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UNIVERSIDADE LUSÍADA DO PORTO

COMPORTAMENTO PROCESSUAL ILÍCITO E ABUSO


DO DIREITO NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Trabalho realizado no âmbito da unidade curricular de Direito Civil (Avançado)

por

Ana Margarida Frias Monteiro

Porto, 2023
ÍNDICE

INTRODUÇÃO 1

CAPÍTULO I - ALGUNS PRINCÍPIOS DE PROCESSO CIVIL 3

1. O PRINCÍPIO DA CELERIDADE..............................................................................................3
2. O PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO........................................................................................4
3. O PRINCÍPIO DA IGUALDADE DAS PARTES...........................................................................4
4. O PRINCÍPIO DO DISPOSITIVO..............................................................................................5
5. O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO............................................................................................5
6. O PRINCÍPIO DA BOA FÉ......................................................................................................5

CAPÍTULO II - O ABUSO DO PROCESSO 7

1. O ABUSO DO DIREITO DE AÇÃO..........................................................................................7


1.1 A LIDE MALICIOSA.........................................................................................................8
1.2 A LIDE INÚTIL.................................................................................................................9

CAPÍTULO III- AS CONSEQUÊNCIAS DO ABUSO DO DIREITO DE AÇÃO 11

1. A LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ...................................................................................................11
2. A TAXA SANCIONATÓRIA EXCECIONAL............................................................................14
3. ABUSO E PODER GERAL DE DIREÇÃO DO PROCESSO........................................................15
4. A COMPENSAÇÃO DE CUSTAS PROCESSUAIS: A REGRA VICTUS VICTORI E O INTERESSE
PROCESSUAL 16

CONCLUSÃO 19

BIBLIOGRAFIA 21

JURISPRUDÊNCIA 22

II
RESUMO

O objetivo do nosso estudo é explorar os meios de reação existentes no nosso


ordenamento jurídico para responder ao abuso do direito de ação.

Assim, passaremos, ainda que brevemente, pela nomeação de alguns princípios


de direito que consideramos relevantes para a nossa investigação, por ser a sua violação
que sustenta as consequências processuais que em momento ulterior analisaremos.

Dali, partiremos para a análise do abuso do direito de ação, distinguindo a lide


maliciosa da lide inútil, como duas modalidades de litigância distintas que, pelas suas
especificidades, carecem de proteção a diferentes níveis.

Seguiremos para a análise das consequências da lide abusiva, estudando o


instituto da litigância de má-fé, mais, procuraremos responder à questão de existir ou
não espaço para a aplicação da cláusula geral do abuso de direito, prevista no art. 334º
do Código Civil, ao lado do instituto da litigância de má-fé. Trataremos também da taxa
sancionatória excecional, versaremos sobre o poder geral de direção do juiz como
instrumento de repressão de comportamento processual ilícito e averiguaremos da
imputação das custas processuais às partes.

Desta forma, exploraremos assuntos relacionados com o exercício inaceitável de


posições jurídicas através de uma análise centrada no estudo do Código de Processo
Civil.

III
ABSTRACT

The aim of our study is to explore the means of reaction existing in our legal
system to respond to the abuse of the right of action.

Thus, we will start by briefly naming some principles of law that we consider
relevant to our investigation, since it is their violation that sustains the procedural
consequences that we will analyse later on.

From there, we will move on to the analysis of the abuse of the right of action,
distinguishing between malicious and futile litigation, as two distinct types of litigation
which, due to their specificities, require protection at different levels.

We will then go on to analyse the consequences of abusive litigation, studying


the institute of bad faith litigation, in addition to which we will try to answer the
question of whether or not there is room for the application of the general clause of
abuse of rights, provided for in Article 334 of the Civil Code, alongside the institute of
bad faith litigation, dealing with the exceptional sanctioning fee, dealing with the
judge's general power of direction as an instrument for the repression of unlawful
procedural behaviour and investigating the imputation of procedural costs to the parties.

In this way, we will explore issues related to the unacceptable exercise of legal
positions through an analysis centred on the study of the Civil Procedure Code.

IV
PALAVRAS-CHAVE

Litigância de má-fé; Abuso de Direito; Comportamento processual abusivo;

V
LISTA DE ABREVIATURAS

Ac. – Acórdão.

Al. – Alínea.

Art. – Artigo.

Arts. – Artigos.

CC – Código Civil.

Cfr. – Conforme.

CPC – Código de Processo Civil.

CRP – Constituição da República Portuguesa.

N.º - Número.

Pág. – Página.

Págs. – Páginas.

Proc. – Processo.

STJ – Supremo Tribunal de Justiça.

TCAN – Tribunal Central Administrativo Norte.

TRG – Tribunal da Relação de Guimarães.

TRL – Tribunal da Relação de Lisboa.

TRP – Tribunal da Relação do Porto.

VI
INTRODUÇÃO

Apesar da crescente valorização de princípios jurídicos como o princípio da


celeridade processual, surgem diariamente críticas em relação à demora na resolução
dos casos judiciais, demora essa promotora do desprestígio da Justiça. Contribui para
essa demora o recurso excessivo aos Tribunais, não raras vezes realizado por meios de
ações desnecessárias, procedimentos inúteis ou estratégias procrastinatórias, que apenas
beneficiam aqueles que pretendem utilizar o processo de forma disfuncional.

Tal conjetura consubstancia um desafio atual na situação jurídica portuguesa


que, para além de claramente incompatível com o espírito jurídico português, origina
graves consequências para a eficácia da ação da justiça.

Com a intenção de combater o uso pervertido do processo, é fundamental que o


sistema jurídico disponha de instrumentos adequados para coibir condutas que visem
apenas prejudicar a parte adversa ou dela obter vantagens injustas, sem que haja uma
efetiva necessidade de tutela jurídica.

A ênfase dada ao tema decorre do desejo de consciencializar para as


consequências resultantes da impunidade dos comportamentos contrários aos princípios
da boa-fé e da cooperação. Consideramos que essa impunidade traz vantagens
inaceitáveis para as partes que não possuem razão 1, sendo recompensadas pelo uso de
artifícios condenáveis e manobras dilatórias, assim, cogitamos ser de grande
importância destacar os efeitos desses comportamentos para promover um sistema
jurídico mais justo e equilibrado.

À guisa de introdução, procuramos compreender quais são as ferramentas


disponíveis para o tribunal punir o autor nos casos em que este faça um uso abusivo do

1
Exemplificativamente, TINOCO, Tiago Oliveira, O Abuso do Direito de Ação: Consequências
Processuais, Porto, 2020 (Dissertação para obtenção de grau de mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas),
pág. 1: “Imagine-se, para o efeito, o caso de uma empresa à qual é negada a concessão de um crédito pelo
simples facto surgir como parte num vasto elenco de processos judiciais que, pese embora as motivações
maliciosas e não dignas de tutela judicial que os motivaram, ainda assim foram fundamentais para criar na
entidade bancária a convicção de que poderiam dificultar o cumprimento das obrigações a assumir.”

VII
processo, pelo que se apresenta para nós imprescindível explorar as soluções previstas
no ordenamento jurídico português para lidar com a utilização do processo de forma
desvirtuada, protegendo assim os princípios fundamentais da boa-fé, da cooperação e do
acesso à justiça.

Ao explorar este tema, pretendemos contribuir para uma melhor e maior


compreensão e consciencialização da importância de uma conduta processual ética e
responsável, em prol da justiça e da eficiência do sistema jurídico.

VIII
CAPÍTULO I

ALGUNS PRINCÍPIOS DE PROCESSO CIVIL

No Código de Processo Civil estão previstos alguns princípios enformadores do


processo civil português, entre eles, o Princípio da Celeridade, o Princípio do
Contraditório e os Princípio da Boa-Fé e da Cooperação, que abordaremos, ainda que
brevemente, dada a sua relevância para o tema em apreço, uma vez que é a sua violação
que implica a aplicação do instituto da litigância de má-fé e do abuso do direito.

1. O Princípio da Celeridade.

Conformemente à redação dos n.ºs 4 e 5 do art. 20.º da CRP2, o Código do


Processo Civil dispõe que “[a] proteção jurídica através dos tribunais implica o direito
de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso
julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a
fazer executar.”3

São manifestações do princípio da celeridade o prazo de 10 dias estabelecido


para as partes “requererem qualquer ato ou diligência, arguirem nulidades, deduzirem
incidentes ou exercerem qualquer outro poder processual; e também é de 10 dias o
prazo para a parte responder ao que for deduzido pela parte contrária” nos termos do art.
149.º CPC e o preceituado art. 156.º, n.ºs 1 e 2 CPC, nos quais se estabelece um prazo
supletivo de 10 dias para que sejam proferidos os despachos judiciais e as promoções do
Ministério Público.4

2
Art. 20.º - Acesso ao Direito e tutela jurisdicional efectiva: “ (…) 4. Todos têm o direito a que
uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.
5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos
judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra
ameaças ou violações desses direitos.”
3
Art. 2.º, n.º 1, CPC.
4
“Art. 156.º - Prazo para atos dos magistrados: 1. Na falta de disposição especial, os despachos
judiciais são proferidos no prazo de 10 dias. 2. Na falta de disposição especial, as promoções do
Ministério Público são deduzidas no prazo de 10 dias. (…)”

IX
2. O Princípio do Contraditório.

O Código do Processo Civil estabelece no seu art. 3º o princípio do


contraditório, que se traduz na atribuição à parte da faculdade de formular determinado
perdido e de sobre ele se pronunciar.

Como exemplo de aplicação deste princípio, observamos o estabelecido na


alínea c), do n.º 1, do art. 591.º CPC 5 sobre os fins da audiência prévia em processo
ordinário.

MANUEL DE ANDRADE, define o princípio do contraditório como “aquele


que está ao serviço do princípio da igualdade das partes e se conjuga com o princípio da
proibição da indefesa, por ele se facultando a cada uma das partes a possibilidade de
apresentar as suas razões, de facto e de direito, de oferecer as provas que possuir, de
verificar as provas do adversário e de discorrer sobre o valor e resultados de umas e de
outras”.6

3. O Princípio da Igualdade das Partes

Em conformidade com o estabelecido no art. 13.º da Constituição da República


Portuguesa7 que prevê o princípio da igualdade, o art. 4.º CPC imputa ao tribunal a
responsabilidade de “assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade
substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de
defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais.”

5
Art. 591.º, n.º 1, al. c): “Discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do
litígio, e suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto ou que ainda subsistam
ou se tornem patentes na sequência do debate.”
6
Cfr. Andrade, Manuel A. Domingues, Noções Elementares de Processo Civil, ed. revista por
Herculano Esteves, Coimbra, Coimbra Editoria, 1993, pág. 407.
7
Art. 13.º CRP: “1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de
qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções
políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”

X
4. O Princípio do Dispositivo

Como confirmação do princípio do contraditório, abordado no número 3 do


presente capítulo, o princípio do dispositivo incumbe às partes a capacidade de “alegar
os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as
exceções invocadas.”8, no entanto, “o juiz não está sujeito às alegações das partes no
tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.” 9

5. O Princípio da Cooperação

O princípio da cooperação disposto no art. 7.º do CPC faz impender sobre os


magistrados, os mandatários judicias e as partes na obrigação de cooperar entre si, de
modo que se verifique o princípio da celeridade processual.

6. O Princípio da Boa Fé.

A introdução do princípio da boa-fé no âmbito processual tem como objetivo


impedir que o processo seja utilizado de maneira abusiva ou egoísta 10, desempenhando
um papel fundamental no conceito de processo e na sua finalidade 11, assim o art. 8.º
CPC atribui às partes a obrigatoriedade de observar o dever de “agir de boa-fé e
observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo anterior”,
referindo-se ao já mencionado supra princípio da cooperação.

8
Art. 5.º, nº 1 CPC.
9
Art. 5.º, n.º 3 CPC.
10
Cfr. BORGES, Marta Alexandra Frias, Algumas Reflexões em Matéria de Litigância de Má-
fé, Coimbra, 2014 (Dissertação para obtenção de grau de mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas), pág.
14.
11
Cfr. SOARES, Fernando Luso, A Responsabilidade Processual Civil, Coimbra, Almedina,
1987, pág. 164 vide Cfr. BORGES, Marta Alexandra Frias, Algumas Reflexões em Matéria de Litigância
de Má-fé, Coimbra, 2014 (Dissertação para obtenção de grau de mestre em Ciências Jurídico-
Civilísticas), pág. 14.

XI
Conjeturamos que este seja, talvez, o princípio de direito de maior relevância
tendo em conta o âmbito do nosso estudo.12

Depois da demonstração realizada dos princípios enformadores do direito


processual civil por nós considerados de maior relevância no âmbito do tema a que se
propõe este estudo, princípios esses promotores da eficácia e da justiça das decisões
judicias, partiremos para o estudo daqueles que são os comportamentos reprováveis em
sede de processo civil.

12
As alíneas do art. 542º, de epígrafe “Responsabilidade no caso de má fé” traduzem os ditames
da boa-fé, a alínea a) impõe um dever de cuidado aquando da dedução de uma pretensão, a alínea b) alude
ao dever de verdade e as alíneas c) e d) concretizam a obrigação de cooperação. Cfr. BORGES, Marta
Alexandra Frias, Algumas Reflexões em Matéria de Litigância de Má-fé, Coimbra, 2014 (Dissertação
para obtenção de grau de mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas), pág. 40.

XII
CAPÍTULO II

DO ABUSO DE PROCESSO

1. O Abuso do Direito de Ação.

No âmbito do Direito Civil, as relações entre os indivíduos ou entre os


indivíduos e o Estado são baseadas na atribuição de direitos subjetivos a um dos sujeitos
e, como consequência, emergem deveres jurídicos específicos para outra parte.13

Deste modo, são atribuídos direitos subjetivos e interesses legalmente


protegidos, que conferem aos particulares a faculdade de exigir determinadas condutas
de outras pessoas ou entidades, podendo a sua violação acarretar consequências
jurídicas, como a direito à reparação ou a obtenção de tutela do Estado através do
sistema judicial de modo a restabelecer o direito violado.14

No Código Civil português, o art. 334.º de epígrafe “Abuso do direito” estipula


que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os
limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico
desse direito”15

CASTRO MENDES, define abuso do Direito em sentido restrito como a


situação que ultrapassa os limites da atuação de um determinado direito subjetivo,
utilizando-o de forma ilegítima ou além do que é considerado legítimo. Admitindo dois
sentidos distintos para a expressão, o autor afirma que em sentido lato o abuso de direito
ocorre precisamente quando se violam normas e valores que não são primariamente
jurídicos, mas que são reconhecidos e protegidos pela ordem jurídica.16
13
Cfr. ANDRADE, Manuel A. Domingues, Noções Elementares de Processo Civil, ed. revista
por Herculano Esteves, Coimbra, Coimbra Editoria, 1993, pág. 5.
14
Cfr. ANDRADE, Manuel A. Domingues, Noções Elementares de Processo Civil, ed. revista
por Herculano Esteves, Coimbra, Coimbra Editoria, 1993, pág. 1.
15
A figura do abuso do direito não é exclusiva do ordenamento jurídico português, aparecendo
também no Código Civil brasileiro, por exemplo. Cfr. GOMES, Luciana, O Abuso do Direito de
Demandar, Coimbra, dezembro de 2018 (Dissertação para obtenção do grau de mestre em Direito), pág.
13.
16
Cfr. MENDES, João de Castro, Teoria Geral do Direito Civil, Lisboa, Edições AAFDL, 1998,
págs. 220 e ss.

XIII
Pelas palavras de VAZ SERRA17, quando o direito “legítimo em princípio, é
exercido de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente
dominante, tendo como repercussões que o titular do direito seja tratado como se não o
tivesse ou de contra ele se admitir um direito de indemnização baseado em facto ilícito
extracontratual”, existe Abuso de Direito.18

Por sua vez, para MENEZES CORDEIRO “o abuso do direito constitui uma
fórmula tradicional para exprimir a ideia do exercício disfuncional de posições
jurídicas”.19

Mais, a jurisprudência portuguesa considera que “só existe abuso de direito se


este for exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça, com manifesto
excesso dos limites impostos pela voa fé, pelos bons costumes ou pelo seu fi, económico
e social.”20

Depois de referirmos, ainda que sucintamente o instituto do Abuso do Direito e


de o consagrarmos como o exercício inadmissível de posições jurídicas, é necessário
esclarecer para os propósitos deste estudo, o que entendemos por Abuso do Direito de
Ação, enumerando as diferentes conceções de ação abusiva que analisaremos infra.

1.1 A Lide Maliciosa

Como já referimos supra o princípio da boa fé está previsto no art. 8.º do Código
de Processo Civil, contudo, não poucas vezes são intentadas nos tribunais portugueses
ações cuja causa de pedir é motivada por intenções distintas daquelas que devem
fundamentar a apresentação de ações judiciais. Nestes casos, o autor ao invés de
procurar o reconhecimento de um direito, tenciona, exclusivamente, prejudicar a

17
Cfr. SERRA, Adriano Vaz, “Abuso do Direito (em Matéria de Responsabilidade Civil)”, in
Boletim do Ministério da Justiça, n.º 85, 1959, pág. 253.
18
Neste sentido, Ac. TRG, de 25/05/2017, proc. n.º 354/14.1T8VCT-A.G1: “Existe abuso de
direito quando, admitido certo direito como válido, isto é, não só legal mas também legítimo e razoável,
em tese geral, aparece todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da
justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito.”, disponível em www.dgsi.pt.
19
Cfr. CORDEIRO, António Menezes, 2016, Litigância de Má-Fé, Abuso do Direito de Ação e
Culpa in Agendo, 3.ª ed., Coimbra, Almedina, 2016, pág. 89.
20
Ac. TCAN, de 17/01/2008, proc. n.º 00350/05.0BEPNF, disponível em www.dgsi.pt., no
mesmo sentido, Ac. TCAN, de 03/02/2011, processo n.º 01273/10.6BEPRT, disponível em www.dgsi.pt.

XIV
contraparte, desrespeitando, assim, os deveres da boa-fé a que está sujeito no processo
civil.

Neste sentido, o Tribunal da Relação do Porto afirma que deve ser punida a parte
que, não apenas com dolo, mas também com negligência grave, apresente demandas ou
oposições manifestamente infundadas, altere a verdade dos factos, quer por ação, quer
por omissão, negligencie o dever de cooperação de forma inescusável ou utilize os
instrumentos processuais de maneira reprovável.21

Deste modo, a conceção de abuso do direito de ação que consideramos relevante


diz respeito aos casos de litigância maliciosa, incluindo as situações em que o autor
intenta determinada ação com o objetivo de obter uma vantagem ilegítima ou impor um
ônus injusto ao réu.22

1.2 A Lide Inútil

Referimo-nos aprioristicamente a situações em que as partes atuam com dolo ou


negligência, no entanto, o elenco a que nos propusemos não esgota as hipóteses de
Abuso de Direito de Ação.

A propósito, são distinguíveis diversas situações23:


21
Cfr. Ac. TRP, de 07/12/2018, proc. n.º 280/18.5T8OAZ.P1, disponível em www.dgsi.pt.
22
Na jurisprudência nacional considera-se o processo judicial como um ato capaz de causa danos
às partes litigantes, veja-se Ac. TRP, de 22/10/2018, proc. n.º 528/11.7TVPRT.P1, disponível em
www.dgsi.pt: “O abuso de direito no campo processual, numa perspetiva macroscópica, pode aferir-se
tendo em conta, designadamente, os seguintes índices: - o exercício gratuito do direito como único e
manifesto propósito de negar interesses dos outros, revelando-se, em contrapartida uma falta de
interesse objetivo para o exercente (ex. a vingança e a pura finalidade de prejudicar terceiros); - a
afirmação de interesses próprios mas em que se patenteia uma lesão ponderosa (mas de todo escusada)
de interesse alheio (ainda que não dolosa); - o exercício do direito desviado do interesse que lhe é
imanente e que justificou a sua atribuição, sendo abusiva qualquer situação subjetiva processual que se
desvie manifestamente desse interesse; - a ação por má vontade ou para pressionar o lesado (ex., a ação
sem fundamento relativa a um imóvel e registo da mesma, com isso podendo impedir a comercialização
do imóvel, causando danos em cadeia); - o pedido manifestamente vexatório ou desprovido de qualquer
propósito real.”
23
Cfr. JOÃO CASTRO DE MENDES, para além das duas hipóteses por nós nomeadas, refere
ainda a possibilidade de o autor demandar sem razão e de má fé. Não consideramos este ponto por na
nossa conceção se traduzir numa situação de lide maliciosa e não de lide inútil. O autor apresenta ainda
um exemplo esclarecedor daquilo que se deve considerar lide inútil: se A é credor de B e este, por sua
vez, não cumpre com a sua obrigação, é evidente que A precisa de recorrer aos tribunais para fazer valer o
seu direito. No entanto, se A é o proprietário de um determinado imóvel e, a fim de ter seu direito de
propriedade reconhecido judicialmente, inicia uma ação de simples apreciação contra C, que não o
conhece nem tem qualquer relação com ele, a situação é diferente. A é de facto o proprietário do imóvel e
tem legitimidade para reivindica-lo, mas não está numa situação de necessidade de proteção, pelo menos

XV
 O autor demanda de boa fé e sem culpa, contudo, sem razão;
 O autor demanda de boa fé, no entanto, sem razão e com leve grau de
culpa;

Nestes casos, devido à ausência de uma motivação maliciosa por parte do autor,
a ação será rejeitada e o autor será responsável pelo pagamento das custas processuais.
Não haverá, contudo, lugar a uma compensação financeira, uma vez que a nossa
legislação só prevê e sanciona a atuação com dolo ou negligência grave, os quais estão
incluídos nas situações de litigância maliciosa.

em relação a C, tornando a sua ação inútil. Cfr. MENDES, João de Castro, “ Direito Processual Civil”,
Vol. II, Lisboa, Edições AAFDL, 1987.

XVI
CAPÍTULO III

AS CONSEQUÊNCIAS DO ABUSO DO DIREITO DE AÇÃO

Examinaremos agora quais as ferramentas disponíveis na ordem normativa


portuguesa para enfrentar as situações que mencionamos anteriormente e quais as
consequências processuais delas decorrentes.

1. A Litigância de Má-fé.

Como demonstrado no ponto anterior, emergem dos princípios do direito


processual civil deveres processuais para as partes, nomeadamente o dever de cooperar
com a contraparte, os mandatários e o tribunal. Questiona-se o que sucederá quando a
parte viola os deveres processuais em que está incumbida e não só os viola, como usa de
dolo ou negligência grave nessa violação.

É nestas circunstâncias que intervém o instituto da litigância de má-fé como


“punição” correspondente ao mau comportamento da parte. Em concordância com o Ac.
do TRL de 21 de novembro de 2019 “a condenação da parte por litigância de má fé
não se basta com a dedução de pretensão ou oposição arredada de qualquer
fundamento, exigindo-se que tenha a mesma atuado com dolo ou com negligência
grave, ou seja, sabendo de antemão da falta de fundamento da sua pretensão ou
oposição, ou encontrando-se em situação/posição que lhe permita saber sem
dificuldade que a pretensão deduzida estava votada ao fracasso.”24

24
No mesmo sentido, Ac. TRP, de 07/12/2018, proc. n.º 280/18.5T8OAZ.P1, disponível em
www.dgsi.pt: “A responsabilização e condenação da parte como litigante de má-fé só deverá ocorrer
quando se demonstre nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente,
como dolo ou negligência grave, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a
entorpecer a acção da justiça, ou, a deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia
ignorar”

XVII
Note-se que para aplicação do instituto da litigância de má fé, é crucial que o
juiz se depare com comportamentos que sejam exclusivamente de natureza processual,
ou seja, ofensas cometidas no exercício da atividade processual ou a posições
relacionadas ao processo em si. A responsabilidade por litigância de má fé estará
sempre associada à ocorrência de um ilícito processual puro e visa proteger o interesse
público em detrimento das posições privadas e particulares das partes envolvidas25.

Além disso, é essencial que o tribunal disponha de elementos seguros que


indiquem a existência de dolo, ou pelo menos de uma conduta processual
excessivamente temerária ou negligente. Isto ocorre porque está em jogo o exercício do
direito fundamental de acesso à justiça, previsto na Constituição da República
Portuguesa, no seu art. 20.º26, e restringir injustificadamente e de forma desproporcional
esse direito não é razoável. A penalização do exercício do direito fundamental de acesso
à justiça deve ocorrer somente quando houver uma conclusão segura de que a conduta é
contrária à teleologia subjacente desse direito.27

Ao analisarmos o conteúdo do art. 572.º, n.º 2 do CPC, podemos observar que as


suas alíneas abordam o que chamamos de “elemento objetivo da litigância de má-fé”28.
Estas alíneas delineiam os comportamentos que as partes devem evitar para não
prejudicar o curso da relação jurídica processual, são, na verdade, manifestações
concretas do princípio da boa-fé.29

O art. 542.º do CPC, de epígrafe “Responsabilidade no caso de má-fé – Noção


de má-fé” estabelece ainda no seu n.º 1 que “tendo litigado de má-fé, a parte será
condenada em multa e numa indemnização30 à parte contrária, se esta a pedir.”

25
Ac. TRL, de 21/11/2019, proc. n.º 14.0TBFUN-B.L1-6, disponível em www.dgsi.pt.
26
Art. 20.º - Acesso ao Direito e tutela jurisdicional efetiva: “1. A todos é assegurado o acesso
ao Direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo
a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.”
27
Cfr. TINOCO, Tiago Oliveira, O Abuso do Direito de Ação: Consequências Processuais,
Porto, 2020 (Dissertação para obtenção de grau de mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas), pág. 19 e 20.
28
Cfr. BORGES, Marta Alexandra Frias, Algumas Reflexões em Matéria de Litigância de Má-fé,
Coimbra, 2014 (Dissertação para obtenção de grau de mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas), pág. 40.
29
Cfr. BORGES, Marta Alexandra Frias, Algumas Reflexões em Matéria de Litigância de Má-fé,
Coimbra, 2014 (Dissertação para obtenção de grau de mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas), pág. 40.
30
A indemnização a que se refere o texto do art. 542.º obedece ao estabelecido no art. 543.º,
podendo consistir “no reembolso das despesas que a má-fé do litigante tenha obrigado a parte contrária,
incluindo os honorários dos mandatários ou técnicos” ou “no reembolso dessas despesas e na satisfação
dos restantes prejuízos sofridos pela parte contrária como consequência direta ou indireta da má-f锸
tendo o juiz de optar pela “indemnização que julgue mais adequada à conduta do litigantes de má-fé,
fixando-a sempre em quantia certa.”

XVIII
Afigura-se neste momento pertinente e interessante analisar o acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de julho de 2007, relatado por Gil Roque que no seu
sumário prevê que “a punição por litigância de má fé prevê duas sanções, uma de
natureza criminal a multa e outra de natureza civil, a indemnização. Ambas visam
punir o litigante, mas não se podem confundir nem aferir em função uma da outra. Só a
primeira visa castigar o litigante em termos criminais, a segunda visa ressarcir o
ofendido dos danos com os atos da litigância de má fé.”

No caso em apreço, os autores propuseram ação de condenação contra os


mandatários alegando danos causados no exercício negligente do mandato judicial. Os
réus, na sua contestação, contestaram os factos alegados na petição inicial e, além disso,
apresentaram uma reconvenção e um pedido de condenação dos autores por litigância
de má fé, requerendo que os autores fossem condenados a indemniza-los pelos encargos
judiciais, pelas despesas de expediente, pelas despesas de organização e apresentação da
prova, pelos honorários de que os réus prescindiram em razão da necessária
disponibilidade para tratar o caso e por danos não patrimoniais, considerando o abalo da
confiança dos seus clientes, antigos e novos, fundamentada na acusação de desleixo no
exercício da sua profissão.

É importante destacar que os réus solicitaram a condenação dos autores a pagar


uma compensação por danos que não estão relacionados com questões processuais,
independentemente do conteúdo jurídico do conceito de bens jurídicos processuais. O
primeiro réu procura essencialmente uma compensação por danos causados ao seu bom
nome. O que para nós é relevante é que, apesar do instituto da litigância de má fé se
aplicar apenas quando estejamos perante comportamentos ilícitos de natureza
exclusivamente processual, nenhuma das instâncias judicias negou a possibilidade de
compensação por esses danos na ação, seja porque foram causados por factos que não
estão diretamente ligados à litigância de má fé, seja porque envolvem bens jurídicos que
não são protegidos pelo seu regime.31

PAULA COSTA SILVA32 questiona-se se “há espaço, ao lado da litigância de


má-fé, para uma intervenção da cláusula geral do abuso do direito? Haverá campo
para a intervenção de outros institutos? Constituirá a litigância de má fé a reação a
31
Cfr. SILVA, Paula Costa, Responsabilidade por conduta processual: litigância de má fé e tipos
especiais, Almedina, Coimbra, 2022, pág. 522.
32
Cfr. SILVA, Paula Costa, Responsabilidade por conduta processual: litigância de má fé e tipos
especiais, Almedina, Coimbra, 2022, pág. 565.

XIX
comportamentos ilícitos e dolosos ou gravemente negligentes, devendo intervir outros
institutos quando o comportamento é disfuncional? O que sucede se a parte atua
situações jurídicas processuais, não para influenciar a decisão judicial destinada a
resolver um conflito de interesses, mas para provocar um mal à parte contrária?” Estas
são algumas das questões para as quais tencionamos encontrar resposta no ponto
seguinte.

Seguindo a ideia de MENEZES CORDEIRO 33, que se acompanha de perto,


apesar de existir uma sobreposição entre os conceitos de Litigância de Má Fé e Abuso
do Direito, essa sobreposição não é total. Existem comportamentos que não se
enquadram no tipo legal estabelecido no art. 542.º do CPC, seja por não envolverem
qualquer ato ou intenção maliciosa por parte do autor, seja por não terem uma finalidade
específica mencionada taxativamente na norma. Nesses casos, abre-se espaço para a
aplicação da cláusula geral do Abuso do Direito no âmbito do processo civil.34

2. A Taxa Sancionatória Excecional.

A taxa sancionatória excecional apresenta-se, a par do instituto da litigância de


má-fé e do poder geral de direção do juiz, como uma terceira via sancionatória do abuso
do direito de ação da qual o juiz pode fazer uso.

Nos termos do art. 531.º CPC: “Por decisão fundamentada do juiz, pode ser
excecionalmente aplicada uma taxa sancionatória quando a ação, oposição,
requerimento, recurso, reclamação ou incidente seja manifestamente improcedente e a
parte não tenha agido com a prudência ou diligência devida.”

Recentemente, o Supremo Tribunal de Justiça estabeleceu o objetivo da taxa


sancionatória excecional, afirmando que com esta não se pretende sancionar erros
técnicos, uma vez que estes sempre foram punidos por meio do pagamento de custas
33
Cfr. CORDEIRO, António Menezes, 2016, Litigância de Má-Fé, Abuso do Direito de Ação e
Culpa in Agendo, 3.ª ed., Coimbra, Almedina, 2016, pág. 146.
34
Apenas por mero deleite intelectual, saiba-se que no direito processual brasileiro não existe
esta distinção entre abuso de direito e abuso de direito processual, tendo, segundo a doutrina e a
jurisprudência, aplicação no direito processual o do instituto do abuso do direito previsto no CC
brasileiro. Cfr. THEODORO JÚNIOR, Humberto, “Abuso de direito processual no ordenamento jurídico
brasileiro”, in Abuso dos Direitos Processuais, coord. José Carlos Barbosa Moreira, Ed. Forense, Rio de
Janeiro, 2000, pág. 105 vide

XX
processuais. Em vez disso, ela visa reagir a uma conduta claramente abusiva do
processo, penalizando o sujeito que intencionalmente deturpa o processo.35

Depois de examinadas as consequências decorrentes da lide maliciosa, é hora de


nos debruçarmos sobre outras situações igualmente problemáticas que podem ocorrer no
âmbito do processo civil que vão além da lide maliciosa (como já verificado na nossa
investigação), concentraremos-nos agora nas consequências derivadas da lide inútil.

3. Abuso e Poder Geral de Direção do Processo.

Um dos instrumentos previstos no Código de Processo Civil para enfrentar


comportamentos abusivos é o poder geral de direção do processo conferido ao juiz. De
acordo com o art. 6.º, n.º 1 do CPC 36, esse poder de direção exige que o juiz impeça a
realização de atividades processuais inúteis, que sejam dilatórias ou irrelevantes. 37

O poder de direção do juiz manifesta-se, a título de exemplo, no requerimento da


perícia pelas partes, devendo estas “sob pena de rejeição”, indicar logo o objeto da
perícia, enunciando as questões de facto que pretendem ver esclarecidas através da
diligência38, só sendo conferido contraditório à outra parte se o juiz entender que a
diligência não é impertinente nem dilatória, indeferindo ainda as questões que
considerar inadmissíveis ou irrelevantes.39

Assim, o juiz tem investido em si um poder geral de indeferir o que é inútil ou


impertinente, consagrando estas intervenções como inadmissíveis.

35
Cfr. Ac. STJ, de 09/05/2019, proc. n.º 565/12.4TATVR-C.E1-A.S1, disponível em
www.dgsi.pt.
36
Art. 6.º, n.º 1: “Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela
lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo
oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for
impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e
agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.
37
Cfr. SILVA, Paula Costa, Responsabilidade por conduta processual: litigância de má fé e tipos
especiais, Almedina, Coimbra, 2022, pág. 611.
38
Art. 475.º, n.º 1, CPC.
39
Art. 476, CPC.

XXI
Contudo, a atuação, ainda que inadmissível, poderá provocar danos à
contraparte40, danos esses que vão além do efeito intraprocessual, não sendo possível
evitar as suas repercussões apenas com a valoração da inadmissibilidade, até porque não
será essa a sua finalidade. Deste modo, somos obrigados a concluir que a
inadmissibilidade não excluirá a ilicitude, podendo um ato ser simultaneamente
inadmissível e desencadear os efeitos típicos da má-fé, 41 não nos parecendo que outra
solução que não esta se afigurasse remotamente acertada.

Em suma, o juiz possui um poder de indeferir que apesar de se demonstrar


essencial na repressão da lide inútil, não é, de modo algum, método punitivo para o
litigante abusivo, restringindo-se “a uma apreciação da desconformidade objetiva entre
comportamento e parâmetros do sistema”.42

4. A Compensação de Custas Processuais: a regra victus victori e o


interesse processual

Uma vez que consideramos supra a lide inútil como uma das conceções
adequadas dentro ao conceito de abuso de direito, não poderíamos ignorar o estudo da
figura do Interesse Processual.

O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de maio de 2018, apresenta o


interesse processual como um pressuposto processual relativo às partes, apesar de não
estar referido na lei, de forma direta. Afirmando ainda que “só se pode afirmar que há
interesse processual quando a situação de incerteza, ou de dúvida, acerca da

40
Veja-se o exemplo dado por PAULA COSTA SILVA, “Pense-se por hipótese, na dedução de
um pedido pelo autor ou pelo réu fora dos momentos em que a lei permite a constituição de semelhante
cumulação objetiva sucessiva. Suponha-se, agora, que a pretensão é sustentada em factos totalmente
falsos e altamente prejudiciais, na sua simples enunciação, para a parte contrária. Se bem que o pedido
não venha sequer a ser apreciado, por extemporâneo, sendo o ato considerado inadmissível, certo é que
da mera alegação dos factos pode decorrer de um dano para a parte contrária (v.g. pode esta ver a sua
honra atingida). in SILVA, Paula Costa, Responsabilidade por conduta processual: litigância de má fé e
tipos especiais, Almedina, Coimbra, 2022, pág. 614 e 615.
41
Cfr. SILVA, Paula Costa, Responsabilidade por conduta processual: litigância de má fé e tipos
especiais, Almedina, Coimbra, 2022, pág. 615.
42
Cfr. SILVA, Paula Costa, Responsabilidade por conduta processual: litigância de má fé e tipos
especiais, Almedina, Coimbra, 2022, pág. 616.

XXII
existência, ou não, de um direito ou de um facto, contra as quais o autor pretende
reagir através da ação de simples apreciação, reunir objetividade e gravidade.”43

Assim, não é suficiente que haja uma necessidade frívola de recorrer ao processo
para que esse requisito seja preenchido. A dignidade do sistema judicial exige que o
autor tenha uma necessidade séria e razoável, que não possa ser adequadamente
atendida de outra forma. Caso contrário, correríamos o risco de o processo servir apenas
para satisfazer caprichos do autor ou ser utilizado por ele com o único propósito de
perturbar e causar prejuízos ao réu. Portanto, é necessário que o autor demonstre não
apenas interesse no objeto do processo, mas também no próprio processo em si.

Os indivíduos só devem poder recorrer ao tempo e aos recursos do Estado


quando as suas posições estejam efetivamente em situação de necessidade de proteção
judicial. As razões subjacentes à existência do interesse processual não são difíceis de
compreender, pois visam evitar a sobrecarga dos tribunais com ações desnecessárias.44

Como tal, a falta de interesse processual origina consequências processuais que


não se esgotam com a absolvição do réu da instância, nos termos do art. 278.º, nº 1,
alínea e) do CPC45. Apesar do texto do art. 527.º do CPC de epígrafe “Regra geral em
matéria de custas”46 estabelecer a regra victus victori no nosso ordenamento jurídico,
que imputa à parte vencida as custas processuais, não nos parece acertado que, no caso
de estarmos perante um processo em que o autor abusou do seu direito de ação por
intentar uma ação desprovida de interesse processual, o réu seja obrigado a suportar as
custas processuais desse processo, se assim fosse, o mero interesse de provocar um mal
à contraparte seria atingido rompendo abruptamente com o princípio da boa-fé,
enformador da ordem normativa portuguesa.

Por conseguinte, em algumas situações, a parte vencedor poderá ser obrigada a


arcar com os custos relativos àquele processo, mesmo que dele tenha obtido uma
decisão favorável em relação ao mérito da questão, tendo como exemplo, os casos em
que a parte derrotada não ofereceu resistência adicional fora do processo à pretensão da
43
Cfr. Ac. STJ, de 09/05/2018, proc. n.º 673/13.4TTLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
44
Cfr. ANDRADE, Manuel A. Domingues, Noções Elementares de Processo Civil, ed. revista
por Herculano Esteves, Coimbra, Coimbra Editoria, 1993, pág. 79.
45
Art. 278.º, n.º 1, e): “Quando julgue procedente alguma outra exceção dilatória.”
46
Art. 527.º: “1. A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena
em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo
tirou proveito. 2. Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o
for. (…)”

XXIII
parte vencedora, ou quando nem sequer estava em condições de oferecer resistência
eficaz, ou até quando a parte vencedora não obtém nenhum benefício prático adicional
com a decisão.47 48

Deste modo, nos casos em que o autor recorra aos tribunais desnecessariamente,
ele será responsável pelas custas processuais desse decorrentes, não sendo a parte
sucumbente responsável por elas uma vez que não deu causa à ação. Neste caso, apesar
da existência de uma causa justa para litigar, o recurso ao processo não se configura
como necessário para proteger a posição jurídica da parte. Destarte, o interesse
processual assume-se como um mecanismo de repressão da lide abusiva.49

Portanto, numa perspetiva de ausência de necessidade de tutela jurídica, ou seja,


quando estamos perante uma situação de inexistente interesse processual, a
consequência natural seria a da absolvição do réu da instância. No entanto, nos casos em
que o processo prossiga até ao proferimento da sentença, pode existir a possibilidade de
condenação da parte vencedora às custas processuais, em razão de falta de
demonstração de interesse processual, mesmo que tenha obtido sucesso na causa. Estas
medidas têm em vista o desencorajamento da utilização desnecessária e indevida do
processo e a garantia de que apenas casos legítimos sejam levados a tribunal.

47
Cfr. SILVA, Paula Costa, Responsabilidade por conduta processual: litigância de má fé e tipos
especiais, Almedina, Coimbra, 2022, pág. 625.
48
A regra victus victori também não terá aplicação, v.g. Art. 610.º, n.º 2, alínea b): “Quando a
inexigibilidade derive da falta de interpelação ou do facto de não ter sido pedido o pagamento no
domicílio do devedor, a dívida considera-se vencida desde a citação” e n.º 3: “Nos casos das alíneas a) e
b) do número anterior, o autor é condenado nas custas e a satisfazer os honorários do advogado do
réu.” (negrito nosso); Art. 535.º, n.º 1 e 2.
49
Cfr. TINOCO, Tiago Oliveira, O Abuso do Direito de Ação: Consequências Processuais,
Porto, 2020 (Dissertação para obtenção de grau de mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas), pág. 31.

XXIV
CONCLUSÃO

Terminado o nosso estudo, a compreensão da importância de uma atuação


responsável e ética no âmbito do processo judicial é clara.

Cogitamos ser importante destacar que os comportamentos abusivos no âmbito


do processo civil, contrários aos princípios da boa-fé, da cooperação e a outros
princípios fundamentais do direito processual, podem assumir diversas formas, indo
além da litigância maliciosa propriamente dita, que embora não se enquadrem na
definição estrita do art. do Código de Processo Civil que trata da litigância de má-fé,
ainda representam uma conduta que merece ser reprimida e sancionada.

Inicialmente, é de fácil conclusão que o instituto da litigância de má fé, previsto


nos arts. 542.º e 543.º do CPC, não poderia, de modo algum, esgotar as consequências
processuais para a lide abusiva. A sua insuficiência é clara uma vez que este instituto
não sanciona todas as hipóteses de lide abusiva que elencamos supra (lide maliciosa e
lide inútil). A verdade é que a parte poderá atuar sem dolo ou negligência (requisito para
que seja aplicado o instituo da litigância de má-fé), mas ainda assim infligir um prejuízo
à contraparte.50

Através desta conclusão e pela crucialidade que a aplicação de medidas


punitivas em casos de abuso de direito de ação representa para preservar a seriedade e a
eficácia do sistema processual, procuramos dentro do ordenamento jurídico português
outras soluções passíveis de sancionar o litigante que utilize do seu direito de ação de
maneira disfuncional. Apresentam-se assim, para dar resposta a esta segunda questão, o
instituto do abuso de direito, a taxa sancionatória excecional, o poder geral de direção
do processo e a compensação das custas processuais.

50
A título de exemplo, veja-se nota de rodapé 1.

XXV
É ainda importante ressaltar que a repressão destas condutas inapropriadas não
deve ser de tal forma rígidas, que restrinjam o acesso à justiça ou impeçam o exercício
legítimo dos direitos das partes. A aplicação de medidas punitivas deve ser criteriosa,
assegurando-se a existência de dolo, culpa ou mera intenção maliciosa na conduta, a fim
de evitar restrições desnecessárias e desproporcionais ao direito fundamental de acesso
à justiça.

Concluindo, verificamos no nosso estudo que o instituto da litigância de má fé é


insuficiente como resposta cabal para o litigante abusivo, de modo a que o legislador
português muniu os tribunais de outros instrumentos para combater o comportamento
processual ilícito e o abuso de direito, nomeadamente o interesse processual, a taxa
sancionatória excecional e a cláusula geral do abuso do direito, prevista no art. 334º do
CC.

A busca pela verdade, pela justiça e pelo respeito aos princípios processuais
deve orientar as partes e os profissionais do direito, contribuindo para a construção de
um sistema processual justo, eficiente e equilibrado, cumpridor do seu propósito.

XXVI
BIBLIOGRAFIA

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revista por Herculano Esteves, Coimbra, Coimbra Editoria, 1993

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XXIX

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