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Entrevista com Jock Young (in memoriam)


Us
Interview with Jock Young (in memoriam)
oe
EntrEvistaDor
rEné van swaaNiNgEn
Detém a Cátedra de Criminologia Internacional e
xc
Comparada na Erasmus University Rotterdam e é
presidente da Sociedade Holandesa de Criminologia.
vanswaaningen@law.eur.nl
lus
Tradução e introdução de
Salah H. Khaled Jr.
Professor de Criminologia, Direito Penal, Sistemas Processuais
ivo
Penais e História das Ideias Jurídicas, na Universidade Federal
do Rio Grande – FURG. Doutor e mestre em Ciências Criminais
(PUCRS, 2011 e 2008), mestre em História (UFGRS, 2007) e
Fonte: [http://criticalcrim.blog- presidente do Instituto Brasileiro de Criminologia Cultural.
spot.com/2014/07/rip-jock-you- ORCID ID: 0000-0003-4918-1060.
Lattes: [http://lattes.cnpq.br/6155872393221444].
IB

ng-lets-get-on-with-it.html].
salah.khaledjr@gmail.com

DOI: [https://doi.org/10.54415/rbccrim.v193i193.219].
CC

Resumo: William Stewart “Jock” Young faleceu Abstract: William Stewart “‘Jock”’ Young passed
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em 16 de novembro de 2013 em Nova York. Sua away on November 16, 2013 in New York City.
carreira acadêmica se iniciou com a conquista de His academic career began with winning a place
uma vaga na University College London para es- at University College of London to study bio-
tudar bioquímica, mas um encontro casual com chemistry, but a chance meeting with radical
o criminologista radical Steve Box o convenceu a criminologist Steve Box convinced him to switch
mudar para a sociologia. Em 1962, matriculou-se to sociology. In 1962, he enrolled at the London
na London School of Economics, onde se inspirou School of Economics, where he was inspired by
nos novos desenvolvimentos da sociologia ame- new developments in American sociology. Equal-
ricana. Igualmente significativa foi a revolução ly significant was the countercultural revolution
contracultural que ocorreu fora da universidade; that took place outside the university; and this is
e foi isso que inspirou Jock a cofundar a primeira what inspired Jock to co-found the first National

van SwaaNiNGen, René. Tradução e introdução de: Khaled Jr., Salah H.


Entrevista com Jock Young (in memoriam).
Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 193. ano 30. p. 269-278. São Paulo: Ed. RT, nov./dez. 2022.
DOI: [https://doi.org/10.54415/rbccrim.v193i193.219].
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National Deviancy Conference (NDC) em 1968. Deviancy Conference (NDC) in 1968. Avowedly
Declaradamente anti-institucional e altamente anti-institutional and highly critical of orthodox
crítica da criminologia ortodoxa, a NDC instigou criminology, the NDC instigated a decade-long
uma série de conferências interdisciplinares de interdisciplinary conference series based on
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uma década com base em pesquisas emergentes. emerging research.
Palavras-chave: Desvio – Significado – Crimi- Keywords: Deviation – Meaning – Criminolo-
nologia – Criminologia crítica – Realismo de es- gy – Critical criminology – Left realism – Cultural
querda – Criminologia cultural. criminology.
oe
Sumário: 1. Introdução. 2. Uma entrevista com Jock Young. 3. Referências.
xc
1. Introdução
William Stewart “Jock” Young faleceu em 16 de novembro de 2013 em No-
lus
va York. Sua carreira acadêmica se iniciou com a conquista de uma vaga na Uni-
versity College London para estudar bioquímica, mas um encontro casual com
o criminologista radical Steve Box o convenceu a mudar para a sociologia. Em
1962, matriculou-se na London School of Economics, onde se inspirou nos novos
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desenvolvimentos da sociologia americana. Igualmente significativa foi a revo-


lução contracultural que ocorreu fora da universidade; e foi isso que inspirou
Jock a cofundar a primeira National Deviancy Conference (NDC) em 1968. De-
claradamente anti-institucional e altamente crítica da criminologia ortodoxa, a
NDC instigou uma série de conferências interdisciplinares de uma década com
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base em pesquisas emergentes. Na NDC, em 1968, Jock apresentou seu primei-


ro trabalho, The Role of Police as Amplifiers of Deviancy, que serviu de base para
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o seminal The Drugtakers (1971), um estudo inovador da contracultura boêmia


na Notting Hill dos anos 1960. Esse texto, juntamente com Folk Devils and Moral
Panics (1972), de autoria de seu grande amigo Stanley Cohen, introduziu o con-
ceito de “pânico moral”, um dos poucos conceitos criminológicos a serem ado-
tados para uso geral fora do meio acadêmico. Igualmente influente foi o próximo
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trabalho de Jock, The New Criminology (1973, em coautoria com Paul Walton e
Ian Taylor), que infundiu a criminologia com uma agenda marcadamente crítica.
Jock era um dos vários graduados radicais da LSE que havia fugido para a Mid-
dlesex Polytechnic (agora Middlesex University), onde o departamento de ciências
sociais era um viveiro de pensamento radical e socialista. Logo depois de chegar,
ele montou um dos primeiros programas de mestrado em criminologia na Grã-
-Bretanha. Na década de 1980, dirigiu o Centro de Criminologia em Middlesex.
Durante esse período, Jock lançou as bases para uma criminologia “realista” en-
gajada. Na década de 1980, ele conduziu pesquisas sobre vítimas de crimes em
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vários bairros de Londres e atuou como consultor formal da Autoridade de Polí-


cia Metropolitana.
Nos últimos anos de carreira, sua trajetória acadêmica em sociologia e crimi-
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nologia convergiu para os contornos emergentes da abordagem teórica, metodo-
lógica e intervencionista conhecida como criminologia cultural, como pode ser
visto em principalmente em “Merton with energy, Katz with structure: The sociol-
ogy of vindictiveness and the criminology of transgression” (2003), “The Vertigo of
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Late Modernity” (2007), “The Criminological Imagination” (2011), e na colabora-
ção com Keith Hayward, “Cultural criminology, some notes on the script” (2004),
um movimento que já era visível em The Exclusive Society: Crime and Difference
in Late Modernity (1999).
xc
René van Swaaningen entrevistou Jock em 2011 para a revista holandesa de
Criminologia Cultural e gentilmente cedeu os direitos de publicação dessa en-
lus
trevista para o dossiê de criminologia cultural da Revista Brasileira de Ciências
Criminais. A entrevista abrange muitos elementos de sua enorme herança para o
campo da criminologia.
ivo

2. Uma entrevista com Jock Young


Eu vi Jock pela última vez em abril de 2013 na Universidade de Kent, em uma
sessão de estudo comum de nosso programa de mestrado internacional conjun-
to, o “Programa de Estudo Comum em Criminologia Crítica”, no qual estudantes
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e funcionários de nove universidades de países europeus e uma norte-americana


têm se reunido duas vezes por ano em uma das universidades participantes desde
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meados da década de 1980. Nesse período representei a Universidade Erasmus


Rotterdam, e Jock sucessivamente Middlesex, John Jay College da CUNY e Kent.
Jock acabara de passar por uma cirurgia no quadril. Ele parecia um pouco frágil e
pálido, mas em todos os outros aspectos era absolutamente o Jock que eu conhe-
cia: perspicaz e irônico, com um olhar um pouco malandro e expressivo. Senta-
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do calmamente no bar do hotel com um copo de vinho branco seco, tivemos uma
conversa bastante séria e noturna sobre todos os camaradas do National Deviance
Conference que infelizmente faleceram no ano passado. Eu não imaginava então
que Jock seria o próximo herói a “cair”.
RvS: Você atua na criminologia há 40 anos. Geralmente, essa longevidade
é uma receita perfeita para uma atitude rotineira de “já vi tudo que tinha para
ver”. No entanto, quando leio seu trabalho recente, não sinto nada disso. Você
ainda parece muito envolvido com o que está fazendo e pela criminologia como
disciplina.
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JY: Para mim, o mais importante é provavelmente que a criminologia é sobre


justiça e injustiça em sua forma mais crua e grosseira. Esse tema não condiz com
banalização, pois toca no que eu vejo como o cerne do ser humano. Uma segun-
da coisa que me move é uma irritação crescente com o positivismo ingênuo que
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atualmente domina a criminologia. Para mim, isso equivale ao que representa
um pano vermelho para um touro. Eu tenho algum conhecimento de ciências
naturais, mas sempre me surpreendi com o simplismo com que os cientistas so-
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ciais pensam que podem aplicar métodos das ciências naturais em análises de
processos sociais. Como alguém pode “esquecer” que nossos dados nunca são
tão confiáveis e nossas “leis” nunca tão absolutas como na matemática ou na fí-
sica e, portanto, que todos os nossos resultados representam apenas alguma pa-
xc
ródia de exatidão? No entanto, ao mesmo tempo, essas pessoas fazem enormes
afirmações sobre a “verdade” e dominam o campo, o que eu acho irritante e pre-
judicial. Para mim, humor e raiva são os ingredientes mais importantes para um
lus
bom trabalho acadêmico. Aqueles artigos que você escreveu porque não poderia
dizer “não” dificilmente são bons.
RvS: Você começou como etnógrafo no final dos anos 1960, o que resultou
em seu livro The Drugtakers (YOUNG, 1971). Mais tarde, você causou nada me-
ivo

nos que três revoluções paradigmáticas. Com The New Criminology (TAYLOR
ET AL., 1973), a criminologia crítica foi colocada firmemente no mapa. Por vol-
ta de 1980, o Realismo de Esquerda surgiu com títulos de livros militantes como
Losing the Fight against Crime (KINSEY ET AL., 1986) e What Is to Be Done about
IB

Law and Order? (LEE E YOUNG, 1984). E nos últimos anos você se apresenta,
com títulos como The Vertigo of Late Modernity (YOUNG, 2007) e Criminologia
Cultural: Um Convite (FERRELL; HAYWARD; YOUNG, 2008),1 como um crimi-
CC

nologista cultural. Até que ponto você voltou ao ponto em que começou no iní-
cio dos anos 1970?
JY: Deixe-me começar dizendo que não percebo essas revoluções paradigmá-
ticas. Eu vejo principalmente continuidade no meu trabalho. Claro que há mu-
rim

danças no que você escreve, porque o tempo no qual você escreve mudou. The
Drugtakers (YOUNG, 1971) imediatamente foi um enorme sucesso. Surgiu do
meu trabalho de campo em Notting Hill, que então era o centro de tudo o que que-
ria ser moderno em Londres. O fato de que jovens que não fizeram nada errado
foram presos por tolices como usar maconha foi a faísca que incendiou a ideia de
“pânicos morais”. E, de qualquer forma, 1968 foi a época em que nós – e isso foi

1. Já disponível em língua portuguesa, com tradução da segunda edição ampliada de 2015,


na coleção Crime, Cultura, Resistência, da Editora Letramento.

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Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 193. ano 30. p. 269-278. São Paulo: Ed. RT, nov./dez. 2022.
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realmente amplamente compartilhado entre a população em geral, e certamen-


te entre as pessoas mais jovens – sentimos que a visão “das autoridades” sobre
mudança social estava completamente errada e que os criminologistas deveriam
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olhar da sociedade para os “carros de polícia” em vez de olhar de dentro dos car-
ros de polícia para a sociedade, como era comum até então. Hoje, me sinto mais
próximo desse espírito do que do Realismo de Esquerda, devo admitir.
Mas o Realismo de Esquerda surgiu em um momento bastante estranho. Em
oe
nível nacional tivemos, por volta de 1980, que enfrentar o conservadorismo de
Margaret Thatcher, ao mesmo tempo que a bandeira vermelha foi hasteada nas
principais cidades da Grã-Bretanha. Além disso, com os tumultos em Brixton,
a relação entre os cidadãos e a polícia se deteriorou. Como criminologistas de
xc
esquerda, tivemos que desenvolver uma perspectiva política alternativa. Nas
grandes cidades da Grã-Bretanha, nossos camaradas estavam no poder e nos
perguntavam: “o que devemos fazer em relação ao crime?”. Muitas vezes, is-
lus
so resultava em debates emocionais. Como acadêmicos, sentimo-nos realmen-
te obrigados a responder às suas perguntas muito concretas. Existe uma grande
quantidade de bom senso no Realismo de Esquerda: todo mundo entende que
ivo
a maioria não se sinta muito feliz em um bairro cheio de crimes – apenas crimi-
nologistas críticos muito ingênuos e idealistas se esqueceram disso no final dos
anos 1970. Mas eu não vejo nenhuma mudança de paradigma aqui: no meu ca-
pítulo sobre “Criminologia da classe trabalhadora” (YOUNG, 1975) do nosso li-
vro Critical Criminology você já pode ver os contornos do Realismo de Esquerda.
IB

O surgimento da criminologia cultural no final da década de 1990 é, em mi-


nha opinião, principalmente uma reação ao espírito da época na qual o neoli-
CC

beralismo surgiu como única via e a globalização destruiu as certezas da vida


das pessoas, criando novas identidades híbridas. Naquela época, eu redescobri
alguns velhos “conhecidos”, como Charles Wright Mills, que em seu livro The
Power Elite (1956) criticou a corrupção da democracia pluralista nos Estados
rim

Unidos nos dias da Guerra Fria de McCarthy. Durante a atual camisa de força
neoliberal, em que a contagem de publicações se tornou muito mais importante
do que realmente lê-las, o livro soou alarmantemente pertinente. Mills foi muito
crítico com os acadêmicos americanos em massa se adaptaram às exigências de
McCarthy e de seus cúmplices na academia. E: está acontecendo de novo! Meu
Deus, como são dóceis os acadêmicos de hoje, e criminologistas em particular,
para com todos esses gerentes, controladores e avaliadores! Tomemos o exemplo
de Mills quando ele, em The Sociological Imagination (1959), delineia a relação
entre a própria experiência, a imaginação para mudar as coisas e a estrutura em
que isso deve ocorrer. Na verdade, é bem revelador sobre nossos tempos que uma
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pretensão de voltar aos clássicos é atualmente interpretada como subversivo. A


criminologia, particularmente nos Estados Unidos, torna-se cada vez mais pobre
teoricamente. Por que a sociologia do desvio dos anos 1970, por exemplo, prati-
camente desapareceu da criminologia, enquanto ainda tem um significado mui-
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to atual? Tenho outro olhar sobre o trabalho de Edward Thompson, que discute
o caráter autoestruturante das classes sociais: é tão facilmente traduzível para as
questões culturais atuais.
oe
RvS: Se eu estou compreendendo bem, ainda há alguns elementos histórico-
-materialistas em sua criminologia cultural. Em geral, a criminologia cultural é
percebida como herdeira da tradição simbólica interacionista, que foi descartada
por Al Gouldner em 1968, como “criminologia de manutenção do zoológico”,
xc
porque supostamente abarcava todas as subculturas “tribais” na sociedade oci-
dental, com uma descrição detalhada de seus “rituais”, sem atentar às suas rei-
vindicações políticas. Em 1994, Colin Sumner aponta, em seu livro The Sociology
lus
of Deviance: An Obituary, para o fato de que as novas “tribos” nas culturas ociden-
tais estavam simplesmente se esgotando e que os efeitos socialmente prejudiciais
de seus “rituais de resistência” foram minimizados, sendo essas as principais ra-
zões pelas quais a sociologia do desvio praticamente desapareceu. Essa também
ivo

não é uma ameaça para a criminologia cultural, se continuar a adotar o chamado


edgework como no spray de graffiti ou bungee jumping sem prestar atenção ao seu
significado político?
JY: Perder esse lado materialista da história é de fato um ponto fraco da crimi-
IB

nologia cultural. A criminologia crítica britânica mostra uma tradição mais for-
te a esse respeito. Com isso, penso principalmente na Escola de Birmingham de
Stuart Hall, Tony Jefferson e Paul Willis: sinto-me muito próximo deles agora.
CC

Mas, estamos falando sobre uma época muito diferente. A criminologia cultural
de hoje é muito mais anarquista em sua reação ao neoliberalismo do que uma es-
trutura explicativa neomarxista das relações sociais. Nos EUA há uma tradição
etnográfica muito mais forte. Pense na obra de Philippe Bourgois ou Ilijah Ander-
rim

son, que forma a base da criminologia cultural. O risco de descarrilar para uma
“criminologia zookeeping” nos EUA é muito mais real do que na Grã-Bretanha.2

2. N.T. Sobre essa questão, importante referir que em Crimes de Estilo: o grafite urbano e as
políticas da criminalidade (Emais, 2021), Jeff Ferrell situa as dinâmicas de significado
negociado, expressividade e estilo da grafitagem em estruturas maiores de injustiça,
além de explicitar o caráter indiscutivelmente político da resistência por meio do grafi-
te, ainda que aqueles que o pratiquem possam não estar diretamente conscientes dele.
Não só não há uma falta de atenção quanto ao “significado político” dessa atividade, co-
mo ela é fortemente vinculada por Ferrell a uma tradição intelectual que por definição

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RvS: Até que ponto a criminologia cultural tem uma metodologia específica?
Por que você é sempre tão hostil em relação à pesquisa quantitativa?
JY: A metodologia é bastante superestimada na criminologia atual. Uma atitu-
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de acadêmica é muito mais importante do que metodologia. A maioria das pesqui-
sas criminológico-culturais é baseada em observação participante e etnografia.
Mas esses estudos qualitativos também constroem certa visão da “realidade”, su-
gerindo um “significado” e uma “coerência” que os dados não necessariamen-
oe
te prescrevem. Eu diria que nós, como criminologistas culturais, não devemos
imitar os positivistas a esse respeito, mas dar amplo espaço para contradições e
dúvidas. Nesse sentido, sou extremamente a favor do naturalismo e do empiris-
mo. O problema não está na metodologia, mas, sim, em todos aqueles chamados
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“fatos concretos” que deixaram de lado o debate acadêmico e a reflexão. Se Ro-
bert K. Merton apresentasse hoje seu famoso ensaio de 1938, “Estrutura social e
anomia”, para a American Sociological Review, muito provavelmente seria rejei-
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tado por falta de provas concretas. Eu aponto minhas baterias tantas vezes pa-
ra pesquisadores quantitativos porque são eles, em sua maioria, que sufocam as
inovações acadêmicas com tais argumentos; não porque há algo de errado com
seus métodos como tais. Uma boa pesquisa quantitativa pode oferecer muitos in-
ivo

sights, mas porque tantos quants agem como robôs alegres, que já estão perfeita-
mente felizes se tiverem ordenhado conjuntos de dados de segunda ou terceira
categoria e abriram algumas portas, eu digo aos seus financiadores: vocês estão
desperdiçando seu dinheiro! Parem o fornecimento de sangue a essas pessoas!
IB

Provavelmente existe uma relação proporcional inversa entre o dinheiro empre-


gado na pesquisa e o significado social da pesquisa. Howard Becker disse uma
vez: “Você pode fazer pesquisa na parte de trás de um ônibus”. Você não precisa
CC

de muito dinheiro. Dinheiro para viver e para comprar uma caneta e um cader-
no é suficiente.
RvS: A criminologia cultural precisa ter algum significado político ou social
de acordo com você? Quando o Realismo de Esquerda surgiu você sentiu que a
rim

criminologia e a pesquisa deveriam ser político-criminalmente relevantes. Você

é política, o anarquismo. Para além disso, como refere Hayward “se em um primeiro
momento a versão norte-americana da CC estava preocupada predominantemente com
questões de significado, a adaptação europeia – por causa de suas raízes na criminologia
crítica e no pensamento neomarxista de forma mais geral – foi muito mais movida por
uma preocupação com o poder” (HAYWARD, Keith. Criminologia cultural: reescre-
vendo o roteiro. In: FERRELL, Jeff; HAYWARD, Keith; KHALED JR, Salah H; ROCHA,
Álvaro Oxley da. Novas aventuras em criminologia cultural. Belo Horizonte: Letramento,
2021. p. 12-13).

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ainda se sente daquele jeito? E se sim, quais audiência(s) que os criminologistas


culturais (têm que) abordar?
JY: O significado social e a relevância política da criminologia cultural resi-
Us
dem, antes de tudo, na compreensão sociológica – no sentido de Verstehen – dos
motivos das pessoas e da maneira como elas dão significado ao que elas estão fa-
zendo. Nesse sentido, interpretar as ações no quadro de desenvolvimentos cul-
turais e da economia política da globalização é muito importante. Ao mesmo
oe
tempo, esses fenômenos são incrivelmente difíceis de influenciar. Um pouco
mais fácil, mas menos necessário, é desmascarar essas pilhas intermináveis de
estudos de previsão e as chamadas “melhores práticas” como as novas roupas
do Imperador. É realmente um absurdo; um completo desperdício de dinheiro
xc
público. Acerte esses criminologistas onde dói: corte o fornecimento de dinhei-
ro! Quebre o domínio de todos esses conselheiros positivistas que financiam pes-
quisa científica!
lus
Ao mesmo tempo, porém, teremos de aceitar que seremos simplesmente me-
nos influentes do que éramos nas décadas de 1970 e 1980. Apesar de toda a re-
tórica sobre formulação de políticas “baseadas em evidências”, os argumentos
ivo
científicos atualmente desempenham um papel muito mais limitado na tomada
de decisões políticas do que 30 anos atrás. Nesse sentido, a agenda realista de es-
querda é muito menos viável hoje – exceto talvez para a América Latina, onde o
vento político realmente vem de uma direção completamente diferente do que
na Europa Ocidental ou Estados Unidos e onde, mais uma vez, nossos “camara-
IB

das” estão em lugares altos. Infelizmente, neste ponto estou muito mais pessi-
mista hoje do que era na década de 1980. Eu certamente acho que ainda existem
CC

muitas pessoas de boa vontade que trabalham dentro da polícia, do sistema legal
ou ministérios, mas o alcance dentro do qual eles têm que operar tornou-se, com
todo aquele fetichismo de “alvo” e “saída”, muito mais estreito. Há muito me-
nos espaço para os funcionários públicos se desviarem da linha do partido hoje.
rim

Outro “problema” é que os números da criminalidade estão caindo: e em tem-


pos de crise, ainda por cima! Isso é muitas vezes reivindicado como um sucesso
das políticas neoliberais de “endurecimento”. Se você olhar mais de perto, essa
afirmação acaba sendo bastante injustificada, mas é muito difícil convencer o
público em geral de que os esforços das agências de aplicação da lei na verdade
contribuíram muito pouco para a queda da criminalidade no mundo ocidental.
O grande desafio político para os criminologistas culturais é demonstrar que são
os desenvolvimentos culturais que determinam predominantemente os níveis
de criminalidade. A cultura neoliberal do “ter tudo” causou a atual crise econô-
mica, mas nós não parecemos ter aprendido nada com isso. O crime de rua caiu
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Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 193. ano 30. p. 269-278. São Paulo: Ed. RT, nov./dez. 2022.
DOI: [https://doi.org/10.54415/rbccrim.v193i193.219].
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principalmente porque as guerras de gangues pararam: porque a nova economia


de serviços quebrou ideias sobre “masculinidade” e seus propósitos; porque o
domínio público se feminizou completamente; porque a maioria dos jovens pre-
Us
fere aderir a um pluralismo de valores do que ao pensamento tradicional em ter-
mos de “nós contra eles” e das consequentes racionalidades demonizadoras. São
essas coisas, eu acho, que deveríamos estar apontando.
RvS: Quem foram as pessoas mais importantes no desenvolvimento do seu
oe
próprio pensamento criminológico?
JY: Quanto mais velho fico, mais me interesso por biografias. O trabalho aca-
dêmico de alguém se torna muito mais interessante quando você sabe como a
xc
pessoa viveu. Hoje, penso de uma forma muito mais apreciativa e positiva sobre
muitos teóricos que critiquei em minha juventude; por exemplo, em The New
Criminology (TAYLOR ET AL., 1973). O primeiro “outro significativo” que vem
lus
à mente é Charles Wright Mills – pelas razões que mencionei antes. A atitude
subversiva e a imaginação que ele encarna são hoje mais necessárias do que nun-
ca. Eu tentei capturar isso em meu último livro The Criminological Imagination
(YOUNG, 2011). Em segundo lugar, preciso prestar minha homenagem a Robert
ivo

K. Merton. Al Gouldner, já na década de 1970, abriu meus olhos para o Merton


político. A reinterpretação de Merton da ideia de anomia de Durkheim é muito
mais marxista do que a maioria das pessoas imagina. As lições de Merton estão na
base de The Exclusive Society (YOUNG, 1999) e eu descrevi sua importância pa-
IB

ra a criminologia cultural em “Merton with energy, Katz with structure” (YOUNG,


2003). Em terceiro lugar, gostaria de mencionar David Matza. Ele compreendeu
perfeitamente as limitações de uma visão patológica e estática da delinquência e
CC

foi um dos primeiros a apontar para o papel do romance e da raiva na compreen-


são do crime. Matza e os criminologistas subculturais dos anos 1950 e da década
de 1960 são muito mais interessantes do que as versões dos cursos de criminolo-
gia sugerem. Os criminologistas culturais deveriam realmente reler seus clássi-
rim

cos e trazer a pesquisa de volta ao coração da sociologia.

3. Referências
FERRELL J.; HAYWARD K.; YOUNG J. Cultural Criminology: An Invitation. Lon-
don: SAGE, 2008.
GOULDNER, A. W. The Sociologist as Partisan: Sociology and the Welfare State.
American Sociologist, [s.l.], v. 3, n. 2, p. 103-116, 1968.
HAYWARD, K. J. Jock Young. In: HAYWARD, K.; MARUNA, S.; MOONEY, J.
(Ed.) Fifty Key Thinkers in Criminology. London: Routledge, 2010.
van SwaaNiNGen, René. Tradução e introdução de: Khaled Jr., Salah H.
Entrevista com Jock Young (in memoriam).
Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 193. ano 30. p. 269-278. São Paulo: Ed. RT, nov./dez. 2022.
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278 Revista Brasileira de Ciências Criminais 2022 • RBCCrim 193

KINSEY, R.; LEA, J.; YOUNG, J. Losing the Fight against Crime. Oxford: Basil
Blackwell, 1986.
LEA, J.; YOUNG, J. What Is to Be Done about Law and Order? Harmondsworth:
Penguin Books, 1984.
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MERTON, R. K. Social structure and anomie. American Sociological Review, [s.l.],
v. 3, n. 5, p. 672-682, 1938.
MILLS, C. W. The Power Elite. New York: Oxford University Press, 1956.
oe
MILLS, C. W. The Sociological Imagination. New York: Oxford University Press,
1959.
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Entrevista com Jock Young (in memoriam).
Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 193. ano 30. p. 269-278. São Paulo: Ed. RT, nov./dez. 2022.
DOI: [https://doi.org/10.54415/rbccrim.v193i193.219].

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