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MANICÔMIOS, PRISÕES E CONVENTOS – 1961

Os resultados desse estudo que o permitiram formular os conceitos de “instituição total”, de


“carreira moral”, de “vida íntima da instituição” e analisar o modelo médico e a hospitalização
psiquiátrica, são apresentados em quatro artigos nesta obra.
certos mecanismos de estruturação de uma instituição determinam a sua condição de instituição
total e acarretam consequências na formação do eu do indivíduo que nela participa sob determinada
condição.
Para Goffman, o ser age nas esferas da vida em diferentes lugares, com diferentes co-
participantes e sob diferentes autoridades sem um plano racional geral, ao inserir-se numa instituição
social passa a agir num mesmo lugar, com um mesmo grupo de pessoas e sob tratamento, obrigações e
regras iguais para a realização de atividades impostas. Quando essa instituição social se organiza de
modo a atender indivíduos (internados) em situações semelhantes, separando-os da sociedade mais
ampla por um período de tempo e impondo-lhes uma vida fechada sob uma administração
rigorosamente formal (equipe dirigente) que se baseia no discurso de atendimento aos objetivos
institucionais, ela apresenta a tendência de “fechamento” o que vai simbolizar o seu caráter “total”.
Quando o internado chega ao hospital ele sofre um processo de “mortificação do eu” que
suprime a “concepção de si mesmo” e a “cultura aparente” que traz consigo,que são formadas na
vida familiar e civil e não são aceitas pela sociedade. Estes “ataques ao eu” decorrem do
“despojamento” do seu papel na vida civil pela imposição de barreiras no contato com o mundo
externo, do “enquadramento” pela imposição das regras de conduta, do “despojamento de bens” que o
faz perder seu conjunto de identidade e segurança pessoal, e da “exposição contaminadora” através de
elaboração de um dossiê que viola a reserva de informação sobre o seu eu “doente”. Esse mecanismo,
além de causar a perturbação da relação entre ator/indivíduo e seus atos, causa o “desequilíbrio do eu”,
uma vez que profana as ações, a autonomia e a liberdade de ação do internado.

Segundo Goffman, uma instituição total pode ser definida como um local de residência e
trabalho em que um grande número de indivíduos situados na mesma maneira, e separados da
sociedade em geral por um período considerável de tempo, sendo conduzidos juntos em uma rotina
fechada de vida formalmente administrado. Dentro deste contexto, o autor procura focar o mundo do
internado, não dos funcionários e busca desenvolver uma versão sociológica da estrutura do eu.
Toda instituição capta parte do tempo e do interesse de seus membros e fornece um mundo novo
e diferente para eles. Em resumo, cada instituição tem tendências de fechamento e cerceamento da
autonomia. Quando revisamos as diferentes instituições em nossa sociedade ocidental, encontramos
algumas que estão abrangendo um grau descontinuamente maior do que as próximas na linha. Seu
caráter de fechamento ou total é simbolizado pelo obstáculo colocado na relações sociais com o
exterior, nas saídas e nas barreiras construídas diretamente na planta física, como portas trancadas,
muros altos, arame farpado, fossos, água, florestas ou pântanos. Esses estabelecimentos Goffman
denomina instituições totais.
As instituições totais são classificadas, por ele, em cinco agrupamentos:
1º - instituições criadas para cuidar de pessoas que são consideradas incapazes e inofensivas. Por
exemplo: casas para cegos, velhos, órfãos e indigentes;
2º - estabelecimentos para cuidar de pessoas consideradas incapazes de cuidar de si mesmas e
consideradas como ameaça para a sociedade; sanatórios para tuberculosos, hospitais para doentes
mentais e leprosários.
3º - instituições organizadas para proteger a comunidade contra perigos intencionais, cujo bem-estar
das pessoas isoladas não constitui o problema imediato: cadeias, penitenciárias, campos de prisioneiros
de guerra, campos de concentração;
4º - estabelecimentos com intenção de realizar, de modo mais adequado, alguma tarefa de trabalho,
como por exemplo, quartéis, navios, escolas internas, campos de trabalho, colônias e grandes mansões
(onde vivem empregados);
5º - estabelecimentos destinados a servir de refúgio do mundo, embora muitas vezes sirvam também
como locais de ínstrução para os religiosos: por exemplo, abadias, mosteiros, conventos e outros
claustros.
Nossa sociedade moderna possui um arranjo social básico em que o indivíduo tende a dormir,
brincar e trabalhar em lugares diferentes, com participantes diferentes, sob o olhar de diferentes
autoridades e sem um plano racional geral. Assim, as instituições totais promovem a ruptura das
barreiras que normalmente separam essas três esferas da vida.

Uma disposicáo básica da sociedade moderna é que o individuo tende a dormir, brincar e
trabalhar em diferentes lugares, com diferentes co-participantes, sob diferentes autoridades e sem um
plano racional geral. O aspecto central das instituicóes totais pode ser descrito coro a ruptura das
barreiras que comumente separam essas tres esferas da vida (e perda da autonomia – eu). Em primeiro
lugar, todos os aspectos da vida sao realizados no mesmo local e sob urna única autoridade. Em
segundo lugar, cada fase da atividade diária do participante é realizada na companhia imediata de um
grupo relativamente grande de outras pessoas, todas elas tratadas da mesma forma e obrigadas a fazer
as mesmas coisas em conjunto. Em terceiro lugar, todas as atividades diárias sao rigorosamente
estabelecidas em horarios, pois uma atividade leva, em tempo predeterminado, à seguinte, e toda a
seqüéncia de atividades é imposta de cima, por um sistema de regras formais explícitas e um grupo de
funcionários. Finalmente, as várias atividades obrigatórias sao reunidas num plano racional único,
supostamente planejado para atender aos objetivos oficiais da ínstituicão.
O controle de multas necessidades humanas pela organízacáo burocrática de grupos completos
de pessoas - seja ou nao uma necessidade ou meio eficiente de organizacáo social nas circunstáncias -
o fato básico das instituícóes totaís. Disso decorrem algumas conseqüéncías importantes.
Quando as pessoas se movimentam ero conjuntos, podem ser supervisionadas por um pessoal,
cuja atividade principal nao é oríentacáo ou ínspecáo periódica (tal como ocorre em muitas relacóes
empregador-empregado), mas vigilancia - fazer com que todos façam o que foi claramente indicado
como exigido, sob condicóes em que a ínfracáo de uma pessoa tende a salientar-se diante da obediencia
visível e constantemente examinada dos outros, Aqui, nao importa discutir o que é que vem em
primeiro lugar - se os grandes grupos de pessoas controladas ou o pequeno grupo dirigente; o fato é que
um é feito para o outro.
Nas institui9óes totais, existe urna dívísáo básica entre um grande grupo controlado, que
podemos denominar o grupo dos internados, e uma pequena equipe de supervisao. Gera1mente, os
internados vivem na instítuicáo e têm contato restrito com o mundo existente fora de suas paredes; a
equipe dirigente muitas vezes trabalha num sistema de oito horas por dia e está integrada no mundo
externo. Cada agrupamento tende a conceber o outro atraves. De estereótipos limitados e hostis - a
equipe dirigente muitas vezes ve os internados como amargos, reservados e não merecedores de
confianca: os internados muitas vezes veem os dirigentes como condescendentes, arbitrários e
mesquinhos, Os participantes da equipe dirigente tendem a sentir-se superiores e corretos; os internados
tendern, pelo menos sob alguns aspectos, a sentir-se inferiores, fracos, censuráveis e culpados".
A mobilidade social entre os dois estratos e grosseiramente limitada; geralmente há um grande
distancia social e esta é freqüentemente prescrita, Ate a conversa entre as fronteiras pode ser realizada
em tom especial de voz, como se vê num registro fictício de um contato num hospital para doentes
mentais.
Assim como há restricáo para conversa entre as frontreiras, há também restrícóes transmissáo de
ínformacóes, sobretudo informações quanto aos planos dos dirigentes para os internados. Geralmente,
estes nao terão conhecimento das decisóes quanto ao seu destino; essa exclusáo dá a equipe dirigente
uma base específica de distancia e controle com relacáo aos internados. Presumívelmente, todas essas
restricóes de contato ajudam a conservar os estereótipos antagónicos. Desenvolvem-se dois mundos
socíaís e culturais diferentes, que caminham juntos com pontos de contato oficial, mas cm pouca
interpenetração. As instituições passam a ser identificadas tanto pela equipe dirigente como pelos
internados como algo que pertence à equipe dirigente, de forma que quando qualquer dos grupos se
refere às interpretacóes ou aos interesses "da instituicáo", implícitamente se referem (tal como o farei)
às interpretações e interesses da equipe dirigente.

O Mundo do Internado

É característico dos internados que cheguem à instituiçao com uma "cultura aparente" derivada
de um "mundo da familia . - uma forma de vida e um conjunto de atividades aceitas sem discussáo até
o momento de admissáo na instituicáo. Qualquer que seja a estabilídade da organizacao pessoal do
novato, era parte de um esquema mais amplo "encaixado em seu ambiente civil - um conjunto de
experiencia que confirmava uma concepcão tolerável do eu e permitia um conjunto de formas de
defesa, exercidas de acordo com sua vontade, para enfrentar conflitos, dúvidas e fracassos:
Aparentemente, as instituicóes totais nao substituem algo já formado pela sua cultura específica;
Por isso, se a estada do internado e muito longa, pode ocorrer, caso ele volte para o mundo exterior o
que já foi denominado "desculturamento 11, isto e, destreinamento" - que o torna temporariamente
incapaz de enfrentar alguns aspectos de sua vida diária.

II - alguns dos ataques mais elementares e diretos ao eu

O novato chega ao estabelecimento com uma concepcao de si mesmo que se tornou possível por
algumas disposicóes sociais estáveis no seu mundo doméstico. Ao entar, é imediatamente despido do
apoio dado por tais disposicóes. Na linguagem exata de algumas de nossas mais antigas instituições
totaís, comeca uma série de rebaixamentos, degradacóes, humílhacóes e profanacóes do eu. O seu “eu”
sofre sistemáticamente, embora muitas vezes nao intencionalmente, uma mortificação padronizada.
Comeca a passar por algumas mudancas radicáis em sua carreira moral, urna carreira composta
pelas progressivas mudancas que ocorrem nas crencas que tém a seu respeito e a respeito dos outros
que sao significativos para ele.
A barreira que as ínstituicóes totais colocam entre o internado e o mundo externo assinala a
primeira mutilacao do eu. Na vida civil, a sequencia de horários dos papéis do indivíduo tanto no Ciclo
vital quanto nas repetidas rotinas diárias, assegura que um papel que desempenhe não impeca sua
realizacáo e suas ligaçóes em outro. Nas ínstituições totais, ao contrário, a particípacáo
automaticamente perturba a seqüéncia de papéis, pois a separacáo entre o mundo do internado e o
mundo mais amplo dura o tempo todo e pode continuar por vários anos. ocorre o despojamento do
papel, inicialmente se proíbem as visitas víndas de fora e as saídas do estabelecímento, o que assegura
uma ruptura inicial profunda com os papéis anteriores e uma avaliaçao da perda de papel.
Portanto, o internado descobre que perdeu alguns dos papéis em virtude da barreira que o separa
do mundo externo. Gera1mente, o processo de admissáo também leva a outros processos de perda e
mortificacáo. Muito freqüentemente verificamos que a equipe dirigente emprega o que denominamos
processos de admissáo: obter uma história de vida tirar fotografia, pesar, tirar impressóes digitais,
atribuir' números, procurar e enumerar bens pessoais para que sejam guardados, despir, dar banho,
desinfetar, cortar os cabelos, distribuir roupas da instituicáo, dar instrucóes quanto a regras, designar
um local para o internados. Os processos de admíssáo talvez pudessern ser denominados "arrumacáo"
ou "programacáo", pois, ao ser "enquadrado", o novato admite ser conformado e codificado num objeto
que pode ser colocado na máquina administrativa do estalecimento, modelado suavemente pelas
operacóes de rotina.
Como a ínstituícáo total lida com muitos aspectos da Vida dos Internados, como a padronizacáo,
existe uma necessidade especial de conseguir a cooperacáo inicial do novato. O mornento em que as
pessoas da equipe dirigente diz pela primeira vez ao internado quais sao as suas obrigacóes de respeito
pode ser estruturado de tal forma que desafie o internado a ser um revoltado permanente ou a obedecer
sempre. Por isso, os momentos iníciais de socializacáo podem incluir um "teste de obediencia" ou até
um desafio de quebra de vontade; um internado que se mostra insolente pode receber castigo imediato e
visível, que aumenta até que explicitamente peça perdáo ou se humilhe.
Os processos de admissáo e os testes de obediencia podem ser desenvolvidos numa forma de
íniciacáo que tem sido denominada "as boas-viudas" - ande a equipe dirigente ou os internados, ou os
dois grupos, procuram dar ao novato uma nocáo clara de sua situação.
Urna vez que o internado seja despojado de seus bens, o estabelecimento precisa providenciar
pelo menos algumas substituicóes, mas estas se apresentam sob forma padronizada, uniformes no
caráter e uniformemente distribuídas.
a perda do equipamento (pessoais) de identidade (em prol da padronização e igualdade - eu)
pode-se impedir que o indivíduo (aluno -eu) apresente, aos outros, sua imagem usual de si mesmo.
Depois da admissáo, a imagem que apresenta de si mesmo é atacada de outra forma. No idioma
expressivo de determinada sociedade civil, alguns movimentos, algumas posturas e poses traduzem
imagens inferiores do Individuo e sao evitadas como aviltantes. Qualquer regulamento, ordem ou
tarefa, que obrigue o indivíduo a adotar tais movimentos ou posturas, pode mortificar seu eu. Nas
ínstítuícões totais, sao muito numerosas tais "indignidades" físicas. Por exemplo, nos hospitais para
doentes mentais os pacientes podem ser abrigados a comer com colher, Nas prisóes militares, os
internados podem ser obrigados a ficar em posicão de sentido sempre que um oficial entre no Iocal
[…] o indivíduo precisa participar de atividades cujas conseqüéncías simbólicas sao
incompatíveis com sua concepcáo do eu. Um exemplo mais difuso desse tipo de mortíficacáo ocorre
quando é abrigado a executar uma rotina diária de vida que considera estranha a ele - aceitar um papel
com o qual nao se identifica.
Nas ínstituicóes totais há outra forma de mortíficacáo: a partir da admíssáo, ocorre uma espécie
de exposicáo contaminadora. No mundo externo, o indivíduo pode manter objetos que se ligam aos
seus sentimentos do eu – por exemplo, seu corpo, suas acóes imediatas, seus pensamentos e alguns de
seus bens - fora de contato com coisas estranhas e contaminadoras. No entanto, nas ínstítuícóes totais
esses territórios do eu sao violados; a fronteira que o indivíduo estabelece entre seu ser e o ambiente é
invadida e as encarnacóes do eu sao profanadas.

III

Agora, gostaria de discutir urna fonte de mortificacáo menos direta em seu efeito, e cuja
signíficacáo para o indivíduo nao pode ser tão facilmente avaliada: urna perturbacáo na relacáo usual
entre o atar individual e seus atos.
A prímeira perturbacáo a ser considerada aqui é o "circuito": uma agencia que cria urna
resposta defensiva do internado e que, depoís, aceita essa resposta como alvo para seu ataque seguinte.
O indivíduo descobre que sua resposta protetora diante de um ataque ao “eu” falha na situacáo: não
pode defender-se da forma usual ao estabelecer urna distancia entre a situacáo mortificante e o seu eu.
Os padroes de deferencia nas lnstítuícóes totaís dáo um exemplo do efeito de circuito. Na
sociedade civil, quando um indivíduo precisa aceitar circunstancias e ordens que uItrajem sua
concepcáo do eu, tem certa margem de expressáo de reacáo para salvar as aparéncias - mau humor,
omissáo dos sinais comuns de deferencia, palavróes resmungados, ou expressóes fugidias de desprezo,
ironia e sarcasmo. Portanto, a obediencia tende a estar associada a uma atitude manifesta que nao está
sujeita ao mesmo grau de pressáo para obediencia.' Embora essa resposta expressiva de autodefesa a
exigencias humilhantes ocorra nas instituicóes totaís, a equipe diretora pode castigar diretamente os
internados por essa atividade, e citar o mau humor e a insolencia como bases para antros castigos.
O processo de integracáo nas instituícóes totais cria outros casos de circuito. Nas ínstituícóes
totaís, as esferas da vida sao integradas de forma que a conduta do internado numa área de atividade é
lancada contra ele, pela equipe dirigente, como comentario e verificacáo de sua conduta em outro
contexto. O esforco de um doente mental para apresentar-se de maneira bem orientada e nao
antagonista durante um diagnóstico, ou urna conferencia de tratamento, pode ser diretamente
perturbado por provas referntes a sua apatia durante a recreacáo ou aos comentános amargos que fez
numa carta a um irmáo - uma carta que este entregou ao administrador do hospital, para ser
acrescentada a sua história clínica e levada a conferencia.
[…] através do processo de circuito, 'a reacáo do internado a sua situacáo é levada de volta a
situacáo, e nao tem o direito de conservar a segregacáo usual dessas fases de acão. Um segundo ataque
ao status do internação como um ator pode ser agora citado - um assalto descrito de forma imprecisa
sob as categorías de arregimentacáo e tiranizacáo.
Na sociedade civil, na época em que o indivíduo se torna adulto já incorporou padróes
socialmente aceitáveis para a realizacáo da maíoria de suas ativídades, de forma que o problema da
correcáo de suas ações surge apenas em alguns pontos - por exemplo, quando se julga sua
produtívidade. 'Além disso, pode manter o seu ritmo pessoal'". Nao precisa estar constantemente
preocupado com a possibilidade de críticas ou outras sancóes, Além disso, muitas acóes serao definidas
como questóes de gosto pessoal, e, especificamente, pode escolher dentro de certa amplitude de
possibilídades. Em muitas atividades, náo é preciso considerar o julgamento da acáo da autoridade, e o
indivíduo decide sozinho. Em tais condícóes, a pessoa pode, com proveito global, organizar suas
atividades para ajustá-las entre si - uma espécie de "economia pessoal de açao" que acorre, por
exemplo, quando um indivíduo atrasa a refeícáo por alguns minutos para terminar urna tarefa ou
abandona um pouco rnais cedo um trabalho a fim de encontrar um amigo para o juntar. Numa
instituicáo total, no entamo, os menores segmentos da atividade de uma pessoa podem estar sujeitos a
regulamentos e julgamentos da equipe' diretora; a vida do internado é constantemente penetrada pela
interação de sanção vinda de cima, sobretudo durante o período inicial de estada, antes de o internado
aceitar os regulamentes sem pensar no assunto. Cada específicaçáo tira do indivíduo urna
oportunidade para equilibrar suas necessidades e seus objetivos de maneira pessoalmente eficiente,
e coloca suas acóes à mercé de sancóes, Violenta-se a autonomia do ato. […] este processo de
controle social atue em qualqucr sociedade organizada.
O internado nao pode fugir facilmente da pressáo de julgamentos oficiais e da rede envolvente
de coercáo. Uma instítuição total assernelha-se a uma escola de boas maneiras, mas pouco refinada.
Gostaria de comentar dois aspectos dessa tendencia para multíplicacáo de regras ativamente impostas.
Em primeiro lugar, tais regras sao muitas vezes ligadas a urna obrígacáo de executar a atividade
regulada em uníssono com grupos de outros internados. É isso que as vezes se denomina
arregimentacão.
Em segundo lugar, essas regras difusas ocorrem num sistema de autoridade escalonada:
qualquer pessoa da c1asse dirigente tem alguns direitos para impor disciplina a qualquer pessoa da
classe de internados, o que aumenta nitidamente a possibílidade de sancáo. No mundo externo, o adulto
de nossa sociedade geralmente esta sob a autoridade de um único superior imediato, ligado a seu
trabalho, ou sob a autoridade do cónjuge, no caso dos deveres domésticos' a única autoridade
escalonada que precisa enfrentar - a' polícia - geralmente nao está sempre ou significativamente
presente, a nao ser talvez no caso da imposicao das leis de transito.
Considerando-se a autoridade escalonada e os regulamentos difusos novos e rigorosamente
impostos, podemos esperar que os' internados: sobretudo os novos, vivam com angústia crónica
quanto a desobediencia as regras e suas conseqüéncias (principalmente trabalho - eu)
Nas instituicóes totais, geralmente há necessidade de esforço persistente e consciente para nao
enfrentar problemas. A fim de evitar possíveis incidentes, o internado pode renunciar a certos níveis de
sociabilidade coro seus companheiros.

A Carreira Moral do Doente Mental

Tradicionalmente, o termo carreira tem sido, reservado para os que esperam atingir os postos
ascendentes de uma profissão respeitável. No entanto, o termo está sendo cada vez mais usado em
sentido amplo, a fim de indicar qualquer trajetória percorrida por uma pessoa durante sua vida.
Uma vantagem do conceito de carreira é sua ambivalência. Um lado está ligado a assuntos
íntimos e preciosos, tais como, por exemplo, a imagem do eu e a segurança sentida; o outro lado se
liga a posição oficial, relações jurídicas e um estilo de vida, e é parte de um complexo institucional
acessível ao público. Portanto, o conceito de carreira permite que andemos do público para o
íntimo, e vice-versa, entre o eu e sua sociedade significativa, sem precisar depender manifestamente
de dados a respeito do que a pessoa diz que imagina ser.
Portanto, este artigo é um exercício no estudo institucional do eu. O principal interesse se refere
aos aspectos morais da carreira - isto é, a sequência regular de mudanças que a carreira provoca no
eu da pessoa e em seu esquema de imagens para julgar a si mesma e aos outros.
Doente mental: a interpretacáo psiquiátrica de uma pessoa só se torna significativa na medida
em que essa interpretaçao altera o seu destino social (a visão de carreira altera a imagem que a pessoa
faz de si mesma – eu) - uma alteracão que se torna fundamental em nossa sociedade quando, e apenas
quando, a pessoa passa pelo processo de hospitalizacáo. […] uma vez iniciados nesse caminho,
enfrentam algumas circunstancias muito semelhantes e a elas respondem de maneiras muito
semelhantes (apesar da individualidade que capa pessoa, quando iniciam o processo de
desenvolvimento enfrentam circunstancias muito semelhantes e a elas respondem de maneiras muito
semelhantes - eu).
[…] os efeitos de tratamento como doente mental podem ser bem separados dos efeitos sobre a
vida de uma pessoa, dos traços que um clínico consideraria psicopatológicos.
De um ponto de vista popular ou naturalista, a carreira do doente mental caí em tres fases
principais: o período anterior a admissão no hospital, e que denominarei a fase de pré-paciente; o
período no hospital, aqui denominado fase de internamento; o período posterior a alta no hospital que,
quando acorre, será denominado fase de ex-doente". Este artigo se refere apenas as duas primeiras
fases.

A FASE DE PRÉ-PACIENTE

Um grupo relativamente pequeno de pré-pacientes vai ao hospital por vontade própria, seja
porque tem uma idéia de que será bom para eles, seja porque há um acordo com as pessoas
significativas de sua familia. Presumivelmente, tais novatos verificaram que estavam agindo de uma
forma que, para eles, era prova de que estavam "perdendo a cabeça" ou o controle de si mesmos. Esta
visáo de si mesmo parece ser uma das coisas mais amedrontadoras que podem ocorrer ao eu em nossa
sociedade, principalmente porque tende a ocorrer num momento em que a pessoa está, de qualquer
forma, suficientemente perturbada para apresentar o tipo de sintoma que ela própria pode ver.
Aqui desejo acentuar que a percepcáo de "perder a cabeça" se baseia em estereotipos
culturalmente derivados e socialmente ímpostos, quanto a signíficação de alguns sintomas - por
exemplo, ouvir vozes, perder a oríentacão espacial e temporal, sentir-se perseguido - e que muitos dos
mais espetacutares e convincentes de tais sintomas em alguns casos significam, psiquiatricamente,
apenas uma perturbação emocional temporária em situacão de tensáo por rnais aterrorizantes que
sejam para a pessoa nesse momento. [...] a angústia resultante dessa percepcáo de si mesmo, e as
estratégias usadas para reduzi-la, nao resultam de psicologia do anormal, mas poderiam ser
apresentadas por qualquer pessoa socializada em nossa cultura e que chegasse a pensar que está
perdendo a cabeça. É interessante observar que algumas subculturas na sociedade norte-americana
aparentemente diferem na quantidade de fantasía e estímulo para tais visóes de si mesmo, o que
leva a diferentes proporcoes de autoavaliaçao, a capacidade para aceitar essa interpretaçao
desintegradora de si mesmo parece ser um dos discutíveis privilégios culturais das classes mais altas",
[a criança para não se sentir diferente (teoria de campo – kurt lewin), muitas vezes, acompanha
a regra para não se tornar diferente das outras (rebelde) - eu]
Urna vez que o pré-paciente voluntariamente entra no hospital, pode passar pela mesma rotina
de experiencias dos que entram contra a vontade. A carreira do pré-paciente pode ser vista através de
um modelo de expropriacão; começa com relacóes e direitos e termina, no início de sua estada no
hospital, praticamente sem relacóes ou direitos. Portanto, os aspectos morais dessa carreira começam
geralmente como a experiencia de abandono, deslealdade e amargura.
Alguns fatores podem colaborar para a hospitalização, que o autor denomina "contingencias de
carreira”. Entre algumas dessas contingências encontramos:. status socioeconomico, visibilidade da
transgressáo, proximidade de um hospital para doentes mentáis, recursos disponíveis de tratamento,
avaliação, pela comunidade, do tipo de tratamento dado pelos hospitais existentes, assim por diante. E
quando essa pessoa é internada, outro conjunto de circunstancias ajuda a determinar quando receberá
alta - 'por exemplo, o desejo de sua familia para que volte, a disponibilidade de trabalho "controlável",
e assim por diante. As circunstancias de carreira ocorrem juntamente com um segundo aspecto da
carreira do pré-paciente - o circuito de agentes e agencias que participam de maneira decisiva em sua
passagem do status civil para o de ínternado.
Em primeiro lugar, está a pessoa mais proxima – a que o paciente considera como aquela de
que mais pode depender em momentos de crise; neste caso, a última a duvidar de sua sanidade e a
primeira a tuda fazer para salvá--la do destino que a ameaca. Em segundo lugar, está o denunciante, a
pessoa que, retrospectivamente, parece ter iniciado o caminho do paciente para o hospital. Em terceiro
lugar estáo os mediadores - a seqüéncia de agentes e agencias a que o pré-paciente é levado e através
dos quais é enviado aos que internam o paciente. Aqui incIuem a policía, clero. clínicos gerais,
psiquiatras com ccnsultório, pessoal de clínicas públicas, advogados, assistentes sociais, professores, e
assim por diante.
A recusa pode ser enfrentada com ameaca de abandono, ou outra açao legal, ou com a
acentuacáo do caráter exploratório ou de colaboracáo da entrevista.

A Fase do Internado

O último passo na carreira do pré-paciente pode incluir a compreensáo - justificada ou nao - de


que foi abandonado pela sociedade e perdeu as relacóes com os que estavam mais próximos dele. Ao
entrar no hospital, pode sentir um desejo muito grande de nao ser conhecido, pode evitar falar com
quem quer que seja, pode ficar sozinho sempre que puder, e pode até ficar "fora de contato," ou
"maníaco", a fim de evitar a ratíficacáo de qualquer ínteracao que o obrigue a um papel delicadamente
recíproco, e lhe mostre o que se tornou aos olhos dos outros. Quando a pessoa mais próxima faz um
esforco para visítá-lo, pode. ser rejeitada pelo mutismo, ou pela recusa do paciente de ir a sala de
visitas. Usualmente, o paciente desiste desse grande esforco de ausencia e anonimato, e comeca a
apresentar-se para interaçãao social convencional na comunidade hospítalar.
Urna vez que o paciente comece a "aceitar sua nova posicão", as linhas básicas de seu destino
começaam a seguir as de toda uma classe de estabelecimentos segregados - cadeias, campos de
concentracáo, mosteíros, campos de trabalho forcado, e assim por diante - nos quais o internado passa
toda a vida no local, e vive disciplinadamente a rotina diária, na companhia de um grupo de pessoas
que tem o mesmo status institucional.
Tal como ocorre com o novato de muitas dessas instituicóes totais, o novo internado percebe
que está despojado de muitas de suas defesas, satísfacóes e afirmacóes usuais, e está sujeito a um
conjunto relativamente completo de experiencias de mortificação: restrição de movimento livre,
vida comunitária, autoridade difusa de toda uma escala de pessoas, e assim por diante. Se
desobedecer as normas onipresentes da instituícáo, o internado receberá castigos severos que se
traduzem pela perda de privilégios; pela obediencia, será finalmente autorizado a readquirir algumas
das satisfacóes secundárias que, fora, aceitava sem discussáo,

As características das instituições totais

Os estabelecimentos sociais, ou instituições, são locais (salas, conjunto de salas, edifícios,


fábricas) onde se desenvolve um determinado tipo de atividade. Toda instituição tem tendências de
“fechamento” (o estabelecimento conquista parte do tempo e do interesse de seus participantes e lhes
dá algo de um “mundo”), mas, na sociedade ocidental, algumas são muito mais “fechadas” do que
outras. Seu “fechamento” ou seu caráter total é simbolizado pela barreira à relação social com o mundo
externo. Para tais estabelecimentos (asilos, hospitais, prisões, quartéis, conventos) o autor dará o nome
de “instituições totais”, a fim de sistematizar as características gerais e comuns que as estruturam (p.
16). O aspecto central das instituições totais pode ser descrito como a ruptura das barreiras que
comumente separam as três principais esferas da vida da sociedade moderna (o descanso, o lazer e o
trabalho). Em tais instituições, todos esses aspectos da vida são realizados no mesmo local, sob uma
única autoridade, na companhia imediata de outros coparticipantes e com um plano racional geral,
supostamente planejado para atender aos objetivos oficiais da instituição (p. 18). O fato básico das
instituições totais é o controle de muitas necessidades humanas pela organização burocrática. Para isso,
existe uma divisão básica entre internados e equipes dirigentes. Geralmente, os internados vivem na
instituição e têm contato restrito com o mundo externo, enquanto a equipe dirigente está integrada ao
mundo externo. E assim, institucionalmente, formam-se dois mundos sociais e culturais diferentes, que
caminham paralelamente juntos, com alguns pontos de contato oficial, mas com pouca interpenetração.
Cada agrupamento estabelece uma relação limitada e estereotipada com o outro – a equipe dirigente vê
os internados como amargos, reservados e não merecedores de confiança, e os internados veem os
dirigentes como condescendentes, arbitrários e mesquinhos. Os participantes da equipe dirigente se
sentem “superiores e corretos”, e os internados se sentem “inferiores, fracos, censuráveis e culpados”
(p. 19). O autor não formula, em termos formais, o seu problema sociológico, mesmo assim, uma
sugestão foi apresentada no final do artigo: [como] os problemas sociais nas instituições totais [são
condicionados] pela estrutura social subjacente a todas elas (p. 108).

Depois de sugerir os aspectos comuns das instituições totais, Goffman analisará tais estabelecimentos a
partir de duas perspectivas: “o mundo do internado” e “o mundo da equipe dirigente” (p. 23). Para o
internado, o sentido completo de estar “dentro” da instituição não existe independentemente do sentido
específico de estar “fora” de tal estabelecimento. Consequentemente, as instituições totais criam e
mantêm um tipo particular de tensão entre o mundo institucional e o mundo doméstico, e assim,
reiteradamente, usam essa tensão persistente como uma força estratégica de controle dos indivíduos (p.
24). Quando o internado chega à instituição total, inicia-se o processo de mortificação do self, ou seja,
um processo sistemático de supressão da “concepção de si mesmo” e da “cultura aparente” que traz
consigo, após uma série de degradações, humilhações e profanações ao self. Esses ataques regulares
ao self advêm do “despojamento” do seu papel na vida civil mediante a imposição de barreiras de
contato com o mundo externo, do “enquadramento” às regras institucionais de conduta, do
“despojamento de bens” e consequentemente da perda dos “equipamentos de identidade”, além da
“exposição contaminadora” de um dossiê que profana a autonomia do território do self. Concomitante
ao processo de mortificação, a equipe dirigente instruirá como o internado deve orientar-se na
instituição. Esse conjunto de instruções formais e informais constituirá o “sistema de privilégios” da
instituição (p. 49). Se o internado seguir as “regras da casa”, a equipe dirigente lhe dará um pequeno
número de prêmios em troca da sua obediência, mas se descumpri-las, o interno é castigado pela sua
desobediência. Diante da influência reorganizadora, o internado desenvolve dois mecanismos de
adaptação às regras da instituição: pelos “ajustamentos primários”, quando contribui cooperativamente
com as atividades institucionais, e pelos “ajustamentos secundários”, quando emprega meios ilícitos,
não autorizados e não formais, a fim de “escapar” da realidade que a organização lhe impõe. Os
ajustamentos secundários dão ao internado uma prova evidente de que “é ainda um homem autônomo,
com certo controle de seu ambiente, e às vezes [isso] se torna quase uma forma de abrigo para o self,
um coringa, em que a alma parece estar alojada” (p. 54).

O sistema de privilégios (principal esquema de reestruturação do self) e o processo de mortificação


do selfconstituem as condições institucionais que o internado é obrigado a adaptar-se (p. 59). Tais
“táticas de adaptação” formam-se a parir dos ajustamentos primários e ajustamentos secundários, ou da
combinação de ambos, em diferentes fases da carreira moral do internado e são classificadas como:
“afastamento da situação” (desatenção e abstenção); “intransigência” (não cooperação com a
instituição); “colonização” (consideração da vida institucional como desejável em relação às
experiências ruins do mundo externo); “conversão” (aceitação da interpretação oficial); “viração”
(combinação de várias táticas visando evitar sofrimentos físicos e psicológicos); e “imunização” (o
mundo da instituição tornar-se um mundo habitual e sem novidades). Desse modo, a partir dessas
estratégias, o internado vai reorganizado minimamente o seu self. Todavia, o processo contínuo de
mortificação e de reorganização do selfgera no indivíduo uma sensação de fracasso, um sentimento “de
tempo perdido” e de angústia diante da expectativa de retorno à sociedade. Essa apreensão origina-se
tanto do “status proativo” – o internado sabe que sua posição social intramuros é radicalmente diferente
do que era e, consequentemente, sabe também que sua posição social no mundo externo nunca mais
será a mesma – quanto da “desculturação” – o internado se vê diante da impossibilidade de adquirir os
hábitos exigidos pela sociedade mais ampla.

O autor prossegue, só que agora, a partir do ponto de vista da equipe dirigente. O “mundo da equipe
dirigente” é atravessado pela contradição entre o que a instituição realmente faz e aquilo que
oficialmente a instituição deve dizer que faz (p. 70). Nesse “mundo”, a equipe dirigente precisa impor
obediência ao internado, mas com a impressão de que os padrões humanitários são mantidos e de que
os objetivos racionais da instituição estão sendo operacionalizados. Seguindo o “esquema de
interpretação” automático da instituição, assim que o internado é admitido, a equipe dirigente o define
como o tipo de pessoa que a instituição objetiva tratar, em seguida, a equipe dirigente estabelece um
tipo de comportamento “legítimo” que se ajuste às regras da instituição. À primeira vista, “os dois
mundos” (internados e equipe dirigente) mantêm uma distância social e têm somente uma interação
limitada aos “padrões de deferência” formais da instituição (“impermeabilidade”). Na prática,
entretanto, internados e membros da equipe dirigente estabelecem relações, até de modo ilícito, pessoal
e solidário, quando existe um compromisso conjunto em relação à instituição (“permeabilidade”). Esse
conjunto de atividades e rotinas da instituição “comuns a todos” é denominado pelo autor como
“cerimonias institucionais” (p. 85). Tais cerimônias, festa anual, confecção de jornais internos, eventos
esportivos, cerimônias religiosas, apresentação teatral, são vistas como a possibilidade do internado
“reaprender” a viver em sociedade – e “voluntariamente”. Enfim, o mundo da instituição é marcado
pelo choque entre “impermeabilidade” (supressão das influências sociais do mundo externo) e
“permeabilidade” (manutenção dos padrões sociais no mundo interno), e isso, de acordo com Goffman,
contribui para a compreensão das relações entre uma instituição total e a sociedade mais ampla, que a
mantém e que a tolera (p. 104). Enfim, uma instituição total apresenta-se como uma realidade fechada e
formalmente administrada, onde todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local, sob uma
única autoridade, na companhia imediata de outros coparticipantes, com um plano racional geral. Em
contrapartida, o contexto básico das atividades diárias da instituição é atravessado pela contradição e
irracionalidade da ação. O contato entre “o mundo dos internados” e “o mundo da equipe dirigente” é
marcado por um sistema de representações automáticas, padronizadas, limitadas e estereotipadas do
“outro”.

A carreira moral do doente mental

O conceito de “carreira”, em um sentido mais amplo, é definido pelo autor como “qualquer trajetória
percorrida por uma pessoa durante sua vida” (p. 111). O termo admite a perspectiva da “história
natural”: os resultados singulares são esquecidos, considerando-se somente as mudanças temporais que
são básicas e comuns aos participantes de uma determinada categoria social. O conceito de carreira,
além de não ser valorativo, refere-se aos aspectos subjetivos e objetivos, pois está ligado tanto aos
assuntos íntimos, como a imagem do self, quanto à posição oficial, relações jurídicas e estilo de vida, e
é parte de um complexo institucional acessível ao público. Sendo assim, o termo permite que andemos
do público para o privado, e vice-versa, entre o selfe sua sociedade significativa. Este artigo, segundo
Goffman, é um exercício no estudo institucional do self, cujo principal interesse relaciona-se aos
aspectos “morais” da carreira do “doente mental” (p. 112). E, em vista disso, [quais seriam] as
mudanças que essa carreira [moral] provoca no selfda pessoa e em seu esquema de imagens para julgar
a si mesma e aos outros (p. 112). O autor tomará a categoria “doente mental” somente a partir do
processo se hospitalização, não no sentido psicopatológico do termo. O “comportamento doentio” e a
“loucura” atribuída ao doente mental é, em grande parte, resultado da distância social entre os
“doentes” e aqueles que lhes atribui isso, e assim, a situação em que o paciente foi colocado,
fundamentalmente, não é um produto da doença mental (p. 113). Quaisquer que sejam os refinamentos
dos diagnósticos psiquiátricos, o hospital psiquiátrico não é significativamente diferente de qualquer
outra comunidade (p. 113). Em seguida, Goffman analisará as etapas da carreira moral do doente
mental: o período anterior à admissão, a fase de pré-paciente, e o período de internamento no hospital
psiquiátrico, a fase de internado (p. 114).

A carreira moral do doente mental inicia-se com a denúncia de “transgressão” que acarretará na
hospitalização. Na fase de pré-paciente, o individuo ingressa na instituição, voluntariamente ou
involuntariamente, e a partir disso, ele é expropriado de suas relações e direitos com o mundo externo,
tornando-se um paciente, não mais um civil. Portanto, os primeiros aspectos morais dessa carreira são
os sentimentos de abandono, deslealdade e amargura. Comumente, o pré-paciente sente-se
“perturbado” por “estar perdendo a cabeça” e isso o leva a uma interpretação desintegradora de si
mesmo, ainda que essa autoimagem se baseie em estereótipos culturais e sociais mais amplos. Em
seguida, já na instituição, um circuito de agentes – tutor, denunciante e mediadores – engendra uma
“coalização alienadora” sobre o self do pré-paciente, que, por sua vez, se sente apenas como uma
terceira pessoa do processo, traído e enganado em relação à pessoa mais próxima e ao denunciante (p.
119). Como a “transgressão” se tornou um fato social público, a traição testemunhada é seguida de uma
“cerimônia de degradação”, uma extensa ação reparadora diante da testemunha, a fim de que possa
restaurar sua honra e seu valor social (p. 120). Também, antes da hospitalização, os médicos da equipe
dirigente constroem a “história de caso” que é atribuída ao passado do paciente. O último passo na
carreira do pré-paciente pode incluir a compreensão, justificada ou não, de que foi abandonado pela
sociedade e perdeu as relações sociais com o mundo externo. Inicialmente, na fase de internado, o
paciente adota a estratégia do “silêncio”, “ausência” e “anonimato”, o que sugere certo apego ao “resto
do seu passado”. O recém-internado percebe que está despojado de suas defesas, satisfações e
afirmações usais, e está sujeito a um conjunto relativamente completo de “experiências de
mortificação”, como restrição de movimento livre, vida comunitária, autoridade difusa. Depois, com a
“aceitação”, apresenta-se para a interação convencional na comunidade hospitalar e, sobretudo, aprende
a orientar-se no “sistema de enfermarias”.

O sistema de enfermaria funciona como um “sistema de socialização” da instituição: se obedecer às


normas, o internado é “recompensado” com pequenas satisfações secundárias, caso contrário, perde o
acesso a esses “privilégios”. Com o tempo, o internado desenvolve um esquema de reorganização da
autoimagem do selfa partir de “histórias tristes”, com o reforço de ficção, sobre o seu passado. Com
isso, Goffman chama a atenção para o fenômeno de “negação da racionalidade do paciente” que ocorre
quando a equipe dirigente desmente as histórias tristes dos pacientes com as informações contidas no
seu dossiê. No hospital psiquiátrico, a equipe dirigente tem o “mandato burocrático oficial” para
modelar a concepção que o indivíduo tem de si mesmo (p. 128). Consequentemente, o internado aceita
ou finge que aceita a interpretação do hospital. Quando o paciente aprende a sobreviver às condições
iminentes de exposição, mesmo agindo de uma forma que a sociedade considera como destrutiva, os
vínculos associativos com essa mesma sociedade se enfraquecem e transforma-se em “fadiga moral”
(p. 140). O “doente mental”, ao ser internado, entra em um ciclo de socialização marcado pela
alienação e mortificação. O cotidiano, como modo de empregar o tempo, é sistemicamente configurado
pela equipe dirigente de modo burocrático e “racional”, embora a “razão” lhe seja negada. Os “sistemas
de enfermarias” são espaços de sociabilidade, de mobilidade institucional, e, sobretudo, de
reorganização mínima da autoimagem. A carreira moral inclui uma sequência padronizada de mudanças
no self, que se estende dentro dos limites de um sistema institucional. Desse modo, o selfnão é uma
propriedade da pessoa a que é atribuído, mas reside no padrão de controle social que é exercido pela
pessoa e por aqueles que a cercam (p. 142). Se essa disposição social constitui o self, constitui também
como o indivíduo vive e vê o/s “mundo/s”.

A vida íntima de uma instituição pública

Parte I: Introdução

Os vínculos que ligam o indivíduo aos diferentes tipos de instituições sociais têm certas propriedades
gerais e comuns, como compromisso e adesão às regras. Na sociedade ocidental, o acordo formal ou o
contrato é um símbolo clássico dessa forma de associação. Com uma assinatura, “celebra-se os
vínculos que liga e os limites reconhecidos daquilo que liga” (p. 148). Por trás de cada contrato existem
suposições não contratuais a respeito do caráter dos participantes (p. 148). Cientes do que “devem” e
“não devem”, os participantes concordam quanto à validade geral dos direitos e obrigações contratuais
e quanto à legitimidade dos tipos de sansão para o rompimento do contrato. Quem aceita um contrato
supõe que seja uma pessoa de determinado caráter e forma de ser. Se todo vínculo supõe uma
concepção ampla da pessoa ligada a ele, “devemos ir adiante e perguntar como o indivíduo enfrenta
essa definição de si mesmo” (p. 149). Para isso, Goffman perscrutará os padrões de comportamento
(modos de “agir” e “ser”) segundo um tipo particular de instituição social, as “organizações formais
instrumentais”, localizadas nos limites de um único edifício ou complexo de edifícios (p. 149). Como
ponto de partida, uma “organização formal instrumental” pode ser definida como um sistema de
atividades intencionalmente coordenadas e destinadas a provocar alguns objetivos explícitos e globais.
Essas organizações, principalmente as “muradas”, têm uma característica singular: parte das obrigações
do indivíduo é participar visivelmenteda atividade da organização, o que exige uma mobilização da
atenção, com esforço muscular e certa submissão do selfà atividade como símbolo de compromisso e
adesão do indivíduo (p. 150). Uma organização formal instrumental só sobrevive por ser capaz de
apresentar contribuições úteis da atividade de seus participantes. Entretanto, esse tipo de
estabelecimento social não se limita apenas a usar a atividade de seus participantes – a organização
formal instrumental também determina quais são os padrões oficialmente adequados de bem-estar,
valores comuns, prêmios e castigos. Portanto, nas disposições sociais de tais organizações, existe não
só uma concepção completa de participante, mas uma concepção dele como ser humano (p. 153). A
organização estipulará “o que fazer” e “por que fazer” e, consequentemente, tudo “o que se pode ser”.
Participar de determinada atividade com o espírito esperado (“fitting in”) é aceitar que se é um
determinado tipo de pessoa que vive em um tipo determinado de mundo, enfim, toda organização inclui
também uma “disciplina do ser”, uma obrigação de ser de um determinado mundo.

Quando um indivíduo contribui, cooperativamente, com as atividades exigidas por cada instituição
social, e sob as condições exigidas pela sociedade, se transforma em um colaborador, tornando-se um
participante “normal”, “programado” e “interiorizado”. Oficialmente deve ser não mais e não menos do
que aquilo para o qual foi preparado, e é obrigado a viver em um mundo, cuja realidade lhe é afim.
Essa adequação regular à instituição refere-se aos ajustamentos primários. Em seguida, Goffman
estabelece outro termo – os ajustamentos secundários– que define qualquer disposição pelo qual o
participante de uma organização emprega meios ilícitos ou com fins não autorizados, ou os dois, como
modo de “escapar” daquilo que a organização supõe que deve fazer e daquilo que deve ser, e assim, o
indivíduo se isola do papel e do selfque a instituição admite para ele (p. 160). Se tomarmos o espaço
físico onde são praticados os ajustamentos secundários e a região de origem dos “praticantes”, o centro
da atenção se estende do indivíduo para os indivíduos. Considerando-se uma organização formal
instrumental como um estabelecimento social, o ajustamento secundário do indivíduo se integraria ao
conjunto total de tais ajustamentos que todos os participantes da organização mantêm coletivamente.
Tais práticas, em conjunto, abrangem o que pode ser chamado de vida íntima da instituição, o que
corresponderia ao “submundo” da instituição (p. 167). Os ajustamentos secundários,
fundamentalmente contidos, assim como os ajustamentos primários, categorizam-se pelo encaixe
(“fitting in”) nas estruturas institucionais existentes, sem pressões radicais. Seguindo o ponto de vista
estrutural, contrário à sociopsicologia, Goffman questiona “qual o caráter das relações sociais exigidas
para manutenção da prática dos ajustamentos secundários” (p. 168).

De acordo com a localização do praticante na hierarquia da organização, os ajustamentos secundários –


práticas presentes na vida íntima da organização formal instrumental – se diferenciam. Os participantes
com posição inferior têm menos compromisso e ligação emocional com a organização e, por
conseguinte, menos adesão às práticas de ajustamentos secundários. Já os participantes com posição
mais elevada no sistema de enfermarias usam de maneira mais ampla tais ajustamentos. Em tese, as
camadas médias da organização são as que menos adotam os ajustamentos secundários, porque elas
exemplificariam os valores “edificantes” e “inspiradores” da organização. No mais, o componente
hierárquico do sistema de enfermarias funciona também como um sistema de diferenciação das
características morais dos próprios pacientes (p. 169). Todas as condições que tendem a desenvolver
uma vida íntima ativa dentro de qualquer instituição também estão presentes no hospital para doentes
mentais. Instituições como os hospitais psiquiátricos são “totais”, pois o internado vive todos os
aspectos de sua vida no edifício do hospital, na companhia de outros indivíduos igualmente separados
do mundo mais amplo. Tais estabelecimentos contêm duas categorias de participantes – os internados e
a equipe dirigente. Fundamentalmente, os hospitais públicos para doentes mentais não funcionam de
acordo com a doutrina psiquiátrica, mas segundo o “sistema de enfermarias”. Esse esquema de
disciplina delimita um conjunto relativamente completo de meios e fins que orientam os pacientes.
Dentro do sistema de enfermarias, muitas atividades dos pacientes tornam-se efetivamente ilícitas.

Continue lendo (Parte 2 AQUI)

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Os resultados desse estudo que o permitiram formular os conceitos de “instituição total”, de
“carreira moral”, de “vida íntima da instituição” e analisar o modelo médico e a hospitalização
psiquiátrica, são apresentados em quatro artigos nesta obra.

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