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Rio de Janeiro
2017
Damiana Maria de Carvalho
Rio de Janeiro
2017
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/B
CDU 806.90(07)
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese,
desde que citada a fonte.
________________________________________ _________________
Assinatura Data
Damiana Maria de Carvalho
Banca Examinadora:
_________________________________________________________
Prof.ª Dra. Maria Teresa Gonçalves Pereira (Orientadora)
Instituto de Letras – UERJ
_________________________________________________________
Prof.ª Dra. Denise Salim Santos
Instituto de Letras – UERJ
_________________________________________________________
Prof. Dr. Flávio Martins Carneiro
Instituto de Letras – UERJ
_________________________________________________________
Prof.ª Dra. Ana Maria Pires Novaes
Universidade Estácio de Sá
_________________________________________________________
Prof.ª Dra. Maria Lilia Simões de Oliveira
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
2017
AGRADECIMENTOS
À professora Maria Teresa Gonçalves Pereira pela orientação valiosa, pela confiança e
pela viagem em torno dos microcontos.
À professora Tânia Maria Nunes de Lima Câmara pelo carinho e pela contribuição ao
aceitar fazer parte da banca de qualificação.
Às professoras Ana Maria Pires Novaes, Denise Salim Santos e Maria Lília Simões de
Oliveira por aceitarem fazer parte da banca de defesa de minha tese.
Ao querido professor Flávio Carneiro que muito contribuiu para a mudança de rumo
de minha tese. Aceitei o desafio, agora vamos olhar as paisagens por trás dos microcontos?
Aos amigos e familiares que entenderam a minha ausência.
Especialmente, à minha filha Flor de Liz que me deu tanta força, escrevendo comigo
em silêncio.
DEDICATÓRIA
Dedico esta tese à minha filha Paloma, que me ensinou o verdadeiro amor.
RESUMO
CARVALHO, Damiana Maria de. Reading and rewriting of Flasch Fiction: the relevance in
the classroom. 2017. 178f. Tese (Doutorado em Língua Portuguesa) –Instituto de Letras,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
The main objective of this thesis is to present the relevance of the Flash
fiction (micro story or micro narrative) for the learning and teaching of the Portuguese
language. The students’ troubles in the face of the reading and writing skills are real.
Consequently, it is the educator’s duty to create attractive pedagogical approaches. In 2011, I
have developed a pilot project for the reading of very short stories, tales and the rewriting of
these tales into short tales, with the intention of estimulating middleschoolers of the 9th grade
to read and rewrite “Triste Fim de Policarpo Quaresma” [Policarpo Quaresma’s Unfortunate
End ], by Lima Barreto. From this project, the desire to research more about such short tales
in books as much as in the internet at an academic level has emerged. For that, it is necessary
to contemplate the postmodern momentum, in which a new fashion of rewriting that
converses with diverse languages is inserted. The micro tale is found in that context, hence the
importance of also dealing with the novel rewriting. In Hispanic American and Hispanic
countries, extremely brief narratives are constant since the middle of the 20th century. In the
Brazilian scene, this type of micro narrative gains power towards the end of the century, with
the technological advance of information and communication. Starting from the 21st century,
there has been an increasing interest by the Brazilian writers and readers for the micro story
both on digital and printed media, becoming a “new” literary genre. Concise, yet with prosaic
freedom, it enchants the reader and invites him to be a coauthor, more than just telling a story,
the very short tale suggests diverse stories, providing a pleasant game as it allows variate
possibilities for each one to expand the alternatives of development in their own fashion using
his previous knowledge and inventiveness. On the other hand, it defies the writer to tell a
story in only a few words, the essencial – the smaller amount of words and the bigger amount
of meanings – accessing all of his power of synthesis. As it adapts to the necessity of keeping
up with the technological speed of the modern world, it is a way of stimulating the students to
write micro stories that can easily be published on the social networks, as well as reading. An
extremely concise narrative does not mean a lack of content and easy writing. Therefore it is
capable of stimulating the reflection, the creativeness and attracting, also fomenting longer
texts, as it has happened with the presented project.
Figura 1 - ........................................................................................................ 36
Figura 2 - ........................................................................................................ 37
Figura 3 - ........................................................................................................ 38
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................... 10
1 REFLEXÕES SOBRE O PÓS-MODERNO................................................. 15
1.1 Obras de ficção pós-modernas........................................................................ 25
1.2 Exemplos de reescrituras................................................................................ 29
1.2.1 A reescritura de Gustavo Bernardo.................................................................... 30
1.2.2 A reescritura de Luiz Arraes.............................................................................. 43
2 MICROCONTOS EM PAÍSES HISPANO-AMERICANOS E
HISPÂNICOS................................................................................................... 50
2.1 Antecedentes do microconto........................................................................... 54
2.2 Nomenclaturas usadas por escritores e teóricos........................................... 60
3 MICROCONTOS NO BRASIL..................................................................... 63
3.1 Microcontos um novo gênero textual............................................................. 74
3.2 Análises de microcontos da antologia de Marcelino Freire......................... 81
3.3 Outros autores de microcontos....................................................................... 86
3.4 Microcontos na internet.................................................................................. 98
4 LEITURA E A RELEVÂNCIA PARA O ENSINO DA LÍNGUA
PORTUGUESA................................................................................................ 104
5 UM PROJETO DE LEITURA E REESCRITURA EM
MICROCONTOS............................................................................................ 110
5.1 Leitura de microcontos em sala de aula......................................................... 110
5.2 Leitura de contos em sala de aula................................................................... 119
5.2.1 Reescritura de microcontos a partir do conto Zap, de Moacyr Scliar................ 120
5.3 Leitura do conto A pequena vendedora de fósforos, de Hans Christian
Andersen........................................................................................................... 121
5.3.1 Reescritura de microcontos a partir de A pequena vendedora de fósforos........ 121
5.3.2 Reescritura em conto A pequena vendedora de balas....................................... 122
5.3.3 Reescritura de microcontos a parir da reescritura em conto.............................. 123
5.4 Reescritura de Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto........... 124
5.4.1 Lima Barreto: vida e obra em microcontos....................................................... 125
5.4.2 Professor Policarpo: amor em microcontos....................................................... 125
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................... 128
REFERÊNCIAS............................................................................................... 133
ANEXO A – Zap, de Moacyr Scliar................................................................. 156
ANEXO B - A pequena vendedora de fósforos, de Hans Christian Andersen 158
ANEXO C – A pequena vendedora de balas, reescritura de Damiana Maria
de Carvalho ....................................................................................................... 160
ANEXO D - Etapas de reescritura de Triste fim de Policarpo Quaresma, de
Lima Barreto ..................................................................................................... 164
ANEXO E - Lima Barreto: vida e obra em microcontos ................................. 165
ANEXO F - Professor Policarpo: amor em microcontos ................................. 173
10
INTRODUÇÃO
Trevisan, marcadas pela concisão, pelas narrativas curtíssimas com o intuito da interação
entre o leitor e seus textos, a exemplo de Abismo de Rosas (1979); recorremos também a
vários teóricos, principalmente Bakhtin, a fim de sustentar nossa tese de que o microconto é
um gênero textual; analisamos dez microcontos da antologia Os cem menores contos
brasileiros do século (2004), organizada por Freire, da qual participam escritores brasileiros,
desafiados a escreverem histórias inéditas de até cinquenta letras, sem contar o título.
Selecionamos também microcontos de obras impressas de diversos autores para análise; bem
como de escritores que postam seus microcontos na internet.
Dedicamos o quarto capítulo ao tema leitura, visto que o ensino de língua portuguesa
objetiva conduzir o educando ao domínio do idioma para ler, escrever e falar com adequação
dentro das normas da língua como instrumento de comunicação nas diversas esferas sociais.
Nesse sentido, a leitura de microcontos desenvolverá hábitos de leitura apreciativa,
interpretativa, reflexiva, interativa e, paulatinamente, o cultivo do gosto por outros gêneros
textuais mais extensos (literários e não literários), como também o aprimoramento da escrita.
Recorremos a Machado (2002) e, mais uma vez, a Calvino (2007), a fim de tratarmos
da relevância da leitura para formação crítica de jovens leitores; a Koch e Elias (2008), que
discorrem sobre a interação autor-leitor-texto, a produção de sentidos da leitura, as
informações explícitas e as implícitas e os conhecimentos prévios do leitor etc.
A leitura pressupõe a participação do leitor na constituição dos sentidos linguísticos.
Embora o aluno lance mão do dicionário para saber o significado de uma palavra, ele nunca
exprime o real sentido contextualizado, consequentemente, trabalhar a leitura, como também
a escrita a partir de microcontos, pode ser bastante proveitoso, estendendo sua compreensão,
inclusive conotativa, em conjunto mais amplo de ideias.
Nosso objetivo é mostrar que o ensino a partir de microcontos é capaz de produzir o
gosto pela leitura, inclusive de livros clássicos, e pela produção textual. Não entregamos em
mãos ‘inocentes’ obras de Machado de Assis, por exemplo, antes de prepararmos o terreno
para que tal gosto germine. O aluno, incentivado a ler e a produzir microcontos, conforme
detalharemos em nosso projeto de leitura e reescritura em microcontos, poderá aprender a
apreciar autores da literatura brasileira.
O último capítulo dedicou ao projeto de leitura e reescritura em microcontos, realizado
em 2011 com os alunos do nono ano, turno da manhã, da Escola Municipal Pereira Passos.
Partimos da leitura e da reflexão de microcontos em sala de aula e do artigo de Gil Neto
(2010). Na sequência, lemos alguns contos da antologia Os cem melhores contos brasileiros
do século (2001), organizada por Moriconi, com a finalidade de selecionar um para reescrevê-
14
Umberto Eco
Campos (1997, p. 246) diz que, “no século XVIII (o ‘Século das Luzes’ ou
‘Filosófico’), o elemento novo da concepção do que seja moderno está, para Jauss, na
introdução da dimensão do futuro, na perspectiva utópica. ” No século XIX, já no
romantismo, moderno tem “a ‘imagem da espiral’, enquanto ‘pluralidade de círculos
concêntricos que se alongam até ao infinito’, se substitui à ideia da repetição cíclica,
apontando para a diferença radical, irrepetível, entre sociedade antiga e sociedade
moderna...”.
A expressão ‘imagem da espiral’ usada para definir modernidade em sentido novo ─
como um círculo de várias voltas em torno de um ponto, do qual se afasta paulatinamente ─ é
de suma importância para se entender o conceito de moderno e, consequentemente, a ideia de
pós-moderno já não mais definido pela oposição ao moderno.
Barbosa (1982, p. 21-23) define “moderno” como um termo que “indica um
fenômeno de bases universais, apontando para tudo o que significou problematização de
valores literários no amplo movimento das ideias pós-românticas...”. A noção de moderno na
literatura, ainda segundo o teórico, tem seu conceito ampliado na medida em que serve para
caracterizar textos e autores que levam para o “princípio de composição e não apenas de
expressão, um descompasso entre a realidade e a sua representação, exigindo, assim,
reformulação e rupturas dos modelos ‘realistas’...”. São, portanto, modernos aqueles autores,
independentemente da época de suas composições, que criaram as circunstâncias
indispensáveis para uma reflexão entre realidade e representação, deixando entrever em seus
textos uma espécie de “desconfiança em relação ao ajuste entre representação e realidade”.
Essa noção revela-se útil para compreendermos porque Campos (1997, p. 268) define
a modernidade ou, mais exatamente, os movimentos poéticos de vanguarda ─ ocorridos entre
as décadas de 20 e 60 ─ em perspectiva utópica, significando que havia um sonho, uma
esperança voltada para o futuro, como também um grupo, um esforço coletivo, um projeto
ideológico e um adversário a combater:
Nessa acepção, a poesia viável do presente é uma poesia de pós-vanguarda, não
porque seja pós-moderna ou antimoderna, mas porque é pós-utópica. Ao projeto
totalizador da vanguarda, que, no limite, só a utopia redentora pode sustentar, sucede
a pluralização das poéticas possíveis. Ao princípio-esperança, voltado para o futuro,
sucede o princípio-realidade, fundamento ancorado no presente.
consiste em reconhecer que o passado, já que não pode ser destruído porque sua
destruição leva ao silêncio, deve ser revisitado: com ironia, de maneira não inocente.
Penso na atitude pós-moderna como a de um homem que ama uma mulher muito
culta e sabe que não pode dizer-lhe “eu te amo desesperadamente”, porque sabe que
ela sabe e ela sabe que ele sabe) que esta frase já foi escrita por Liala. Entretanto,
existe uma solução. Ele poderá dizer: “Como diria Liala, eu te amo,
desesperadamente.” A essa altura, tendo evitado a falsa inocência, tendo dito
claramente que não se pode mais falar de maneira inocente, ele terá dito à mulher o
que queria dizer: que a ama, mas que a ama em uma época de inocência perdida. Se
a mulher entrar no jogo, terá igualmente recebido uma declaração de amor. Nenhum
dos dois interlocutores se sentirá inocente ambos terão aceitado o desafio do
passado, do já dito que não se podem eliminar ambos jogarão conscientemente e
com prazer o jogo da ironia... Mas ambos terão conseguido mais uma vez falar de
amor.
O conceito de pastiche, na concepção atual, é bem mais amplo do que o tomado aqui
por Sant’anna, como veremos mais adiante. Agora nos importa o entendimento da paródia ao
lado da estilização. Sant’Anna transcreve um texto de Tynianov (apud SANT’ANNA, 2002,
p. 13-14) para melhor familiarizar o leitor com esta palavra:
... a estilização está próxima da paródia. Uma e outra vivem de uma vida dupla: além
da obra há um segundo plano estilizado ou parodiado. Mas, na paródia, os dois
planos devem ser necessariamente discordantes, deslocados: a paródia de uma
tragédia será uma comédia (não importa se exagerando o trágico ou substituindo
cada um de seus elementos pelo cômico); a paródia de uma comédia pode ser uma
tragédia. Mas, quando há a estilização, não há mais discordância, e, sim ao contrário,
concordância dos dois planos: o do estilizando e o do estilizado, que aparece através
deste. Finalmente, da estilização à paródia não há mais que um passo; quando a
estilização tem uma motivação cômica ou é fortemente marcada, se converte em
paródia.
Texto original
Texto parodiado
liderados por Zumbi foram dizimados, causando efeito irônico e crítico, introduzindo um
comentário social.
Preservando semelhança sonora e rítmica, Oswald desarranja o sentido do texto
original. Contrasta a alienação social com a denúncia histórica e transforma o discurso do
branco na afirmação do negro.
Sendo a paródia um jogo intertextual, para entendê-la se faz necessário
compreendermos a relação de um texto com os anteriores. A partir dos conhecimentos
adquiridos, a lembrança de um tema já lido, é possível a aproximação entre o leitor e o texto
em mãos no presente.
Vigner (1997, p. 32) afirma que “só é legível o já lido, o que pode inscrever-se numa
estrutura de entendimento elaborada a partir de uma prática e de um reconhecimento de
funcionamentos textuais adquiridos pelo contato com longas séries de textos”.
Passando do moderno ao pós-moderno, o artista deixa de orientar-se pelo conceito de
paródia para substituí-lo pelo termo francês pastiche ─ uma das formas de reescritura que não
nega o passado, ao contrário, traz a tradição para o centro da cena e dialoga com ela. O termo
é definido por Santiago (1989, p. 115) ao desenvolver a questão paródia-pastiche. Para tanto,
marca primeiramente a diferença entre ambas:
Nesse sentido, então, é que Jameson vai dizer que uma das características do pós-
moderno seria o abandono da estética da paródia e a aproximação da estética do
pastiche. A meu ver, pastiche se encontra exatamente nesse exemplo que você me dá
dos novos pintores alemães, chamados de neoexpressionistas. (...) Os chamados
neoexpressionistas estariam fazendo pastiche do primeiro expressionismo. (...) O
pastiche não rechaça o passado, num gesto de escárnio, de desprezo, de ironia. O
pastiche aceita o passado como tal, e a obra de arte nada mais é do que um
suplemento. (...) Reparem a lógica da palavra “suplemento” é muito curiosa, porque
o complemento dá a impressão de ter em mãos alguma coisa incompleta que você
estaria completando. Suplemento é alguma coisa que você acrescenta a algo que já é
um todo. Dessa forma, eu não diria que o pastiche reverencia o passado, mas diria
que o pastiche endossa o passado, ao contrário da paródia, que sempre ridiculariza o
passado.
procuram defini-lo. Para Martínez Fernández (2001, p.11-59) se estabeleceram duas grandes
tendências: a dos teóricos Genette e Guillén. Para eles, a intertextualidade seria a presença
palpável de um texto em outro, mediante alusões, citações etc, enquanto que Barthes expõe
uma noção com maior amplitude, como uma qualidade presente em todos os textos, tendo em
vista que um texto remete a outro. Outra classificação apresentada por Martínez Fernández (p.
114) é a de Pavlicio, para quem, a melhor maneira de entendermos a presença de um texto em
outro é observando a intertextualidade em duas épocas. A primeira delas seria a moderna,
aproximadamente até 1968, na qual o antigo é visto como adversário que se deve eliminar; na
segunda, a partir de 1968, o antigo se estabelece como interlocutor.
Um dos teóricos que a estudou com mais profundidade, segundo Pujante Cascales
(2013, p. 284-285) foi Genette. Este trata o fenômeno dos textos literários derivados de outros
e de suas relações com eles; denominando de transtextualidade. O crítico estabelece cinco
tipos de relações transtextuais, com diferentes graus de abstração. A primeira é a
intertextualidade, definida como “uma relação de copresência entre dois ou mais textos”
(apud PUJANTES CASCALES, p. 284-285). Pode ser mais explícita, como a citação, ou
menos explícita, como a alusão. As outras relações transtextuais seriam: a paratextualidade
(relação do texto com seu paratexto), a metatextualidade (relação com outro texto que fala
dele sem citá-lo), a hipertextualidade (a que se estabelece entre um hipertexto que se insere
em um hipotexto anterior) e a arquitextualidade (categorias gerais que um texto depende).
A pós-modernidade valoriza o diálogo de obras atuais com os clássicos da literatura e
também com outros gêneros e linguagens, consequentemente, a intertextualidade é uma das
ferramentas mais eficazes de que dispõem os escritores de narrativas hiperbreves para melhor
concisão. É um dos elementos singular ao gênero, pois ao colocar em jogo o diálogo com
outros textos, os autores delegam maior parte da decodificação aos leitores, detentores de
bagagem cultural ampla, o que provoca certa cumplicidade, ambos participando de uma
tradição comum mediante o conhecimento compartilhado.
Nunca tinha visto tantos livros num só lugar e, boquiaberto, imaginava a infinidade
de batalhas que eles abrigavam. Instalou-se numa poltrona, folheou um após outro...
Desposou princesas, habitou castelos e derrotou dragões.
Distraído, ouviu a voz de Sancho Pança insistindo em trazê-lo de volta à realidade.
Abriu os olhos e sorriu sem jeito para a atendente da livraria...
Não faz diferença ler este microconto diretamente na obra ou separado. O diálogo pós-
moderno está claro desde o título, confirmando-se no decorrer da micro-história.
Depois do breve passeio pela produção ficcional brasileira dos últimos anos, é possível
situar melhor a vertente de o nosso pensar a respeito do diálogo dessas ficções com o passado
e avançar. No espaço do jogo ficcional pós-moderno, reescrever não significa copiar, é antes
um aproveitamento do dito e escrito com um novo olhar, o olhar de um leitor personagem de
seu tempo. Inserido no contexto cultural da época, o leitor do século XXI, por exemplo, fará
uma leitura diferente daquela do leitor do século XIX quando leu Lucíola (ALENCAR, 1862),
como também do leitor do século XX que leu o microconto “O dinossauro”,
(MONTERROSO, 1959).
29
O gesto de reescritura é um gesto de leitura. Antes do escritor vem o leitor e todo o seu
passado. Não seria possível excluir o leitor do escritor, tampouco o escritor do leitor. Para
falar desse entrelaçamento, Souza (1993, p. 101) recorre a:
Deter a morte das ficções e das histórias, eis o papel do leitor, mais ainda do leitor-
escritor que traz para compor o seu texto obras alheias.
Reescrita, leitura e tempo são os temas do conto “Pierre Menard, autor do Quixote”
(BORGES, 1994), no qual o narrador nos apresenta os métodos usados por Menard para
compor o Quixote em pleno século XX. Na verdade, não quer reescrevê-lo, afirma Carneiro
(2001, 105), não quer “retomar, mas ser novamente Cervantes e de novo compor, ipsis litteris,
sua obra mais conhecida”: Dom Quixote. A respeito, afirma o narrador do conto:
... é indiscutível que meu problema é bastante mais difícil que o de Cervantes. (...)
Compor o Quixote no início do século dezessete era uma empresa razoável,
necessária, quem sabe fatal; nos princípios do vinte, é quase impossível. Não
transcorreram em vão trezentos anos, carregados de complexíssimos fatos. Entre
eles, para citar um apenas: o próprio Quixote (BORGES, 1994, p. 35).
Entre as duas escritas o tempo, que segundo o próprio narrador são ‘verbalmente
iguais’, o olhar do leitor, sujeito de seu tempo, demarcando as diferenças entre as obras:
O que o leitor pensa que aconteceu é aquilo que leu como verdade. A verdade
histórica, para o leitor de ficção, ganha estatuto de verdade por parecer tão real ou até mais
real que o real. Para Carneiro (2001, p. 105-106),
esse trecho exemplifica com precisão a ideia de que não há leitura desvinculada do
contexto histórico. Todo leitor tem seus olhos voltados para o texto mas
simultaneamente olha também para o tempo que o cerca, para sua época e para sua
formação – intelectual, existencial, afetiva – enquanto indivíduo participante e
criador de uma cultura localizada historicamente. Não é à toa, aliás, que a passagem
citada trata justamente do tema histórias.
As frases de Menard adquirem um sentido diferente das de Cervantes apenas porque
o narrador do conto as interpreta sob a ótica de um leitor moderno, do século XX,
ele sim contemporâneo de William James.
É esse tipo de leitor, como define Carneiro, de “ olhos voltados para o texto” e
também para “o tempo que o cerca, para sua época e para sua formação”, que devemos tomar
como base para reflexão a respeito dos leitores de Lucíola que, por sua vez escreveu Lúcia, e
de “O dinossauro”, que escreveu Tentando entender Monterroso.
Ela não podia pintar os cabelos e depois retirar a tintura – até porque não podia
também clarear e escurecer a sua pele a seu bel prazer. O meu problema, o que me
perturbava é que, fora os cabelos (de cor diferente, mas do mesmo tamanho e
cortados do mesmo jeito), os olhos e a pele, elas eram exatamente iguais uma a
outra, vestiam-se da mesma maneira (vestidos apertados e decotados, obrigando-me
a baixar os olhos e, ato contínuo, constranger-me por ter baixado os olhos), e faziam
com a boca o mesmo quase-sorriso (BERNARDO, 1999, p. 56).
Paulo2 ficou realmente perturbado. Vê-se dentro de um labirinto, lugar onde vive o
Minotauro e, como Teseu, busca uma saída, ou melhor, uma explicação. O tema de sua
primeira aula de gramática, tendo Lúcia2 como aluna, é, portanto, labirinto:
...O labirinto está presente na sintaxe de todas as línguas vivas, mas o fio que pode
nos guiar por dentro do labirinto, até a sua saída, até o seu significado, encontra-se
em algum lugar, no seio das chamadas línguas mortas. Precisaremos, portanto,
encontrar a Senhora do Labirinto, a doce Ariadne, a esposa de Dionísio, para
recebermos de suas mãos o novelo de lã que marcará o caminho e nos devolverá à
saída, ou melhor: nos devolverá à entrada. Entretanto, todo cuidado é pouco. (...) ...é
perigoso pensar, porque pensar implica sempre se perder dentro do mais intricado de
todos os labirintos. Sim, é perigoso pensar (BERNARDO, 1999, p.58).
É perigoso pensar, mas Paulo2 pensa. Perde-se no labirinto sem o fio de Ariadne para
guiá-lo. Recorda-se de que já havia visto Lúcia2 há muitos anos atrás, mas qual das duas, a
loura ou a morena? A romântica ou a ‘moderna’? Não sabe responder. Recorre, então, ao seu
orientador e amigo, o enigmático professor José de Alencar, o mesmo que lhe apresentou
Lúcia2 no adro da Igreja da Glória. O perigo é iminente, como no labirinto construído por
Dédalo a pedido do rei Minos, mas, sem o fio de Ariadne para ajudá-lo a escapar, se vê sem
saída.
A narrativa de Lúcia se volta sobre si mesma problematizando o caráter de
representação. Inscrito em uma época marcada pelo pastiche, pela convivência proposital e
harmônica com diferentes estilos, o romance dialoga entre a tradição e o novo. É uma
32
releitura do passado e do presente. Com esse recurso literário, o autor, conscientemente, entra
na discussão do aproveitamento de textos alheios para compor um novo texto. Nessa inserção
de elementos, constrói-se a rede dialógica da leitura-escritura de Bernardo.
Começa sua escrita alertando sutilmente o leitor sobre seu trabalho de apropriação do
texto alencariano. Opera um significativo deslocamento temporal ao datar o encontro entre os
personagens principais do enredo, Paulo2 e Lúcia2 ─ não por acaso personagens também
principais do romance de Alencar ─ de 1955. O encontro entre Lúcia e Paulo, por ocasião da
festa da Glória, aconteceu em 1855. Em Lucíola, o narrador-personagem Paulo, jovem
advogado provinciano recém-chegado à Corte e alheio às suas maledicências, está
acompanhado de um amigo e companheiro de infância, o Dr. Sá, que o leva à festa. Já em
Lúcia, esse mesmo personagem, agora um jovem professor de gramática da Faculdade de
Letras e Filosofia, está acompanhado de seu professor e mestre José de Alencar, gramático e
filólogo, defensor intransigente da língua portuguesa, que antes se formara em Direito,
inclusive membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e chegando, no
início da década, a advogar.
Essa cena do encontro, que praticamente abre a narrativa de Lúcia ─ o romance
inicia-se na capa, conforme veremos mais adiante ─ sinaliza para o trabalho de manipulação,
por parte de Bernardo, do texto primeiro, que percorrerá toda a narrativa. O autor retoma
diversas cenas de Alencar para fazê-las se reduplicarem e se multiplicarem, num jogo de
semelhanças e dessemelhanças, de modo que, para o leitor mais atento, dotado de memória
cultural, não faltarão pistas capazes de relatar as relações e conexões com Lucíola, com o
romantismo e também com outros textos.
São vários os índices que aproximam o professor-mestre José de Alencar, personagem
idealizado por Bernardo, do escritor de Lucíola, o que demonstra, por parte do autor de Lúcia,
uma clara homenagem, por um lado, e também uma forma de combate, por outro lado (basta
observar a caracterização do escritor Alencar na reescritura: um personagem canalha). O
Alencar escritor, como o personagem, é formado em Direito e, como escritor, não deixou de
se interessar por questões gramaticais da língua portuguesa, e seu pai é o ex-padre José
Martiniano de Alencar. O pai do escritor foi governador do Ceará, como também o pai do
personagem Alencar, o Dr. Martiniano.
O trabalho de apropriação de Bernardo demonstra uma leitura profunda do texto
alencariano, como também uma pesquisa rigorosa para a reconstituição da época em que se
desenvolve a ação da reescritura, o texto segundo, no qual frases inteiras são recortadas do
33
.. Para um homem de meia-idade (meus vinte e sete anos até então, um tanto ou
quanto amarrotados), que melhor festa do que ver passar pelos olhos, à doce luz da
tarde moribunda, uma parte da população, com os seus vários matizes de miséria e
pressa, da gloriosa cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro (aliás, bem próximo à
estátua do dito cujo, furado por três flechas consagradas).
Via, aos volantes dos automóveis, pendurados do lado de fora dos lotações,
acotovelando-se sob os sinais de trânsito, dirigindo bicicletas ou deslocando-se
apenas com os seus próprios pés, todas as raças, desde o caucasiano sem mescla até
o africano puro; encontrava todas as posições sociais, desde as figuras ilustradas da
política, da fortuna ou do talento (que na verdade não apareciam na rua, muito
menos naquela hora, mas podíamos enxergá-las nas primeiras páginas dos
vespertinos pendurados na distante banca de jornal) até o proletário humilde e
desconhecido (que, este sim, se encontrava nas calçadas, mas em tal quantidade que
se multiplicavam geometricamente, por mil e muito, tanto o desconhecimento
quanto a humildade); esbarrava com todas as profissões, desde o banqueiro falido
até o mendigo bem sucedido, sublocando os melhores pontos de venda de caridade e
boa vontade; e, finalmente, se me apresentavam todos os tipos grotescos da
sociedade brasileira, desde a arrogante nulidade até a vil lisonja.
Todos desfilavam à minha frente, sem o ver vendo-os, roçando a seda e a casimira
com o algodão barato, misturando o perfume delicado do sabonete Lifebuoy às mais
impuras exalações. Mesmo não me encontrando nos áureos tempos de Dom Pedro
II, quando os senadores do Império passeavam pelos mesmos locais em que
estávamos, me sentia aprendendo mais, naquela meia hora de observação silenciosa,
do que nos cinco anos que desperdiçara na Faculdade de Filosofia (BERNARDO,
1999, p.20-21).
Em Lucíola,
... Para um provinciano recém-chegado à corte, que melhor festa do que ver passar-
lhe pelos olhos, à doce luz da tarde, uma parte da população desta grande cidade,
com os seus vários matizes e infinitas gradações?
Todas as raças, desde o caucasiano sem mescla até o africano puro; todas as
posições, desde as ilustrações da política, da fortuna ou do talento, até o proletário
humilde e desconhecido; todas as profissões, desde o banqueiro até o mendigo;
finalmente, todos os tipos grotescos da sociedade brasileira, desde a arrogante
nulidade até a vil lisonja, desfilaram em face de mim, roçando a seda e a casimira
pela baeta ou pelo algodão, misturando os perfumes delicados às impuras exalações,
o fumo aromático do havana às acres baforadas do cigarro de palha.
- É uma festa filosófica essa festa da Glória! Aprendi mais naquela meia hora de
observação do que nos cinco anos que acabava de esperdiçar em Olinda com uma
prodigalidade verdadeiramente brasileira (ALENCAR, 1998, p.14).
em outro tempo, a história é outra, é capital da República, sob o impacto das transformações
urbanas da década de 50.
As vertiginosas mudanças sociais ocorridas a partir da segunda metade do século XX
alteraram a fisionomia cultural do país. O surgimento de uma expressiva classe média urbana
propiciou um esforço sem precedentes pela escolarização, pela valorização do título
universitário, pela busca de informação e por uma ênfase no saber como forma de escalada
econômica individual. Novos padrões culturais e de comportamento começavam a pôr abaixo
o autoritarismo conservador da família patriarcal.
Lúcia é ambientado nos anos cinquenta, época marcada por várias manifestações
culturais e artísticas. Entre elas destacamos a explosão da Era do Rádio, sobretudo pela Rádio
Nacional, do Rio de Janeiro, cuja programação alcançava todo o País; o nascimento da tevê,
com a TV Tupi; o surgimento do Teatro Brasileiro de Comédia; a inauguração da Bienal de
Arte Moderna, ambos em São Paulo, esta com a participação de 21 países e a exposição de
1.800 obras dos artistas mais importantes do século XX; a criação da Companhia
Cinematográfica Vera Cruz, em São Paulo; o sucesso dos filmes produzidos pela Atlântida
Cinematográfica, surgida no Rio de Janeiro no início dos anos 40; o triunfo da Bossa Nova,
no Rio de Janeiro; a emergência do Cinema Novo, prenunciado pelas obras de Nelson Pereira
dos Santos e cristalizado nas polêmicas obras-primas de Glauber Rocha; não esquecendo as
revistas em quadrinhos com seus super-heróis, as revistas eróticas, a fotografia e os grandes
magazines. É nesse espaço urbano, onde se entrecruzam e se superpõem as diversas formas de
manifestações culturais, que a narrativa de Lúcia caminha.
Os anos cinquenta foram pontuados também por um agitado clima político. Vivendo a
euforia da época, com João Café Filho no poder, depois do suicídio do presidente Getúlio
Vargas, como também da campanha presidencialista de Juscelino Kubitschek para as eleições
de outubro de 1955, o narrador Paulo2, em passeio com o professor Alencar pela Lapa e o
Cais do Porto, é surpreendido pela evocação de uma cidade da época das festas imperiais,
como a da Glória, em oposição com a cidade do presente do narrador:
À medida que chegávamos ao plano horizontal, à rua da Lapa e, logo em seguida, à
rua da Glória, ele se sentia à vontade para contar sobre as grandes festas populares
da corte de Dom Pedro II, especialmente a mais popular delas, a festa da Glória.
Fazendo muitos gestos com os braços, apontava ali, aqui, acolá, quase desenhando
no ar a grande romaria que desfilava pela rua da Lapa e ao longo do cais.
Que cais, eu perguntava, sem entender. O cais do Porto, que eu soubesse, então,
localizava-se na Praça Mauá, razoavelmente longe dali. Alencar deu um sorriso algo
impactante e mostrou, com gesto largo, as estruturas preservadas de um antigo cais,
as escadas que desciam para o mar há algum tempo aterrado.
Ele me mostrava que, na época do antigo cais e das grandes festas do Império (e eu
já ia ficando com medo de que o meu amigo fosse despencar de novo no tempo, cem
anos para trás), quem demandava o outeiro da Glória tinha de atravessar uma faixa
35
de areia pequena e estreita, chamada Praia das Areias de Espanha, encaixada entre a
lagoa do Boqueirão e o outeiro das Mangueiras. O outeiro nada mais era do que um
prolongamento do morro do Desterro, que terminava na praia, onde começava o
caminho do Catete, ou da Glória, que hoje conhecemos como rua da Lapa
(BERNARDO, p.17-18).
espelho, a figura também está de costas, contrariando a lógica natural das coisas.
Consequentemente, o que o nosso olhar registra é a figura de um duplo.
Essa figura, com terno e penteado impecáveis, sinaliza para algumas questões
importantes, como os limites da reprodução e do reflexo, para o poder de representação da
literatura e para seu caráter ilusionista, e desencadeia um processo de reflexão sobre o próprio
fazer literário, uma espécie de metalinguagem, numa construção que denuncia a ilusão de
realidade fabricada pela literatura. A imagem da capa nega ao receptor o reflexo do rosto do
homem, olhando para o espelho da maneira como a lógica social dos homens determina,
brincando seriamente com os conceitos de realidade e de cópia, colocando o leitor no meio de
um jogo marcado pelo processo de estranhamento, além de apontar para as particularidades da
presença de outros discursos no romance.
Na obra de Magritte são recorrentes temas como o contraste e inversão dos valores. O
espelho que não reflete todas as imagens e invertem outras, o interior que mostra o exterior,
tudo feito pelas tintas mágicas desse surrealista, a exemplo do quadro a seguir ─ que
certamente serviu de motivo para ilustração da capa de Lúcia ─, no qual o artista valoriza a
criação de uma realidade a partir de outra, de suas observações do real, como o caso do
espelho que reflete as costas do observador de frente para ele. A forma de observação de
Magritte vai além da própria observação do objeto. O artista vê além da forma.
Figura 1 - Reprodução Proibida
mão provoca? O narrador, inevitavelmente, ao ver o quadro sentira-se atraído pela aventura de
tornar o pensamento visível, demonstrando-nos que aquilo que vemos ou lemos é formado por
uma rede de “encobrimentos”.
A alusão ao artista, evidente a partir da capa do romance Lúcia, ultrapassa os limites
do discurso visual e confirma-se por meio da escrita, bem antes da parte “final” do romance,
quando o narrador faz uma menção direta:
A respeito desse famoso cachimbo, Magritte afirma que “já foi suficientemente
censurado por causa dele! E afinal...”, pergunta o artista, “conseguem enchê-lo? Não, é apenas
um desenho, não é? Se tivesse escrito por baixo do meu quadro ‘isto é um cachimbo’ estaria a
mentir!” (PAQUET, 2000, p.09). Para o artista, a realidade pode ser mudada, como também
pode o artista “dar às coisas uma lógica tal, que contradiga as leis da percepção comum”. Foi
o que fez ao criar o quadro A Traição das Imagens. Jogando “com esta possibilidade de
divergir da realidade, com esta irrealidade dentro da arte” (PAQUET, 2000, p. 16), criou outra
realidade, tão real ou até mais que a própria realidade: não se fuma o desenho de um
cachimbo.
Compagnon (1999, p.77) faz uma significativa referência ao surrealista Magritte e à
questão da representação na arte:
Essa fascinação que Magritte exerceu sobre filósofos, como Foucault, e inspirou o
narrador de Lúcia emerge das profundezas da percepção do pintor, do olhar que revela o
mistério das coisas descoberto com a intervenção da arte e do intelecto. Considerando que as
coisas têm um lado reverso, um lado negro, ainda mais fascinante do que a sua forma
evidente, e consciente desse conflito entre visível e oculto, consciente também de que um
objeto sempre esconde outro, Bernardo captou e tornou visível, desafiando a lógica das
coisas, os rostos escondidos de Lúcia, a personagem romântica idealizada por Alencar. Assim,
trouxe à cena duas Lúcias, uma de pele clara como as musas românticas, outra de pele negra e
comportamento libidinoso, numa fusão de raças, marca representativa de brasilidade.
Confirma-nos o narrador que:
...Lúcia e Lúcia eram uma só, desenhos sobrepostos na folha de papel fino. Uma
mulher para amar e outra para abandonar, mas as duas iguais, idênticas! Uma
menina para salvar e outra para machucar, mas as duas iguais. Idênticas. Um
bichinho para cuidar e outro para caçar, uma história para contar e outra para viver,
mas, tudo igual – tão absurdo.
40
Morenas (negras) e louras. Olhos tão verdes quanto pretos (abissais). Cor de furta-
cor: brasileiras (BERNARDO, 1999, p. 132).
mais a Antígone dos gregos, não existe mais a Antígone de Sófocles, só pode existir a
Antígone que lemos. Só pode existir a Antígone moderna.”
O narrador-personagem Paulo2 discursa sobre a Antígone moderna, com o auxílio de
um filósofo dinamarquês. Uma provável homenagem a Kierkegaard (1813-1855), pelo
centenário de sua morte no ano em que se desenvolve a narrativa de Lúcia. Kierkegaard
editou, em 1843, La repetición (1975), com o pseudônimo de Constantin Constantius. Expõe
sua concepção de repetição no sentido espiritual e existencial como um segundo começo, uma
vida nova. Mostra, em sua história, a impossibilidade da repetição do mesmo; repete-se,
porém com diferenças marcantes pelo advento do novo: o mesmo será sempre outro, a cada
instante.
Assim, conta-nos o narrador:
O irmão da Antígone dos nossos dias não morreu em guerra fratricida, ao contrário,
estuda engenharia mecânica e faz psicanálise, para aprender a conviver com o seu
complexo de édipo. Antígone, portanto, não precisa mais enterrá-lo, desobedecendo
às ordens do titio. Na Tebas moderna, que podemos fotografar do alto do Pão de
Açúcar, o pai de Antígone decifrou o enigma atômico da Esfinge, matou o seu
próprio pai homossexual e casou com a sua própria mãe, ex-miss Distrito Federal,
tendo com ela quatro filhos, dois rapazes ligeiramente gagos e duas meninas
ligeiramente gêmeas. Ele vive agora um casamento feliz com Jocasta, no seu
palacete à beira da Praia de Copacabana, e não sabe o que fez. A infância oculta não
é conhecida por ninguém. Só Antígone sabe de tudo (BERNARDO, p. 93-94).
O poeta, depois que percebeu que aquilo que ele escrevia era censurado por pessoas
injustas e que os adversários davam má interpretação à peça que vamos representar,
vem ele próprio dizer de sua justiça. Vós sereis os juízes e vereis se se deve louvar ou
criticar o que ele fez.
Existe uma comédia de Dífilo que se chama Synapothnescontes e dela fez Plauto a sua
peça Commorientes. Na peça grega, e logo no princípio, há um moço que rouba uma
rapariga a um mercador de moças. Plauto deixou este passo sem lhe tocar, mas o
nosso poeta para si o tomou nos Adelfos e transladou-o palavra por palavra.
É esta nova peça que nós vamos representar. Examinai-a e vede se houve algum roubo
ou se apenas se aproveitou um ponto que, por negligência, fora posto de parte. (p.
243)
42
Terêncio confessa aos espectadores que verão uma peça grega, mas que se trata de
uma nova peça. Inaugura outro modo de entender o que é derivar de, o que é criar sem ignorar
o já dito e feito por outros. Essa derivação não impediu Terêncio de considerar que o novo ou
o criativo são possíveis, na medida em que a reescritura transforme o já dito ou escrito, que
torne possível o que parece impossível pela inventividade do escritor.
Recuemos um pouco mais e alcancemos os gregos. Lá encontramos a Antígona de
Sófocles, da qual fala o narrador de Lúcia. Antígona, a filha de Édipo e Jocasta, é
transformada por Sófocles em personagem principal de Antígona (c1958, p. 07-08). Essa peça
vem, ao longo dos séculos, servindo de inspiração a inúmeros escritores e dramaturgos. A
respeito, na introdução da versão de Antígona, Muniz (c1958, p. 07-08) afirma que “Eurípides
escreveu também uma ‘Antígona’... Ela passa — invicta e sublime — na obra de Ésquilo, de
Sêneca, de Racine, de Rotrou. Atravessa os séculos rediviva e entra no teatro moderno com
Cocteau, Anouilh e vários outros”.
A reescritura, como se percebe, é sempre motivada pela riqueza da obra original, pela
capacidade de sugerir ao escritor outras possibilidades de contar a história, de recriá-la ao seu
modo, em outra época, com um sentimento novo e ampliado por outras leituras. O modelo
pode ser, inclusive, já uma reescritura. As tragédias Édipo Rei, Édipo em Colona e Antígona,
de Sófocles, confirmam a nossa reflexão, todas poderiam derivar de um trecho da Odisseia
(HOMERO, 2002, p. 148), que por sua vez se nutriu das histórias e lendas passadas de uma
geração para outra oralmente, e serviram, e servem até os dias de hoje, de fonte de inspiração
a inúmeros escritores, por deixar em aberto uma série de reinterpretações e de sugestões a
todas as mentes e a todas as épocas.
Em Lúcia, Bernardo, aceitando os riscos e as incertezas da liberdade ficcional, costura
retalhos de textos do passado. No romance, a literatura amorosa, as vivências e os reflexos das
experiências alheias, como também dados da experiência do próprio escritor, se cruzam e se
completam formando um todo.
Como em Lucíola, o principal procedimento estruturador da narrativa de Lúcia é o
registro de uma confissão: “Acabo de escrever estas mal traçadas, completando setenta anos
de idade” (1999, p. 179), uma das formas de se apresentar ao leitor. Tudo é verdadeiro, é o
próprio personagem quem conta sua história. Bernardo o revestiu com uma elaboração
diferenciada, obedecendo a determinados critérios de construção da época em que o romance
foi escrito.
Em todas as épocas há sempre algo com aparência de extraordinário que seduz e
fascina os indivíduos, que satisfaz as suas vontades de potência, de manifestação e de criação.
43
... o mundo é redondo. Os livros são redondos. Nós mesmos somos feitos de matéria
curva, ou seja, de memória e de invenção. Os livros, como este, reescrevem outros
livros ─ primeiro como tragédia, depois como farsa, e adiante como tragédia
novamente.
É o avesso do avesso do avesso das páginas amareladas da literatura brasileira.
Quando acordou, os olhos pregados, a vista turva, a boca seca; ela ainda estava lá, ao
pé da cama, segurando com as duas mãos a camisa dele com a marca de batom na
lapela (ARRAES, p. 15).
VARIAÇÃO 3
torna o inseto menos monstruoso do que o de Gregor. Outra leitura pode-nos levar à
monstruosidade, em tamanho e aspecto, do dinossauro, ou seja, a “barata” representa,
principalmente, para as mulheres algo ‘asqueroso’, provocando um medo ‘gigantesco’, apesar
do tamanho micro se comparado ao dinossauro. O leitor de A metamorfose, provavelmente,
entenderá o microconto com mais propriedade. Lembrará, por exemplo, que Gregor não
sonhava, que diante da metamorfose não poderia trabalhar (ao contrário do personagem do
microconto), que o inseto, no qual se transformou é tão monstruoso quanto asqueroso,
enquanto, no microconto, o personagem apenas sonhava, consequentemente, não precisará
escrever um livro porque não é Kafka, bem como não sofreu a metamorfose de seu
personagem. Assim, “Vestiu-se e foi trabalhar”. Não sabemos sua profissão, mas o leitor é
livre para preencher as elipses, o sugerido e, como detetive, descobrir as pistas por trás da
cena.
VARIAÇÃO 11
VARIAÇÃO 12
Os dinossauros, como se sabe, foram extintos há séculos. Não se sabe por que um
espécime vive escondido na mesa do escritor A. Monterroso. O escritor gosta de, ao
acordar, ver que ele ainda está lá (ARRAES, p. 26).
Arraes agora foi mais longe. Dialogou com a história, com Monterroso e com o seu
microconto. A afirmação da extinção dos dinossauros “há séculos” leva o leitor a rememorar,
por exemplo, a teoria de que os dinossauros poderiam ter sobrevivido ao asteroide que os
dizimou, caso o evento tivesse ocorrido milhões de anos mais cedo ou mais tarde, segundo a
teoria de Steve Brusatte. Em seu estudo, reconstrói o cenário vivido pelos grandes répteis 66
46
milhões de anos atrás, no fim do período cretáceo. Afirma que tais seres foram vítimas de
uma combinação mortal: as mudanças ambientais devastadoras e a baixa diversidade de
herbívoros, que serviam como base da cadeia alimentar. No segundo período do microconto,
o leitor é surpreendido com o fato de “um espécime”, um indivíduo dessa espécie, viver
“escondido na mesa do escritor A. Monterroso”. Se os dinossauros “foram extintos há
séculos”, como é possível a existência de um deles? Tratando-se de um escritor de ficção,
tudo é possível. O dinossauro ganha vida por meio do microconto de Monterroso que,
provavelmente, o deixou em sua mesa entre outros escritos durante a fase de criação. O
escondido, há muito tempo, se tornou público, visível aos olhos de leitores em todo mundo.
Por outro lado, o autor, ao acordar, gosta de “ver que ele ainda está lá”, confirmando, ao
mesmo tempo, o diálogo com o autor e com o seu microconto: quem acorda é o criador, quem
ainda está lá é a criatura, ou seja, Monterroso e seu microconto mais famoso. Enfim, há um
emaranhado de paisagens no microconto de Arraes à disposição de cada leitor que queira
aventurar-se.
Variação do microconto de Monterroso:
VARIAÇÃO 13
O dinossauro não sobreviveu mais que poucos dias à morte do escritor Augusto
Monterroso. Dessa forma, descobriu-se o que as ossadas existentes não revelaram:
os dinossauros eram dotados de sentimentos (ARRAES, p. 27).
Ao ler o primeiro período, o leitor se pergunta: que dinossauro sobreviveu poucos dias
após a morte do escritor Monterroso? Sabe-se que o microconto “O dinossauro” faz parte do
primeiro livro do hondurenho (MONTERROSO, 1959) e que o escritor faleceu em 2003,
tempo em que o criador acompanhou a vida de sua ‘criatura’. Por outro lado, “O dinossauro”
como obra literária está mais vivo do que nunca. Vive em cada leitura, em cada página a que
ele se refere, como o fez Arraes; como também vive o escritor, pois não se pode separá-lo de
sua obra. Assim, a questão é outra. Talvez o dinossauro fosse uma réplica em miniatura, usada
como enfeite, pertencente ao escritor. Poucos dias depois de sua morte, os familiares se
encarregaram de exterminá-lo ou será que o dinossauro se quebrou acidentalmente durante a
reorganização dos objetos do falecido? O último período é tão enigmático quanto o primeiro.
Retoma-o por meio da expressão coesiva “dessa forma”, introduzindo uma confirmação do
dito, exigindo do leitor uma participação mais ativa, visto que o fato anterior levou à
descoberta de que “os dinossauros eram dotados de sentimentos”. Se o leitor considerar a
hipótese de que o dinossauro era um objeto de estimação de Monterroso, dotado de
47
sentimento a ponto de não sobreviver sem ele, tal peça ganha personificação, como humana.
O leitor se encontra em um labirinto de paisagens, por trás do sugerido. O que se passou na
mente criativa de Arraes? Talvez tenha assistido ao filme Jurassic Park, O parque dos
dinossauros (1993) no Brasil, baseado no livro homônimo de Crichton (1990). No final do
filme, um Tiranossauro Rex salva os personagens principais da fúria dos Velociraptores, com
indícios de que são dotados de sentimentos. Isso “as ossadas existentes não revelaram”. Há
muito no microconto de Arraes, dependendo de quem o lê.
VARIAÇÃO 19
Como Asterix, Obelix e todos os outros gauleses, ele só temia uma coisa: que o céu
desabasse sobre sua cabeça.
Sonhava de maneira recorrente, com meteoritos gigantes caindo sobre a terra; como
os que exterminaram os dinossauros (ARRAES, p. 33).
VARIAÇÃO 27
Não sabemos o sexo de quem acordou, visto que o pronome pessoal reto “eu” indica
apenas que o narrador é também personagem. O advérbio “quando” expressa circunstância de
tempo, quando o fato ocorreu. No microconto, tudo aconteceu no momento em que o
narrador-personagem acordou. A intertextualidade com “O dinossauro” de Monterroso é
clara, começando pelo advérbio, passando pelo verbo acordar e pelo final do período
“dinossauro ainda estava lá”. Arraes, com poucas modificações, muda significativamente o
microconto. Diferente do microconto de origem, que se encontra na terceira pessoa do
singular, o narrador conta a micro-história como observador sem participar dos
acontecimentos (“Quando acordou”); a reescritura é narrada na primeira pessoa do singular,
consequentemente, o narrador participa diretamente, tem uma relação íntima com os
elementos da micronarrativa (“Quando eu acordei”). Outro questionamento diz respeito ao
fato que sucedeu quando o narrador acordou. No microconto de Monterroso, “o dinossauro
ainda estava lá” (a que lugar o narrador se refere?); no de Arraes, “uma versão do dinossauro
ainda estava lá”. O acréscimo das palavras “uma” e “versão” leva o leitor a se questionar
sobre o que há por trás delas. Antes de o personagem dormir, existia mais de uma “versão do
dinossauro”? No caso, considerando “uma” como numeral. Em caso afirmativo, o que
aconteceu com as outras, será que alguém as roubou? E a palavra “versão”, se refere à
tradução do microconto “O dinossauro” ou à reinterpretação, “variação”, por Arraes? Se “uma
versão do dinossauro ainda estava lá”, a que lugar o narrador-personagem se refere? Como no
microconto de Monterroso, Arraes não dá pistas seguras ao leitor, o que não o impede de usar
sua criatividade, supondo, por exemplo, que a tal “versão” estava sobre uma mesa no quarto
do escritor, considerando que o fato ocorreu quando o personagem acordou. Outras leituras
possíveis ficarão a cargo de cada leitor.
VARIAÇÃO 40
Nada mais chato do que acordar com um dinossauro ao seu lado; no lugar de sempre
a espreitá-lo. Quando toco no assunto, a desculpa dele é a de sempre e tem
pertinência: não ter para onde ir (ARRAES, p. 54).
o personagem se sente ao acordar e se deparar com “um dinossauro seu lado; no lugar de
sempre a espreitá-lo”. Para ele não há “nada mais chato”. A partir desse desabafo, o leitor é
levado a considerar algumas hipóteses, tais como, o dinossauro é um imenso réptil pré-
histórico que, provavelmente, se abrigou na casa do personagem para se proteger do impacto
do meteoro que caiu. No caso, a história se passa há milhões de anos. No presente, a história
seria outra: o personagem tem um parente idoso ao seu lado, chamado pejorativamente de
dinossauro. Talvez, pela impossibilidade de se locomover sozinho, fica no mesmo lugar,
olhando-o atentamente. No período seguinte, o leitor descobre que o narrador também é
personagem por meio do verbo “toco”, em primeira pessoa do singular. O narrador-
personagem diz “Quando toco no assunto...”. Que assunto? Será o fato de não suportar mais a
presença do “dinossauro”, réptil ou pessoa idosa, no mesmo ambiente? Ao continuar a leitura,
se supõe o assunto a partir do trecho “a desculpa dele é a de sempre e tem pertinência: não ter
para onde ir”. Mesmo considerando que o dinossauro dá sempre a mesma desculpa, o
narrador-personagem dá razão ao dinossauro na oração seguinte “e tem pertinência...”. Por
que o dinossauro ainda continua lá? O leitor poderá ir mais além do dito ou sugerido. Os
conhecimentos prévios e o poder de criatividade de cada um ditarão o caminho, ou caminhos,
por trás da superfície do microconto.
Percebemos que a leitura desses microcontos de Arraes, como o de Monterroso,
aparentemente simples, esconde diversas referências, capazes de provocar profundas reflexões
no leitor. Em poucas palavras, o essencial, o poder da concisão narrativa, o jogo da linguagem
pós-moderna – um diálogo com outras linguagens, com outros gêneros e, por trás do dito, um
mar de histórias instigantes, exigindo a cumplicidade do leitor.
50
modernos, entre eles o papel fundamental da alusão a outros textos. Há diversos especialistas
que também consideram a intertextualidade como uma das características da pós-
modernidade, presente na minificção, como Epple (2004), Zavala (2005) e Garrido
Domínguez (2009).
A hiperbrevidade e a intertextualidade são relacionadas entre si por Koch (2000, p. 04-
10). Em um dos artigos desta pioneira da análise teórica do microrrelato são citados dez
recursos utilizados pelos autores do gênero para conseguir a tão ansiada brevidade. Dentre tais
mecanismos, três remetem ao tema de que tratamos: o primeiro é utilizar personagens já
conhecidos; o segundo é parodiar textos ou contextos familiares; enquanto que o terceiro
remete diretamente ao uso da intertextualidade literária. Concordamos com Koch, pois ao
lançar mão da intertextualidade, o escritor conseguirá o mais importante e difícil: a concisão.
Para Roas (2008a, p. 55), a utilidade da intertextualidade para a minificção é que o
mecanismo tem dupla função: de um lado economiza espaço textual e, de outro, supõe uma
dessacralização paródica do passado. Nem uma nem outra função são exclusivas do miniconto
e do microconto, também participam do jogo intertextual outros tipos de gêneros literários,
como o romance, o conto, o poema etc.
Um aspecto relacionado com o tema e que os especialistas enfatizam em relação à
ficção hiperbreve é a importância do leitor de microcontos intertextuais. A figura do receptor
possui significativa importância, pois se trata de uma forma que requer atenção especial do
leitor e com experiência suficiente na decodificação de textos literários. Por outro lado, as
referências intertextuais que se estabelecem nas obras exigem um alto grau de conhecimento
do leitor para que seja capaz de perceber o subtexto e sua função no intertexto. Assim, é
possível comprovar como os teóricos do gênero sinalizam a relevância suprema do leitor.
As referências textuais devem ser conhecidas pela maioria dos receptores, que
precisam lembrar a frase ou o verso a que o autor alude de maneira íntegra. Assim,
reconhecerão mais facilmente a reprodução ou a modificação que o autor pôs em jogo ao
elaborar o microconto. Nem todas as obras literárias funcionam bem como subtexto.
A poesia cumpre perfeitamente o requisito, gênero que tradicionalmente possui menos
personagens e tramas que a narrativa extensa. Tal tipo de intertextualidade é muito útil nos
títulos dos microcontos, que oferecem uma referência conhecida antes de começar a
micronarrativa. Esse tipo de texto deve cumprir, em primeiro lugar, o critério básico de textos
reconhecíveis pelos leitores, elemento sem o qual a intertextualidade temática ou textual perde
sua razão de ser.
53
Aqueles que insinuaram que Menard dedicou sua vida a escrever um Quixote
contemporâneo, caluniam sua límpida memória. Não queria compor outro Quixote –
o que é fácil – mas o Quixote. Inútil acrescer que nunca visionou qualquer
transcrição mecânica do original; não se propunha copiá-lo. Sua admirável ambição
era produzir páginas que coincidissem – palavra por palavra e linha por linha – com
as de Miguel de Cervantes.
possibilidades para os autores de microcontos, pois semeia dúvida no leitor sobre a veracidade
da referência e encaminha o texto, na maioria das vezes, à metaficção.
hiperbreves, com certa importância na história do gênero, não se pensa como fábulas puras,
porque necessitam de outras características inerentes a tal gênero: a moral da história
(ensinamento direcionado ao leitor). Há uma série de microrrelatos, tendo as fábulas clássicas
como modelo, para realizar uma atualização em que desaparece o caráter didático.
O bestiário, segundo Pujante Cascales (2013, p. 54), estabelece com o microrrelato
uma relação bastante similar à fábula. Origina-se na Idade Média, com autores como Isidoro,
Clero e Fournival, dentre outros. Os escritores de fábulas dos séculos XVII e XVIII também
escreveram coleções de bestiários que, em datas mais recentes, foram cultivados por
Apollinaire, Borges e Arreola. Os dois últimos são grandes escritores de microrrelatos.
Como ocorre com a fábula, o bestiário não se considera, por sua criação temática,
como único antecedente do microconto, mas como fonte direta de todos aqueles textos
brevíssimos protagonizados por animais inventados.
Deter-nos-emos em outros tipos de narrativas breves que se podem entender como
variantes do conto tradicional, mas com características diferenciadoras, estudando a possível
relação com o microconto: o apólogo, a anedota, o aforismo, o provérbio, a parábola, o haicai,
o epigrama, o poema em prosa e o conto.
Segundo Pujante Cascales (2013, p. 55-56), Merino e Díez concordam ao dizer que o
apólogo é um possível antecedente do microrrelato. A proximidade se deve, principalmente,
pela preponderância da prosa breve, o tom sério e reflexivo, bem como a narratividade do
gênero; entretanto, o caráter didático-moral, próprio dos contistas medievais e dos
renascentistas, é o que mais o diferencia da maioria das narrativas hiperbreves. O espanhol
Martín-Santos (1970) atualiza o apólogo tradicional ao trocar sua carga didática pela ironia,
segundo Ródenas de Moya (2007, p. 85). A obra serve de exemplo de como os autores de
microrrelato dialogam com estes gêneros em suas narrações hiperbreves.
A anedota também é um tipo brevíssimo. A sua origem é oral e clássica. Durante o
Século de Ouro foram recolhidas em coleções e inseridas em novelas e obras de teatro. O
caráter biográfico das anedotas, com pessoas reais, em textos maiores, adquire especial
utilidade na caracterização dos personagens.
Os especialistas em microrrelatos citam a anedota como um dos antecedentes mais
claros da narrativa hiperbreve. Lagmanovich (Apud PUJANTE CASCALES, 2013, p. 56-67)
a inclui em seu estudo sobre os gêneros próximos ao microrrelato. Existem dois tipos: aquela
que se baseia em um acontecimento real e a fictícia, a mais próxima. Segundo Pujante
Cascales (2013, p.56-57), Tejero defende que a origem do microrrelato estaria na anedota e
que ambos compartilham o efeito surpresa. Acredita que os autores de narrativas hiperbreves
56
são herdeiros dos escritores que buscavam a anedota como meio de transmissão de saber
enciclopédico.
O aforismo, gênero cuja extensão o assemelha às narrativas hiperbreves, não tem
narração. Esta característica diferencia claramente os dois gêneros, entretanto, há alguns
elementos que os aproximam: a extrema brevidade, a escritura em prosa e a semelhança na
leitura que ambas as formas exigem. Valls (2008, p. 313), sinaliza que os livros de minificção
não devem ser lidos de uma vez, pois sua recepção exige uma leitura em pequenas doses, de
maneira similar aos poemas.
Os provérbios são ditos populares (frases e expressões), a maioria de criação anônima,
que transmitem conhecimentos comuns sobre a vida. Muitos foram criados na antiguidade,
porém relacionados a aspectos universais, utilizados até hoje. As principais características
são: oralidade, sentença breve, caráter didático e moralizador. Pela oralidade se distanciam
mais do microconto que o aforismo. A ausência do componente ficcional ainda os diferencia
mais.
Pela característica narrativa, a parábola pode-se relacionar com o miniconto e o
microconto. A sua origem é ocidental e se associa à figura de Jesus Cristo, cujas parábolas
bíblicas são arquétipo do gênero. Sua influência nos microrrelatos, para Pujante Cascales
(2013), é mais palpável que a maioria dos gêneros, precisamente porque estabelece relações
de intertextualidade com a Bíblia. Lagmonovich (2005, p. 133) define uma das possíveis
variantes do microrrelato como “escritura emblemática”. Dá este nome às narrativas
hiperbreves com uma visão transcendental da experiência humana e compara tais tipos de
microficções à parábola. Existem autores de microficção que, de forma mais ou menos fiel ao
original, utilizaram o gênero, como a de Borges: “Parábola de Cervantes y Quijote” (1974, p.
799).
Uma forma literária recente, porém muito cultivada no Oriente, é o haicai. Trata-se de
um breve poema formado por dezessete sílabas, distribuídas em três versos, que constitui uma
expressão poética popular e característica da literatura japonesa. Consolidou-se no século XII
graças aos escritos de Bashõ. No século XVIII, segundo Pujante Cascales (2013, p. 62),
destacam-se em sua escritura autores como Buson e Kobayashi. Entre o século XIX e XX o
haicai chega à Europa. Na literatura escrita em espanhol, encontramos escritores de haicai
como Paz e Benedetti; na brasileira, Leminski, Fernandes e Trevisan, dentre outros.
A ausência de narratividade seria um argumento definitivo para diferenciar o
microconto do haicai, porém existem alguns paralelismos, entretanto, há uma série de
57
América que escreveram contos que pela primeira vez eram originais. Ressaltamos como
elementos imprescindíveis para o surgimento do gênero a influência do Romantismo em suas
origens, especialmente pelo trabalho da imprensa em sua difusão. Pujante Cascales (2013,
p.72) afirma que entre os nomes que se estabeleceram como os clássicos temos: Quiroga, Poe,
Maupassant, Kipling, Chejov, Wilde, Daudet, Echevarría, Gutiérrez Nájara, Alarcón, Pardo
Bazán, Clarín e Valera.
No Brasil, as origens do conto moderno estão ligadas ao tipo de produção vinculada
no jornal em meados do século XIX. Textos de cunho ficcional delimitaram seus modos e
estilo. Segundo Lima Sobrinho (1960, p.16) a
Quanto ao gênero deles não sei que diga que não seja inútil. O livro está nas mãos
do leitor. Direi simplesmente que, se há aqui páginas que parecem contos e outras
que não o são, defendo-me das segundas com o dizer que os leitores das outras
podem achar nelas algum interesse, e das primeiras defendo-me com S. João e
Diderot. O evangelista, descrevendo a famosa besta apocalíptica, acrescentava
(XVII, 9): “E aqui há sentido, que tem sabedoria”. Quanto a Diderot ninguém ignora
59
que ele não só escrevia contos, e alguns deliciosos, mas até aconselhava a um amigo
que os escrevesse também. E eis a razão do enciclopedista: é que quando se faz um
conto, o espírito fica alegre, o tempo escoa-se, e o conto da vida acaba, sem a gente
dar por isso (ASSIS, 1959).
meramente auxiliar (EPPLE, 1989, p, 07). Apesar de incluir nos títulos de alguns livros a
palavra ‘microconto’, Epple (2010) declarou em uma entrevista que prefere a denominação
‘minificção’, porque engloba outras categorias usadas. Afirma também que para uma
minificção eficaz, é necessário possuir astúcia e precisão.
Valls (2001) chama de microrrelato o texto que ocupa no máximo uma página para
que o leitor possa abarcá-lo de uma só vez. Caso o texto se estenda, devemos classificá-lo
como conto. Sua hiperbrevidade nasce de uma necessidade narrativa, não da imposição de não
superar uma página impressa.
Lagmanovich (2006a), por sua vez, usa tanto a denominação microrrelato quanto
microconto. Ele define o microconto como brevíssima construção narrativa, muitas vezes de
um só parágrafo; conto concentrado ao máximo; relato essencial, exigente para com o leitor;
sua extensão é variável, pode constar poucas palavras até um ou dois parágrafos, menos de
uma página até uma página e meia ou duas – nestes exemplos mais extensos, segundo nosso
ponto de vista, não retrata o microconto brasileiro. A forma compacta de um parágrafo de
extensão ou pequenos parágrafos com menos de meia página é a escolha favorita dos
escritores de narrativas hiperbreves.
Rojo (2009) não fala em microrrelato, mas de miniconto, a narrativa com as seguintes
características: brevidade extrema, economia de linguagem e jogos de palavras, representação
de situações que exigem a participação do leitor e caráter híbrido. Zavala (1996) se baseia
nos livros constituídos exclusivamente por minificção, como os chama, ou que se encontram
agrupados sob epígrafes e utiliza o termo fractal. Uma série fractal, em termos de minificção e
microconto, é aquela em que cada texto é literalmente autônomo, não exige a leitura de outro
fragmento da série para se apreciar, porém, conserva características formais comuns com o
resto. Para Zavala, está em jogo nesta estrutura literária a sua extensão muito breve,
geralmente de duas linhas a uma página impressa. Cada texto pressupõe um conjunto de
elementos temáticos e formais que o definem como indissociavelmente ligado à série a qual
pertence. Observou que existem ao menos três características em comum: uma proposta
temática e formal aos textos da série (incluindo extensão específica); a presença constante de
humor e ironia, os quais fazem parte da característica geral do miniconto pós-moderno, e um
alto grau de intertextualidade, geralmente explícito.
Percebemos que tanto as nomenclaturas quanto a extensão dos microcontos são
variáveis. Teóricos e escritores hispano-americanos e hispânicos têm opiniões divergentes.
Lagmanovich (2006a) se aproxima mais de nosso objeto de estudo ao considerar que a forma
62
3 MICROCONTOS NO BRASIL
comunicação, abriu espaço para uma nova forma de criação textual acelerada. Não afirmamos
com isso que a literatura se limite a essa representação do nosso tempo, mas que a narrativa
extremamente breve, aquela que não excede meia página (a exemplo da obra Curta
metragem: 67 microcontos, 2006, de Rossatto), é uma realidade praticada por bons escritores
e recebida com entusiasmo pelos leitores.
Seabra (2010, p. 01) afirma que a “micronarrativa tem ingredientes do nosso tempo,
como a velocidade e a condensação...”. Há o poder da concisão, mas a liberdade da prosa. O
desafio é contar uma história em poucas palavras. Existem autores que estipulam o limite de
até cento e cinquenta toques para os microcontos (contando letras, espaços e pontuação) e
trezentas palavras para os minicontos; e outros, seiscentos caracteres. Nada é rigoroso,
depende do escritor ou dos critérios editoriais. O limite de cento e cinquenta caracteres, a
princípio, foi estabelecido porque cabe no formato de texto do celular. Hoje se usa mais o
limite de cento e quarenta toques, possibilitando o envio pelo twitter – grande difusor dos
microcontos.
Para Seabra (2010, p. 01), os microcontos são, antes de tudo, uma brincadeira,
entretanto, ao nos debruçarmos sobre as micronarrativas de bons autores, percebemos pura
literatura, aquela que encanta o leitor e o convida para coautor. Escritores consagrados “já
brincaram nessa seara, como Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Millôr Fernandes, Dalton
Trevisan, ainda sem pensar no conceito de ‘microcontos’”. Carlos Drummond de Andrade
dizia que “escrever é cortar palavras”, o norte-americano Ernest Hemingway aconselhou
“corte todo o resto e fique no essencial” e João Cabral de Melo Neto, que devemos “enxugar
até a morte”. Em seu blog, Bertocchi (s.d, p.01) escreve:
é como uma ligação muito forte através de um furinho de agulha no universo, algo
que permite projetar uma imagem de uma realidade situada em outra dimensão.
Como se por meio desse furo, dois cones se tocassem nas pontas, um menor, que é o
que está escrito no microconto, e outro maior, que é a imaginação a partir da leitura
– pois, mais do que contar uma história, um microconto sugere diversas, abrindo
possibilidades para cada um completar as imagens, o roteiro, as alternativas de
desdobramento.
Citamos todos os aforismos pela singularidade de cada um. Para fazer o levantamento
das características do microconto brasileiro, Rodrigues (2011, p. 569) estudou obras de
autores que já alcançaram reconhecimento pelas realizações literárias. Por meio dos
aforismos, percebemos a relevância dessa forma de micronarrativa. Não falamos de algo
vazio de significado, mas de uma maneira de expressão textual que carrega em si um mundo
de ressignificação de outros gêneros, “formatando-se como um novo gênero”.
Rodrigues (p.569) afirma, inicialmente, que “o microconto tem-se destacado nos
últimos tempos, no Brasil, como subgênero da prosa ficcional...”, entretanto, à medida que
suas reflexões avançam, nos deparamos, no final do vigésimo oitavo aforismo, com a
informação de que o microconto está “..., formatando-se como um novo gênero”. A partir da
constatação, como também dos estudos de Bakhtin e pelo fato de a Academia Brasileira de
Letras (ABL) ter aberto as portas para essa nova forma literária ao realizar o concurso
ABLetras em 2010, trataremos o microconto como gênero textual.
O Concurso Cultural de Microcontos do ABLetras objetivava que os participantes
escrevessem microcontos, com tema livre, com até cento e quarenta caracteres. No total,
foram recebidos dois mil, duzentos e noventa e três microcontos. Vilaça (2010, s.d), então
presidente da ABL, afirmou que “o sucesso do concurso de microcontos justifica plenamente
a iniciativa da Casa em se abrir para novas tecnologias em favor da literatura brasileira. (...) A
qualidade dos trabalhos foi ótima...”. O discurso do Acadêmico reconhece que a produção de
microcontos em blogs e em outras plataformas e mídias da internet é uma realidade e, pelo
69
resultado do concurso, há muitos bons autores, consequentemente, não podem ser ignorados
pela Academia. Quem ganha é a literatura brasileira.
No concurso não se exigiu título, como em muitos microcontos impressos e digitais.
Entendemos que o título acrescenta mais totalidade ao microconto, entretanto, sem ele, mais
esmero o escritor deve dedicar à escrita para que obtenha o efeito estético da micronarrativa.
Calvino (1988) reúne cinco conferências nas quais propõe determinados valores
literários: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência. A última não
foi escrita porque o autor faleceu. No segundo capítulo, o autor discorre sobre a importância
da rapidez na literatura. Destacamos o seguinte trecho, pela sua singularidade em relação ao
microconto:
Borges e Bioy Casares organizaram uma antologia de Histórias breves e
extraordinárias. De minha parte, gostaria de organizar uma coleção de histórias de
uma só frase, ou de uma só linha apenas, se possível. Mas até agora não encontrei
nenhuma que supere a do escritor guatemalteco Augusto Monterroso: ...[Quando
acordou, o dinossauro ainda estava lá] (CALVINO, 1988, p. 64).
A rapidez almejada por Calvino se realiza intensamente nas produções literárias dos
microcontistas pelo mundo afora, inclusive no Brasil, tanto impressas quanto digitais,
poupando o leitor de determinados detalhes em favor do ritmo, da essência narrativa, levando-
o a transitar num campo de forças: um liame verbal (uma palavra que dê a ideia de
continuidade) e um narrativo (elemento capaz de sustentar a narrativa criando uma relação
lógica entre causa e efeito). Há também uma preocupação com a estrutura e o estilo para
alcançar a força sugestiva, a relação entre velocidade física e velocidade mental em que o
leitor imagina a história ou as histórias. Outra questão é a relatividade do tempo, ora dilatado,
ora contraído, ora linear, ora descontínuo. A rapidez é vista por Calvino (1988, p. 47) como
“um nó de uma rede de correlações invisíveis”.
Não só a rapidez, a concisão do estilo do microconto agrada porque apresenta ao leitor
um turbilhão de ideias simultâneas, ou então a sucessão é tão veloz que parece simultânea,
ondeando em abundantes pensamentos, reflexões, imagens e sensações. Por isso, quase
sempre, não consegue abarcá-los de uma só vez, porque não a tempo de isentar sensações.
Para Calvino (1988, p. 55), “a excitação das ideias simultâneas pode ser provocada tanto por
uma palavra isolada, no sentido próprio ou metafórico, quanto por sua colocação na frase, ou
pela sua elaboração, bem como pela simples supressão de outras palavras ou frases etc”.
O êxito do escritor de microconto está na expressão verbal que, em geral, implica uma
paciente procura da frase com elementos insubstituíveis, do encontro de sons e conceitos mais
eficazes e plenas de significados. Trata-se da busca de uma palavra ou expressão necessária,
70
única, densa, concisa, memorável. É verdade que a extensão ou brevidade de um texto são
critérios exteriores, mas a densidade do microconto é singular. Há o máximo de invenção e de
pensamento concentrados em poucas linhas.
O microconto representa uma forma de “fazer” literatura consonante com a realidade
contemporânea das novas tecnologias de comunicação e de informação, considerando o seu
caráter de narrativa brevíssima, entretanto, como disse Rodrigues (2011, p. 566), o
microconto já existia em sociedades ágrafas, em Tales, em Heráclito, em Hesíodo e em Safo.
Decidimos voltar para a década de setenta, para Colasanti e Trevisan, porque, em diversos
momentos e obras, escreveram contos extremamente condensados, nos quais as palavras
sugerem mais do que dizem, conduzindo o leitor a diferentes labirintos a fim de construir as
significações e preencher os vazios.
Procuramos, inicialmente, buscar referências em livros impressos de autores que
privilegiaram o emprego mínimo de formas e o uso do essencial para a composição de suas
narrativas. Começaremos com Colasanti, uma das autoras mais lidas no Brasil. A partir da
publicação de Zooilógico (1975), a autora expõe sua preferência pelos contos breves e
brevíssimos. A extensão das narrativas varia entre doze palavras, sem contar o título,
(denominados hoje de microcontos) e quatrocentos e quarenta palavras, aproximadamente
(minicontos), porém, sem indicação do gênero. Em 1981, o livro foi relançado com o título
Zooilógico Mini Contos Fantásticos (1985), ou seja, sinalizando ao leitor que se trata de
contos breves e fantásticos. Abaixo, o mais breve, o qual se consideraria hoje microconto:
Bastou vê-lo a primeira vez para saber que havia chegado seu fim (1975, p.82).
No título está implícito que, na história, não há meio, sinalizando que se trata de uma
narrativa breve. Ao olharmos a extensão do texto, percebemos quão brevíssimo é. Em
consonância com um dos aforismos de Rodrigues, lemos essa micro-história “em uma única
risada”. Indo mais além, o “microconto é silêncio, alma, morte e ressurreição”
(RODRIGUES, 2011, p. 567-568). Afinal, quem viu? Sobre quem foi visto, sabemos apenas o
sexo, tanto pode ser homem ou animal. O uso do pronome possessivo na terceira pessoa do
singular antes da palavra “fim” cria ambiguidade. Não sabemos se chegou o “fim” do
personagem que viu ou do visto, nem também o que provocou a conclusão final de quem viu.
Será um encontro entre o predador e sua presa? Enfim, o implícito gera interrogativas diversas
71
que, por sua vez, criam inúmeras possibilidades de leituras, consequentemente, encontros de
várias histórias.
Características como brevidade, concisão extrema, narratividade, ficcionalidade,
implicitude, intertextualidade, final surpreendente, participação ativa do leitor etc, se tornaram
marca registrada em outras obras de Colasanti, a exemplo de Contos de Amor Rasgados
(1986), composto por contos curtos, minicontos, segundo consta no prefácio. Ao lermos a
obra, deparamo-nos com diversas narrativas que dizem muito em poucas palavras,
provocando e pedindo a cumplicidade do leitor para além do ponto final. Como em
Zooilógico, há não só minicontos, mas também microcontos. O próprio título do livro dá tal
liberdade, pois se os contos são rasgados, trata-se de algo que ganhou uma extensão menor ou
muito menor. Quanto ao conteúdo narrativo, coisas não foram ditas, apenas sugeridas. É um
convite para a contradança, para preencher os vazios deixados propositalmente. Tomamos
como exemplo a narrativa “A paixão da sua vida” (COLASANTI, 1985, p. 87):
Entre outros livros de minicontos lançados, Colasanti volta a gênero ao lançar Hora de
alimentar serpentes (2013, p. 341), com narrativas breves e brevíssimas, a exemplo do
microconto:
O pianista cego
Com sete palavras, sem contar o título, a escritora conta a história de um homem que,
mesmo não enxergando as teclas, se tornou pianista por possuir a capacidade de “ver”, em
sentido figurado, os sons. Trata-se de um pianista cego pela indicação no título,
consequentemente, faz parte da micronarrativa. Ao leitor fica as interrogações: como alguém
que não enxerga pode ver o som, se nós, que enxergamos, não temos essa capacidade? O
verbo “ver” está empregado com o sentido de ouvir ou de sentir pelo tato, do som que cada
tecla emite? No microconto, Colasanti, intencionalmente ou não, induz o leitor a buscar em
sua bagagem cultural pessoas possuidoras de tais dons, como o pianista e cantor norte-
americano Ray Charles e o pianista e compositor japonês Nobuyuki Tsujii.
As obras do aclamado escritor curitibano Trevisan também são marcadas pela
concisão, pelas narrativas curtíssimas com o intuito da interação entre o leitor e sua obra, na
medida em que tudo o que não é dito ou silenciado cria vazios que convidam o leitor a
preencher criativamente, a dialogar com o texto. Mesmo que a intenção do autor não tenha
sido a escritura do microconto tal qual o conhecemos hoje, não se pode negar a sua existência.
A partir de Cemitério de elefantes (1964), notamos na linguagem e no estilo do
escritor o jeito de podar suas narrativas até chegar ao estritamente essencial. Com Abismo de
Rosas (1976), inaugura uma fase nova que marcará definitivamente a sua obra, a síntese. Tal
tendência formal acentua-se em Ah, é? (1994), composto por 187 “ministórias” (p. 03) -
subtítulo dado pelo autor -, com narrativas fragmentadas, minúsculas sequências, algumas em
forma de trocadilhos, imagens inusitadas etc.
Para nosso objeto de estudo, selecionamos, de Ah é? (p. 122), o texto de número 166:
velho em agonia, o último pedido à filha, já dentro do caixão, para não deixar determinada
mulher beijá-lo. A escolha das palavras essenciais, representa o necessário para compreensão,
o resto cabe à imaginação do leitor, possibilitando múltiplas interpretações. Valorizam-se os
sinais gráficos e de pontuação; a narratividade, o final surpreendente, as várias histórias no
rastro, ou seja, o homem está “em agonia” por que sente a dor da morte ou por que não quer
ser beijado pela mulher presente? Qual acontecimento levara este homem, já velho, a fazer tal
pedido? Enfim, poderíamos levantar uma infinidade de perguntas e outras tantas respostas.
E a história explícita, que fatos são narrados? A frase “Lá no caixão...” significa
realmente que o homem se encontra dentro do caixão ou que está prestes a morrer,
agonizando? Tomando a micronarrativa como um todo, o leitor pode perfeitamente
depreender que, em seus últimos momentos de vida, um homem velho, ao sentir a agonia da
morte, pede à filha que, quando estiver “Lá no caixão...” (morto), não deixe uma pessoa do
sexo feminino, identificada como “essa aí”, portanto, próxima, como também presente no
momento do “último gemido”, beijá-lo. Como se percebe, é uma narrativa ultrabreve com as
características essenciais do microconto. Não afirmamos que Trevisan tenha escrito esse
texto, dentre outros de características semelhantes, com tal intenção. Ele, como mencionamos,
usou a terminologia “ministórias” em Ah, é?.
O objetivo, ao iniciar os estudos sobre microconto com livros de Colasanti e Trevisan,
foi mostrar que o microconto está presente em obras de autores renomados desde a década de
1970, apesar de usarem terminologias abrangentes como miniconto, minificção, dentre outras,
provavelmente porque as obras contêm narrativas de extensão e características formais
variadas.
Escreve Freire, antes do prefácio do livro Os cem menores contos brasileiros do século
(2004), sobre o microconto de Monterroso “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.”:
uma cena fisgada pelas lentes de uma máquina fotográfica. Comparando à poesia, acrescenta:
“...é uma frase ou duas e uma paisagem inteira por trás.” Narra-se o essencial, mas há toda
uma história, ou várias, por trás do dito ou apenas sugerido, a “paisagem”, da qual fala
Moriconi. Sem ela, o microconto não existe. Afirma o autor sobre o livro de Freire: “São
pílulas ficcionais, e das melhores.” Refere-se à rapidez das micronarrativas, que poupa o leitor
de detalhes a favor do ritmo e da concentração, ao denominá-las “pílulas ficcionais”,
remetendo também a algo que se realiza em um só gole. Não são quaisquer pílulas, são “das
melhores”, capazes de divertir e pedir cumplicidade.
poesia mimética ou dramática, a poesia não mimética ou lírica e a poesia mista ou épica”.
Observa que tal distinção foi modificada no livro X, no qual o poeta considera “toda a poesia
como mimética”, abolindo, consequentemente, os gêneros literários, visto que capta a
universalidade e a unicidade artística, “desprezando a arte como poikilia, isto é, como
multiplicidade e diversidade.”
Para Aristóteles (1979) a base de todos os gêneros fundamenta-se na imitação.
Segundo Silva (1973, p. 204), a Poética “constitui a primeira reflexão profunda acerca da
existência e da caracterização dos gêneros literários e ainda hoje permanece como um dos
textos fundamentais sobre a matéria”. No início, podemos ler o seguinte: “Falaremos da Arte
Poética em si e das suas modalidades, do efeito de cada uma delas, do processo de
composição a adotar, se se quiser produzir uma obra bela, e ainda do número e qualidade das
suas partes. ” (apud, SILVA, 1973, p. 204).
As manifestações artísticas imitam as ações, os caracteres e as paixões humanas.
Diferente de Platão, Aristóteles classifica os gêneros de acordo com a forma; os diversos
meios em que cada obra realiza a mimese; os vários objetos da mimese, “incidindo a mimese
sobre pessoas que atuam, e podendo ser pessoas nobres ou ignóbeis, virtuosas ou não
virtuosas, melhores ou piores ..., é óbvio que as composições poéticas diversificar-se-ão
conforme os objetos imitados”; os diversos modos da mimese.
Se a literatura, como as demais artes, é forma, “os gêneros literários são as formas
pelas quais o fenômeno literário toma corpo, existe, comunica-se, tem a sua ordem interna.
Possui unidade e unicidade, e, ao mesmo tempo, totalidade, pluralidade e variedade. É sua
característica também a universalidade” (COUTINHO, 1984, p. 23). Assim, não podemos
negar que, graças à criatividade do escritor, a linguagem se concretiza em formas,
denominadas gêneros literários.
A criação literária, então, não é estática, à medida que se criam novas obras com uma
forma diferente das existentes, cria-se também um novo gênero para classificá-las.
Para Silva (1973, p. 208), “cada um destes grandes gêneros literários se subdividia em
outros gêneros menores, e todos estes gêneros maiores e menores se distinguiam uns dos
outros com rigor e com nitidez, obedecendo cada um deles a um conjunto de regras
particulares”: formais, estilísticas, conteudísticas e obediência às normas do gênero em que a
obra integrava. Assim, os gêneros híbridos, resultantes da mistura de gêneros, como a
tragicomédia, são desvalorizados. Por outro lado, é no classicismo que surgem novos gêneros
literários, rebeldes às normas prescritas nas poéticas, como também pelas novas
características assumidas, algumas vezes, por gêneros tradicionais, a exemplo do poema
76
existência e sua importância para a sociedade atual seria negar toda produtividade ao longo
dos séculos, implantando a teoria do caos. Não saberíamos, metodologicamente falando,
como direcionar o ensino-aprendizagem, por exemplo. Por outro lado, reconhecer a amplitude
alcançada pelo conceito teórico, prático e construtivo de gênero implica enfrentar essa
realidade com a responsabilidade de considerar as dimensões históricas, sociais, estilísticas,
autorais, leitoras, educacionais, etc. Assim, recorreremos principalmente às reflexões de
Bakhtin.
Na introdução de Problemas da poética de Dostoiévski (2002, p. 01), o leitor se depara
com a questão de inovação da forma artística praticada pelo russo. “Estamos convencidos de
que ele criou um tipo inteiramente novo de pensamento artístico, a que chamamos
convencionalmente de tipo polifônico. [...] criou uma espécie de novo modelo artístico do
mundo, no qual muitos momentos basilares da velha forma artística sofreram transformação
radical”. Aqui o autor acena com um novo gênero, confirmado no primeiro capítulo de modo
claro e direto: “Dostoiévski é o criador do romance polifônico. Criou um gênero romanesco
essencialmente novo” (BAKHTIN, 2002, p. 05). Novo, mas não surgido do nada. Para Brait e
Pistore (2012, p. 275), liga-se a uma tradição que “permite estudar qualquer gênero do ponto
de vista diacrônico (os gêneros que o antecederam, aos quais se ligam e ao mesmo tempo
modificam) e sincrônico (características pertencentes aos gêneros antecedentes e, ao mesmo
tempo, as novas características que o definem e diferenciam dos antecessores)”. Bakhtin
(2002, p. 273-274) conclui:
Qualquer gênero novo nada mais faz que complete os velhos, apenas amplia o
círculo de gêneros já existentes. Ora, cada gênero tem seu campo predominante de
existência em relação ao qual é insubstituível. Por isto o surgimento do romance
polifônico não suprime nem limita em absolutamente nada a evolução subsequente e
produtiva das formas monológicas do romance (do romance biográfico, histórico, de
costumes, romance-epopeia etc), pois sempre haverão de perdurar e ampliar-se
campos da existência humana e da natureza que requerem precisamente formas
objetivadas e concludentes... Assim, pois, nenhum gênero artístico novo suprime ou
substitui os velhos. Ao mesmo tempo, porém, cada novo gênero essencial e
importante, uma vez surgido, influencia todo o círculo de gêneros velhos: o novo
gênero torna os velhos..., mais conscientes, fá-los melhor conscientizar os seus
recursos e limitações, ou seja, superar a sua ingenuidade.
gênero textual. Suas características intrínsecas o diferenciam dos existentes, mas a distinção
não o impede de beber em fontes da tradição literária, recriando o já dito com olhar do seu
tempo.
Um aspecto singular considerado por Bakhtin (2002, p. 19) para criação do romance
polifônico é a época.
O domínio dos gêneros literários e não literários organiza e enriquece nosso discurso
escrito e oral, pois o empregamos de forma segura e habilidosa, usando a composição
vocabular e a estrutura gramatical da língua com mais propriedade, liberdade e criatividade.
Segundo Bakhtin (2011, p.285),
O título nos adverte, trata-se de uma paixão. O leitor é surpreendido pela diferença de
idade entre os apaixonados, ela tem 46 anos, ele, apenas 21. Inicialmente, o fato de a mulher
ser mais velha que o homem sinaliza o preconceito existente na sociedade ainda bastante
machista; ao homem muitas coisas são permitidas e endossadas. Dentro das convenções ditas
normais, o homem se relaciona e pode casar com uma mulher bem mais jovem, mas se a
situação se inverte, a mulher muitas vezes é crucificada, como pedófila. Para o leitor mais
atento, a leitura será outra. Perceberá a importância da exclamação “Uau!” dentro da
micronarrativa. Há uma intenção ao usá-la, que serve para exprimir de modo enérgico e
conciso um sentimento de espanto positivo, intensificado. Está implícito, dependendo do
olhar: como ela conseguiu esse rapaz tão jovem ou como ele conseguiu essa mulher tão
experiente? Que poder de sedução é esse? Ensina-me a receita? Na sequência narrativa,
novamente o leitor se surpreende pelas palavras “reviram”, “fula”, “lívido”, significando,
respectivamente, “ver pela segunda vez”, “multidão de gente”, “extremamente pálido”; ou
seja, encontraram-se apaixonadamente apenas uma vez. Entre o primeiro encontro e o
segundo, o tempo. Que histórias viveram neste tempo? Que paisagens, tomando por
empréstimo algumas palavras de Moriconi, estão por trás do microconto? Afinal, “Só se
reviram – fula, lívido -, fúnebres, no aborto.” A razão de se reverem em meio à multidão,
pálido ou seria pálidos, com sentimentos fúnebres, como diante de uma criança morta – fruto
da paixão relâmpago entre ambos -, talvez um aborto espontâneo sofrido pelo personagem
feminino. Outra leitura, menos dramática: quando se viram pela segunda vez, estavam em um
local com muitas pessoas, o fator surpresa os deixaram pálidos, confirmaram que a paixão
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morreu após o primeiro encontro, sofreram uma espécie de aborto, gerando o sentimento
fúnebre.
O segundo microconto é de Cíntia Moscovich (p. 16), sem título:
É composto por apenas dez palavras, mas choca o leitor de tal maneira a ponto de
tirar-lhe o fôlego. O final é impactante, violência sem explicação. Leva-o a pensar na
brevidade da vida. O personagem, de quem não sabemos o sexo, tem “uma vida inteira pela
frente”, provavelmente, trata-se de alguém jovem. O surpreendente acontece: “O tiro veio por
trás.” As perguntas inevitáveis: quem atirou? Por quê? As possibilidades: uma bala (não
perdida) atingiu fatalmente o personagem por trás; alguém sofreu um assalto, não sabemos se
o personagem reagiu ou não, mas ao dar as costas recebeu o tiro; o tiro traiçoeiro que recebeu
foi um acerto de contas por dívidas; ao beber em um bar, ou outro local do tipo, se
desentendeu com um dos companheiros de copo, armado, ou foi buscar sua arma em casa,
atirou no desafeto; o personagem levou o tiro de alguém traído por ele; em uma briga de
casal, um deles estava armado, acidentalmente, a arma disparou quando estava de costas; etc.
Fernando Bonassi (p. 30) é o autor do próximo:
SÓ
O título “Só” sugere ao leitor solidão, o que se confirma ao se ler; um dos grandes
temas característicos da sociedade atual é colocado em primeiro plano. A vivência da solidão
é um fenômeno universal, mas que influências esse personagem sofre, interna e externamente,
ao perceber o sentimento de sentir-se só, com um “controle remoto”, sem saber o que procura.
Não está claro no microconto se a sua solidão se associa à dificuldade de relacionamento, ou
se ele se encontra só, sem saber o que quer. A solidão que beira o isolamento pode interferir
nas amorosas. Será o caso? O aspecto mais significativo do sentir-se só está no seu
correspondente psicológico, isto é, na repercussão dentro da pessoa que é acometida pelo
sentimento de estar sozinha? O que caracteriza a solidão é a consciência do personagem,
acompanhado de um sentimento penoso de carência, de alguém ou de algo? Algumas pessoas
se sentem menos solitárias quando assistem aos seus programas preferidos da tevê, entretanto,
83
não é o caso. Cabe, então, a pergunta: quais histórias estão por trás desse personagem só, cujo
companheiro é um controle remoto?
O quarto microconto é de Flávio Carneiro (p. 31):
DUELOS
Sabemos que “duelos” é um confronto entre duas pessoas. É isso que anuncia o
microconto. Na primeira linha, o confronto se inicia entre dois personagens nomeados pelos
pronomes “eu” e “você”. Normalmente os duelos acontecem entre homens, mas o narrador
omite a informação. O fator surpresa acontece quando o leitor descobre onde o personagem
está “sacando o punhal”: “na sala de espelhos.” A partir desse impacto, o leitor sente uma
espécie de soco no estômago. Temos a revelação, sugerida, de que o personagem fala com a
imagem dele refletida. O pronome “eu” se refere ao personagem que quer um acerto de contas
por meio de um duelo; “você”, ao personagem refletido – a imagem dele mesmo. Uma
possibilidade é que o personagem está louco, incapaz de distinguir entre o real e o imaginário.
Se for o caso, o que levou o personagem a enveredar pelos caminhos obscuros da loucura?
Este microconto pode remeter também a brincadeiras de crianças, quase sempre
meninos com armas de brinquedo, que duelam conscientemente com seres imaginários, com
sombras ou com imagens em espelhos. Pode estar por trás da narrativa a criatividade de
determinadas crianças a partir do seu universo, tais como revistas em quadrinhos, desenhos
animados e filmes compostos por personagens clássicos.
O quinto é de Henrique Schneider (p. 35):
HEROÍSMO INÚTIL
facilmente, bastando usar as pernas. Os questionamentos são muitos. Quem poderia praticar
um ato tão cruel? Por quê? Ninguém presenciou tal fato ou a lei do silêncio predomina?
João Gilberto Noll (p. 40) assina o sexto microconto:
AEROPORTO
O PESADELO DE HOUAISS
Quando acordou,
o dicionário ainda estava lá.
palavra pesadelo no título? Refere-se ao tempo que Houaiss despendeu em sua empreitada de
escrever um dicionário? Ou será por que não conseguiu concluí-lo? Em 1986, Houaiss
iniciou, com Mauro de Salles Villar, aquele que seria o projeto mais ambicioso de sua vida –
o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa -, assumindo o desafio de publicá-lo, concluído
em 2001, dois anos após sua morte. O microconto exige conhecimentos prévios do leitor.
Luiz Roberto Guedes (p. 51) escreveu o oitavo microconto:
BOLETIM DE CARNAVAL
ASSIM:
O advérbio “assim”, título do microconto, é usado para indicar que a seguir se narrará
a micro-história. Um homem “jurou amor eterno” a uma mulher. O amor entre ambos durou
tempo suficiente para que se enchessem de filhos. A eternidade do amor possuía significados
diferentes: possivelmente, para ele é até o amor acabar, para ela, até o fim da vida.
Acreditando nesse amor até a morte, ela tem muitos filhos, entretanto, o inesperado acontece:
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ele some por aí. O leitor, segundo seu conhecimento de mundo, entenderá que a narrativa trata
de um tema corriqueiro. Em nossa sociedade, tais casos acontecem frequentemente. Estamos,
então, diante de um microconto carregado de realismo, de crítica tanto aos homens que
abandonam os filhos quanto às mulheres que engravidam sem medir consequências.
Millôr Fernandes (p. 69) é o autor do décimo microconto que, diferentemente dos
outros, usou o título para detalhar o local e os acontecimentos que culminaram na essência de
sua micronarrativa:
A Surpresa
No meio do filme, sentiu a mão sobre sua perna. Continuou olhando para a tela.
Gostara da surpresa. Ao final do filme, outra surpresa. Era seu marido (p. 40).
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O título é retomado no microconto duas vezes, no caso, o leitor se depara não com “A
Surpresa”, mas com as surpresas. Olhando mais atentamente para o título, percebe-se que o
substantivo é escrito com letra maiúscula. Não afirmamos que a intenção do autor era reunir
em uma única palavra as surpresas dos personagens, entretanto, é uma leitura possível. Por
trás da micronarrativa, há a história de um casal que foi ao cinema separadamente. O que os
levou a tamanho distanciamento? Por que sozinhos? Provavelmente, estão fugindo dos
problemas conjugais, buscando algum tipo de prazer. No escuro, por coincidência, sentaram-
se lado a lado. No meio da sessão, o homem se atreve a colocar sua mão sobre a perna da
mulher ao lado que, talvez movida pela carência tanto quanto ele, continuou olhando para a
tela, concordando implicitamente com o carinho. Fim do filme, as luzes se acendem, a
surpresa é maior: o dono daquela mão era seu marido. Surpreendidos igualmente, como
reagiram após a descoberta?
Na antologia Contos de bolso (2005) nos deparamos com microcontos de diversos
autores, em sua maioria do Rio Grande do Sul, iniciando por Luis Fernando Verissimo,
passando por Laís Chaffe, Marcelo Spalding, Marô Barbieri, Valesca de Assis, dentre outros.
Como exemplo, um de Spalding (p. 104):
Vítima
Por telefone
O título aponta para uma conversa por telefone que se confirma ao ler o microtexto.
No primeiro parágrafo, o personagem, que fez a ligação, pergunta a quem está do outro lado
da linha se acredita em duendes, iniciando o jogo intertextual com criaturas mitológicas,
semelhantes a anõezinhos da cor verde, que aparecem em histórias do folclore. Esses
pequenos seres povoam o imaginário de muitas crianças por meio de histórias contadas ou
lidas, vestindo-se, inclusive, como eles. Inicialmente, o leitor é levado a pensar que se trata de
uma conversa entre crianças, reforçado pelo parágrafo seguinte quando a pessoa que ligou
afirma que atropelou um na semana passada. Não sabemos como o duende foi atropelado: por
um carro, uma bicicleta, um triciclo, um velotrol etc. O terceiro e último parágrafo detona
como uma carga de dinamite o que o leitor imaginou. Pela fala da pessoa do outro lado da
linha, “- Era meu filho.”, o impacto é inevitável e revelador: não se trata da imaginação de
uma criança, mas de uma conversa entre adultos, que mantêm alto grau de amizade, a ponto
de quem telefonou, confidenciar sua crença em duendes e o atropelamento de um deles. Para
sua surpresa, o duende era o filho de quem ouvia o segredo. Que danos o personagem sofreu
ao ser atropelado? Depois da conversa telefônica, qual a atitude do pai?
Leonardo Brasiliense ganhou o prêmio Jabuti, melhor livro juvenil 2007, com Adeus
conto de fadas: minicontos juvenis (2006). Apesar da nomenclatura “minicontos”, há também
microcontos, como:
Genética?
Na separação, meu pai dizia à minha mãe que ela não prestava; minha mãe dizia ao
meu pai que ele não prestava. E eu ficava ouvindo e pensando: “puxei” a quem?
(BRASILIENSE, p. 78)
vida’, conduz o leitor a um questionamento maior: a guerra que muitos casais travam depois
da separação, esquecendo-se de que há entre eles os filhos, inocentes das causas que
culminaram na separação.
Laís Chaffe organizou a antologia Contos de bolsa (2006), composta por quarenta
escritores gaúchos (natos ou adotivos), convidados a exercitarem a arte dos minicontos,
entretanto, muitos escreveram histórias tão concisas que as chamamos de microcontos, como
o de Ivette Brandalise (p. 54):
Solidariedade
Ao ler o título, provavelmente, o leitor o tomará como pena das dificuldades ou dos
sofrimentos de outras pessoas, na identificação com as misérias alheias. A demonstração ou a
manifestação desse sentimento com o propósito de ajudar, amparar, apoiar, cuidar etc. O
narrador apresenta, logo no início, as características do personagem, não se trata de uma
menina qualquer, mas de “a menina esfarrapada”, o artigo definido faz toda diferença,
significando que é conhecida, não sabemos se pela vestimenta “esfarrapada” ou por ser vista
sempre no mesmo local. Na sequência, pratica a ação de avançar, tanto no sentido de ‘ir para
diante, caminhar em direção a’ ou pejorativamente ‘avançar em alguém’. O valor do verbo é
descartado pelo fato de que estava “vendendo canetas”, no caso, conclui-se que o sentido é de
apressar, andar rápido. No segundo período, o leitor se depara coma “a mulher assustada”,
mais uma vez o artigo aparece. Se, no primeiro período, o narrador afirma que “a menina
esfarrapada avançou vendendo canetas (“A pequena vendedora de fósforos”), o leitor
concluirá que a menina avançou em direção “a mulher assustada”, logo o artigo determina a
mulher que, na visão da menina é uma provável cliente. A ação da mulher mostrou medo,
repulsa, repugnância, nojo etc, pois “trancou as portas do carro”. Inicialmente, o leitor aceita o
sentimento de medo, afinal ela estava assustada. Assim, a atitude de trancar as portas foi uma
precaução, considerando os assaltos praticados por menores no trânsito. Por outro lado, a
aparência da menina é de quem necessita de solidariedade, o que não encontrou. O impacto
acontece no fim da microconto: “No vidro, o adesivo: Salvem as baleias.” O leitor não ficará
imune a questionamentos: que tipo de solidariedade há na mulher? As baleias valem mais que
o ser humano, que uma criança roubada de sua infância, escravizada? A mulher já sofreu para
agir assim? O leitor ainda poderá questionar: por que o autor preferiu para seu microconto
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Falsário
O homem delicado
Cinema mudo
como ficou conhecido o estudante de medicina Mateus da Costa Meira, que em novembro de
1999, no meio de uma sessão de Clube da Luta (1999), num cinema do Morumbi Shopping,
em São Paulo, levantou uma submetralhadora e começou a atirar na direção da tela e depois
na da plateia, matando e ferindo pessoas. O significado de “Cinema mudo” soa como ironia,
diante dos disparos sucessivos e ensurdecedores do homem contra a multidão. O período
seguinte não é menos impactante; em meio aos gritos e ao tumulto causados pelos tiros, “uma
das balas atinge a criança ao meu lado, matando-o no mesmo instante.” O “mudo” às avessas
grita de medo, pavor, temor, dor; mas também se cala e faz calar a criança nos braços da
morte. O nocaute acontece no último período: no momento em que toda a tragédia acontece,
na tela, “Chaplin discursa pela paz...”. Um diálogo intertextual com o ator do “Cinema mudo”
e com O Grande Ditador (1940), o primeiro falado de Chaplin, no qual faz um coquetel dos
gêneros comédia, tragédia e drama, desmascarando e denunciando o nazismo (aparentemente
um filme cômico, uma paródia de Hitler), como também criticando duramente a Primeira
Guerra Mundial. No final, o barbeiro faz um discurso de forte carga moral pela paz, ao
defender a democracia, a liberdade e os valores humanos de solidariedade e igualdade. O
discurso, aos olhos do telespectador, não é nem do barbeiro judeu, nem do ditador Hynkel,
mas do próprio Chaplin, de acordo com o narrado no microconto. O leitor, atônito com a
leitura do microconto, perceberá que as histórias por trás das histórias contadas e sugeridas
ganham infinitude, ou seja, exige-se um leitor ativo, com vasto conhecimento de mundo, de
história, de cultura e de literatura para alcançar a riqueza da microtrama. Além do
mencionado, há encobrimentos capazes de suscitar diversas interrogações: o que levou aquele
homem a cometer tamanha atrocidade? Seria ele um esquizofrênico ou um monstro? Como
planejou tudo? Por que escolheu um cinema, onde passa O Grande Ditador, para descarregar
sua crueldade? Por que esperou o momento em que Chaplin discursava pela paz para atirar? O
que as reticências no final do microconto indicam: interrupção do pensamento devido à carga
emocional tratada, ideia que ficou por terminar porque o narrador não quis ou não teve tempo
por ser uma das vítimas ou omissão de algo retratado por conta do leitor?
Dois palitos (2007, s.p.), de Samir Mesquita, é um microlivro, com cinquenta
microcontos de até cinquenta caracteres, sem contar o título. Semelhante a uma caixa de
fósforo, inclusive graficamente. No blog do autor, há uma versão digital. Podemos clicar na
caixa de microcontos que se abre contendo diversos palitos; ao clicarmos duas vezes em um
deles, o palito salta, localizando-se ao lado da caixa; no lugar dos “fósforos” aparece um
microconto; enquanto o palito queima, temos que ler o microconto e, assim, sucessivamente:
94
Quase Ulisses
Havia um quê de vingança no olhar que ele dirigiu a Maria antes de fechar a porta:
- Não me espere para o jantar, Penélope.
O título deixa o leitor curioso. Ulisses, também Odisseu, é o herói grego da Odisseia,
de Homero, que narra as suas aventuras, em sua volta para Ítaca, após a guerra de Troia.
Telêmaco, filho de Ulisses e Penélope, era ainda criança quando o pai partiu para Troia. A fiel
esposa de Ulisses esperou vinte longos anos, resistindo às investidas dos que pretendiam
conquistá-la e se apossarem do trono. Todos o consideravam morto, menos ela e seu filho.
Para despistá-los, Penélope disse que só se casaria de novo quando o manto que tecia para o
sogro ficasse pronto, mas o que tecia de dia desmanchava à noite, de modo que o trabalho
nunca terminava. O “quase Ulisses” tinha, provavelmente, como esposa Maria, a quem dirigiu
um olhar vingativo, antes de fechar a porta lhe disse: “- Não me espere para o jantar,
Penélope”. Há um emaranhado de histórias. Não se sabe o que Maria fez para deixar o
personagem masculino com “um quê de vingança no olhar”. Ao chamá-la de Penélope, sua
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intenção é irônica, é o avesso da esposa de Ulisses? Qual o drama do casal? Qual a guerra
interna do personagem? Quanto tempo durará? Tenciona voltar?
Joanna Ester Bonorino, em Canoas cult: poemas e microcontos (2009, p. 73), abre a
segunda parte do livro com microcontos:
Contrastes
Ao ler na íntegra, o leitor entenderá o significado do título: trevas e luz que dialoga
com a Bíblia, especificamente com a fala de Jesus ao povo: “… Eu sou a luz do mundo; quem
me segue não andará nas trevas; pelo contrário, terá a luz da vida” (João 8.12.). O microconto
é, a princípio, um jogo intertextual, mostrando a necessidade da “Luz” para a verdade, a fim
de sairmos das trevas, ou seja, do erro e da ignorância. Do mesmo modo como os olhos
precisam do sol para enxergar, assim também a nossa inteligência só vê a verdade se
iluminada que advém tanto da razão quanto da fé. Qual a “Luz” do personagem, do qual não
sabemos sequer o sexo? “Fariseu” deriva de um vocábulo hebraico que significa ‘separado’.
Denomina um grupo de judeus apegados à Torá, o livro sagrado dos judeus (Jo 3.1; Mt 22.34-
40). Jesus os considerava condutores cegos e falsos guias (Lc 11.37-44). Insultaram-no
repetidas vezes, pois não toleravam vê-lo realizando milagres no sábado (Lc 6.7; Mt 12.1-8;
Jo 9.13-16). Instigavam, agiam com hipocrisia e ostentação. A piedade de muitos não passava
de orgulho e fingimento (Mt 23.1-12). Considerando tais versículos bíblicos, o leitor do
microconto, entenderá que o personagem “se livrou” do que pregavam os “fariseus” e passou
a seguir os ensinamentos de Jesus, assim, “pode ver a Luz do mundo”. Em sentido mais
amplo, libertou-se. Modernamente, fariseu também significa pessoa hipócrita, que vive de
aparências, fingida, que gosta de aparecer, prega uma coisa e faz outra. Então, de quais
“fariseus” o personagem “se livrou” para “ver a Luz do mundo”? O que significa “ver a Luz
do mundo”? Que histórias há por trás o narrado?
Batendo ponto: uma colherada de humor na hora do cafezinho (2013), organizado por
Nanete Neves, é um livro composto de narrativas muito curtas e curtíssimas. Nelson de
Oliveira e Nanete Neves chamaram as suas narrativas de minicontos; Marcelino Freire, de
microcontos, caracterizando bem a hiperbrevidade de todos. Ficamos com Freire (p.101):
Não sabemos quem procurava os “discos de vinil” e quem esperava para entrar. Talvez
seja um homem que “assoviou feliz e vigorosamente”. Considerando tal hipótese, a pessoa
que espera é uma mulher. O Long Play (LP), como também se chamava o vinil, foi difundido
no início da década de cinquenta para reprodução. As informações registradas só podiam ser
lidas e transformadas em sons por meio do toca disco. A partir das sugestões do microconto,
conclui-se que os personagens são da terceira idade. A oração “como se estivesse em busca da
porta do passado” sugere retorno ao vivido em tempo remoto. A “porta do passado” possui
sentido dúbio, referindo-se tanto aos “discos de vinil” quanto ao sentimento compartilhado,
inclusive musical, como quem espera a porta abrir. O diálogo com o passado também se dá
por “porta do passado” e “Porta aberta” - é o momento em que os personagens se encontrarão
para reviver momentos marcantes embalados pelo som de um “disco de vinil”.
O livro de Paulo Lima, Abre alas, microcontos carnavalescos (2014, p.43), faz jus ao
título:
49
- Abre alas que quero passar. Ia falando a morena, toda zombeteira. Não faltaram
mãos.
97
Ó abre alas é o nome e um dos refrãos da música composta em 1899 por Chiquinha
Gonzaga (1847-1935), considerada a primeira marchinha do carnaval brasileiro. O início do
microconto dialoga diretamente com a composição, feita para o cordão Rosa de Ouro, o que
se confirma na letra: Ó abre alas / Que eu quero passar / Ó abre alas / Que eu quero passar /
Eu sou da lira / Não posso negar / Eu sou da lira / Não posso negar / Ó abre alas / Que eu
quero passar / Ó abre alas / Que eu quero passar / Rosa de Ouro /É que vai ganhar / Rosa de
Ouro / É que vai ganhar... Só em 1939, quando a jornalista Mariza Lira preparava a primeira
biografia da compositora, Ó abre alas foi publicada na íntegra. Por décadas, a marchinha foi
gravada, ora arranjada ou enxertada, por diversos cantores, tornando-se símbolo do carnaval
carioca. “A morena”, afrodescendente, símbolo do carnaval brasileiro, “ia falando” a
marchinha “toda zombeteira”, ou seja, em tom de brincadeira, divertindo-se e usando os
primeiros versos para pedir passagem. O carnaval transforma pobres em ricos, donas de casa
em prostitutas, machões em travestis, ateus em padres, trabalhadores em preguiçosos etc. Nos
quatro dias de folia, o que vale é a diversão. O prefeito entrega a chave da cidade para o Rei
Momo. A folia desmedida gera, muitas vezes, falta de respeito, como no caso da “morena”,
que “não faltaram mãos”. Como o personagem estava vestida quando puseram as mãos em
seu corpo? Que parte do corpo recebeu tais toques? Como a “morena” reagiu? O narrador
critica tais comportamentos ou constata o que acontece durante o carnaval?
Segundo Luiz Ruffato, escritor do prefácio de Afagos (2015, p. 203), de José Rufino, o
livro reúne cento e dois textos chamados de microcontos. Ruffato compara as micro-histórias
a “um pássaro flagrado em pleno voo: desconhecemos de onde ele partiu e não conheceremos
jamais sua destinação, mas, sabemos, houve um antes e haverá um depois...”. Como exemplo:
Arrependimento
Não esperava aquela recepção tão fria. É certo que, depois de tudo, não esperava
beijos e abraços fraternos, mas queria pelo menos a ternura dos filhos.
filhos durante esse período, passaram por problemas psicológicos e privação de alimentos? E
a mãe, sequer mencionada, o que sofreu, qual sua participação nesta micro-história? O que há
por trás de tudo? Depois do retorno, como se desenrolará a história? O microconto de Rufino
dialoga com o drama cotidiano, caminho seguido por diversos microcontistas.
Ele, um astro. Ela, uma estrela. Filmavam uma cena romântica, quando rolou um
beijo. Entraram em órbita.
O profissionalismo foi para o espaço.
compromete suas carreiras? Foi para o “espaço” apenas a cena que filmavam, visto que não
valeu? O que realmente aconteceu com o “astro” e a “estrela” durante e depois das filmagens?
No Microcontos da Zezé, Zezé Pina escreve microcontos de até cento e cinquenta
caracteres e indica links de outros autores. Da autora:
ARCO-ÍRIS
O velho duende não achou seu pote de ouro. Percebeu que fora enganado, não lhe
restou alternativa: roubou as cores do arco-íris.
Escorregando pelo corrimão das escadas ou arrastando-se por baixo dos móveis da
sala, aquele moleque era mesmo um zero zero sete!
O microconto dialoga com o espião mais famoso da história: 007. Estreou nos cinemas
em 1962, em adaptação de um personagem do escritor Ian Fleming. Charmoso, inteligente,
corajoso e conquistador, Bond se tornou um personagem clássico dos filmes de ação. No
microconto, Seabra descreve ações praticadas por um “moleque” que se assemelha ao
personagem. O leitor, provavelmente, se pergunta: o que há por trás do dito? Trata-se de uma
criança hiperativa? O que imagina ao praticar essas ações? Imita algum personagem de
histórias lidas, como o Recruta Zero ou de filmes e desenhos, a que assistira? E os pais, como
lidam com as brincadeiras do “moleque”: reprimem ou não? Na escola, ele encarna o “zero
101
zero sete”? É possível que exista um leque de microhistórias a partir do sugerido sobre esse
“moleque”.
Em Penates, encontramos microcontos e outros escritos de Tiago Fidelis Moralles,
além de links de temas diversos. Escolhemos o microconto # 22:
INCERTEZAS
Incertezas fazem parte da vida humana. Quais as do personagem que nem sabemos o
sexo e a idade? Na pré-adolescência e na adolescência, os jovens passam por um turbilhão de
modificações: físicas, emocionais, comportamentais etc, gerando incertezas. Na fase adulta,
são de outra ordem, mas não nos deixam. Afinal, qual a graça em tudo certo e acabado, sem o
prazer da descoberta? O personagem “descobriu que poder é informação”. Na era tecnológica
da informação e da comunicação, tem razão. Onde buscá-la? A internet é um dos caminhos,
mas deixa o leitor impactado: buscou por “inquisição”. Por que o interesse pelo tema? Por que
o jogo intertextual com a “inquisição”? Será o personagem judeu? Provavelmente, o
microconto busca levar o leitor à reflexão sobre o “poder” da Igreja Católica, que criou uma
espécie de tribunal para condená-los. O ‘Santo Ofício da Inquisição’ mandou para a fogueira
milhares de pessoas, consideradas hereges.
Em os Primeiros Mil Microcontos há mais de mil microcontos de diversos autores,
com o limite de até cento e cinquenta caracteres, com a curadoria de Jarbas Novelino Barato,
que também posta os seus, além de links para acessar microcontos de outros autores.
Selecionamos o de número setecentos e setenta e um, de Zé Kuller:
Findou a tradução do velho texto em aramaico. Viu imagens ancestrais e o fim dos
séculos. Extasiado, perto da compreensão de tudo, enlouqueceu.
personagem o prepara para o desfecho dramático. Enfim, o que o deixou em estado de êxtase?
Estava prestes a compreender tudo o quê?
Em Pedaços de mim, Eugênia Tabosa diz que tomou conhecimento do gênero
minimalista recentemente, por Carlos Seabra, que a incentivou a explorar essa forma de ‘um
caso’ com começo, meio e fim em apenas cento e cinquenta caracteres, limite de uma
mensagem de texto via celular. Foi um desafio interessante, segundo a autora. Além dos
microcontos postados, há indicações de links para outros sites e blogs de Tabosa e de vários
escritores em que navega. Dentre os microcontos de Tabosa, selecionamos:
Abriu as janelas, retirou os panos que cobriam o espelho, sentou-se ao piano jogando
o cabelo para trás e tocou um alegro ma nom tropo.
A oração “sentou-se ao piano jogando o cabelo para trás” intensifica o que vem
sugerido antes pelas ações do personagem, provavelmente, feminino. Um ser misterioso.
Ignora-se a razão desse movimento. Chegou de viagem, de mudança ou acordou para a vida?
A intertextualidade é com Allegro ma non troppo (rápido/alegre, mas não muito), nome de um
andamento para indicar ao músico a execução. O movimento “allegro” apresenta pulsação
rápida e expressão leve e alegre. Diversas sonatas, sinfonias e concertos mostram esses
movimentos. No caso, o personagem tem um gosto musical refinado, provavelmente, gosta da
nona sinfonia de Beethoven: Allegro ma non troppo, un poco maestoso. Os movimentos do
personagem em sintonia com a música sugerem que é contido em sua alegria. Por que o
sentimento controlado? Quem é o personagem misterioso? Será descendente de italiano ou
brasileiro – visto que no microconto o andamento musical está escrito errado “alegro ma nom
tropo”? O que há ainda por trás do dito? Talvez tenha lido o livro Allegro ma non troppo
(1988), de Cipolla, composto de dois ensaios humorísticos, que parodiam as técnicas
metodológicas da análise humanística e da historiografia. Há outra possibilidade: o
personagem assistiu à peça cômica, de Labaki (1996), de nome igual ao andamento musical,
que conta a história de uma prostituta que sonha em ser cantora? Os mistérios do personagem
são muitos, as histórias também.
Na página “Micro Contos” no Facebook, de Fernando Guerreiro, encontramos um
leque de microcontos, do qual selecionamos:
Na escola atual, cada vez mais necessita-se de um trabalho criativo com a leitura.
Interpretar textos é uma exigência da sociedade e do mercado. Os alunos estão chegando e
saindo do 9º ano do Ensino Fundamental com imensas dificuldades de leitura e de
interpretação, o que se torna mais evidente quando se constata que as aulas de língua
portuguesa ainda privilegiam o ensino da gramática. A abordagem do texto literário em sala
de aula, geralmente, dá-se somente com o modelo proposto pelo material de referência
utilizado (livro didático ou cadernos pedagógicos elaborados pela Secretaria Municipal de
Educação do Estado do Rio de Janeiro – SME/RJ). Em nosso trabalho, tratamos
especificamente das escolas do Município do Rio de Janeiro, entretanto, é uma realidade da
maioria das instituições públicas do Brasil.
Apesar de a SME/RJ ter elaborado um projeto pedagógico para que o aluno leia um
livro por bimestre, com a finalidade de produzir um texto, segundo os critérios e gêneros
indicados, cremos que tal projeto não é suficiente para o aluno interagir com o texto e
perceber as possibilidades de (re)conhecimento do mundo que propõe. Segundo Machado
(2002, p. 14), Monteiro Lobato “dizia que obrigar alguém a ler um livro, mesmo que seja
pelas melhores razões do mundo, só serve para vacinar o sujeito para sempre contra a leitura”.
Assim, trabalhar com microconto torna-se uma opção interessante e adequada ao aluno de
hoje, imerso no mundo tecnológico da comunicação e da informação. O ensino da leitura e da
escrita, evidentemente, não se limita ao microconto, mas com certeza contribuirá para a
apropriação das práticas da linguagem e não só aprendizagem do gênero por ele mesmo, com
as reflexões e as produções que surgirão. É mais um estímulo, como também da gramática no
texto. O estudante compreenderá porque usar esta ou aquela palavra para expressar muito em
poucos caracteres, escolhendo-a e organizando-a com o poder da concisão, da brevidade, da
rapidez, mas considerando o todo.
O ensino de língua portuguesa objetiva o domínio do idioma para ler, escrever e falar
adequadamente. A tríade leitura-escritura-fala desenvolverá a capacidade de uso da língua
como instrumento de comunicação nas diversas esferas sociais. A leitura de microcontos
estimulará a leitura apreciativa, a reflexiva e, paulatinamente, o cultivo do gosto pelo gênero.
O texto literário tem uma linguagem específica, mas, devido ao pouco contato, os
alunos apresentam dificuldades de compreensão. Tal fato simplesmente reflete a falta de
conhecimento das especificidades do texto literário e revela a abordagem tradicional e
105
O texto literário tem... lugar privilegiado, pois possibilita a fruição que habilita o
leitor para exercer o direito de escolha do que lerá, lendo como uma experiência
individual, subjetiva e mesmo afetiva. É também capaz de aproximar pessoas,
formando comunidades de sentidos que compartilhem preferências e interesses
comuns. Sua leitura consolida a cidadania, pois a linguagem literária é forma de
expressar consciência de si e do outro, ao mesmo tempo limite, espelho e aliado.
O livro ganha vida quando alguém o lê. Não adiantam estantes recheadas, mas
inacessíveis. Uma escola com vistosa biblioteca ou sala de leitura repleta de volumes se os
professores não promoverem o incentivo à leitura, o acesso a eles. É imprescindível que sejam
leitores, contem histórias e criem projetos capazes de contribuir para a formação crítica.
Machado (2002, p. 09), com linguagem simples, discorre sobre seu trajeto de leitora,
mostrando-se, desde cedo, curiosa e disposta a aventurar-se por novos mundos de narrativas
instigantes, principalmente dos clássicos pelo seu caráter atemporal. Narra como foi seu
primeiro encontro com Dom Quixote: “[...] Não sei, há coisas que a memória da gente não
guarda. Mas nunca vou esquecer as aventuras de Dom Quixote que meu pai foi me contando
aos poucos, com suas próprias palavras, enquanto me mostrava as ilustrações”. Não
pretendemos que se iniciem as leituras por obras densas. Há na literatura brasileira escritores
geniais, como Monteiro Lobato, mas no mundo tecnológico da informação e da comunicação,
os microcontos se apresentam como campo fértil e atraente de leitura, principalmente os
intertextuais, por provocar no aluno a curiosidade a respeito da obra ou do autor citado.
Hoje a realidade das crianças e adolescentes é outra, a rapidez da informação e da
comunicação impõe as regras, entretanto, é possível manter um diálogo entre as histórias orais
contadas de pais para filhos, os gêneros textuais e literários, incluindo o microconto.
Oferecidos às crianças desde, cedo os microcontos se mostram capazes de marcá-las. Dessa
forma, o prazer pela leitura, inclusive de textos maiores, poderá germinar e frutificar.
Quando lemos, viajamos por lugares distantes, no tempo e no espaço; é o gosto pelo
desconhecido, pelo conhecimento do outro, pela exploração da diversidade humana. Pela
106
leitura nos transportamos, vivemos outras vidas com experiências diferentes. Ao lermos,
descobrimos personagens e sentimentos que, muitas vezes, são tão próximos, que nos
refletimos. Entendemos melhor o sentido das próprias experiências e do mundo que nos cerca.
Outro prazer que encontramos, inclusive nos microcontos, é a decifração, a exploração
daquilo tão novo e complicado que, com obstáculos, atrai, tentando ao mesmo tempo
conquistar, vencer as dificuldades da leitura, preencher as elipses e compreender o jogo
instigante proposto, ou seja, instala-se, a interação autor-texto-leitor com propósitos
constituídos sócio-cognitivo-interacionalmente.
Para Koch e Elias (2008, p. 11),
Não só os PCN, como também as Leis de Diretrizes e Bases (LDB) vigentes apontam
para uma concepção de leitura e ensino de literatura para o Ensino Fundamental pautada na
formação do cidadão leitor. Espera-se que o professor crie propostas que cativem seus alunos,
capazes de envolvê-los para que se deliciem com uma boa história sem compromisso com
provas e testes.
Segundo Koch e Elias (2008, p. 48-54), para o processamento textual, o leitor recorre
a três sistemas: o linguístico, que abrange o conhecimento gramatical e lexical, ou seja, a
partir desse sistema compreendemos a organização do material linguístico na superfície
textual, o uso dos meios coesivos para efetuar a remissão ou sequenciação textual, a seleção
lexical adequada ao tema ou aos modelos cognitivos ativados; o enciclopédico ou
108
Quem lê, desenvolve o senso crítico e melhora a escrita, como também a capacidade
de argumentação e comunicação. É imprescindível que o convívio com os livros extrapole o
desenvolvimento sistemático da escolarização e que, no caso, o microconto ocupe seu lugar.
Ao longo dos últimos anos, a escola se preocupou em formar o indivíduo crítico,
responsável e atuante na sociedade, entretanto, é uma meta que ainda não atingiu. A prova é,
segundo Abreu (2011, p. 257),
Vivemos em uma sociedade onde as trocas sociais acontecem rapidamente, por meio
da leitura impressa e digital, da escrita, da linguagem oral ou visual. No contexto, trabalhar o
gênero microconto é uma opção capaz de colaborar para a prática da leitura e da escrita. Este
gênero convida o leitor a refletir sobre o escrito e/ou apenas sugerido; ensina-lhe o poder da
concisão que se obtém na escolha de cada palavra, dispensando-se, por exemplo, adjetivos e
advérbios desnecessários.
109
Cabe ao professor facilitar este tipo de leitura, requerendo participação mais ativa do
leitor. O aluno deve perceber a funcionalidade e a arte do texto literário, e entrar no universo
da verossimilhança.
A literatura se situa num complexo histórico-social, reatualizando continuamente, no
momento de criação do texto pelo autor ou nas diferentes recriações estabelecidas pelos
leitores, situados em diferentes momentos no tempo. Como consequência da interação, o
espaço da literatura se torna o diálogo entre os sujeitos.
Lajolo (2004) ressalta a importância de lermos romances brasileiros, inclusive pelos
aspectos culturais e para nos divertirmos com as histórias narradas, compartilhá-los com os
amigos e recomendá-los, mas sobretudo discutir, refletir. Apropriamo-nos destas sugestões e
repetimos com os microcontos.
Hoje já não são somente os recursos da natureza e financeiros fontes de poder.
Informação e conhecimento aparecem como peças fundamentais na organização das
sociedades. Dessa forma, devemos considerar o impacto das tecnologias da informação e da
comunicação no planejamento pedagógico. A internet, com sua expansão rápida, marcou
definitivamente a humanidade, com consequências, a proficiência leitora e escritora do aluno.
110
“pedaços da vida”, impacto etc, fiz uma roda de leitura com duas aulas de cinquenta minutos
para cada obra.
Apresentei aos alunos a obra organizada por Marcelino Freire (2004). Pedi para
observarem o tamanho do livro, a cor predominante, o título - a disposição gráfica, e tudo que
se encontrasse na capa. Houve questionamentos sobre a importância de esse olhar, mas
acataram, em tom de brincadeira. Alguns afirmaram que ele era pequeno porque,
provavelmente, as histórias também seriam. Sobre a cor, a maioria, disse que o vermelho
chama atenção para comprar. Para nossa surpresa, um dos alunos questionou: “professora, o
vermelho se refere ao pau-brasil, não é?” Realmente, é uma possibilidade. A madeira dessa
árvore apresenta, no seu interior, uma intensa cor vermelha, devido à presença da bazilina,
uma substância que servia aos portugueses de luxuoso material para tingimento de tecidos, a
primeira atividade econômica empreendida pelos colonizadores. Não sabemos o que levou o
organizador ou o editor a escolher tal cor, mas a referência ao pau-brasil, sem descartar a
outra hipótese, é significativa. Cria-se, a partir dessa referência, um diálogo entre o passado, a
colonização portuguesa e o presente, Os cem menores contos brasileiros do século,
acrescentaríamos, XXI. No título, observaram que se assemelha a um quebra-cabeça. Apesar
da ordem em que se encontram os pedaços das palavras, exceto o artigo “os”, é possível
depreender uma referência ao microconto, mais especificamente ao que alguns autores
consideram “pedaços da vida”. Observaram também que na capa há os nomes dos
participantes, do organizador, da editora, da coleção, o número da edição etc. Não consta do
título a palavra microcontos, mas ao olharmos o verso da capa, a encontramos na parte final.
Enfim, perceberam que a capa explica o conteúdo.
Na sequência, solicitei que observassem os dados catalográficos, sua organização e se
constava do mesmo a palavra “microcontos”. Localizaram em “Índices para catálogo
sistemático: 1. Microcontos: Literatura brasileira”. Confirma-se, então, que a antologia de
Freire é composta por microcontos e, mais, que são Literatura (brasileira, com inicial
minúscula). A cada passo, o interesse dos alunos pela leitura dos microcontos aumentava.
Como compartilho do fato de que o professor deve mostrar aos alunos que também é
leitor, li o texto de Freire sobre a antologia:
resultado aqui está. Se “conto vence por nocaute”, como dizia Cortázar, então toma
lá.
MARCELINO FREIRE
que há “uma paisagem inteira por trás”. Compararam “pílulas ficcionais” ao tempo de engolir
um comprimido. Entenderam que a qualidade de uma história não se relaciona a sua extensão.
Moriconi afirma: “São pílulas ficcionais, e das melhores”.
Iniciei a leitura com o microconto de Antônio Carlos Secchin (p. 08), a fim de que
percebessem a intertextualidade:
FIM DE PAPO
A maioria conhecia alguma versão de As Mil e Uma Noites, portanto, entenderam que
Secchin deu outro rumo à narrativa. A partir do título, o narrador, valendo-se de linguagem
informal, afirma “Fim de papo”. Confirmando o que anunciou, dá ao microconto um final
impactante: “Sherazade degolou o sultão”.
Com essa leitura, lembrei-lhes que a intertextualidade acontece quando, em um texto,
há referência a outro ou outros, dialogando. Não me aprofundei, pois já o fizera
anteriormente. No momento, minha intenção era perceberem que também poderiam lançar
mão desse recurso para escreverem microcontos etc.
Os microcontos seguintes foram lidos pelos alunos.
Prosseguimos com Arthur Nestrovski (p. 11):
OUTRA VIAGEM
PACIÊNCIA
Um dos alunos comenta, com razão, que “Jó” é um nome que consta na Bíblia. A
intertextualidade permitiu saber que o personagem principal é masculino. Ganhou destaque a
questão sobre a demora (do governo, implícito) na construção de “ 1 passarela”: “professora,
114
o texto não conta, mas os três atropelados eram filhos de Jó, ainda bem que ele tem mais
cinco. Imagine quantos pais perderam todos os filhos atropelados! O narrador esconde muita
coisa, né professora? É aquilo que a senhora sempre fala, está implícito. Precisa morrer um
monte de gente para o governo fazer uma passarela? Absurdo, haja paciência!”. A indignação
era geral. Cada um criava por trás do microconto uma paisagem mais dramática. Para mim, o
debate do microconto foi ótimo. Os alunos se posicionaram, defenderam seus pontos de vista,
refletiram criticamente, perceberam o apenas sugerido, a intertextualidade, os implícitos, as
histórias por trás do microconto.
Com a curiosidade bastante aguçada pelo prazer da leitura, disponibilizei o meu livro
para quem desejasse ler ou anotar a referência para comprar. Partimos para o segundo livro
Expresso 600: 61 microcontos, vários autores (2006), organizado por Edson Rossatto.
Escolhi essa antologia para que os alunos percebessem que não há uma extensão rígida para
as obras impressas.
Pedi aos alunos que observassem a capa e comentassem, mas não pontuei nenhum
aspecto. Questionaram, na frente da capa, a foto de uma xícara de café da cor branca, com
café, escrito nela “ExpressO / ♦ 600 ♦”. Queriam saber o porquê da palavra “expresso” estar
com a vogal inicial e final em maiúsculas, como também o sentido do numeral “600” e da
xícara com café. Não chegaram a nenhuma conclusão. No pires branco, escrito “Organização:
Edson Rossatto”. Embaixo do pires, guardanapos brancos com as seguintes informações,
aparentemente, com caneta azul: “61 Microcontos / Vários Autores, e o nome e símbolo da
editora da cor do café. Notaram que os outros escritos também eram cor de café.
No verso da capa, há uma foto de um saco de algodão, bem trabalhado, sobre a
“mesa”, do qual jorram grãos de café que se espalham.
ÍCARO
Fazia voltas no céu, a sensação de voar era incrível! Tocava as nuvens, as aves, o
Sol... Sobrevoava as montanhas verdes e o mar azul. Podia ver tudo: a praia e os
banhistas, os edifícios e suas janelas, a rodovia e o carro destruído com o seu
cadáver preso às ferragens.
116
FALSÁRIO
FUTURO
Seu casamento era perfeito. O marido era presente e atencioso. Diziam que era um
verdadeiro gentleman. Os filhos, ahhhhhh!, os filhos, tão desejados e planejados,
eram estudiosos, carinhosos, inteligentes. A casa era um brinco. O jantar? Nossa!
Sempre em família. O que mais poderia desejar essa mulher tão afortunada que,
além de ter tido o casamento arranjado pelos pais na infância, é monitorada, via
satélite, por um chip instalado em sua medula desde o nascimento? (ROSSATTO,
2006, p. 93).
Adolescência
Escolhi esse microconto para chamar a atenção dos alunos, especialmente das alunas,
para a importância da prevenção na relação sexual. A primeira impressão foi de impacto.
Compreenderam facilmente a essência da micronarrativa. Comentaram sobre colegas que
engravidaram muito cedo, deixando de estudar para cuidar da(do) “boneca(o) que chora de
fome”. Citaram o caso de uma colega que optou pelo aborto. Por medo dos pais e também por
vergonha, decidiu usar chás e outras substância abortivas, com resultados desastrosos.
Como não se pronunciaram diretamente a respeito da história ou histórias por trás da
narrativa, questionei-os. “Professora, há uma infinidade de histórias escondidas aí. Na minha
comunidade isso é normal, até as mães fazem...”, disse-me com propriedade. Outra, “mas nem
pensar! Sou evangélica, minha religião não permite, nem minha mãe.” Sugeri pesquisas na
internet sobre casos de gravidez na adolescência, focalizando os casos dramáticos e os de
superação.
O próximo microconto não tem título:
Sujeito na condicional
E se eu fizesse...
119
E se eu fosse...
E se eu...
E se...
Viveu na hipótese (MESQUITA, 2007, s.p.).
Essa leitura proporcionou uma visão mais objetiva do gênero, confirmando a riqueza
literária, percebida em rodas de leitura, com o acréscimo das informações contidas no texto de
Gil Neto, como: pensar no leitor a quem direcionamos a escrita é muito importante, “sem ele,
seu repertório, e gana o microconto não terá vida”. O escritor se pergunta: “quantos contos,
novelas, romances estarão guardados num simples microconto?” Em seguida, afirma que “no
fio da meada criadora, um microconto se transformaria em conto (e vice-versa). É só
alinhavar personagens às tramas, deixar vir à tona os desfechos que (re)pousariam nas
palavras” (GIL NETO, 2010, p.02).
Escolhi o gênero conto para a reescritura em microcontos porque ambos mantêm entre
si um grau de proximidade narrativa, bem como por sua brevidade, facilitando a leitura
120
Adolescente
Trocou-me pelo rock; eu, zap, pelo canal com uma jovem nua.
rapidamente, ‘canal’ se refere à televisão, ‘uma’ e ‘nua’ ao sexo feminino. A partir desses
dados, o leitor compreenderá a essência narrativa do microconto, possibilitando criar outras
histórias.
A pequena vendedora
Reescrevi o conto de Andersen para que os alunos me vissem também como escritora.
Compartilhei a escrita produzida dentro de um curto espaço de tempo, tal como lhes solicito.
Ao ler e (re)escrever para os alunos, o professor os incentiva a fazer o mesmo.
Ultrapassa o orientador, tornando-se também participante ativo do processo de leitura e de
123
escrita. Não fugi à essência narrativa, inserindo alguns componentes da realidade urbana.
Assim, reconheceram a ligação do novo texto com o anterior, com severa crítica social. A
intenção não foi uma reescritura elaborada tal como as dos escritores pós-modernos,
comentadas em nossa tese, mas um diálogo direto, simples, com o texto de origem, a fim de
incentivar a leitura e a produção textual. (ver anexo C).
Escrevi os microcontos sobre a vida e a obra de Lima Barreto com bastante clareza, a
fim de que os alunos se apropriassem facilmente da história, como também compreendessem
que poderiam seguir os mesmos critérios com o romance. (ver anexo E).
SEXTA-FEIRA TREZE
VIRAR DOUTOR
Eu não consegui ser médico, mas quero meu filho doutor. De anel no dedo e
tudo, com título de superior. Dr. Afonso Henriques Lima Barreto!
NOME DE REI
A GENTE SONHA
O TRISTE FIM
Ao ler os microcontos dos alunos – autoria coletiva -, o leitor descobrirá estar diante
de micronarrativas que dialogam com Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto,
porém com linguagem atual. Falamos da linguagem da internet, do desafio do escritor de
microconto, de um texto que poderá ser postado no Twitter, por exemplo.
A história tomou um rumo um pouco diferente da original, principalmente, no que diz
respeito ao envolvimento de Olga com Policarpo. Nos microcontos, os personagens são mais
que afilhada e padrinho, são apaixonados. Esse envolvimento amoroso partiu do sentimento
de admiração e carinho mútuo no romance.
126
Cabe uma observação: a qualidade dos microcontos escritos a partir dos contos é
superior à do romance pela facilidade do estudante em abarcar um texto de menor extensão.
Não afirmamos que o projeto de reescritura de um romance não deva ser posto em prática
pelos professores de língua portuguesa, ao contrário. Afinal, o objetivo do projeto foi
atingido, os alunos leram o livro com interesse. À medida que os alunos avançavam na leitura,
comentavam entre eles sobre o que leram, mas não viram no filme Policarpo Quaresma, o
herói do Brasil (1998), de Alcione Araújo, ou sobre o que viram no filme, mas não estava no
livro, criticavam determinadas atitudes dos personagens, davam sugestões e, algumas vezes,
se solidarizavam com o protagonista. Escreveram e reescreveram microcontos a partir do
romance, trocaram entre si, por diversas vezes, os microcontos, formando uma rede de escrita
coletiva. A tríade autor-texto-leitor ganhou vida de fato, no plural. Se quisermos tornar as
aulas de língua portuguesa prazerosas e incentivar o estudante a ler e a escrever com
proficiência, podemos iniciar pelos microcontos, incentivando a pesquisa na internet, a
escritura de livro, a postagem em blogs, redes sociais, youtube etc (ver anexo F).
Eis alguns microcontos:
Nunca mais esqueci os olhos daquela menina: vivos, fixos em mim, da cor do céu
azul em dia de sol. “Batizo-te Olga Coleoni”, disse o padre.
No Pinel, meditei sobre a loucura. Fiquei angustiado diante do grande mistério que é
a mente humana. Onde termina o sonho e começa a loucura?
Todos se foram! Ela encontrou meu corpo imóvel e deteriorado. Abraçou-me com
cuidado. Beijou-me os lábios e levou-me para o sítio Sossego.
Os donos do poder calaram a minha voz em 1911. Hoje, 100 anos depois, escreveria
que o crescimento do Brasil passa pela valorização do professor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
foi uma das primeiras especialistas a analisar a relação entre pós-modernidade e minificção –
outra nomenclatura usada, mais abrangente. Segundo nosso ponto de vista, nomenclaturas
abrangentes – minificção e miniconto - geram dúvidas no leitor, que não sabe a que tipo de
texto exatamente elas se referem. A teórica confirma a presença dos elementos básicos pós-
modernos nos textos hiperbreves, entre eles o papel fundamental da alusão a outros textos. Há
especialistas que consideram a intertextualidade como uma das características da pós-
modernidade, presente na minificção, como Epple (2004), Zavala (2005) e Garrido
Domínguez (2009). Em nosso estudo, comprovamos que também participam do jogo
intertextual outros gêneros, como o romance e o microconto.
O entendimento de que o microconto é um novo gênero textual se origina,
principalmente, nos estudos de Bakhtin (2002), que parece convencido de que Dostoiévski
criou um novo gênero literário, o romance polifônico; novo, mas que não surge do nada. Liga-
se a uma tradição que estuda qualquer gênero do ponto de vista diacrônico e sincrônico.
Seguindo esse pensamento, o microconto apresenta características pertencentes a gêneros
breves anteriores e, ao mesmo tempo, a novas características que o definem e o diferenciam
dos antecessores. Suas características intrínsecas o distinguem dos gêneros breves existentes.
Não o impedindo de beber em fontes da tradição literária, recriando o já dito com o olhar do
seu tempo.
Olhar para a época de criação de determinado gênero literário, é significativo para as
reflexões sobre o microconto como gênero que germina em meio ao avanço tecnológico, não
significando que a época determina a criação de qualquer gênero. O escritor lança mão de sua
criatividade de acordo com sua visão de mundo e seu gosto pessoal, usando sua inventividade
para retomar antigos gêneros, reescrevendo-os à sua maneira, ou para criar um diverso dos
existentes. A contemporaneidade, como novo ponto de partida da orientação literária, não
exclui a representação do passado, nem nega o presente, porque o escritor, também leitor, é
sujeito de seu tempo e, como tal, (leitor-autor) impregnado dos valores, comportamentos e
avanços da sociedade.
O microconto atual se caracteriza pela brevidade extrema, pela economia de
linguagem, pelo uso de palavras essenciais para que o leitor o abarque de uma só vez, pela
representação de situações que exigem a participação do leitor e pelo caráter híbrido. Sua
hiperbrevidade nasce da necessidade da criatividade narrativa do autor e não da imposição de
não superar um determinado número de caracteres, exceto quando se trata de um espaço que o
limita, como o Twitter, com, no máximo, cento e quarenta caracteres.
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156
Não faz muito que temos esta nova TV com controle remoto, mas devo dizer que se
trata agora de um instrumento sem o qual eu não saberia viver. Passo os dias sentado na velha
poltrona, mudando de um canal para outro – uma tarefa que antes exigia certa movimentação,
mas que agora ficou muito fácil. Estou num canal, não gosto – zap, mudo para outro. Não
gosto de novo – zap, mudo de novo. Eu gostaria de ganhar em dólar num mês o número de
vezes que você troca de canal em uma hora, diz minha mãe. Trata-se de uma pretensão
fantasiosa, mas pelo menos indica disposição para o humor, admirável nessa mulher.
Sofre, minha mãe. Sempre sofreu: infância carente, pai cruel etc. Mas o seu sofrimento
aumentou muito quando meu pai a deixou. Já faz tempo; foi logo depois que nasci, e estou
agora com treze anos. Uma idade em que se vê muita televisão, e em que se muda de canal
constantemente, ainda que minha mãe ache isso um absurdo. Da tela, uma moça sorridente
pergunta se o caro telespectador já conhece certo novo sabão em pó. Não conheço nem quero
conhecer, de modo que – zap – mudo de canal. “Não me abandone, Mariana, não me
abandone!” Abandono, sim. Não tenho o menor remorso, em se tratando de novelas: zap, e
agora é um desenho, que eu já vi duzentas vezes, e – zap – um homem falando. Um homem,
abraçado à guitarra elétrica, fala a uma entrevistadora. É um roqueiro. Aliás, é o que está
dizendo, que é um roqueiro, que sempre foi e sempre será um roqueiro. Tal veemência se
justifica, porque ele não parece um roqueiro. É meio velho, tem cabelos grisalhos, rugas,
falta-lhe um dente. É o meu pai.
É sobre mim que ele fala. Você tem um filho, não tem?, pergunta a apresentadora, e
ele, meio constrangido – situação pouco admissível para um roqueiro de verdade –, diz que
sim, que tem um filho, só que não o vê há muito tempo. Hesita um pouco e acrescenta: você
sabe, eu tinha de fazer uma opção, era a família ou o rock. A entrevistadora, porém insiste (é
chata, ela): mas o seu filho gosta de rock? Que você saiba, seu filho gosta de rock?
Ele se mexe na cadeira; o microfone, preso à desbotada camisa, roça-lhe o peito,
produzindo um desagradável e bem audível rascar. Sua angústia é compreensível; aí está, num
programa local e de baixíssima audiência – e ainda tem de passar pelo vexame de uma
pergunta que o embaraça e à qual não sabe responder. E então ele me olha. Vocês dirão que
não, que é para a câmara que ele olha; aparentemente é isso, aparentemente ele está olhando
para a câmara, como lhe disseram para fazer; mas na realidade é a mim que ele olha, sabe que
em algum lugar, diante de uma tevê, estou a fitar seu rosto atormentado, as lágrimas me
157
correndo pelo rosto; e no meu olhar ele procura a resposta à pergunta da apresentadora: você
gosta de rock? Você gosta de mim? Você me perdoa? – mas aí comete um erro, um engano
mortal: insensivelmente, automaticamente, seus dedos começam a dedilhar as cordas da
guitarra, é o vício do velho roqueiro, do qual ele não pode se livrar nunca, nunca. Seu rosto se
ilumina – refletores que se acendem? – e ele vai dizer que sim, que seu filho ama o rock tanto
quanto ele, mas nesse momento – zap – aciono o controle remoto e ele some. Em seu lugar,
uma bela e sorridente jovem que está – à exceção do pequeno relógio que usa no pulso – nua,
completamente nua.
158
Fazia um frio terrível. A neve caía e dali a pouco ficaria escuro. Era o último dia do
ano: véspera de ano novo. Nas ruas frias, escuras, você poderia ver uma pobre menininha sem
nada para lhe cobrir a cabeça, e descalça. Bem, é verdade que estava usando chinelos quando
saiu de casa. Mas de que adiantavam? Eram chinelos enormes, que pertenciam à sua mãe, o
que lhe dá uma ideia de como eram grandes. A menina os perdera ao atravessar correndo uma
estrada no instante em que duas carruagens avançavam ruidosamente e numa velocidade
apavorante. Não conseguiu achar um pé dos chinelos em lugar nenhum, e um menino fugiu
com o outro, dizendo que um dia, quando tivesse filhos, poderia usá-lo como berço.
A menina caminhava com seus pezinhos descalços, que estavam rachados e ficando
azuis de frio. Levava um molho de fósforos na mão e mais no avental. Não vendera nada o dia
inteiro e ninguém lhe dera um níquel sequer. Pobre criaturinha, parecia a imagem da miséria a
se arrastar, faminta e tiritando de frio. Flocos de neve se aninhavam em seu cabelo claro,
comprido, que ondulava suavemente em volta do pescoço. Mas você pode ter certeza de que
ela não estava pensando em sua aparência. Em cada janela, luzes reluziam e um delicioso
cheiro de ganso assado se espalhava pelas ruas. Veja bem, era véspera de ano-novo. Era nisso
que ela pensava.
Num canto entre duas casas, uma das quais se projetava sobre a rua, ela se agachou e
se encolheu no frio, as pernas dobradas sob si. Mas isso só a fez sentir mais e mais frio. Não
tinha coragem de voltar para casa, pois não vendera fósforo nenhum e não tinha um níquel
para levar. Seu pai com certeza iria surrá-la, e depois era quase tão frio em casa quanto aqui.
Só tinham o telhado para protege-los, e o vento sibilava através dele, embora as fendas
maiores tivessem sido vedadas com palha e trapos. O frio era tanto que as mãos da menina
estavam quase dormentes. Ah! Talvez acender um fósforo ajudasse um pouco. Se pelo menos
se atrevesse a tirar um do pacote e riscá-lo na parede, só para aquecer os dedos. Puxou um –
rrrec! -, como ele espirrava enquanto queimava! Surgiu uma luz clara e tépida, como uma
vela, quando pôs a mão sobre ele. Sim, que luz estranha era aquela! A menina imaginou que
estava sentada junto de uma grande estufa de ferro, com lustrosos puxadores de cobre e pés de
latão. Que calor o fogo desprendia! No instante em que ia esticando os dedos dos pés para
aquecê-los também – a chama apagou e a estufa desapareceu. Lá ficou ela, com o toco de um
fósforo queimado na mão.
159
Riscou outro fósforo contra a parede. Ele explodiu em chamas, e a parede que
iluminava ficou transparente como um véu. Ela pôde ver direitinho dentro da sala, onde, sobre
uma mesa coberta com uma toalha branca como a neve, estava posta uma porcelana delicada.
Bem ali, podia-se ver um ganso assado fumegante, recheado com maçãs e ameixas. E, o que
foi ainda mais espantoso, o ganso saltou do prato e saiu gingando pelo piso, com uma faca de
trinchar e um garfo ainda espetados nas costas. Rumou diretamente para a pobre menininha.
Mas naquele instante o fósforo apagou e só sobrou a parede úmida e fria diante dela. S
Acendeu um outro fósforo. Agora estava sentada sob uma árvore de Natal. Era ainda
maior e mais bonita do que uma que vira no Natal passado através da porta de vidro da casa
de um comerciante rico. Milhares de velas ardiam nos ramos verdes, e figuras coloridas, como
as que já vira em vitrines, contemplavam aquilo tudo. A menina esticou ambas as mãos no
ar... e o fósforo se apagou. As velas de Natal foram subindo, subindo, até que ela viu que
eram estrelas cintilantes. Uma delas se transformou numa estrela cadente, deixando atrás de si
uma risca de fogo coruscante.
“Alguém está morrendo”, pensou a menina, pois sua avó, a única pessoa que fora boa
para ela e que agora estava morta, lhe contara que, quando a gente vê uma estrela cadente, é
um sinal de que uma alma está subindo para Deus.
Riscou mais um fósforo contra a parede. Fez-se um clarão à sua volta, e bem ali, no
centro dele, estava sua velha avó, parecendo radiante, e suave e amorosa. “Oh, vovó!”, a
menina exclamou. “Leve-me com você! Sei que vai desaparecer quando o fósforo apagar –
como aconteceu com a estufa quentinha, com o delicioso ganso assado e com a alta e bela
árvore de Natal.” Mais que depressa ela acendeu todo o molho de fósforos, tal era o desejo de
conservar sua avó exatamente ali onde estava. Os fósforos chamejaram com tanto vigor que
de repente ficou mais claro que a clara luz do dia. Nunca sua avó parecera tão alta e bonita.
Ela tomou a menina nos braços e juntas as duas voaram em esplendor e alegria, cada vez mais
alto, acima da terra, para onde não há frio, nem fome, nem dor. Estavam com Deus.
Na madrugada seguinte, a menina jazia enroscada entre as duas casas, com as faces
rosadas e um sorriso nos lábios. Morrera congelada na última noite do ano velho. O ano-novo
despontou sobre o corpo congelado da menina, que ainda segurava fósforos na mão, um
molho já usado. “Ela estava tentando se aquecer”, disseram as pessoas. Ninguém podia
imaginar que coisas lindas ela vira e em que glória partira com sua velha avó para a felicidade
do ano-novo.
160
Fazia um terrível calor. O asfalto era aquecido pelo sol escaldante. O vento, se
soprava, soprava do outro lado do mundo.
Em frente ao semáforo da principal rua da cidade havia um relógio. Nele, lia-se a
temperatura de 40º C. Em segundos, ele mudava seu olhar e mostrava exatamente o meio do
dia.
Era véspera de Natal. As pessoas passavam apressadas de um lado para o outro. As
mãos carregavam sacolas de presentes e compras para a ceia à noite. Em meio a esse vai-e-
vem uma pobre menininha, de pés no chão, vestido esfarrapado, tremula, suplicando um
olhar.
Quando ela saiu de casa calçava um par de velhos chinelos herdados de sua avozinha.
Pobrezinhos! Eles não suportaram o peso dos anos: arrebentou um, logo depois o outro. A
esquelética criança foi obrigada a seguir sozinha e ainda mais triste. Em suas pequenas mãos
alguns saquinhos de balas.
Nas calçadas, as pedras portuguesas acumulavam o mormaço do verão. Nos pés da
pequena vendedora de balas brotavam bolhas e mais bolhas. Tudo, dentro e fora desse ser
minúsculo, ia crescendo e crescendo até explodir em lágrimas. Naquele dia, ninguém
comprara nenhuma balinha. Não ganhara sequer um real.
Tremendo de dor e fome, a pobre menininha continuava lá. Parecia uma indiazinha
perdida em uma selva de pedra. Os seus cabelos negros e lisos cobriam os ombros franzinos.
Todo o seu corpo era assim: esquelético. Seus pés estavam inchados e sangrando.
Se alguém tivesse a coragem de olhar aquela triste figura, com certeza, iria doer-se
todo por dentro. “A indiferença era o caminho mais seguro”, pensavam, provavelmente, todos
que por ali passaram e passavam. Ninguém queria enxergar a verdadeira imagem da miséria.
Enxergar seria o mesmo que se sentir responsável.
A noite se aproximava lentamente. Luzes brilhavam em diversas janelas dos
grandiosos edifícios. O vento veio amenizar o calor e encher o ar com um cheiro de peru
assado. Ela nunca o havia provado, mas conhecia de longe o cheiro. Sentia em sua boquinha o
gosto imaginário da comida dos ricos.
Ela se muniu da pouca força que ainda lhe restara. Seguiu cambaleando em direção ao
cheiro trazido pelo vento.
161
Sentou-se próximo à janela do primeiro andar do prédio que exalava aquele cheiro
divino.
Arriscou ficar na ponta dos pés a fim de comer com os olhos a ceia de Natal daquela
família feliz. Não conseguiu ver. Seu tamanho e seus pés não a ajudaram.
O tempo seguia o seu percurso. A indiazinha, ao contrário, não ousava tentar voltar
para casa sem vender sequer uma bala.
Não ousava chegar em casa sem um mísero real. Sua mãe certamente a espancaria e,
como tantas vezes o fez, a culparia por ter sido abandonada pelo marido. Além disso, em sua
casa não havia nada para comer. Nenhum presente para receber.
Aliás, ela só ganhou presente de Natal uma vez. A sua avozinha fez uma bonequinha
de pano e, na noite de natal, colocou-a no chinelinho da neta. Quando ela acordou na manhã
do dia 25, a grande surpresa!
Seus pés se avolumavam mais e mais. Já não os movimentava. Era inútil tentar. O
cheiro do peru fez sua fome aumentar. Ah! Bem que uma bala lhe faria bem, se ela
conseguisse tirar só uma do embrulho, talvez ninguém notasse e amenizaria a dor de seu
estômago. Assim o fez. Mastigou gulosamente a bala como se fosse um pedacinho daquele
peru.
Lembrou da sopa que sua avozinha, quando era viva, preparava para ela. Sem
perceber, comeu mais uma balinha e sentiu o gosto da sopa. Sentiu não apenas o gosto da
sopa, mas viu claramente a sua avozinha sentada a mesa com ela.
Toda vez que terminava de comer a bala, o prato de sopa sumia, a mesa e a avozinha
desapareciam. Ficavam apenas os papéis de balas na concha de uma de suas mãos.
Comeu rapidamente mais outra bala e mais outra e mais outras. A presença de sua
avozinha se tornou mais real.
Agora, via também uma mesa farta. Na mesa, uma toalha azul com sinos dourados,
anjos tocando e, sobre ela, havia um enorme peru assado. Recheado com maçãs e ameixas.
Ele exalava um cheiro mais gostoso do que o de antes. Havia também biscoitos feitos e
desenhados por sua avozinha, além de uma infinidade de comidas e frutas.
Os olhinhos da menininha ganharam um brilho intenso e o seu corpinho sentiu a
proteção do abraço acolhedor da avozinha. Envolvida nesse sonho, descuidou-se e a bala em
sua boca se foi.
A realidade cruel tornou a mostrar seu véu. Lá estava ela sentadinha na calçada, o
vento a esvoaçar seus cabelos e provocar-lhe um frio interno de dor e medo.
162
Comeu outra bala. Agora se viu sentada debaixo de uma linda árvore de Natal.
Milhares de luzes coloridas enfeitavam os verdes ramos. Cartões de todos os modelos, iguais
aos que se veem nas papelarias, estavam voltados para ela.
Ergueu a mão em direção aos cartões, mas nesse instante a bala desmanchou em sua
boca. A árvore sumiu no ar.
As luzes do Natal subiam e subiam e subiam até alcançar o céu. Ela as via como se
fossem estrelas no céu. Uma delas caiu, formando um rastro luminoso. Parecia com a história
da estrela cadente contada por sua adorada avozinha.
“Alguém está morrendo”, pensou a pequenina. Sua falecida avozinha, a única pessoa
do mundo que lhe deu amor, lhe disse que quando uma estrela caia, uma alma de criança
subia ao céu e juntava-se aos anjos da paz.
Ela comeu mais uma bala. O sabor já não era o mesmo. Era ainda melhor. A avozinha
da pequena vendedora apareceu morena e luminosa, muito linda e terna. Sentou-se em sua
frente. Pegou carinhosamente as pequenas mãozinhas de sua amada netinha.
Olhou-a nos olhos e, como fazia quando era viva, contou a história do Uirapuru. É
uma lenda triste de um pássaro que foi flechado no coração por uma moça.
As duas, neste exato momento, ouviram o som do poema sinfônico de Heitor Villa-
Lobos – Uirapuru.
- Vovó, exclamou a pobre inocente, por favor, leva-me contigo! Sei que sumirás
quando a bala acabar. Desaparecerás, como tudo que vi de belo nestes minutos maravilhosos
de Natal. E rapidamente colocou várias balas na boca. Sua intenção era congelar diante de si a
visão de sua querida avozinha.
E o sabor das balas se tornou tão visualmente maravilhoso que a fez ver sua avó
grandiosa e bela, como nunca lhe parecera.
A avozinha tomou-a nos braços e ambas voaram em luminosidade e alegria para um
lugar bem acima do azul do céu. Lá não havia fome nem dor, o espírito era de paz, muita paz.
O dia amanheceu. Os primeiros raios de sol apontaram para a menininha cadáver. Ela
estava no mesmo lugar. Sentadinha na calçada, encostada na parede, faces pálidas e lábios
sorridentes. Não parecia que a morte a paralisara na noite de Natal. Em sua volta, papéis de
balas coloridos enfeitavam seu frágil corpinho como se fossem flores.
- Queria alimentar-se, dizia os que por ali passavam.
Em meio aos passantes, uma menina clara como a luz do sol, dona de lindos cabelos
dourados que caiam sobre o pescoço em belos cachos, avança em direção à menininha e num
terno abraço, exclama: “Feliz Natal!”
163
1º passo: assistir vídeos sobre a vida e a obra de Lima Barreto, com Ancelmo Goes: De Lá Pra
Cá (usamos quatro tempos de aula para assistir e comentar).
2º passo: pesquisar na internet a vida e a obra de Lima Barreto (pesquisa para casa,
apresentação oral e escrita. A turma foi dividida em oito grupos, com aproximadamente cinco
alunos. Usamos dois tempos para apresentação. A partir dos trabalhos escritos, escrevi os
microcontos sobre a vida e a obra do autor).
4º passo: ler Triste fim de Policarpo Quaresma (leitura em casa, em quinze dias).
5º passo: rodas de debates sobre Triste fim de Policarpo Quaresma (usamos quatro aulas para
debate, roteiro da história e divisão do livro entre os alunos para escritura individual dos
microcontos).
6º passo: traçar a trajetória de reescrita de Triste fim de Policarpo Quaresma (usamos duas
aulas para debate sobre a trajetória dos personagens Policarpo Quaresma e sua afilhada Olga.
Decidimos que os personagens teriam um envolvimento amoroso).
8º passo: troca entre os alunos dos microcontos para ajuda mútua, revisando, dando sugestões,
reescrevendo. Uma espécie de compartilhamento de ideias, a favor da coerência entre os
microcontos (Usamos quatro aulas para que todos recebessem orientação).
9º passo: revisão geral pela professora orientadora (apresentei aos alunos para que lessem e,
se desejassem, fizessem alterações. Usamos duas aulas).
10º passo: formatação em livro e/ou postagem em redes sociais (com poucos alunos com
internet, fizemos um livro em espiral. Digitação da versão final dos microcontos).
165
O CASAL DE MULATOS
Eu sou o tipógrafo da Imprensa Nacional João Henriques Lima Barreto. Casei-me com
a professora Amália Augusta, que me deu 5 filhos.
SEXTA-FEIRA TREZE
Meu primeiro filho viveu 8 dias. Em uma sexta-feira, 13 do mês de maio de 1881, em
Laranjeiras, nasceu meu segundo filho: Afonso Henriques.
O MÉDICO
Eu era um homem culto, mulato e pobre que queria ser grande. Um grande médico!
Amália morreu. Enterrei o médico. Deixei apenas o pai viver.
LEMBRANÇA
Eu não me lembro de Amália morta. Lembro-me das crianças. O mais novo tinha 2
anos, chorava muito. Afonso, menos de 7 anos, abraçou-me forte.
A LEI ÁUREA
13 de maio de 1888. Afonso Henriques Lima Barreto completou 7 anos. A Lei Áurea
foi assinada. E o preconceito manteve-se cruelmente vivo.
REPÚBLICA
ALIENADOS
Levei minha família para morar comigo na Ilha do Governador. Afonso Henriques
ficou no Rio de Janeiro para continuar os estudos.
A LOUCURA
Eu não consegui ser médico, mas quero meu filho doutor. De anel no dedo e tudo, com
título de superior. Dr. Afonso Henriques Lima Barreto!
A COR
O NINHO
NOME DE REI
Narram que um dia um colega da Politécnica disse: “Olhem só! O tamanho da audácia
do mulato Afonso! Usar o nome do rei de Portugal!”
O FUTURO
Eu havia traçado um destino para meu filho Afonso. Este ainda não sabia que a voz do
escritor iria gritar mais alto do que a do pai.
O COMEÇO
Em A Lanterna e A Quinzena Alegre, meu filho publicou seus primeiros textos, sob os
pseudônimos de “Alfa Z” e “Momento de Inércia”.
A HOSTILIDADE
Ele não nasceu assim tão irônico e sarcástico. Foi a hostilidade do meio. Foi a pedra
no meio do caminho. Era uma vez os poderosos...
ESTILHAÇOS
Era uma vez uma pedra no meio do caminho. O poder. Afonso pegou papel e caneta e
a detonou em milhões de fragmentos verbais e não-verbais.
O DELÍRIO DO JOÃO
Uma noite de 1902, não me lembro o dia e o mês, meu pai foi dormir sadio e acordou
louco. Deixando-me uma pesada herança e nenhum futuro.
OS ESTUDOS
A CASA DO LOUCO
167
Mudamos para a rua Boa Vista, no subúrbio de Todos os Santos. Meu pai gritava dia e
noite. Era enlouquecedor! Nossa casa, a casa do louco.
A GENTE SONHA
O COLEGA DE REPARTIÇÃO
Conheci Domingos Ribeiro Filho no Ministério. Ele era escritor e frequentador dos
cafés do Centro. Com ele passei a frequentar o Café Java.
O MEIO JORNALÍSTICO
Nos cafés, conheci de perto gente do meio jornalístico. Comecei a escrever para o
Correio da Manhã sobre as escavações no Morro do Castelo.
A MEDIOCRIDADE
Sentia crescer em mim a vocação de romancista. Tornava-se cada vez mais difícil
suportar a mediocridade do Ministério e do meio familiar.
NO TRABALHO
Era obrigado a ouvir ironias e gozações em torno de meus sonhos literários. Por eu ser
mulato, julgavam-me incapaz de virar intelectual famoso.
NO SUBURBIO
Em Todos os Santos, onde morava, a minha paixão era reduzida a mania de literatura,
a coisa sem futuro. Reduziam-me a incapacidade total.
COMPULSIVO
O QUARTO
O ÁLCOOL
EDITOR
168
AUTOBIOGRÁFICOS
REBELDIA
IMPRENSA
O SILÊNCIO
BEM COMPORTADO
Os donos da cultura não queriam as minhas críticas. Não queriam uma literatura fora
do tom e dos padrões de linguagem. Não havia liberdade!
LIBERDADE
Meu jeito de ser livre me custou caro: decepção, falta de dinheiro, de reconhecimento
e de esperança. Só o álcool me deu prazer. Delírio!
ESTRAGO
PRESSENTIMENTO
Não sei explicar o porquê, mas quando algo ruim estava para acontecer eu pressentia:
a morte de minha mãe, a catástrofe com meu pai. Um medo...
O TRISTE FIM
LITERATURA
169
Era uma vez um homem apaixonado pela literatura brasileira que o álcool não
conseguia deteriorá-la. Por ele, virei figura acabada.
NAQUELA NOITE
GUARATIBA
HOSPÍCIO
TEMPO
A VOLTA
Voltei com vontade de escrever. Em 25 dias o romance Numa e a Ninfa ficou pronto.
Em 1915, o jornal A Noite o publicou em folhetins.
POLICARPO
Eu tinha uma ideia fixa, publicar o romance Triste fim de Policarpo Quaresma em
livro. Fiz empréstimo. Banquei a publicação em 1915.
REALIZAÇÃO
Enfim, alcancei a glória. Falaram bem do romance e de mim, o autor Lima Barreto.
Jornais de grande porte dedicaram-nos enormes espaços.
A GUERRA
NOVAS PUBLICAÇÕES
Por minha conta e risco, em 1917, paguei para editar em livro a obra Numa e a Ninfa.
Nessa época eu já devia 20 contos de réis a diversos.
SAÚDE
170
Fui internado no hospital para tratamento de saúde. Lembro-me do ano 1918. Ano em
que fui aposentado no Ministério da Guerra por invalidez.
MONTEIRO LOBATO
O EDITOR ESCRITOR
Monteiro Lobato foi quem mais levou a sério as minhas obras. Compreendeu-as em
suas devidas proporções e guardou-me respeito.
REFLEXOS
APLAUSOS
NATAL
Era noite de natal de 1919, eu perambulava pelas ruas: sujo, com a roupa rasgada, o
corpo exalava puro álcool e em delírio igual ao meu infeliz pai.
O IRMÃO
Meu irmão Carlindo internou-me. Era a segunda hospedagem naquele inferno. Lá,
fiquei por 2 meses e iniciei a escritura do Diário do Hospício.
MALTRAPILHO
Aos 40 anos eu era um velho. Cheirava mal, aspecto maltrapilho. Nesse estado
lastimável, era visto por todos. Faltava-me algo essencial.
A VISITA
Monteiro Lobato veio de São Paulo ao Rio para me conhecer pessoalmente. Eu estava
muito bêbado. Ele decidiu não se identificar.
MIRASSOL
Ranulfo Prata era médico e escritor. Morava em Mirassol, interior de São Paulo. Ele
admirava minha obra e convenceu-me a ir até Mirassol.
ABSTINÊNCIA
171
CONHECI MONTEIRO
Durante minha passagem por São Paulo, conheci pessoalmente Monteiro Lobato. Um
sábio escritor de temas brasileiros – do real ao mítico-.
O DESAFIO
Eu fui convidado a dar uma palestra em Rio Preto sobre a função da literatura. Escrevi
o ensaio. Na hora, fugi! Bebi! Encontraram-me na sarjeta.
O ATO DE ESCREVER
Escrever, para mim, é uma forma de denúncia. Para isso, lanço mão de uma linguagem
clara, simples e coloquial, sem erudição e adornos.
CRÍTICAS
TRAFEGO
DESEQUILÍBRIO
Meu amigo Enéas Ferraz foi quem me viu pela última vez. Naquele 7 de setembro,
andei o dia todo e por todos os lugares que gostava no Centro.
ALMA
Faltava-me ânimo, as coisas andavam mal em minha alma, em minha casa, em minha
cidade, em meu país... Eu pressentia o fim.
EVANGELINA
Era 1º de novembro de 1922, Evangelina me trouxe uma refeição no quarto. Não havia
ninguém comigo. O colapso cardíaco foi inevitável.
NINGUÉM
No meu velório, havia muitos amigos de andanças e de Parati. Um amigo leitor “não
sou Ninguém” descobriu o meu rosto e beijou-me a testa.
MINHA AMADA
172
Escrevi muito. Sofri e amei mais ainda. Deixo para a eternidade os 17 filhos que tive
com a figura feminina mais amada: a Literatura.
O ENCONTRO
Meu pai teve um momento de lucidez: “Afonso morreu, Evangelina?” Ela emudeceu.
48 horas depois de minha morte, o velho veio ao meu encontro.
173
Eu me chamo Policarpo. Saio às 22h do Pedro II, onde sou professor de literatura, e
caminho até minha casa. E lá, a minha espera, Olga.
Eu vivia num isolamento bibliotecal, embora fosse gentil com as pessoas, preferia a
companhia dos livros. Exceto quando se tratava de Olga.
O mito das Amazonas, mulheres guerreiras, é um dos quais eu gosto. Entretanto, são
os mitos genuinamente brasileiros que me cativam.
Morava com minha irmã Adelaide em uma rua afastada de São Januário - São
Cristovão. Embora fosse cortês, os vizinhos me julgavam esquisito.
Eu tinha e ainda tenho uma biblioteca riquíssima. Não a mostrava a ninguém, mas
quando abria as janelas da sala, da rua poder-se-iam vê-la.
Na época do Arsenal, eu era um homem musculoso, forte, olhava sempre baixo, mas
quando fixava os olhos em alguém eles ganhavam um forte brilho.
De tanto ler, ganhei gosto pela literatura e resolvi, aos 26 anos, entrar para o Centro de
Filosofia Brasileira – CEFIB.
Em termos de leitura meu gosto era variado. Na ficção, gostava de autores nacionais,
tais como José de Alencar, Gonçalves Dias e o Macedo.
Desde moço, o amor pela pátria tomou-me por inteiro. Devorava crônicas sobre a
História do Brasil e livros sobre viagens e exploração do pais.
Erra quem quiser encontrar em mim qualquer regionalismo literário. Gosto dos
clássicos, das narrativas populares e das lendas do folclore brasileiro.
Não tenho predileção por esta ou aquela parte do Brasil, exceto pela Amazônia, com
suas virgens florestas e a superioridade do rio Amazonas.
Ela ainda não sabia, mas eu era um homem apaixonado. Pensava seriamente na
expressão poético-musical característica da alma nacional e nela.
Baseada na lenda da índia Jaci que engravidou de um boto e deu à luz a um casal de
cobras - Honorato e Maria - nasceu a nossa primeira modinha.
Pensei no rio Negro e no Curupira para escrever outra modinha. Curupira, em tupi,
significa corpo de menino. Ele é o ágil protetor da floresta.
O mito da mulher ingênua e perigosa me fascina. Gosto da senhora das águas (Iara em
tupi). Escrevi mais uma modinha: o Amazonas se liga ao Negro.
Ouvia Heitor Villa-Lobos e seu poema sinfônico Uirapuru. É uma lenda triste e viva:
o pássaro foi flechado no coração por uma moça.
Há dias que não saia de casa. Preferia embriagar-me com viagens literárias a fim de
conhecer todo o Brasil e ter aulas de violão com Ricardo.
Fui à biblioteca ler e tomar notas de temas sobre o Brasil. E tivera a certeza de que a
nossa pátria poderia ser superior à Inglaterra.
Havia despertado em mim o gosto pelas festanças. Fiquei encantado quando o general
Albernaz falou em organizar uma chegança, à moda do Norte.
O general Albernaz lembrou da tia Maria Rita, antiga lavadeira da família. Ela morava
em Benfica e conhecia versos e músicas à moda do Norte.
Albernaz era medíocre e bonachão. Sua preocupação era casar as 5 filhas e arranjar
“pistolões” para seu filho passar nos exames do Colégio Militar.
A Srª Maria Rita morava próximo à estação da estrada de ferro Leopoldina. Perto
havia um depósito de locomotivas e uma vasta região de mangues.
175
Maria Rita foi uma bela mulata. Eu e Albernaz a encontramos sentada na sala. Olhar
sonhador, a espera de seu grande amor Vítor Emmanuel II.
Comprei livros para estudar as tradições e canções do nosso povo. Surpreso, descobri
que até o Tangolomango era adaptação do estrangeiro.
Vicente Coleoni era um quitandeiro que perdera o crédito por culpa de um colega.
Disposto a matá-lo, usei de persuasão para fazê-lo desistir.
Nunca mais esqueci os olhos daquela menina: vivos, fixos em mim, da cor do céu azul
em dia de sol. “Batizo-te Olga Coleoni”, disse o padre.
Eu era um rapaz de 21 anos, quando me tornei padrinho de Olga. Ela cresceu rápido
demais. Havia entre nós uma grande afeição e o desconhecido.
Sempre fui uma pessoa reservada. Não me sentia à vontade para demonstrar meus
sentimentos. Quando o fazia, era com timidez. Diferente de Olga.
Adivinhava que a moça não ocupava no meu coração somente o lugar dos filhos que
eu ainda não tivera. Sentia o proibido silenciosamente doer.
Olga era uma menina calorosa. Falava desembaraçadamente. Não me escondia sua
afeição e que sentia em mim alguma coisa de superior, um ideal.
Ela via em mim uma ânsia de seguir um sonho, uma ideia, um voo para altas regiões
do espírito que ela não estava acostumada a ver em ninguém.
Fascinava-me o quanto ela me conhecia. Por outro lado, sentia muito medo que ela
descobrisse o que vivia dentro das profundezas do meu ser.
Um dia Olga me perguntou: “Então, padrinho, lê-se muito?” Respondi: “Muito, minha
filha.” A reforma para emancipação do nosso povo.
Meu amigo Ricardo sempre ficava atrapalhado diante das moças. Com Olga, animou-
se, soltou a língua e conversou com eloquência.
Eu, que me mantinha calado, entrei na conversa entre Ricardo e Olga. Ela pareceu-me
surpresa com a minha interrupção intempestiva e calorosa.
Finalmente Cavalcânti concluiu o curso de dentista. Agora, ele não era mais um rapaz
simples. Era um homem de essência superior.
Casar para Ismênia era uma espécie de dever. Nela, não se encontrava qualquer direito
à felicidade, nenhuma capacidade para sentir paixão.
Dona Maricota não compreendia como uma mulher poderia ser feliz sem casar. E a
filha, Ismênia, incapaz de vibração alguma com o casamento.
Além das moças, rapazes e famílias, estavam presentes no baile: Caldas, Florêncio e
Bustamante. Não convidaram o Ricardo. Era festa séria.
Inocêncio Bustamante, outro amigo, possuía honras de major por ter sido voluntário da
Pátria. Todo dia ia ao quartel-general ver seus requerimentos.
Era festa, Dona Maricota aproximou-se dos amigos do marido e disse: “Senhores,
estão no salão tantas moças a espera de rapazes para dançar!”
No meio da partida de cartas, Quinota, uma das filhas do Albernaz, ao entrar na sala,
Caldas perguntou: “E o Genelício?”. Ela emudeceu.
Este tal de Genelício espalhou a notícia. Não só ele, mas todos acreditavam que o
ofício em tupi que fiz ao ministro era loucura. Exceto Olga.
O doutor Florêncio e Genelício, segundo soube, disseram que certos livros deviam ser
proibidos a pessoas como eu - um simples professor.
Eles falam de quem e do que não conhecem! Com essa gente só troquei coisas
corriqueiras. Olga sabe a verdade, entre nós há admiração e afeto.
Depois que a mãe morreu, Olga tornou-se uma pessoa irregular e indisciplinada. O
compadre Coleoni queria casar a filha bem e ao gosto dela.
Meu coração não concordava com o compadre, mas também não podia discordar.
Como padrinho de Olga tinha que respeitar o lugar a que me coube.
Coleoni pensou em casar a filha com seu ajudante, uma espécie de arquiteto.
Convenceu-se de que a inteligência da menina não combinava com rudezas.
Havia momentos que Coleoni se aborrecia muito com os propósitos da filha. Ele
gostava de dormir cedo, mas era seu dever acompanhar Olga aos bailes.
Coleoni lia de manhã os jornais. Deparou-se com o meu requerimento. Eu, para ele,
era mais que compadre, era um homem digno de duplo respeito.
Olga não me julgava. Nela falava o amor às grandes coisas e aos cometimentos de
feitos ousados. Lembrei-me que lhe falara em emancipação.
O diretor disse que tinha sido ofendido 3 vezes: na sua honra individual, na de sua
casta e na do Colégio Pedro II, onde trabalhávamos.
O hospício! O lugar dos loucos ou dos que ousaram lutar? Estou vivendo numa
sepultura. Existem outros, muitos outros atormentados, com medo.
Se não fosse meu compadre Coleoni, meu amigo Ricardo Coração dos Outros e minha
amada afilhada, a loucura passaria do papel para a vida.
Ela, eu sinto em seu abraço, em seus olhos, a certeza de minha lucidez. Disse-me em
uma de suas visitas ao lado do pai: “Quer sair daqui?”
Fui pego de surpresa com a notícia do noivado de minha afilhada com o doutorando
Armando Borges. Preferi ficar mais um tempo no hospício.
Perguntei se Olga gostava do noivo. Ela ficou um longo tempo em silêncio, como se
não soubesse o que responder. “Será que ela me ama?”, pensei.
Disse-me: “Padrinho, os rapazes que eu conheço não tem ‘o quê’ de especial. Sabe,
aquela força de projeção para as grandes coisas?”.
Em minha loucura, tive que me controlar. Percebi que ela ia casar por hábito da
sociedade, talvez por não poder aceitar que ama o proibido.
Em visita a minha irmã, Olga ficou sabendo que Ismênia andava triste por ter sido
abandonada pelo noivo, o tal de Cavalcânti. Ia ser solteirona.
Todos se foram! Ela encontrou meu corpo imóvel e deteriorado. Abraçou-me com
cuidado. Beijou-me os lábios e levou-me para o sítio sossego.
Meu crime foi lembrar ao Marechal de Ferro que o crescimento do Brasil depende do
agricultor.
Os donos do poder calaram a minha voz em 1911. Hoje, 100 anos depois, escreveria
que o crescimento do Brasil passa pela valorização do professor.