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"Mas Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias; e Deus
escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes; E Deus escolheu as coisas
vis deste mundo, e as desprezíveis, e as que não são, para aniquilar as que são" (1
Coríntios 1:27,28)
O Apóstolo Paulo vai afirmar que Deus escolheu as coisas que não são, aquelas que não
existem. E para pensar favela no Brasil precisamos partir de um lugar que não existe para
os poderes deste mundo, temos que fazer uma escolha. Começo esse texto dizendo que eu
falo a partir desse lugar, no qual a inexistência é a maior marca desse território, a favela
constitui a minha maneira de se relacionar com o mundo, sou cria da Favela dos Coelhos,
uma comunidade ribeirinha no centro do Recife, foi lá que minha família me ensinou a dizer
que temos pouco, mas temos o suficiente para partilhar, que ser família vai para além dos
nossos núcleos familiares que normalmente sentiam a falta de pais ausentes ou filhos
vítimas do estado e da criminalidade orquestrada pelo racismo. Neste lugar eu aprendi que
ser comunidade é enxergar o outro, é o acordo entre as pessoas que não existem para a
sociedade que vivemos.
O evangelho, significa boas notícias, mas para quem são essas boas notícias? Segundo 1
Coríntios, ela está para as coisas vis, loucas, desprezíveis e fracas aos olhos da estrutura
de mundo que temos. O evangelho é uma boa nova para os que recebem desprezo, para
os que são enfraquecidos todos os dias, é a mensagem que diz que Deus fez uma escolha,
ele quer aniquilar as coisas que são em meio as que não são, ou seja, Deus não admite
fartura em meio a fome, alegria em meio a gritos de guerra ou mãos levantadas para o alto
em adoração enquanto corpos caem no chão. Percebemos então que as escolhas de Deus
estão conectadas com o chão da vida, com as necessidades e dores de toda uma
comunidade, que não existe evangelho sem território, mas o que seria falar de favela no
contexto histórico brasileiro? É justamente se expressar de um lugar que nasce a partir do
abandono da população negra, o estado brasileiro tinha acabado de decretar o "fim da
escravidão", implementando uma política de substituição da mão-de-obra para imigrantes
europeus, em sua maioria, que agora era remunerada, com isso o povo negro estava sem
emprego, sem casa e tinham acabado de aprovar a lei da vadiagem impedindo que pessoas
negras ficassem pelos grandes centros urbanos brasileiros. Diante dessa conjuntura pós-
escravidão, restou aos negros subirem os morros, ocuparem um lugar longe dos olhos do
Estado, literalmente fomos expulsos das cidades que construímos com as nossas próprias
mãos e suor. É desse jeito que nasceu as nossas favelas, periferias, altos, setores,
baixadas, a partir de uma ideia intencional de higienizar as cidades.
"Há uma Zona do não-ser, uma região extraordinariamente estéril e árida" (FANON, 2008,
pág 26)
Em diálogo com a ideia bíblica e a afirmação de Fanon, eu queria traçar aqui um ponto de
encontro entre o "não ser" das cartas paulinas e o "não-ser" de pensador martinicano.
Quem fabrica a inexistência do outro? Seja o colonizador europeu ou os impérios da época
de Paulo eles tinham algumas características em comum como: ganância, acúmulo,
violência e dominação. A favela é fruto da violência do Estado, e lá não existe porque a
única política que chega em nossas periferias são as operações policiais, o caveirão, as
balas perdidas, os corpos caídos. Pensa em lugar que não tem escola, área de lazer, posto
de saúde ou que não precisa de mandado judicial para entrar nas casas e muito menos de
constituição, pois é nesse lugar que existe pena de morte, execução pelas mãos de um
funcionário público ou os famosos casos de desaparecimentos forçados, nos quais, jovens
negros simplesmente são jogados no camburão da polícia e nunca mais são vistos, é nesse
lugar que mães ficam anos sem dormir e a qualquer barulho acham que são seus filhos
voltando para casa.
Se o colonizador nos trata como coisas, o evangelho nos proporciona o encontro com a
nossa humanidade. Se o estado nos enxerga como somente mais uma estatística, Jesus
nos chama pelo nome e sobrenome, e ainda diz que conhece a nossa mãe. Enquanto as
estruturas racistas dizem o tempo inteiro que não somos, não existimos e nossas vidas não
importam, nós encontramos na experiência do testemunho bíblico um Deus que nos vê e
que se revela para além da igreja e de um grupo confessional específico.
É bem verdade que a favela nasce dessa experiência de violência brutal contra a população
negra, mas também não podemos deixar de dizer que a periferia foi uma forma que o nosso
povo encontrou para não continuar morrendo sem casa e sem território. É símbolo de um
compromisso radical com a vida, que nos diz que mesmo diante de uma potestade que nos
deseja morte, nós vamos insistir pelo caminho do bem viver, sobretudo em comunidade.
Quando a favela encontra a mensagem do evangelho, ela começa um processo de
nascimento para a existência e isso acontece "para aniquilar as (coisas) que são", e que se
constituíram a partir da desvalorização e invisibilização das periferias do mundo, para Paulo
o processo para existir é necessariamente a derrota dos que construíram a "zona do não-
ser", e isso me lembra um pouco do louvor de maria em Lucas 1 que diz que Jesus
"derrubou governantes dos seus tronos, mas exaltou os humildes", o nascimento do milagre
e das boas novas para aqueles que não são, significa também o sinal da ira de Deus
perante os poderosos. Por isso é inevitável dizer que Deus fez uma escolha, o Deus do
Êxodo e dos testemunhos das Escrituras Sagradas, todas as vezes que se coloca na
história ele nasce, se manifesta e se expressa em favor do que não são e não existem. Ele
é o Deus das causas impossíveis, e por isso não pode ser captado por uma boa teologia
feita longe da experiência da vida, o Deus da bíblia tem na encarnação seu maior ato de
amor, ele traz uma espiritualidade que não está distante, mas que só se faz possível a partir
da experiência do território e do corpo, não é possível falar de evangelho e não pensar em
como podemos existir plenamente, em como buscar de maneira sedenta a vida plena e
abundante que tanto nos prometeram. Por isso precisamos tatear no escuro, tentar
reconhecer Deus no caminho, nos movimentos, nas desobediências diante das injustiças.
Vejo que existe uma movimentação de demonização dos movimentos negros dentro de
nossas igrejas, e costumo dizer que isso é fruto de um desconhecimento gigante da história
desse país. Se hoje temos o 20 de novembro, as cotas raciais nas universidades e
concursos ou a lei que torna obrigatório o ensino da história africana nas escolas, temos
que admitir que é por conta do movimento negro brasileiro, que tem um profundo
compromisso com as vidas negras, muitas vezes sendo o único suporte de várias mães que
perdem seus filhos ou de jovens que são condenados injustamente. Precisamos entender
que Deus se encarna em toda iniciativa de bondade e misericórdia que pense nos que são
violentados e excluídos, pois "todo aquele que pratica a justiça é nascido dele", então
pensar iniciativas, movimentos, organizações que enfrentam o racismo, é pensar na ação
do espírito no mundo e que se segundo o James Cone, não vem a partir dos interesses
humanos, mas por meio da vontade do próprio Deus.
Conclusão
O evangelho que nasce a partir dos que passaram fome, foram perseguidos, sofreram
abandonos e estiveram perdidos não consegue falar de um Jesus desconectado das dores
do mundo, que é sinal cura para os que não tiveram direito ao amor na sua forma mais
concreta, a agenda dessas boas novas se espalha diante da mensagem de libertação, da
queda das correntes, das novas possibilidades e de um novo mundo, no qual os tronos de
opressão desse universo caído, não terão lugar, nem os caveirões, nem os fuzis, nem as
prisões ou sistemas injustos serão capazes de impedir que as boas notícias cheguem até
os mais profundos porões das coisas viz, fracas e desprezíveis criadas pelos poderes mais
perversos da humanidade.
Jackson Augusto é pernambucano, batista, graduando em teologia pela Faculdade Unida
de Vitória e jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco. Atualmente é
coordenador geral do Programa Martin Luther King de Formação e incidência política.
Integra a coordenação nacional do Movimento negro evangélico, a Coalizão Negra por
Direitos, o Miqueias Jovem América Latina e a Articulação Negra de Pernambuco. Já foi
colunista do The Intercept Brasil e tem textos publicados na Folha de São Paulo, Revista
Continente e Marco Zero Conteúdo.