos
modos da nossa própria e assim alargada compreensão desse algo, e
a historicidade da verdade das suas múltiplas compreensões é a
historicidade do nosso conhecimento — e, no caso de uma
antropologia assim orientada, a sua “culturalidade”. Não se trata de
saber e aceitar que alguém crê na verdade da cristandade dos
leopardos, assim como não se trata de encontrar uma paráfrase
dessa afirmação que a converta em algo que nós próprios possamos
considerar verdadeiro ou pelo menos plausível (assim, por exemplo,
reconstruir um sistema local de relações metafóricas entre o
universo humano e animal que permite ver essa frase como parte de
um idioma figurativo que conceptualiza e pensa em termos
avaliativos a diferença entre os grupos sociais — como o fez Sperber),
trata-se antes de tomar consciência de que nos detemos numa tal
frase porque ela nos interpela e nos faz pensar acerca de algo que é
para nós significativo. Mas o problema aqui, como em todas as
discussões sobre o símbolo ou a racionalidade que se travam na
antropologia, é que o está em causa para o antropólogo através dela,
o que é para ele significativo, não é a qualidade cristã ou não cristã
dos leopardos (que é um elemento figurativo local ou, na pior das
hipóteses, apenas e simplesmente um disparate), mas sim algo de
muito diferente e que ela apenas se limita a servir — a discussão de
temas da antropologia referentes ao “símbolo”, à “crença”, à
“cognição”, à “racionalidade” ou, em termos genéricos, ao tema
durkheimiano das “representações colectivas”. Neste plano da
interpretação (ou, como prefeririam a maioria dos seus agentes, da
“explicação”), o problema é que esses temas não são de todos
significativos para o Etíope, como aliás não é para nós significativa
em si mesma, por demasiado absurda, a sua crença na cristandade
dos leopardos. O ideal objectivista, o método, na melhor das
hipóteses reconstrói sistemas figurativos (as categorias de outro
universo cultural) através de teorias por vezes fantasiosas que nos
afastam da possibilidade de uma verdadeira (embora de raiz e
destino relativa) compreensão — e a antropologia chega a dar de si
própria a impressão de que a sua tarefa é a de oferecer
interpretações (“explicações”) verdadeiras do que considera
falsidades, mas que, por preconceito, se recusa a reconhecer como
tal.
41 Em alguma medida, o desafio de uma antropologia hermenêutica é
mais forte do que o que esteve por detrás da longa história do
pensamento hermenêutico no sentido em que os horizontes por si
unidos não estão ligados por tudo o que implica de vontade
compreensiva (ou eventualmente, de desacordo significativo) a pertença
a uma tradição comum. Argumentamos, porém, que a noção de
símbolo, e o campo que ela recorta, pode abrir um lugar de diálogo e
de busca de compreensão e conhecimento entre tradições diferentes
ao permitir conceptualizar um horizonte geral comum a toda a
humanidade, demasiado vasto para poder ser apreendido por um
olhar geral e que nessa vastidão permanece inteiramente abstracto,
mas em cujo interior podemos encontrar aqui e ali pontos de
referência comuns e recorrentes, em relação aos quais essas
diferentes tradições se podem encontrar num plano de acordo
subjectivo na verdade. Mas o desafio de uma antropologia mais
autoconscientemente hermenêutica é irrecusável, porque nele
parece estar contida quer a valorização do conhecimento que os
outros universos culturais produzem e que a disciplina toma por seu
objecto, quer a valorização da própria tradição da antropologia. O
reconhecimento da transcendência da noção de verdade em relação
à noção de método, se é concomitante da valorização do
conhecimento que a arte e a história propiciam — temas sobre os
quais Gadamer argumenta extensamente —, é-o também das
diferentes formas de conhecimento que outras tradições
construíram e tomaram como seus elementos de interpretação e
acção sobre a realidade. Do mesmo modo, uma tal concepção permite
que a antropologia retire de algo que já descobriu sobre si própria
(que não é uma ciência no sentido positivista em que os fundadores e
os espíritos mais encarniçadamente objectivistas pensaram que era),
não uma orfandade identitária ou as possibilidades e facilidades do
mais absoluto relativismo e subjectivismo, mas a ideia mesma da sua
possibilidade, identidade e validade enquanto pensamento que se
exerce entre e na diferença cultural. O ideal do método não apenas
não fornece um antídoto contra a má ou a falsa interpretação (e a
história da antropologia está aí para o demonstrar), como obscurece
mesmo, pelo estatuto superior que a si mesmo se atribui, a
possibilidade de, afinal, podermos estar através dele a incorrer numa
falsa compreensão — e, concomitantemente, de sem ele podermos
chegar a uma melhor, menos falsa e, por vezes, verdadeira
compreensão. Mas, exactamente porque a antropologia nunca foi
ciência no sentido em que o queriam os seus fundadores, porque as
tarefas da vivência, descrição e interpretação etnográfica (ou
textual) nunca foram de facto (porque não o podem ser)
metodologizadas (“objectivadas”), o principal legado da disciplina
não é o que ela tem ou procurou ter de “científico”, mas o
património imenso de conhecimento descritivo sobre sociedades e
culturas que a história moderna viu e vê desaparecer. Da mesma
forma que a historiografia moderna sobre o mundo romano não
pode dispensar Gibbon, a antropologia não pode dispensar os seus
Malinowskis, tanto mais que os textos sobre os quais Gibbon baseou
a sua interpretação do ocaso do Império Romano ainda aí estão, o
que não acontece com os Trobriandeses ou os Omaha.

BIBLIOGRAFIA
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RESUMOS
O antietnocentrismo e os modelos holistas têm sido o contexto e a forma da solução dada
pela antropologia ao problema da incomensurabilidade entre os planos culturais da
verdade. Desde sempre repetiu-se na disciplina, sob diferentes vocabulários teóricos, a
atitude de procurar explicar o que não se compreende, com o resultado repetido de
esplêndidos falhanços explicativos do que permaneceu assim por compreender. Por recurso
às ideias da filosofia hermenêutica moderna e a uma delimitação da noção de símbolo,
propõe-se neste artigo uma estratégia não metodológica de consideração dessas questões e,
por seu intermédio, uma reconsideração do estatuto da disciplina e das formas de
conhecimento que ela toma como objecto.

The anti-ethnocentrism and the holist models have been the context and form of the
solution provided by anthropology to the problem of the incomensurability between the
cultural planes of truth. As of always, it has been repeated within this discipline, under the
guise of different theoretical vocabularies, the attitude of searching to explain what is not
understood, with the repeated result of grand explicative failures of what has yet to be fully
understood. By appealing to the ideas of the modern hermeneutic philosophy and a
delimitation of the notion of symbol, this article proposes a non-methodological strategy of
those questions and, by its intervention, a reconsideration of the discipline and the forms of
knowledge that it adopts as its aim.

AUTOR
FILIPE VERDE
Departamento de Antropologia — ISCTE, Centro de Estudos de Antropologia Social
josé.verde@iscte.pt
Entrevista
Returning to the whole em
Edimburgo: entrevista com James
Fernandez
António Medeiros

1 Será pouco conhecida em Portugal a obra de James Fernandez. No


entanto, um olhar atento sobre as bibliografias citadas por outros
antropólogos, mais referidos e prezados na produção caseira, deixa
sugerida a importância da influência de Fernandez na literatura
antropológica americana mais recente. Sendo um homem de
variados terrenos, o autor é simultaneamente um teórico
importante. São, por exemplo, incontornáveis e muito pertinentes as
reflexões que tem vindo a desenvolver sobre o lugar dos tropos na
construção das culturas.
2 É corrente ver reconhecida a obra maior de James Fernandez — Bwiti.
An Ethnography of the Religious Imagination in Africa (1982) — como um
dos trabalhos especializados de maior relevo até hoje produzidos
sobre África. No que respeita à Espanha, por outra parte, o autor tem
pesquisa feita e textos dispersos por vários lugares; também uma
audiência atenta e alguns díscipulos, entre os antropólogos, nativos
ou estrangeiros, que ali desenvolveram trabalhos.
3 Na obra de James Fernandez, as reflexões teóricas mais
aprofundadas — que suscitam um universo vasto de referências
eruditas —, misturam-se muitas vezes com uma etnografia densa,
minuciosa e imaginativa, tocando eventualmente um registo
picaresco que é fresco e surpreendente.
4 A surpresa de encontar um nome hispânico nas bibliografias norte-
americanas era, até há um tempo recente, importante. Como um dos
meus colegas, facilmente imaginava Fernandez com a figura
estereotipada de um chicano. Ambos ficámos surpreendidos por
encontrar um “celta” — como me dizia aquele colega, sabendo que
ninguém sabe o que isso significa exactamente.
5 Esta entrevista tem um teor um pouco biográfico, servindo assim
para apresentar Fernandez no contexto nacional, de um modo
genérico. Como em todas as biografias redime-se aqui o tempo — e a
redenção do tempo e do espaço são temas muito queridos do
entrevistado — propõe-se um returning to the whole, seguindo um
título de James Fernandez.
6 A conversa realizou-se em Edimburgo, nos fins de Outubro de 1996,
por ocasião do ciclo de conferências comemorativo dos 50 anos de
antropologia na Universidade da cidade. Ali, James Fernandez foi
conferencista convidado de uma das sessões plenárias. Num dos dias
seguintes, acedeu muito simpaticamente à realização desta
entrevista, que foi conduzida em castelhano.
ANTÓNIO MEDEIROS — Lendo a partir de Portugal, parece que consigo surge pela
primeira vez um nome hispânico importante na antropologia norte-americana, onde os
autores tinham nomes de origem anglo-sáxónica ou da Europa central...
JAMES FERNANDEZ — Bem... Na América há uma grande mistura
de sangues, que toca a quase toda as pessoas. É problemático dizer-
me de origem hispânica. Por um lado, o que posso dizer é que há
muito tempo que me dedico ao estudo do mundo hispânico. Há
muitos anos que estamos a trabalhar nas Astúrias (James Fernandez e
a sua mulher Renate Lellep Fernandez). É também verdade que tenho
família ali, mas também a tenho na Escócia ou na Irlanda, ainda que
mais distante.
AM — Os seus primeiros interesses de estudo focaram-se em África. Isto era pouco
corrente entre os antropólogos americanos nos anos 50?
JF — Eu fiz a minha licenciatura na Northwestern University, e ali
era importante a presença de Melville Herskovits, que era um
africanista conhecido. Isto facilitava as hipóteses de trabalhar em
África. Assim, depois, quando se pôs a necessidade de escolher um
terreno para trabalhar, surgiu a oportunidade de conseguir uma
bolsa e ir para lá.
AM — Em Bwiti demonstra conhecer muito bem a bibliografia colonial espanhola acerca da
Guiné Equatorial. Assim, não teria sido mais óbvia a escolha deste terreno, em vez do
Gabão?
JF — Eu queria estudar os Fang, que se repartem entre a Guiné e o
Gabão. Aliás, é na Guiné que eles têm uma presença mais
importante, em termos relativos. Mas aconteceu que não me foi
possível conseguir uma autorização das autoridades espanholas,
sempre muito desconfiadas acerca do que eu queria realmente
fazer. Assim, pude trabalhar com os Fang no Gabão, que era nesse
tempo uma colónia francesa, depois de terem passado por lá os
alemães até ao fim da Primeira Guerra. Ali foi mais fácil conseguir
essa permissão. Depois acontecia-me ir falar com os guardas
espanhóis num posto fronteiriço, durante o trabalho de campo, sem
poder passar para o outro lado...
AM — Em África, então, era preponderante a presença de antropólogos britânicos...
JF — Sim, tinham a presença mais importante, mas também os
franceses faziam trabalhos e tinham possessões muito vastas.
Herkovits tinha trabalhado no Daomé, que estava sob o domínio
dos franceses. E também estavam lá os portugueses. Aliás, era
muito díficil para nós conseguir permissão dos portugueses para
fazer estudos nas áreas que dominavam nos anos 50, por razões
políticas, por causa de suspeitas de que os americanos iam animar
os projectos independentistas. Eu conheci... Não sei se te diz alguma
coisa o nome de Eduardo Mondlane?
AM — Sim.
JF — Eu conheci-o, foi um grande amigo meu em Northwestern,
onde ele também fez os seus estudos...
AM — De antropologia?
JF — Sim, aliás... de sociologia.
AM — Depois ele morreu...
JF — Morreu, bem... mataram-no, a PIDE ou os seus próprios
companheiros, não se sabe até hoje. Morreu com uma explosão, no
momento em que abria um pacote de livros, conhecerás essa
história...
AM — A filha de E. Mondlane também é antropóloga, julgo?
JF — E o filho... A mulher, por sua vez é socióloga. Bom, essa foi
outra etapa, mas o quero dizer é que nos anos 50 havia em
Northwestern várias pessoas vindas das colónias africanas, vindas
nomeadamente da África portuguesa. Ali já havia então vontades de
independência, e por isso os portugueses... bem, foi sempre difícil
conseguir permissão para fazer estudos nessas áreas, porque
tinham a suspeita, aliás com alguma razão, de que podiam ser em
seu desfavor. No meu caso... nunca fui um revolucionário nesse
sentido, militante, ainda que sempre me tenham sido simpáticas as
correntes independentistas, como se espelha nos meus trabalhos.
AM — Fez trabalhos em vários contextos africanos. Esses anos de passagem entre as
décadas de 1950-1960 foram tempo de independências, conheceu vários processos?
JF — Sim, durante os anos 60 trabalhei um pouco por toda a parte
em África — África do Sul, Rodésia, Quénia, Togo, Gana e Benim —,
estudando movimentos religiosos. Este foi um tempo muito
afirmativo, de muitas esperanças. Então, muitos dos novos estados
tentavam resistir à incorporação e à dependência político-
económica do Ocidente. Hoje em dia conhecemos os resultados
destes processos...!
AM — Quando é que se decidiu a trabalhar em Espanha?
JF — Isso aconteceu devido à seguinte casualidade: nos meados dos
anos 60, quando chegou a família toda ao Togo para fazer trabalho
de campo — eu e a minha mulher, que também é antropóloga, e
dois filhos — por pouco não perdemos uma das crianças ali, com
uma doença que apareceu de repente, e... quase que não a pudemos
curar. Chegámos quase ao último momento da sua vida e apenas
nesse último momento encontrámos um medicamento, um
tratamento, que permitiu salvar essa menina de dois anos e picos...
de 26 meses. Aquilo foi um pavor, como é fácil de imaginar,
especialmente para a minha mulher. Deste modo, no meu próximo
projecto, dois anos depois, nos meados dos anos 60, a minha mulher
não quis continuar, não quis acompanhar-me com os filhos. Então
nesse momento eu disse: bem, porque é que não lançamos um
projecto no Norte de Espanha. Isto foi uma casualidade. A minha
mulher não quis expor uma vez mais as crianças a uma vida
bastante perigosa, à vida de campo, muito fora do âmbito dos
hospitais, que estão nos grandes centros. Foi então que decidimos
começar este projecto, que já corre desde 1966.
AM — Quando escolheu as Astúrias, mais precisamente, foram importantes as razões
sentimentais, relacionadas com as origens dos seus avós?
JF — Sim... é verdade, bem... do meu avô, que tinha vindo para a
América há mais de cem anos; foi em 68 do século passado... não há
tanto tempo. Sabia, todavia, que tinha família ali. Mas não fazemos
estudos na zona onde estão radicados estes familiares, quis evitar
essas dificuldades. Como tu sabes, temos feito estudos nas
montanhas, nas zonas mineiras. Os meus familiares vivem numa
zona chamada Bajo Nalon — em Grado e San Román — que é
sobretudo uma zona de agricultura e de fruticultura.
AM — Tinha conhecido as Astúrias de menino?
JF — Não, não, como se nota. Eu não tenho o domínio do espanhol de alguém que o
falou toda a vida.... perdemos o espanhol. O meu avô casou-se com uma irlandesa; era
ela, claro, estando na América, que determinava o idioma falado em casa. O meu avô
estabeleceu-se em South Bend, um pequeno povoado de Indiana, comprando uma
loja de tabacos. Bem, ele tinha chegado como trabalhador a Cuba, como enrolador de
charutos, logo se passou para a Florida, em seguida para Chicago e, já casado,
assentou ali, nesse povoado de Indiana. Isso explica a perca do espanhol na minha
família, o meu pai tampouco aprendeu a falar espanhol.
AM — A Espanha vista de longe, da América, terá imagens mais reconhecidas e atraentes
— também para estudo — na Andaluzia...
JF — Sim, é verdade que no respeita aos estereótipos que temos da
Espanha, estes se relacionam com Sul, o flamenco, os touros.
Propõem-se mais contrastes nestas imagens, no que se refere às
identidades respectivas de ambas as nações.
AM — E D. Quixote?
JF — Sim, D. Quixote também, mas esses não são estereótipos que
circulam só na América, são antes, nomeadamente, do mundo
anglo-americano. Quis identificar na minha conferência a sua
importância. Estes emblemas servem para fazer sentido. Servem,
por exemplo, para identificar o que é a Espanha, por intermédio de
um contraste revelador relação à América.
AM - Os seus trabalhos parecem-me muito originais, na escolha dos objectos e no seu
tratamento. Por outra parte, percebe-se uma permanência muito forte de alguns temas, ao
longo de décadas...
JF — Sim, é verdade.
AM — Em 1962, escreveu um artigo sobre as relações entre o folklore e o nacionalismo, um
trabalho que não encontrei...
JF — Sim, esse é um tema de sempre. Esse artigo teve uma
publicação quase privada da Associação de Africanistas, saiu numa
publicação... bom... quase privada.
AM — Referia-se então ao contexto africano, exclusivamente?
JF — Sim, mas ultimamente publiquei um tratando o mesmo tema.
“Folklore as an Agent of Nationalism”, era o título do meu primeiro
artigo e o mais recente chama-se “Folklorists as Agents of
Nationalism”, tendo saído em 1986. Assim, tenho dois artigos
separados por vinte e tantos anos tratando do mesmo tema, ainda
que, naturalmente, de perspectivas e com enfoques distintos.
AM — Quais são os seus temas de trabalho mais recentes?
JF — Apesar do reflexivismo e do sentido de parcialidade de todas
as nossas pesquisas, que chegou a afectar-nos a todos nesta idade
pós-moderna, eu continuo a trabalhar principalmente um grande
tema que já tinha sido posto por Aristóteles e por Vico — o
problema do papel ocupado pela imaginação figurativa no
comportamento humano.
AM — Em Bwiti já eram muito salientes as suas preocupações com o papel das metáforas
na construção da cultura Fang. Esse será um tema que resiste até hoje?
JF — A construção da cultura foi sempre um tema que esteve
comigo. Sim, continuo preocupado com esta questão, não
abandonei um tema assim tão rico como é esse da metáfora, ou
melhor, da articulação da vida e da articulação da realidade. A
metáfora... todos os tropos, usa-se menos a palavra metáfora a
favor de uma noção mais rebuscada e mais ampla de tropo. Bem... é
o dinamismo da interacção, da relação entre os tropos que me
interessa mais. A minha teoria... a preocupação mais importante ao
longo da minha carreira, tem sido o apreço dos efeitos da
imaginação na vida social. Quero dizer que o meu tema, o meu
projecto, tem sido o de entender sempre mais profundamente os
efeitos da imaginação, os efeitos da imaginação na teoria social e na
vida humana, de um modo geral.
AM — Isso estava proposto em Bwiti?
JF — Sim, estava, esse foi um ponto que quis fazer claro desde o
primeiro capítulo. Eu tomo sempre como muito importante, como
coisa muito séria, o papel da imaginação na vida humana... como
todos os poetas o fazem.
AM — Na sua etnografia surgem propostas muitas metáforas, luminosas algumas, na
minha opinião...
JF — Queres dizer o registo de metáforas encontradas no terreno?
AM — Não propostas por si, como modo de esclarecer perspectivas próprias.
JF — Ah! Dizes que no momento de teorizar eu utilizo muito as
metáforas. Sim, é verdade, é verdade. Mas toma nota do facto de
que tento sempre distinguir as metáforas que são minhas e as
metáforas do campo, sabes, da gente... há que distinguir. É certo
que todos as utilizamos. A metáfora é realmente iluminante...
ontem, no meu discurso, na conferência que ouviste, servi-me da
Fábula das Abelhas, citando Bernard Mandeville, que a tinha usado
para referir os paradoxos que se pode perceber existirem entre os
vícios privados e os benefícios públicos.
AM — Também faz poesia?
JF — Sim, de vez em quando, mas não sou um poeta muito
publicado, a verdade é que é algo com circulação apenas familiar.A
minha poesia está na etnografia que faço. Mas admiro muito os
poetas e leio-os muito. É curioso que vários dos meus alunos sejam
poetas publicados. Por exemplo Joseba Zulaika, que escreveu sobre
os Bascos a violência basca, é um belíssimo poeta. Também Ruth
Behar, que trabalhou em León, tem publicado poesia. Conheces
estas monografias?
James Fernandez em Edimburgo, fotografado por António Medeiros
AM — Sim, conheço. Também Paul Frederich, outro antropólogo que será sobretudo
conhecido como poeta, participa em Beyond Metaphor, o volume colectivo que organizou
há algum tempo.
JF — Paul Frederich é muito importante. Tem publicada muita
poesia. É por outro lado um antropólogo muito bom...
AM — Tem trabalhado no México?
JF — Bem... além de tudo, ele é também um poliglota. É na verdade
um homem que maneja muitas matérias... trabalhou na Rússia,
Grécia, México, bom... é um demónio de conhecimentos, tendo em
conta os vários interesses e actividades que desenvolve.
AM — Julgo que ele é muito pouco conhecido em Portugal...
JF — De facto é um homem demasiado pouco conhecido. Tampouco
fazem referências ao seu trabalho aqui, na Inglaterra ou na Escócia.
Conhecerás um trabalho dele intitulado “Los Príncipes de
Nararanja”?
AM — Conheço um livro seu, mas com outro título, dos anos 70, à volta de histórias de vida
de revolucionários em Naranja... será um trabalho mais antigo.
JF — Este chama-se “Los Príncipes de Naranja”, a inspiração deste
trabalho está em Maquiavel e na grande obra O Príncipe. Sabes,
Friederich ali aproxima o trabalho de campo no México usando
como referência o pensamento de Maquiavel. Compara o
maquiavelismo no México nos dias da revolução de há tempos,
claro... a revolução mexicana, de encontro às ideias expostas por
Maquiavel. É um trabalho muito interessante, interessantíssimo.
AM — De que data?
JF — Bem... é um trabalho que saiu publicado nos meados anos 80.
Mas a verdade é que toda a obra de Paul Friederich é muito
importante. Ele é bem pouco conhecido, como disse, mas não sei
porquê. Talvez porque se dedica a várias coisas ao mesmo tempo...
então os especialistas têm tido a tendência de pensar que este
homem é um pouco leviano enquanto antropólogo. Isto não é
verdade, as suas obras são profundamente radicadas no trabalho de
campo. Verás... verás quando consultares esse seu livro, que, além
de tudo, é muito experimental.
AM — Julgo que foi um dos primeiros antropólogos americanos a serem influenciados por
Lévi-Strauss. No entanto, a sua preocupação com a importância das metáforas tem
inspirações variadas?
JF — Bom, de certo modo é verdade, mas Lévi-Strauss tem muitas
influências de Jakobson. Este foi um homem que eu li muito. O que
posso dizer-te é que sobretudo esta influência foi importante para
mim. Também importante foi aquilo que aparece eleito na obra de
Lévi-Strauss sob influência de Jakobson. Talvez possa dizer que foi
importante a referência à obra de Jackobson e de Lévi-Strauss.
Quanto às metáforas, mais precisamente, e às influências que se
marcam na minha obra... eu não quero negar a importância de Lévi-
Strauss, mas tão-só especificar aquilo que é influência sua, no que
me toca.
AM — Foram mais variadas as inspirações... dos filósofos, como sugeriu?
JF — Sim os filósofos, antes que todos Giambatista Vico, o grande
sábio napolitano do século XVIII . Vico mais do que ninguém... Mas
não posso esquecer Aristóteles, que tem algo sobre as metáforas.
Este é, ao fim e ao cabo, um tema de sempre. Nós somos seres, é
algo da vida, somos seres que não podemos entender-nos sem fazer
uso das metáforas, dos tropos.
AM — Os seus alunos têm boa vontade para ler Vico?
JF — Bom... por força benévola maior. Vico é difícil de consultar!
AM — Os tropos para si têm sido preocupação constante, mas parece-me que têm sido
uma preocupação muito própria, pessoal, relativamente isolada durante vários anos na
antropologia. Li um livro de Michael Herzfeld, onde também se encontrava essa
preocupação. Ali eram muito salientes as referências aos seus trabalhos e também a G.
Vico...
JF — Sim, está no seu livro sobre a Grécia, Anthropology Through the
Looking Glass, que... sim, é verdade... é bom. Mas ultimamente os
cognitivistas de Berkeley — George Lakoff, M. Johnson, etc. —
fizeram trabalhos sobre a importância da metáfora nos cursos de
filosofia. Foste ver a conferência de Fredrik Barth... ele fez
referências a Lakoff e ao seu trabalho, criticando-o por ser
demasiado elementar, esquemático. É muito verdade. Os
cognitivistas não entendem verdadeiramente as experiências
humanas, pelo menos a um nível de participação como os
antropólogos. O nosso contributo é esse: o de somar a dimensão da
experiência humana a estes esquemas, como os de Lakoff e
Johnson. Quando comecei a falar da metáfora, as minhas primeiras
publicações sobre este assunto saíram nos anos 60, 67-68-69. Até aí
quase ninguém na antropologia lhe atribuía uma importância
especial, muito menos se falava de tropos. Isto modificou-se muito
nos últimos dez ou doze anos. Inclusivamente, nas conferências
plenárias, aqui, em Edimburgo, quase toda a gente lhe fez
referências. Tornou-se um tema que, se não é candente, é pelo
menos imprescindível. No momento de falar de cultura, no
momento de falar sobre a criação, sobre a construção da cultura, os
conferencistas tiveram de referir-se, quase todos, à metáfora. É
palavra que hoje é muito frequente. Mas, toma nota que nos anos
60-70, quando comecei a falar disto e, nomeadamente, quando fiz
uma aproximação mais composta do tema, publicando aquele
artigo — “The Mission of Metaphor in Expressive Culture”, que é de
1974 —, quase ninguém lhe atribuía importância. Apenas alguns
poucos, como Renato Rosaldo, os Rosaldo, e logo Michael Herzefeld,
este nos anos 80, a partir de 1981, lhe prestaram atenção.
AM — Renato Rosaldo é da sua geração?
JF — Não exactamente, eu tenho talvez mais uns dez anos do que
ele. Bem... Rosaldo é da geração de 60, príncipios de 70, eu sou da
geração de 50, príncipios de 60. Ele ainda não tem cabelos brancos
como eu, enquanto vou podendo dizer que tenho algum cabelo.
AM — Tem planeado fazer nas Astúrias uma obra de fundo, com a importância de Bwiti no
que toca ao seu trabalho em África?
JF — Tenho várias coisas. Acaba de sair este ano uma colecção de
textos. Todavia, estou ainda a trabalhar na etnografia grande que
levará o título Felechosa, nome daquele sítio onde mais se tem
focado o nosso trabalho... Mas o seu subtítulo será “An
Ethnography of the Social Imagination”. Bwiti tinha como subtítulo
“An Ethnography of the Religious Imagination”, este será sobre a
imaginação social. Há, assim, uma pequena diferença no título, mas
que é com certeza, à partida, importante.
AM — Será tão volumoso como Bwiti, este próximo trabalho?
JF — Bem, sim, já tenho vários capítulos escritos, julgo que é
impossível escrever uma etnografia sem lhe dedicar muitas
páginas. Não sei se poderemos publicar tanto... mas estamos a
trabalhar nisso. Este será um trabalho escrito em conjunto com a
minha mulher, que tem trabalhado muito nas Astúrias. Foi por
sugestão sua que começámos a trabalhar em Espanha, e hoje em dia
é ela que é a asturianina. Aliás nos pueblos onde trabalhamos tenho o
apodo de Jaime da Renata. É ela a referência — as coisas passam-se
como se eu fosse um homem de fora casado ali. Aconteceu que na
primeira vez que ali fomos, depois de alguns dias eu parti para
África, deixando-a sozinha. Então as pessoas adoptaram-na,
pensando que aquele homem que passara tão rapidamente
abandonara a pobrezinha. É daí que hoje sou o Jaime da Renata.
AM — Dos seus textos asturianos, um dos meus favoritos será “Poetry in Motion: Being
Moved...” É muito evocativo de cenas que presenciei no Minho, assim picarescas, como a
que suscita o jogo de palavras “piononos en el campo amor” no seu artigo. É muito peculiar
na sua etnografia o registo de episódios assim tão vivos.
JF — Tenho sempre muito em atenção os aspectos picarescos do
quotidiano. Esse episódio no autocarro funcionou como um
momento revelador. Julgo que, de vez em quando, há momentos
reveladores na vida humana. São momentos que contêm um
sentido muito profundo quanto às relações humanas, às
dificuldades que existem entre as pessoas, quanto aos pensamentos
distintos de homens e de mulheres, às dificuldades que se põe às
raparigas quando entram na idade madura, às relações jocosas com
os homens, por exemplos. Esses momentos reveladores contêm
muitas vezes tropos — examinando-os podemos chegar a
compreender os dinamismos presentes na vida em sociedade. Por
isso é costume meu começar cada capítulo de uma etnografia, por
exemplo, com um desses momentos reveladores como o que
presenciei entre Oviedo e Arriondas, no autocarro das Lineas
Económicas.
AM — Fala dos desafios poéticos nas Astúrias: lá também podem ser cantados? Há
“cantores ao desafio” no Minho, Lisón-Tolosana tem um artigo sobre este tema na Galiza...
JF — Há também cantigas dessas nas Astúrias, mas eu não as
estudei. Creio que na Galiza é mais exuberante. Justamente, essas
são expressões interessantes, porque lançam no ar figuras, tropos
novos. Eu estive na Galiza, mas não me aproximei deste tema.
Também os Bascos têm essas formas de contenda poética muito
desenvolvidas, os... não me lembra agora o nome que lhe dão.
Acaba de sair um livro interessante sobre isso publicado pela
Universidade de Nevada, em Reno. Quase que diria que são os
Bascos que têm desenvolvido mais esta prática de lançar um desafio
e ter de responder-lhe em verso. São os bertsolariak, é assim que se
chamam em basco a estes contendores poéticos. É gente que
espontaneamente se põe face a um auditório, depois lançam-lhes
uma questão à qual todos eles têm que de responder poeticamente
no momento: responde o primeiro, o segundo tem de pegar na
deixa...
AM — Cantando?
JF — Sim, cantando. Bem, alguns não o poderão fazer, mas a
maioria cantando.
AM — O professor conhece bem a produção antropológica feita em Espanha. Pergunto-lhe
se conhece alguma coisa do que se tem feito em Portugal?
JF — Sim, alguma coisa, mas não muito, lamentavelmente... É certo
que dou na universidade um curso que tem a ver com Espanha e a
área mediterrânica, e trato da literatura em inglês sobre Portugal,
de Brian O’Neil, por exemplo...
AM — De Pina Cabral...
JF — De Pina Cabral sim, de Cutileiro e algum mais, bem... a
literatura publicada em inglês. É muito difícil convencer aos
estudantes norte-americanos — porque vivem no centro do império
— a aprender e a consultar coisas que não estejam em inglês.
Inclusivamente, em cursos mais específicos sobre Espanha, tenho
muitas dificuldades em convencê-los a ler em espanhol. Para as
minhas próprias publicações, é claro que já tenho lido coisas em
português.
AM - Está a ensinar agora em Chicago?
JF — Sim, na Universidade de Chicago.
AM — Que relações percebe existirem hoje em dia entre o trabalho dos antropólogos e as
reivindicações nacionalistas ou regionalistas. Não lhe parece que continuam a ser práticas
gémeas, em determinadas circunstâncias?
JF — O que se passa em Espanha pode funcionar como um bom
exemplo para atestar esses casos. A nova Constituição espanhola,
que deu lugar às comunidades autónomas, diz que para ter direito à
autonomia uma província ou região tem de defender-se quanto à
originalidade da sua cultura...
AM — Provar?
JF — Sim, provar a originalidade da sua cultura. Isso, é claro, suscita
imediatamente a presença dos antropólogos que são estudiosos da
cultura. Por isso nas Astúrias, pelo menos, e seguramente também
na Galiza, desde há muito tempo foram os antropólogos que
entraram aí na batalha do regionalismo para afirmar a cultura
local. Sim, mas há um problema... porque muitas vezes os
nacionalistas vão um pouco mais adiante da realidade para garantir
que a sua cultura é original. E eu... claro... assististe ontem à minha
conferência?
AM — Sim.
JF — Naquele mapa das Astúrias que mostrei, que foi editado, as
Astúrias estavam ali isoladas, sem relações com a Galiza ou León.
Então, claro, querem defender a cultura original asturiana sem
fazer referências à cultura leonesa ou galega... há um cortar de
distâncias excessivamente rápido...
AM — Julgo que havia alguma ironia nas suas referências às edições “celtistas” que podem
ser encontradas por lá…
JF — Sim, bom... as pessoas têm os seus direitos, evidentementente. Há essa
influência que está distanciada, mas, todavia, há algo que resta. Há... sim, há um
aspecto do assunto que pode ser ironizado. A herança céltica em Espanha é bastante
mais longínqua do que aqui na Escócia ou na Irlanda, mas também há aqui uma
invenção de heranças, como acontece por lá.
AM — Creio que procurou fazer uma aproximação equilibrada de todos esses “dilemas”
num artigo recente, nos Ensayos en Honor de Carmelo Líson?
JF — A aproximação equilibrada desses “dilemas”, se é que ela
existe, encontra-se no reconhecimento das dinâmicas da
categorização — em reconhecer a importância do jogo das
categorias na condição humana. Encontra-se no reconhecimento do
modo como até que ponto inventamos por intermédio de narrações
poderosas as nossas identidades: as nossas ideias e sentimentos
acerca de quem são os nossos e dos que não o são.
Memória
Um “informante” do Pico: cartas
de Francisco de Matos
Bettencourt a Ernesto Veiga de
Oliveira
João Leal

1 Em 1963, Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Pereira realizaram


uma recolha de terreno nos Açores que se prolongou por cerca de
três meses. Essa recolha inscrevia-se numa pesquisa mais vasta sobre
os instrumentos musicais populares portugueses, realizada no
âmbito do Centro de Estudos de Etnologia e subsidiada pela
Fundação Calouste Gulbenkian, de que resultaram nomeadamente o
livro Instrumentos Musicais Populares Portugueses (Fundação
Gulbenkian, 1966) e a exposição com o mesmo nome. No seu quadro,
Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Pereira, para além de uma
recolha ampla de objectos destinados ao Museu de Etnologia,
procederam ainda a investigações relativas a outros aspectos da
cultura popular açoriana, com particular incidência no domínio das
tecnologias tradicionais. Dessas investigações resultaram
designadamente os livros Moinhos de Vento. Açores e Porto Santo
(Instituto de Alta Cultura, 1965) e Tecnologia Tradicional Agrícola dos
Açores (INIC, 1987).
2 No quadro desta sua deslocação aos Açores — descrita em termos
particularmente entusiásticos na introdução aos Moinhos de Vento.
Açores e Porto Santo — Veiga de Oliveira e Benjamim Pereira estiveram
cerca de três semanas na ilha do Pico. Aí conheceram Francisco de
Matos Bettencourt — um camponês de cerca de 60 anos, tocador de
violino no Grupo Folclórico da Candelária -que foi um dos principais
informantes da equipa do Centro e a quem foi também solicitada a
construção de um violino para a colecção de instrumentos musicais
populares então constituída. Posteriormente ao regresso da equipa a
Lisboa, estabeleceu-se entre Francisco de Matos Bettencourt e Veiga
de Oliveira uma correspondência de que fazem parte as cartas que a
seguir se publicam. Escritas entre 1964 e 1966 por Francisco de Matos
Bettencourt para Ernesto Veiga de Oliveira, essas cartas — em
conjunto com outros documentos do espólio do falecido etnólogo —
encontram-se na posse de Benjamim Pereira, que gentilmente as
facultou para publicação neste número inaugural da Etnográfica.
3 Através dessas cartas, somos confrontados com uma faceta
frequentemente negligenciada do processo da pesquisa etnográfica:
o modo como este repousa sobre um conjunto de verbalizações e
conceptualizações que, antes de serem reduzidas a escrito, de forma
muitas vezes impessoal, foram previamente enunciadas por aquilo
que se convencionou chamar de “informantes” — pessoas concretas
com quem o investigador estabelece uma relação multifacetada no
decurso da sua pesquisa. Susceptíveis de várias e estimulantes
leituras, as cartas de Francisco de Matos Bettencourt para Ernesto
Veiga de Oliveira, mais do que “dados” em bruto, são interpretações
sobre a sua própria cultura, incidindo sobre vários aspectos da sua
freguesia e ilha natal — das Festas do Espírito Santo à caça à baleia.
4 Ilustrando um episódio da pesquisa etnográfica de Veiga de Oliveira
e da sua equipa no decurso dos anos 60, as cartas que agora se
publicam constituem pois, ao mesmo tempo, um testemunho raro
sobre o modo como um açoriano articulava a sua relação com a
cultura local naquela década.
5 Na transcrição das cartas fizeram-se apenas ligeiras modificações de
pontuação e de ortografia e uma ou outra supressão ou acrescento de
palavras, devidamente assinalados.

Carta n.º 1
Candelária, 25/1/964

6 Exm.º Sr. Ernesto


7 Desejo que ao receber esta carta se encontre de boa saúde, que ao
fazer esta fico menos mal.
8 Participo-lhe que cá recebi o seu cartão que muito lhe agradeço.
9 Senhor Ernesto... Em primeiro lugar quero-lhe pedir desculpa do
meu silêncio. O senhor há-de ter pensado — e com muita razão — eis
mais um homem abundante de falar. Na verdade tenho imitado bem
isso. Mas pode acreditar que é bem contra a minha vontade. Aqui há
um velho ditado em que se diz: a gente põe e Deus dispõe. Nós
pensamos uma coisa, e sai-nos outra. Quero-me referir ao violino...
10 O violino não está pronto mas falta pouco desde há muito. Mas a
doença é que veio transtornar tudo. Principiou pela família e agora
sou eu, embora eu não me sinta muito mal. Trata-se de uma doença
no ouvido, que está todo dia e toda a noite num chiado como uma
frigideira a frigir. Consultei um especialista, (que) me aconselhou a
(...) ir fazer uma operação aí a Lisboa. Diz o médico que eu posso
morrer daqui a uns 20 ou 30 anos, sem ser de esta doença, mas
também posso morrer de hoje (para) amanhã, de um ataque de
meningite, derivado ao ouvido.
11 Há pouco mais de 6 meses morreu (...) um cunhado meu aí em Lisboa
que tinha ido aí fazer uma operação. É isto que me faz temer. Uma
vez digo que vou, outra vez digo que não. Se eu for, serei eu próprio
o portador do violino, se eu não for já falei com o senhor João Faria
da Silveira, Piloto-Mor do Porto da Horta, que se prontificou. Quando
eu quiser, que tem pessoa da sua confiança, a bordo da Empresa
Insular de Navegação para o ir lá pôr pessoalmente. Por isto peço
desculpa desta grande demora. Mas (...) nunca me esqueci e (...)
cumprirei com muito gosto aquilo que prometi.
12 Também (...) lhe mando umas fotografias das festas do Divino
Espírito Santo aqui na Ilha do Pico. Não que o senhor me tenha
pedido, mas como o senhor pretendeu saber, quando aqui esteve,
alguns pormenores das festas do Divino Espírito Santo, que até veio
cá para tirar fotografias e gravar os foliões a uma coroação, eu é que
me lembrei em tirar umas, e lhas mandar, para melhor lhe poder
explicar, já que o senhor pretendia saber alguma coisa sobre as ditas
festas. E eu também tenho prazer em dizer alguma coisa, sobre as
nossas festas do Pico. Porque aí no Continente, só se fala de São
Miguel e da Terceira e do Distrito da Horta quase nada. Não me
quero referir ao senhor Ernesto. Mas sim a um artigo que vi num
jornal, em que dizia que na casa dos Açores aí em Lisboa, se tinha
festejado muito as festas do Espírito Santo, não tinha faltado nem a
sopa do Divino E. Santo nem o sarapatel e ainda diziam, o tradicional
sarapatel. Ora, pode ser tradicional de S. Miguel, da Terceira, mas
não do Distrito da Horta, (...) sobretudo da Ilha do Pico.
13 As festas do Divino Espírito Santo aqui no Pico — isto é sem vaidade
alguma — são as melhores. Assim dizem as pessoas que as vêem pela
primeira vez. São festas que toda a gente que cá vem, todos
desfrutam das regalias da festa. Seja branco, preto ou amarelo,
pobre, rico, português ou estrangeiro, todos nesse dia têm o mesmo
direito.
14 Assim cantam os foliões: não há festa mais bonita
do que a do Divino E. Santo
É do pobre é do rico
É do negro é do branco
15 Adiante o senhor verá a confirmação.
16 Festa ou Império do Divino Espírito Santo...
17 A festa é o seguinte:
18 É nomeada uma comissão — que devia (chamar-se) direcção mas é
costume é tratá-la pelo nome de comissão — composta de (vários)
membros, (cada um) representando cada lugarejo da freguesia que a
festa abrange. Ao todo (são) vinte homens.
19 Estes homens percorrem a freguesia — toda a área que a festa
abrange -na segunda-feira de Páscoa — este ano dia 19 de Abril —
para saber quem é que quer ser irmão da festa, ou seja, quem é que
dar rosquilhas. Oito dias antes da festa o mordomo leva a coroa para
casa (...), onde é cantado ou rezado o terço, onde se junta a família e
amigos em casa do dito mordomo.
20 Na minha freguesia, e também em algumas outras, tratam por
mordomo o irmão que leva a coroa para casa, oito dias antes. Este
mordomo é que é o encarregado de dar o jantar aos foliões. (...) Outra
referência: também é costume, em algumas freguesias, em vez de
dizerem mordomo, dizerem imperador. (...) Há as duas formas. Por
exemplo, dizem assim, “vamos à festa à Candelária”, ou “venho do
Império da Candelária”.
21 É (um) costume das festas na Ilha do Pico os bolos, ou tejolos, ou
rosquilhas. Os bolos — ou tejolos, que é o mesmo —, são compostos de
farinha de trigo, água sem levedura. As rosquilhas são compostas de
farinha de trigo, ovos e manteiga, e (...) levedura, que as tornam fofas
e macias. As festas de bolos (fazem-se) no Concelho de São Roque e as
rosquilhas no Concelho da Madalena e no Concelho das Lajes.
22 Na minha freguesia — Candelária — é o seguinte. Dia da festa,
Domingo do D. Espírito Santo: de manhã parte da casa do dito
mordomo (...) a procissão para a Igreja, e (...) depois segue-se missa
cantada, pouco mais ou menos como naquela coroação que o senhor
aqui viu, com a diferença que é em ponto grande. Sai da Igreja, volta
a casa do Mordomo, jantam e voltam de novo, percorrendo a
freguesia a juntar os açafates (...), juntando os irmãos da festa e
assim se vai formando a procissão. Chegada ao Adro da Igreja
principiam por dar um giro (...) e vão ao encontro do fim da
procissão (...) e assim se forma uma roda, que dá duas voltas (...) ao
toque da filarmónica. (...) Aí termina a procissão o depois o Padre
benze as rosquilhas (que) ali ficam expostas ao público. Durante o
resto da tarde a filarmónica toca no arraial e cada qual procura
divertimento a seu gosto e os rapazes e as raparigas estreiam os seu
fatos (e) os seus vestidos novos. Aí no Continente (...) estrear o fato
novo e o vestido novo, segundo dizem, é pela Páscoa. Nós aqui, é pelo
Espírito Santo.
23 A seguir (...) principiam a distribuir as rosquilhas, uma a cada pessoa
que veio à festa ou que ali passou. Seja da terra ou de fora da terra,
português ou estrangeiro, preto ou branco ou amarelo, pobre ou
rico, todos eles é igual, todos eles têm o direito a uma rosquilha, sem
excepção. E assim diz (...)a cantiga dos foliões: “É do pobre é do rico,
É do negro é do branco.”
24 Outra referência...
25 A vara do D. Espírito Santo, que o irmão (...) tem na mão, uns dizem
que representa a vara de São José. Outros dizem que é artigo de
ornamento, (de) luxo.
26 Antigamente, o senhorio antigo era costume usar um bordão de
pessegueiro (que) tinha incrustados dois pedaços de metal amarelo
(...). E que os usava nos dias de festa. E como se trata de um artigo de
luxo e que só o senhorio é que (...) usava, por isso o Divino Espírito
Santo, no seu dia, oferece a cada irmão uma vara, para que até o
irmão se sinta ufano, ao lado do senhorio, que o Divino Espírito
Santo os considera a todos iguais principalmente no seu dia. Será
verdade?
27 Cá só para nós, se é certo, está mais que provado que o Divino
Espírito Santo tinha ideias democráticas, não lhe parece?
28 Assim terminam as festas.
29 As festas mais bonitas na Ilha do Pico (são): Domingo do D. E. Santo,
na Candelária; na segunda-feira a seguir, lugar do Monte, freguesia
da Candelária e Ribeiras de Santa Cruz, Concelho das Lajes; na terça-
feira, Prainha São Caetano, Concelho da Madalena, e Ribeiras de
Santa Cruz; (no) Domingo da Trindade, Vila da Madalena e Silveira,
Concelho das Lajes.
30 Também em S. Jorge as festas do domingo da Trindade, são muito
faladas. Mas como nunca lá estive, não lhe posso explicar as ditas
festas. Mas (o) que lhe torno (a) afirmar (é) que as festas mais bonitas
do D. Espírito Santo são as da Ilha do Pico, e a seguir as de S. Jorge. E
assim o senhor vê que as nossas festas não têm nada (a ver) nem com
a tradicional sopa do D. E. Santo nem o tradicional sarapatel. Aqui
cada qual come o que quer, conforme pode.
31 Aquilo é costume é em São Miguel.
32 Por agora nada mais. Só lhe peço desculpa desta cegarrega que aqui
lhe escrevo. Mas como o senhor pretendia saber algumas coisas das
ditas festas quando aqui esteve é que me lembrei em lhe mandar
umas fotografias, para o senhor Ernesto poder avaliar pouco mais ou
menos. Mais uma vez peço desculpa de tudo e por tudo. Seu dedicado
amigo
33 Francisco de Matos Bettencourt

Carta n.º 2
Candelária, 18/3/965

34 Exm.º Senhor Ernesto


35 Desejo que ao receber esta carta, se encontre de boa saúde, (e)
igualmente o senhor Benjamim.
36 Eu sempre bem, embora, o ouvido esteja sempre chi i i i, mas já me
habituei a isto. Senhor Ernesto, cá recebi duas cartas suas, uma
datada do dia 6, e uma outra datada do dia 10 de Fevereiro último.
37 Eu ia a deitar a resposta no correio da primeira, quando recebi a
segunda carta sua, já não deitei a primeira e respondo às duas numa
só.
38 Muito agradeço ao Senhor Ernesto o grande incómodo que teve para
comigo em me satisfazer uma grande vontade que eu desde há muito
trazia comigo. Perguntei a muito carpinteiro, e marceneiros, a
alguns que tinham estudo aí no continente e (...) na América, e todos
eles diziam o mesmo: para mim, é desconhecida esta madeira. Mas
eu insisti sempre, porque (...) tinha um pressentimento que me dizia
que (..) um dia havia de (...) saber aquilo que tanto pretendia saber.
Mas também quase posso garantir que no Distrito da Horta, talvez
sou eu o único que sei (que) a madeira própria para a construção do
violino se chama ácer.
39 Os dados que o senhor me dá sobre a construção do violino, e muito
mais que eu desejava saber, serão as (...)orientações que a mim me
servirão de guia no futuro.
40 Não sei como lhe agradecer. Só lhe posso garantir que me sinto
deveras satisfeito.
41 Portanto, mais uma vez muito lhe agradeço a sua boa vontade, que
para mim nunca mais será esquecida.
42 Com respeito às festas do D. Espírito Santo, sobre aquilo que o senhor
pergunta nas suas cartas, com muito gosto lhe respondo. E não é
incómodo como o senhor me diz, mas sim um prazer. Só me sinto
deveras satisfeito em lhe responder sobre o assunto.
43 (...)
44 Quem é mordomo? É por promessa? É nomeado?
45 Assim me pergunta o Senhor Ernesto.
46 O mordomo pode ser qualquer irmão da festa. O mordomo é o irmão
que levou a coroa para casa, 8 dias antes da festa (e) que, para ser
mordomo, apresentou o seu pedido à comissão da referida festa (...)
com antecedência, porque há sempre muitos que querem. É sempre
por promessa, e não por nomeação.
47 O mordomo é aquele que no dia da festa dá de comer ao folião, que o
senhor já conhece. É de casa do mordomo que partem as procissões
no dia da festa. A de manhã para a igreja, que é igual à que o senhor
viu quando aqui esteve. (...). A segunda procissão, à tarde, (...) é a das
rosquilhas, que vem ter ao império, ao lugar da festa.
48 2.a pergunta: onde está a coroa durante o ano? Está no império,
excepto os últimos 8 dias, que é os que está em casa do mordomo.
49 A coroa passa o ano na casa do Espírito Santo, ou Império, ou
cadafalso, são três nomes muito usuais. Quem toma conta da coroa é a
comissão, que tem (o) cuidado de então manter sempre uma candeia
acesa, durante todo o dia e toda a noite. A candeia é alimentada
sempre, sempre, de azeite de oliveira.
50 3.a pergunta: terminadas as festas como é que levam (a coroa) de casa
do mordomo para o lugar onde fica durante o ano?
51 A coroa veio para o império ou cadafalso na procissão da tarde, a das
rosquilhas, e lá fica durante o ano, excepto o últimos 8 dias, como em
cima já (...) referi.
52 Agora julgo eu que o senhor talvez queira também saber como é que
levam a coroa para casa de mordomo, 8 dias antes. Esta parte é então
um pouco esquisita.
53 Levam-na num açafate, coberta com uma toalha ou então nas mãos,
(mas) também coberta.
54 Isto é tudo o que se passa agora, mas antigamente era muito
diferente, e a causa dessa diferença ou dessa alteração são ou têm
sido os Padres que desde há muito (...) vêm perseguindo estas festas
tradicionais em seu proveito, modificando tudo a seu gosto.
55 Eu tenho para mim, segundo as coisas que os Padres estão a exigir
sobre estas festas, que não leva 20 ou 30 anos para elas deixarem de
existir. Às vezes ponho-me a pensar, o Estado gasta grandes somas
em dinheiro para manter usos e costumes. E os Padres por sua
vontade procuram a todo o transe modificar aquilo que vem de há
séculos. Desculpe o Senhor Ernesto (...) esta censura que eu aqui faço
aos Padres. O senhor há-de julgar que eu não sou católico, mas sou.
Sou e serei sempre, mas não deixo de dizer que os Padres vão ser os
causadores de em pouco tempo terminarem as festas do D. E. Santo
nos Açores. As festas do D. Espírito Santo na Terceira, segundo me
contaram, já são todas de origem profana, quero dizer (que) já não
vão à igreja, o povo não aceita a intervenção dos Padres nas referidas
festas. E porquê? Porque os padres exigem que as festas do D. E.
Santo lhes dêem 20 por cento sobre todos os lucros contando mesmo
os lucros cativos. Agora o senhor diga-me uma coisa, ou melhor, veja
se a gente não temos razão. O irmão dá o açafate de rosquilhas, que
lhe custou uns 200$00, dá-os à festa por esmola. A festa por sua vez
dá as rosquilhas a todos por esmola, e o Padres querem que a festa dê
os 20 por cento. Se assim fosse, todo o irmão tinha que dar 40$00 (...)
por ter prometido num dia de aflição dar um açafate de rosquilhas.
Quando é que (...) constou (...) pagar um imposto por ter dado uma
esmola? Temos ou não temos razão?
56 Nós aqui é rosquilhas, na Terceira é carne e pão. E os Padres querem
que eles lhes dêem 20 por cento sobre o valor dos bois que ali se
abatem para serviço das referidas festas. Com tudo isto vai o povo
esmorecendo, perdendo o entusiasmo, porque assim não está dentro
da sua crença, e como os Padres querem não podemos fazer a festa,
porque ainda assim como vinha era com grande dificuldade.
57 (...) Aqui na Candelária, também o nosso Padre quer que a festa dê
4000$00, que é os (...) lucros da festa do ano passado. Em caso
contrário (...) vai pedir ao senhor Bispo da Terceira para também
profanar a nossa festa. Alguns dizem — credo, Deus nos livre se tal
coisa — que o senhor Padre faz, mas outros dizem, que haja o que
houver (...) os 4000$00 o Padre nunca os vê, que eu disso tenho a
certeza.
58 Eu conheço o génio do Padre, mas também conheço o génio deste
povo. O que vai resultar disto tudo, se o Padre mantiver a sua
opinião, (é que) a festa deixa de ir à igreja, e assim é mais uma festa
profana que irá (...) pouco a pouco perdendo o seu brilho até que se
extingue. Com tudo isto posso garantir ao Senhor Ernesto. (...) Os
Padres poderão acabar com as festas do D. E. Santo, mas o que nunca
conseguirão é acabar com a crença do povo, (disso) tenho eu a
certeza.
59 Eu vou-lhe dar uns dados sobre as referidas festas, da antiguidade,
que me contou um velhote cá da freguesia, homem velho, 87 anos,
sério, e que, antigamente, foi muitas vezes mordomo, e também foi
Presidente (...) da festa. (..) Mordomo e (...) Presidente não é o
mesmo.
60 Antigamente, assim me diz o velhote, a coroa passava o ano (...) em
casa do mordomo, que para lá ia sempre em procissão, que de lá
vinha no ano seguinte para o império. Quando terminava a festa
formava-se uma procissão para casa do novo mordomo para o ano
seguinte. E assim sucessivamente.
61 Os Padres proibiram de a coroa passar o ano em casa do mordomo,
porque diziam eles que a casa do mordomo era um lugar profano,
que a coroa o seu lugar era no império, como é hoje. Mas então em
vez de ir em procissão para casa do mordomo, no dia da festa ao
findar, vai então, coberta com uma toalha num açafate, ou nas mãos,
8 dias antes. Assim é mais bonito? O senhor não acha... Sempre os
Padres têm cada uma...
62 Diz o velhote que, antigamente, (...) quando a coroa estava em casa
do mordomo, todos os dias do ano se rezava em família o terço,
excepto nos últimos 8 dias. Nesses dias então (os terços) eram
cantados e (...) juntava-se sempre muito povo, principalmente
vizinhos, amigos e parentes. A casa ficava como um lugar público,
não se negava a ninguém a entrada, ali se jogava jogos e bailes
regionais, entretiam-se ali o serão, que era um entretimento limpo
(...). Mas, por tal, os Padres classificaram a casa do Mordomo em casa
profana. Hoje, os últimos 8 dias que a coroa está em casa do
mordomo, só se reza ou se canta o terço, e nada mais, mas ainda se
junta muita gente.
63 Isto tudo só me refiro cá à minha freguesia, mas (...) nas outras
poucas alterações há. Também antigamente, quem trazia a coroa e o
estandarte, eram meninas noivas, dos seus 16, 17, 18, 20, mas quase
sempre solteiras. A coroa traziam-na 3 meninas, o estandarte o
mesmo. (Essas meninas) representavam a Rainha da festa e as suas
duas aias. Nalgumas freguesias, a Rainha trazia mesmo a sua coroa
na cabeça, mas na minha freguesia a menina que levava a coroa
nunca usou coroa (na cabeça). Mas isto tudo acabou, porque os padres
o proibiram. E assim, de pouco em pouco, vão fazendo o que querem,
até que acabem com tudo. Esquecia-me de dizer que hoje quem leva
a coroa na procissão são homens. Os Padres aqui desprezam as
mulheres nas procissões como os indianos desprezam as mulheres na
Índia.
64 Por agora nada mais lhe posso informar a não ser que o senhor me
pergunte mais, que para isso estarei sempre ao seu dispor e com
muito gosto.
65 Também me esquecia de lhe dizer que as Rainhas não é por promessa
nem nomeadas mas sim convidadas pelo mordomo. (Eram) quase
sempre (suas) filhas. Se as não tinha, então convidava pessoas das
suas amizades.
66 Peço desculpa da grande demora em responder ao Senhor Ernesto.
Mas a razão é esta. O velhote que me deu as informações antigas tem
estado no Faial, passando lá uns dias em casa de amigos, e eu por
querer dar uma coisa mais concreta, em resposta à sua carta (...)
esperei por ele. Por tal, julgo que o senhor me desculpará.
67 Senhor Ernesto... Desejo, que o senhor me desculpe por esta
cegarrega que aqui vai, mas o senhor já sabe que eu não sei escrever
certo. Eu só tive o grande prazer de frequentar a escola um ano, não
fui mais, porque já não tinha idade escolar, o que eu sei bem é
mondar e cavar.
68 Por agora nada mais, só muitas recomendações ao senhor Benjamim
e peço que aceite os meus agradecimentos por todas as suas
informações sobre a construção do violino. Vou mandar copiar a sua
carta em papel grosso, para nunca mais se apagar.
69 E também lhe envio um grande abraço de este seu dedicado amigo,
que cá fica sempre pronto para o servir da melhor vontade, em tudo
que estiver ao meu alcance.
70 Francisco de Matos Bettencourt

Carta n.º 3
Candelária, 28 de Março de 1966

71 Senhor Ernesto Veiga de Oliveira


72 Escrevo-lhe esta carta em resposta à sua com a data 22 (de) Janeiro
último, onde tive o conhecimento — que me causa grande pesar —
em saber que tem estado doente, e que ainda não (se) encontrava
completamente restabelecido. Deus há-de permitir que ao receber
(...) esta (...) se encontre já gozando uma óptima saúde. Se assim for
será para mim grande prazer.
73 Quanto ao meu ouvido está no mesmo ou, para melhor dizer, sempre
a piorar, sempre a chiar dia e noite. Do ouvido direito já pouco oiço
(...) e percebo que o esquerdo também já tem a mesma doença, quero
dizer, está com os mesmos sintomas que principiei a observar no
(direito). Pensei em ir aí a Lisboa para me operar como o especialista
aconselhava. Embora eu não pudesse ir à minha custa, (...) tinha
facilidade de lá ir por intermédio da Assistência. Não é por não ter
fundos que lá não vou. Não tenho, mas a Assistência tem, como já
disse. Arrefeci, como nós aqui dizemos, foi porque fui-me aconselhar
com um bom médico que nós aqui temos, que se pode dizer que tanto
em médico como em homem foi um achado que a Ilha do Pico
encontrou. Foi ele que me mandou falar “ou consultar” o
especialista. Por isso, quis primeiro saber a opinião dele. A resposta
dele foi esta: olha no teu lugar não ia, essas operações fazem-se hoje,
mas são umas operações assim assim, e franziu o nariz, que um
cunhado seu tinha ido (...) também fazer uma operação igual, e que
tinha voltado sem a fazer, mas que eu fizesse como entendesse. Eu
sei que ele me falou com toda a sinceridade, disso estou bem
convencido porque já nos conhecemos de há muito. (...) O senhor já
vê que não é bom nunca desprezar um conselho de uma pessoa
bastante competente e, mais ainda, amiga. Mas assim procedendo,
tenho quase a certeza que (passarei) o resto da minha vida surdo, (o)
que na verdade será muito triste. Mas seria muito mais triste para
mim, se fosse aí a Lisboa a operar, e me sucedesse mal e, nos últimos
momentos de lucidez, olhasse em volta não visse ninguém da minha
família, os meus filhos. Prefiro morrer surdo, mas olhar sempre para
eles, e tenho a certeza que o senhor Ernesto também concorda
comigo, não é verdade?
74 Também diz na sua carta que já recebeu o violino, e que julga em
bom estado, (o) que me dá esperanças de poder ser admitido no lugar
a que tinha se destinado. Se assim for, quem fica agradecido sou eu e
não, como o senhor na sua carta me agradece, o senhor Ernesto e o
senhor Benjamim. (O senhor Ernesto e o senhor Benjamim) andaram aqui
(e) ali por todo o País à procura de objectos para construir (e) criar
um Museu para Portugal. Para quem é esse Museu? Não é para mim
também? Embora eu (seja) açoriano, só o que nos separa é o mar. Os
meus, ou melhor, os nossos ideais açorianos são iguais (aos ideais de)
todos os bons Portugueses que se orgulham de o ser.
75 Portanto, torno a dizer, agradecido fico eu, porque faz mais quem
constrói a obra do que aquele que dá uma simples peça para essa
grande obra que nos havemos orgulhar todos de possuir. E mais lhe
digo: agradeço-lhe em nome da Ilha do Pico, se o senhor conseguir
(...) que esse violino entre nesse Museu. Não por (o) julgar uma obra-
prima, não senhor. Eu bem sei que ele é de pouco valor material.
Porque bem se vê que posto ao pé de (...) instrumentos como (os que)
aqui aparecem, que daí vêm, feitos por profissionais, o meu não
passa de uma simples cartola. Mas (...) esse objecto (...) encerra uma
grande vontade, de uma pessoa que tem muito prazer em ajudar
todos aqueles que se esforçam por fazer de tudo isto um Portugal
novo. Senhor Ernesto, não é preciso nomear o meu nome como
construtor do violino, porque o meu nome pouco ou nada vale. Ao
tanto gostava, se pudesse ser que o violino entrasse para o Museu,
(que) fosse em nome da Ilha do Pico. Se assim for será para mim
grande satisfação.
76 Aqui também lhe mando as referidas fotografias já faladas sobre a
faina da baleia aqui no Pico.
77 O senhor diz na sua carta que a faina da baleia é desconhecida aí no
continente. O senhor Ernesto desculpe, mas eu não concordo consigo
nesse sentido. Eu aqui sei que os senhores têm aí um Jardim geológico,
que na parte aquática há uma baleia, portanto eu tenho razão não
lhe parece? Nós aqui temos visto muita baleia, (...) mas os senhores aí
conhecem melhor a baleia com todos os seu detalhes de vida, do que
nós aqui.
78 Eu mando-lhe estas fotografias, não por julgar coisa desconhecida aí,
o meu intento é outro, que lhe conto.
79 Eu já vi alguns filmes e comentários portugueses com passagens sobre
os Açores onde entra a pesca à baleia. Parece que o operador que
filmou tais passagens (...) tinha muita pressa e muita má vontade de
mostrar a realidade.
80 Trancam a baleia já morta e reviram o bote que pesca a baleia com o
mar tão manso como a água numa bacia. Fazem aquilo tão rápido —
desde a preparação da pesca até ao esquartejamento, à extracção do
óleo —, que nós aqui, acostumados com tais coisas, quase nos passa
despercebido.
81 Certas ocasiões de tais pescas, se pudessem ser filmadas, se
pudessem se reproduzir sempre assim, seria tão entusiasmante para
ver como um boa partida de futebol entre as equipas de primeira
categoria.
82 Num certo dia do mês de Agosto do ano findo, eu e muita gente
pudemos presenciar uma dessas passagens interessantes, que
embora não seja vulgar (...) se dá muitas vezes assim. Foi mesmo em
frente à minha freguesia, a umas duas milhas de distância: a captura
de uma baleia nem grande nem pequena, que se podia mover bem,
por umas vinte ou mais embarcações de três ou quatro companhas
rivais. Ora uns pretendem caçá-la, outros, por não lhes ser possível
(...), (começam a) fazer barulho, tirando o escape aos motores, para
que o adversário não seja o vitorioso — um truque dos pescadores
com mais prática para enganar os mais ingénuos — e a baleia fica
espantada, já não submerge o tempo normal como no começo da
perseguição (e) só (...) é capturada ao fim de umas duas horas e meia
ou três horas, isto sem haver descanso de parte a parte, extenuados,
tanto o animal como os pescadores. Tudo isto visto com muito bom
tempo, mar muito manso. Se houvesse oportunidade de filmar uma
passagem assim então é que devia ser bonito. É certo que isto assim
perto de terra, não pode ser sempre. Mas (...) embora no mar alto, se
quiserem, podem reproduzir isto pouco mais ou menos, e então é
que seria bonito de ver no filme ou na televisão. É muito parecido
com uma tourada de praça, ao tanto que o touro é que ataca ao passo
que a baleia foge e poucas vezes se defende. Bastava o operador
esperar com paciência pelas boas ocasiões.
83 Alguns detalhes que mando junto (com) as fotografias é só para o
senhor Ernesto explicar aos outros que as virem que não estejam
bem a par de tais costumes. Há baleias muito maiores do que esta.
Baleias de 80, 100, 120, 200, 240 barris. De 100 barris para cima já
rara vez aparece, o mais vulgar é este tipo assim. O óleo é de toda a
companhia, marítimos e donos. Os dentes, que (são de) marfim, e o
nervo (são) só da tripulação do bote que apanha a baleia. (Com) os
dentes fazem aqui obras interessantes que o senhor já deve
conhecer. O nervo é posto ao sol a secar, ou ao fumo, para ser usado
em amarrações sólidas. Já vi usá-lo em embarcações, em moinhos,
(para) prender a canga dos bois ao carro, o badalo dos sinos das
igrejas, etc.
84 Eu não pretendo que o Senhor Ernesto ande aí a mostrar estas
fotografias, não senhor. Eu quero é que quando o senhor as mostrar
a alguém que vá a sua casa, só lhe diga isto: isto é da ilha do Pico. E
nada mais lhe peço, e por isso ficar-lhe-ei muito agradecido. E sabe o
senhor porquê? É que a Ilha do Pico é terra do à-vontade, é terra de
ninguém (...). Tanto os de cá como os de fora pouco ou nada dizem
desta ilha, excepto o Senhor Ernesto e o Senhor Benjamim. Os
senhores vieram aos Açores sobre os assuntos dos moinhos de vento,
e eu vejo no seu livro que tanto se fala nos de São Miguel, como (nos)
de São Jorge, Graciosa, Faial, Pico, ou Terceira. Os senhores
descreveram tanto uns como outros, escreveram aquilo que é
mesmo. Portanto nós na Ilha do Pico queríamos que os senhores
viessem cá mais vezes e escrevessem coisas assim. Nós temos muitas
coisas para serem mencionadas, serem vistas e escritas, mas por
pessoas (que façam) como os senhores fizeram com o moinhos de
ventos dos Açores.
85 E sabe o Senhor Ernesto porquê? É que a Ilha do Pico, é muito pouco
conhecida e muito menos escrita.
86 Se eu fosse pessoa que tivesse dinheiro, que tivesse um boa casa para
poder receber visitas de uma certa categoria, já o Senhor Ernesto
mais o Senhor Benjamim podiam contar com o convite, para cá
virem passar uma temporada 3 ou 4 meses, para escreverem o nosso
costume e as nossas formas de viver, recolher o nosso folclore que se
está a perder, e — sendo o mais bonito dos Açores — as nossas festas,
principalmente a do Divino Espírito Santo, as festas entre família das
matanças dos porcos, verem as nossas pequenas lagoas que temos no
interior da Ilha, as belas vistas que se vêem dos miradouros da Ilha.
Tudo isto escrito, fotografado, filmado para depois mostrar aí no
Continente, para que todas os continentais conheçam bem a Ilha do
Pico. Porque eu lhe conto.
87 Quando (...) o Rancho Folclórico da Casa do Povo da Candelária (foi) a
umas festas ao Norte do país, foram também a Figueira da Foz bailar,
e claro, como o senhor sabe, todo o açoriano é curioso, porque nunca
viu nada, andaram por ali, e por acolá, chegaram a uma praça que
havia uns bancos (para) descansar e desse lugar se desfrutava uma
bela vista, o mar e não sei que mais. Quando se chega para eles,
pouco mais ou menos uma dúzia de rapazes dos seus 15, 16, 17, 18,
19, 20 anos, mas com um certo receio. E um de entre eles mais afoito
dirige-se aos nossos da seguinte forma: bom dia. Os nossos todos
levantam-se e dizem bom dia. Nova pergunta: então vêm bailar? Sim
senhor, respondem os nossos. Tornam a perguntar: na sua terra
todos falam como os senhores? Sim, respondem os nossos. São toda
da mesma cor como os senhores? Sim, dizem os nossos. O vosso
vestuário é sempre igual a esse? Quando trabalhamos, mas também
temos dentro das nossas malas fatos, camisa, chapéus, sapatos como
os dos senhores, que o usamos aos domingos, dias de festas, ou
viagens. Exclamação dos continentais: pobre gente. E nova pergunta:
(...) e qual é a vossa alimentação? Resposta nossa: é peixe, carne
melhor e mais barata que os senhor aqui — (...) compra-se a porção
que se quer a 1800 ao quilo —, leite puro das vacas com um gosto
muito diferente do que temos bebido, temos conservas como as que
aqui se vendem, legumes de toda a espécie, vinho e fruta mesmo da
nossa ilha, e parte da carne que se vende aqui em Lisboa vem dos
Açores. Os rapazes continentais olham-se, dão aos ombros, dão bom
dia e vãose embora. Mas disse-me o meu amigo que me contou isto,
que eles se foram com cara de quem não acreditou.
88 Ora isto não está certo, na época que vamos atravessando, que haja
alguém ainda que desconheça o que é os Açores (...), que
desconheçam se é gente branca ou preta, se vestimos mal, se temos
fome ou temos abundância disto ou daquilo. Para estrangeiros ainda
vá lá... mas para Portugueses, custa a acreditar; mas
desgraçadamente é verdade...
89 Isto não é censura que faço a alguém. Deus me livre. Isto é um
desafogo de amigo para amigo de uma pena que pressinto cá dentro.
90 Vejo que é da Ilha do Pico que menos se fala na rádio, nos livros —
excepto o seu livro —, nos jornais. Até na propaganda turística sobre
os Açores é (a) que menos aparece. (...) Se o senhor Ernesto for a
bordo do vapor Carvalho Araújo e reparar, (nas) fotografias turísticas
sobre os Açores e Madeira (...) a Ilha do Pico é (a) que menos se vê, ao
passo (que) é a que de mais longe se avista, por ser a mais alta. Somos
a segunda em tamanho (e) a terceira em população, a primeira em
conservas de peixe. Temos a primeira frota atuneira dos Açores, uma
das melhores do nosso país no género, assim dizem os jornais. Somos
o principal centro da pesca à baleia, temos a melhor fruta dos
Açores, e os melhores vinhos, temos os melhores calafates do
Arquipélago. A criação de gado vacum está-se a desenvolver de tal
forma que não leva muitos anos seremos também a maior nesse
sentido. Já hoje está em segundo ou terceiro lugar, mas afirmo-lhe
que neste campo podemos ir muito mais além: 5, 6, 7 vezes mais por
cada ano, se desbrava nos campos, se usam melhores forragens, e
mais bem adubadas.
91 É por isto que tenho pena de não ser pessoa rica para convidar o
senhor, mais o Senhor Benjamim. Pagava-lhe todas as despesas:
transportes, comida, alojamento, papel, tinta, material fotográfico,
de gravação e filmar para depois mostrar aí e ao mundo o que é a
Ilha do Pico, acabar com as ignorâncias. Mas paciência, sou pobre,
nem casa minha tenho, vivo com os meus pais, por tanto não posso
satisfazer a minha ambição, não posso fazer mais pela minha Ilha do
que lhe mandar estas fotografias e esse violino de pouco valor
material. Ai se eu pudesse, havíamos de ver qual das ilhas dos Açores
tinha mais que ver.
92 Eu, o meu nome, pouco ou nada vale, não é preciso eu ser nomeado,
mas o nome da Ilha do Pico sim, ficar-lhe-ei eternamente agradecido.
93 Também junto a estas fotografias vai uma dos moinhos de vento que
é para se o senhor quiser rectificar o nome ou a fotografia que não
está certa. Este é que é o verdadeiro moinho do Monte, fig. 44. O que
está no seu livro pertence à freguesia da Criação Velha e não ao
Monte.
94 Peço-lhe mil desculpas por esta cegarrega, que muito lhe deve custar
a ler, mas como sabe, eu não sei (escrever) e, como já lhe disse, é um
desafogo de amigo para amigo, não o quero maçar mais.
95 Desejo saber, mas há-de ser quando o senhor puder, se estas 11
fotografias chegaram todas aí, e (também) estas 10 páginas, e
sobretudo desejo saber se o seu estado de saúde (...) já é bom. Deus
permita que o seja.
96 Recomendações ao Senhor Benjamim e receba um abraço deste
amigo, que cá fica pensando em si e nunca mais o esquecerá.
97 Francisco de Matos Bettencourt
Recensões
Ian Hacking, Rewriting the Soul:
Multiple Personality and the Sciences
of Memory | Allan Young, The
Harmony of Illusions: Inventing Post-
Traumatic Stress Disorder
Luís Quintais

REFERÊNCIA
Ian Hacking, Rewriting the Soul: Multiple Personality and the Sciences of
Memory , Princeton, Princeton University Press, 1995.
Allan Young , The Harmony of Illusions: Inventing Post-Traumatic Stress
Disorder , Princeton, Princeton University Press, 1995.
1 Uma das ideias clássicas do pensamento ocidental prende-se com o
modo como nos singularizamos como sujeitos que possuem uma
continuidade no tempo, ou que são capazes de potenciar
criativamente essa continuidade num processo integrador em que,
narrativamente, atribuímos sentido e coerência a um percurso
biográfico. A ideia de memória é aqui decisiva pela sua dimensão
insofismavelmente redentora. Em Santo Agostinho, por exemplo, a
memória representa o único modo de escapar à fragmentação da
experiência, resultante da existência no tempo. A memória é um
“acto” de constituição reflexiva da totalidade e, como advoga
Genevieve Lloyd (1993: 20), um “acto narrativo” por excelência a
partir do qual se acede à compreensão da consciência, contrariando-
se deste modo a destrutiva (e dolorosa) passagem do tempo.
2 Mas é a partir de meados de oitocentos em diante que uma outra
conceptualização de memória ganha uma dimensão até aí inaudita,
que passa a coexistir, nas abordagens terapêuticas que entretanto se
desenham, com a noção clássica atrás identificada. Com Charcot,
Janet, Freud e Rivers, entre outros, é a impossibilidade em
transformarmos o que de aparentemente indelével subjaz à nossa
experiência do mundo que está na base da invenção de uma memória
traumática e das categorias nosológicas que lhe associamos
contemporaneamente. Refiro-me especificamente à “desordem de
personalidade múltipla” (multiple personality disorder), sobre a qual se
debruça Ian Hacking em Rewriting the Soul, e à “desordem de stress
pós-traumático” (post-traumatic stress disorder) sobre a qual temos o
trabalho de reflexão antropológica desenvolvido por Allan Young em
The Harmony of Illusions 1 .
3 O que Hacking e Young nos oferecem transporta-nos para o facto de
só podermos pensar a memória traumática e as modalidades
nosológicas que ela recobre através de uma perspectiva que
equacione as relações mutuamente constitutivas entre memória e
consciência individual nas etnopsicologias ocidentais, e o modo
como uma determinada actividade científica e terapêutica moderna
se instituiu e institui, construiu e constrói os seus objectos,
incorporou e incorpora os debates epistemológicos do seu tempo.
Refiro-me à psiquiatria e a todas as formas contemporâneas de
“medicalização do passado”, a usar a sugestiva expressão de Young
(p. 39). Finalmente, importa pensar o modo como uma determinada
categoria nosológica se projecta sobre um fundo fenomenológico,
isto porque os perigos de uma eventual trivialização do sofrimento
tornam-se evidentes, quando nos situa-mos numa leitura que quer
fazer destacar os domínios da representação a expensas da
experiência pessoal (em grande parte intransmissível e irredutível
aos suportes verbais e iconográficos).
4 Um outro aspecto que se me afigura decisivo nas discussões de
Hacking e Young sobre a memória traumática e as nosologias
implicadas tem a ver com o facto de estas circunscreverem um
espaço adequado à discussão sobre a relevância dos nossos conceitos
de “realidade” e “verdade”. Gostaria de destacar comparativamente
as respostas de ambos os autores a este aspecto.
5 Em primeiro lugar, Young e Hacking lançam-nos ao encontro de todo
um conjunto de proposições acerca das etnoepistemologias
ocidentais sobre a doença e o estatuto que aí ocupam os conceitos de
“realidade” e “verdade”. Para ambos os autores o “real” afigura-se
como aquilo que é independente quer dos “tecnofenómenos e estilos
de pensamento do investigador” (Young, p. 10) ou, e mais
especificamente, daquilo que “não é usualmente iatrogénico”
(Hacking p. 12), ou seja, e por exemplo, do que se furta a qualquer
hipótese de indução por hipnose (Hacking, p. 270). Porém Hacking,
que sobrepõe o conceito de realidade ao conceito de verdade —
precisamos de saber o que é uma verdadeira ou real “entidade
psiquiátrica” (p. 12, itálicos meus) —, não deixa, em todo o caso, de
nos sugerir a hipótese de um céptico: “O mais fidedigno vaticinador
da ocorrência da personalidade múltipla é um clínico que
diagnostica e trata múltiplos” (p. 270, nota 14), ou “pode ser que
muitos dos pedaços floreados do comportamento múltiplo sejam
iatrogénicos” (p. 12).
6 Em segundo lugar, Young aposta numa distinção entre realidade e
verdade que Hacking não subscreve. A verdade para Young sugere
uma pretensão à atemporalidade na qual se abastecem os
“tecnofenómenos da ciência psiquiátrica”, pensados como “neutrais
e objectivos” (Young, p. 10), não podendo “as questões sobre a
verdade ser divorciadas das condições sociais, cognitivas e
tecnológicas através das quais os investigadores e clínicos vêm a
conhecer os seus factos e o sentido da facticidade” (p. 10). Para
Young (p. 5), a desordem pós-traumática de stress não é atemporal
nem possui uma unidade intrínseca. Ela é um produto histórico.
7 Em terceiro lugar, assinale-se que para ambos os autores é equívoco
ou irrelevante desenhar uma clara descontinuidade ou oposição
entre uma desordem psiquiátrica e as circunstâncias tecnológicas e
sociais da sua invenção, sendo que “[o] facto de um certo tipo de
doença mental aparecer apenas em contextos históricos ou
geograficamente precisos não implicar que seja manufacturado,
artificial, ou de qualquer outro modo não real” (Hacking, p. 12).
8 Em quarto e último lugar, Young faz corresponder o “real” à
experiência de dor e sofrimento das “pessoas que são diagnosticadas
ou diagnosticáveis com PTSD” (Young, p. 10), sugerindo
implicitamente a necessidade de se desenvolver uma perspectiva que
tenha em conta, justamente, esse real fenomenológico representado
pela experiência da doença. Escreve Young:
Dizer que a memória traumática e a PTSD são constituídas através dos
tecnofenómenos e estilos de pensamento do investigador não nega a dor que é
sofrida pelas pessoas que são diagnosticadas ou diagnosticáveis com PTSD. Nada
do que eu escrevi neste livro deve ser interpretado como trivializador dos actos
de violência e das terríveis perdas pessoais que se encontram por detrás de
muitas memórias traumáticas (p. 10).
9 É sem dúvida este um dos aspectos que ficam em aberto nas
discussões de Hacking e Young em torno das desordens de
personalidade múltipla e de stress pós-traumático, respectivamente.
10 Em relação ao trabalho de Hacking, a ausência de uma perspectiva
que contemple o “real” constituído pela experiência das pessoas
diagnosticadas com uma dada categoria psiquiátrica, no caso a
desordem de personalidade múltipla, não chega a constituir sequer
uma objecção. Ian Hacking é fundamentalmente um filósofo e
historiador das ciências. O seu trabalho não se propõe nunca realizar
uma leitura etnográfica da realidade vivencial das pessoas
diagnosticadas. A sua atenção centra-se na emergência das “ciências
da memória” e no modo como a desordem de personalidade múltipla
foi construída.
11 Já Young recorre, como antropólogo, ao método etnográfico. E esta é,
sem dúvida, a parte menos eficaz do seu trabalho. Não porque a
descrição etnográfica não tenha grande acuidade, sobretudo na
forma como desvela o modo como os processos de diagnóstico e as
aproximações terapêuticas são constituídas na prática, mas porque
se situa, talvez excessivamente, num plano que privilegia as
narrativas dos clínicos em detrimento das narrativas dos ex-
combatentes da Guerra do Vietname, a quem foi diagnosticada a
desordem de stress pós-traumático. O que me surge como evidente,
pese embora (se me for permitido enfatizar este ponto) a análise
etnográfica de detalhe que Young constrói em redor de sessões com
veteranos do Vietname num Centro Médico da Administração dos
Veteranos (Veterans Administration Medical Center) no Midwest
norte-americano, é o modo como Young deixa em suspenso aquilo
que nos sugere logo no início do seu livro: a importância de que se
reveste, precisamente, “a dor que é sofrida pelas pessoas que são
diagnosticadas ou diagnosticáveis com PTSD”. Esta ausência poderia
ser colmatada com uma perspectiva como aquela que vem sendo
defendida por antropólogos como Arthur Kleinman (ver, por
exemplo, 1988) ou Byron J. Good (1994a e 1994b).
12 Pensar o real da experiência de dor e sofrimento dos sujeitos
diagnosticados (ou diagnosticáveis) põe em causa, como assinala
Byron J. Good (1994b: 117), ao referir-se especificamente à “dor
crónica” (chronic pain), um dos dados centrais da biomedicina: o de
que o conhecimento objectivo do corpo humano e da doença é
possível fora de um entendimento da experiência subjectiva dos
sujeitos implicados. Good escreve assim a partir de uma “teoria da
experiência da doença”, em que “[as] relações entre experiência
incorporada, significado intersubjectivo, narrativas que reflectem e
refazem (rework) a experiência da doença, e as práticas sociais que
medeiam o comportamento na doença (illness behavior)” (1994b: 118),
se tornam centrais a uma perspectiva que procure valorizar esta
dimensão fenomenológica. É, assim, aos “mundos da experiência”
(1994b: 122), via Husserl, Merleau-Ponty ou Nelson Goodman, que se
pretende ganhar acesso. Young não explora esta constelação de
temas, o que não retira, em todo o caso, mérito à sua proposta.

BIBLIOGRAFIA
GOOD, Byron J., 1994a (1992), “A Body in Pain — the Making of a World of Chronic Pain”, in
Good, Mary-Jo Delvecchio, Paul E. Brodwin, Byron J. Good e Arthur Kleinman (eds.), Pain as
Human Experience: An Anthropological Perspective , Berkeley e Los Angeles, University of
California Press.

GOOD, Byron J., 1994b, Medicine, Rationality, and Experience: An Anthropological Perspective,
Cambridge, Cambridge University Press.
KLEINMAN, Arthur, 1988, The Illness Narratives: Suffering, Healing & the Human Condition, Nova
Iorque, Basic Books.

LLOYD, Genevieve, 1993, Being in Time: Selves and Narrators in Philosophy and Literature,
Londres & Nova Iorque, Routledge.
NOTAS
1. A comunidade psiquiátrica traduz vulgarmente a palavra disorder por “distúrbio” e/ou
“perturbação”. Como sobre este aspecto não há consensualidade, preferi usar uma terceira
solução: a tradução literal da palavra pelo equivalente em português “desordem”. (Agradeço
ao psiquiatra Manuel Quartilho os esclarecimentos que me permitiram fundamentar esta
opção.)
Miguel Vale de Almeida, Corpo
Presente: Treze Reflexões
Antropológicas sobre o Corpo
Luís Quintais

REFERÊNCIA
Miguel Vale de Almeida, Corpo Presente: Treze Reflexões Antropológicas
sobre o Corpo , Lisboa, Celta, 1996.
1 Será que a antropologia nos propõe, através das suas incursões
recentes em torno do corpo, “um novo conhecimento da realidade”,
a usar um verso de Stevens (1984: 534), ou, de outro modo, será que a
problematização do corpo nos remete para a emergência de um novo
paradigma antropológico, como nos quer fazer crer Csordas (1990)?
2 Tudo isto a propósito da publicação do volume colectivo de ensaios
Corpo Presente: Treze Reflexões Antropológicas sobre o Corpo, organizado
por Miguel Vale de Almeida. À interrogação ”de que falamos quando
falamos do corpo”, respondem doze antropólogos (Vale de Almeida,
Nélia Dias, Rosa Maria Perez, Maria Cardeira da Silva, Manuela
Cunha, Jean-Yves Durand, Paulo Raposo, Maria José Fazenda, Susana
de Matos Viegas, Clara Saraiva, Cristiana Bastos, João de Pina
Cabral), e um psicólogo e acupunctor (Inácio Fiadeiro). A inclusão
deste último, como refere Vale de Almeida, “não pretende ser uma
forma de introduzir interdisciplinaridade no volume”, visto que “as
questões abordadas no texto constituem um exemplo concreto de
algumas das preocupações correntes em antropologia” (p. 18). Das
treze propostas que aqui se reúnem uma é co-autorada. Em ”Cravado
na Pele, o Hospital”, Cristiana Bastos toma o seu “informante”
principal, Alfredo González, como co-autor do ensaio, escrevendo em
nota: “A colaboração de Alfredo González, activista do Act Up-
NewYork de longa data e também estudante de antropologia, foi
indispensável não só para a redacção deste texto, mas também como
companheiro de percurso de vários anos de observação-reflexão-
participação” (p. 190).
3 No contexto da antropologia portuguesa, é de registar uma diferença
de ênfase em relação a trabalhos publicados ao longo da década de
80. A lógica que parece presidir à discussão é centrífuga, ao contrário
da que caracterizou a maioria dos estudos antropológicos de relevo
publicados em Portugal ao longo daquela década, que, dadas as suas
preocupações com temas e contextos que se reportavam a uma
matriz nacional (quando não estritamente rural) parecem
preconizar, hoje, analisados à distância, uma lógica centrípeta. Tal
aspecto é identificado por João de Pina Cabral na sua contribuição
final a Corpo Presente:
Correndo o risco de exagerar um pouco, pode dizer-se que as principais obras da
antropologia portuguesa dos anos 80 eram obras de estrangeirados que, voltados
a Portugal, faziam a sua própria tradução da sociedade rural portuguesa. As
obras dos jovens antropólogos dos anos 90, pelo contrário, são criadas por
pessoas que, profundamente radicadas na vida social nacional, dialogam com
mundos intelectuais exteriores — sejam eles as mulheres intocáveis da Índia
(Rosa Perez), as adolescentes de Marrocos (Maria Cardeira da Silva), as teóricas
da dança americanas (Maria José Fazenda) e os doentes de sida nova-iorquinos
(Cristiana Bastos); ou, alternativamente, sejam eles os antropólogos americanos,
ingleses e franceses cujas obras os autores citam, comentam e criticam (Paulo
Raposo, Susana Matos Viegas, Nélia Dias) (p. 200).
4 Outro aspecto a assinalar prende-se com o carácter heterogéneo das
reflexões propostas, que pode ser apreciado, justamente, pela
constelação de autores citados. Assim, se Miguel Vale de Almeida nos
faz o ponto da situação da denominada “antropologia do corpo”,
circunscrevendo esse imenso arco que vai de Mauss a Douglas até às
leituras mais recentes que se apoiam na fenomenologia e na teoria
da prática, via Merleau-Ponty e Bourdieu, a grande maioria dos
autores desta obra colectiva não faz necessariamente sobrepor as
suas referências ao universo bibliográfico criticamente avaliado na
introdução. A unidade não é, pois, programática ou teórica. A
unidade de Corpo Presente é fundamentalmente temática, inserindo-
se num contexto de problematização mais amplo que se prende com
noções caras à antropologia contemporânea, como sejam as de
“pessoa”, “self”, ou “consciência”. A análise crítica destas noções não
é ignorada. Destacaria aqui o ensaio de João de Pina Cabral, “Corpo
Familiar”, que, através de uma avisada crítica ao “pessoalismo”, se
impõe como um contra-peso a alguns dos excessos em que se
comprazem, por vezes, as propostas mais radicais nesta área.
5 Por último, e na esteira das minhas interrogações iniciais, gostaria
de chamar a atenção para o seguinte: a reflexão sobre o corpo
assume-se, numa das suas modalidades mais ousadas e
indubitavelmente mais estimulantes, como um investimento nos
domínios fenomenológicos da experiência, e como uma recusa de
todas as formas de logocentrismo e intelectualismo de que
padeceram não apenas a filosofia ocidental, mas também disciplinas
como a antropologia, que pese embora a sua vocação pela diferença,
se nortearam por esquemas interpretativos e vectores ideológicos
que implícita e explicitamente se abasteceram desse logocentrismo e
intelectualismo.
6 A crítica é legítima e transporta-nos para alguns dos textos mais
decisivos dos últimos anos. Refiro-me em particular a Jackson e ao
notável Paths Toward a Clearing: Radical Empiricism and Ethnographic
Inquiry (1989), e a Csordas em “Embodiment as a Paradigm for
Anthropology” (1990). Estes trabalhos parecem querer acrescentar
um domínio da realidade à realidade estudada e uma orientação
epistemológica nova. Daí, no caso de Csordas, as suas pretensões
paradigmáticas. Mas metodologicamente estamos perante um
impasse que deriva da natureza do trabalho antropológico ele
mesmo. É que se pretende aceder a domínios pré-objectivos ou ante-
predicativos da experiência, a glosar Merleau-Ponty (1945),
transportando-os depois para um meio, os textos, que são, por
inerência, um processo de predicação e segmentação de uma
realidade fenomenológica que sabemos ser avessa a esse transporte.
Ou seja, a dizermos que a experiência cultural dos sujeitos não é
redutível à linguagem e que devemos procurar formas de articular
aquilo que não é articulável, teremos de encontrar um meio que não
os textos para o fazermos, sob o risco de nos limitarmos a constatar a
ineficácia da linguagem para se aceder a tais domínios pré-objectivos
ou antepredicativos da realidade.
7 Não penso que tal meio tenha sido encontrado (pese embora algumas
das tentativas no domínio da chamada “antropologia visual”). Entre
as coisas e as ideias sobre as coisas, parecemos inevitavelmente
limitados pelas ideias sobre as coisas. Isto a situarmo-nos numa
leitura somente referencial e representacional da linguagem. A
reafirmar que qualquer forma de conhecimento tem limites e que o
nosso horizonte de visibilidade, no domínio da antropologia, foi e
continua a ser aquele que nos é fornecido pela linguagem.
BIBLIOGRAFIA
CSORDAS, Thomas J., 1990, “Embodiment as a Paradigm for Anthropology”, Ethos (1), 5-47.
JACKSON, Michael, 1989, Paths Toward a Clearing: Radical Empiricism and Ethnographic Inquiry ,
Bloomington e Indianapolis, Indiana University Press.

MERLEAU-PONTY, Maurice, 1994 [1945], Phénoménologie de la Perception, Paris, Gallimard.


STEVENS, Wallace, 1984, Collected Poems, Londres e Boston, Faber and Faber.
David Parkin, Lionel Caplan e
Humphrey Fisher (eds.), The
Politics of Cultural Performance
Paulo Raposo

REFERÊNCIA
David Parkin, Lionel Caplan, Humphrey Fisher (eds.), The Politics of
Cultural Performance , Oxford, Berghahn Books, 1996.
1 The Politics of Cultural Performance é uma colectânea de ensaios
organizada e editada por três especialistas da School of Oriental and
African Studies (SOAS) — D. Parkin, L. Caplan e H. Fisher — que se
desenvolve em torno da reflexão sobre o modo como diversas
performances culturais — isto é, modos de comportamento
comunicativo e/ou tipos de acontecimentos comunicativos cuja
natureza reflexiva decorre da sua instrumentalidade enquanto
expressões culturais — criam e reflectem as transformações que as
constantes mutações das relações de poder conferem à frágil
demarcação entre o que os grupos sociais consideram tradicional e
moderno. Mas esta obra colectiva é acima de tudo uma homenagem e
uma importante recensão das principais inquietações teóricas de um
dos mais importantes membros da SOAS — Abner Cohen.
2 Num eixo que vai das cerimónias de Estado às festas de aldeia, das
peregrinações aos ritos de possessão, da dança à comensalidade
ritual, etc..., e onde África surge como o principal palco — cruzado
pontual e comparativamente com contextos europeus e asiáticos — o
conjunto dos ensaios aqui reunidos dão sobretudo continuidade à
sugestão de Abner Cohen de que existe uma relação dialéctica entre
poder e simbolismo, entre acção política e formas culturais
simbólicas. Trata-se de discutir o modo como os grupos sociais
através de múltiplas performances culturais, e ao longo de uma linha
de demarcação entre o que consideram como tradicional ou moderno,
criam e reflectem as tensões ou configurações das relações de poder
estabelecidas no interior de cada sociedade ou grupo.
3 As quinze contribuições dos mais diversos especialistas reunidas
nesta obra procuram revelar ainda como cerimoniais, rituais,
dramatizações e outras performances culturais podem a um tempo
servir para exprimir e eximir a ameaça das contingências externas
ou, pelo contrário, obscurecer essa tensão e revelar o caracter
plástico e ambivalente das formas culturais e simbólicas. Neste
sentido, a obra fornece uma interessante reflexão comparativa —
frequentemente unindo a antropologia à história — salientando uma
articulação singular entre conceitos como política, cultura e
simbolismo, os quais, aliás, têm sido protagonistas de longa data dos
debates antropológicos.
4 Finalmente, tal como Abner Cohen havia explicitado na sua obra
Masquerade Politics: Explorations in the Structure of Urban Cultural
Movements (1993, Berkeley, University of California Press) através do
conceito de masquerade (que poderíamos traduzir por mascarada ou
disfarce), também nesta obra é visível o uso de uma perspectiva que
contemple a dupla dimensão inscrita na acção política que decorre
das performances culturais: performance e transformação, expressão e
efeito, criação de conhecimento ou impedimento e empobrecimento
do mesmo conhecimento. Isto significa dizer que se o poder informa
os símbolos, seguramente também o processo de simbolização está
sempre a produzir novos efeitos políticos.
5 Deste modo, e na sequência do refinamento do pensamento de
Cohen, os ensaios aqui reunidos revelam como é no idioma, no
figurino ou na representação da máscara que repousam as grandes
questões sobre a agência humana e o conhecimento, a sua
justificação/função e representação — questões que sempre
preocuparam os antropólogos. Cohen, aliás, havia já sugerido que a
atenção fosse dada não às rotinas quotidianas, mas, e sobretudo, às
aparentes bizarrias que melhor permitem compreender os mistérios
da acção social e do pensamento que esta encerra. Do mesmo modo,
as performances culturais — como refere F. G. Bailey num dos ensaios
aqui reunidos — são supostas gerar uma pluralidade de significados
enquanto são exibidas, postas in actu (staged), e, portanto, resultam
difíceis de interpretar, uma vez que são fruto das tensões políticas ou
das relações de poder. Simultaneamente são portadoras de símbolos
culturais (textos e significados) que remetem para um contexto
cultural (modelos e padrões) que, no entanto, é suposto ser pensado
pelos seus membros apenas como “real” e “autêntico” na
materialidade da interacção social (e não da staged performance). Por
outro lado, a rigidez modelar desta última perspectiva é contrariada
sistematicamente pelo carácter plástico e transformativo com que os
indivíduos ou os grupos sociais estrategicamente exibem, deformam
ou omitem (de modo reflexivo) significados e acções políticas através
das mais variadas performances culturais. Trata-se, portanto, de uma
obra de referência, teórica e etnograficamente falando, para os
estudiosos dessa cada vez mais significativa articulação dos domínios
da acção política e das performances culturais.
Christopher Tilley, A
Phenomenology of Landscape: Places,
Paths and Monuments
Sandra Xavier

REFERÊNCIA
Christopher Tilley, A Phenomenology of Landscape: Places, Paths and
Monuments, Berg, Oxford, 1994.
1 Através da oposição kantiana e cartesiana entre o homem e o
mundo, que separa as ciências da natureza das ciências sociais e
humanas, o espaço tem sido pensado como uma entidade absoluta,
completamente presente no homem, como um enquadramento
anterior à sua percepção do mundo, ou na natureza, como um
recipiente independente das actividades humanas que nele têm
lugar.
2 É um espaço abstracto, geométrico, objectivo, universal, exterior ao
homem e à sociedade que é conceptualmente construído pela “nova
geografia” nos anos 60. O espaço é reificado, através do seu carácter
de dimensão comparável, e separado, como um continente, da
prática social. Também a “nova arqueologia” assenta neste conceito
de espaço. O significado simbólico e o papel social da cultura
material e do meio ambiente são negligenciados. Espaço e sociedade
são conceptual e fisicamente separados. As relações entre o homem e
o seu meio ambiente, pensadas como entidades independentes, são
reduzidas, pelas ciências sociais e pela arqueologia, a parâmetros
adaptativos e funcionais e a assuntos como recursos, níveis
populacionais e tecnologia. O espaço fica fora da sociedade, logo a
arqueologia separa-se das ciências sociais. Por outro lado, o mundo
natural torna-se irrelevante para os estudos da cosmologia e da
estrutura social e, quando considerado, é como um objecto
classificado por estruturas cognitivas e sociais dele independentes. A
sociedade e a cultura são reificadas, legitimando a autonomia das
ciências sociais que, ao pensarem o espaço, o reduzem a uma
organização simbólica.
3 Durante as décadas de 70 e 80, a geografia humana e a arqueologia
começaram a redefinir a relação entre natureza e cultura e,
utilizando a fenomenologia, a desconstruir a oposição
sujeito/objecto. O conceito de espaço socialmente produzido,
indissociável das relações e práticas sociais, substitui o conceito de
espaço recipiente, abstracto, absoluto e universal. A geografia e a
arqueologia recorrem, portanto, à teoria social para pensarem um
espaço humano e com significado, o qual combina o físico, o
cognitivo e o emocional, que, produzido pela interacção entre as
pessoas e entre estas e o ambiente não-humano, é o resultado e o
meio da acção. Por seu turno, a antropologia passa a considerar o
papel activo do meio ambiente (simbólica e politicamente marcado
mas não passivamente moldado ou enquadrado por estruturas
cognitivas e sociais a ele exteriores) na vida social, como uma forma
de ultrapassar o sociocentrismo ou a circularidade do determinismo
cultural. A não separação e a mútua constituição entre mente e
corpo, natureza e cultura, sendo agora reconhecidas acabam com o
determinismo cultural e ecológico e, assim, com as fronteiras entre
as ciências.
4 O próprio campo semântico da palavra ambiente e o contexto de uso
no qual surgiu a palavra paisagem demonstram como a reflexão sobre
o espaço esteve marcada pela dicotomia homem/mundo natural.
Segundo a Encyclopedia of Social and Cultural Anthropology, no seu uso
comum, ambiente refere a influência não humana sobre a
humanidade. A ele está associada a imagem da humanidade rodeada
por factores biofísicos relevantes (cf. Thin 1996: 185). Assim, ao falar-
se de ambiente separa-se o homem do mundo natural e se, por um
lado, se exclui o homem do seu contexto biofísico, por outro, este é
pensado através daquele. Ou seja, no termo ambiente está inscrito o
paradoxo de uma visão antropocêntrica de um mundo ao qual o
homem não pertence. Este mesmo paradoxo está presente no termo
paisagem que, no século XVI na Holanda, surgiu na linguagem da
pintura, para referir uma visão pictórica da natureza (Bell 1993: 5). O
mundo natural, do qual se afasta o citadino, é na e pela paisagem
representado, de uma forma distanciada, enquanto objecto distinto
do homem. A paisagem pictórica constitui um olhar humanamente
construído que subtrai o homem do mundo natural representado e,
assim, nela se separa o homem (sujeito) da natureza (objecto). Isto é,
paisagem evoca simultaneamente, mas como identidades distintas e
autónomas, homem e mundo natural.
5 É esta oposição, inerente à representação e conceito pictórico de
paisagem, entre homem e mundo natural, que Tilley procura
desconstruir neste livro. Ao reflectir sobre a paisagem, Tilley, como
arqueólogo, contribui para a humanização da topografia natural e,
como antropólogo, demonstra como esta participa activamente na
formação de biografias pessoais, de memória e identidade social e
dos sistemas de dominação (pp. 26 e 27), diluindo assim a fronteira
entre estas ciências.
6 Ao situar-se numa perspectiva fenomenológica, Tilley considera que
a paisagem não é um objecto da natureza que existe
independentemente do homem, nem uma representação mental ou
forma cognitiva, mas que é constituída pelo “estar com as coisas” (o
conceito de “residência” de Heidegger), no qual o corpo se torna na
forma de as entender e percepcionar e, assim, nela se ligam cognição
e realidade, mente e corpo, utilitário e simbólico, a forma física e
visual da terra (topografia, rios, relevo, formações rochosas) e os
significados, nomes de lugares e memórias, humanamente criados,
reproduzidos e transformados em relação com ela.
7 Assim, Tilley retém a palavra paisagem, porque, ao deslocá-la da
representação pictórica para o “vivido”, o homem e a natureza que
naquela estavam dissociados, passam a estar por ela interligados:
A paisagem tem importância ontológica porque se vive nela e através dela, é
mediada, trabalhada e alterada, repleta de simbolismo e significado cultural — e
não é apenas algo para o qual se olha ou acerca do qual se pensa, um objecto para
mera contemplação, descrição, representação e esteticização (p. 26).
8 O termo paisagem transforma-se naquele que, em geografia, melhor
é capaz de descrever a inter-relação entre o “lugar” meramente
humano e o meio ambiente:
Desejo defender neste livro que os locais humanamente criados utilizam as
qualidades da paisagem para criar, naqueles que o usam, parte do seu significado,
e a própria p ercepção da paisagem pode ser fundamentalmente afectada pela
localização destes locais (pp. 25-26).
9 Na segunda parte deste livro, Tilley utiliza este conceito de paisagem
e alguns trabalhos etnográficos — que demonstram a importância
simbólica das características topográficas em duas sociedades de
caçadores-recolectores (Austrália e Alasca) e em outras duas de
agricultores (México e Melanésia) —, para reinterpretar alguns
achados arqueológicos do País de Gales e Sul de Inglaterra,
constituídos principalmente por fragmentos de sílex mesolíticos e
monumentos neolíticos. Tilley propõe assim à arqueologia uma nova
agenda teórica e metodológica. Convida os arqueólogos, que apenas
têm em conta os locais em si ou os inserem num espaço pensado
independentemente deles como um dado da natureza, a
considerarem a inter-relação entre os locais arqueológicos e as
características dominantes da paisagem envolvente (rios, elevações
rochosas, costa, vertentes). O significado e localização dos achados
depende do impacte fenomenológico e do significado humanamente
construído das características da topografia natural. Por outro lado,
a construção perceptual e simbólica da paisagem pré-histórica deve
ser inferida a partir das evidências arqueológicas. Tilley sugere
também que, como instrumentos metodológicos, se devem substituir
os mapas pelo movimento e presença na paisagem. Os mapas não
permitem ver e compreender como os lugares se inter-relacionam
com as características topográficas. É através do corpo, como o lugar
universal das experiências espaciais, que podemos percepcionar e
conhecer a paisagem que construiu e foi construída pelos lugares
mesolíticos e monumentos neolíticos.

BIBLIOGRAFIA
BELL, Desmond, 1993, “Framing Nature: First Steps into the Wilderness for a Sociology of
the Landscape”, Irish Journal of Sociology , vol. 3, 1-22

THIN, Neil, 1996, “Environment”, in BARNARD, Alan, e SPENCER, Jonathan, Encyclopedia of


Social and Cultural Anthropology, Londres & Nova Iorque, Routledge.
Roy Ellen e Katsuyashi Fukui
(eds.), Redefining Nature: Ecology,
Culture and Domestication
Francisco Oneto Nunes

REFERÊNCIA
Roy Ellen, Katsuyashi Fukui (eds.), Redefining Nature: Ecology, Culture
and Domestication , Oxford e Washington DC, Berg, 1996.
1 Na ressaca dos niilismos pós-modernos, após várias décadas de
debate filosófico em torno das condições de possibilidade do
conhecimento científico, e depois de a neurobiologia ter
desarticulado consistentemente os alicerces cartesianos de um saber
fundamentado nas oposições mente/corpo e homem/natureza, resta
agora às ciências sociais reformularem alguns dos problemas
centrais de que se têm ocupado e que permitiram a sua reprodução
institucional mais ou menos bem sucedida. A antropologia, por
virtude de uma promiscuidade teórica que revela incessantemente as
suas próprias potencialidades criativas, não poderia deixar de se
posicionar na linha da frente da renovação dos saberes. Um exemplo
interessante vem, justamente, de uma área tradicionalmente
associada com a economia, a ecologia e a análise das sociedades de
caçadores-recolectores. Trabalhos como os de Stephen Gudeman,
Tim Ingold ou Roy Ellen, para citar apenas alguns, têm vindo a
oferecer importantes contributos para a implementação de debates
alargados em torno da reformulação de problemas e categorias
herdadas das gerações precedentes.
2 Os textos que constituem esta obra são o produto de um simpósio
que teve lugar no Japão (Kyoto e Atami), em Março de 1992 — Beyond
Nature and Culture: Cognition, Ecology and Domestication — e onde se
confrontaram praticantes de antropologia cognitiva e ecológica,
biologia e etnografia. O texto introdutório, da autoria de Roy Ellen,
proporciona uma boa síntese dos vários e diversificados conteúdos
incluídos neste volume, evidenciando um conjunto de questões cuja
relevância se poderá, talvez, subsumir nesta interrogação: “Can
person and environment ever be anything but implicate in each
other?”
3 Destacam-se os contributos de Tim Ingold (“Hunting and Gathering
as Ways of Perceiving the Environment”), com um argumento que se
desenvolve através das etnografias provenientes dos Batek Negritos
da Malásia, dos Mbuti do Zaire e dos Nayaka do Sul da Índia; Peter D.
Dwyer ( “The Invention of Nature”), que é biólogo de formação,
explora a oposição visível/invisível com exemplos de três sociedades
da Papua-Nova Guiné; James Boster (“Human Cognition as a Product
and Agent of Evolution”) compara as taxonomias para classificar
aves usadas pelos Jívaros e pelos ornitólogos, para sugerir “a pan-
human (or possibly pan-mammalian) perceptual strategy for making
sense of biological diversity” (p. 274); e Emílio F. Moran (“Nurturing
the Forest: Strategies of Native Amazonians”), que esclarece uma
questão de suma importância:
The most recent views on human ecology no longer talk about adaptation to
physical environment as the most important dimension of ecological analysis
(...). Nor do they focus on nature or culture to determine which is causally prior.
Rather, the ecological behaviour of individuals is taken to be a product of
multiple sources of information and influence: history, demographic experience,
the cognized physical environment, social membership and political forces (p.
534).
George Marcus e Peter Dobkin
Hall, Lives in Trust: the Fortune of
Dynastic Families in Late Twentieth-
Century America
Antónia Pedroso Lima

REFERÊNCIA
George Marcus, Peter Dobkin Hall, Lives in Trust: The Fortune of
Dynastic Families in Late Twentieth-Century America , São Francisco e
Oxford, Westview Press, 1992.
1 Lives in Trust representa um passo importante na escassa produção
sobre elites no campo disciplinar da antropologia. É um livro sobre
famílias dinásticas americanas, unidades sociais que se constituem
quando o fundador transmite aos seus descendentes as empresas, a
família e a riqueza pessoal que criou durante a sua vida, e o faz de
uma forma integrada, utilizando estratégias jurídicas que organizam
burocraticamente a sua fortuna em trusts 1 , de forma a perpetuar os
seus impérios económicos e familiares. No entanto, o conjunto de
textos que constitui o presente livro não é exclusivamente uma
descrição etnográfica das famílias dinásticas estudadas por Marcus e
Peter Hall. Os autores utilizam o material empírico para elaborar
uma crítica à concepção clássica das elites, vistas como um grupo
social homogéneo, para reflectir sobre a natureza das famílias
dinásticas americanas, e para pensar na importância da lei e dos
instrumentos jurídicos na formação da elite norte-americana.
2 A forma como Marcus, nos textos que assina, desconstrói a ideia de
que as famílias dinásticas americanas são grupos de parentesco é
uma das contribuições mais importantes desta obra, tanto para os
trabalhos sobre elites, como para a reflexão sobre a família nas
sociedades capitalistas. Uma dinastia não pode ser considerada um
grupo de parentesco, pois ela é, fundamentalmente, uma
organização administrativa onde uma família e uma fortuna se
relacionam num conjunto de instituições não familiares que
interferem na continuidade de uma e outra. Como resultado do
processo de constituição dos trusts, as relações que têm lugar no
interior das famílias dinásticas são orientadas por arranjos jurídicos,
geridas por especialistas legais e financeiros e a única razão para a
sua continuidade são os constrangimentos decorrentes do facto de os
parentes partilharem uma riqueza hereditária. De facto,
é irónico que nas sociedades capitalistas esta forma de linhagem encontre a sua
força numa racionalidade estranha aos sentimentos que normalmente
atribuímos à motivação das relações familiares e que a durabilidade das dinastias
enquanto grupo de descendentes seja adquirida através da assimilação de
características pensadas como antitéticas aos grupos baseados no parentesco (p.
70).
3 Esta é a base de um dos argumentos centrais de Marcus segundo o
qual os conceitos legais são categorias culturais do sistema de
valores do parentesco no contexto da sociedade americana, pelo que
as regras e instrumentos legais devem ser considerados uma
dimensão fundamental das relações familiares nos trusts familiares
americanos. Assim, para dar conta etnograficamente da
complexidade sociológica destas famílias dinásticas, Marcus propõe a
utilização de uma forma alternativa de narrativa familiar que não se
centre nesta unidade, mas que seja analiticamente multicentrada, de
forma a permitir dar conta do conjunto de processos externos e
diversos que formam a história da família e tornar evidentes as
diversas esferas sociais implicadas na construção da sua identidade.
4 Nesta obra são abordados diversos temas (a domesticação do capital
feita por famílias dinásticas; os modelos de crescimento destas
formações empresa/família; a importância dos fiduciários na
manutenção destes impérios; as relações entre gerações; o carácter
abstracto do dinheiro para os herdeiros destas fortunas; a formação
de pessoas piedosas; a “falsa curiosidade” subjacente às fundações
artísticas criadas por estas famílias; e a descrição etnográfica de
Peter Hall sobre os Rockfeller e os problemas inerentes à produção
de uma imagem pública da família), que no seu conjunto poderiam
contribuir para a compreensão das formas de viver em trusts. No
entanto, os autores não elaboram uma etnografia “densa” que dê
conta das experiências de vida, valores culturais e visões do mundo
deste grupo social. Por outro lado, também não fazem, e é pena, uma
reflexão mais sistemática sobre questões de significado mais
abrangente que levantam, sem analisar, ao longo do livro. Como
exemplo disto podemos apontar a interessante sugestão de que os
trabalhos sobre este contexto social podem contribuir para uma
reflexão mais geral sobre a sociedade americana, pois o facto de as
dinastias darem prioridade à realidade colectiva sobre o self único e
autónomo dos seus membros faz com que elas se tornem num dos
poucos contextos onde se pode desenvolver uma crítica do
individualismo americano (p. 179). Da mesma forma, a ideia de que
ao estudar formações dinásticas a antropologia pode contribuir para
revitalizar a teoria das elites, “cuja importância se revela na
demonstração das conexões sistemáticas entre riqueza e poder nas
sociedades capitalistas” (p. 102) é referida sem qualquer tipo de
desenvolvimento. No entanto, trabalhos como este, que se debruçam
sobre contextos sociais normal-mente ignorados pela antropologia, e
que fazem uma análise cultural de categorias económicas
hegemónicas mostrando a variação contextual dos seus significados,
tornam bem clara a contribuição que esta disciplina pode dar para o
estudo das economias modernas.

NOTAS
1. Trust : entidade que detém material e juridicamente os bens de uma pessoa, ou pessoas,
passando estes a ser administrados por terceiros — os fiduciários.
Paul Stoller, Embodying Colonial
Memories: Spirit Possession, Power
and the Hauka in West Africa
Clara Carvalho

REFERÊNCIA
Paul Stoller, Embodying Colonial Memories: Spirit Possession, Power and
the Hauka in West Africa , Londres, Routledge, 1995.
1 “O cheiro acre das resinas ardentes espalha-se pela casa de Adamu
Jenitongo.” Desde a frase com que abre o novo livro de Paul Stoller,
encontramo-nos na presença do universo narrativo e etnográfico
que o autor foi construindo ao longo de diversas obras: os cheiros de
Africa que lhe servem em The Taste of Ethnographic Things para nos
guiar através dos Songhay do Níger e da sua experiência de jovem
etnógrafo aprendiz; o universo de encantações que impregna o
relato de uma imersão nas práticas rituais dos Sorki, mestres de
magia Songhay, em In Sorcery’s Shadow, escrito de parceria com
Cheryl Okes; e a presença de Adamu Jenitongo, seu mestre e mentor
na magia e metafísica Songhay, cuja referência recorrente em todas
as obras do autor as transforma (também) numa memória em
construção.
2 Em Embodying Colonial Memories, Stoller abandona os Sorki para se
debruçar sobre os Hauka, os espíritos que caricaturizam os Europeus
durante as sessões de possessão a que se entregam os “cavalos de
génio”, os possuídos e performers: no decorrer de um sessão em
Tillaberi, no Níger, o autor foi incumbido de escrever “sobre nós,
porque tu és um ‘europeu’ como nós” por Istambula, um dos
espíritos presentes. A referência aos Hauka remete-nos
obrigatoriamente para o impressionante retrato feito por Jean Rouch
em Les Maîtres Fous, filme realizado (igualmente) a pedido dos Hauka.
O cineasta previa que estas figuras caricaturais dos elementos da
administração colonial e do poder europeu desaparecessem com a
independência das antigas colónias. Contudo, as sessões de possessão
em que os corpos se tornam hirtos e rígidos como numa parada
militar, os olhos ora esbulhagados ora ameaçadores se fixam em
realidades distintas, as bocas espumam e gritam, continuaram em
todo o seu fulgor de representação dura e aumentaram a sua
influência nos últimos vinte anos. Para explicar esta permanência o
autor conduz-nos numa viagem pelo Níger independente,
mostrando-nos a criação de um tecido social esquizofrénico, em que
os assanara (branco em Songhay), aqueles que procuraram seguir o
modelo das burguesias ocidentais, se afastam cada vez mais da massa
da população concentrada no interior e nos subúrbios da capital,
onde o primeiro presidente do Níger independente, Hamani Diori,
cria em seu torno um governo e um grupo de clientes que recriam a
noção de poder como domínio exterior sobre uma população sem
voz activa. A revolta do exército coloca na presidência o general
Seyni Kountche, ele próprio um suposto “cavalo de génio” Hauka,
cujas atitudes públicas são para Stoller uma reinvenção dos
mimetismos deste grupo: a atitude ameaçadora, o poder como
purificação e como utilização da força sem justificação.
3 Mas a compreensão dos fenómenos de possessão não pode ser
reduzida a uma dimensão intelectualizante ou mesmo a uma teoria
da performance. Segundo Stoller, os Hauka mimetizam os elementos
caricaturais e incompreensíveis do poder, como tentativa de
incorporação e apropriação dessas mesmas forças exógenas, e como
forma de resistência à sua estranha hegemonia. Fiel aos princípio
vividos em In the Sorcery’s Shadow e Fusion of the Worlds, e depois
expostos em The Taste of Ethnographic Things, Stoller defende que só
se pode compreender a possessão como um acto de corporalização
de uma memória colectiva e, como tal, um fenómeno não textual mas
sensitivo, gravado num corpo sensível. A sensualidade da percepção
humana é expressa na transmissão de uma memória colectiva que
evoca os gestos, os cheiros e sabores, os medos e terrores, as
apetências e prazeres, como outros tantos elementos significantes
para além da difusão de conhecimentos textualizáveis.
4 Em The Taste of Ethnographic Things, o autor criticava uma “etnografia
sensaborona” face aos “factos etnográficos saborosos” e defendia o
“conhecimento profundo” obtido através de um longo envolvimento
que implica, sobretudo, uma ligação profunda e emocional com as
pessoas. Todas as suas obras se dedicaram a explorar os contornos
destas relações, ao longo de narrativas estruturadas como contos.
Embodying Colonial Memories é moldado num material mais fluido,
transportando-nos dos encontros pessoais em “clubes” de possessão
Hauka para a história recente da África ocidental e do Níger. Os
elementos que torna objectos de análise e significação são tão
díspares como os estados de possessão, a cinematografia de Rouch, o
estranho teatro dos jovens governos africanos, o corpo como
primeiro elemento de criação individual e cultural; contudo, eles são
já parte integrante de um imaginário sobre África. Mais alargada nos
seus objectivos e menos precisa nas relações que retrata — sobretudo
a sua interpretação da história do Níger é nitidamente novelística —,
a última obra de Stoller ganha em revelação o que perde em
precisão. A sua interpretação sobre os fenómenos de possessão como
mimetização do poder e corporalização da resistência é
profundamente apelativa e, mesmo tratando-se de um olhar
exterior, é uma visão comunicante. Ambiciosa nas hipóteses que
defende, esta obra é susceptível de relançar um debate sobre as
formas de recriação e reapropriação (e corporalização) dos
elementos de poderes exógenos.

BIBLIOGRAFIA
STOLER, Paul, 1987, In Sorcery’s Shadow , Chicago, Chicago University Press.
STOLER, Paul, 1989, Fusion of the Worlds: An Ethnography of Possession among the Songhay of
Niger , Chicago, Chicago University Press.
STOLER, Paul, 1989, The Taste of Ethnographic Things. The Senses in Anthropology , Filadélfia,
University of Pennsylvania Press.
Rita Astuti, The People of The Sea
Emília Lopes

REFERÊNCIA
Rita Astuti, The People of the Sea , Cambridge, Cambridge University
Press, 1995.
1 Esta é uma obra baseada em notas do trabalho de campo,
decorrentes da estada da autora na costa sudoeste de Madagáscar, e
consiste no estudo de duas formas diferentes de identidade social co-
existentes na mesma comunidade — os Vezo —, uma operando no
presente e outra reportando-se ao futuro. O objectivo principal da
obra é o de explorar a aparente incompatibilidade dessas
características identitárias.
2 The People of the Sea divide-se claramente em duas partes distintas. Na
primeira metade, Astuti descreve com rigor as acções que
diariamente “fazem” dos indivíduos Vezo, salientando toda a
contextualidade e efemeridade dessa forma de ser. Numa sequência
de eventos muito bem narrados, a autora leva-nos a descobrir como
os Vezo fazem e refazem diariamente a sua identidade numa única
dimensão temporal, o presente, e num único posicionamento
geográfico, o litoral — o seu afastamento do mar leva-os ao abandono
das performances a ele associadas, base da sua identificação colectiva.
3 Os Vezo são uma comunidade que foge aos padrões classificatórios
convencionais de grupo étnico. Como se irá descobrindo ao longo da
obra, não é uma língua nem um território comuns, nem tão-pouco
uma história partilhada que os define como povo. Qualquer um pode
deixar de ser Vezo e, paralelamente qualquer indivíduo pode tornar-
se num deles, basta que aprenda pela acção a sê-lo, e a repita
diariamente.
4 Esta é a primeira grande constatação de Astuti — não se é Vezo por
descendência mas pela acção. O seu grande desafio é perceber a
identidade Vezo através da definição de identidade que eles próprios
construíram, numa postura muito diferente da tradicional
aplicação/teste da grelha teórica do investigador.
5 A autora realça que os Vezo estão “algemados” ao presente e que o
passado, enquanto conjunto de acções donde decorre um saber
empírico, é-lhes alheio, descobrindo-lhes assim uma identidade
social transitória, mutável em que se é o que se faz.
6 Astuti introduz também a questão da identificação geográfica, como
possível enquadramento para esta peculiar identidade social dos
Vezo, propondo que a dependência do mar representaria uma
espécie de essência estruturadora da acção dos individuos. Como ela
própria constata e os seus interlocutores sublinham, não há
projecção no passado (posse de terras) nem no futuro (espera pelas
colheitas). A sua subsistência está no mar tal como ele se apresenta
quotidianamente.
7 Ancorados no presente, renegam também a sua sujeição no passado
ao poderoso reino vizinho de Sakalara. Negam assim uma
identificação histórico-cultural que os ligaria a um passado
genealógico comum. A história transporta a genealogia: ao negarem
uma, negam a outra.
8 Mas há um resíduo histórico que os prende ao passado e que os Vezo
não conseguem anular. Dele se ocupa a segunda parte desta obra,
centrada na incontornável existência do parentesco e no modo como
esta leva este grupo homógeneo a subdividir-se em grupos
heterogéneos com identidade própria.
9 Astuti tenta compreender a coexistência destas duas formas de
identidade, uma orientada pela prática e inclusiva, a outra pela
descendência e exclusiva.
10 A autora descreve como o parentesco, em presença da poligamia e
não estabelecendo relações preferenciais, se estabelece
geracionalmente, originando relações de afinidade indiferenciadas
entre vários grupos de ascendentes, descendentes e colaterais.
Contudo este parentesco plural e disperso é reconduzido após a
morte à unidade de uma única raza — grupo específico e identificado
de antepassados que os Vezo elegem em vida, e dentre vários
possíveis, como o grupo de ascendentes em que querem ficar
incluídos.
11 Se enquanto vivos os Vezo formam um grupo homogéneo e com uma
só identidade — a colectiva —, a morte impele-os a optarem por uma
identidade individual, dividindo o túmulo o que a vida unia. O futuro
é feito momentaneamente presente através da evocação do passado
e da opção que cada Vezo faz sobre a sua raza, estabelecendo-se duas
formas de parentesco distintas, uma operando no presente e outra
que irá ter lugar no futuro.
12 A explicação proposta por Astuti, na tentativa de compreensão desta
“bizarra” co-existência identitária, baseia-se no facto dos seus
interlocutores terem consciência de que com a morte a sua
capacidade de agir como Vezo cessa, como tal a sua identificação
formal com um grupo específico de indivíduos (raza) é a única forma
de identidade que lhes restará no futuro.
13 Nesta obra, a descrição dos rituais funerários é muito realista.
Salientaria o modo como o grupo dos vivos enfatiza a sua unidade e a
forma efusiva como celebram os seus mortos ( em especial se o
defunto for idoso), o que significa que viveu longamente agindo como
Vezo.
14 Numa apreciação geral, acrescentaria que a descrição de Astuti sobre
o dia-a-dia Vezo é muito rica, pautada por transcrições de diálogos
que sublinham toda a dinâmica da vida desta comunidade. Poderá
causar alguma surpresa a atitude aparentemente passiva a que a
autora se remete em termos analíticos. Contudo, a dado momento
começa a tornar-se perceptível que ela se retrai intencionalmente
nas considerações que tece sobre a matéria, deixando os Vezo falar e
agir. Narra, reflecte pontualmente, mas deixa ao leitor a tarefa de
extrair ilações sobre estas duas formas de identidade co-existentes,
associadas a dimensões temporais distintas. The People of the Sea
transmite-nos sobretudo um novo olhar sobre velhos conceitos da
cultura ocidental — “povo”, “cultura”, “parentesco” e
“temporalidade”.
Niko Besnier, Literacy, Emotion and
Authority: Reading and Writing on a
Polynesian Atoll
Filipe Reis

REFERÊNCIA
Niko Besnier, Literacy, Emotion and Authority: Reading and Writing on a
Polynesian Atoll , Cambridge, CUP, 1995.
1 Teoricamente ancorado no designado modelo ideológico proposto por
Brian Street ( Literacy in Theory and Pratice , CUP, 1994), este estudo
olha para a literacia como uma construção sociocultural, ou seja,
postula que as práticas de leitura e de escrita não podem ser
analisadas independentemente dos contextos sociais, económicos e
políticos nas quais têm lugar. Neste sentido, e contrapondo-se à
perspectiva defendida por Jack Goody desde os anos 60, o modelo
ideológico chama a atenção, por exemplo, para o facto de a introdução
da escrita em muitas sociedades não ter espoletado as consequências
sociais e cognitivas propostas pelo modelo autónomo , designação
proposta pelo mesmo Brian Street para definir a teoria do autor de
The Domestication of the Savage Mind . Nas palavras de Niko Besnier:
“The ideological reaction to autonomous approaches to literacy (...)
represents a call away from facile categorizations, a retreat from
hasty generalizations, and a return to the ethnographic drawing
board” (p. 4).
2 Os príncipios básicos deste tipo de abordagens podem sintetizar-se
em quatro aspectos fundamentais: em primeiro lugar, aquilo que é
tomado como objecto de inquérito é a diversidade de experiências de
literacia que emergem dentro e através das sociedades; em segundo
lugar, procura-se mostrar como dentro das sociedades a diversidade
se articula com diferenças entre contextos de uso da escrita e da
leitura, com diferentes tradições religiosas e com padrões de
desigualdade entre grupos; em terceiro lugar, particularmente nos
estudos que privilegiam uma perspectiva comparativa, analisa-se
como a heterogeneidade da literacia resulta de um conjunto de
factores incluindo a natureza das práticas pedagógicas ligadas ao
processos de ensino/aprendizagem da escrita e leitura, as suas
origens e evolução históricas, e as atitudes face à leitura e à escrita;
em quarto e último lugar, os estudos ancorados no modelo ideológico ,
em vez de se preocuparem com as consequências sociais e cognitivas
da escrita, centram-se nas actividades, acontecimentos e construções
ideológicas associadas com manifestações particulares de literacia.
3 O presente livro procura cruzar tanto a perspectiva que privilegia a
análise de acontecimentos ou práticas de literacia particulares — os
designados event-centered studies, metodologia mais frequentemente
usada nas análises sobre as sociedades ocidentais com longa tradição
escrita e escolarização massiva — e a perspectiva mais holista que
procura dar conta da totalidade e diversidade dessas práticas — mais
comum em contextos não europeus onde a escrita foi recentemente
introduzida, como é o caso de Nukulaelae, um pequeno atol situado
no Pacífico central. Deste cruzamento resulta, talvez, o aspecto mais
interessante e inovador deste estudo, ao mostrar como a análise
aprofundada de um assunto como a literacia faz dela um pivô que
permite entender múltiplos aspectos da vida social. Analisando os
sermões proferidos (e previamente escritos) pelos pastores e
membros da comunidade, o autor mostra como esta forma de
literacia é usada enquanto instrumento e justificação de estruturas
de desigualdade social. Examinando de forma detalhada as
complexas relações entre a autoridade, a verdade e a noção de
pessoa que a prática do sermão evidencia, o autor põe em evidência
duas coisas: em primeiro lugar, que, mais do que opor oralidade e
escrita, é necessário entender como ambas as categorias se articulam
num continuum; em segundo lugar, o modo como a prática do sermão
contribui para a manutenção do poder, a emergência de formas de
resistência e a definição e construção da identidade entre os
Nukulaelae. Por outro lado, através de um vasto corpo de cartas
recolhidas entre os habitantes do atol, o autor analisa a profunda
imbrincação existente entre esta forma quotidiana de escrita e
certos aspectos da expressão das emoções, assim como a relação que
existe entre a escrita de cartas (a troca de correspondência dá-se
entre habitantes do atol e parentes emigrados em ilhas vizinhas) e o
controlo das actividades económicas. Nas suas palavras “letters
become mediating tools between emotions and material
transactions” (p.16). É também analisada a relação entre literacia e
género: embora o acesso à escrita e à leitura não esteja condicionado
pelo género, certas formas de literacia assumem qualidades de
género (caso dos sermões e escrita dos mesmos, e certas formas de
expressão das emoções só possíveis, para os homens, através de
cartas). Por último, o autor discute ainda as questões que decorrem
da introdução da escrita num contexto não letrado (no caso
analisado a escrita é introduzida ao longo do século XIX por
missionários samoanos): os dados mostram intenções discrepantes
entre os introdutores e os recipientes da literacia, que a usam no
presente com objectivos (as cartas, por exemplo) muitos diferentes
das intenções dos seus pios alfabetizadores. Aqui sim, pode afirmar-
se que se virou o feitiço contra o feiticeiro.
Angelo Torre, Il Consumo delle
Devozioni: Religione e Comunità nelle
Campagne dell’Ancien Régime
Robert Rowland

REFERÊNCIA
Angelo Torre, Il consumo delle devozioni: religione e comunità nelle
campagne dell’Ancien régime , Veneza, Marsilio, 1995.
1 Que as práticas religiosas tenham (ou, pelo menos, possam ter) uma
dimensão política, ou que os rituais possam constituir uma
representação das relações entre grupos sociais, não é novidade para
os antropólogos. A investigação desse nexo político constitui, de
facto, muitas vezes o ponto de partida para investigações sobre
fenómenos e práticas rituais quer em sociedades exóticas, quer no
contexto europeu. Sirva como exemplo destas últimas o clássico
estudo de Jeremy Boissevain sobre as relações entre faccionalismo
político e a organização de festas religiosas em Malta (Saints and
Fireworks, Londres, 1965). Com o florescimento relativamente recente
de estudos de antropologia histórica, alguns historiadores
procuraram investigar o mesmo tipo de relação nas sociedades
europeias do passado. Entre outros estudos, merece ser aqui
recordado o ensaio de Giovanni Levi sobre a carreira de um exorcista
no Piemonte de seiscentos (L’Eredità Immateriale, Turim, 1985; trad.
fr. Le Pouvoir au Village, Paris, 1989), onde destaca a importância do
controlo político sobre as actividades das confrarias religiosas. Mas o
estudo de Levi, tal como a maioria dos estudos realizados por
antropólogos, concentra-se sobre o nexo religião-política e sobre as
utilizações políticas de instituições e de rituais de carácter
formalmente religioso no tempo breve. Esta visão puramente
instrumental da relação religião-política reflecte sobretudo as
limitações das fontes de informação disponíveis. Nem o historiador
empenhado numa penosa e minuciosa reconstituição das relações
sociais no interior de uma comunidade, nem — a fortiori — o
antropólogo, cuja investigação se encontra condicionada pelas
possibilidades de observação no terreno, têm a possibilidade de
adoptar um ponto de vista mais distanciado do ponto de vista
temporal e de investigar a interdependência de médio e longo prazo
entre as esferas política e religiosa.
2 O recente estudo de Angelo Torre sobre a religiosidade popular no
Piemonte nos séculos XVI, XVII e XVIII pretende justamente examinar
essa relação na sua dinâmica de longo prazo, utilizando para o efeito
a documentação das visitações pastorais entre 1570 e 1770. A fonte,
já abundantemente utilizada por historiadores para o estudo das
crenças e superstições populares, é aqui objecto de uma leitura
brilhante e inesperada. Concentrando-se sobre aquelas partes da
documentação geralmente menosprezadas por historiadores — as
minuciosas descrições do estado de conservação de cada igreja e
capela, dos respectivos altares e ornamentos, da organização de
procissões, etc. — e através de uma análise extensiva,
simultaneamente topográfica e diacrónica, o autor reconstrói, à
maneira de um arqueólogo, a distribuição no espaço piemontês, e a
evolução ao longo dos dois séculos que se seguiram ao Concílio de
Trento, das formas de devoção popular, relacionando-as com
fenómenos de carácter político, como a construção do território, as
dinâmicas dos grupos de parentesco e dos mecanismos de sucessão e
as relações centro-periferia durante a construção do Estado
moderno. Falta aqui espaço para mencionar exemplos específicos das
relações evidenciadas neste estudo. Mas pelo seu alcance mais geral
valerá a pena recordar a análise cuidadosa da maneira como, no
período que se seguiu a Trento, a Igreja logrou impor formas de
devoção baseadas no culto da eucaristia e no fortalecimento do papel
da paróquia, em substituição de formas de devoção anteriores de
carácter comunitário dedicadas ao culto do Espírito Santo e
caracterizadas pela distribuição ritual de alimentos por altura de
Pentecostes (tentando ao mesmo tempo transformar estas últimas
em manifestações de caridade), ou a demonstração de que as
discussões a respeito do carácter legitimador do sagrado, e das suas
fronteiras, tenham constituído um dos eixos principais da política
local nesta época.
3 Trata-se, em resumo, de um livro importante: não apenas pelo seu
contributo para a renovação metodológica no campo da história
social, como também, e sobretudo, pelo modo como exemplifica a
contribuição potencial dos estudos de antropologia histórica, em
particular daqueles que não menosprezem a importância da
dimensão temporal, para o enriquecimento da própria antropologia.
Inês Salema Meneses e Paulo
Daniel Mendes, Se o Mar Deixar:
Comunidade e Género numa Povoação
do Litoral Alentejano
Francisco Oneto Nunes

REFERÊNCIA
Inês Salema Meneses, Paulo Daniel Mendes, Se o Mar Deixar:
Comunidade e Género numa Povoação do Litoral Alentejano , Lisboa,
Edições do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa,
1996.
1 Como é sabido, a antropologia que se tem vindo a praticar em
Portugal há duas décadas tem-se debruçado, quase exclusivamente,
sobre universos rurais. A despeito da fama de país marinheiro e de
uma história geograficamente condicionada pela presença do
oceano, as comunidades piscatórias do nosso extenso interface
litoral não têm merecido a devida atenção pela parte dos
investigadores. O presente trabalho de Inês Salema Meneses e Paulo
Daniel Mendes surge, pois, como uma lufada de ar fresco neste
panorama. Trata-se de um ensaio etnográfico dedicado a uma
pequena povoação do concelho de Odemira — a Azenha — onde a
pesca constitui uma actividade muito recente, o que permitiu aos
investigadores situarem-se de forma peculiar na sua abordagem ao
terreno. Os pontos fortes deste estudo centram-se nos processos de
construção simbólica da comunidade, com destaque especial para a
análise das ideologias de género — temática esta, aliás, que foi
também abordada por autores estrangeiros (Sally Cole,
nomeadamente), que publicaram monografias sobre comunidades
piscatórias portuguesas e com os quais o presente trabalho mantém
um excelente nível de diálogo crítico. As elaborações em torno da
esfera conjugal e da densa trama de produção, negociação e partilha
de sentidos que operam a mediação entre estas relações diádicas e o
conjunto mais vasto de unidades domésticas são tratadas com
grande rigor e equilíbrio descritivo. Assim, o público e o privado, a
solidariedade e o conflito, a cooperação e a competição, formam uma
matriz de contrastes que nos leva a uma perspectiva histórica e
sociologicamente esclarecedora acerca dos processos de
autoprodução simbólica da identidade comunitária, isto é, sobre o
trabalho no mar: “A Azenha do Mar resulta da descoberta de uma
oportunidade económica: a pesca” (p. 97).
2 Este ensaio beneficia ainda de uma resenha bibliográfica sobre a
antropologia das pescas, assim como de um espaço introdutório em
que se procura “situar a temática das pescas na literatura
antropológica” (p. 20). Faço minhas as palavras finais do prefácio
escrito por João de Pina Cabral e Antónia Pedroso de Lima:
Na nossa opinião, a maturidade de uma tradição científica disciplinar — e muito
particularmente de uma tradição etnográfica — não se pode medir pela
quantidade de estudos realizados, nem até pela qualidade intrínseca de cada um
deles, mas antes pela forma como, do seu inter-relacionamento, surgem novas
temáticas e novas propostas teóricas. Para que tal ocorra, tem de haver
interconhecimento, tem de haver diálogo, debate e polémica. A nossa esperança
é que estudos exploratórios como este possam ter esta função fertilizadora,
dando vida a uma área disciplinar que em Portugal tem vindo a primar mais pelo
silenciamento mútuo do que pelo diálogo criativo (p.16).

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