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Filosofia da crise esse aspecto, que podemos ver no mundo

do existir, é patente, também, na


Mario Ferreira dos Santos

Nós e a Crise
função intelectiva. Não é “inteligir” uma
A perplexidade do homem moderno se
palavra formada de inter lec? Lec,
manifesta na teimosia de sua
velho radical, que significa captar, e
pergunta sobre a crise. E como tentar
“intelegir”, captar entre.
responder a uma pergunta tão exigente
Intelectualidade, portanto, é a
sem previamente sabermos o que
funcionalidade do nosso espírito que
entendemos por crise?
escolhe,
Esta velha palavra, de origem grega (crisis),
entre muitas notas, apenas algumas. Se
significava separação,
aceitarmos que intelecto venha de
abismo e, também, juízo, decisão, etc.
intus e lec, como o propõe Tomás de
Não é difícil compreender o processo Aquino, teríamos um captar dentro,
semântico deste termo, que hoje
mas um captar que será sempre seletivo,
assinala o mais espantoso de todos os porque preferirá isto àquilo. Ainda
temas que desafiam a argúcia
estamos em crisis. E o grego chamava
humana. assim ao juízo, e também à decisão,

Quem tenha uma visão do mundo presa porque quem decide escolhe-entre, e
apenas ao devir, ao quaternário, separa.

como o chamavam os antigos filósofos, não E assim como no plano físico há


poderá deixar de reconhecer seletividade, há também no biológico,

que todo o existir é um separar-se, bem no psicológico e no social.


como todas as combinações ônticas
Todo existir está em crisis. e o homem é a
do existir finito são sempre seletivos. consciência quaternária

Desde o exemplo de isolar-se dos gases dessa crisis.


chamados nobres, no conjunto
Imerso no existir, imerso nela, torna-se
das nossas coordenadas, até a constante esta a sua grande
seleção de todos os elementos que
inevitabilidade, mas também a sua
escolhem, preferem esta ou aquela constante inconformidade.
combinação a outra, toda a atividade do
Não é crisis um conceito meramente
existir é seletiva. Se todas as combinações formal. É também concreto,
são possíveis, nem todas são
porque todo existir é símbolo desse
prováveis, e muito menos se atualizam. esquema, que, por sua vez, também é

Há, assim, em todo o existir, um separar- crisis. Gênero supremo, é ela uma
se, uma crisis, um abismo. E categoria do existir finito, porque tudo
quanto existe se separa, conhece abismos. é enquanto é.
Mas todo abismo é gradativo, e
E se a atualizamos e a vivemos, não a
crisis também o é; é mais ou menos. E se o queremos viver, e se não a
homem de hoje toma dela uma
vivemos, não podemos sobreviver sem ela.
consciência tão aguda, não é por lhe ter ela
A crisis é sempre vencida, ultrapassada
sobrevindo inesperadamente,
pelo devir, que vence a sua
mas porque se agravou, porque os abismos
finitude ao finitizar-se no eterno
foram escavados ainda mais,
transmutar, mas que a afirma em cada
porque os vales cresceram, e os cumes das
instante, porque ela, deslocada daqui,
montanhas estão tão longínquos,
aparece, teimosa e inevitável, ali.
que já se perdem por entre as nuvens, que
Não podemos viver sem a crisis, e não
marcam os limites aparentes dos
podemos viver com ela. Mas
falsos horizontes. Por isso o homem de
podemos unir, por uma visão panorâmica,
hoje pergunta: Estamos em crisis? E
os cumes das montanhas, sem
se estamos, há uma salvação?
negar os vales, que, não esqueçamos, são
Toda pergunta revela irremediavelmente o também positivos, e nada adianta
desejo de uma determinada
esquecê-los.
resposta. Digamos: não!, e crescerá ainda
E é a crisis que leva o homem à crítica.
mais a amargura e a dúvida.
A filosofia hindu define o homem como o
Digamos: sim!, e aumentará o desencanto
ser que valora e valoriza; ser
e o ímpeto de repeli-la. E
que estima, escolhe. Mas todo existir
escolhe, prefere e pretere. Onde há
repelimos o “sim” ou o “não”, e repelimos
uma preferência, há uma hierarquia; onde
o “sim e não” e repelimos
há hierarquia, há valores. Todo
também “nem sim nem não”.
existir é um evidenciar de valores, outra
Mas a crisis que é a nossa realidade, é nova categoria que se incorpora à
também a nossa impossibilidade.
grande lista das velhas categorias
Somos crisis, e não podemos e não filosóficas.
queremos ser ela. Meditemos: todo
E se não evitamos a crisis, por que não
o existir finito é crisis, mas todo o existir, reconhecer que há vales porque
também, não quer ser ela, por
há montanhas, e que se há abismos, há
isso todo existir quer vencê-la, vadear o cumes eminentes?
abismo, ultrapassá-lo, que é o
Em todo o campo do existir há crisis, e
devir, o constante transmutar-se de todas todos falam em crisis histórica,
as coisas.
de consciência, econômica, religiosa,
E a história desse vencer é o tempo. E o filosófica, estética, etc.
tempo é enquanto não é; e não
Abismos abertos, abismos fora do homem, na espécie, no que aprofunda a crisis? Não
abismos dentro do homem. seccionamos a realidade para

E não foi o constante olhar desse abismo compreendê-la, e não nos esquecemos de
que deu ao homem a consciência juntar os fragmentos que

de sua perda? E não foi por temê-la, que se separamos? Se nós aumentamos a crisis,
quis salvar? ela se agrava por nossa culpa. Nós

Sem a crisis, como compreender um “saber não a criamos; nós aprofundamos abismos.
de salvação”, como as
E a nossa inteligência, em vez de unir, de
religiões e as filosofias, e até a ciência, que, incluir, ela separa, desune,
também, já soou como uma
exclui. Seccionamos, sectarizamos, e
promessa? queremos totalizar o todo,

E fala-se hoje tanto nas causas da crisis. homogeneizando-o ao heterogêneo que


Mas como procurar causas, se separamos. Eis aí a crisis, agravada

é ela o modo de ser de todo o existir? por nós.

Não procuremos as causas, mas, sim, o


porquê do progressivo crescer
Mas, por que cavamos tantos abismos?
dos abismos. Não é acaso verdade que há

Sim, a crisis é inevitável; mas por que períodos em que os abismos são maiores?
crescem os abismos, por que se
Não houve períodos de maior e de menor
distanciam cada vez mais os cumes das crisis, e não é o nosso de
montanhas?
maior? E a história nos conta e confirma
Em cada instante a crisis nos separa. Toda essa observação.
a nossa vida é um separar-se,
Cavamos abismos, quando já os temos
um constante separar-se, e a consciência dentro de nós. E eles surgem da
dessa separação é o nosso tempo.
nossa desesperança.
Podemos vencê-lo aparentemente nos
É a desesperança que cava abismos. E o
estados oníricos, mas a nossa
homem desesperado, quando
consciência vigilante é o nosso
não mais espera o que esperava, precisa
decepcionante sinal de atenção.
encontrar o que não tem. E o
Eis aqui um ponto valioso. Como não haver
desespero, que está virtualizado no crente
crisis se cada vez nos
fiel, atualiza-se no homem que
separamos mais? Não impediremos a
duvida. Cavam abismos os que duvidam.
separação, está certo, mas por que
Mas, dirão, é possível crer mais? E pode,
exacerbá-la? Não somos nós os eternos
acaso, o homem deixar de
coveiros da crisis?
crer? Ele procura uma crença no
Que fazem os nossos especialistas, senão
desespero, ele procura uma crença ao
separarem-se, abstraírem-se
aprofundar o abismo, crença até no não rótulo de concreção, velhas visões
crer mais em nada. unilaterais, sectárias, geradoras de outras

E quando não crê e procura crer, fanatiza- novas brutalidades, que apenas vão repetir
se. a velha monodia da brutalidade

Estamos, afirmam, na época de maior humana. Cuidado com as pseudosínteses,


descrença, mas numa época com os inócuos substitutos de

fanática e também irônica. Ou há loucos Deus, como nos propõem os nossos


obstinados, ou irônicos, que de “religiosos” da matéria e os

tudo sorriem. “religiosos” da existência, ou outros que


julgam que, ao substituir os
Ainda desespero.
símbolos, substituem os velhos
E essa desesperança trouxe a inversão dos
simbolizados.
valores mais altos, a inversão
A história humana é a história das
das hierarquias. E desde aí começou a
decepções.
avassalante marcha de ascensão dos
E o homem, esse grande decepcionado de
tipos mais baixos, para cuja ascensão o
suas crenças e de suas
capitalismo colaborou, e daí, como
utopias, sempre malogradas, aceita a
decorrência, surgiram o primarismo, a
proposta daqueles que se
improvisação, a autossuficiência dos
decepcionaram antes dele. Pactua com o
medíocres.
imediato, porque o mediato não
Mas decepções esperavam o homem,
surgiu; por isso vive os meios que lhe estão
como ainda o esperam e ainda o
próximos, e não mais os fins.
esperarão em todas as esquinas da
E a crisis se torna consciência no homem,
história, e elas, afinal, aprofundaram o
quando ele transforma os
abismo, e criaram a esperança de que a
meios em fins. E por que essa reviravolta?
crítica (e não esqueçamos, que ela
Porque descrê dos fins. E descrê
também significa análise) fosse capaz de
deles porque eram piedosas mentiras que
dar os conhecimentos salvadores
ele colocou onde elas não
que as velhas sínteses, assim julgavam, não
poderiam estar.
haviam confirmado.
Quereis uma terapêutica para a crisis?
Deixai surgir os humanos
Estamos vivendo a crisis analítica, do
possíveis; mais que possíveis, prováveis;
especialista. Nunca sentimos
mais que prováveis, atualmente
tanto como hoje a necessidade da
potenciais. Acreditai neles e não temei a
concreção.
crisis. Unireis os cumes das
Mas é preciso ter muito cuidado para que
montanhas, sem deixar de compreender os
não nos ofereçam, com o
vales que precisam dos cumes
para serem compreendidos. Em vez de uivo agudo dos ventos que sopram nos
separar, uni; em vez de abstrair, cumes.

concrecionai. Não aprofundeis o abismo Os homens viverão morrendo a sua crisis, e


com as vossas ideias, as vossas muitos afogar-se-ão nos

atitudes, as vossas religiões, as vossas seus abismos. Mas se essas gerações não
crenças, as vossas artes. forem capazes de vencê-los, é

Não vos separeis nem do passado nem do preciso que outras o façam.
futuro. Vivei o instante, não
Mas há um perigo, e grande, e por termos
como instante, mas como um grande consciência dele, surgiu este
prelúdio do amanhã e um grande
livro. Nele resumimos, numa linguagem tão
realizar-se do ontem, como o ponto de simples quanto possível, a
encontro de dois infinitos.
nossa filosofia da crise, que procura
compreender as filosofias de crise.

Abandonai a moeda falsa das vossas Os homúnculos do vale ameaçam a


originalidades que cavam perduração dos abismos. E eles se

abismos; a moeda falsa das vossas crenças convenceram que a crisis se dá porque o
que separam; a moeda falsa da homem é heterogêneo, e resolvem:

vossa individualidade que desune. É preciso impedir que se pense.

Falamos num tom apostolar, e hoje, Ele deve repetir, repetir; apenas repetir a
exigem que se peça perdão quando cantilena monótona e

se fala em tom apostolar. desagradável do charco, que povoa


lugubremente o abismo, e nele deve
Falamos a vós, que ainda estais nos cumes
das montanhas e a vós que homogeneizar-se.

estais nos vales. Aos primeiros, permanecei E como vencereis a crisis, se, como maus
aí. E aos segundos, não podeis atores, como dizia Epícteto,

apenas quereis ter um papel no coro?

negar os cumes porque julgais que não


podeis ascendê-los. Tentai escalá-

los, e os escalareis. Não deixeis falar a


vossa covardia, mas sim a vossa

coragem. É preciso ascender às


montanhas, e dos cumes lançar um olhar
de

boa vontade para todas as coisas.

Desconfiai do abismo, quando ele falar


dentro de vós. Procurai ouvir o

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