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COMPARADO
Salah H. Khaled Jr.325
1. INTRODUÇÃO
Aprendemos a estudar Direito dentro de um recorte estritamente nacional, restrito ao ordenamento
jurídico pátrio. Os tratados internacionais de maior importância raramente são estudados em
profundidade, quem dirá os sistemas jurídicos de outras nações. Apesar disso, a importância dos estudos
no campo do Direito Comparado é inegável, ainda que seja escassa a produção acadêmica brasileira na
área. No que se refere ao âmbito jurídico-penal, vários trabalhos de relevo foram publicados nos últimos
anos, merecendo especial destaque “Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal”, de Aury Lopes Jr
e “Legalidade, Oportunidade e Consenso no Processo Penal” de Nereu José Giacomolli. São obras que rompem
com o pensamento jurídico monolítico preso a um recorte exclusivamente nacional e observam – desde
seus respectivos enfoques teóricos – os sistemas de vários países, representando contribuições
significativas às questões abordadas.
Em julho de 2016, um grupo significativo de processualistas penais brasileiros viajou a Santiago, no
Chile, para fazer um curso sobre a reforma processual penal chilena. O que aprenderam lá representou
um choque cultural significativo e uma oxigenação democrática necessária: ficou mais claro do que nunca
o quanto é autoritário e arcaico o sistema processual penal brasileiro. Voltaram do Chile revigorados e
repletos de argumentos para combater a intensificação do processo penal de matriz inquisitória e fascista
que ainda prospera no Brasil.
Apesar da existência de algumas obras de peso, a tradição jurídica brasileira costuma dar pouca
importância ao Direito Comparado, algo que é muito distinto da realidade acadêmica europeia. É comum
que uma disciplina de Direito Comparado integre o currículo dos cursos de direito de universidades
europeias, sendo que a discussão da tradição comparatista é considerada como algo essencial à própria
formação de jurista.
Com certeza é uma abordagem que particularmente pode ser de grande valia para minimizar os
problemas de (de)formação que são tão comuns aos bacharéis em direito: mostrando como os sistemas
poderiam ser construídos de forma fundamentalmente distinta, mostram a complexidade que permeia o
Direito e abalam conceitos que normalmente desfrutam de prestígio inatacável. Em outras palavras, o
Direito Comparado pode ser um saudável fator de incerteza para a perpetuação de sistemas jurídicos que
não favorecem a liberdade.
Ferreira de Almeida designa ao Direito Comparado o que chama de função de cultura jurídica,
considerada por ele como provavelmente a mais importante e certamente a mais nobre das funções do
Direito Comparado. Para o autor, o Direito Comparado é ciência auxiliar de todas as disciplinas jurídicas.
325 Professor adjunto de Direito penal, Criminologia, Sistemas Processuais Penais e História das Ideias Jurídicas da Universidade Federal
do Rio Grande – FURG. Professor Permanente do Mestrado em Direito e Justiça Social da Universidade Federal do Rio Grande –
FURG. Doutor e Mestre em Ciências Criminais (PUCRS). Mestre em História (UFRGS). Especialista em História do Brasil (FAPA).
Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais (PUCRS). Licenciado em História (FAPA). Líder do Grupo de Pesquisa Hermenêutica e
Ciências Criminais (FURG/CNPq).
No limite, poderá dizer-se – com Zweigert – que, sem Direito Comparado, não há verdadeira ciência
jurídica. O autor chama atenção para o fato de que as concepções e soluções do direito nacional não são as
únicas concebíveis e nem sempre são as melhores; a formação comparativa contraria as tendências para a
auto-suficiência e o chauvinismo, o isolacionismo e o provincianismo.326
O Direito Comparado tem aptidão para ser uma via de conhecimento crítico do direito. Como refere
Muir Watt, é urgente retirar essa disciplina da sombra, do estatuto de parente pobre que ainda tem em
relação a outras matérias julgadas mais sérias, imediatamente mais úteis, notadamente no currículo
universitário, mas também, talvez, entre as fontes de inspiração das decisões judiciárias.327
326 FERREIRA DE ALMEIDA, Carlos. Introdução ao Direito Comparado. Coimbra: Almedina, 1998. p.19. Para Jimenez Serrano, “no
mundo acadêmico (universitário) o Direito Comparado pode ser visto como disciplina jurídica que possibilita ao estudante novos
conhecimentos sobre regras e conceitos específicos”. JIMENEZ SERRANO, Pablo. Como Utilizar o Direito Comparado para a
Elaboração de Tese Científica. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p.18.
327 MUIR WATT, Horatia. La Fonction Subversive Du Droit Comparé. In: Revue Internationale de Droit Comparé. Anne 2000, V.52
nº3.
328 JIMENEZ SERRANO, Op. Cit. p.5.
329 SACCO, Rodolfo. Introdução ao Direito Comparado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p.27.
330 Ibid., p.26.
331 ANCEL, Marc. Utilidade e Métodos do Direito Comparado. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1980. p.15.
332 Ibid., pp.18-19.
333 Ibid., pp.15-16.
Neste trecho Ancel está referindo o problema da finalidade, que historicamente se mostrou apto a
gerar enormes polêmicas quanto à validade das comparações jurídicas e especialmente, no que diz respeito
ao seu estatuto científico. De acordo com o autor, são basicamente três as principais críticas levantadas
contra toda pesquisa jurídica comparativa334:
a) O direito nacional já é, por si só, suficientemente complexo, ainda mais em tempos de inflação
legislativa.
b) A pretensa ciência comparativa comporta a ilusão de querer conhecer e assimilar o direito estrangeiro.
Importações apressadas e graves erros fazem do Direito Comparado uma fonte de grande confusão.
c) O direito de um país faz parte de seu patrimônio nacional: é fruto da tradição da sociedade onde se
aplica. Em vez de aproximá-lo dos outros sistemas, deve ser defendido de toda alteração vinda do
estrangeiro.
Ancel considera que a última oposição é na realidade a principal. O jurista sempre é mais ou menos
xenófobo em Direito: sua ordem jurídica lhe parece necessária e se lhe afigura justificada pela sua própria
existência. Para Ancel, é contra tal posição que se deve reagir. A ciência pura não conhece fronteiras, nem
línguas, nem políticas. Por que a ciência jurídica deveria se aprisionar nos limites de um só Estado?335 Sixto
Sanchez Lorenzo afirma que embora o conceito de globalização não seja dos seus preferidos, suas
consequências são evidentes. Portanto, como é possível sustentar o isolamento da ciência jurídica com base
no nacionalismo e no positivismo (ideia de direito como direito nacional, por excelência) diante desse
contexto de complexidade?336 Em sentido semelhante, Horatia Muir Watt, em um artigo com o sugestivo
nome de “A Função Subversiva do Direito Comparado”, assinala que a comparação jurídica é uma fonte de
interrogação, de reflexão e de abertura benéfica, portadora de uma mensagem de interdisciplinaridade,
capaz de liberar o raciocínio jurídico de certas opressões conceituais esclerosantes e de abrir outras
possibilidades de leitura. O autor sustenta que a “comparação se engaja contra o dogmatismo, contra os
estereótipos, contra o etnocentrismo, isto é, contra a convicção propagada (seja qual for o país), segundo a
qual as categorias e os conceitos nacionais são os únicos possíveis”.337 Segundo Muir Watt, a riqueza da
comparação jurídica está em revelar a riqueza de um sistema jurídico, escondida por detrás da aparência
redutora, para denunciar em seguida a parcialidade do discurso positivo.338 Para ele, “Tendo visto e
entendido o outro, a percepção pelo comparatista de si mesmo ou do seu próprio direito se acha alterada.
Um dos avanços mais importantes do pensamento comparativo contemporâneo consiste precisamente na
atenção dada a esta percepção crítica da sua própria realidade jurídica informada por um olhar para o
outro”.339
Jescheck também vê no Direito Comparado um importante instrumento de conhecimento, afirmando
que “como existe uma Teoria Geral do Estado e uma Teoria Geral da Economia política, deve ser possível
também uma Teoria Geral do Direito Penal, e na verdade uma que construa não apenas pressupostos
filosóficos-gerais, mas que parta de fundamentos empíricos-comparados”.340 Segundo Marc Ancel, há uma
série de vantagens e benefícios que advém do Direito Comparado341:
342 DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p.2.
343 MAYDA, Jaro. Algunas Reflexiones Críticas sobre el Derecho Comparado Contemporáneo. In: Boletín Mexicano de Derecho
Comparado. nº. 9, 1970.
344 ANCEL, Op. Cit. pp.18-19.
O Direito Comparado ganhou existência efetiva – ainda que com o estatuto científico em questão –
no século XIX.345 Segundo Jescheck, “o Direito Comparado, no sentido de um método geral, sistemático e
decisivo em razão do emprego de meios técnicos valiosos, começou a se mover somente no século XIX”.346
Para René David, apesar de alguns importantes precedentes, o desenvolvimento do Direito Comparado
como ciência é um fenômeno recente: “há somente um século a importância dos estudos de Direito
Comparado foi reconhecida, o método e os objetivos do Direito Comparado foram sistematicamente
estudados, a própria expressão Direito Comparado foi acolhida e entrou em uso”.347
Ainda que com algum atraso, o fato é que a perspectiva comparatista se desenvolveu quase que
simultaneamente ao surgimento do direito moderno. No entanto, trata-se de um desenvolvimento que se
deu de forma bastante distinta na França e na Alemanha, o que pode ser percebido através dos estudos de
Jescheck e Ancel. Assim, embora já existisse – pelo menos de forma embrionária – um Direito Comparado
no século XIX, seu significado e propósito estavam longe de ser unívocos.
O nascente direito moderno, diante de um modelo cientificista orientado de acordo com o estipulado
pelas chamadas ciências naturais, via-se diante de um problema comum aos vários saberes que se
formavam nos oitocentos: buscava-se a constituição e legitimação de um campo de saber, de um campo
científico. O século XIX foi marcado pela constituição de campos de saber, de disciplinas, de áreas de
atuação de cada ciência, bem como da sua autonomia face às demais. Essa ambição científica esteve
profundamente ligada ao positivismo. Segundo Bobbio, o termo é derivado da contraposição entre direito
positivo e direito natural.348
Resumidamente, foi a partir da afirmação do direito positivo e afastamento das demais fontes que o
direito passou a ser inserido no modelo científico do século XIX. O espírito da codificação nasceu ligado
justamente a essa pretensão científica. Pretendia-se que o direito positivo fosse simples, objetivo e de
aplicabilidade imediata, deixando para trás a interpretação e a pluralidade, que de acordo com aquele
paradigma, conduziam à arbitrariedade.349 Tal crença vinculava-se à pretensão de separação entre
observador e objeto, de forma que o conhecimento científico objetivo implicava a eliminação do indivíduo
e da subjetividade, sendo perturbador quando havia um sujeito nessa relação, pois o mesmo era visto
como um ruído indesejado. Constituía-se assim a grande dicotomia moderna, expressada pelo binômio
sujeito/objeto e razão/emoção. De acordo com essa linha de pensamento, gradativamente era construído
um virtual “amordaçamento” dos juízes e uma exclusão de todas as fontes de interpretação que não a lei
positivada, intenção que foi atingida a partir da codificação, com o Código Napoleônico de 1804.
345 Segundo René David, “a comparação dos direitos, considerados na sua diversidade geográfica é tão antiga como a própria ciência do
direito. O estudo de 153 constituições que regeram cidades gregas ou bárbaras serviu de base ao Tratado que Aristóteles escreveu
sobre a política; Sólon, diz-se, procedeu do mesmo modo para estabelecer as leis de Atenas, e os decênviros, segundo a lenda, só
conceberam a Lei das XII Tábuas depois de uma pesquisa por eles levada a cabo nas cidades da Grande Grécia. Na Idade Média
comparou-se direito romano e direito canônico, e o mesmo aconteceu na Inglaterra onde se discutiu, no século XVI, sobre os méritos
comparados do direito canônico e da common law. A comparação dos costumes serviu, mais tarde, de base aos trabalhos daqueles
que procuram conservar na França um direito comum consuetudinário, na Alemanha um Deutsches Privatrecht. Finalmente,
Montesquieu esforçou-se, pela comparação, por penetrar no espírito das leis e descobrir os princípios de um bom sistema de governo.
DAVID, Op. Cit. p.1.
346 JESCHECK, Op. Cit. p.20
347 DAVID, Op. Cit. p.1.
348 Para Bobbio, “o positivismo jurídico é uma concepção de direito que nasce quando ‘direito positivo’ e ‘direito natural’ não são mais
considerados direito no mesmo sentido, mas o direito positivo passa a ser considerado como direito em sentido próprio. Por obra do
positivismo jurídico ocorre a redução de todo o direito a direito positivo , e o direito natural é excluído da categoria do direito. A partir
desse momento o acréscimo do adjetivo ‘positivo’ ao termo ‘direito’ torna-se um pleonasmo mesmo porque, se quisermos usar uma
fórmula sintética, o positivismo jurídico é aquela doutrina segundo a qual não existe outro direito senão o positivo”. BOBBIO,
Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1999. p.26.
349 Bobbio afirma que “[...] a concepção racionalista considerava a multiplicidade e a complicação do direito um fruto do arbítrio da
história. As velhas leis deviam, portanto, ser substituídas por um direito simples e unitário, que seria ditado pela ciência da legislação,
uma nova ciência que, interrogando a natureza do homem, estabeleceria quais eram as leis universais e imutáveis que deveriam regular
a conduta do homem. Os iluministas estavam, de fato, convencidos de que o direito histórico, constituído por uma selva de normas
complicadas e arbitrárias, era apenas uma espécie de direito “fenomênico” e que além dele, fundado nas coisas cognoscíveis pela
razão humana, existia o verdadeiro direito”. Ibid., p.65.
Diante desse contexto, o Direito Comparado encontrou grandes dificuldades para florescer na
França. Como aponta Ancel, a partir da promulgação do código de 1804 os juristas franceses mantiveram
por muitas gerações à exegese desse monumento legislativo, acreditando que nele tudo estava ou devia se
deduzir, sem nenhum apelo a outros textos.350 O positivismo jurídico clássico teve o seu desenvolvimento
diretamente relacionado com a codificação, o que levou inclusive à afirmação do dogma da completude
do direito, que estaria completamente inserido nos respectivos códigos. Conforme Ancel, se a influência
exterior do código de 1804 foi grande, não resta dúvida que a política das nacionalidades teve, em seguida,
a consequência de provocar, ou de acentuar, o isolamento das legislações e, portanto, gerar um clima
desfavorável para a comparação jurídica, que se manteve por muitas décadas.351 Segundo René David, “o
desenvolvimento do Direito Comparado foi uma reação contra a nacionalização do direito que se produziu
no século XIX”.352
O primeiro desenvolvimento significativo do Direito Comparado na França ocorre em 1869, quando
é constituída uma Sociedade de Legislação Comparada, cuja criação foi frequentemente considerada como
símbolo do surgimento do Direito Comparado. No mesmo ano foi criada, na Inglaterra, em Oxford, a
primeira cadeira de Direito Comparado, intitulada “Historical and Comparative Jurisprudence”.353
A Sociedade de Legislação Comparada destacou a necessidade de conhecer a legislação e a maneira
de viver de seus vizinhos, tendo como objeto o estudo das leis dos diferentes países e a pesquisa dos meios
práticos de aprimorar os diversos ramos da legislação. Para Ancel, “surge assim, uma primeira concepção
da utilidade do Direito Comparado, qual seja a de informar, de maneira precisa e rigorosa, sobre as
instituições estrangeiras e procurar, nas experiências dos outros países, os meios técnicos de suprir as
lacunas e imperfeições do direito nacional”.354 Trata-se de uma perspectiva que permanecia presa à ótica
do direito nacional, mas que já conformava um avanço diante do isolacionismo provocado pela idolatria
do Código de 1804, corretamente apontada por muitos como um fetiche da lei.
Na Alemanha a codificação foi retardada em praticamente um século pela escola histórica do direito,
cujo maior representante foi Savigny. A escola histórica adotou uma posição de conservadorismo diante
dos ideais revolucionários franceses, o que está relacionado ao contexto histórico da Alemanha não
unificada. Enquanto na França a codificação foi bem sucedida, gerando o primeiro Código da
modernidade em 1804 (Código Civil Napoleônico), na Alemanha a codificação somente se concretizou no
final do século XIX. Como refere Ancel, a ausência de codificação poderia auxiliar no desenvolvimento do
comparativismo, mas pela influência da escola histórica de Savigny (que considerava o direito como
resultado necessário da organização interior da nação e de sua história) prevaleceu um historicismo
fechado sobre si mesmo, no qual o Direito deriva menos das leis existentes do que dos fundamentos e
exigências inelutáveis. Como o autor assinala, qual o interesse então em se preocupar com leis
estrangeiras?355
No entanto, apesar do que aponta Ancel, é importante citar que havia exceções dentro desse contexto:
como refere Jescheck, Feuerbach não desprezava a experiência do método jurídico comparado e inclusive
o utilizava na disputa jurídico-política do seu tempo acerca da reforma do processo penal.356 Outro
exemplo pode ser encontrado em Karl Joseph Anton Mittermaier, que é lembrado por Jescheck e também
por Ancel. Mittermaier é considerado o criador da apresentação comparada na Alemanha. Tornou o
método jurídico-comparado sua principal arma na luta pela reforma do processo comum, avançando do
Direito francês para os sistemas processuais americano, inglês e escocês. Mittermaier apresentou como
391 Sobre este terrível período ver MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger e o Direito Penal de seu Tempo. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2005.
392 ANCEL, Op.Cit. p.37.
393 JESCHECK, Op.Cit. p.32.
394 ANCEL, Op.Cit. p.37.
395 JESCHECK, Op.Cit. p.36.
396 ANCEL, Op.Cit. p.38.
397 ANCEL, Op.Cit. p.44.
não de especulações metodológicas.398 Trata-se da obsessão em torno da finalidade do Direito Comparado,
que é criticada duramente por Sacco: “[...] existem aqueles que acreditam tecer um elogio todo especial à
comparação, ao enumerar-lhe as finalidades conexas com várias formas de progresso e profilaxia social,
entre as quais se destacam a melhor compreensão entre os povos, a criação de um melhor direito
internacional público, a uniformização e a unificação das normas jurídicas e o aperfeiçoamento do direito
nacional [...] Há quem queira condicionar o próprio reconhecimento da validade científica da comparação
à sua capacidade de atingir esta ou aquela finalidade prática – preparando em concreto, o advento de um
direito melhor [...] a especulação sem objetivo a respeito dos modelos jurídicos de diversos ordenamentos
seria puro empirismo ou um exercício erudito, mas não ciência”.399
O problema de exigência de uma finalidade prática para o Direito Comparado é, sem dúvida, um
dos mais marcantes da história dessa disciplina e algo que costuma ser levantado como critério máximo
de sua legitimidade científica; motivo pelo qual a crítica de Sacco é mais do que acertada. Finalidade
prática e estatuto científico não são termos equivalentes. Nesse sentido, Ferreira de Almeida sustenta que:
“Uma perspectiva mais céptica, que é também a mais divulgada, afirma que o Direito Comparado deve
ter aspirações mais realistas. Como sucede em outras ciências, a investigação pode dirigir-se a finalidades
utilitárias (relativas aos direitos nacionais, à uniformização e harmonização de direitos, à construção de
regras de aplicação subsidiária) ou ter uma função “pura”, de natureza cultural, em que está ausente
qualquer objetivo pragmático”.400
A posição de Ferreira de Almeida parece ser a mais condizente: de um lado não nega uma eventual
finalidade prática, mas não considera que esta é constitutiva ou necessária ao conhecimento construído
pela atividade dos comparatistas.
Após a Segunda Guerra Mundial surgem modificações significativas quanto aos propósitos e
enfoque do Direito Comparado. No entanto, tais modificações em nada diminuem a controvérsia em torno
de sua cientificidade: pelo contrário, é a partir daí que ela é colocada em questão de forma mais aguda.
Surge a Escola Crítica, cujo caráter é acentuadamente contestatório e marca o rompimento com as
concepções anteriores. Em 1946 é publicada a célebre obra Comparative Law, onde H.C. Gutteridge afirma
que o Direito Comparado não é, como se afirmava até então, um ramo autônomo da ciência jurídica: ele
consiste unicamente no emprego de um método particular, o método comparativo, o qual pode – e deve –
ser usado em todos os ramos do direito. 401 O estatuto científico do Direito Comparado é colocado em
xeque de forma inédita até então, inaugurando uma polêmica que não pode ser considerada assentada até
os dias de hoje.
Essa doutrina pôs fim a algumas controvérsias estéreis e produziu três consequências importantes:
a) o método comparativo, essência e substância do novo Direito Comparado, deve ser definido,
aprofundado e mesmo ensinado por si só; b) o método comparativo pressupõe o conhecimento exato dos
dois termos da comparação, isto é, do direito nacional, do qual parte naturalmente o jurista, e também do
ou dos direitos que se pretende com ele comparar; e este conhecimento não compreende regras que devem
ser justapostas, mas o conjunto do sistema estrangeiro sob a ótica de sua estrutura, de suas fontes, de seu
conhecimento efetivo; c) Daí a importância primordial reconhecida ao estudo dos sistemas de direito
estrangeiro, que bem cedo se tornou o objeto primeiro, senão, talvez, até o objeto único do Direito
Comparado em sua nova acepção.402 O sucesso dessa teoria crítica foi enorme, sobretudo junto àqueles
que, por diversas razões, desconfiavam de toda aproximação unificadora das legislações.403
A teoria crítica parte de uma dupla constatação: após cinquenta anos, ainda não se chegou a formular
uma definição de Direito Comparado aceita por todos e as discussões metodológicas sobre a função, a
436 Ibidem.
437 JESCHECK, Op.Cit. p.53.
438 Ibid., pp.53-54.
439 MUIR WATT, Op.Cit.
440 Segundo Jescheck, “o Direito Comparado deve se utilizar dos mais modernos meios técnicos de auxílio, para não ser vencido pela
abundância de material e para não cair tão facilmente em erros. O fundamento imprescindível é um Instituto eficiente constituído por
uma boa e abastada biblioteca de Direito Estrangeiro, que deve ser complementada permanentemente pelo estudo cuidadoso das
notícias bibliográficas sobre as obras estrangeiras. A análise constante do material das revistas, incluindo a parte jurisprudencial, só
pode ser realizada através do trabalho de grupo. Deste modo pode-se solucionar também o problema da linguagem, na medida em que
se distribui os âmbitos de trabalho de acordo com a linguagem do grupos”. JESCHECK, Op.Cit. p.55.
441 FERREIRA DE ALMEIDA, Op.Cit. p.24.
442 Conforme Jescheck, “O nível fundamental constitui o próprio ponto de partida dogmático e político-criminal. Ele serve como hipótese
de trabalho e sua função metodológica é a de um ponto de referência (tertium comparationis), de acordo com o qual nos orientamos
no estudo do Direito estrangeiro. Com isso é preciso tomar cuidado antes de querer impor ao Direito estrangeiro o próprio mundo
conceptual e a própria sistemática”. JESCHECK, 2006. p.56.
443 A este liga-se o nível do trabalho exegético com o Direito estrangeiro, que metodologicamente corresponde ao trabalho com o próprio
Direito quando não se está obrigado a investigar alguma particularidade e a tomar cuidado, ao querer tornar algo melhor ou diferente
do representado no próprio Direito estrangeiro. [...] O trabalho no Direito estrangeiro também possui suas particularidades
metodológicas. Alguns Direitos, particularmente como o anglo-americano, são compreensíveis apenas pelos seus fundamentos
históricos. Além disso, muitas vezes o estrato sociológico de um ordenamento jurídico ganha significação através da comparação.
JESCHECK, Op.Cit. p.57.
sustenta que “O Direito Comparado é um método universal de altíssimo valor para todos os ramos da
ciência jurídica. O Direito Penal deve a ele, há mais de um século, a ampliação extraordinária do seu campo
de visão e uma série de ideias. O trabalho de comparação cria contrapesos contra a supervalorização da
própria dogmática e do seu mundo conceptual, ele desperta a atenção para temas centrais que em outros
locais estão em primeiro plano, e nos dá a possibilidade de empreender conjuntamente com o estrangeiro
as tarefas que se apresentam à cooperação internacional no âmbito do Direito Penal. O Direito Comparado
é uma ponte para o mundo, um campo de desafio pacífico dos povos em prol de um Direito Penal melhor
e mais humano, um local de intercâmbio, onde a Alemanha é chamada para dar e obter consciência de
uma grande tradição”.444
De tudo que foi dito, merece menção especial o chamado às armas de Muir Watt, que refere que a
mensagem subversiva é simples, mas forte: “devemos olhar alhures, comparar; interrogar-nos sobre as
alternativas – para aumentar a perspectiva tradicional, enriquecer o discurso jurídico e lutar contra os
hábitos de pensamento esclerosantes”.445 Talvez tenha sido justamente por isso que Rodolfo Sacco
preveniu com justificado entusiasmo que nada mais seria igual após a comparação: ela introduz uma
saudável incerteza e complexidade na enfadonha normalidade dos sistemas jurídicos nacionais.
6. REFERÊNCIAS
ANCEL, Marc. Utilidade e Métodos do Direito Comparado. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1980.
FERREIRA DE ALMEIDA, Carlos. Introdução ao Direito Comparado. Coimbra: Almedina, 1998.
FIX-ZAMUDIO, Hector. La Modernización de los Estudios Jurídicos Comparativos. In: Boletín Mexicano de Derecho
Comparado. Nueva Serie Año XXII. nº 64 Enero-Abril. Año 1989.
JESCHECK, Hans-Heinrich. Desenvolvimento, Tarefas e Método do Direito Comparado. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris
Editor, 2006.
JIMENEZ SERRANO, Pablo. Como Utilizar o Direito Comparado para a Elaboração de Tese Científica. Rio de Janeiro: Forense,
2006.
MERRYMAN, John Henry. Fines, Objeto y Metodo del Derecho Comparado. In: Boletin Mexicano de Derecho Comparado -.
Nueva Serie – Año IX.
MAYDA, Jaro. Algunas Reflexiones Críticas sobre el Derecho Comparado Contemporáneo. In: Boletín Mexicano de Derecho
Comparado. nº. 9, 1970.
MUIR WATT, Horatia. La Fonction Subversive Du Droit Comparé. In: Revue Internationale de Droit Comparé. Anne 2000,
V.52 nº3.
SACCO, Rodolfo. Introdução ao Direito Comparado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
SÁNCHEZ LORENZO, Sixto. El Derecho Comparado del Siglo XXI. In: Boletín Mexicano de Derecho Comparado, número
conmemorativo, sexagésimo aniversario.