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TÍTULO ORIGINAL
Escape Room
CAPA
Marcela Nogueira
IMAGENS
Gerado por IA/Adobe Stock
Micha Klootwijk/Adobe Stock
FOTO DA AUTORA
Stefan Neeven
DIAGRAMAÇÃO
Fátima Affonso / FQuatro Diagramação
E-BOOK
Marcelo Morais
24-
197204 CDD-793.93
Sobre a autora
Look, if you had one shot, or one opportunity,
to seize everything you ever wanted
in one moment,
would you capture it,
or just let it slip?
— Eminem, “Lose Yourself ”*
* Veja bem, se você tivesse apenas uma chance, uma única oportunidade para desfrutar de tudo que
sempre quis num único momento, você aproveitaria ou simplesmente deixaria passar?
Daqui posso ver o meu alvo.
Mas ele não pode me ver.
Ele tem que pagar.
Por tudo.
Eu só preciso de um sinal.
Por favor.
Me dê um sinal para que eu possa começar.
— E le é gay. Com certeza — afirma meu amigo.
Sky está sentado no encosto do banco, bem ao meu lado e
da Alissa. Somos só nós três. O parque está deserto.
— Não acho, não. — Alissa pega a carteira. — Quer valer quanto?
Sobre quem os meus dois melhores amigos estão falando? Não tenho
ideia. Geralmente, suas conversas não fazem o menor sentido para mim,
como se eu estivesse do outro lado da parede.
Alissa balança uma nota de cinco, e isso me lembra o primeiro dia do
segundo ano do ensino médio. Pensei que ela também havia feito uma aposta
na época.
Ela foi até a minha mesa naquela primeira manhã e perguntou se o lugar
ao meu lado estava ocupado. Alissa é o tipo de garota que poderia se sentar
no lugar que quisesse, de tão linda! Seus olhos têm a mesma cor do litoral da
Itália, onde eu havia passado o verão. Desconfiada, olhei ao meu redor.
Onde estavam suas amigas dando risadinhas, zoando de longe da minha cara
só porque eu tinha acreditado nela?
Mas não havia ninguém. Éramos as únicas na sala de aula.
A voz do Sky me traz de volta ao presente.
— Que tal uma pizza? Topa apostar? — propõe ele. — Assim, o Milas
pode fazer a entrega. Perfeito, né?
Eles estão falando do Milas, um garoto que trabalha na pizzaria com o
Sky. Eu nunca vi o cara, mas a Alissa já falou dele algumas vezes.
— Pedido feito, ou seja, agora a gente só precisa esperar e ver.
Sky coloca o celular no bolso e enrola um cigarro. Ele nunca anda com
um maço de verdade. Sempre faz tudo um pouquinho diferente de todo
mundo.
— Doeu? — Ouço a Alissa perguntar. “Retorno” ao banco do parque.
Sobre o que eles estão falando agora?
Sigo o olhar dela até o piercing na sobrancelha do Sky, já colocado há
algum tempo. Quando apareceu na escola no dia seguinte, a pele em volta
do piercing estava inflamada e inchada. Toquei a minha sobrancelha, que
também doía havia alguns dias.
A princípio, achei que fosse coincidência, mas quando a Alissa quebrou o
pulso na educação física, o meu ficou dolorido também por semanas.
Sou capaz de sentir a dor de outras pessoas? Será possível? Isso parece
sobrenatural, estranhíssimo. E se alguém descobrir, minha reputação vai
piorar ainda mais, serei tachada de maluca.
Sky aponta para a própria sobrancelha.
— Hoje de manhã saiu tanta nojeira que dava até pra fazer uma vitamina
com aquilo tudo.
Alissa dá um empurrão nele, que quase cai do encosto do banco.
— Eca!!! Para com isso! Assim você vai me fazer desistir.
Desde quando a Alissa queria botar um piercing? Tento imaginar como
ficaria uma argolinha na sobrancelha dela.
Algumas semanas atrás, na aula de corte e costura, tivemos que criar
vestidos a partir de sacos de lixo. Alissa passou o dela pela cabeça, segurou de
um lado e grampeou o plástico. Em seguida, desfilou pela sala como se
estivesse numa passarela. Alguns garotos começaram a assobiar. Ela ficou
linda até mesmo usando um saco de lixo.
— E a pizza? — pergunta Alissa, impaciente.
— O Milas tem meia hora pra chegar aqui. Depois disso… é pizza grátis!
Alguns minutos depois, uma scooter com um baú azul na traseira entra
no parque.
Sky pega o meu pulso e olha para o relógio.
— Bem na hora. Isso é típico do Milas. Viu? Ele é um gay pontual.
Meu estômago está revirando, como se eu estivesse prestes a fazer uma
prova importante.
— Para com isso de gay. — Alissa ajeita rapidamente os cabelos e depois
a camiseta. É um pequeno gesto, mas posso dizer que ela ficou nervosa.
Milas estaciona em frente ao nosso banco e acena para o Sky. Quando
levanta o visor do capacete, eu vejo dois olhos azuis brilhantes, como os da
Alissa. Mas há uma certa frieza neles. Não têm nada em comum com o mar
italiano; são mais como um iceberg. Sinto uma coisa esquisita, algo que não
consigo identificar.
— Pepperoni? — O garoto tira a caixa do baú. O aroma de queijo
derretido me faz salivar.
— Isso aí. É a nossa. — Em seguida, Sky aponta para Alissa. — Ela vai
pagar.
— Quem disse? — Alissa olha para o garoto. — Oi, Milas.
N ão curto quando uma pessoa sabe o meu
nome, mas eu não sei o dela. Parece que
fico em desvantagem.
Eu já tinha visto aquela garota. De vez em quando, o Sky encontra com
ela depois do trabalho. Reparei nela imediatamente porque nossos olhos são
muito parecidos. Meu pai costumava dizer que eu era o único além dele a
ter faróis azuis daquele jeito, mas não era verdade. Os olhos dessa garota são
hipnotizantes.
Será que o Sky disse o meu nome para ela?
Ela sorri.
— Quer uma fatia?
Eu fico na dúvida, pois realmente preciso me mandar, mas algo na voz
dela me faz parar.
É só então que percebo a outra garota no banco. Ela está levemente
inclinada para a frente. O cabelo liso e repartido ao meio emoldura o rosto
como duas cortinas. Parece um pouco deslocada.
— Está quase na hora do seu intervalo, né? Anda, come uma fatia com a
gente.
Aparentemente, a gata dos olhos azuis não sabe apenas o meu nome, mas
também os meus horários. Com certeza o Sky passou a ficha completa.
Posso ver parte do seu pescoço nu.
Como seria beijar aquela pele macia?
Fico assustado com o meu pensamento. Depois da Karlijn, decidi que
nunca mais sentiria nada sério por garota alguma. É mais fácil rejeitar todas
elas do que permitir que se aproximem. Afinal, quando elas se aproximam,
começam a fazer perguntas. Perguntas que eu não posso nem quero
responder.
Eu sei que deveria ir embora, mas, por algum motivo, me pego tirando o
capacete e me sentando ao lado dela.
— Aqui, ó.
A gata me passa a caixa. Enquanto como a minha fatia, eu me atrevo a
espiá-la mais de perto. Tem que haver algo decepcionante nela, algo que me
ajudará a esquecê-la mais tarde.
Porém, ela fala como se estivesse cantando. Seus olhos são de um azul
infinito. E seu perfume é aconchegante como o sol de outono.
Já não sei se quero esquecê-la mais tarde.
Engulo a pizza.
— E você quem é?
E stamos sentados tão perto um do outro que a
perna dele encosta na minha. Mas está me
olhando como se quisesse encontrar alguma coisa no meu
rosto. Os olhos estudam cada milímetro da minha pele.
Eu nunca conversei com ele, mas sempre que vou encontrar com o Sky
no trabalho dele, eu o observo de longe.
Milas se destaca, não por ser bonito, mas porque parece se esforçar para
não ser. É como se, de certa forma, a própria aparência o incomodasse. E isso
é algo com que me identifico.
Os garotos não tiram o olho de mim, o que me deixa p da vida. Andreas
foi o último cara que eu beijei, e eu de fato gostava dele. Mas depois do
beijo, ouvi ele se gabando disso como se eu nem mesmo fosse uma pessoa,
somente uma “gostosa” qualquer, um troféu.
Sky também é bonito, mas sua aparência de durão faz com que muita
gente se afaste dele. E, para falar a verdade, eu acho uma ótima ideia fazer
esse tipo.
De vez em quando, em casa, eu fico me encarando no espelho. Não me
atrevo a fazer uma tatuagem, mas um piercing… quem sabe? Dia desses, fiz
um pontinho numa das minhas narinas com uma canetinha. Logo de cara,
a ideia de ter uma pedrinha no nariz fez com que eu me sentisse mais forte.
— E você quem é? — pergunta Milas, me imitando.
— Alissa.
— Você é gay? — pergunta Sky.
Eu entendo por que os professores dizem que ele é exageradamente
direto. Mas ele é mais que exageradamente direto: é como um trator sem
freio de vez em quando.
Milas balança a cabeça, irritado.
— Eu?! Não, eu não sou gay! Eca!
Sky acende o cigarro que havia enrolado.
— Não precisa ficar com raiva. Os gays são gente boa.
Milas então coloca o último pedaço de pizza na boca e se levanta.
— Tenho que ir.
Será que ele está indo embora só por causa da pergunta do Sky? Percebo
que fiquei irritada. Quero que o Milas olhe para mim de novo, e do jeito
como havia feito assim que chegou. Foi como se ele pudesse ver muito além
do meu exterior.
— É o Sky que tá bancando a pizza — digo. — E vai dar a gorjeta
também.
X ingo mentalmente.
Alissa está a fim dele.
Pensei que aquilo não passasse de uma aposta, mas ela
sorriu para o Milas do jeito que somente ela sabe fazer. O Sorriso
Exterminador de Garotos.
Quando chego em casa, ligo no máximo o amplificador da minha bateria
elétrica. Tocar sempre funciona, já toquei por meia hora e continuo com
raiva. Tiro os fones de ouvido.
Por que não consigo relaxar?
Alissa não faz ideia de que eu só comecei a sair com a Caitlin para me
distrair.
Caitlin está no mesmo ano que a gente na escola. Se eu apertar os olhos,
elas até que se parecem. Mas os olhos azuis dela não são páreo para os da
Alissa.
Me jogo na cama e olho para a foto na minha mesa de cabeceira. Deixá-
la ali dificulta meu sono, mas sem ela… é ainda pior.
Pego a foto e a seguro perto do rosto. Há um pedacinho desgastado
onde, de vez em quando, pressiono meus lábios. Estamos um do lado do
outro, nossos braços se tocando.
Eu realmente gostaria de recortar geral da foto, mas a original faz com
que ninguém se dê conta do que está rolando quando entram no meu
quarto. Não há motivo para eu me preocupar com a Mint, por exemplo. Ela
passa metade do tempo em outra dimensão, viajando com ela mesma.
— Teu lugar é ao meu lado — digo baixinho para a foto. — Você só
precisa perceber isso.
— E aí? Você vem? — pergunto à Mint quando ela
sobe na bicicleta.
— Aonde?
— Fazer o piercing?
— Agora? — Mint sorri. Ela sabe que eu sou impaciente. Quando tenho
uma ideia, tenho que colocá-la em prática logo em seguida.
— É claro que eu vou.
Alissa e Mint estão me esperando do lado de fora quando acaba meu turno.
O piercing dela brilha. Como se já não fosse linda o suficiente.
— Você vem pro filme? — pergunta Alissa.
— Não, vou me encontrar com a Caitlin. — No momento em que digo
isso, fico nervoso de novo. Recentemente, venho tendo a sensação de que a
Caitlin quer ir mais fundo na relação, além de beijos. Sei que eu deveria
querer o mesmo, mas não consigo. Minha cabeça está em outra pessoa.
— Tá rolando um troço sério entre vocês dois, é?
Faço um ruído estranho que pode significar qualquer coisa. Mudo de
assunto o mais rápido possível.
— Topam ir nesse lugar aqui na sexta que vem? — Puxo o flyer do
bolso.
Alissa faz uma careta.
— O que é isso?
— Ah, já ouvi falar! — Para minha surpresa, Mint arranca o flyer da
minha mão. — Você tem que solucionar enigmas para conseguir escapar em
até 60 minutos.
— E você acha isso maneiro? — Alissa arqueia uma das sobrancelhas.
Mint faz que sim com a cabeça.
— Quem já foi diz que é irado. Eu topo.
Alissa olha rapidamente para mim. Com certeza está pensando o mesmo
que eu: a Mint é tímida demais para experimentar coisas novas. Quando rola
viagem com a escola, ela prefere ficar em casa. Eu e a Alissa vamos sozinhos
todo ano ao parque de diversão que é montado no verão na praça principal
porque a Mint diz que as atrações são muito radicais e ela fica megaenjoada.
A não ser que esteja com a Alissa, raramente me visita no trabalho, sempre
dando a desculpa de que está com cólica ou enxaqueca.
— Por mim, beleza — diz Alissa.
Aponto para a parte final do flyer.
— Só precisamos de uma quarta pessoa.
— A Caitlin? — sugere Mint.
Estar com a Caitlin no meu quarto já faz com que eu me sinta num
Escape Room.
— Ou o Milas? — sugere Alissa.
Xingo mentalmente. De jeito nenhum quero passar 60 minutos assistindo
aos dois trocando olhares, se paquerando…
Olho para mim mesma no espelho e vejo dois grandes olhos verdes. O
comentário da Alissa me magoou. Sei que minha mãe ficou preocupada na
semana passada por eu ter me atrasado, ela exagera, foi ruim, claro, mas já
está tudo bem. Alissa não precisava ter me comparado a ela.
Só que isso ficou na minha cabeça. Será que é assim que todo mundo me
vê?
Olho para o meu reflexo de novo. A garota que me encara não é nada
interessante; insossa, eu diria. A Alissa é exatamente o oposto. Você tem que
olhar para ela, querendo ou não. O Sky também é muito gato, com os
piercings e aquelas roupas hypadas que ele usa. Mas… e eu?
Nunca vou me esquecer de quando ele veio se sentar em frente a mim e
a Alissa no primeiro dia de aula.
“Maior pinta de rockstar”, Alissa falou para mim. “Quer apostar?”
Antes mesmo que eu pudesse responder, ela cutucou o ombro dele.
“Por acaso você toca bateria?”
“Toco”, respondeu enquanto lançava um olhar daqueles para a Alissa. “E
o que você toca? Não, espera, você canta, né? É bonita o bastante pra liderar
uma banda.”
O comentário foi simples, mas fez eu me sentir invisível. Como se eu
não fosse nada mais que a sombra da Alissa. E isso continuou a acontecer.
Por que eu deixo eles fazerem isso comigo? Vi bem como o Sky e a Alissa
trocaram olhares quando reagi de um jeito superanimado ao convite para ir
ao Escape Room. Eles não esperavam isso de mim. A ratinha Mint, que tem
medo de tudo. Bem, eu não quero mais ser essa Mint. O Escape Room
parece ser a chance de um novo começo. E um novo começo requer… um
novo visual.
Junto os cabelos e os seguro no alto da cabeça. Agora que estão longe do
meu rosto, pareço uma pessoa completamente diferente. Mais acessível,
como se as cortinas do teatro enfim tivessem sido abertas.
Remexo na minha escrivaninha. Estou à procura do kit de maquiagem
que a minha tia me deu de aniversário.
A sombra verde é da mesma cor dos meus olhos. Desenho uma linha
com o lápis de olho e aplico rímel.
Quando dou um passo para trás a fim de analisar bem o resultado, fico
chocada. Essa garota pode até não ser uma supermodelo, mas invisível…
nunca mais.
Sinto uma energia nova fluindo pelo meu corpo, mais intensa do que o
medo de ser notada.
É essa a garota que eu posso ser… ao menos se eu parar de me esconder.
A lissa vai chegar a qualquer momento.
Mandei uma mensagem para ela logo
depois do que aconteceu no Campão. Eu não podia
esperar nem mais um minuto.
Não aguento mais esperar até amanhã também. Quero vê-la agora. Já!
Jolieke ficou surpresa quando eu contei que tinha convidado uma
menina para jantar. Ela quis saber quem era, e eu disse que o nome dela é
Alissa.
— Alissa? É a sua nova namorada?
Balancei a cabeça.
— Ainda não.
Jolieke sorriu. E acho que foi de alívio. Tudo que ela mais quer é que eu
siga em frente com a minha vida.
A campainha está tocando. Meu coração para de bater por um segundo.
Alissa chegou.
N ão há como evitar. Durante todo o caminho
até o apartamento do Mas, eu não paro de
pensar no que a Mint disse para mim. Por que ela
apareceu para me alertar sobre ele? Talvez eu devesse ter perguntado mais,
mas já estava atrasada. Além disso, ela é que nem a mãe. As duas se
desesperam por tudo.
Tentando deixar o alerta de lado, toco a campainha do último
apartamento. A porta se escancara quase na mesma hora, e o Milas está
parado bem ali, o rosto corado.
— Oi, que bom que você chegou! Entra.
Sigo o Milas até a sala e então a cozinha, onde uma mulher aperta a
minha mão. Ela é mais jovem do que eu imaginei que a mãe dele seria, mas
os dois são bem parecidos. O sorriso é o mesmo, do tipo que os olhos
também sorriem junto.
— Então você é a garota que fez o Milas passar uma hora inteira na
cozinha?
Milas cozinhou para mim? Sorrio só de imaginar como foi. Meu último
pensamento sobre o que a Mint disse desbota até desaparecer por completo.
Enquanto ele está tirando a comida do forno, olho ao meu redor. A sala
é pequena, mas confortável. Há algumas fotos nas estantes. Meus olhos se
fixam no retrato de um homem que é a cara do Milas. Deve ser o pai dele.
Olho para uma foto da Jolieke com uma amiga, em frente a um
coffeeshop. Ambas têm diante de si um sundae enorme.
— Eu sou louca por sobremesa — confessa Jolieke ao perceber que estou
olhando para a foto.
Há uma outra, de uma menina loirinha que deve ter a mesma idade da
Fenna, e outras mais da Jolieke e do Milas juntos.
— Ele é bem gatinho, né? — Jolieke soa tão orgulhosa que não consigo
conter o riso.
— Ô. Muito.
É meio esquisito estar aqui, mas Jolieke faz eu me sentir acolhida. É
como se o Milas e eu nos conhecêssemos há meses.
Atrás de nós, ele coloca uma travessa fumegante na mesa.
— O jantar está servido.
No quarto do Milas não há fotos. Na verdade, não tem quase nada, a não ser
o essencial. Mas ele tem um teclado.
— Você toca? — pergunto, curiosa.
— Um pouco. — Milas senta na cama. — Foi presente do meu pai.
— Hum, onde ele está?
— Morreu.
— Ah… — Posso sentir o meu rosto ficando vermelho. — Eu…
— Você não tinha como saber. — A expressão do Milas endurece, como
se ele tivesse colocado uma armadura. — Ou tinha?
— Não, né. — Eu queria não ter dito aquilo. De repente, me sinto
desconfortável. A sensação boa que tive durante o jantar derrete como neve
no verão.
— Faz… — Escolho minhas palavras com cuidado. — Muito tempo?
— Quase um ano. — Milas olha para o chão. — A gente morava em
outro lugar.
Olho ao meu redor. Isso explica o motivo do quarto dele parecer tão
impessoal. Eles devem ter se mudado há pouco tempo.
Milas dá uns tapinhas na cama.
— Vem, senta aqui comigo.
Sinto o meu coração acelerar enquanto me sento ao lado dele. Estamos
pertinho um do outro, como no banco do parque na semana passada, mas
aqui a Mint e o Sky não estão por perto.
— Estranho, né? — digo, e me atrevo a olhar para ele. — Nós dois
sentados aqui desse jeito.
— Você acha?
— Na verdade, não — admito. — Parece normal, sei lá.
Tudo fica em silêncio por um instante. Não sei o que mais posso dizer.
O relógio em cima da porta marca os segundos.
— Seu pai ficou doente, né? — pergunta Milas, e é como se tivesse me
esfaqueado. Esse foi o nível do choque eu senti.
— C-como… como você sabe disso?
Ele fica sem graça.
— Eu te vi no documentário.
Duas coisas passam pela minha cabeça. Primeiro, fico com raiva, como se
ele tivesse visto uma coisa que não deveria. Mas então começo a me sentir
bem, porque significa que ele pesquisou sobre mim na internet. Se você
colocar meu nome no Google, o documentário é a primeira coisa que
aparece.
— Meu pai teve TEPT. Transtorno do estresse pós-traumático — revelo.
Milas assente.
— Deve ter sido punk.
Sky e Mint já assistiram ao documentário também, mas nunca
comentaram nada. Sky não por covardia, é que ele não é muito, digamos,
comunicativo. Mint só me lançava olhares de preocupação, como se achasse
que eu pudesse fazer uma besteira a qualquer momento.
Entretanto, Milas tocou no assunto como se fosse a coisa mais normal do
mundo. E ele foi sincero sobre o pai dele, então eu quis ser sincera sobre o
meu também.
— Minha irmã caçula passou a dormir comigo. Ela começou a ter medo
de ficar sozinha no quarto, meu pai gritava de madrugada… Quando eu era
criança, costumava dormir muito mal quando ele tinha que ir trabalhar,
e continuo tendo problemas com isso, depois do acidente. É como se todo
dia eu…
— Sentisse medo — Milas completa minha frase.
— Sim. — Eu me viro e olho para ele. Seus olhos azul-claros estão
brilhando, como se houvesse milhares de luzinhas dentro. — Nunca
conversei sobre isso com ninguém.
— A não ser naquele documentário — retruca Milas.
— Exatamente. — Dou um sorriso. — Eu reparo que os meus amigos
não se atrevem a fazer perguntas sobre isso.
— Sei bem como é.
Por um instante, tenho medo de que a armadura do Milas volte, mas isso
não acontece.
— Será? Como é com os seus amigos então? — pergunto.
— Não tenho amigos.
A princípio, parece que ele está brincando, mas não está.
— Você não gosta muito de gente?
Milas dá de ombros.
— Eu chutaria que você tem um montão de amigos — digo.
— Por quê? Por causa disso, né? — Ele aponta para o próprio rosto.
— Também — admito.
— Eu odeio a minha cara.
Posso sentir o meu sorriso se abrindo. Não foi exatamente isso que eu
achei ter visto nele?
Milas suspira.
— Sempre que eu conheço pessoas novas, elas já vêm com uma opinião
formada sobre mim. “Ah, aposto que ele se acha.” “Ah, aposto que pega um
monte de garotas ao mesmo tempo.” “Deve ser o maior galinha.”… Mas eu
só namorei uma vez na vida.
P ra que que eu fui falar disso? E quando ela
me pergunta “Qual é o nome dela?”, percebo
que eu merecia é uma surra.
— Karlijn.
Dizer aquele nome em voz alta fez parecer que ela estava presente,
mesmo que apenas por um instante.
— Quando vocês terminaram?
Nunca vou me esquecer daquele dia, mas finjo que tenho que me
lembrar.
— Ééé… janeiro.
— Depois que seu pai…
— Sim. Eu não queria conversar sobre o assunto, e ela não conseguia
entender isso.
Não é verdade. O problema foi justamente eu ter falado. E agora não
posso retirar nada do que eu disse.
Lembro do momento exato em que o pai da Karlijn apareceu no
apartamento, pouco depois dela ter fugido de casa. Ele gritou comigo,
mandou que eu ficasse longe da filha dele. Disse que me arrastaria direto
para a delegacia se eu tentasse vê-la novamente.
Por sorte, a Jolieke não estava em casa quando aconteceu. Ela sempre
achou que fui eu que terminei com a Karlijn.
— E você? — perguntei, apressado. — Tem algum ex-namorado?
— Nunca namorei sério. — Alissa fica levemente vermelha. — No meu
caso, na maioria das vezes, os caras só tão atrás de uma coisa.
— Sexo — digo. — Eu entendo. Você é linda. Mas aposto que tem
muito mais a oferecer do que isso.
Alissa assente devagar. Acho que aquele piercing no nariz é novo. Meus
olhos são atraídos pela pedrinha. E, em seguida, seguem automaticamente
para os lábios.
Quero beijá-la.
A pele abaixo da orelha, o pescoço, a barriga…
O que ela faria se eu me inclinasse na direção…? Talvez eu esteja
exagerando, indo rápido demais. A noite está indo tão bem. Não quero fazer
nenhuma cagada agora.
Só que então… ela me beija.
O frio toma conta da minha barriga enquanto eu a puxo mais para perto
e sinto uma língua macia roçando na minha. Ela beija de um jeito muito
diferente de como me lembro dos beijos da Karlijn.
Karlijn… Se a Alissa soubesse o que eu fiz, jamais me beijaria assim.
Afasto esse pensamento na mesma hora. Eu deveria estar curtindo o
momento. Quem vive de passado é museu.
A mão dela sobe e vai até os meus cabelos. Estou de novo da minha
velha cama, no quarto antigo. A Karlijn costumava tocar nos meus cabelos
do jeito errado, o que sempre me causava arrepios. E ela acabava dando
risada.
Eu me afasto. Por reflexo.
Outras imagens surgem na minha mente. A escada, que rangia e sempre
dedurava a gente quando a Karlijn queria sair de fininho de manhã cedo,
antes dos meus pais perceberem que ela tinha passado a noite comigo. Meu
pai me ensinando a jogar xadrez e explicando as regras com toda a paciência
do mundo pela milésima vez.
— O que foi? — O rosto da Alissa está tão perto do meu que fica fora
de foco. — Não gosta que toquem nos seus cabelos?
Minha garganta parece seca, como se eu não tivesse bebido nada há dias.
Alissa sorri.
— Meus irmãos também não gostam. O Koen fica todo irritadinho se eu
bagunço os dele. E os do meu pai? Parece até que são sagrados, mesmo que
ele já esteja praticamente careca.
Meu pai tinha os cabelos castanho-claros, que nem os meus. Sou
parecido com ele. Sempre que me olho no espelho, é ele quem eu vejo. E
então me vem a dor de lembrar que ele está enterrado a sete palmos. Todos
os dias, meu rosto faz com que eu me sinta muito próximo do meu pai, mas
nunca nada será capaz de trazê-lo de volta.
Não quero que a Alissa fale sobre o pai dela. Faz com que eu me lembre
do meu.
— Vem cá — digo, puxando-a de volta para mim.
Quero continuar com os beijos até que essa sensação ruim vá embora. E,
mesmo depois disso, não vou querer parar.
Quero acreditar que conseguiremos ficar juntos, mesmo que seja apenas
por agora.
D esde que o meu pai ficou doente, essa foi a
primeira vez que eu realmente falei sobre o
assunto. Mas perguntou sobre ele, e eu respondi. Simples
assim. Por que o Sky e a Mint nunca nem tentaram fazer isso?
Fico pensativa enquanto pedalo de volta para casa. Eu havia criado
coragem para beijar o Milas.
Nem pensei duas vezes, só me joguei. No começo, tive medo dele me
afastar, mas rolou o contrário, ele me puxou mais para perto. Nós nos
beijamos como se tivéssemos que recuperar todo o tempo perdido.
Tudo rolou muito naturalmente com ele. Eu me transformei numa
versão de mim mesma que mal consigo reconhecer, mas uma versão da qual
gostei muito.
Só toma cuidado, tá bem?
Por quê? A única coisa que me assustou nele foi a fisionomia ao falar
sobre o pai. Mas também, né? Eu queria o quê? Se meu pai tivesse
morrido… juro, eu teria pirado. Não sei se eu seria capaz de falar sobre isso
normalmente. Mal consigo falar sobre o período em que ele ficou doente.
Fecho a porta de casa. Todas as luzes já estão apagadas. Geral dormindo.
Vou até a sala de estar, pois não tenho como pegar no sono agora, de jeito
nenhum. Estou agitada demais por causa do Milas e do nosso beijo. E que
beijo. A gente vai se ver de novo amanhã, mas a espera parece eterna.
No escuro, vejo uma figura sentada no sofá, ou seja, alguém ainda está
acordado.
— Pai?
Acendo a luz do pequeno abajur ao lado da TV.
— O que você tá fazendo no escuro?
Observo tudo ao meu redor, desde a tigela ainda cheia de batatas fritas
em seu colo até seu olhar distante.
Sinto meu coração acelerar.
Ele ficava assim quando…
Será que eu devo chamar a mamãe? Será que vai começar tudo de novo.
O olhar preocupado dela é quase tão difícil de suportar quanto o olhar
distante do meu pai.
— Nada, não. Eu só estava aqui pensando.
O tom de voz dele parece firme e forte. É um alívio. Quando ele ficou
doente, sempre parecia distraído, aéreo.
— Sobre o quê?
— Vem, senta aqui comigo. — Meu pai põe o braço em volta de mim.
Vejo o nosso reflexo na tela apagada da televisão. Ele está usando o uniforme
de bombeiro, e eu nem tirei o meu casaco.
Ele começa a falar.
— Uma adolescente sofreu queimaduras muito sérias esta noite. Ela
tentou acender uma fogueira com os amigos, com álcool, mas a situação saiu
do controle. Alguém viu o fogaréu e nos chamou. Até conversamos por um
instante antes dela ser levada para a ambulância.
— O que ela disse?
— Ela me agradeceu demais. Acho que ainda estava tomada de
adrenalina. Disse que eu era um herói.
— E é exatamente o que você é — replico.
Meu pai se encolhe, e me arrependo logo de cara do que eu disse,
porque sei que ele está pensando sobre o Natal passado. A menininha que
morreu naquele incêndio tinha a mesma idade da Fenna. O fogo consumiu
quatro vidas naquela noite.
Olho para ele com cuidado. Será que ainda pensa que foi culpa dele? Isso
não faz sentido algum. A investigação provou que não havia absolutamente
nada que ele pudesse ter feito. Se tivesse voltado para dentro da casa, eu não
teria um pai agora, que nem o Milas.
— Papai? — Fenna aparece no corredor. Quando nos vê sentados juntos,
seu rostinho fica preocupado. — Cê tá chorando?
Meu pai balança a cabeça.
— Não, querida. O papai não está chorando.
— Vem, vou te levar pra cama — digo, levantando rapidamente do sofá.
A última coisa que eu quero é que a Fenna comece a se preocupar. Mas
enquanto a coloco para dormir, ela me encara com medo no olhar.
— O papai tá triste de novo, né?
Meu coração parece se partir em mil pedacinhos.
É amanhã.
— S ky!
Ao longo da semana, andei fugindo da Caitlin na escola, mas
agora a bicicleta dela está emparelhada com a minha.
— O que você vai fazer hoje à noite? — pergunta ela.
— Vou num Escape Room — digo. — Com a Mint, a Alissa e o Milas.
Alissa e Milas. Já tive três pesadelos com os dois essa semana e todos
terminaram com um beijo. Morro de medo só de pensar em como será mais
tarde, medo de estar trancado com os dois numa sala das oito às nove da
noite. E se eles passarem o tempo todo flertando um com o outro? Isso está
me deixando louco.
— Que maneiro! — Caitlin me olha de rabo de olho. — Será que rola
de eu ir também?
Eu podia mentir e dizer que quatro pessoas era o número máximo de
participantes, mas… e se ela pesquisar? Não, vou ter que inventar algo
melhor.
— Rola, claro! Eu tenho que ir ao trabalho hoje, mas se você estiver
mesmo afim, aparece lá por volta das nove, aí a gente se encontra.
Tecnicamente, não é uma mentira. Nós estaremos lá; só que de saída. Aí,
eu digo que confundi os horários. Ou que ela confundiu.
M eu pai me lança um olhar surpreso quando
eu apareço toda encasacada na sala de
estar.
— Aonde você vai?
— Pra um Escape Room. — Olho para o relógio. — Inclusive, já tô
atrasada.
— Esqueceu que combinou comigo de cuidar da Fenna esta noite?
Droga. Esqueci completamente.
— Será que o Koen ou, sei lá, o Ruben… um dos dois não pode fazer
isso?
— Foram todos lá pro Centro. Sua mãe está com eles na casa da Janet,
e eu tenho que trabalhar.
Olho para o uniforme do meu pai. Por que ele não arruma outro
emprego? Alguma coisa sem graça num escritório, por exemplo, para que eu
tenha certeza de que, no fim do expediente, ele estará em casa são e salvo.
— Poxa, pai. Meus amigos estão contando comigo. Se eu não for,
o programa vai melar. A Fenna não pode ficar sozinha?
— Ela só tem nove anos, Alissa. — Meu pai suspira. Ele estava meio
ranzinza de manhã também. Provavelmente não dormiu muito bem. Ouvi
quando ele acordou, ainda nem tinha amanhecido. Isso acabou tirando meu
sono.
— Eu realmente não posso hoje, pai. Amanhã pra mim tá tranquilo, mas
agora não dá. A Mint vai chegar a qualquer instante.
Meu pai balança a cabeça fazendo que não.
— Você vai ficar em casa. Combinado é combinado. Nós temos um
trato.
Lágrimas raivosas enchem meus olhos.
— Seu trabalho idiota é uma merda!
— Como é que é?! — De repente, meu pai se transforma na mãe da
Mint. Ele não costuma ser tão rígido assim. Quando tenta, até começa a rir.
Mas não desta vez. A Fenna está certa. Ele está ficando diferente de novo.
Não sei se consigo lidar com isso novamente.
— Você tá sempre trabalhando! — grito. — Odeio isso!
O rosto do meu pai se fecha.
— Alissa…
Não consigo parar. Vomito todas as palavras que eu venho guardando há
meses.
— É você quem deveria ficar em casa, não eu. Você sai toda noite e
espera que tudo fique em paz. Bem, só que não. Você por acaso tem ideia do
quanto eu fico preocupada? E eu não sou a única. Sabe por que a Fenna vem
dormir comigo? Porque ela morre de medo de você não voltar. Ela chora até
pegar no sono. Toda; santa; noite! Ela não é minha filha, pai. Ela é sua filha,
pai. Então por que diabos você não se comporta como pai dela, nem que
seja uma vez na vida?
Onde está o meu alvo
T em alguma coisa errada. Alissa apareceu
pedalando mais rápido do que de costume.
Quero perguntar o que aconteceu, mas o comentário
grosseiro que ela fez ainda está fresco demais na minha memória. Fico com
medo de ser chamada de medrosa e dramática de novo. Se ela vier pra cima
de mim, vou acabar caindo no choro.
Como ela não voltou a tocar no assunto, eu também não perguntei nada
sobre a noite com o Milas.
Falei para os meus pais que eu ia assistir a um filme na casa da Alissa. Não
foi legal, mas sei que eles odeiam esses Escape Rooms, parques de diversão…
e programas do tipo, então poderiam acabar criando caso e se preocupando à
toa.
Alissa não diz uma palavra sequer enquanto pedalamos até lá. Acho que
ela nem percebeu que estou usando maquiagem pela primeira vez na vida.
T á rolando alguma coisa. Tem algo diferente no ar.
Mint e Alissa não dizem nada uma para a outra enquanto
pedalam ao meu lado. Mint está usando maquiagem e prendeu os
cabelos. Parece até outra pessoa.
— Tá gata, hein? — digo, enquanto ela põe a tranca na bicicleta.
Mint fica vermelha.
— Valeu.
Milas é o último a chegar, de scooter. Ele acena rapidinho para mim e
então se aproxima da Alissa.
Por um instante, acho que ele vai dar um beijo na bochecha dela, mas é
na boca.
Eles se fundem como tinta de aquarela e água, se tornando uma coisa só.
Como é que achei que eu teria alguma chance?
— Tá na hora. Bora entrar?
A sugestão da Mint finalmente faz com que o Milas e a Alissa se
desgrudem. Tento me recompor, mas é como se meu corpo estivesse
esfarelando. Toda a minha esperança foi por água abaixo.
Mint abre a porta de madeira e nos deparamos com um corredor longo e
muito escuro. A única luz vem de velinhas réchaud que estão em pequenos
vãos nas paredes.
Na metade caminho, há uma sala de espera com uma jukebox e dois
sofás caindo aos pedaços. No caixote de madeira que serve de mesa de
centro, há flyers do Escape Room.
A adrenalina que senti quando li o anúncio pela primeira vez toma conta
do meu corpo novamente. Tenho que me concentrar. Não vou deixar o
casalzinho estragar a minha noite.
— Cadê os funcionários? — pergunto à Mint, mas então ouço uma voz
bem atrás de mim.
— Boa noite. — Uma garota platinada estende a mão para apertar a
minha. — Olá. Meu nome é Cleo. Eu serei a mestre do jogo de vocês aqui
no Escape Room. Prontos para o desafio?
Espero por este momento há mais de dez meses.
E agora meu alvo está bem diante de mim, em carne e osso.
Aperto sua mão.
Meu alvo não faz ideia de quem eu sou.
Tenho que usar todo o meu autocontrole para não encará-lo.
Meu alvo é como os outros três: apenas mais um jogador.
A perto a mão da Cleo, mas nem olho muito
para ela. Estou pensando no meu pai, nas
coisas que eu disse a ele.
Por que ele não reagiu? Isso só está fazendo eu me sentir culpada, o que
me irrita ainda mais.
Mint deve ter percebido que alguma coisa estava errada, mas não fez
nenhuma pergunta. Em vez disso, apenas pedalou ao meu lado, parecendo
uma pessoa completamente diferente. Percebi a maquiagem, mas não sei o
que acho disso. Eu gostava da autenticidade dela, do fato de nunca tentar ser
alguém que ela não é.
— Acho que eu te conheço. — Ouço a Mint dizer. — Você não estava
correndo no Campão na semana passada?
— Pode ser. — Cleo olha para o nosso grupo. — Vou explicar a ideia
pra vocês.
Então, ela segue falando um monte de coisas, das quais eu só lembro a
metade. Ouço quando diz que, caso fiquemos empacados, podemos comprar
pistas com moedinhas especiais e que ela estará de olho em tudo que
acontece através de câmeras.
— Qual é o recorde? — Ouço Sky perguntar.
— Trinta e cinco minutos e treze segundos — responde Cleo. — E
deduzimos tempo a cada pista que vocês comprarem. Mas, acreditem em
mim, principiantes quase sempre precisam delas.
Eu mesmo não faço ideia do que isso seja, mas a Mint arregala os olhos.
— O alfabeto, é claro! Que nem aquele jogo de códigos que a gente
costumava jogar. A letra A significa 1, B 2, C 3 e por aí vai. Então Diazepan
é 4, e os remédios são FHDB — Mint olha para as caixas. — O código é
6842.
Acho que ninguém entendeu muito bem como ela chegou àqueles
números, mas quando o Sky tenta, o cadeado abre de uma vez só.
— E agora temos… isto! — Sky está segurando uma manivela, do tipo
que em geral é usada para enrolar e desenrolar um toldo.
— E a gente faz o quê? — Alissa suspira. Está bem menos animada do
que seus dois amigos. Eu realmente achei que ela fosse desistir. Tive que,
literalmente, puxá-la porta adentro.
— Acho que encaixa aqui, ó. — Mint aponta para um buraco na lateral
da estante à direita.
Sky insere a manivela e começa a girá-la. De cara, só ouvimos um
rangido, mas logo depois a parede dos fundos se move inteira para o lado.
Nela há um certificado emoldurado de um curso de primeiros-socorros.
E
portas.
stou de frente para um corredor longo e muito
mal iluminado. Há uma única lâmpada, e fraca,
pendurada no teto, que mal e mal me permite ver três
— Isso não deveria ser um tipo de… como se diz… de… jogo de poder,
né? — Olho para a câmera novamente. — O que essa pista significa?
Cleo está tirando sarro da gente. Isso já tá claro. Bem que eu não fui com
a cara dela logo de cara. Ela tem uma certa arrogância…
Outra bolinha rola para dentro do quarto, embora não tenhamos inserido
uma terceira moeda. Mint lê a nova pista e olha para mim.
— Você tem que ir até a porta principal. Onde a Cleo se despediu da
gente. Aquela que parece uma porta de cela.
— Quem? Eu?! — Pressiono meu peito com o dedo.
— É isso que diz aqui, ó. O Sky precisa…
— Só vai. Anda! — Alissa está impaciente.
— Beleza. Tô indo. Calma.
Não entendo o que está rolando. Um Escape Room é sobre resolver
enigmas, certo?
Volto à primeira sala, e logo os outros decidem vir atrás de mim. Levanto
a pesada portinhola de ferro maciço da porta e olho para a direita. Tudo que
vejo é o longo corredor por onde a gente entrou. Está vazio.
— Esse é o pior Escape Room do mundo!!! — grito. — Vou dar uma
estrela só! Ou dá pra dar zero?
Seguro a portinhola para ela não cair e me viro para a galera. Mint ainda
está lá atrás. Milas e Alissa estão lado a lado de novo, com praticamente
nenhum espaço entre eles. Será que algum dia vou me acostumar com essa
cena?
— Aí, nada da vaca da Cleo. Acho que ela tá é de caô, maior papo-
furado essa mina — digo, o mau-humor nas alturas.
Naquele instante, ouvimos um som… metal batendo contra metal.
Agachada embaixo da portinhola da porta, posso ouvir tudo que dizem.
“Esse é o pior Escape Room do mundo. Vou dar uma estrela só.
Ou dá pra dar zero ”
Até de vaca ele me xingou.
Isso acaba comigo.
Será que eles têm alguma ideia de quanto tempo eu passei trabalhando
nisso
Tudo é perfeito, até os mínimos detalhes.
Fico de pé e, com toda a minha força, baixo a portinhola.
Ouço o som de algo quebrando.
S into a mesma dor de antes, na área onde os meus
dedos começam. É como se eles tivessem sido
decepados. Mas, para a minha surpresa, é Sky quem solta
um grito lancinante.
Corro até a porta e vejo que a mão dele está presa até a metade. A
portinhola caiu e afundou na carne.
Prendo a respiração.
Isso não faz parte de um jogo maneiro, de um programa irado.
É tudo real.
Tenho que levantar a portinhola e liberar a mão dele, embora não tenha
coragem de olhar o estado dos dedos.
— Pronto, foi? — pergunto a ele, que parece estar em choque. Sem
esperar por uma resposta, faço mais força, toda a minha força, e levanto mais
um centímetro a portinhola. O som é de embrulhar o estômago. A parte em
que seus dedos foram atingidos pelo metal está sangrando, inchada e roxa.
Arfando, dou um passo para trás.
— Mint… — diz Sky, ofegante. — Ahrrr… Me ajudaaa.
Ele parece tão indefeso quanto a Liese. Como se tivesse uns nove anos,
e eu fosse a adulta.
Em pânico, olho ao redor. Precisamos de alguma coisa para estancar o
sangramento, mas o quê?
Então me lembro de que a gente está num consultório médico. Eu não
tinha visto umas ataduras dentro do armário? Abro as portas e pego um rolo
e uma tesoura.
— Alissa. — Ela está petrificada, encostada na parede. Seus olhos
arregalados fitam a mão do Sky, e ela não reage quando chamo.
Tenho que fazer isso sozinha, então, afasto o Sky da porta e o faço sentar
na mesa. Na luz, sua mão parece ainda pior. Será que eu consigo? E se eu
acabar piorando a situação?
— Mint…
Ele está contando comigo. Tento não olhar para as bordas soltas de pele
enquanto envolvo a mão com a atadura. Três voltas, começando por entre o
polegar e o indicador, e então mais três pelos nós dos dedos e a mão.
Quando a atadura acaba, amarro com um nó. Aperto o máximo que posso,
e o Sky emite um grunhido esquisito.
Sinto outra dor lancinante na minha mão, e tenho que olhar para ela a
fim de ter certeza de que não há nada errado.
— Ajuda!!! — grito para a câmera no teto. — Ele tá machucado.
Alguém pode vir até…
Sky tapa a minha boca com a mão boa.
— O que você tá fazendo? Quer que ela venha aqui?
— V-você precisa ir p-pro hospital — gaguejo. — Olha…
Sky está pálido. O rosto encharcado de suor.
— Foi ela quem fez isso.
Solto uma risadinha nervosa.
— Como é que é?
— A Cleo, porra! — exclama ele. — Eu consegui ver uma parte do
cabelo platinado dela antes da portinhola cair.
P osso ouvir a Mint falando, mas não consigo
entender bem. A mão do Sky parece uma
peça de carne num açougue.
Se o que ele afirma é verdade, estamos correndo sério perigo. Cleo
esmigalhou a mão dele. O que mais nos espera? Estamos à mercê de uma
psicopata?
Vou até a porta e a empurro com força máxima.
— Deixa a gente sair!
Mint tenta me afastar enquanto me pede para ficar calma, mas eu me
desespero. A última coisa que eu quero que ela me peça é calma. Ninguém
deveria estar calmo agora.
— Abre essa porta!!!
— Alissa…
— Você disse que conhece ela! — grito com a Mint.
— Do parque. — Mint olha para mim. — Você também viu, né? Ela
estava correndo, dando voltas no gramado, e depois eu vi de novo no
Campão.
— Estamos presos aqui. O que mais ela vai fazer com a gente?
Olho para as câmeras. As luzes vermelhas que indicam transmissão me
deixam furiosa. A ideia da Cleo de nos assistir enquanto o Sky sangra feito
um porco… Essas câmeras precisam ser desligadas. Agora!
Eu pego a cadeira onde o Sky estava sentado e a empurro para baixo da
primeira câmera. Em seguida, subo.
— Deixa a gente sair ou então vai ficar sem as câmeras — digo para a
lente. — Sem essas merdas, você não consegue ver nada! Então não tem
como machucar a gente.
Meu coração bate dolorosamente contra as minhas costelas, mas a Cleo
não reage.
O poder está todo nas mãos dela. Aqui dentro, nós não contamos com
nada. Nossos celulares estão nos armários. Até chaves e dinheiro deixamos
para trás.
Coloco a mão em volta da câmera e puxo. O troço se solta do teto com
o ruído de plástico se partindo, e a luz vermelha se apaga.
Uma tela fica preta, e não foi por falta de luz.
Puxo o lenço que tenho em volta do pescoço e grito.
Bato em mim e nas paredes.
Eles precisam me escutar.
M int me viu no Campão. Ela me viu gritar
com Cleo. Deve ser por isso que está
agindo de um jeito tão esquisito aqui. Será que ela tem
medo de mim?
Mas… quem é mais perigoso? Eu ou ela? Se Mint contar para Alissa
sobre mim, eu irei perdê-la. E isso não pode acontecer. Ou, pelo menos, não
deveria acontecer.
Alissa atira a câmera no chão, e a lente se espatifa. Ela então empurra a
cadeira até a próxima câmera. Está fora de controle.
Eu seguro ela pelo braço.
— Não.
Minha voz parece surpreendentemente calma, mesmo que eu esteja
muito puto por dentro.
— A gente não deveria fazer isso.
Não quero nem pensar no que Cleo fará com Alissa caso ela destrua as
câmeras. Algo me diz que a lesão do Sky foi apenas o começo. Como ela foi
capaz de fazer isso? A mão dele deve estar, no mínimo, toda quebrada.
Tudo isso parece uma pegadinha. Daquelas pesadas. Mas então ouço o
som de algo rolando pela canaleta novamente. O que mais a Cleo tem a nos
dizer?
Talvez tenha se arrependido e vai abrir a porta.
A bolinha rola até parar na parede oposta. Ninguém parece querer ler as
palavras da Cleo.
Devagar, vou até lá. Com uma sensação inquietante, pego a bolinha e
tiro o papel. Olho para a Alissa, mas ela não retribui o olhar. Ainda agora, no
escuro, ela estava segurando a minha mão com tanta esperança, mas isso só
serviu para fazer eu me sentir ainda mais impotente. Somos quatro contra
um? Talvez. Mas não temos como vencer a Cleo.
— O que o papel diz? — Ouço a Mint perguntar.
Engulo e leio em voz alta:
Mint tem razão. Se a Cleo souber que a Caitlin está a caminho, ela terá
uma vantagem. A Caitlin pode ser nosso elemento surpresa, e então a Cleo
pode vir a cometer um erro.
Caitlin, a garota pela qual eu não sinto nada, mesmo depois de tantos
meses, pode ser a nossa salvação. Quanta ironia do destino.
Pego a caneta da mão da Mint e começo a responder. Por sorte, não foi a
mão de escrever que a portinhola destruiu, mas mesmo assim a caligrafia está
péssima. Milas e Alissa se aproximam e leem as palavras também.
Os três olham para mim. Vejo surpresa, alívio e esperança. A última vem
do mais belo par de olhos azuis do mundo, me deixando paralisado. Até
mesmo aqui e agora, enquanto estamos rodeados de perigo, eles ainda me
pegam de jeito.
Espero que m
Caitlin.
Ah, então eram para ser cinco lá dentro.
Acho que eu já vi essa garota com eles,
enquanto estudava o meu alvo.
O que será que estão escrevendo sobre ela
Verifico todas as câmeras, mas não consigo ler.
Eles realmente acham que são mais espertos do que eu
O lho para o relóo, mas ainda são 20h50. Ao
contrário do início do jogo, agora os
minutos estão se arrastando.
Não sei se fico arrasada ou feliz pela Caitlin estar a caminho. Não acho
que ela seja capaz de lidar sozinha com a Cleo. Não é do tipo durona,
agressiva, sabe? Na verdade, nunca entendi o que o Sky viu na garota. Eles
não combinam nem um pouco.
Olho de novo para os ponteiros do relógio, mas, que angústia!, eles se
movem dolorosamente devagar.
Meu pai costuma chegar em casa lá pelas seis da manhã. Será que ele vai
querer fazer as pazes comigo antes de dormir? Tento afastar a lembrança da
mágoa em seu rosto, mas… não consigo. Ele olhou para mim como um
cãozinho perdido quando eu fui, decidida, em direção à porta.
Então por que diabos você não se comporta como pai dela, nem que seja uma vez
na vida?
Imagino ele entrando no meu quarto amanhã cedinho e se deparando
com a cama vazia. Como sempre, é o primeiro lugar aonde ele irá. Contudo,
isso não vai acontecer dentro das próximas oito horas. Menos mal. Mas…
será que conseguiremos sobreviver?
Qual é o plano da Cleo? Ela quer ver a gente sofrer? Ou…
Mint disse que viu a Cleo correndo, mas nenhum de nós conhece a
personalidade dela. Deve ter um motivo e tanto para estar fazendo isso tudo
com a gente. A não ser que seja louca.
Um alarme dispara. Um barulho ensurdecedor ecoa na sala. Pulamos de
susto.
Mint leva o grupo para o quarto da Liese, onde nós quatro entramos no
armário e fechamos a porta. O espaço é pequeno. Estou praticamente
sentada em cima do Sky e do Milas, mas a porta fechada atenua um pouco o
som do alarme de incêndio.
Assim que tocou, eu soube imediatamente o que era. Meu pai precisa
verificar todos os alarmes de incêndio da nossa casa todo santo dia ou então
não consegue dormir. Desde o acidente no ano passado, isso se tornou uma
obsessão.
— É uma sirene ou tem algum incêndio rolando? — Ouço Sky
perguntar.
— É um método de tortura — explica Mint. — Barulhos podem
enlouquecer as pessoas em situação de cativeiro.
Como assim? Ela parece saber de tudo! Até de tortura a Mint entende?
Na luz fraca, ela aparenta seriedade. A maquiagem a faz parecer mais
velha, como se tivesse mais de vinte anos. Por que ela resolveu se arrumar
desse jeito justamente hoje?
Eu conheço a Mint somente como a garota que faz de tudo para ser
invisível. Mas por que se mostra tão insegura? Faz um personagem, será? Ou
será que é do tipo que esconde o jogo? Sempre pensei isso. Pelo menos aqui
ela finalmente decidiu ser forte, mas de um jeito exagerado, ansioso… O
contraste com a Mint que eu conheço lá fora é insano. Não consigo
entender. É como se a minha melhor amiga fosse agora uma estranha.
Em meio ao volume máximo em que ativei o alarme,
uma campainha toca, insistente.
Levo alguns segundos para ouvir,
então vejo uma garota numa das 12 câmeras.
Caitlin. Só pode.
Ela está parada na porta.
O que ela veio fazer aqui
Agora eu saquei o que eles estavam escrevendo naquele papel.
Eles sabiam que isso ia acontecer.
A campainha toca de novo.
Vai emboraaa, imploro entre os dentes.
Mas ela não vai.
— Pois não
Caitlin olha para cima, surpresa.
— Ah, olá. Vim pro Escape Room.
Observo a rua. Não há mais ninguém por perto.
— Nós… nós já fechamos.
— Fecharam — Ela olha por cima do ombro.
— Mas aquela bicicleta ali é do meu… é do meu amigo. Ele marcou comigo.
Sorrio para ela como venho praticando diante do espelho há meses.
O sorriso que acaba com qualquer pergunta irritante.
— Ah, sim… por que você não entra
O alarme de incêndio para de tocar. Da mesma forma repentina
como começou.
Mint é a primeira a se levantar.
— Vou ver se está tudo tranquilo.
Ninguém se oferece para ir junto. Todo mundo preferia continuar dentro
do armário. A sensação é de estarmos seguros numa ilha cercada por
tubarões.
Mint deixa a porta entreaberta, e mais luz entra no armário.
— Você tá bem? — pergunta Milas, afinal eu não havia dito nada sobre a
minha mão.
— Tô de boa — minto. Tenho que me esforçar para não olhar para a
atadura, que agora está encharcada de sangue.
— Será que rompeu os ligamentos?
Por que diabos ele está perguntando isso? Não quero pensar no assunto.
A ideia por si só já me faz suar frio e querer vomitar.
— Não tenho como saber. Só sei que tá latejando demais. Não consigo
nem mexer os dedos direito.
A expressão do Milas se fecha.
— Sinto muito.
— Não tem por que — diz Alissa. — Foi a Cleo quem fechou a
portinhola, não você.
Milas olha para os pés.
— Mas se eu não tivesse vindo… vocês estariam com um jogador a
menos, e a sala só abre para no mínimo quatro participantes.
Milas realmente acha que a culpa é dele? Estou com raiva do Milas por
causa da Alissa, mas todos só vieram porque eu botei pilha.
— Se você não tivesse vindo, a gente teria trazido outra pessoa — digo,
apressado.
Mint aparece e nos encara com uma expressão séria.
— Temos que voltar. A Cleo tem uma mensagem pra gente.
Deu ruim. Eu sei só de olhar para a cara dela.
— O que tá pegando? — pergunto, enquanto Alissa me ajuda a levantar.
— Só vem comigo.
No consultório médico, vejo de novo a pesada porta de metal, agora
com um filete de sangue seco que escorreu da portinhola. Meu sangue.
Desvio o olhar, mas a imagem fica gravada na minha mente. A ânsia de
vômito vem forte.
— Tem uma nova mensagem. — Mint segura uma bolinha.
— Então abre e lê — diz Alissa.
Mint crava o olhar em mim.
— Já li, mas são sei o que…
Eu já imagino o que ela vai dizer antes mesmo de pronunciar as palavras.
— Ela está com a Caitlin.
A dormência da mão se espalha imediatamente pelo corpo todo. Estou
paralisado. Por alguns segundos, me sinto sob o efeito de um potente
anestésico.
Caitlin veio até aqui por minha causa, queria participar… acha que
estamos namorando. E agora aquela psicopata está com ela.
Esse jogo é nosso, só nosso. Assim como essa dor é minha, só minha.
— A-a Caitlin… não tem nada a ver… com isso — gaguejo. Estou no
meu limite. — E-ela não devia estar… a-aqui.
Então, uma contração avassaladora me força para a frente. Meu jantar
inteiro se esparrama pelo chão. Continuo a vomitar aos jorros, como se todas
as minhas tripas quisessem sair do corpo.
A cada fôlego que tomo, xingo a Cleo de todos os palavrões possíveis e
imagináveis. Ninguém me impede. Os três me deixam gritar. Nenhum deles
me pede para parar ou toca no meu braço para tentar me acalmar. A filha da
puta da Cleo foi longe demais, com isso todos concordam. E agora ela está
machucando alguém que eu amo.
Ok, não é bem o caso. Estou perdendo a cabeça porque ela está
machucando alguém que eu não amo. Durante todo esse tempo, deixei a
Caitlin acreditar que eu gostava dela. Por quê? Porque tenho medo de que a
verdade venha à tona.
— Solta ela — suplico para a câmera. — Me diz o que você quer e solta
ela.
Nada acontece. Cleo continua em silêncio. O relógio na parede mostra
que o nosso tempo acabou, mas, no fundo, sei que o jogo está só
começando.
Será que a Cleo está assistindo às câmeras agora, o tempo todo? Será que
está me vendo? Talvez esteja até rindo. Ela acabou comigo; primeiro com a
minha mão, agora com o meu coração. Se alguma coisa acontecer com a
Caitlin, eu vou me sentir culpado pelo resto da vida.
— Se encostar um dedo nela, eu mato você! — Limpo a boca com a
camisa. — Ouviu?
— Vem. — Mint me puxa. — Você precisa de uma atadura nova.
— Que diferença uma atadura vai fazer? Essa mulher vai matar a gente,
Mint.
Mint balança a cabeça. Ela continua completamente calma, até mesmo
agora. Como é possível? Somos ratos, presos pelo rabo numa ratoeira.
— Quem é você?!?! — grito para a câmera. — O que quer de mim?
Mint me força a me sentar na cadeira do médico e desenrola a atadura
ensanguentada. Em alguns pontos, está grudada na minha mão, mas já não
dói mais como antes.
O que será que a Cleo fez com a Caitlin? Será que drogou ela e agora
está torturando ou machucando a pobrezinha? Ou será que…?
Fecho os olhos com força, e então imagino a Caitlin só de camisola. Ela
envolve meu corpo com pernas macias. Para ela, um sinal de desejo; para
mim… uma camisa de força.
Será que algum dia vou conseguir consertar isso?
— Fica um pouco assim, de olhos fechados — pede Mint, baixinho. Ela
me trata com carinho, como se eu merecesse. Seria melhor se estivesse me
esculachando, me chamando de covarde, de idiota… Porque é exatamente
isso que eu sou. Um covarde idiota.
— Cleo? — Agora é Milas quem tenta. — Você não quer fazer isso. Eu
sei.
Ele realmente acha que adianta tentar dissuadi-la?
— Você não quer machucar a Caitlin. Eu sei que não quer.
Milas deve estar cego. Ele viu o que ela fez com a minha mão, não viu?
A força com que desceu a portinhola de propósito.
Outra bolinha rola para dentro do quarto, mas agora há mais do que uma
mensagem dentro. Vejo alguma coisa preta, que cai no chão quando Milas
abre.
É uma mecha de cabelo.
Da Caitlin?
Sinto que estou prestes a desmaiar. Ainda bem que eu estou sentado.
Milas olha para mim, como se precisasse da minha permissão para ler a
mensagem.
— Lê — peço com a voz rouca.
Uma vida em troca de uma
cabeleira… e será a Mint quem se
sentará na cadeira. Enquanto, com
a tesoura, a Alissa realiza a
proeza, pode dar à melhor amiga
algumas dicas de beleza. Todos
sabemos que a Alissa é a beldade
local, então chegou a hora de dar
à tímida Mint um novo visual.
Mãos à obra, Alissinha!
Cleo parece conhecer a gente muito bem. Ataca pontos que são sensíveis
para cada um de nós: minha paixão por tocar bateria, a vaidade da Alissa
versus a personalidade introspectiva da Mint… Como ela sabe disso tudo?
Então, finalmente, percebo o que a Cleo quer da gente. Olho para a
mecha de cabelos no chão. Uma vida em troca de uma cabeleira.
Como fui capaz de achar que esse Escape Room seria um jogo maneiro?
Eu realmente queria vir. Sempre quis tentar vencer o desafio. No início,
a cada enigma que a gente solucionava, a adrenalina encharcava meu sangue.
Porém, este lugar é o inferno na Terra. Ninguém aqui faz ideia de como
irá terminar, e a Cleo ainda não acabou com a gente, não está nem perto
disso. O jogo dela está só começando.
Os cabelos são a prova. Se Mint não fizer o que a Cleo manda, Caitlin
irá morrer.
Caitlin não para de chorar.
Só porque cortei uma mechinha de nada de cabelo
Enrolo meu lenço no pescoço de novo.
Cabelos crescem. Foda-se.
Mas algumas feridas… nunca cicatrizam.
M ãos à obra, Alissa!
Então quer dizer que Cleo sabe o que eu
penso sobre mim mesma. Sabe que seria a maior
humilhação se, dentre todas as pessoas do mundo, Alissa cortasse o meu
cabelo. Sabe que eu tenho vivido à sombra dela desde o primeiro dia de aula.
Que as pessoas só falam comigo porque eu estou com ela.
Mas como Cleo sabe disso? Só de nos observar aqui? Tipo
um laboratório onde somos as cobaias de um experimento macabro? Será
que é mestre em “ler” os outros?
Lembro do parque, quando ela sorriu para mim. Mais tarde, no Campão,
ela apareceu de novo. Ou seja, não foi coincidência.
— Ela tem observado a gente — sussurro. Os três olham para mim. —
Ela estava no Campão na hora que o Milas…
— Que o Milas o quê? — pergunta Sky, pois não completo a frase.
Teve um ataque de fúria.
— Entregou a pizza.
Sinto outra fisgada na barriga. De quem será essa dor? Será que é do
Milas?
Olho para a mão do Sky com o curativo novo que eu fiz. No quarto da
Liese, em frente ao espelho, senti uma dor na mão. E isso foi pouco antes
de…
Suspiro. Todas as peças do quebra-cabeça estão se encaixando. Meu
punho não doeu só depois da Alissa se machucar na educação física, mas
antes também. Minha mão doeu antes da mão do Sky ser massacrada pela
portinhola.
A dor que eu sinto não é apenas resultado da dor de outras pessoas. É um
aviso da dor que virá. Como uma premonição.
— O quê? A Cleo estava stalkeando a gente? — pergunta Sky.
Alissa arregala os olhos.
— Quando a gente entrou, ela disse alguma coisa sobre o piercing no
meu nariz. Então ela sabia que eu fiz há pouco tempo! Mas como…?
— Ela conhece… a gente. — Pálido, Sky engole com força. Parece
prestes a vomitar de novo.
Sinto pena dele. Ele não merece passar por isso.
Tenho que obedecer a Cleo, ou a Caitlin correrá perigo. Não vale a pena
peitar a louca, vale?
Tranquilo. Meus cabelos vão crescer de novo.
— Mãos à obra, Alissa — digo com firmeza.
O rosto dela se transforma.
— O quê?
Ela realmente achou que eu não aceitaria?
— O que é mais importante? — pergunto. — A vida da Caitlin ou os
meus cabelos?
Alissa pega a tesoura, por sinal quase cega, que acabei de usar na atadura
do Sky. Ele empurra a cadeira do médico na minha direção. Eu me sento e
agarro os apoios de braço. Sinto a fisgada na barriga de novo, e tenho certeza
de que a dor é do Milas. Será que devo avisá-lo? Mas o que eu diria?
— Tem certeza? — pergunta Alissa.
— Só vai — respondo.
Alissa obedece em silêncio. Vez ou outra, um tufo cai no meu colo. Já, já
a diferença entre nós duas vai ficar abissal. Fico com inveja quando os garotos
olham só para ela, se fosse o contrário, ia até parecer que eu estou revidando.
Ela está mutilando meus cabelos.
Seguro firme. Não vou derramar uma lágrima sequer aqui dentro. Não
darei esse prazer à Cleo.
Quando Alissa finalmente coloca a tesoura de volta na mesa, olho para o
chão. Há um tapete de fios fininhos, mechas longas e tufos, tudo misturado.
Toco a cabeça e sinto as pontas curtinhas. Em choque, retraio a mão.
Preciso ver como está, mas fico sem coragem.
Respiro fundo e vou até o quarto da Liese. Limpo o talco do espelho
com a mão.
Pela segunda vez hoje, vejo uma Mint diferente. De repente, as maçãs do
rosto parecem definidas e destacadas. A garota no reflexo lembra um soldado
que acabou de voltar da guerra.
Lentamente, me dou conta de que é o meu reflexo. Esta agora sou eu.
Deixo escapar uma risadinha, porque, sabe… até que combina comigo.
Combina muito, muito mesmo, pelo menos com a Mint que eu quero ser se
sair viva daqui.
Sky entra no quarto, para do meu lado e olha para o espelho.
— Uau — sussurra ele.
Levo um instante para interpretar a reação, porque ninguém jamais me
olhou desse jeito, tipo como os garotos sempre olham para a Alissa.
É
É claro que Mint está mentindo. Ela quer me atingir, então o acusou e
falou do meu pai.
— Eu sei sobre o que rolou no Campão — digo, bem baixinho.
Milas assente.
— Eu não queria que você soubesse, então pedi pra ela ficar de boca
fechada. Deve ter me entendido mal.
— Por que você não queria que eu soubesse que teve um ataque de
fúria?
Milas dá um meio-sorriso.
— O que você acha? A gente mal começou a se conhecer e…
Sei bem como é. Quero ser a melhor versão de mim mesma com ele
também.
— Eu tava meio pra baixo por causa do meu pai. — Milas vira o rosto.
— Há uns dias, sem querer mesmo, fui parar de moto na minha rua antiga.
Foi tão bizarro voltar lá pela primeira vez desde que ele… Você sabe, tudo
continua igual, mas ao mesmo tempo, tudo mudou.
Penso em como o meu pai estava ontem. Não foi como no Natal
passado, mas ainda assim estava diferente.
— Sei bem como é.
— Acho que a Mint não foi com a minha cara. — Milas olha para mim,
preocupado. — Desde que a gente entrou aqui… a noite toda… ela fica me
encarando, mas não diz nada.
Então ele percebeu isso também. Sinto vergonha por ela.
Cansados, decidimos nos sentar no chão. Já meio que nos acostumamos
com o fedor. Ouço Mint e Sky conversando no quarto da Liese, mas não dá
para saber sobre o quê. Não entendo a Mint. Ela sente tanta inveja assim só
por estarmos juntos?
— Então é mentira que você apertou o pescoço dela? — pergunto,
apenas para ter certeza.
Milas parece magoado.
— Você acha mesmo que eu faria isso? — ele rebate, olhos nos olhos.
Vejo o mesmo tom de azul que vi na noite em que nos beijamos pela
primeira vez. Ele não está mentindo. Ninguém é capaz de mentir tão bem.
Suspiro.
— Desculpa, é que eu não consigo acreditar que a Mint inventaria algo
assim.
— Amigos são uma merda.
Olho para ele.
— Por quê?
Milas ri, mas não parece nem um pouco feliz.
— Depois que o meu pai morreu, todos eles disseram que estariam ao
meu lado. A Karlijn também. Queriam conversar comigo. Queriam que eu
chorasse. Mas quando eu finalmente desabei, eles se mandaram. As pessoas
não querem conviver com a tristeza alheia. Já percebeu isso? — Ele olha para
mim. — Aposto que os seus amigos também nunca perguntaram sobre o seu
pai, né?
As palavras dele fazem cada vez mais sentido para mim. É isso. Sky e
Mint nunca se deram ao trabalho de perguntar.
Ouço o som de alguma coisa rolando na canaleta. O que a Cleo quer
agora? Não sei se consigo lidar com mais uma mensagem dela. Quando é
que esse tormento vai parar? Vou até a canaleta com o Milas.
Ele faz uma careta enquanto lê a mensagem.
— O que foi? — pergunto. — Ela sequestrou mais alguém?
Milas olha para mim.
— É sobre o Sky.
— O que tem ele?
Pego a tirinha de papel da mão do Milas e leio:
É
— Qual é, Alissa! Que papo é esse? É claro que não. — Milas sorri,
balançando a cabeça. — O Sky tá só zoando, né?
Olho para ele. Não é uma boa ideia. Seus olhos azuis percorrem meu
corpo como uma descarga elétrica.
— Não… — A expressão do Milas muda. — Não seja idiota.
Na minha cabeça, ou nos meus sonhos, a reação dele seria diferente: no
momento em que olho para a foto e abro meu coração, ele compreende
tudo.
O nosso chefe tirou uma foto da equipe ao final de uma
confraternização. Fiz questão de ficar ao lado do Milas. Senti o braço dele
contra o meu no momento em que olhei para a câmera. Eu queria sair
bonito. Aquela tinha que ser a foto perfeita de nós dois juntos.
Se pudesse, eu teria cortado o restante da equipe, mas se a Alissa ou a
Mint vissem a foto, iam saber logo de cara sobre os meus sentimentos. Com
a foto inteira, o Milas podia continuar “camuflado” na minha mesa de
cabeceira.
— Você é gay? — Milas me encara sem acreditar. — Mas… você não
parece gay.
— E desde quando gay tem cara? — Ouço a minha voz trêmula. —
Cabelo arrumadinho? Calça justa? Afeminado?
A princípio, achei que teria uma chance com ele. Na verdade, achei isso
até a semana passada.
Quando ele entrou no parque com a scooter, eu até ajeitei a postura,
estufando o peito e endireitando as costas. Quando o Milas está por perto,
sempre me preocupo com o jeito como me movimento, com a minha
aparência…
Eu reparei: a Alissa fez a mesma coisa antes de mim, passando rapidinho a
mão nos cabelos para dar aquela ajeitada. Não achei nada de mais, afinal ela é
supervaidosa e eu, como sempre, estava pensando no Milas.
A aposta foi perfeita. Graças à Alissa eu finalmente teria a chance de fazer
a pergunta que há meses tanto queria.
Você é gay?
Na minha cabeça, ele olharia para mim, com aqueles lindos olhos,
e diria: com muito orgulho.
E, então, me daria um beijo de cinema.
Mas, na verdade, ele exclamou: Eu?! Não, eu não sou gay! Eca!
Mesmo depois disso, eu ainda mantive a esperança. Talvez ele estivesse
passando pela fase da negação, como eu no início passei. Ou não estivesse
confortável para sair do armário ali naquele momento… Talvez eu só
precisasse ser paciente.
Porém, agora que abri o meu segredo para ele e vi a reação, sei que não é
negação. Ele demonstrou ter nojo só de pensar em mim olhando para ele
desse jeito.
Ao longo dos últimos meses, fiz tudo que pude para esquecer o Milas:
matei trabalho com a desculpa de estar doente, tentei imaginar que ele não
tinha higiene ou que era homofóbico… uma hora ou outra eu descobriria
algo degradante sobre ele.
Só que não funcionou. Quero que ele esteja comigo do jeito que está
com a Alissa. É carinhoso, dedicado… mas está totalmente fora do meu
alcance.
— Então, por que você tá namorando com a Caitlin? — Alissa olha para
mim como se eu fosse um estranho.
O que eu deveria fazer? Alissa tinha por hábito deixar claro quão
estranho era o fato de eu ignorar toda a atenção que recebia de garotas.
Caitlin foi a única com quem me atrevi a tentar alguma coisa. Ela é okay, de
verdade. De alguma forma, os olhos azuis dela me lembravam os do Milas.
Alissa balança a cabeça e faz uma careta de nojo.
— Você usou a garota como fachada?
— E daí?! — grito com ela. — Por acaso você se importa?
Eu gostaria de ter a coragem da Mint e meter um tapão na cara dela. Sei
lá, é que, às vezes, parece que ela consegue tudo que quer, que tem tudo. Ela
não faz ideia do que é não ter o que ela tem.
Alissa é a minha melhor amiga e, ao mesmo tempo, eu odeio a garota.
Ela roubou o Milas de mim, mesmo que ele nunca tenha sido meu.
Ela realmente acha que eu não me sinto culpado em relação à Caitlin?
Mas eu precisava dela. Não estava pronto para sair do armário. E, pelo visto,
ainda não estou. Nem mesmo agora. Não quero que a imagem que as
pessoas têm de mim mude.
Viro o corpo para voltar ao quarto da Liese, mas então, para o meu
horror, vejo a Mint parada no corredor.
Há quanto tempo ela está ali? O suficiente para saber que eu sou gay, mas
o jeito como me olha é completamente diferente do jeito da Alissa e do
Milas. A cabeça está um pouco inclinada para o lado, e ela tem um
sorrisinho discreto nos lábios, como se finalmente tivesse solucionado um
sudoku supercomplicado depois de semanas a fio.
Mint sabe como é ser diferente dos outros. Sabe como é a sensação de
não ter nada quando a melhor amiga tem tudo. Ela vive na sombra da Alissa
todo santo dia.
— Vem — peço a Mint. — Vamos abrir a terceira sala.
A mão do Sky está tremendo tanto que ele não
consegue encaixar a chave na fechadura.
— Me dá — digo, baixinho. — Deixa eu tentar.
Sky está apaixonado pelo Milas. Mal posso acreditar nisso. Sempre achei
que ele era a fim da Alissa. Por que pensei isso? Por causa do comentário
feito no primeiro dia de aula? Ou por que deduzi que todos os garotos
sonham com ela?
Nem todos os garotos, ele disse, mas eu não havia entendido a mensagem
de verdade.
Assim como a Alissa, é do Milas que ele gosta. Sendo assim, também não
vai acreditar na minha versão sobre o que aconteceu no quarto da Liese.
A porta abre, e nos deparamos com um quarto de menino. Na cama de
solteiro, há um edredom xadrez, além de uma foto de um time de futebol
americano pendurada na parede acima. Em um dos cantos, vemos uma
cômoda com três gavetas e um teclado.
Há porta-retratos em cima da cômoda, os quais observo, um a um. Uma
foto de um casal por volta da mesma idade dos meus pais chama a minha
atenção.
— Esta deve ser a médica. — Seguro a foto e aponto para a outra. — E
esta menininha loira deve ser a Liese.
Sky não responde. Quando me viro para ele, vejo que está sentando na
cama, de olhos fechados.
— Tá tudo bem? — pergunto.
Sky faz que não, balançando a cabeça devagar.
— Tá doendo. Tô preocupado de estar perdendo tanto sangue. Já não era
para ter estancado?
Olho para a atadura encharcada. Precisa ser trocada, mas a nova também
vai ficar ensopada de sangue em poucos minutos.
— Quero dar pontos na sua mão, mas não sei fazer isso.
Ele me lança um sorriso amarelo.
— Então é melhor não.
Sento ao lado dele. Nossas coxas encostam uma na outra. Ele deve ter se
sentido muito sozinho durante todo esse tempo. Principalmente durante esta
semana, quando o Milas resolveu se apaixonar pela Alissa.
— Pra mim, você continua sendo o Sky de sempre. Não dou a mínima
se você é gay.
Ele olha para mim.
— Eu ferrei com tudo, Mint. Por minha causa, a Caitlin…
— A Cleo não tá interessada na Caitlin — digo para tranquilizá-lo. —
Ela tá focada na gente.
Sky funga, e posso dizer que está chorando. Quero confortar o meu
amigo. Ele precisa saber que não é o único que tem um segredo.
— Eu consigo sentir a dor dos outros. Sei quando alguém vai se
machucar, porque sinto no meu corpo. Antes da Alissa quebrar o punho,
o meu doeu. A mesma coisa rolou com o lance do piercing. E com os seus
dedos.
Por um instante… silêncio. O que eu farei se o Sky me achar dramática e
frágil, que nem a Alissa?
— Você vê coisas também? — pergunta ele. — Fantasmas e tal?
Solto uma gargalhada. Não consigo evitar.
— Não, graças a Deus.
— É por isso que você fica em casa o tempo todo com cólica e dor na
barriga?
Faço que sim.
— Quando o pessoal do último ano foi para as provas finais, eu mal
consegui comer por uma semana todinha. Senti a ansiedade deles como se
fosse minha.
— E você consegue prever? — pergunta. — Antes mesmo da pessoa
sentir?
Assinto de novo.
— Vai acontecer alguma coisa com a barriga do Milas.
Ele olha para mim, assustado.
— A Cleo vai…?
— Provavelmente.
— Temos que falar com ele. — Sky começa a se levantar, mas eu o forço
a ficar sentado.
— O Milas nunca vai acreditar em mim — digo.
— Não tem como saber. A gente precisa fazer a nossa parte e…
— Não. — Fico surpresa com a firmeza na minha voz. — Eu não posso
falar com ele.
Sky não faz mais nenhuma pergunta. Talvez esteja fraco demais; talvez
saiba quão angustiante é ser pressionado a dizer algo que você realmente não
quer.
É
É estranho, mas não me magoa quando o Sky diz isso, embora seja a
mesma coisa que a Cleo disse mais cedo.
— Você acaba se acostumando — respondo. — A ser uma sombra.
— Você não precisa ser uma sombra — replica ele. — Não pode deixar
isso acontecer.
— Acontece naturalmente. — Lembro do dia do parque na semana
passada. O Milas simplesmente me ignorou. Mas tudo bem. O muro atrás do
qual me escondo me mantém segura. Ninguém consegue me acessar lá.
— Porra nenhuma! — reage ele. — Você é capaz de fazer muito mais do
que aparenta.
Fico tocada com as palavras. Não sei como responder, então pressiono
uma tecla do teclado e, para a minha surpresa, o monitor acende.
A voz da Liese surge na caixa de som. Parece que não a ouvimos há
horas.
Você pode tocar pra mim?
Posso, sim, responde a voz de um menino.
É aqui dentro?
Em seguida, ouço a melodia de um piano, muito delicada. Cada nota
tocada faz com que eu me sinta bem. Uma lembrança marcante floresce na
minha mente.
É véspera de Natal e eu estou na igreja, sentada com os meus pais. É o
único dia do ano em que frequentamos. De um lado, está a minha mãe; do
outro, o meu pai. Ela coloca dinheiro na caixinha de doações, e ele envolve
meus ombros com um dos braços. São tão longos que passam por mim e
chegam até a minha mãe.
É um daqueles raros momentos em que nós três estamos juntos, sem
tarefas a fazer, sem estresse e sem problemas. Será que um dia terei outro
momento assim?
A caixa de som fica em silêncio.
A peça musical parece inocente, mas sei que há um motivo para tudo
neste Escape Room. Cleo vai continuar a nos enviar enigmas, mesmo que eu
tenha certeza de que jamais deixará a gente sair.
É
— É o teclado. — Aponto para as teclas pretas e brancas. — Temos que
tocar alguma coisa.
— Mas o quê? — pergunta Sky.
Penso na pista do quarto da Liese. Achamos que o quarto era apenas uma
distração, mas não foi o caso.
— A caixinha de música! — respondo. — Beethoven.
Sky olha para cima, como se lembrasse de algo.
— O Milas sabe tocar teclado.
C omo a Cleo conseguiu reparar que o Sky
está a fim de mim e eu não, mesmo estando
bem debaixo do meu nariz?
Olho de rabo de olho para a Alissa. Desde que ficamos a sós, ela não
disse nada. Acho que ainda está do meu lado. Acho.
Quero protegê-la aqui dentro. Ela precisa entender isso. Precisa saber que
eu estou aqui por ela. Não sei como, mas tenho que deixar isso bem claro.
— Pode ajudar a gente?
Quando me viro, vejo Mint parada na porta. Levo alguns segundos para
entender que ela está falando comigo.
Fico surpreso por ela se atrever a se dirigir a mim depois do que rolou no
quarto da Liese.
— Você sabe tocar “Für Elise” no teclado? — pergunta ela, nervosa.
Penso no teclado do meu quarto. Foi um presente do meu pai, mas nem
na tomada eu coloquei. Tenho medo de que traga lembranças que estou
desesperadamente tentando apagar.
— É o que vai garantir nosso acesso à próxima sala.
Alissa ignora completamente a Mint. Ela perdeu os dois melhores
amigos, mas não será o bastante para a Cleo. Não vai demorar muito até
chegar a vez da Alissa…
— Tô indo.
M ilas continua lindo como estava alguns minutos atrás.
Como será que eu vou conseguir tirar esse garoto da
minha cabeça quando sou capaz de desenhá-lo até mesmo de
olhos fechados?
Sei que ele tem uma marquinha de nascença na orelha direita e que gosta
das coisas em seus devidos lugares. Quantas vezes ele já não arrumou a
minha bancada de trabalho? Sempre que eu volto do banheiro, minha faca
está emparelhada com a tábua de corte, os tomates impecavelmente fatiados e
enfileirados, e o pano de prato dobrado e pendurado no puxador do forno.
Milas faz tudo com perfeição. Ele é a perfeição.
— Você quer que eu toque Beethoven? — pergunta para mim. O tom
da voz é distante. Ele parece ter dificuldade de me encarar.
— Sim. — Aponto para o teclado. — Pode ser?
De má vontade, Milas assente e senta de frente para o instrumento.
Primeiro ele toca as notas erradas. Estou prestes a sugerir que alguém pegue
a caixinha de música, mas então a melodia correta começa a fluir dos dedos.
Se a gente conseguir sair daqui, nunca mais vou ouvir essa música.
Sempre vou me lembrar deste momento: minha mão numa atadura
ensanguentada e o Milas sem a menor coragem de olhar para mim. Mint e
Alissa de mal uma com a outra, e aquela mecha de cabelo da Caitlin no chão
da sala ao lado. A Cleo conseguiu criar um abismo entre nós.
A chave para a última sala está numa gaveta que desliza sob o teclado
assim que o Milas termina de tocar. Ele então volta para a Alissa, que está no
consultório médico. É doloroso demais para nós quatro estarmos juntos.
Não sinto mais a adrenalina de antes quando encontramos algo novo.
Somente que estou vazio e dormente.
É
Olho para o edredom sob as minhas mãos. É o mesmo que forrava minha
cama no dia em que tudo deu errado.
Em seguida, ouço o som de vidro se estilhaçando.
— E stá trancada. — Mint olha para mim, pânico estampado no
rosto.
Quero dizer que tudo vai ficar bem, mas como posso se nem eu
mesmo acredito nisso?
Alissa está lá dentro, com ele.
Milas e Cleo estão trabalhando juntos.
Durante todo o tempo em que estive a fim dele, ele já estava tramando
com ela.
Será que foi ele quem armou para que eu encontrasse o flyer? Deve ter
sido.
Estou cambaleando, mas tenho que me manter no jogo, não posso
abandonar a Alissa.
Mint olha para mim com olhos arregalados.
— Foi a Alissa quem trancou a porta! Por isso ela olhou daquele jeito
estranho. Ela leu o bilhete e está tentando proteger a gente.
M as parece estar com a cabeça em outro
mundo. Se eu quiser colocar o meu plano
em prática, tem que ser… agora!
Com o cotovelo, esbarro no maior porta-retrato de todos: o de madeira,
que tem a foto do pai dele. Quando cai, o vidro se estilhaça no chão.
— Por que você f…? — Milas tenta me questionar, mas logo o
interrompo, e, com um movimento ágil, eu me abaixo e finjo que vou catar
os cacos de vidro.
— Desculpe. Esbarrei sem querer.
Olho para o caco maior, que está parcialmente escondido debaixo da
cômoda. É esse que eu quero.
— Cuidado, hein — pede Milas. — Vê se não vai acabar se cortando.
Eu não havia percebido nada. Desde o dia que nos conhecemos, achei
que ele gostava de mim de verdade.
Estico a mão e alcanço o caco de vidro. A ponta é afiada como uma
navalha, do jeito que eu esperava que fosse.
Fico de pé, segurando o caco atrás das costas e, com a outra mão, a foto.
Preciso saber quem é o verdadeiro Milas e o motivo por trás disso tudo.
— Quem é essa aqui?
Milas olha para a foto, e vejo que ele ficou surpreso com a minha
pergunta.
— O que… como assim?
— Bem, esse cara aqui é o seu pai, mas quem é a mulher?
Um músculo em sua têmpora esquerda começa a tremer. Ele fica em
silêncio, mas isso já me diz tudo. Eu o encurralei. Não há para onde ir.
— Aquela ali deve ser a Liese. — Aponto para a foto da menininha loira,
que está sobre a cômoda. — Eu vi na casa da sua mãe também, na estante.
Então que porra essa foto tá fazendo no Escape? Por que tem uma do seu pai
aqui também? Como você conhece a Cleo? Quem é você, Milas? — disparo.
Ele aperta os olhos.
— A Jolieke não é minha mãe.
Suas palavras tomam conta do quarto como se fossem uma densa neblina.
— Ela é minha tia. Essa… — Milas aponta para a foto que eu estou
segurando. — Essa aí é que é a minha mãe. Ela morreu também.
Não entendo. Não é possível. Fui à casa do Milas. Jolieke se apresentou
como mãe dele. Ou talvez tenha sido só o que eu supus e concluí, afinal era
assim que as coisas deveriam ser: filhos adolescentes moram com os pais.
— Este aqui é o meu quarto antigo — revela Milas, olhando ao redor. —
Meu quarto na casa onde eu morava antes de… Minha mãe era médica e
minha irmãzinha, a Liese, queria ser bailarina. A Cleo criou uma réplica da
nossa casa inteira.
Mal consigo respirar. Milas está piorando tudo a cada segundo que passa.
O que diabos ele está dizendo agora?
Cleo e Milas. Milas e Cleo. Qual é a conexão entre os dois? De alguma
forma, eu já sei a resposta, mas não me vem à cabeça com clareza.
— Quem é a Cleo? — pergunto, ansiosa.
Milas olha bem para mim. Olhos nos olhos.
— Minha irmã mais velha.
— quem é a Cleo — pergunta o meu alvo.
Prendo a respiração.
Será que ele finalmente vai escolher ficar do meu lado
— Minha irmã mais velha.
Pronto. Verdade revelada.
Foi tão difícil assim, irmãozinho
C leo é irmã do Mas.
Agora eu me recordo da foto da Jolieke
com uma amiga, ambas sentadas na área externa de
um coffeeshop com dois sundaes enormes. Mas aquela moça não era uma
amiga. Era a Cleo. Na época, ela tinha os cabelos escuros, que nem os do
Milas. Deve ter platinado e cortado curtinho como parte da trama macabra.
Se não fosse por isso, eu provavelmente teria reconhecido o rosto assim que
entrei aqui.
Lembro que o Milas me puxou para dentro. Achei que estivesse tentando
me ajudar, mas ele só queria ter certeza de que a Cleo pudesse executar o
plano deles sem que ninguém desconfiasse de nada.
— Quero e vou explicar tudo pra você — diz ele ao se levantar.
Em um reflexo, mostro o caco de vidro que eu estava segurando atrás das
costas e o aponto para ele.
— Nem mais um passo!
Milas ergue as mãos.
— Tá bem, tá bem, calma…
— Você deixou ela quebrar a mão do Sky. Você deixou eu cortar os
cabelos da Mint. Você…
O olhar dele é de desespero.
— Eu não fazia a mínima ideia de que a Cleo iria tão longe. É sério! Eu
só vim para te proteger. Não entendeu isso ainda?
— Por que a gente? O que vocês querem?
— A gente, não. — Milas olha para os pés. — A Mint e o Sky são,
digamos, danos colaterais.
Seguro firme o caco de vidro diante de mim.
— O que você quer dizer com isso?
Milas respira fundo.
— Sempre foi sobre você, desde o início.
C leo só queria “dar um susto” na Alissa.
Apenas isso. Ela mesma me disse.
O problema foi que a mão do Sky ficou presa na portinhola. A
princípio, pensei que tinha sido um acidente, até que percebi que a minha
irmã havia, deliberadamente, começado um jogo completamente diferente.
Só que eu já não podia voltar atrás. Afinal, estou trancado; nós quatro
estamos.
— Sobre mim?! — Alissa arqueja, irritada. — Que merda eu fiz pra
vocês?
Eu conhecia a Alissa somente através das histórias da Cleo. Minha irmã
seguiu a garota por meses a fio e falava sem parar sobre o documentário com
a entrevista dela. Eu nem queria assistir. A minha vontade era deixar o
passado… quieto no passado.
Porém, a Cleo não conseguia. Ficou obcecada por ela e, então, bolou um
plano para atraí-la até o Escape Room.
A verdade é que eu conheci a Alissa por pura coincidência. Foi somente
quando ela se apresentou que eu me dei conta de que aquela era a tal garota
de quem a minha irmã vinha falando havia meses.
E eu gostei dela logo no primeiro segundo. Não pude fazer nada. Ela
despertou alguma coisa dentro de mim, e isso não acontecia desde a época da
Karlijn.
Eu fiz de tudo para convencer a Cleo de desistir do plano, mas ela não
me ouviu, a vontade de se vingar a deixou cega.
Afirmava que havia sido um sinal eu ter conhecido a Alissa e que isso
significava que ela devia seguir em frente.
E então, a Alissa me chamou para ir com eles ao Escape Room. A Cleo
havia deixado o flyer na pizzaria para que o Sky e a galera dele se animassem
a ir.
O que eu deveria fazer?
Eu não sabia como dizer não para a minha irmã, então… tudo o que me
restou foi vir junto, na esperança de que a Cleo pegaria leve caso eu estivesse
presente. Eu tive que vir, pois assim achei que poderia proteger a Alissa.
Precisava ter certeza de que, apesar de borrados de medo, todos os três
sairiam sãos e salvos.
Ao longo dos últimos seis meses, a Jolieke vinha me alertando sobre a
Cleo. Disse que a minha irmã estava confusa e precisava da ajuda de um
profissional. Mas a Cleo é maior de idade. Ela pode tomar decisões sozinha e
recusou qualquer tipo de ajuda.
Cleo era expert em enganar os assistentes sociais, sorrindo nos momentos
certos e se safando com tudo. Manipuladora nata, convenceu o médico que
tratava da gente de que estava tudo bem e que até pensava em retomar os
estudos.
Porém, eu sabia que ela não estava nada bem. Ela se isolava cada vez mais
na quitinete onde passou a morar sozinha. Quando eu a visitava, ela só falava
sobre a Alissa ou sobre o Escape Room, onde trabalha por meio período. As
pessoas de lá acharam que as ideias e o entusiasmo dela para construir uma
nova sala eram tão sensacionais que transformaram o projeto em realidade.
“Espera só até você ver pronto, maninho”, disse ela certa vez. “Todos os
detalhes, os mínimos detalhes, estão perfeitos.”
Eu nunca contei à Jolieke o que a minha irmã estava planejando. Se ela
descobrisse que a Cleo havia conseguido construir uma réplica da nossa
casa…
E eu não podia traí-la. Afinal de contas, ela é minha irmã mais velha e a
única pessoa que eu tenho. A única pessoa que restou da nossa família. Meu
pai, minha mãe, nossa caçula Liese… estão todos mortos.
— Você tá viva — digo à Alissa. — Foi isso que você fez pra gente.
Não quero falar sobre esse assunto. Dói até fisicamente. Mas ela precisa
entender os motivos da Cleo.
— Nossa casa antiga não existe mais — digo. — Tudo virou pó, ou
melhor… cinzas.
Alissa arregala os olhos. Consigo ver as engrenagens começando a girar
na cabeça dela. A tão temida hora havia enfim chegado. Preciso contar a
verdade. A história que o meu psicólogo deseja tanto que eu conte, a história
que a Jolieke vem tentando ouvir de mim há meses…
— Era para eu estar em casa na noite em que tudo deu errado. Meu pai
me mandou chegar antes das 10h, porque era véspera de Natal e a ceia seria
servida às 10h. Veio com aquele papo de que “família que se preza precisa
estar unida nessa data…”, queria que ficássemos todos juntos para a ceia.
Sempre achei esse papo de comemorar Natal em família uma bobeira.
E mais, 10h em casa é coisa de criancinha. E eu tinha 17 anos, era quase um
adulto.
“Ia rolar uma festa super-hypada. Então eu, a Karlijn, minha namorada,
e a Pleun, a melhor amiga dela, decidimos ir curtir com uns amigos. Eu
estava puto com o meu pai por causa da briga que a gente teve antes de eu
sair. Acabou que nós três enchemos a cara.
“Quando finalmente saímos da festa, já era meia-noite e pouco. Ao me
aproximar da rua de casa, por volta da 1h da manhã, avistei nuvens de
fumaça cobrindo a vizinhança. Lembro que, num primeiro momento,
exclamei que maneiro!!! Até apressei o passo. Mas quando cheguei à minha
rua, eu vi que era a nossa casa que estava pegando fogo. Fiquei sóbrio no ato.
“Corri até a cerca, mas um bombeiro impediu a minha entrada. Ele
gritou que um colega estava lá dentro e que eu deveria esperar do lado de
fora. Perguntou quantas pessoas estavam na casa, e eu disse quatro. A Cleo já
havia se mudado, mas tinha ido lá, cear com a nossa família.
“Aquela espera começou a me enlouquecer. As chamas lambiam os
tijolos, e uma fumaça negra engolia o imóvel.
“A Cleo saiu carregada por um bombeiro. Tinha uma queimadura
horrível entre o pescoço e o ombro. Tossia sem parar e, assim que me viu, se
jogou nos meus braços. Disse que precisava voltar, que a Liese estava
gritando por socorro. O bombeiro fazia que não com a cabeça.
“‘Vocês ficam aqui. Vamos salvar sua família’, ele garantiu antes de voltar
lá pra dentro. Um colega foi com ele. Eu vi quando os dois entraram na casa
em chamas.
“Quando a Cleo já se encontrava na ambulância, houve uma explosão e
o inferno se espalhou.
“O calor era absurdo onde eu estava, mas não pensei em sair dali nem
por um segundo.
“Motivada pelo estrondo, a Cleo voltou. Aos trancos e barrancos e com
uma socorrista logo atrás, conseguiu sair da ambulância com uma manta
térmica em volta do corpo.
“Eu abracei a minha irmã com toda a minha força. Tive medo de que ela
corresse lá pra dentro por causa da Liese. E, naquele instante… um
desabamento. A lateral superior da casa ruiu, onde ficava o quarto dos meus
pais. Os vizinhos que assistiam a tudo ao nosso redor gritavam, desesperados,
mas eu e a Cleo ficamos em silêncio.
“Mais bombeiros entraram na casa. Eles estavam gritando também,
chamando pelos moradores. E então um homem saiu. O mesmo que havia
trazido a Cleo pro lado de fora. O mesmo que garantiu que salvaria a nossa
família. O rosto dele estava negro. Ele mal conseguia ficar de pé. O
paramédico prontamente entregou uma máscara de oxigênio para ele.
“Depois disso, os bombeiros meio que desistiram. Entendi que não havia
mais o que fazer. Toda a atenção passou a ser dada para o outro bombeiro.
Meu pai, minha mãe e a Liese foram esquecidos, deixados para trás, para a
morte!”
— O m-meu pai… — gagueja Alissa. — Esse homem… é o meu pai?
Olho para ela.
— Então agora você entende.
O quarto fica silencioso.
Encaro minha irmã de novo. Cleo está parada comigo atrás da cerca. Ela se
agachou, agarrada à minha cintura como uma criança se agarra à mãe. Por ela, tive
que me manter de pé. Mas eu estava arrasado, destruído.
— Meu pai perdeu o melhor amigo naquela noite. — A voz da Alissa
está tremendo. — Ele sofreu demais, ficou doente por meses. Eu te contei
isso.
Alissa não diz mais nada. Lágrimas descem pelas bochechas. Minha irmã
sempre sentiu muito mais raiva do que eu. Principalmente quando a Alissa
apareceu naquele documentário. Era como se ela fosse uma chama perto de
um vazamento de gás. A Cleo enlouqueceu.
“Ela tá agindo como se fosse a única vítima de tudo que aconteceu
naquela noite!!!”, Cleo grita. “Mas o papaizinho dela só tá doente. Pelo
menos ela ainda tem um pai! Ela não acorda encharcada de suor toda noite
ouvindo a irmã gritando e pedindo socorro, e não há nada que possa ser
feito. Ela não tem uma cicatriz eterna no pescoço que a faça lembrar todo
santo dia do que aconteceu.”
Eu tentei acalmar a minha irmã, mas ela só ficou mais irritada.
Principalmente quando eu disse que não queria assistir ao documentário.
“Eles são sua família também, porra! Ou você já se esqueceu que nem
aqueles bombeiros?”
“É claro que não.”
“Não parece”, há fúria nos olhos. “Você substituiu nossa verdadeira
família pela Jolieke!”
Eu sabia que era o luto falando, mas ela passou dos limites. Fui embora,
e não nos falamos por duas semanas.
Até que ela me procurou, bem mais calma, e deixamos de lado o assunto
Alissa. Fizemos coisas divertidas juntos de novo. Ela me deu a minha
primeira aula de direção, e de vez em quando eu entregava umas pizzas de
graça. Por um tempinho, tudo pareceu igual ao que era antes do incêndio.
Por um tempinho.
Porém, certo dia, quando fui até a quitinete dela, vi um caderninho no
parapeito da janela. Cleo tinha ido ao banheiro, e eu o abri por mera
curiosidade. Havia um monte de informações que, a princípio, não faziam
sentido.
Tem dois irmãos e uma irmã. Irmã da mesma idade da Liese.
Quando li o nome da Liese, prendi a respiração e comecei a ler
freneticamente.
O alvo tem tudo. É bonito. Não tem cicatriz. O pai ainda é bombeiro.
Então a Cleo vinha fazendo anotações sobre a tal da Alissa. Tudo tinha
datas recentes. Ela jamais havia deixado a obsessão de lado.
“O que você tá fazendo?”, Cleo aparece de repente no quarto. “Isso é só
meu!”
“Você tá stalkeando a tal da Alissa”, digo e encaro minha irmã.
“E daí?”, Cleo toma o caderninho das minhas mãos.
“Você precisa parar com…”
“Parar por quê?”, ela me desafia com um olhar ferino. “Alguém tem que
fazer.”
“Vem morar com a gente, por favor”, imploro. “Você sabe que a Jolieke
não vai se importar.”
Cleo ri com sarcasmo.
“Acha mesmo? Ela nem quer que você venha me ver sozinho. Por acaso
ela sabe que você tá aqui agora?”
Sinto meu rosto corar, afinal é verdade. Jolieke não sabe. Sempre quer
estar por perto quando eu me encontro com a Cleo, pois sabe quanto o
passado ainda atormenta a sobrinha.
“Viu só?”, ela cruza os braços. “A Jolieke não entende a gente. Ela
perdeu o irmão naquela noite, mas nós perdemos muito mais. Muito mais,
não. Nós perdemos tudo!!!”
Cruzo os braços também.
“Eu não vou participar disso.”
Ela então se aproxima e para na minha frente.
“Sério, não imaginava”, diz, seu tom é de puro sarcasmo. “Não
participou naquela noite, é óbvio que não iria participar agora.”
Aquilo me magoou demais. Se eu tivesse ido para casa mais cedo,
conforme meu pai havia pedido, poderia ter salvado pelo menos a minha
irmã, porque o quarto da Liese ficava ao lado do meu. Talvez tivesse até
salvado todos, afinal eu quase nunca dormia antes da meia-noite, mais ou
menos a hora em que, segundo os bombeiros, o incêndio se alastrou.
Tudo começou com uma vela que a Liese tinha acendido. Minha
irmãzinha adorava ter velas por perto, e minha mãe não deve ter visto aquela
acesa quando todos foram se deitar. A vela estava perto demais das cortinas.
Elas pegaram fogo enquanto todo mundo já estava dormindo.
Olho para a Alissa, que ainda está diante de mim segurando o caco de
vidro. Talvez tudo devesse terminar aqui para mim. Talvez seja melhor assim.
Eu desobedeci meu pai e deixei que meus pais e minha irmã caçula
morressem queimados. Afastei a Karlijn de mim. Permiti que a Cleo fizesse
as coisas do jeito dela… eu sou um merda.
Por que não conversei com a Jolieke sobre a Cleo? Talvez ela tivesse sido
capaz de pará-la.
Só que a Cleo é minha irmã. Minha única irmã. Traí-la não era uma
opção.
— Você quer me furar com isso aí? — pergunto de uma vez só. —
Então, vai, fura!!! — exclamo e levanto a camisa, expondo meu abdome.
— Não se aproxima. — Alissa segura o caco de vidro, a mão trêmula. —
Eu vou te machucar. Eu juro que vou te machucar.
Eu matei o meu próprio pai.
E a minha mãe e a minha irmã caçula.
Liese, que sempre me pedia para tocar teclado para ela. Eu tocaria até
criar bolhas nos dedos se isso trouxesse ela de volta.
— Nem mais um passo. — A voz da Alissa está tremendo. Ela estica
totalmente o braço. — Eu tô te avisando, Milas.
— Vai logo — imploro. — Por favor. É o que eu quero. É o que eu
mereço.
— Não! — A voz dela agora está uma nota acima do normal. — Não se
mexe!
Ouço uma batida nervosa na porta. Mint e Sky estão cansados de esperar.
Eles vieram resgatar a Alissa.
— Você tem sorte de ter amigos que nem eles. — Ouço a minha própria
voz e estico os braços na direção da Alissa.
Tudo acontece tão rápido que não percebo logo de cara. Mas então sinto
uma dor aguda.
— Nããão!!!
Derrubo tudo de cima da mesa num só movimento.
Na tela, vejo meu irmão deitado no chão, inerte.
Novamente, ouço a voz da Liese na minha cabeça.
Ela implorou por socorro naquela noite.
Todos a abandonaram.
Aquele bombeiro prometeu socorrê-la,
mas não achou que ela fosse importante o suficiente.
Afinal de contas, a filhinha dele estava sã e salva em casa.
Ele não estava perdendo ninguém.
— N ão!!! Não se mexe! — Da entrada, ouço a voz
esganiçada da Alissa.
Por um segundo, não dou muita importância, mas logo recuo dois passos
e, num tranco forte e seco, bato com o ombro na porta, que se escancara
com um estrondo. Quando meu corpo é lançado para dentro do quarto,
assimilo tudo de uma vez só.
Milas está deitado no chão. Alissa está parada aos pés dele. Treme tanto
que quase consigo ver duas dela. As mãos estão afastadas do corpo, como se
estivessem sujas de algo nojento.
Só então vejo a barriga do Milas. No local onde eu vinha sentindo dores
durante a semana, há um caco de vidro se projetando para fora. A camiseta
cinza está vermelha.
— Alissa…
Não há reação. Quando toco nela, ela me lança um olhar louco. Os
olhos azuis me fitam, suplicantes, como se eu fosse a única a poder ajudá-la.
Foi assim que o Sky me olhou mais cedo também, mas não sei se há alguma
coisa que eu possa fazer.
— Tira ela daqui — peço para o Sky, que está olhando fixamente e
boquiaberto para o Milas.
Empurro os dois para o corredor, na direção da sala de estar. Quando
eles se vão, olho para o Milas, que ainda está deitado sem se mover.
Que merda aconteceu aqui?
Alissa claramente o atacou, mas será que foi em legítima defesa?
Será que ele está morto?
Tenho que me certificar de que ele nunca mais se aproxime da gente.
Nunca mais mesmo.
Empurro a cadeira da mesa até o corredor e estou prestes a travar a porta,
mas não consigo. Não posso deixar o Milas para trás assim, posso? Isso faria
de mim uma pessoa ainda pior do que a Cleo, e eu não sou nem quero ser
isso.
Volto para dentro do quarto. Talvez eu devesse remover o caco de vidro
da barriga dele. Ou será que isso vai fazer com que ele sangre ainda mais?
À medida que me aproximo, vejo que as pálpebras do Milas estão
tremendo.
Então ele está vivo. Não sei se sinto alívio.
Em seguida, um gemido gorgolejante e ele abre os olhos. Atordoado,
olha para mim. Um meio-sorriso aparece, como se apenas metade do corpo
estivesse funcionando.
— Ei… — Ouço ele dizer baixinho.
Milas tenta se levantar, mas se encolhe.
— Você precisa ficar deitado — digo —, ou os seus órgãos vão sofrer
danos ainda piores.
— Isso importa? — Milas emite o mesmo som estranho de antes e revira
os olhos.
Sinto que estou prestes a entrar em choque, mas me debruço sobre ele e
ouço a respiração claudicante. Ele desmaiou.
Olho para o caco de vidro espetado em sua barriga. Quais órgãos deve
ter atingido? Os intestinos?
Penso no modelo anatômico que montamos no começo da noite.
Consegui colocar tudo nos devidos lugares logo de primeira, mas agora não
há como me lembrar de quais órgãos estão ali.
Respiro fundo e me levanto. Não posso ajudar o Milas. Como o restante
de nós, ele vai ter que esperar a Cleo abrir a porta.
Posiciono a cadeira sob a maçaneta da porta e verifico se está firme o
bastante. Mesmo que o Milas tenha força para se levantar, arrombar a porta
ele não vai conseguir.
Na sala de estar, vou me sentar com os meus amigos. Alissa está no meio,
entre o Sky e eu. Troco um olhar rápido com ele. Está pálido.
— A Cleo é irmã do Milas. — Ouço ela dizer.
Eu não quero saber. Não quero saber quem é exatamente aquele garoto
com o caco de vidro na barriga. Só quero que tudo isso pare.
Pego as mãos trêmulas da Alissa, uma delas tem um corte, e só então
percebo que as minhas também estão tremendo.
Não dizemos nada. O que há para ser dito?
Tudo que a gente pode fazer é esperar e torcer por um milagre.
Ou seja, a vida dele… agora está nas mãos da própria irmã.
Ele está morto.
Meu alvo assassinou o meu irmãozinho.
Eu escancaro a porta do corredor.
E la está indo embora.
Essa bruxa perturbada
embora?
está realmente indo
Tento soltar as mãos, mas isso só faz com que a abraçadeira de nylon — a
Cleo uniu duas para fechar as “algemas” — corte a minha pele cada vez mais
fundo. Ela é bem fininha, mas hiper-resistente.
Há um telefone no chão, um daqueles superantigos que têm fio. O
gancho está fora da base. Posso ouvir o sinal da linha. Será que funciona ou
serve só para que ela se comunique com quem está lá dentro?
Preciso me apressar. Ela pode acabar voltando a qualquer momento.
Começo a friccionar a abraçadeira na aresta da mesa de fórmica. Faço
movimentos de todos os jeitos com as mãos. A abraçadeira machuca demais.
A sensação é de que o plástico está penetrando a minha pele. Não há como
conter o choro de dor, de raiva, de desespero…
Mas já não importa mais a dor, preciso romper o nylon, e, de fato,
a fricção com a fórmica está desgastando o material. Bem aos pouquinhos,
mas está surtindo efeito. Estou suando quando finalmente…
Eu seria capaz de gritar de tanto alívio, embora minha garganta esteja
seca e sensível por conta de tudo que sofri na mão dela.
Numa das telas, vejo Sky. O garoto que partiu meu coração duas vezes
esta noite. Primeiro por nunca ter me amado de verdade e, segundo, porque
posso ver que ele está morrendo de dor.
Aquela vagabunda estraçalhou a mão dele!
Mas eu estou livre.
Surpresa, olho para as minhas mãos como se elas pertencessem a outra
pessoa.
Tenho que me apressar.
Com os dedos tremendo, pego o telefone e disco o número da
emergência. Uma mulher atende.
— De onde você está ligando e qual tipo de ajuda precisa?
Eu informo a ela e peço que envie a polícia e uma ambulância com
máxima urgência.
— Uma pessoa tá ferida — digo. — Muito ferida, e eu…
Ouço um clique. A mulher está transferindo a chamada.
— Espera! — exclamo, mas então ouço uma outra voz. Desta vez, é um
homem.
— Qual é a sua localização exata?
— Estou num Escape Room. Mas não consigo me lembrar o nome da
rua. Por favor. Vocês têm que vir agora!
— Qual o bairro? Existem três Escape Rooms na cidade.
Três?! Meus pensamentos estão zoneados. Eu vim de bicicleta. Ela está
apoiada numa parede. Eram umas casas antigas. A rua tem o nome de uma
ave…
— Gaivota! — exclamo, quase gritando. — Rua da Gaivota!
— Maravilha. Agora já sabemos onde você está. O que aconteceu?
— Uma funcionária ficou maluca. Um garoto foi esfaqueado…
— Quantas pessoas estão feridas?
— Não sei ao certo. Por favor. Vocês precisam vir logo.
— Qual é a idade das vítimas?
— Não faço a menor ideia. Entre 15 e 18 anos. Por aí — respondo e
começo a chorar de novo. — Eu tô com muito medo.
— O socorro já está a caminho.
Eu olho para as telas. Aquele garoto, o Milas, ainda está deitado de
barriga para cima, completamente inerte. Ele não se moveu mais desde que
falou com a Mint. Alissa está sentada, em choque. Sky está segurando a mão
machucada, e os lábios da Mint estão se mexendo, mas ela não emite som
algum. É como se eu estivesse assistindo a um filme com atores que conheço
pessoalmente.
De repente, vejo movimento num outro monitor, um que não mostrou
atividade durante toda a noite. É a câmera da entrada do Escape.
Cleo está abrindo a porta. Mal posso acreditar, mas as imagens em preto
e branco não mentem. Ela vai permitir que todos saiam? Isso significa que
esse pesadelo finalmente vai terminar?
Mas então ela atira uma garrafa para dentro da sala. Há alguma coisa
enrolada em volta do gargalo. Um pano? De repente, a tela toda brilha com
uma luz branca, como se eu estivesse olhando para o sol.
— Ah, não… — gemo.
— O que você disse? — pergunta o homem do outro lado da linha.
A imagem volta ao normal. Vejo chamas cintilando ao redor da mesa e
de um modelo anatômico com os órgãos encaixados.
— Fogo… — Tento recuperar o fôlego. — Ela tá botando fogo em
tudo!!!
— Você consegue ir para um lugar seguro, senhorita?
Solto o gancho do telefone e entro em ação.
O uço um som de vidro sendo estilhaçado e logo depois
uma explosão abafada. Sinto cheiro de queimado. Tenho
a impressão de que estou num filme trash antigo que já
assisti duas vezes: “Pague para entrar, reze para sair.”
— Fogo — sussurro.
— Vem. — Mint leva a Alissa e eu para o canto mais afastado da sala de
estar, onde fica a cozinha americana. Ela abre a torneira. Nada de água. Tudo
aqui é de mentira?
— Aqui. — Pego três panos de prato de uma prateleira. — Cubram a
boca e o nariz com isso. Vai ajudar a bloquear a fumaça. Fica aqui com a
Alissa. Vou dar uma olhada no que tá rolando.
Quando entro no consultório médico, vejo tudo dobrado e preciso me
apoiar na parede para não desmaiar.
O calor que vem dali de dentro é infernal. As chamas já estão
consumindo os móveis, sei que não há saída. Nem ao menos podemos
chegar até a porta.
É
É impressionante como incêndios se alastram tão rápido!
Cleo vai nos matar. Todos nós.
Será que foi esse o plano desde o início?
Será que ela só queria brincar um pouco antes de fazer churrasquinho da
gente?
Vejo a cadeira da mesa contra a maçaneta da porta do quarto de menino.
Mint trancou o Milas lá dentro. Logo a Mint, que é tão quietinha, que não
se atreveu a falar com ele no parque na semana passada… A garota mais
tímida da escola. A mesma que o deixou lá dentro para sangrar até morrer.
As chamas já estão lambendo as paredes do corredor. Em breve chegarão
ao quarto onde o Milas está. Será que ele realmente merece morrer assim?
Queimado vivo, sozinho e com um caco de vidro cravado na barriga?
Sei que a Cleo é irmã dele e que parte da culpa de estarmos aqui é dele,
mas me sinto mal pelo cara. Odeio isso, mas em algum lugar dentro de mim,
ainda há um restinho de compaixão por ele. E talvez isso nunca vá embora.
Afasto a cadeira e abro a porta. Milas ainda está deitado no chão. O rosto
está cianótico. Uma poça de sangue se espalhou pelo assoalho de madeira.
É como se eu estivesse assistindo a um filme, como se nada disso fosse
real. Solto um palavrão. Milas e eu vamos morrer de tanto sangrar, mas ele
vai primeiro. Alissa enfiou o caco de vidro com vontade.
Corro até o Milas e toco a bochecha dele. Ele não reage, mas quando
posiciono meus dedos em sua garganta, sinto a pulsação, fraca… porém ainda
está lá.
Passo um dos seus braços em volta dos meus ombros e luto para colocá-
lo de pé.
Ele geme de dor, mas os olhos continuam fechados. O sangue ainda
escorre do ferimento.
Como é que eu vou fazer isso? Já seria difícil o bastante se eu estivesse
ileso, mas só com uma das mãos em bom estado é praticamente impossível.
O quarto inteiro está girando.
Minha mão parece que já está pegando fogo.
Aos tropeços, sigo pelo corredor, as chamas no meu encalço. Com o
Milas ao meu lado como se fosse um boneco de pano, cambaleio de volta
para dentro da sala de estar. Assim que o vê, Mint explode.
— Que merda é essa?!
Alissa cola as costas na parede, como se quisesse se fundir com ela. Solto
o Milas no chão da cozinha. Ele geme novamente quando a cabeça bate no
piso.
— A gente não pode simplesmente deixar um ser humano morrer lá
dentro.
Eu não quero me tornar um animal aqui. Quero continuar sendo o bom
e velho Sky até o último segundo.
A lguém começa a chorar.
Sou eu?
Estamos segurando as mãos uns dos outros.
Tudo que posso fazer é olhar para o Milas. Ele se encontra tão tranquilo
e quieto que parece estarmos em seu funeral.
Como vai ser comigo quando chegar a minha vez?
Será que a minha mãe e o meu pai continuarão a ir à igreja no Natal?
Ou será que eles não irão mais, já que eu deveria estar sentada entre os dois?
Vejo a nossa casa diante de mim, o meu quarto. O quadro de cortiça
com as fotos do Sky, da Alissa e minhas. Eu sempre apareço meio que
escondida atrás dos meus amigos, enquanto ela está à frente, radiante.
Esfrego a mão nos meus cabelos curtos e espetados. Será que meus pais
irão me reconhecer assim? Ou talvez soframos queimaduras tão sinistras que
eles não serão capazes de nem ao menos distinguir nós quatro? Um soluço
escapa da minha garganta.
A fumaça rasteja por debaixo da porta.
A Caitlin sumiu.
As abraçadeiras estão no chão, rompidas.
“Alô Olá ”
Olho ao meu redor, mas não há ninguém aqui.
De onde veio essa voz
Então vejo o gancho do telefone ao lado da base.
Pego o gancho e o aproximo da orelha.
— Você ainda está aí
— quem fala — pergunto.
— Emergência.
Eu me encolho.
Ouço um estrondo.
Em uma das telas, vejo bombeiros e policiais se aproximando do Escape
Room.
Eles vieram me prender.
— A guentem firme, pessoal!
Abro os olhos. A sala de estar já está
ficando tomada de fumaça. Minha vista arde. Minha cabeça está
confusa. Minhas pernas querem fraquejar.
É a caixa de som? Quem está falando agora? É a Liese? Milas? O pai
dele?
Será que o jogo ainda não acabou, ou será que isso é um novo jogo?
Eu não aguento mais.
Cleo precisa parar.
— Estamos quase chegando, Alissa!
Eu conheço essa voz.
É do meu pai.
Será que eu morri?
Não pode ser, o que ele veio fazer aqui?
Ouço um estrondo, gritos, um chiado estranho.
Mais fumaça ainda.
— Alissaaa!!!
— P-pai? — Desorientada, chamo ele, tirando o pano de prato da boca.
— Eles estão vivos! — alguém grita. Todos comemoram. Por que
estariam comemorando? Não há motivo nenhum para estarem felizes. Eu
matei uma pessoa.
— Eu… — Preciso contar a eles. Todos precisam saber o que eu fiz. —
O Milas. Eu…
Em seguida, alguém me pega no colo, e eu sinto algo rígido contra a
minha bochecha. Levo um momento para me dar conta do que é: um
capacete.
A s rodinhas da maca se retraem quando sou erguido para
dentro da ambulância. Somente agora percebo que não
estou mais segurando as mãos da Mint e da Alissa. Quando
foi que soltei? Elas ainda estão lá dentro?
Mint, Alissa… Quero gritar seus nomes, mas há alguma coisa cobrindo a
minha boca.
O que tá rolando? Eu me sento, mas um paramédico gentilmente me
deita na maca de novo.
— Seus amigos estão bem.
Olho ao meu redor. Milas está deitado ao meu lado, com um monte de
fios conectados e uma máscara de oxigênio cobrindo a boca e o nariz. Devo
estar usando a mesma coisa. É por isso que eu não consigo falar.
— Demos morfina ao seu amigo por causa da dor. Ele está inconsciente.
Quero dizer que o Milas é qualquer coisa menos meu amigo, mas então
a ambulância começa a se mover, e um enjoo toma conta de mim.
— Só fique parado — pede o homem.
Onde está a Caitlin? Ela ainda está em poder da Cleo?
Afasto do rosto a máscara de oxigênio. O elástico belisca a pele atrás das
minhas orelhas.
— Caitlin…
— Tenha calma. Não se mova — o homem volta a pedir, um pouco
mais enfático dessa vez.
E se ele fizer parte disso tudo? Será que estou realmente numa
ambulância, ou isso é um novo Escape Room?
Tento mexer os dedos, mas nada acontece. Tudo que sinto é um
formigamento onde eles deveriam estar.
O que aconteceu com os meus dedos?
Eu tenho que tocar bateria. Eu preciso…
— E u posso ficar com ela? — pergunto ao policial
que está acompanhando a Alissa.
A mulher da ambulância assente.
— Tudo bem, mas precisamos ir agora.
Subo e fico ao lado da maca. O pai da Alissa já está sentado, perto da
cabeça da filha. Está fazendo carinho nela sem parar.
— O que aconteceu, querida?
Foi bom terem ministrado nela um sedativo forte.
Por onde devo começar? Eu sei que a polícia vai querer que a gente
conte tudo que aconteceu, mas não sei se algum dia serei capaz de falar sobre
tudo que aconteceu. Ninguém jamais entenderá o que exatamente rolou no
Escape. Ninguém entenderá o que nós quatro tivemos que aguentar.
Nós quatro, não. Nós três.
Não posso incluir o Milas.
Ele era parte daquele plano sinistro.
— Mint. — O pai da Alissa coloca a mão sobre a minha. — Quero te
agradecer.
Meus pensamentos se dissipam com a surpresa.
— Por quê?
— Por ser uma amiga tão boa para a minha filha.
Você sempre quer ser o centro das atenções, até mesmo às custas do sofrimento do
seu pai!
Engulo em seco.
— Será?
— É graças a você que ela ainda está viva. Cobrir o rosto com aqueles
panos de prato foi uma excelente ideia.
— A ideia foi do Sky.
Penso no meu melhor amigo, que está na outra ambulância ao lado do
Milas. A ideia de que os paramédicos o sedaram não me parece
reconfortante. Acho que sempre estarei na defensiva de agora em diante.
— Tenho certeza de que também foi muito difícil lá dentro para você.
O pai da Alissa olha para os meus cabelos.
Quase me esqueci de quão curtos eles estão.
— Foi muito difícil para todos nós — digo, baixinho.
Olho para a Alissa, que atacou o Milas. Se ele não sobreviver, ela vai
responder por assassinato.
Agora ela está deitada tranquilamente, mas assim que acordar, vai se
deparar com o inferno. Espero que, pelo bem dela, a minha amiga continue
dormindo por um bom tempo.
— Sky.
Mint entra no meu quarto e me envolve em seus braços. Eu acabei de
acordar. Depois da visita da Caitlin, acabei pegando no sono de novo. Meus
pais voltaram e estão sentados ao lado da minha cama. Parecem chocados
quando veem o novo corte de cabelo da Mint.
Ela me abraça por mais alguns segundos, e me dou conta do quanto eu
gosto disso.
— Como tá a dor? — pergunta ela ao me soltar.
— Morfina — respondo. — Remedinho milagroso.
— A Alissa ainda tá dormindo — informa Mint. — Vou dar uma olhada
nela já, já.
Eu realmente gostaria de ir com ela, mas a enfermeira avisou que eu
preciso continuar de repouso absoluto devido à perda de sangue.
— Sua atadura ficou bem melhor — brinco quando vejo a Mint olhando
para a minha mão. — Você bem que podia arrumar um trabalho aqui,
molezinha pra você.
— Já vi sangue o suficiente por um ano.
Dou um sorriso fraco.
— Acabei de ver a Caitlin no corredor — diz ela, baixinho. — Tá tudo
bem?
— Tá, sim.
Quero perguntar a ela sobre o Milas, mas não me atrevo a fazer isso na
frente dos meus pais. Já estou sabendo que a polícia acabou de contar a eles a
história toda. Quando o meu pai ouviu que o Milas estava envolvido, por
um momento fiquei preocupado, achando que ele ia invadir o quarto do
moleque e dar uma surra nele.
— A Cleo foi presa, tá na delegacia — informa Mint. — Deve estar
sendo interrogada. E depois será a vez dele.
Tudo isso só confirma o que eu sempre soube: de doida, minha amiga
não tem nada. Muito pelo contrário.
Ela me dá um beijo na testa.
— Vou ver como a Alissa está.
Olho para os cabelos curtos, mal cortados. Ela parece invencível. Espero
que mantenha esse corte.
Mint vai para o corredor. Ela é a única que saiu ilesa disso tudo. Mas eu
sei que suas reais feridas são internas.
Ela foi chamada de sombra da Alissa. Foi humilhada e ameaçada.
Num gesto, digamos, impulsivo, ou mesmo impensado, levo as mãos à
boca, e a transformo num megafone. Não dou a mínima se meus pais estão
sentados ao lado da minha cama quando grito para o hospital inteiro ouvir:
— Ei, Mint! Se eu não fosse gay, nunca me apaixonaria pela Alissa, e sim
por você!
H á um cara estranho sentado ao lado da
minha cama. Quando dou uma espiada nele
de rabo de olho, percebo que a jaqueta está aberta e que
há uma arma num coldre preso ao cinto.
Fecho os olhos novamente. Enquanto eu fingir que estou dormindo,
ninguém vai fazer perguntas. Perguntas sobre a Alissa, a minha irmã e todas
as coisas que aconteceram lá dentro.
Alissa quase me matou. Não achei que ela fosse capaz, mas foi.
Eu só queria protegê-la, mas ela não entendeu. Pensou que eu fosse ruim
como a minha irmã.
Cleo… onde será que ela está agora?
Não sei se algum dia vou querer vê-la de novo.
Ouço uma voz assustada, vinda do corredor.
— Milas!
É a Jolieke. Sinto um nó na garganta e meus olhos se enchem de
lágrimas. O que ela está fazendo aqui? Por que será que ainda quer me ver
depois de tudo?
— Perdão, senhora. Ele ainda não pode receber visitas.
— Por que não? Somos familiares. Ele mora comigo.
— Nós entendemos que deseja falar com ele, mas precisamos tomar o
depoimento do garoto primeiro.
— Depoimento?! — Jolieke se exaspera. — Ele não fez nada. Deve estar
havendo algum mal-entendido!
Aperto os olhos com mais força ainda.
M as está parado bem na minha frente, com
aqueles olhos azuis, cor de iceberg.
Ele dá um passo na minha direção. Reajo e cravo o caco de
vidro na barriga dele. Achei que ele iria me atacar, foi legítima defesa, espero
que entendam dessa forma.
Há sangue por todo lado.
No vidro, nas minhas mãos, no meu rosto.
— Acordou? — O rosto da Mint está tão próximo do meu que mal entra em
foco. — Quer saber, você venceu o campeonato do sono.
Onde estou?
O hospital.
Ainda.
Meu pai fez cafuné em mim. Isso foi legal.
Minha mãe chorou. O Koen e o Ruben, claro, também choraram.
E a Fenna? Ela esteve aqui também?
Talvez meus pais tenham preferido deixá-la em casa. Melhor, mesmo.
Não quero que ela veja que também estou ferida. Por fora e por dentro.
— Sua mãe e seu pai estão conversando com o médico. Eles voltarão
logo.
Mint repousa a mão gelada na minha testa. Olho para os cabelos curtos e
toco o rosto dela.
— Me… eu…
— Pois é. Você revolucionou meu visual — brinca Mint. — Vai crescer
de novo. Mas, quem sabe, eu mantenha o corte?
— Desculpe. Machuquei você — peço, completando a frase.
— Esquece. Não foi nada — diz, mas ouço um vacilo na voz. Durante
todo esse tempo, ela foi tão forte e corajosa, mas agora está enfraquecida,
exausta, a insegurança querendo voltar.
A gente se abraça e começa a chorar.
— O Milas tá vivo — informa Mint em meio às lágrimas. Quando ouço
o nome dele, meu coração acelera. — Ele tá sendo interrogado pela polícia,
e a Cleo também. Eles ainda vão querer conversar com a gente.
Não sei se algum dia serei capaz de falar sobre o que aconteceu naquele
lugar. Palavras jamais poderão expressar o que nós passamos.
— Você me alertou sobre ele, e eu…
Há tantas coisas que eu quero dizer para a Mint, mas as palavras ficam
presas na minha garganta. Tento conter o choro, mas não tenho como. Será
que um dia eu vou conseguir me livrar dessa sensação de impotência?
— Eu nunca mais vou ser capaz de confiar em alguém de novo.
— É claro que vai — diz Mint, baixinho. — Nós temos uma à outra.
Fecho os olhos. O pesadelo volta à minha mente: Milas, o caco de vidro,
o sangue… Como é que eu vou conseguir seguir em frente e tocar minha
vida com essas imagens na cabeça?
— Cissa? — Um apelido carinhoso me traz de volta, uma voz que faz eu
me sentir aconchegada por dentro.
Antes mesmo de abrir os olhos, sinto um peso deitar sobre o meu peito.
Sinto cabelos fininhos fazendo cosquinha no meu rosto.
— Fenna! — Minha mãe parece brava. — Tenha cuidado com a sua
irmã, filha.
Porém, eu a envolvo e dou o maior abraço do mundo nela.
Por cima do ombro da Fenna, vejo a Mint abrir um sorriso genuíno. Ela
está certa. A confiança vai voltar. Nós temos uma à outra.
Do Escape Room da vida real, sempre há uma saída.
Todos querem saber o porquê.
A imprensa, a polícia, Jolieke…
Mas eu não direi nada.
Um dia, escreverei um livro sobre isso.
E só então as pessoas vão entender.
Eu fiz isso pela minha família.
Pelo meu pai, minha mãe, pela Liese e pelo Milas.
Eles disseram que o meu irmão sobreviveu,
mas não acho que o verei nem tão cedo.
Jolieke vai fazer tudo que estiver ao alcance
dela para mantê-lo longe de mim.
Milas é a única pessoa que me restou.
Eu não sabia que ele ainda estava vivo lá dentro.
Eu realmente não sabia.
Meu plano funcionou.
Eu machuquei o meu alvo.
Espero que ela nunca se esqueça de como é se sentir impotente.
O policial me explicou o que vai acontecer comigo.
Olho lá para fora.
O sol brilha através das grades.
O calor no meu rosto é agradável.
Por um momento, é como se eu estivesse correndo de novo no Campão.
O sol no meu rosto, e o meu alvo sentado no banco.
Meu irmão falando com ela.
A oportunidade se apresentando tão repentinamente.
Foi um sinal.
Um dia, as pessoas entenderão isso, não
Se você tivesse apenas uma chance, uma única oportunidade para desfrutar
de
tudo que sempre quis num único momento,
você aproveitaria ou simplesmente deixaria passar
Minha primeira experiência num Escape Room foi em Haarlem, na
Holanda.
Antes de entrarmos, um funcionário nos explicou as regras.
Acompanharia tudo através das câmeras.
Zoando, eu disse ao pessoal: “E se ele não deixar a gente sair nunca
mais?” Essa brincadeira foi a inspiração para este livro.
Eu amo tanto escape rooms que acabei me viciando na diversão. Se eu
pudesse conheceria todos que existem no mundo.
Mas… depois deste livro, eu meio que fiquei supercautelosa.
Comunico pelo menos a uma pessoa aonde estou indo e sempre digo:
“Se não ouvir notícias minhas até as 10h, vá me buscar.”
Sabe como é, né, só para ter certeza…
Maren Stoffels
SOBRE A AUTORA
Poderia mesmo?
Não? Por que não?