Você está na página 1de 10

Habitação coletiva e a evolução da quadra (1)

Mário Figueroa

O ideário moderno e a reflexão sobre habitação coletiva estão profundamente


relacionados aos problemas decorrentes da densidade populacional urbana e do
crescimento das grandes cidades durante o século XX. Nesse contexto as novas
hipóteses de habitação e sua relação com o espaço urbano representam para o
modernismo o núcleo inicial de investigações e experimentações desenvolvidas
em âmbito disciplinar da arquitetura para uma possibilidade real de
transformação em grande escala do ambiente urbano.
A partir do desdobramento dos conceitos germinais do texto de Christian de
Portzamparc, A terceira era da cidade (Ville age III) (2), este ensaio trata
especificamente do papel da habitação coletiva na formação das distintas
idéias de cidade a partir da segunda metade do século XIX até o final do
século XX, compondo um quadro analítico com oito distintas estratégias
projetuais que permitem uma reflexão sobre as diversas formas de inserção,
complementação e construção da habitação coletiva na cidade moderna
explicitando a evolução e a transformação da arquitetura urbana dentro deste
período.
O esforço concentra-se em constituir um raciocínio crítico do processo
projetual estabelecendo distinções conceituais sobre as estratégias da
habitação coletiva e sua relação com a trajetória do desenvolvimento das
cidades através de uma visão ampla do elemento urbano que por essência é o
mais coletivo de todos. Interessa enfatizar nestas condições o constante
confronto entre habitação e espaço habitável, o qual tem transformado a
paisagem, a sociedade, a cultura, os hábitos e o desenho das cidades.
Quadra da cidade tradicional

Figura 1 – Quadra da cidade tradicional

Devemos entender como cidade tradicional um organismo urbano gerado através de


um longo processo histórico. Neste contexto, tanto o traçado viário como a
habitação coletiva são elementos que não podem ser concebidos separadamente,
como o positivo e o negativo de um mesmo sistema. Não existem, portanto
espaços indefinidos nesta relação restrita aos domínios do publico e do
privado.
A quadra da cidade tradicional se caracteriza por ser claramente delimitada e
homogênea. Uma massa compacta que apresenta uma relação desproporcional entre
uma grande quantidade de espaço construído em contraposição a escassos e
fragmentados espaços livres habitualmente destinados apenas para a ventilação
das habitações. A arquitetura, restrita a fachada, se expressa neste momento
apenas de forma bidimensional.
As transformações de Haussmann em Paris (1852-69) podem exemplificar este tipo
de quadra “residual”, resultante do traçado viário, e não como módulo de
composição urbana. Paralelamente o projeto dos edifícios era controlado
(gabarito de altura, composição das fachadas, matérias e elementos
construtivos) para regularizar o tecido urbano e proporcionar uma
extraordinária força de conjunto. A habitação coletiva compunha a diversidade
programática da quadra através de sua sobreposição em distintos pavimentos o
que gerava habitualmente edifícios multifuncionais.
Quadra do Plano Cerdá

Figura 2 – Quadra do Plano Cerdá

O Plano de expansão para Barcelona de Ildefonso Cerdá (1959-64) desenha uma


grelha ortogonal, com quadras de 113m x 113m e vias de 20m de largura, de tal
maneira que cada conjunto de nove quadras e vias correspondentes se inscrevem
dentro de um quadrado de 400m de lado. A quadricula estende-se até os núcleos
urbanos vizinhos e envolve a cidade medieval. Apesar de aparentar a imposição
de uma nova ordem, indiferente ao contexto, o ajuste das bordas é feito com
extrema habilidade tendo como suporte avenidas diagonais que surgem a partir
de conexões pré-existentes. O corte diagonal nas arestas da quadra transforma
o simples cruzamento de vias em lugar, gera também desta forma maior amplitude
visual dos edifícios de esquina. Se dúvida nenhuma o melhor exemplo de
habitação coletiva inserida neste contexto é a Casa Milà de Antoni Gaudí
(1906-12).
O Plano previa quadra com ocupação perimetral em dois ou no máximo três lados.
Os edifícios não ultrapassariam mais do que dois terços da superfície do
quarteirão. Os espaços internos resultantes se abririam para a cidade
oferecendo equipamentos públicos e generosas áreas arborizadas. O importante é
enfatizar que neste momento a quadra passa de uma condição de residual para se
tornar suporte de uma composição urbana que a tem como espaço da cidade. Dá-se
um passo adiante da relação edifício-rua como definidor da quadra, ou seja, o
perímetro da quadra deixa de ser o limite do espaço público.
Do desejo original de Cerda permaneceu apenas o traçado viário, as quadras
foram maciçamente ocupadas no perímetro junto ao alinhamento da calçada
retomando um caráter que a reaproximou da quadra tradicional. Originalmente as
quadras foram concebidas em média com 67.000m³ de área construída, atualmente
após 150 anos de adensamento progressivo temos em média 295.000m³ de área
construída por quadra.
Quadra com ocupação perimetral

Figura 3 – Quadra com ocupação perimetral

Duas cidades desenvolveram experiências extremamente significativas desta


tipologia: Amsterdã e Viena. No Plano de expansão de H. P. Berlage para
Amsterdam Zuid (1915) as quadras ainda são resultado do sistema viário, porém
contribuem como instrumentos de ordenação dos edifícios perante uma nova
hierarquia de vias e espaços urbanos através de construção diferenciada das
esquinas, diferenciação das bordas edificadas conforme as características da
rua delimitadoras e principalmente pela evolução do miolo da quadra.
Inicialmente destinado exclusivamente para jardins internos das unidades
residenciais térreas, o espaço interno evolui a partir da redução dos jardins
privados e inserção de ruas e pátios internos destinados ao uso semipúblico.
No caso de Viena a opção não é pela expansão, mas sim, por aproveitar vazios
urbanos pré-existentes para inserir habitação coletiva operária através de
grandes edifícios residenciais contínuos, chamados de “hoff”. Possuíam
equipamentos urbanos associados a generosos espaços ajardinados internos de
caráter semipúblicos. As grandes dimensões obrigavam a se sobrepor sobre o
traçado urbano existente. Os generosos pórticos resultantes definiam com
clareza os acessos ao interior da quadra. O conjunto Karl Marx Hoff, projetado
por Karl Elm em 1927, é o “hoff” mais conhecido. Implantado em um vazio urbano
de 15 hectares, os blocos residenciais ocupam apenas 18% do solo, com 1382
unidades de habitação e aproximadamente 5000 habitantes. Duas novas questões
surgem nos projetos de habitação coletiva: a resolução das unidades em
edifícios mais esbeltos (maior e melhor ventilação e insolação) e necessidade
de projetar as fachadas internas destas novas quadras.
Quadra com edifícios laminares paralelos (Fig. 4)

Figura 4 – Quadra com edifícios laminares paralelos

Gropius no III CIAM (Bruxelas, 1930) lança a questão: “Habitação alta, média
ou baixa?”. A pergunta é analisada por ele nas suas implicações econômicas e
sócias e passam da mera discussão da tipologia da unidade de habitação para as
regras de implantação e afastamento dos edifícios, assim como do gabarito de
altura e densidade populacional. Por tanto temos uma inversão de papéis, até
agora a unidade de habitação era conseqüência da forma do edifício, que era
resultante da forma do lote, que era resultante da sua localização na quadra.
Agora para o urbanismo moderno a célula de habitação é o elemento base da
formação da cidade.
A escolha pela forma laminar pelos urbanistas modernos basicamente é a mesma
que aproximou os arquitetos: ausência de hierarquia entre as partes,
capacidade de crescimento ilimitado, equivalência de condições para os
distintos elementos, relação de proximidade entre o espaço interior e o espaço
exterior. Em Frankfurt, Ernst May (diretor dos serviços de construção
municipal), coordena entre 1925 e 1930 a construção de 15.000 unidades em
distintos conjuntos chamados de “siedlungen” que apesar de intervenções
pulverizadas no tecido urbano apresentam uma grande coerência. Neste mesmo
período temos também importantes experiências em Roterdã (J. J. P. Oud) e
Berlin (Bruno Taut).
Edifício-cidade

Figura 5 – Edifício-cidade

Síntese do pensamento arquitetônico-urbanístico de Le Corbusier a “Unité


d’Habitation” representa muito mais uma crítica a cidade herdada do que
propriamente uma ruptura em relação a cidade tradicional. Pois como vimos, a
diluição do sentido de quadra tradicional foi um processo gradativo desde
Cerda até aqui. A substituição da quadra pela unidade habitacional representa
a crítica à “rue corridor”, ao parcelamento fundiário e as condições
insalubres das habitações urbanas.
A “Unité” representa para Le Corbusier o elemento morfológico catalisador das
novas cidades. Oferece a conquista do espaço público contínuo a partir da
implantação do edifício sobre “pilotis”, a possibilidade da implantação do
edifício não está mais vinculada ao sistema viário, mas sim a melhor
orientação solar, a incorporação em pavimentos elevados de funções urbanas
tradicionalmente vinculadas à cota do chão – desde o comércio aos equipamentos
coletivos. Sem dúvida a personificação das idéias contidas na Carta Atenas que
buscavam diferentes formas e práticas sociais de viver coletivamente
decorrente das relações entre as funções básicas (habitação, lazer, trabalho e
circulação).
Mega-estruturas
Figura 6 – Mega-estruturas

Uma ampla revisão de muitos dos princípios da cultura moderna, a eclosão de


distintas tendências arquitetônicas nos paises industrialmente mais avançados
aliado a um otimismo perante as novas possibilidades tecnológicas tornam a
década de sessenta um período de grande experimentalismo. Desde as propostas
radicais do grupo Archigram as fantasiosas idéias do Superestudio todas
compartilham o ideal Hegeliano do progresso ilimitado do positivismo moderno.
Através de uma descomunal exaltação estrutural e tecnológica que se sobrepunha
ao ambiente urbano existente as mega-estruturas geravam uma topografia
artificial que comportariam as mais distintas atividades necessárias para uma
metrópole. Esta paisagem artificial deveria ser de múltiplos níveis gerando um
sólido tridimensional. Esta nova escala dimensional acreditava-se poder
recuperar uma maior liberdade e oferecer utopias alternativas ao caos urbano.
Como exemplo construído podemos citar o Barbican Complex (1964-82) em Londres
projetado por Chamberlin, Powell e Bon.
Quadra pós-moderna contextualista
Figura 7 – Quadra pós-moderna contextualista

A partir dos anos oitenta cidades européias como Berlin e Barcelona estão
envolvidas em profundas transformações urbanas. A primeira, através do
programa do IBA, serviu como modelo para outras cidades européias
principalmente com as estratégias de remodelação de quadras parcialmente
consolidadas através da reconstituição perimetral das quadras e a
reinterpretação das tipologias, morfologias e linguagens das cidades
históricas européias. A segunda cidade aproveita a oportunidade de sediar os
Jogos Olímpicos de 1992 para reestruturar quatro grandes áreas urbanas. A
intervenção mais importante é a da Vila Olímpica que permitiu recuperar o
acesso da cidade ao mar além de criar um novo bairro residencial através de
uma estratégia extensão do Plano Cerdà de certas características de suas
quadras.
Conceitualmente a quadra contextualista recupera a ocupação perimetral e
conseqüentemente o desenho da rua tradicional. A esquina volta a ser
valorizada como referência urbana. Pequenos fracionamentos do perímetro
recuperam a possibilidade de acesso ao centro da quadra que volta a assumir o
papel de espaço coletivo habitualmente recebendo equipamentos e generosas
áreas verdes.
Quadra aberta
Figura 8 – Quadra aberta

Tipologicamente a quadra aberta não é uma novidade, o melhor exemplo disso é o


Conjunto Golden Lane (1954) em Londres, de Chamberlin, Powell e Bon. A
diferença desta nova abordagem está no posicionamento perante a cidade; não se
trata mais de uma abordagem positivista através da imposição de uma nova ordem
racional ou de uma cidade ideal como desejava o abstrato ideário moderno. Após
o esgotamento da linguagem pós-moderna e do reconhecimento das limitações
evidentes das estratégias contextualistas o pensamento contemporâneo tende a
considerar a possibilidade de uma revisão do espaço construído e do espaço
livre da cidade herdada a partir de um posicionamento complementar do espaço
já constituído.
A quadra aberta é por essência um elemento híbrido conciliador. Permite a
diversidade, a pluralidade da arquitetura contemporânea. Ela recuperar o valor
da rua e da esquina da cidade tradicional, assim como entende as qualidades da
autonomia dos edifícios modernos. A relação entre os distintos edifícios e a
rua se dá por alinhamentos parciais, o que possibilita aberturas visuais e o
acesso mais generoso do sol. Os espaços internos gerados pelas relações entre
as distintas tipologias podem variar do restritamente privado ao generosamente
público, sem desconsiderar as nuances entre o semipúblico e o semiprivado.
notas
1
O conteúdo deste texto foi apresentado (em palestra do mesmo nome) no “Seminário
Hipótesis de Paisaje 05” em Córdoba – Argentina, no dia 20 de setembro de 2005.

2
PORTZAMPARC, Christian. “A terceira era da cidade”, In: Revista Óculum 9, Fau
Puccamp, Campinas, 1992.
bibliografia
LAMAS, José. Morfologia urbana e desenho da cidade. Fundação Calouste Gulbenkian /
Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, Lisboa, 1993.

MARTÍ ARÍS, Carlos (Ed.). Las formas de la residencia en la ciudad moderna. Depto.
de Proyectos Arquitectónicos de la UPC, Barcelona, 1991.
sobre o autor
Mario Figueroa, arquiteto pela FAU-Puccamp (1988) e doutor pela FAU-USP (2002).
Desde 1993 é professor de Projeto na FAU Mackenzie, onde também é professor do
curso de mestrado e pesquisador. Também leciona no CAU Belas Artes desde 1998

comentários

069.11
sinopses
como citar
idiomas
original: português
compartilhe

069
069.00
Brasil de los museos brasileños
Eduardo Subirats
069.01
Breve introdução à Arquitetura da Escola Paulista Brutalista
Ruth Verde Zein
069.02
O edifício do Ministério da Educação e Saúde (1936-1945): museu “vivo” da arte
moderna brasileira
Roberto Segre, José Barki, José Kós e Naylor Vilas Boas
069.03
Viagens pelo Nordeste do Brasil: uma crônica em vocábulos
Luiz Manuel do Eirado Amorim
069.04
Novo ecletismo de fim de século
Rogério Pontes Andrade
069.05
Os “Brasileiros” e a azulejaria exterior portuense do século XIX
Luiz Alberto Fresl Backheuser
069.06
Sala de aula, arquitetura, corpo e aprendizagem
Marilice Costi
069.07
Patrimônio industrial e memória. A formação da cidade de Itapevi SP a partir
da contribuição da Santa Rita S.A.
Henrique Caruso Almeida
069.08
As arquiteturas do tempo de Louis I. Kahn
Nicolás Sica Palermo
069.09
Estudios de paisaje para elevar la qualidade de vida en zonas de interés
suburbano
Graciela Gómez Ortega e Omarky Aguilar Labrada
069.10
Sóbrio, organizado e conservador: o escritório é a cara do dono? Sobre
valores, símbolos e significados dos espaços
Cristiane Rose de Siqueira Duarte, Alice Brasileiro, Ana Paula Simões e
Viviane Cunha
jornal
• notícias
• agenda cultural
• rabiscos
• eventos
• concursos
• seleção

Você também pode gostar