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UN\\lERS1DAOf: ESTADUAL DE CAMPINAS

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SÃO PAULO
1986
© Osvaldo Pessoa Júnior & Anthony Henman

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SUMÁRIO
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EQUIPE DE REALIZAÇÃO:
Introdução ...... , . 7 ./

Supervisão editorial: Luiz Roberto Benati I - O discurso médico 17


Revisão: Ana Rotondano ~
Antônio José Fonseca 1. "Os fumadores de maconha: efeitos e males do v (cio", de Rodri-
gues D6ria . 19 -:
Produção gráfica: Hélio Daziano 2. "Sobre o v (cio da diamba", de Francisco de Assis Iglésias . 39·.•.
Ilustração da capa: Cláudio Leme Ferreira 3. "Aspectos do maconhismo em Sergipe", de Garcia Moreno . 53 ,..
Arte-final: Wilson Garcia '~ 4. "Maconha (Cannabis Sativa): mito e realidade, fatos e fanta-
sia", de Elisaldo A. Carlini .......................•.. 67

II - Argumentos libertá rios 89

1. "A guerra às drogas é uma guerra etnocida", de Anthony Richard


Henman . 91
Apêndice: "Cadeia para (ndios que usam tóxico" . 112
2. "A maconha na história do Brasil", de Luiz Mott " . 117/
3. "Alguns aspectos sóclo-jurrdlcos da maconha", de Alberto Za-
charias Toron .' . 137/
4. "A liberação da maconha no Brasil", de Osvaldo Pessoa Júnior .. '147

NQde catálogo: 2151

EDITORA GROUND LTDA.


(Uma divisão da eJobllJ editorá e distribuidorIlUdll.)
Rua França Pinto, 836 - Cx. Postal 45329 Rua Mariz e Barros, 39 - conjs. 26/36
Fone: (011) 572-4473 Fone: (021) 573-5944
Cep 04016 - V. Mariana - Cep 20270 - Tijuca
São Paulo - SP. Rio de Janeiro - RJ
INTRODUÇÃO

)"

Diamba Sarabamba!
Diamba não é maconha, por mais que sejam da mesma planta.
Por isso resgatamos a diamba, palavra de origem angolana, para
recolocar a questão da descriminalização da Cannabis sativa.
Mas, por que diamba?
Não a resgatamos por um falso saudosismo, nem por pretensa eru-
dição. Menos ainda por regionalismo, pois é evidente que em Alagaas ou
no Maranhão a diamba dá" a mesma cana que a mera muamba do Sul.
A razão toda da diamba está nas suas associações, ausentes nos outros
sinônimos: o vago "fumo", o arcaico "panqo", o moderninho "fumaeê" ...
Sobre os organizadores A diamba é prazer e comunhão. Planta viçosa e bem adaptada ao nosso
meio ecológico, ela floresce dos pampas às matas amazônicas, do litoral
ao próprio planalto central. Seu uso, no dizer dos sociólogos, "já se encon-
tra profundamente arraigado nas camadas populares". Como, então,
Anthony" Henman nasceu em São Paulo, filho de pai inglês e mãe
explicar a total ausência de um debate polrtlco sobre a sua legalização,
argentina. Formou-se pela Universidade de Cambridge, Inglaterra, tornan-
at~ recentemente? Será antidemocrático defender a sabedoria de um povo
do-se Mestre em Antropologia Social pela mesma Universidade em 1975. diambista?
"Trabalhou dois anos na Colômbia, dos quais resultaram o livro Mama Coes A explicação está toda na palavra maconha, ou melhor, na percepção
(Londres, 1978; Bogotá, 1981). Em 1978/9 pesquisou o uso das plantas da falsa consciência decorrente do uso dela pelo poder autoritário. Graças
medicinais, estimulantes e aluclnóqenas entre os grupos indígenas da a um obscurantismo secular, já todos devemos saber que o uso da maconha
Amazônia brasileira. é vício horrfvel, que leva à completa perdição. "Maconha, primeiro degrau
Publicou a obra O Guaraná (ao-edição Global/Ground). ~ professor da morte ou loucura" - estampa uma manchete recente. Não se admite
da cadeira de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas "qualquer análise séria dos aspectos econômicos de sua produção. Não se
da UN ICAMP e, atualmente, defende tese de doutoramento em Antropo- questionam as campanhas supostamente educativas sobre essa "droga"
logia, na Inglaterra, com bolsa desta entidade, sobre o tema "A História perigosa que paira sobre a nossa juventude. Maconheiro é marginal. Com a
maconha não tem jeito. A maconha já "dançou".
do uso de drogas na Grã-Bretanha".
Com a diamba, em compensação, tudo está por começar. Frente à
propaganda de desinformação que domina os meios de difusão e que
encontra receptividade na mentalidade classe média, o momento exige
Osvaldo Pessoa Jr. nasceu em São Paulo, filho de pai brasileiro e umà explicação histórica de como se luta em cada época pela liberação
mãe americana. ~ bacharel em Física e Filosofia pela USP. Fez mestrado da diamba. De mãos dadas com os rastas da Jamaica, os marimberos da
emFfsica na UNICAMP e um ano de pós-graduação em História e Filosofia Colômbia e muitos outros nesse Novo Mundo, procura-se mostrar o
da Ciência. Atualmente defende tese de doutoramento em História e Filo- absurdo da guerra surda desencadeada por Washington. Já chega de jovens
sofiada Ciência na Universidade Indiana, em Bloomington, USA. presos e espancados, de batidas noturnas, de operações de erradicação de •

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plantações por meio de novos herbicidas. Já chega dessas campanhas
públicas contra a diamba, tão distorcidas e desproporcionais a qualquer lubricidade", decorrente de sua ação. Chega a ser surpreendente como
eventual "perigo" encerrado nessa planta, Sua real função não é de alertar revelações desse tipo se opõem frontalmente às experiências relatadas
nem de informar, mas de contribuir para a sistemática propagação do pelos usuários citados pelo autor. A sua ânsia de demonstrar o " maco-
medo e da desconfiança nos lares e bares, escolas e faculdades, fábricas nismo crônico" pode ser explicada a partir do modelo. de saúde pública
e fazendas, do continente da doutrina Monroe. que se impunha no Brasil no começo do século e que evidenciava pouco
respeito pela ciência autêntica, encontrando sua principal função na
A primeira parte desta coletânea, intitulada "O discurso médico", implantação de uma nova ideologia de controle social. A profissão médica,
procura estabelecer as bases de um entendimento sobre o processo histó- estimulada por colegas nos parses mais desenvolvidos, procurava problemas
rico que levou à criminalização da diamba no Brasil. Em quatro textos de de ordem clínica para garantir sua ascendência na política nacional. O que
médicos, de desde o começo do século, observa-se apenas no mais recente se buscava era um "problema insolúvel" que justificasse a perpetuação
uma clara separação entre fato e mito. Todos, no entanto, são ricos em indefinida de uma poderosa burocracia médico-legal e que contasse com
originalidade e observação, ao contrário da maior parte da literatura um alto grau de apoio consensual da parte de toda pessoa "de bem".
brasileira sobre o tema. A segunda parte apresenta um discurso fundado Junto com a fiscalização dos chamados "desvios" sexuais, foi o
em considerações sociais, jurfdicas e culturais, que formam os "Argu- controle de drogas uma das principais saídas encontradas para esse impasse.
mentos Libertá rios", representados por quatro artigos recentes. Em primeiro lugar, como não se tratava de uma doença palpável e objetiva,
O trabalho do Dr. Rodrigues Dória foi, pelo que se conhece, o não obrigaria as autoridades a nenhum investimento de vulto em termos
primeiro a ser dedicado exclusivamente à temâtica da diamba no Brasil, e de tratamento. Segundo; já que a droga é uma substância tlsica, cujo
o argumento e o tom inaugurados nas suas páginas seriam seguidos por porte permite uma imediata autuação, um "flagrante", a sua repressão
mais de meio século pela maioria dos outros autores que se dedicaram ao -seria muito mais viável, do ponto de vista policial, que a identificação de
assunto. Certamenté, não se trata de um 'mero acaso o fato de.este trabalho um estado de ânimo abstrato como a "loucura" ou o "comportamento
ser apresentado num congresso reunido em Washington. No ano anterior, anti-social". Terceiro, existia uma total indiferença (e até um desprezo)
1914, a legislatura norte-americana promulgara a notória Jiarrison Açt, pela questão da diamba dentro das diversas correntes polrticas no Brasil,
a primeira lei no mundo dedicada à fiscalização do uso "não-medicinal" inclusive as alas liberais e radicais de esquerda. Enfim, existia a possibili-
das drogas de origem vegetal. dade de se criar' um consenso rnonolrtlco em torno da repressão à maco-
A inspiração intelectual de Rodrigues Dória, porém, provinha de • nha, já que as vrtirnas seriam os sem-voz e sem-vez - as "camadas mais
outras fontes, principalmente autores médicos franceses do século passado, baixas".
como o mui citado Dr. Roger Dupouy. Aproveitando o clima médico de Sem provas, então, e sem a mais elementar argumentação lógica, o
hostilidade ao uso livre de drogas e à automedicação em geral, Rodri~es Brasil embarcava na cruzada internacional contra as drogas, com o esti-
Dória simplesmente transferiu à figura do diambista o quadro patológico mável Rodrig.Jes Dória convidado a Washington para alertar o mundo
do viciado em ópio. A transferência foi muito bem aceita no Brasil por sobre um "magno problema" ainda em estado de gestação. E os desapare-
dois motivos: primeiro, não existia na época setor letrado algum que cidos barcaceiros do baixá São Francisco, os portadores do "vírus" no
defendesse ou mesmo compreendesse os padrões de consumo popular nosso meio, será que eles entenderam o papel que Ihes foi reservado
da diamba (à diferença do Peru, onde campanhas similares contra a coca pela história? Será que, entre baforadas nas maricas, entre rimas e loas
chocaram-se com uma corrente de opinião nacionalista); e, segundo, a em louvor à diamba, eles perceberam que o seu exemplo anônimo serviria
associação da diamba com os ex-escravos fornecia à elite social nordestina para criar o mito da maconha-veneno?
a mais perfeita ocasião para manifestar os seus sentimentos racistas, O ,seg.Jndo artigo da coletânea, de Assis Iglésias, mostra que o
fazendo eco à anterior proibição do uso do "píto-do-pango" por negros complexo cultural da diamba não se restringia às localidades geográficas
no Rio de Janeiro em. 1830. . tratadas por Rodrigues Dória, mas também incluía outro centro de disper-
A leitura do artigo de Rodrigues D6ria mostra claramente esses são no Estado do Maranhão, que por sua vez chegou a influenciar o Ceará,
elementos de preconceito., Referiu-se no início às "graves conseqüências o Piauí e boa parte da Região Amazônica. Ao coligir valiosas observações
criminosas" que seriam produzidas pelo-"vício". Mais adiante introduziu sobre o "clube dos diambistas", que se reunia semanalmente numa locali-
a "loucura transitória e mesmo definitiva", decorrente da erva, e a "grande dade do vale do Mearim, o autor repete a litania abusiva já considerada de
,
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Paulista de Medicina e continuador dos trabalhos pioneiros de R ibeiro do
rigor nesses casos - "vício", "tirania", "crime", "degredação", "estupi- Valle sobre os efeitos da diamba. Nesse importante artigo, ele nos fornece
'dez", "loucura", "delfr io", "suicídio", "morte" e nota-se uma recomen- dados recentes sobre o estado atual da vanguarda farmacológica nos
dação final bem mais linha-dura que a do próprio Rodrigues Dória: "Medi- estudos sobre a diamba, constatando que "do ponto de vista físico é quase
das enérgicas de profilaxia devem ser adotadas pelos poderes competentes certo que o uso da maconha, mesmo crônico, não causa grandes distúrbios",
a fim de evitar as graves conseqüências da extensão desse perigoso Vicio", o que é um grande avanço sobre as posições obscurantistas que predom i-
Para fortalecer esse argumento, vemos também o primeiro alerta (já em navam na profissão até anos bem recentes. Essa visão somente agora foi
1918) sobre a extensão do uso da "planta da loucura" nas camadas sociais traduzida numa mudança na postura do Conselho Federal de Entorpe-
mais abastadas. Supostamente isso teria de acontecer via "câmaras das centes e esperamos que leve a uma reconsideração das campanhas alarm istas
prostitutas", até que "logo, mu ito logo, os moços elegantes se embriagarão veiculadas pela grande imprensa do pais.
com a diamba e como, desgraçadamente, eies têm irmãs, o Vicio terrível O artigo do prof. Carlini apresenta uma avaliação da trama política,
passará a fazer parte da moda ... " social e econômica criada em torno da ilegalidade da diamba e termina
Eis o protótipo das campanhas na imprensa brasileira dos últimos por levantar a controvertida questão da qualificação do uso da maconha
anos, a salada de drogas e libertinagem que tanto pavor vêm inspirando como "escapismo fácil" ou "protesto inútil", que poderia afetar a capa-
nos pais de famllias. Não pode ser um mero acidente o fato de que já cidade dos jovens de reagir e protestar. Não se trata de dizer que todo e
se criavam os parâmetros de uma relação doentia com a maconha, mesmo qualquer uso da diamba é necessariamente bom, nem que não existem
antes de essa relação existir na realidade. As palavras de Assis Iglésias, casos em que tal uso pode tornar-se problemático. Esses casos, porém,
então, seriam pressentimento ou projeção, advertência ou advertising? são na verdade bastante raros e, certamente devem-se mais a condições
Com o terceiro autor, Garcia Moreno, voltamos a Sergipe, mas psíquicas do indivíduo em questão do que a qualquer efeito nefasto da
agora para o meio urbano da década de 40, onde se pode constatar uma, erva em si. Agora, se for esse o caso, de que adianta manter uma imprati-
clara evolução nos padrões de consumo. desde o tipo arcaico originalmente cável proibição ao uso da diamba? Será que a própria ilegalidade da coisa -
descrito por Rodrigues Dória - como, por exemplo, a substituição da e suas seqüelas: a paranóia, a necessidade de encobrir o hábito, a associação
marica pelo baseado. Parece, também, que, de tanto insistir no encontro com a criminalidade, etc. - não contribui para tornar a possibilidade
da maconha com a atividade criminal, essa associação chegou a pular de transtornos mais provável, em vez de menos? E, em vista desse inegável
das páginas das revistas médicas e encarnar-se nas atividades de jovens efeito de agravação produzido pelo status criminal da diamba, será cínico
indigentes como os "ratos cinzentos" descritos por Garcia Moreno. Ma~ demais supor que a burocracia médico-Iegal, no afã de manter sua posição
seria isso prova da tese de que o uso da maconha leva inexoravelmente ao privilegiada de poder, sente a necessidade de apoiar-se precisamente no
crime'? A sobrevivência, em Aracaju, de tipos de poesia popu lar associados fato de o "problema" continuar insolúvel para sempre?
ao uso de diamba no meio mais tradicional bem poderia indicar outra No entanto, o "problema" não é insolúvel. Basta apenas encará-I o
explicação; ou seja, que da migração da população rural para os centros de outra forma, para ver que a solução já está presente nas práticas dos
'urbanos (já acentuada na década de 40)resultou uma situação de penúria milhões de diambistas que passaram pela experiência sem se tornarem
e desemprego onde floreséiam atividades marginais e onde a manutenção nem viciados nem loucos, nem violentos nem criminosos, nem Vitimas de
de traços culturais como o uso da diamba serviam para criar uma tênue uma luxúria irresistivel. Em todas as partes do mundo, e em qualquer
solidariedade social frente ao caos e ao desespero. tipo de sociedade, existem controles culturais sobre o uso de substâncias
De qualquer forma, Garcia Moreno continuou na já trilhada tradição as mais diversas, desde a comida até os narcóticos clássicos à base de ópio.
de dar mais crença às autoridades científicas estrangeiras que às humildes Ao considerar o assunto com a devida calma, torna-se evidente que tais
colocações dos usuários sergipanos. No entanto, declarava: "Até agora controles são muito mais efetivos quando partem da experiência dos
não pude isolar um caso sequer, em que a diamba pudesse ser indigitada próprios usuários, e muito menos efetivos quando impostos de fora por
como causa dos distúrbios mentais": Mas, em vez de o fato lançar dúvidas alguma "autoridade competente" sem nenhum entendimento do mundo
sobre as santas verdades da profissão psiqu iátrica, ele preferia supor que cognitivo do consumidor. A solução, então, está na potencialização, no
a razão dessa estranha anomalia estivesse "no baixo poder tóxico da encorajamento desses controles espontâneos e informais, que se mani-
nossa Cannabis sativa". festam claramente na determinação de situações e na discriminação de
A última contribuição do capítulo "O discurso médico" foi gentil- maneiras em que se usa ou não se usa uma determinada substância. No
mente cedida pelo professor Elisaldo Carlini, psicofarmacólogo da Escola
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caso da maconha, esse processo passa necessariamente pela revogação de praxe a que são submetidos os presos em flagrante. Sua recornendaçãc;ao
leis inoperantes e repressivas - que só atrapalham o processo de auto-escla- final - a descriminalização - foi também o ponto de partida de umí
recimento - e pela abertura de canais públicos para maior troca de idéias série de lniciatlvas públicas de esclarecimento sobre a diamba, cuja traje~a
entre os mesmos usuários. O presente livro representa uma pequena, e tória no período 1978-1985 é analisada no detalhado e informativo artigi~~
ainda incompleta, aproximação a essa idéia. de Osvaldo Pessoa Jr.
Na segunda parte, "Argumentos libertérios", uma abordagem etno-
gráfica do antropólogo Anthony Henman começa por analisar um caso
específico - o uso da diamba entre os índios Tenetehara do Maranhão - Cabem apenas algumas considerações finais sobre o rumo da campa-
e trata de mostrar como a socialização implícita nas práticas desse grupo nha de descriminalização na nova, e talvez enganadora, aurora democrátíca~-
faz que sejam pouco prováveis as reações problemáticas, do tipo que se que atualmente se desenha sobre o Brasil. Com certeza, seria precoce::
vem chamando de "abuso" na literatura médica. Os problemas associados imaginar que o atual liberalismo burguês - cujas propostas pOlíticas e'
ao uso da diamba no meio rural maranhense são quase todos de ordem origens sociais se confundem com as da própria burocracia médiCO-legaI3~
legal. Quer dizer, cana, tortura, batidas policiais, associadas a uma complexa
situação de fricção interétnica que, ainda em 1984, levava o bispo de
_ estará em condições de alterar radicalmente o quadro da situação. ,.
Aliás, as consonâncias entre esse neoliberalismo e os ideais progressistas I s
Grajaú a insuflar a população da região contra os índios e a FUNAI por dos seus assessores norte-americanos virtualmente excluem a possibili- , I-
suposto "tráfico de maconha". dade de se encarar, no Brasil, qualquer saída que seja autônoma, indepen-,_
Não devemos, no entanto, deixar-nos confundir com o exotismo dente, e de acordo com as verdadeiras tradições do nosso país (provavel- _
da cultura indígena, nem fazer eco às versões jornalísticas que falam de mente o primeiro a dar guarida à Cannabis sativa na sua viagem/perseguição,
"rituais" como se fossem uma exclusividade de grupos com organização pelas Américas). "Balançar o coreto" com uma descriminalização contun- .
tribal. Os índios não são um caso à parte, nem se Ihes pode atribuir um dente, da produção e do comércio, e não só do consumo individual, seria
monopólio sobre a possibilidade de manterem uma, relação sadia com a provocação demasiada ao establishment dedicado a uma guerra continental:
planta. Muito pelo contrário, é evidente que os processos de ritualização às drogas, além do fato de que tocaria em sérios interesses nacionais tanto
no consumo da diamba se acham presentes em todas as camadas e classes econômicos como ideológicos, criados 'em torno da continuada repressão.
sociais, fornecendo evidências de uma aculturação da Cannabis sativa Pequenas mudanças reformistas, porém, continuarão a ser admi-
que vem ocorrendo há séculos no Brasil. tidas, mesmo porque essas são as formas de esvaziar a crescente rnobili-
Por essa razão, é de inestimável valor a paciente tarefa de rscons- zação em favor da descriminalização. Já se ouve pouco sobre casos de
trução histórica que se apresenta no trabalho de Luiz Mott, aqui publi- tortura e longas sentenças de prisão, apesar de que extorsões financeiras,
cado pela primeira vez. Fora o detalhado resumo dos mais diversos autores, bofetões e longas demoras nas delegacias ainda são o comum resultado de
nacionais e estrangeiros, que tiveram alguma coisa a dizer sobre. o uso da um flagrante por porte de maconha. Alguns dos programas mais grotescos
diamba no país, é de especial interesse o resultado das pesquisas efetuadas de "educação sobre tóxicos" provavelmente serão arquivados, o tom das
com fontes manuscritas de diversos arquivos históricos, e o esclarecimento campanhas jornalísticas será abrandado, e a maconha cederá o espaço
dado ao antes corifuso tema da presença dessa planta nos cultos afro-brasi- à cocaína nas paradas do sucesso/perigo/lucro. Seguindo'o rastro da coca,
leiros. Mãis ainda, é um imenso prazer saudar um colega que tenha o peito as grandes operações policiais serão desenvolvidas em áreas de fronteira
de apresentar, e fazer aprovar, uma moção de descriminalização da Csn- que reclamam a vigilância dos órgãos de segurança nacional, onde todo
nabis sativa numa reunião da Associação Brasileira de Antropologia. Que bandido fala espanhol e onde a população local não controla sequer uma
se saiba, este é o primeiro caso, no Brasil, em que uma entidade de cunho única cadeira no Congresso Nacional. Nos grandes centros, serão os peque-
científico e acadêmico coloca-se ao lado dos que lutam pelo fim da absur- nos traficantes - aquelas sádicas, maldosas sanguessugas - que terão de
da e insustentável situação criada pela proibição. apanhar, carregando nas costas toda a responsabilidade por uma distorção
Nos dois últimos trabalhos desta coletânea, já partimos para a econômica que não foi de sua criação. No fundo, nada de novo na terra
atuação política concreta, ou seja, para a campanha pela reformulação do sol. ..
das leis. Com base em sua longa experiência de defesa aos infratores da Fora a gradativa tolerância das autoridades para com o uso da
Lei dos Tóxicos, o advogado Alberto Zacharias Toron descreve as contra- diamba, a radicalização da campanha de descriminalização se vê eompro-
-dições jurídicas que regem o assunto, sublinhando também os abusos de metida por uma certa indiferença pública, e também - devemos admiti-to

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- por uma profunda moleza e desânimo da parte dos mesmos usuários,
alguns dos quais costumam defender um movimento "de consumo e E dizô turututu,
não de protesto". Que podemos dizer para a rapaziada encostada na praia, Bicho feio é o dedo-du,
queimando palha e pagando caro pelo seu "prazer" ao complexo poli- Entrou na delegacia de São Bento
cial-mafioso? Vamos exigir uma mobilização política? Uma expressão Foi sair no Grajaú.
artística? Uma análise sociológica? Federal só transa com maluco
~ pouco provável que nos atendam. ~ diffcil até que nos entendam. Pra queimar o seu tutu.
Daí surge a única proposta - a jardinagem contestatória, a auto-sufici-
ência "canábica" - que pode arrojar um pouco de luz às trevas, confun- Queima mano, queima?
dindo "os homens" com uma gradativa descentralização do mercado e Dizô! Dizõl
acabando com o grande tráfico que eles fiscalizam. Com o maior respeito,
então, dedicamos os seguintes versos aos anônimos e já falecidos diam- Dizô, planta ou plantação,
bistas maranhenses, que deram a Assis Iglésias o modelo de uma louvação De qualquer jeito é fumo bão,
à Cannabis sativa. Esperamos desta forma marcar a união do passado Melhor fazer roça na calçada
com o presente e do presente com o futuro, já que sabemos que no Brasil Que comprar do camburão.
a diamba sempre existirá. Gente doida não admite
Depender do avião.

* * * Planta, mano, planta?


Dizõl Dizõ!

Diambando

Os organizadores
Ó diamba, sarabamba!
Quando eu planto a diamba,
Fico com a mutuca cheia
E com minha cabeça zamba.

Fica zamba, mano? (pergunta um)


Dizõl Dizôl (respondem todos em coro)

Diamba matô Jacinto


Por ser um bom transadô,
Traição dos homem podre
Pra quem Jacinto transô.

Transô, mano, transô?


Dizõl Dizõ!

14 15
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1. OS FUMADORES DE MACONHA: EFEITOS E MALES
DO VICIO

Or. Rodrigues Oória 1

- Memória apresentada ao Segundo Conqresso Científico


Pan-Americano, reunido em 'Washington D.C., a 27 de
dezembro de 1915.

1. Professor de Medicina Pública da Faculdade de Direito da Bahia, Presidente da


,Faculdade de Medicina, Presidente da Sociedade de Medicina Legal, Representante do
Go~erno do Estado, da Faculdade de Direito, do Instituto Histórioo e Geográfioo, da
~cledade de Medicina Legal e Oiminologia da Bahia no Segundo Congresso Cientj'-
fito Pan-Americano, reunido em Washington D.e. a 27 de dezembro de 1915.

19
"Actuellement dans Ia plupart des pays du
monde, /'homme, à quelquerenq de Ia so-
ciété qu'il appartienne, fait usage pour sa
satisfactiori personetle de certa ines substen-
ces toxiques, perticuliérement excitantes
pour son systême nerveux. Cet usage remon-
te aux époques les plus reculées, se perpé-
tue de génération en génération en se trens-
formant parfois suivant les caprices de Ia
mode, et va souvent jusqu' à !'abus occs-
sionnant alors les troubles les plus variés
comme formes et comme intensité".
DR. ROGER DUPOUY - Le Opiomanes.

Os chineses, vencidos em 1842 pelos ingleses, tiveram de se submeter


à 'ganância comercial dos brancos civilizados, que os obrigaram a abrir de
novo os seus portos e consentir na importação do ópio, que tanto tem
estraqado e deteriorado a milhões de filhos do Celeste Império. O vício
de fumar a droga não ficou, porém, limitaçlo àqueles povos orientais;
acompanhou os usuários desse comércio nefasto; e hoje faz as suas devas-
tações em vários parsesda Europa, especialmente na Inglaterra e na França,
onde se encontram em maior profusão as casas de fumar o chandoo ou o
dross. "~ovencidoquesevinga do seu vencedor", diz o professor E. Régis,
no Prefácio do Les Opiomanes do dr. Roger Dupouy, "inoculando-lhe sua
perigosa paixão atávica, o que Brunet soube com propriedade chamar uma
avaria do Extremo Oriente".
Outro tanto podemos também dizer: os nossos antepassados, ávidos
de lucro, fizeram o baixo tráfico de carne humana, no começo da nossa
formação, até 1851, quando foi decretada a proibição de importar os
pretos africanos, arrebatados à fruição selvagem das suas terras, para serem
aqui vendidos, como escravos que as leis assim os reconheciam. Em 13 de
maio de 1888, por entre alegrias e festas, foi promulgada a lei que aboliu
a escravidão no Brasil e integrada a nacionalidade com os libertados,
tornados cidadãos: mas no País já estavam inoculados vários prejuízos e
males da execrável instituição, difíceis de exterminar. Dentre esses males
que acompanharam a raça subjugada, e como um castigo pela usurpação
do que mais precioso tem o homem - a sua liberdade -, nos ficou o vício
pernicioso e degenerativo de fumar as sumidades floridas da planta aqui
denominada fumo de Angola, maconha e diamba, e ainda por corrupção,
liamba, ou riamba. .

21
A palavra fumo, que quer dizer propriamente os gases, mais ou rande a importação de escravos, que mais tarde, com o aumento grande-
menos densos que se desprendem dos corpos em combustão, substituiu no ~ente remunerador do plantio do café, nas províncias de São Paulo e
Brasil, quer no comércio, quer em outras relações, o vocábu 10 tabaco para Rio de Janeiro, eram vendidos para o Sul. Os índios amansados aprende-
designar a nicotina tabacum seja a planta viva, sejam as flores preparadas ram a usar da maconha, vício a que se entregam com paixão, como fazem
para serem fumadas, como quando são enroladas em corda, ou dispostas a outros vícios, como o do álcool, tornando-se hábito inveterado. Fumam
em ma.nocas - expressão brasileira dada aos molhos (manojos) de folhas também os mestiços, e, é nas camadas mais baixas que predomina o seu
próprias para a confecção dos charutos. A analogia do uso das folhas da uso, pouco ou quase nada. conhecido na parte mais educada e civilizada da
diamba e da nicociana certamente determinou a denominação de fumo sociedade brasileira. "Na Africa, diz Charles Eloy (Diccionaire encyclopé-
d' Angola, derivada ainda dessa parte da África ocidental, possessão portu- dique des sciences médicales, artigo "Haschich"}, das margens do Medi-
guesa, donde naturalmente nos veio a planta. Por este nome ouvi muita terrâneo até o Cabo da Boa Esperança, é vulgar o emprego da "Cannabis
vez chamar o vegetal em Sergipe e Alagoas, nas margens do rio São Fran- indica, e nas diversas partes da Ásia mais de duzentos milhões de homens
cisco. são escravos deste hábito," A esse número pode-se acrescentar o de cente-
Nos dicionários da língua portuguesa de Adolpho Coelho, Aulete, nas, ou antes, de milhares de brasileiros.
Silva Bastos e outros lê-se que a palavra "liarnba", o mesmo que pango, A África já havia recebido a planta da Ásia, onde nasce espontanea-
indica erva do Brasil, da tamüia das mirtáceas (Cannabis sativa), "de mente ao pé das montanhas além do lago Baikal, e em outros sítios, e com
cujas folhas, diz Moraes, os negros usam como tabaco, que fumam em a qual preparam o haschich. Tais são os seus efeitos perniciosos, que dele
cachimbos, e Ihes produz o efeito pernicioso do ópio; por isso foi em defjva a palavra "assassino", vinda do árabe Hachich, ou pó das folhas do
tempo a sua venda proibida por posturas municipais da Câmara da Cidade cânhamo, com que ele é preparado (Adolpho Coelho). O dicionário da
do Rio de Janeiro; também lhe chamam liamba e riamba." língua inglesa de Webster consigna esta mesma etimologia. Conta-se que
A planta não é entretanto brasileira, como pensam os primeiros na Idade Média, entre 1090 e 1260, os pnncipes do Líbano, especialmente
lexicógrafos citados, e informam alguns fumadores, que dizem fora primi- Hassarn-ben-Sabak Homairi, apelidado o "Velho da Montanha", fazia os
tivamente usada pelos índios. Minha atenção foi chamada para a maconha, seus soldados usarem a planta, para fanatizá-los, e, com furor, assassinarem
o' seu uso no Brasil, depois da leitura de um trecho da obra de Bentley - os inimigos, e a legenda chamou-o princípe dos Haxixinos.
A manual of botany - no qual, tratando da família das Canabináceas, e O cultivo da maconha, ou do cânhamo, entre nós, não é largamente
referindo-se à Cennsbis sativa, e a sua variedade indica, diz o autor: "Esta espalhado, por não ser aqui utilizada a liamba na indústria das fibras
planta é igualmente conhecida sob o nome de liamba, na África ocidental, têxteis, e somente empregada como "planta da felicidade", causando as
onde é empregada para fins intoxicantes sob os nomes de maconia, ou delícias dos que a fumam pelo êxtase em que entram. Esse cultivo é acom-
Makiah". Conseguintemente, o fato de ser o vegetal largamente usado panhado de práticas fetichistas, que bem fazem lembrar a celebrada
pelos pretos africanos, nas antigas províncias, hoje Estados, onde eles mandrágora da antigüidade. Os mistérios que cercam os cuidados com a
abundavam, a paridade dos nomes que aqui sofreu ligeira modificação, planta concorreram para lhe dar ma is valor, exaltar as suas virtudes, exci-
mudança apenas de uma letra - maconha, liamba ou riamba -, e o apelido tando a imaginação dos ignorantes, sugestionando-os. Os meus colegas e
de fumo d' Angola, indicam bem a sua importação africana. Em 1910, amigos drs. Aristides Fontes, clínico em Aracaju, e Xavier do Monte, em
quando estive na presidência do Estado de, Sergipe, pude fazer a identifi- Propriá, atendendo bondosamente às minhas solicitações, fizeram em
cação da maconha com o cânhamo, cultivando ali a planta com sementes Sergipe, nas suas respectivas cidades, inquéritos, que muito me vão
adquiridas nas margens do R io São Francisco. auxiliar na confecção deste ligeiro e despretensioso trabalho. .
t principalmente no Norte do Brasil onde sei achar-se o vício de A planta, da fam [lia das canabináceas, é herbácea, anual, atingindo
fumar a maconha' mais espalhado, prod~zindo· estragos individuais e em Sergipe, como verifiquei, um metro e meio mais ou menos de altura,
dando por vezes lugar a graves conseqüências criminosas. Nessa parte do dióica, com folhas inferiores opostas, e alternas às superiores, estipuladas,
País, primeiramente, se desenvolveu a lavoura, da cana-de-açúcar, e foi de limbo profundamente fendido, com 5 e 7 lóbulos, de bordas serrilhad'as,

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ficarem "curtidas", ou sofrerem fermentação, o que as torna, dizem,
como se vê nas figuras juntas. A inflor.escência feminina é em espigas
e is agradáveis ao fumar, modificando esse processo a acidez da planta e
compostas; as flores são regulares, na axila de uma bráctea persistente,
~~'indo as suas propriedades nauseabundas.
que envolve o fruto, o qual é um achênio, amarelo escuro, com venula- ,~ maconha é ordinariamente fumada pura, ou misturada às vezes ao \
ções c/aras. As inflorescências ocupam os vértices das hastes. .••. mo - nicociana - em cigarros, cujo invólucro é feito de brácteas de
Dizem os cultivadores que o vegetal macho não atinge o crescimento, milho (Zea mais) das mais centrais, por serem mais delgadas e macias, ou
nem tem a abundância de ramificação de planta fêmea, e são mais delgados em cachimbos, depois de separados os frutos, o que fazem colocando as
os seus ramos. Isto talvez devido aos cuidados maiores que têm com a inflorescências na palma de uma mão e coma outra imprimindo um movi-
fêmea, empregada de preferência em todos os misteres, exceto, na medi- mento rotatório sobre a massa. O fornilho do cachimbo é na maioria dos
cina popular, quando dão em infusão contra as cólicas uterinas. Somente casos de barro, grosseiramente confeccionado, e enegrecido, depois de
. neste caso recomendam as inflorescências e 'folhas da "planta masculina". cozido com fumaça de certos vegetais resinosos, que os torna luzidios
t:
sem a menor dúvida o vegetal cultivado e usado no Brasil sob a exteriormente. Nas margens do rio de São Francisco f~zem também o
denom inação de maconha, fumo d' Angola e d iamba, nada mais do que cachimbo de pedra. A capacidade do fornilho é igual ~ dos cachimbos
o cânhamo - Cannabis saiiva, ou a sua variedade indica, que nos países comuns de gesso, ou de espuma, ao qual é adaptado um tubo de despren-
quentes adquire propriedades mais ativas e enérgicas, e com a qual os dimento da fumaça, feito de madeira. Escolhem para isto ramos de um
asiáticos preparam o haxixe e outras misturas e cujas folhas, colhidas na vegetal a que denominam "canudeiro", "pau de cachimbo" ou "canudo de
época da floração, e dessecadas, são por eles fumadas, sob a denominação pita", Carpotroche brasi/iensis Endl, Bixaceas, em virtude de ter o caule
de gunjah. fistuloso e do mesmo diâmetro em grande extensão. Com um furão aqueci-
Quando a planta atinge certo desehvolvimento, e tende a se rami- do ao rubro removem os restos da medula, e às vezes enfeitam toscamente
ficar, procedem ao processo da "capação", que consiste em cortar o olho com anéis e riscos, exteriormente, feitos a fogo (pirogravura). Alguns"
ou o rebento terminal, para provocar o desenvolvimento de olhos laterais, servem-se também dos ramos da coirana, Cestrum /aevigatum, Sch/etch, da
família das solanáceas. Para mitigar a ação irritante dafumaça que provoca
e, portanto, produzir maior ramificação, à semelhança do que fazem os
tosse, e às vezes faz espirrar, adaptam o cachirnboa um dispositivo, em
cultivadores de nicociana.
imitação ao cachimbo turco, e pelo qual a fumaça é lavada, deixando na
Essa operação, efetuada no segundo mês de vegetação, não deve ser
• água, segundo dizem os fumantes, o sarro, e ficando mais fresca, agradável,
feita em presença de mulheres, que não podem tocar o vegetal, principal-
aromática (?) e ativa. Esse dispositivo consiste numa garrafa comum, ou
mente em ocasião das regras, pois faz "machear" a planta, isto é, esta
em uma cabaça, que é o fruto de uma cucurbitácea, Lagenaria vu/garis, do
produzirá inflorescências masculinas, que são as menos apreciadas. Essa
qual extraem as sementes e a polpa por um furo no ponto da inserção
lenda a respeito da mulher menstruada é bem velha, e já Plínio, o Antigo,
do pedúnculo. Esse fruto tem a perspectiva de 8, sendo o bojo inferior
dizia que tão violenta era a toxicidade do sangue menstrual que seu con-
muito maior do que o superior. Chamam-no também "grogoió", nome
tato, ou mesmo o seu vapor.' podia azedar o vinho, tornar 'estéreis as proveniente de grogo/i, que quer dizer "vaso cheio d'água em que se emerge
sementes, queimar as plantas novas, matar os enxertos, secar os frutos, e o tubo dos cachimbos para resfriar o fumo" (Silva Bastos, Dic. Portuquês).
diversas coisas mais. Durante a operação feita sobre o fumo d' Angola, o Como se vê dos desenhos, introduzem o tubo do cachimbo, que tem uns
operador deve ter cuidado de não dizer obscenidades, nem assoviar, o que 30 centímetros, mais ou menos, pela boca da garrafa, até mergulhar na
comumente fazem os lavradores durante o trabalho do campo, porque água, que em certa porção está no interior. Este é o dispositivo mais rudi-
dar-se-iam os mesmos resultados que a aproximação ou o contato de uma mentar, e fumam aplicando os lábios diretamente sobre a boca da garrafa'
mulher durante o catamênio. que não fica de todo obturada, e onde chupam, precisando um certo
A colheita se faz na maturidade da planta, e são usadas de prefe- exercício para conseguirem aspirar bem a fumaça. Uma dupla tubuladura,
rência, ou quase exclusivamente, as inflorescências femininas, com os invó- sendo um dos tubos curvos para embocadura, já é um aperfeiçoamento.
lucros florais e brácteas. Essas partes são dessecadas à sombra, expostas a No dispositivo da cabaça fazem um oritrcio no bojo menor, onde colocam
correntes de ar, e depois algumas noites ao relento para receberem o sereno Um pequeno tubo de taquari, Merostachys clausseni, gramíneas, onde

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chupam, "puxam" a fumaça, como se exprimem os praticantes. Às vezes,
aspiram diretamente, pondo os lábios sobre a cabaça. Esses cachimbos
constituem um arremedo do -n.ar:g,':!.!lé ou cachimbo turco, usado nas Dizem que a maconha os torna mais espertos, e de inteligência mais
casas de fumar o ópio, ou nos bazares árabes onde se fuma o haxixe. Ao pronta e fecunda para encontrar a idéia e achar a consonância. Vi algumas
cachimbo com o dispositivo da garrafa ou da cabaça dão, na gíria dos vezes, quando criança, nas feiras semanais de Propriá, minha terra natal,
fumantes (Aracaju), o nome de "maricas". Os mais refinados no vício ã noite, ao cessar a vendagem, indiv(duos se entregarem à prática de fumar
fazem no tubo do cachimbo, na parte que fica fora da garrafa ou da cabaça, a erva nos dispositivos rústicos já descritos, dos quais mu itos se servem pro-
um pequeno furo para se desprender um pouco da fumaça que não foi miscuamente, sorvendo em austos profundos a fumarada apetecida, depois
lavada, e provocar espirros, irritando a pituitária, e constituindo isto um do que entrava o desafio ou o duelo poético; algumas vezes a contenda toma-
epifenômeno poético do vício. O maricas é companheiro inseparável dos va feição diferente, e exigia a intervenção da polícia para apaziguar os conten-
canoeiros e barcacetros. r; também apreciado entre eles o burburinho que dores exaltados. E fumada nos quartéis, nas prisões, onde penetra às escon-
ao atravessar a água produz a fumaça sorvida em profundos e esforçados didas; é fumada em agrupamentos ocasionais ou em reuniões apropriadas
tragos. . e nos bordéis. Muitos fumam isoladamente à semelhança do uso do tabaco.
\ Õ uso do cânhamo é muito antigo. Heródoto fala da embriaguez dos
citas que respiravam e bebiam a decocção dos grãos verdes do cânhamo.
Õs sintomas
-......
- ------..~---
apresentados pela embriaguez - da maconha
..• -~ ..•.•
com a dose Tu'iiiããa, com a proveniência da planta, que pode conter maior
são variáveis

. No livro de Botânica do dr. J. M. Caminhoá, que foi professor desta matéria quantidade dos princípios ativos, com as sugestões, e principalmente com
na Faculdade de Medicina do R lo de Janeiro, lê·se _queo famoso "remédio o temperamento individual. Um estado de oem-esta-, de satiSfação, de
das mulheres" de Dióspolis, bem como o nepente de que fala Homero, e felicidade, de alegria ruidosa são os efeitos nervosos predominantes. r;
" esse estado agradável de euforia que leva a maior parte dos habituados a
que Helena recebera de Polimnésio, era a Cannabis indica. Os cruzados
viram os efeitos nos muçulmanos. Março Pólo observou nas cortes orientais procurar a planta, a cujo uso se entregam com mais ou menos aferro. As
entre os emires e os sultões. r; muito usado no vale do Tiqree Eufrates, nas idéias se tornam mais claras e passam com rapidez diante do esp(rito; os
.(ndias, na Pérsia, no Turquestão, na Ásia Menor, no Egito e em todo o embriagados falam demasiadamente, dão estrepitosas gargalhadas; agitam-se,
litoral africano. Com cânhamo se prepara o haxixe, como já foi dito, e pulam, caminham; mostram-se amáveois, com expansões fraternais; vêem
ainda pouco conhecido na sua manipulação; o povo do Oriente fuma o pó objetos fantásticos, ou de acordo com as idéias predominantes no indiví-
das folhas e flores no n_arguilé. o duo, ou com as sugestões do momento. Dizem quea embriguez da maconha
Entre as diferentes misturas em.que entra a planta formando a sua mostra o instinto do indivíduo, como se atribui ao vinho _ in vino veritas.
base, e que tem nomes diversos, os mais usados são o dawamec (da Arábial, Algumas vezes dão em beberagem para obterem a revelação de segredos.
o rnapouchari (do Cairo), e o maoou (de Calcutá). Naquelas partes os A esse estado segue-se às vezes sono calmo, visitado por sonhos deliciosos.
hachahs, comedores, bebedores e fumadores, consomem o haxixe em Há na embriaguez da maconha o fato interessante de, após a dissipação dos
estabelecimentos especiais ou rnaschechels, semelhantes às casas de fumar fenômenos, lembrar-se o paciente de tudo o que se passou durante a fase
\ do dei (rio.
o ópio.
Entre nós a planta é usáda como fumo, ou em infusão, e entra na '- O dr. Aristides Fontes, que conversou com pescadores, habituados
composição de certas beberagens, empregadas pelos "feiticeiros", em geral a Usar a maconha, ouviu que, quando se encontram no mar em canoas
pretos africanos ou velhos caboclos. Nos "candomblés" - festas religiosas ou jangadas, fumam em grupos para se sentirem mais alegres, dispostos ao
dos africanos, ou dos pretos crioulos, deles descendentes, e que Ihes trabalho, e menos penosamente vencerem o frio e as agruras da vida do
herdaram os costumes e a fé,é empregada para produzir alucinações e.excl- mar. Denominam "assembléia" a essa reunião, e começam a sessão fuman-
tar os movimentos nas danças selvagens dessas reuniões barulhentas. Em dO,no cachimbo "maricas", no qual cada um "puxa a sua tragada", na frase
Pernambuco a erva é fumada nos "catimós" - lugares onde se fazem os por eles empregada, para exprimir o esforço que exige o cachimbo tosco e
feitiços, e são freqüentados pelos que vão ali procurar a sorte e a felici- a quantidade maior da fumaça que procuram absorver. Depois de algumas
dade. Em Alagoas, nos sambas e batuques, que são danças aprendidas fumadas, tocados pelo efeito da maconha, tornam-se alegres, conversado-
dos pretos africanos, usam a planta, e também entre os que "porfiam res, (ntimos e amáveis na palestra, uns contam lmtórias; tais fazem versos;
na colcheia", o que entre o povo rústico consiste em diálogo rimado e Outros têm alucinações agradáveis, ouvem sons melodiosos, como o canto
cantado em que cada réplica, quase sempre em quadras, começa pela da sereia, entidade muito em voga entre eles. IUm desses, caboclo, ~obusto,.
deixa ou pelas últimas palavras do contendor. de 43 anos de idade, fumando a erva há mais de vinte anos, sem apresentar
perturbação da saúde, informou que a usava, quando se sentia triste, com
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falta de apetite e pouca disposição para. o trabalho, principalmente à noite, cercada de uma auréola brilhante, a brincar com os anjos. Wood diz que
quando ia para a pescaria, ficando satisfeito, disposto e podendo comer para o "haxixado" a duração de um minuto representa um século, um
copiosamente. Dizem que faz cessar as câimbras que experimentam ao estreito aposento alarga-se até a imensidade; transpõe mares, continentes,
entrar n'água, à noite. Ao dr. Xavier do Monte referiu L.S., a quem conheço, atravessa os ares, seu espírito perde o sentimento da extensão.
homem de 45 anos de idade mais ou menos, robusto, que fumou a maco- O quadro sintomático pode ser diverso. ~ conhecido nos lugares,
nha, como experiência, sentindo-se alegre, achando graça em tudo, dando onde abusam da maconha, o dei (rio, a loucura transitória e mesmo definiti-
estridentes gargalhadas a todo propósito, como um louco e tinha muita va, causados pela planta, e com fisionomia per"igosa. Os embriagados
fome. Comeu desmesuradamente, e após cessou o delrrlo, entrando em tornam-se rixosos, agressivos, e vão até a prática de violências e crimes, se
sono profundo e calmo. Dizem que o açúcar de cana faz cessar os fenô- não são contidos. Um trabalhador, pardo, de 30 anos, robusto, referiu ao
menos da embriaguez. Alguns misturam-no com as folhas no cachimbo. dr. Xavier do Monte ter fumado a maconha, como remédio para dores de
Já Merat e De Lens aconselhavam o uso do cânhamo na hipocondria, dentes, e logo sobrevieram-lhe suores frios e abundantes, I(ngua pesada,
na morosidade e no spleen. pegajosa, e delírio. Tudo o amedrontava, via-se perseguido pelo povo, Sentia
É também notado por toda a parte esse aumento de apetite, que faz fome devoradora, e depois de ter comido uma porção de betatas-doees e
empregar a planta como aperitivo; exceto nos iniciantes, que às vezes têm farinha de mandioca, foi melhorando, até voltar ao estado normal.
náuseas e vômitos. Kaempfen menciona a fome "canina" como sintoma do Do inquérito feito pelo dr. Aristides Fontes, que é médico da Escola
haxixlsmo. O apetite, porém, se perde e embota nas intoxicações intensas de Aprendizes Marinheiros de Aracaju, ouviu a um sargento da mesma
e na forma crônica. ... escola contando 28 anos de idade, que, quando aprendia na Escola de
Villard, citado por Charles Eloy, observou no Cairo, entre os fuma- Maceió, aos 16 anos, vendo freqüentemente um preto velho africano
dores do haxixe essa erupção de alegria retumbante, palrice, com grande fumar a maconha no "maricas", experimentou a erva em cigarro, sentin-
volubilidade, gestos rápidos e gargalhadas. Notou que as alucinações se do-se logo tonto e vendo tudo girar ao redor de si. Por mais baixo que lhe
relacionam, nas casas de fumar a erva, com as figuras pintadas nas paredes, falassem ouvia as vozes em alta tonalidade; tinha alucinações auditivas e
e muitas vezes refletem as idéias dominantes na pessoa e daí o estado de visuais, ouvia cantos de pássaros, e via vaga lumes no ar. Tinha a impressão
beatitude, de sensações indivisíveis de felicidade, de languidez, com de que tudo ia cair sobre ele e estendia os braços para se amparar. Sentia
criações imaginativas bizarras dos orientais. as pernas pesadas, fatigadas, e a impressão de que estava a subir uma ladeira;
Em uma nota do livro Les Opiomenes, já citado, se lê a seguinte as idéias eram confusas. Adormeceu, e quatro horas depois despertou,
descrição de Sachs: sentindo apenas fome intensa, chegando a comer 6 pães de 200 gramas
cada um.
"0 haxixe produz os efeitos seguintes: o ar se adelgaça e parece
conter suaves perfumes. Tudo é belo e radioso. Sente-se prazer em viver. Um preto carregador, de 39 anos, de disposição alegre e risonha,
Sob sua influência fiz passeios soberbos; meu arrebatamento foi além de fumou a maconha, e sentiu forte excitação, deu para pular, correr; depois
toda expressão. Sua influência depende do temperamento dequem o usa. dormiu, e sonhou coisas maravilhosas, passando mais ou menos neste
Faz alegria; produz gargalhadas pelo motivo o mais fútil. Exagera o apetite, último estado por dois dias. Diz ter melhorado de câimbras e dores reumá-
ticas de que sofria.
torna eloqüente, gracioso, encantador. Sob sua influência durante duas
horas me exprimi em versos livres; as rimas eram ricas e as idéias perfeita- Essa incessante necessidade de locomoção é referida por Henri
mente sensatas e seguidas. Seus inconvenientes são a sensação de um Cazin, que diz tê-Ia visto seguida de prostação e síncope.
estrangulamento mais forte do que no ópio, uma tinta lívida, esverdinhada, Um magistrado de Sergipe referiu o fato de um seu estribeiro, rapaz
uma fome que nada aplaca, algumas vezes desejos sexuais loucos, com de 16'anos, mais ou menos, de modos humildes, o qual teve delírio furioso,
requintes impossíveis de sexualidade ... , a produção de ataques epilépticos agressivo, tendo sido trancado em.um quarto, onde entrou em sono pro-
e perturbações atáxicas ... " fundo, do qual desper.tou sentindo cansaço e languidez.
Nas experiências de Villard, as idéias se sucedem com rapidez, se Referiu-se o farmacêutico militar Cândido Correia que, em Óbidos,

.
contradizem, se entrechocam, as palavras se comprimem para exprimi-Ias, no Estado do Pará, onde estacionava o 409 Batalhão de Artilharia, um sol-
e tornam-se incoerentes. O intoxicado ouve o murmúrio de uma fonte, dado, aliás de boa conduta, foi submetido a conselho de guerra, e sofreu
-
julga-se no meio do mar, transportado; embalado em um barco, ao lado penas, por haver fumado a diamba, pela primeira vez, e entrado em delí-
de belas mulheres; ora assiste a um fogo de artitrcio, tendo a cabeça rio furioso, tentando matar um capitão, em cuja casa entrou, armado

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O uso da maconha, em doses moderadas, estimula a circulação,
aumenta o calor periférico, e acalma as gastralgias, despertando o apetite, e
de faca, tendo ferido uma outra pessoa. Também referiu-me o farmacêu- ' •. excita os órgãos da locomoção. As doses altas, mormente nos noviços,
tico Maffei, que funcionou na Comissão Militar, a qual, nestes últimos três produz náuseas, vômitos, languidez, peso nos membros.
anos; traçou os limites entre Brasil e Venezuela, ter visto meter' em camisa- Sobre os órgãos sexuais parece exercer uma ação excitadora, que
de-força dois soldados, em delírio furioso, por haverem fumado a erva. pode levar a grande lubricidade. A maior parte dos fumadores ouvidos
Os comandantes dos batalhões, nos Estados do Norte, são forçados ~ disseram que a erva corrige "os estragos da idade". Um soldado contou
terem uma grande vigilância, para evitar que a maconha entre nos quartéis, ao dr. A. Fontes que quando fumava a maconha sentia efeitos afrodisíacos,
pelas conseqüências desastrosas, como brigas, agressões e crimes. tinha sonhos eróticos, e poluções noturnas. Esse efeito se estende às mu-
Em Penedo (Alagoas) para evitar perturbações que se davam nas lheres. O dr. Alexandre Freire, médico que exerceu a clínica em uma vila
feiras, as autoridades policiais, rigorosamente, proibiram a venda da maco- do interior de Sergipe, referiu ter visto uma mulher embriagada pela maco-
nha. nha de tal forma excitada que, no meio da rua, não mostrando o menor
A loucura pode ser a conseqüência do uso da erva. Oficiais do 33? respeito ao pudor e fazendo exibições, solicitava os transeuntes ao comér-
Batalhão de Infantaria, que já estacionou em Aracaju, referiram que o cio intersexual. As prostitutas, que às vezes se dão ao vício, excitadas pela
soldado João Baptista, de 30 anos, moreno, entregava-se ao vício de fumar droga, quando fumam em sociedade, entregam-se ao deboche com furor,
a liamba, e tinha exaltações megalomaníacas, dizendo-se general, Deus e praticam entre elas o tribadismo ou amor lésbico. Villard viu em um
ete.; desenhava no passeio do quartel navios, nos quais, em mares tempes- bazar, no Cairo, uma mulher, que se fazia notar pelas excentricidades,
tuosos, fazia longas viagens. Uma vez tentou agredir um oficial, acabando manifestando uma grande excitação: rosto vermelho, olhos brilhantes,
na loucura que o fez excluir do exército, sendo metido em custódia. cabelos em desordem; ria-se sem motivo e falava sem cessar, agitava-se, 'fazia
Utilizam-se às vezes da droga os soldados que querem dar baixa, para 'meneios, e soltando de vez em quando um "sh" prolongado, que os árabes
simular a loucura e iludir a inspeção médica. ' presentes imitavam, e que entre eles é indício de uma profunda voluptuosi-
"A alienação mental, escreve Charles Eloy, é um dos fenômenos ter- dade.
minais do vício." No Egito, o número de alienados aumentou paralela- O abuso da substância tem efeito oposto; todas as funções nervosas
mente ao uso do haxixe, e a loucura tem a forma monomaníaca com aluci- se deprimem. Os inveterados e os insaciáveis no vício podem entrar em um
estado de caquexia, que não permite viver muito tempo. Emagrecem rápi-
nações. .da e consideravelmente, adquirem cor térrea amarela, dispepsia gastrointes-
No livro Les opiomanes, já citado, lê-se que, ao contrário do que se
observa na intoxicação pelo ópio, em certas formas do haxixismo agudo, tinal, fisionomia triste e abatida, depressão de todas as funções, bronquites.
a embriaguez é muito mais povoada de alucinações, mais barulhenta, e Nesse estado quase sempre a morte sobrevém em pouco tempo, e diz o
Pouchet descreveu-a do seguinte modo: "Alguns indivíduos são tomados povo haver uma tísica da maconha, de forma aguda e rápida, exterminando
de delírio furioso que obriga a amarrá-Ios, para pô-Ios na impossibilidade a vida em dois ou três meses, Nesse estado de maconismo crônico, o vício é
imperioso, dominante e tirânico. Villard observou, nos bazares árabes, os
de ofender; dão gritos estridentes, reviram e quebram tudo o que se acha
a seu alcance; têm os olhos fixos, a face injetada, a anestesia completa." viciosos irreduHveis "acocora dos a um canto, estranhos ao que ali se pas-
Os malaios e os javaneses chamam a esse estado de fúria amok, porque sava; rosto sombrio, olhos fixos, traços repuxados, só despertando para de
novo tomar o narguilé, onde aspiravam bruscamente alguns sorvos, para em
assim gritam os intoxicados: Amok! Amokl (mata! mata!). "Se se interro-
seguida deixar cair a cabeça pesada sobre os joelhos". Saem um instante do
gar, diz Roger Dupouy, esses indivíduos, ao saírem de uma crise deamok,
torpor, olham embrutecidos ao redor, e apenas respondem aos que os
dizem que viam tigres, javalis, veados, cães, diabos, que eles queriam matar.
interrogam. Nesse estado perdem toda a aptidão profissional, toda habili-
Etiológica e clinicamente o amok deve ser imputado ao haxixe, e não
dade. Os nossos arruinados pelo vício voltam ao cachimbo logo que se vai
ao ópio. Eles misturam o cânhamo ao ópio e, segundo Jeanselme, o bang, dissipando o delírio, e despertam do torpor. ' .
que é uma mistura de folhas e frutos do cânhamo, é no Oriente freqüen- A embriaguez causada pela fumaça da maconha pode se estender a
, temente associado ao ópio, e provoca uma agitação particularmente vio- Outras pessoas que não a fumam, e apenas respiram o ar dela impregnado.
lenta. O chang ou gunjah dos índios, o esrar, o kif dos árabes (extrato de Contou-me o farmacêutico C. Correia, já mencionado, ter visto em Óbidos
cânhamo destinado a ser fumado), o chira da Tunfsia, não são outra coisa cair em narcose a senhora de um médico militar, que se achava perto de
senão preparados do haxixe, diz o mesmo autor, destinados a ser fumados; um fumante na mesma sala.
são às vezes misturados ao ópio, e seus efeitos são mais nocivos."
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São citados os fenômenos de atordoamento e vertigens causados
Aos crimes praticados durante a embriaguez pela diamba se devem
pelas emanações das culturas do cânhamo, e que são favorecidos por um
aplicar as disposições penais, relativas à embriaguez alcoólica em um estado
sol ardente. Provavelmente são efeitos da canabina ou seu princípio volátil
de loucura ou insônia, que o privam da consciência e da liberdade necessárias
que se derrama na atmosfera.
à responsabilidade; mas pode-se a respeito desta embriaguez raciocinar como
Entre nós esse efeito não é mencionado em virtude de serem limi-
o prof. Charles Mercier acerca da embriaguez alcoólica: "E perigoso admitir
tadas as plantações do cânhamo, somente com o fim de ser fumado, não
em absoluto a escusa da embriaguez na justificação do crime; e quem
se conhecendo a utilidade industrial das fibras do lrber, devendo aliás a
atividade da planta, aqui produzida, ser grande. O cânhamo obtido na
°
voluntariamente bebe até ponto de se tornar um perjgo para a sociedade,
deveria ser punido em toda a plenitude por qualquer ofensa praticada no
Inglaterra, diz 8entley, varia tanto em atividade que não são certos os seus
estado a que o reduziu o seu próprio abandono". O sentimento de justiça,
efeitos, e por isso não é muito empregado. Na Suécia não tem efeito
porém, se opõe à punição sem as condições da imputabilidade acima refe-
embriagante, e na Rússia os frutos, de albúmem oleoso, são empregados na
ridas. A lei inglesa não admite a embriaguez como escusa do crime; coloca-se,
alimentação das aves, e mesmo do homem.
portanto, num dos extremos da questão, desde que por si só a embriaguez
Na medicina popular é entre nós empregada a maconha como fumo,
já é considerada um delito. A lei penal brasileira, sem deixar de admitir
e raramente em infusão; é dada na asma, onde aliás á tosse provocada pela
a escusa do que pratica um crime no estado de delírio que traga a abolição
fumaça faz recear um uso mais extenso na moléstia; nas perturbações
da consciência eda liberdade, qualquer que seja a causa, fez da embriaguez
gastrointestinais, nas nevralgias, nas cólicas uterinas, e finalmente como
uma circunstância atenuante dos crimes, somente quando ela é acidental,
afrodisíaco. Pereira chama o cânhamo hilariante, inebriante, fantasma-
e não procurada para infundir coragem, ou é habitual.e turbulenta.
górico, hipnótico ou soporífico, e estupefaciente ou narcótico, tais são os
O § lOdo art. 42, que enumera as circunstâncias atenuantes, assim
efeitos múltiplos por ele produzidos.' ,
reza: "Ter o delinqüente cometido o crime em estado de embriaguez
. Como devem ser considerados os atos praticados pelo indivíduo em
incompleta, e não procurada como meio de o animar a cometer o crime
estado de embriaguez pela maconha, ou pelo cânhamo? nesse estado, não sendo acostumado a cometer crimes nesse estado."
Oual o grau de imputabilidade que se lhe pode atribuir, e, conse-
Essa disposição pode ser perfeitamente aplicada ao embriagado pela
qüentemente, a responsabilidade pelos crimes cometidos nesse estado? maconha.
Qual a capacidade para exercer 0$ atos da vida civil?
Relativamente aos atos da vida civil, a embriaguez aguda, transitória,
O Código Penal brasileirc, de referência à responsabilidade, diz:
não justificaria medidas de interdição, aliás perfeitamente aplicadas à
"Artigo 27. Não são criminosos: embriaguez crônica, tal como a descreveu Villard. Todavia, o estado de
§ 49 - Os que se acharem em estado de completa privação de senti-
euforia que o indivíduo, não dominado e perturbado permanentemente
dos e de inteligência no ato de cometer o crime". pelo vício, sente ao fumar a erva, pode conduzi-Io, nas suas expansões, a
Conquanto a redação defeituosa desse parágrafo já tivesse dado
praticar atos da vidacivil, que lhe tragam sérias obrigações, como contratos,
ocasião ao redator do Códiqo de declarar que por um erro tipográfico
doações, vendas, assinatura de letras, os quais não devem subsistir, provado
figura" a palavra sentido em vez de senso, compreende-se bem que a lei
o estado em que se achava o indivíduo no momento de assumir essas obri-
penal não pode tornar responsável pelos crimes cometidos aquele que no
gações, sendo até certo ponto comparável esse estado ao da primeira fase,
momento da ação se acha em estado de não conhecer o valor do ato prati- ou ao período médico-legal da paralisia geral.
cado e suas conseqüências, e não esteja em estado de liberdade de praticá-
O testemunho do indivíduo intoxicado pela maconha não pode ter
10, condições essenciais ao dolo e à culpa. "Qualquer ato", diz o prof.
valor. E empregada pelos africanos para obter declarações, confissões,
Ziino, "que esteja além da esfera racional, volitiva e moral, não pode
revelações de segredos, a abrandar resistências em matéria de amor (filtro).
ser 'imputável' e quem o pratica não é obrigado a responder por ele diante
De que meios se pode lançar mão para extinguir, ou dominar o v(cio?
da justiça dos tribunais. Crimen enim eontrahitur si et vo/untas nocendi
Extraordinária é a fascinação que exercem as drogas estimulantes e
intereedat. Consto 19 ed, L. Cometiam de cicer., C. IX, 16", ou como
narcóticas sobre o organismo humano, muito principalmente se o terreno
ensina Pellegrino Rossi:" 1 9 que o agente tenha podido conhecer a exis-
está preparado para o bom desenvolvimento do hábito, se alguma tara
tência do dever e a natureza do ato em si; 29 que tenha compreendido
degenerativa existe congenitamente, ou se vícios anteriores predispuseram
que o seu ato teve por índole violar o dever; 39 que seja livre de cometê-Io,
a economia a novos vícios; são freqüentes as associações do alcoolismo
ou de se abster". Com outros vícios, e com o hábito de fumar a maconha. Do inquérito a
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pacientes em voltar à erva em um segundo acesso, ou como preventivo, e
que tenho procedido a respeito do uso de fumar as sumidades florais da daí se gera com facilidade o hábito e o vício de fumar a maconha.
planta que faz o objeto deste trabalho, é ele muito disseminado entre Os pesares são outra causa freqüente do vício: para esquecer, embora
pessoas de baixa condição, na maioria analfabetos, homens do campo, transitoriamente, incômodos morais, suavizar a dureza de uma vida atribu-
trabalhadores rurais, plantadores de arroz, nas margens do rio de São Fran- lada; e passar momentos alegres, distraídos, esperançosos, acalentados na
cisco, canoeiros, pescadores, e também nos quartéis pelos soldados, os fantasia álacre que os embala no espaço, como as espirais voltejantes do
quais ainda entre nós são tirados da escória da nossa sociedade. Todos os fumo traiçoeiro, os abandonados da sorte se entregam ao domínio da erva;
soldados do exército que estacionaram no Amazonas, Pará, Maranhão, e se não é um forte, o naufrágio é irremediável, principalmente se a dor
moral está associada à tara orgânica.
nos outros Estados do Norte até Sergipe, mas principalmente nos primeiros
mencionados, e com quem conversei sobre o assunto, me declararam ter A imitação é freqüentemente uma causa do hábito, especialmente
Visto fumar a maconha, e os seus efeitos deletérios. Várias pessoas têm-na nos jovens. Como na nicociana, de uso universal hoje, muitos se entregam
usado por muitos anos, moderadamente, sem inconvenientes palpáveis, ao vício de fumar a maconha por ver fumar aos outros, que por sua vez
experimentando apenas a sensação de uma ligeira euforia. São os sombrios, influem aos inexperientes, contando-Ihes com entusiasmo os gozos inefáveis
como os já em relação ao álcool, que parcimoniosamente usado, pode até e os prazeres encantadores- que a erva proporciona. Dá-se coisa semelhante
ser uma necessidade, no pensar do prof. Charles Mercier, para fazer daspren- ao que se passa com o vício do ópio, somente aqui não são instruídos e
.letrados os propagandistas, como os que fala o prof. E. Régis, nos segu intes
der as energias latentes após o esgotamento das fadigas do dia, assim como
faz o açúcar que se ajunta às águas gasosas, provocando novo desprendi- termos: "Coisa curiosa, todo letrado que aspira os vapores da droga (o ópio)
mento de ácido carbônico. se julga na obrigação, sincera ou não de glorificar publicamente os seus
O sistema nervoso, no seu aperfeiçoamento evolutivo até o homem, " encantos; todo fumante torna-se um tentador; por um requinte de volúpia
paralelamente com as vantagens adquiridas, como uma inteligência pene- perversa, esse pecador tem necessidade de arrastar outros em seu pecado".
trante, sensibilidade apurada, tornou-se mais exigente pelos estimulantes, !: um sentimento geral do homem não querer estar só na queda, e esse
e por isso, mais inclinado e sujeito aos hábitos perniciosos como o vício da sentimento egoísta se exprime bem no rifão popular: "Mal de muitos
morfina, da cocaína, do álcool o tóxico-rei, ao qual Shakespeare achou consolo é", quando consolo e satisfação devem ser o bem de todos.
mais apropriado o nome de diabo (devil), da nicociana, do cânhamo, e O amor dos prazeres e da sensualidade, uma vida indisciplinada e
outros. "Em relação à moral", diz W. A. Holis, "na história da vida dos ani- descuidosa, sempre ávida de novas e estranhas sensações, que é o apanágio
mais inferiores há s~m dúvida muitas _outras telções, que seria vantajoso dos gozadores e sibaritas, conduz iguàlmente os desregrados a procurarem
copiar". Nos degenerados e tarados. nos descu idados, o hábito se estabelece, no vício a felicidade e os gozos, que artificiais e passageiros Ihes causa o
"êxtase produzido pela absorção da fumaça da planta maravilhosa.
e com o hábito o embotamento do sistema nervoso, que reclama novos e
cada vez mais fortes estrrnulos, e conseqüentemente maior dose do veneno. Uma instrução bem dirigida, reforçada por princípios de sã moral, o
"O gosto do homem pelos tóxicos embriaqantes", escreve o prof. E. conhecimento claro do mal, necessariamente revigoram e fortificam o
Régis, "querido ou instintivo, é, em todo caso, tão velho quanto o mundo." ânimo para a resistência ao v (cio de qualquer natureza; não obstante espfri-
Sujeito às dores Hsicas, como todos os outros animais, e ainda às penas tos lúcidos, geniais, instruídos, como T. de Ouíncev, Coleridqe, Edgarcl Poe,
morais, diz Bottá, o homem se esforça por escapar a sua existência rea( e Baudelaire, e outros, entregaram-se ao uso do ópio, que tanto exaltaram
procura em um mundo imaginário a felicidade fictícia de seus insaciáveis nas suas produções literárias. Recentemente se tem chamado a atenção, na
desejos. França, para o vício de fumar o ópio, espantosamente disseminado, sendo
Na Penitenciária de Aracaju, onde de alguns anos para cá é proibida as casas de fumar a droga freqüentadas por pessoas de certa instrução,
a entrada da maconha, por causa dos distúrbios por ela motivados entre como os oficiais da armada, nos portos de Toulon, Marseille, Brest etc.
presos, os sentenciados se entregavam ao hábito de fumá-Ia "para alivia- Conquanto o uso de fumar a maconha, no Brasil, ainda esteja, como foi
rem o espírito acabrunhado pela prisão, e terem por esse modo momentos dito anteriormente, limitado às classes ignorantes, tenho notícia de ai.
de.d lstraçãó e alegria". guns fumadores com grau de instrução regular, e de um funcionário
A dor ffsica é muitas vezes a causa do vício. As nevralgias dentárias, PÚblico, bastante inteligente, dominado pelo vício. Como quer que seja,
creio na instrução e na educação como bons preservativos do hábito perni-
as dores reumáticas, as qastralqias, cólicas uterinàs em estados d isme-
norréicos, determinam muita vez o emprego da planta pelos seus efeitos cioso, incumbindo aos poderes públicos melhor cuidarem deste magno'
narcóticos e analgésicos; e obtido o resultado benéfico, não hesitam os problema, tão descurado entre nós, onde o analfabetismo é a regra.

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A proibição do comércio da planta. preparada para ser fumada, descoberta, se causa estupenda admiração pelos seus efeitos analgésicos
poderá restringir a sua disseminação progressiva. Sei que em alguns Estados locais, permitindo sem dor a realização de delicadas operações cirúrgicas a
do Norte as violências cometidas durante a embriaguez da maconha têm que assiste, quase como um estranho, o próprio paciente, tem-se tornado
levado as autoridades policiais a proibir a vendagem da erva nas feiras. Em entre os povos civilizados e nevrostênicos um flagelo.
Penedo, segundo informações que me deram, essa proibição tem dado E o quanto se poderia dizer do mais antigo talvez dos vícios, da into-
resultado, quase extinguindo as brigas provenientes da embriaguez pela xicação por excelência, da embriaguez 'alcoólica !
maconha. A raça preta, selvagem e ignorante, resistente, mas intemperante, se
A cura individual depende da capacidade revigorante do ânimo do em determinadas circunstâncias prestou grandes serviços aos brancos, seus
vicioso e da disciplina de sua vontade, sem a qual nada se pode obter. A irmãos mais adiantados em civilização, dando-Ihes, pelo seu trabalho cor-
respeito deste vício têm perfeita aplicação as palavras de Lydston, com poral, fortuna e comodidades, estragando o robusto organismo no v (cio de
relação à embriaguez alcoólica. Exaltando a educação como elemento fumar a erva maravilhosa, que, nos êxtases fantásticos, lhe faria rever talvez
poderoso no tratamento de embriaguez, acrescenta: "0 elemento psíquico as areias ardentes e os desertos sem fim de sua adorada e saudosa pátria,
deve ser sempre tomado em consideração, pois sem a sua cooperação todo inoculou também o mal nos que o afastaram da terra querida, lhe roubaram
tratamento é fútil." a liberdade preciosa, e lhe sugaram a seiva reconstrutiva; e, na expressão
E é assim que nada existe sobre a terra absolutamente bom ou abso- incomparável do grande e genial poeta americano, o mavioso Longfellow,
lutamente mau: compete ao homem, no seu aperfeiçoamento, utilizar-se a' raça expoliada, como o Sansão da Bíblia:
da primeira face, dominando e tornando ineficaz a segunda. Os dons da
natureza podem se transformar em verdadeiras calamidades quando mal
"
"The poor, b/ind s/ave,the scoff and jest of ali,
empregados. As mais notáveis e marevllhosas descobertas do gênio e do Expired, and thousands perished in the fali".
saber do homem, por maiores vantagens e proveito que possam trazer à
espécie, muitas vezes se tornam em arma destruidora e fatal. No processo Bahia, Brasil, novembro de 1915.
da evolução não chegou ao homem a capacidade de voar, que parou em
certos répteis, no dragão voador (Draco vo/ans), o qual no dizer de W. A.
Holis, "reteve a arte de deslizar através do ar". A vida de peixe por sua NOTA:
vez desaparecé no momento em que a crlanrta humana se destaca do seio Só após a minha volta do Congresso Científico Pan-Americano foi
materno para viver vida própria. "E esse primor da arte que é o homem", que recebi o resultado do inquérito, a meu pedido feito, pelo meu colega
na frase inimitável e sublime do autor do Hamleto, "nobre em sua razão, e amigo dr. Francisco Fonseca, clfnico na cidade de Maroim (Estado de
infinito em suas faculdades, expressivo e admirável em sua força e em seus Sergipe), na zona de sua prática. Essas informações confirmam pontos
movimentos, semelhante ao anjo pela ação, pelo pensamento semelhante a- tratados nesta Memória, e foram principalmente fornecidos por um fumante
Deus", se corta os ares nas asas dos seus inventos surpreendentes, fazendo inveterado de 60 a 65 anos, robusto, musculoso, sadio, atribuindo o seu
a viagem das águas, que perderam o domínio das alturas atmosféricas; ou vigor ao hábito de fumar maconha, desde rapaz, no Estado de Alagoas, de
quando corre debaixo das ondas, espantando os peixes no seu viver aquá- onde é filho, residindo há muitos anos em Pirambu, povoação e praia de
tico, nem sempre estão colhendo benetrcios ao bem-estar de seus irmãos banhos em Sergipe. Nessa povoação, e outras próximas, onde existem
na superfície da terra: esses portentosos engenhos de seu incompará- muitos pescadores, o vfcio é grandemente disseminado. Em lugares de
vel talento, quais são o dirigível ou o aeroplano, e assim também o barco, Sergipe e Alagoas, nas margens do rio São Francisco, cultivam a planta,
submarino, estão atualmente empregados exclusivamente no funesto mister que vendem, preparada para ser fumada, sob a denominação de "pelotas",
da destruição, da exterminação do que os povos europeus, empenhados na pela forma que tomam as inflorescências, e à razão de 3$000 o quilo, e
maior guerra que jamais o mundo viu, têm de mais esperançoso e forte, 30$000 e 40$000 a arroba.
No terreno da terapêutica, os resultados esplendentes que fornece. Os informantes fazem as declarações com dificuldade e timidez,
nas mãos prudentes e práticas do.médico, essa goma concreta das papoulas' receosos de uma ação policial. Nesses lugares fumam em reuniões e locais
_ o ópio -, o rei da dor, e sob cuja ação rnaràvllhosa' cessam esses sofri- determ inados.
mentos físicos, que tanto perturbam o curso das moléstias, tem o seu Indagações obsequiosamente feitas em Penedo, por obséqui6 do
reverso no hábito nefasto de comer ou fumar a droga. A cocaína, de recente Coronel José Antônio da Silva Costa, em Vila Nova, do coronel José

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Lesse, também me chegaram às mãos tatde, mas me eram conhecidas as .-
referências feitas, e estavam exaradas no meu trabalho.

POSTURAS DA CÂMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO

SEÇÃO PRIMEIRA

SAÚDE PÚBLICA

Til. 29
2. SOBRE O vrcio DA DIAMBA
SOBRE VENDA DE Gt;NEROS_E REM~DIOS, E SOBRE BOTICÂRIOS

............. , , , , . Francisco de Assis Iglésias

§79
.•.
~ proibida a venda e o uso do "Pito do Pango", bem como a conser- _ Publicado em Anais paulistas de medicina cirúrgica, IX
vaçãodele em casas públicas: os contraventores serão multados, a saber, o (12), 274, São Paulo, 1918.
vendedor em 20$000, e os escravos, e mais pessoas que dele usárem, em 3
dias de cadeia.
_ Republicado' em Maconha:'coletânea de trabalhos brasi-
.............. , , ' , . leiros, Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Educação
Sanitária, Ministério da Saúde (29 edição de 1958).
Paço da Câmara Municipal do Rio 'de Janeiro, em sessão de 4 de
outubro de 1830.
O presidente, Bento de Oliveira Braga, Joaquim José Silva, Antonio
José Ribeiro da Cunha, João José da Cunha, Henrique José de Araújo:

39
38
Sob o nome de diamba, liamba maconha e moconha, a Cannabis
sativa L., também conhecida pelo nome de cânhamo, é cultivada em certas
regiões do Nortedo Brasil e suas folhas são fumadas em cachimbos especiais,
em que a fumaça, antes de ser aspirada, é lavada em uma camada de água.
O vício, que é de origem africana, tem seus adeptos principalmente nos
sertões e já mereceu a atenção de méd icos nortistas.
Neste trabalho, a parte experimental representa apenas o primeiro
ensaio que efetuamos neste sentido.

CARACTERES E OBSERVAÇÕES SOBRE A CUL TURA DA


CANNABIS SATIV A.

O cânhamo, diz Lanessan, é uma planta anual, dióica, erecta, ordina-


riamente pouco ramificada, ou tendo somente ramificações carregadas de-
flores.
As folhas são alternas, estipuladas, longamente pecioladas com o
limbo profundamente partido em 3, 5 ou 9 lobos denticulados. As flores
masculinas são dispostas em grupos axilares-laxos, pendentes, ramificados
e destiturdos de folhas em sua base. Cada flor é constituída de cálice com
Cinco sépalas, e de androceu, com cinco estames livres e inseridos sobre as
sépalas. As femininas são dispostas em grupos axilares perpendiculares,
foliosos em sua base. Cada flor é servida por curto pedúnculo, e desenvol-
ve-se na axila de uma bráctéa longa, verde, terminada,por afilada ponta. A
organogenia nos mostra que esta bráctea nada mais é que uma folha atro-
fiada cçm estfpulas abortadas. Cada florfeminina se compõe de duas sépalas
concrescidas, recobertas de pequenas glândulas, fuscas e tendo no centro
um estilete que suporta o ovário, a princípio bilocular e mais tarde unilo-
cular pelo abortamento de uma das lojas. Ovário súpero, arredondado,
encimado por dois pistilos recobertos de pêlos grandulíferos. A loja do
ovário que se desenvolve contém apenas um óvulo anátropo. O fruto é
um aqufonio envolvido pela bráctea, arredondado, destituído de albumina,
contendo um espesso embrião recurvado e oleaginoso.
Sob o nome de Cannabis sativa l., estão reunidas duas plantas que
Lamark considerou especificamente distintas: cânhamo comum e o cânha-
mo da I'ndia - a que deu o nome de Cannabis indica. O cânhamo comum
é originário da Ásia central e ocidental, de onde se estendeu por todas as
regiões temperadas e quentes até a I'ndia. A diferença entre esta, que ve9E!ta
.na I"ndia,e a que cresce na França não é bastante considerável para justificar
a separação de Lamark, e, se é verdade que aquela da I'ndia é mais ativa,

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A "CANA B/S SA TlVA" NO VELHO MUNDO
igualmente está demonstrado que a intensidade de sua ação varia de acordo
com a altitude da região que habita. Extrai-se, por exemplo, na (ndia,
daquela que cresce a uma altitude de 1.800 a 2.400 metros, uma resina "Sob o ponto de vista da literatura botânica (Caminhoá) dizem os
chamada Chares, que se não obtém daquela que vegeta nas planícies. especialistas, dos quais alguns a denominam planta da felicidade, que o
As sumidades floridas do cânhamo da (ndia são muito empregadas cânhamo faz as delrcias dos árabes, persas, indianos etc., por causa do
neste país, onde ele forma a base do haxixe. Os princípios constantes do estado de êxtase em que ficam; depois disto adormecem, e têm sonhos
cânhamo, mais importantes, são a resina e um óleo volátil, que são narcó- eróticos e agradáveis.
ticos e estimulantes do sistema nervoso. A palavra haxixe, dizem alguns originar-se do árabe, e significava a
O cânhamo é ainda importante pelo óleo que as suas sementes con- erva- por excelência, da qual preparam o dawanse na Pérsia, na Arábia e
têm e pelas suas fibras, lonqas e flexíveis, empregadas desde a mais remota outros países do Oriente; suas folhas, quando não estão secas, servem para
antigüidade na indústria têxtil. fumar-se à semelhança do ópio, e então produzem o narcotismo.
A observação que Lanessan faz a respeito da altitude, como tendo A lenda do velho da montanha, ou do príncipe do Líbano, da Idade
influência na maior ou menor atividade tóxica ou narcótica do cânhamo Média, que realizava tudo quanto desejava, baseia-se ainda na ação do
(Cannabis sativa L.) parece destltufda de fundamento, considerando o haxixe, de que ele se servia para chegar aos seus fins, inclusive para fazer
que observamos no Brasil. Nos Estados setentrionais brasileiros, principal" hecatombes dos seus desafeiçoados e inimigos, sem o menor risco, nem
mente Maranhão e Piauí, observamos que as culturas são feitas nas baixa- mesmo a menor suspeita, e tendo por instrumento, muitas vezes, indiví-
das. Em Coroatá, cidade maranhense que fica à margem esquerda do rio duos altamente colocados.
Itapicuru, fizemos nossas primeiras observações; lá visitamos uma cultura "Para tal conseguir, fez ele construir palácios e paraísos deliciosos,
de Cannabis sativa, que ficava a uns cem metros da margem do rio, tão onde permitia aos iniciados gozarem lascivamente de tudo quanto a mais
baixa que pode ser inundada pelas enchentes do rio Itapicuru. Igualmente, ardente imaginação podia desejar, contanto que jurassem obedecer-lhe cega-
as culturas feitas em Codó, estão situadas em terrenos baixos e inundáveis mente; depois do juramento, logo que estavam adormecidos profundamente,
pelas águas do rio acima citado. Entretanto, a atividade do cânhamo ali eram conduzidos aos suntuosos aposentos, onde mulheres de beleza rara
cultivado, com o nome de diamba, é considerável, determinando a loucura aguardavam seu despertar, para inebriá-Ios no sexualismo, cercados de tudo
daqueles que têm o hábito de o fumar. quanto era capaz de enlevar; ao acordarem ficavam surpresos, porém reco-
Em outras localidades onde verificamos a cultura da Cannabis sativa, nheciam a realidade de sua felicidade, que se prolongava até que chegava a
tais como os vales do Mearim e Balsas, ela é, como aquelas citadas, feita em ocasião de cumprirem sua obrigação, isto é, de obedecerem ao velho, ou de
terrenos baixos e às margens dos referidos rios. E foi ali que encontramos,' matarem alguém para poderem voltar de novo à felicidade rnaterial."
como mais adiante descrevemos, os clubes de diambistas. Dizem ser essa a origem da palavra assassino, modificação de haschis-
O cânhamo, que pertence à família das "rnoráceas", é assim conheci- chino; este nome foi dado de então em diante àqueles israelistas, que, meio
do na Europa onde o cultivam, como sabemos, para obter fibras, as quais embriagados, ou exaltados pela ação do haschlseh, matavam a outrem.
são muito mais resistentes e atingem até 2 centfmetros de comprimento. "Contam ainda alguns literatos, que a bebida, que em casa de Meneláo
Na terapêutica empregam-se as sementes desta planta, Semen Cannabis, fora por Tilêmaco recebida de Helena para esquecer seus males, fora
e seu óleo é também usado na indústria. também o haxixe.
No Norte do Brasil, segundo o dr. Rodrigues Dória, é ela conhecida Crê-se que o famoso remédio das mulheres, de Dióspolis, de que
geralmente por maconha ou maconha-fumo de Angola, liamba e diamba, faziam' elas mistério, bem como o nepentes de que fala Homero, e que
, designação esta pela qual se conhece a Cannabis sstive, nos Estados do Helena recebera de Polimnestim, é ainda a Cannabis sativa.
Maranhão e Piauí, onde fizemos as nossas observações, conforme acentuei Dessa planta curiosa, fazem diversos preparados mais ou menos
anteriormente. narcóticos, e alguns tóxicos; por exemplo: o joon, o dawanase, na Arábia;
Composição química - O cânhamo indiano (segundo Colliri) encerra rupon-chari, no Cairo; e a diamba no interior da África Ocidental (entre-
uma resina chamada cannabis, um óleo essencial e muitos alcalóides, tais tanto este nome dizem ser o que dão propriamente ao cânhamo no Cosqo,
como a colina, a trigonelina e a rnuscarina. perto do rio Zairol; os nomes: makonie e makiah são citados com alguns
dos SUpramencionados pelo sábio prof. Hooker, como pertencendo à mesma
planta na África; dando-se a particularidade de se parecerem muito com a

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43
palavra grega mekou que significa a papoula, planta bem conhecida, e que - peque'no orifício. A cabaça é cheia de água até encontrar o cano e chupa-se
é também hipnótica." pelo orif(cio. A fumaça atravessa a água e vai à boca do fumante.
Segundo Crié, o cânhamo chamou a atenção de Dioscorides e Heró- O dr. Alfredo Brandão, no seu livro Viçosa de Alagoas, descreve assim
doto, que a mencionavam como planta têxtil. o cachimbo usado em Alagoas:
"O instrumento usado para se fumar a maconha é um cachimbo de
argila com um longo canudo de bambu ou taquari, que atravessa uma
MODO DE FUMAR A DIAMBA
pequena cabaça cheia de água, onde o jato de fumo se resfria, antes de pene-
trar na boca do fumador."
o modo clássico de fumar a diamba é no cachimbo; mas isso não
impede que um indivíduo ou outro a fume em forma de cigarro.
O cigarro - Conhecemos, em Coroatá, um pobre homem chamado CLUBES DE DIAMBISTAS
Raimundo, que fumava diamba em cigarros.
Era já um caso perdido: estava com o organismo depauperado, e com Os fumantes reúnem-se, de preferência, na casa do mais velho, ou do
faculdades mentais completamente alteradas. Era uma loucura mansa, que que, por qualquer circunstância, exerce influência sobre eles, formando uma
fazia rir, sem molestar ninguém. espécie de clube, onde, geralmente, aos sábados, celebram as suas sessões.
Vivia Raimundo de esmolas, prestando, às vezes, certos serviços, Colocam-se em torno de uma mesa e começam a sugar as primeiras
como, por exemplo, partir lenha. Não servia para recados; esquecia-se do baforadas de fumaça da Cannabis sativa.
que se lhe ordenava, lembrando-se, no entanto, de fatos remotos, anteriores Depois de alguns minutos, os efeitos começam a fazer-se sentir.
ao seu vtcio e portanto à demência. Safa para dar cumprimento a uma O indivrduo apresenta os olhos vermelhos. Os músculos da face se
ordem recebida, devendo voltar logo. Raimundo desaparecia; só depois de contraem, dando ao rosto expressão de alegria, ou dor; a embriãguez não
2,3 ou 15 dias é que voltava. tarda e com ela o cortejo dos seus vassalos; o delírio aparece agradável,
A sua principal mania era ser filho de um chefe político piauiense, e dando bem-estar, trazendo à mente coisas agradáveis, vai aumentando, até
fingir que Sabia ler. Tomava um jornal, de qualquer maneira, com as à loucura furiosa que toma diversas modalidades, segundo o temperamento
letras invertidas, e começava a leitura, e proferia uma série de disparates. de cada indivíduo.
Queixava-se de grandes dores nas pernas, até a altura dos joelhos. Para Uns ficam em estado de coma, em completa prostação; os outros dão
curar-se, colocava folhas cáusticas na região gastronêmica onde se abriam para cantar, correr, gritar" outros ficam furiosos, querem agredir, tornam-se
enormes feridas. perigosos. ,
Muitas vezes dissemos-lhe que não fizesse isso., Ao que ele nos Os fumadores, depois de curtirem a embriaguez, voltam ao estado
respondia, que era oúnico meio por que lhe aplacava a dor. normal. Isto no começo do vício. Quando o indivíduo é um diambista
Vimos muitas vezes esse homem fumando cigarros de diamba. Não habitual, mesmo depois da embriaguez, tem aspecto e modos de idiota;
notamos que se alterasse a sua loucura depois de terminado o cigarro: era é um homem à margem.
uma loucura lentamente progressiva." O alcoolista, geralmente, não quer ser tido como tal; mas não faz
O cachimbo - O modo predileto é fumar a diamba no cachimbo, muita questão de beber álcool em plena sociedade; mas o diambista não;
como os africanos o faziam. O cachimbo não é igual ao empregado pelos esconde o seu vício, vai fumar às escondidas, não quer que saiba, nega-o
fumantes do tabaco. sempre que é interpelado, a não ser que seja um diambista inveterado, que
Há uma cabaceira que produz uma pequena cabaça, da capacidade o idiotismo esteja apontando, implacavelmente, para o seu miserável
de mais ou menos um litro, cuja forma se presta muito para transformá-Ia vulto: este é o fumador de diamba.
num cachimbo. Eis um dos cachimbos usados: tem um corpo quase esfé- Vamos assistir a uma sessão num clube de diambista, no vale do Mea-
rico, havendo um estrangulamento para o lado em que se fixa o pedúnculo rim, próximo a Pedreiras, no Estado do Maranhão: os fumadores estão,
que corresponde ao canudo do cachimbo. uns em volta de uma mesa, outros deitados em suas redes.
No pólo da parte esférica abre-se um buraco do diâmetro de alguns Às primeiras fumaçadas os olhos se injetam de sangue: os primeiros
cent(metros onde se adapta uma panelinha de barro em forma de cone sintomas de perturbação mental se manifestam. Alguns ditos chJstosos,
truncado com a base para cima, por onde se introduz a diamba; no fundo umas gargalhadas, indicam que o pessoal começa a embriagar-se, e versos
há um buraco. Na extremidade, onde há o sinal do pedúnculo, abre-se um toscos, com termos africanos, saem por 'entre baforadas de diarnba:

44 45
"Ó diamba, sarabarnbal EFEITOS DA DIAMBA
Quando eu fumo a diamba,
Fico oom a cabeça tonta,
E com as minhas pernas zamba.
O nosso amigo, o ilustre médico maranhense, dr. Achiles Lisboa,
num substancial discurso pronunciado por ocasição da instalação da Socie-
Fica zamba mano? (pergunta um) dade Maranhense de Agricultura, em 24-2-1918, faz um pequeno, mas
Dizô! Dizô! (respondem todos em coro) muito interessante esboço do vício da diamba:
"É interessante que cada embriagado tenha alucinações sensitivas ou
Diamba matô Jacinto,
Por ~er um bão furnadô;
sensoriais especiais, que lhe condizem com a mentalidade própria; se é um
Sentença de mão cortada, músico, predominam as alucinações auditivas; se é um pintor são as aluci-
Pra quem Jacinto matô. nações visuais; se um poeta, é a visão fantástica de todas as quimeras que
lhe povoam a alma de artista; há casos de fenômenos delirantes de violên-
- Matô, mano, matô?
cia extrema, com impulsões criminosas, e de delírios persecutórios, com
Dizô, dizô!
idéias melancólicas, conduzindo ao suicfdio. Terminada a fase do delfrio,
E dizô turututu lembra-se o paciente de tud o quanto durante ela se passou, e a embriaguez
Bicho feio é caititu é,às vezes, seguida de um sono calmo, abundante em sonhos deliciosos.
Fui na mata de Recursos Assim se exprime, no seu depoimento, o dr. Aubert, médico francês, que
E sa( no Quiçandu. experimentou em si próprio os efeitos da diamba: "Pendent ce temps,les
<,
Muié brigô cum marido
Mode um poco de biju.
idées les plus bizarres et les plus diverses me passaient par Ia tête avec une
étonante rapidité_ Je ressentais un bien-être parfait, aucune sensation dou-
- Brigô, mano, brigô? loureuse; te passé,le présent, l'avenir n'existeient plus; iI n'y avait pour moi
Dizô, dizô! que l'instant actuel qui m'échappait encore; c'ételt le 'do Ice far niente'le
plus complet, et toujours Ia conscience de moi, por en comprendre Ia jouis-
Dizô, cabra ou cabrito
Na casa da tia Chica. sance. Puis le tout se calme; I'envie de dormir me prit. Tout Ia nuit ne fut
Tem carne não tem farinha, qu'une agréable reve. A mon réveil, j'avais un souvenir exact de tout ce
Quando não é tia O1ica ,qui s'était passé Ia veille; ma tête n'eteit point lourde, je n'avais pas Ia
Então é a tia Rosa. bouche peteuse comme à Ia sute de t'ôplum ou du vin. "
Quanto mais véia sebosa,
Ma'is adiante, confirmando as nossas informações, diz:
Quanto mais nova mais cherosa.
"O abuso da diamba, porém, como se dá entre os nossos homens de
- Cherosa, mano, cherosa? trabalho que analiso, deprime consideravelmente as funções nervosas, ao
. Dizô, dizô! ponto de levar a um verdadeiro estado de estupidez, no qual se dissolve
para assim dizer a personalidade moral. O indivíduo perde o brio, a digni-
Dizô deve ser um termo africano que traduz a idéia de aprovação dade, o sentimento do dever, e, incapaz para todo o trabalho, não busca
-sim. senão (é o caso de Raimundo) obedecer à tirania do seu vício execrando".
~ interessante notar como, apesar de tantos anos que nos separam da Mas, largando as vagas generalidades, a observação mais curiosa, que
escravatura, ainda acompanham o vício da diamba termos vindos com ela vos posso referir, para o conhecimento do perigo desta causa degradativa
das costas africanas. do nosso trabalhador aqrfcola, é a do caso de um francês que administrou
O nosso matuto emprega o termo sem Ihé conhecer a significação. no Codó (cidade que fica à margem esquerda do rio Itapicuru, entre Caxias
Perguntamos a um assistente dessa sessão, o que queria dizer "dizô", e e Coroatá), à fazenda do dr. Torquato Mendes Viana, venerando progeni-
'ele nos respondeu textualmente: Dizô, é sutaque de gente doida ... " tor do nosso ilustre jurisconsulto dr. Godofredo Viana, a cuja benevolência
Os versos, recitados sem acompanhamento de instrumento musical, devi os documentos da interessantíssima informação. Foi ele cóntratado
são ditos pelos mais fortes, mais resistentes à ação embriagadora da diamba; logo após a guerra de 1870, mediante escritura visada pelo cônsul francês .•
quanto aos mais fracos, depois de uma cachimbada caem no chão em esta- Por dois ou três anos, desempenhou esse mister com muito zelo, compe-
do de coma: "E les si disgraçam logo", segundo a gíria. tência e absoluta honestidade.

46 47
Os escravos tinham-lhe um grande afeto, pelo modo brando por que
os tratava, seguindo, é certo, nesse particular, as instruções do proprietário Não obstante isso, esses miseráveis não têm mais força para se liber-
da fazenda. Era um espírito eminentemente organizador, metódico, e equi- tar de um vício, que, por algumas horas de prazer, como são todos os vícios,
librado, como se depreende do modo por que agiu ao assumir a direção Ihes rouba anos de vida.
daquele estabelecimento. Tendo, entretanto, conhecido a diamba, de que Assim como um crime atrai outro crime, um vício se une a outro
os pretos africanos faz iam uso às ocultas, começou a fumá-Ia, de pr incrpio vício: afinidade infernal - sim i/ia simi/ibus faci/e congregantur. ~ muito
em cabaça e depois em cigarros. A mudança de sua conduta foi logo sensível. comum as meretrizes se rodearem de um sem número de vícios que ajudam
As cartas que dirigia da fazenda ao dr. Mendes Viana e que eram sempre a dar cabo da sua desregrada vida.
muito minuciosas, a respeito do movimentada mesma, começaram a causar Como se o éter, a cocaína, a morfina, o ópio não bastassem para
estranheza, pela desconexidade que Ihes notava. flagelá-Ias, já descobriram a diamba - a planta da loucura.
. Com a leitura de tais disparates, resolveu então o dr. Mendes Viana . Extrema miséria: a diamba está passando das tascas e choupanas da
visitar a fazenda. Imagine-se que, ao entrar no vasto pátio que lhe ficava gente rude para as câmaras das prostitutas!
em frente, dá com o francês inteiramente nu, perfilado, mandando avançar Logo, muito logo, os moços elegantes se embriagarão com a diamba:
colunas imaginárias, em tom de comando. e como, desgraçadamente, eles têm irmãs, o vrcío terrível passará a fazer
Numa das cartas) que possuímos, encontra-se numa nota a lápis, em parte da moda, como já o é, a mania do éter, da morfina, da cocaina etc.
que o administrador faz alusão a um uniforme de sargento que lhe perten- A história está-se repetindo: as Helenas modernas não deixarão de
ce. Essas cartas foram-nos entregues pelo dr. Achiles Lisboa; elas deverão ofertar aos seus Telêmacos espartilhados o inebriante haxixe, a planta da
fazer parte de uma monografia, a mais completa possível, que, em colabo- felicidade, que nós chamamos planta da loucura.
ração com aquele ilustre homem de ciência, vamos publlcar."! Certos indivíduos empregam a diamba como medicamento em
Terminava assim a história do veterano qe 1870: forma de chá. A diamba que se vende é acondicionada em pequenos mo-
"Agravando-se-Ihe o dehr io, decidiu o dr. ,Mendes Viana, ·fazê-Io lhos de 50 gramas.
partir para a capital, na esperança de que ele melhoraria em São Luís. Mas, O cânhamo é conhecido nos Estado do Piauí e Maranhão pelo nome
escoando-se os meses sem que a loucura desaparecesse, entendeu-se o dr. de diamba, que acompanhou intato a planta naturalmente introduzida
Mendes Viana com o cônsul da França, fazendo-lhe entrega do enfermo. naqueles Estados pelos negros do Congo. .
Foi este embarcado num navio francês que por aqui passou. Tempos
Certos termos usados nas estrofes recitadas por ocasião da embriaguez,
depois, recebeu o dr. Mendes Viana uma cacta sua datada já da França. 'como acima vimos, são africanos.
Estava bom, inteiramente bom, e aludia com acentuada mágoa, às loucuras
que por aqui praticara. Acrescentava que os duros trabalhos a que a bordo
o tinham submetido lhe restituíram a razão." . ALGUMAS EXPERI~NCIAS
Alguns anos decorridos, o dr. Inácio José de Souza, encontrando-se
com o dr. Mendes Viana, participou-lhe que estivera em Caiena com um No intuito de estudarmos a ação tóxica da diamba nos animais de
comerciante francês, muito bem estabelecido e grandemente acreditado, laboratório, imaginamos um aparelh02 em que a administração se aproxi-
" masse das condições em que a absorvem os inveterados fumadores.
que, com muitos elogios se lhe referira a ele, dr. Mendes Viana, de quem
se confessava amicíssimo, tendo estado à testa de uma fazenda sua em O ar que vai ativar a combustão da diamba, levando a fumaça à boca,
Codó. é introduzido por um cano. O cachimbo, que está num tubo de vidro arro-
A continuação do vício traz como resultado final a morte. Ihado por tampões está cheio de diamba com uma brasinha em cima e des-
Vimos os diambistas, nos seus delrrios poéticos, declamar que "a ' prende, imediatamente, a fumaça, que se introduz no recipiente pelo tubo,
diamba matô Jacinto por ser bom furnadõ.' a fumaça' aí atravessa a camada de água contida no recipiente referido, e
foge por outro tubo, introduzindo-se na campânula, onde está o animal em
exper iência.
.1 Infelizmente, as cartas acima referidas perderam-se na .redação dos Anais de HI experiência - Pombo nQ 1 - Colocado diante do funil (campâ-
Medicina e Cirurgia, de sorte que ficamos sem o concurso dessa vai iosa documentação.
nula, donde se desprendia a fumarada oriunda da combustão, observamos,
O signatário das mesmas parece que foi veterano das guerras de 1870, porque às vezes,
faz alusão a esse episódio hist6rico que arrebatou, da França, a Alsácia e a Lorena.
Acompanhavam o texto, desenhos de espadas e outras coisas quase indecifráveis
como certos quadros surrealistas da atualidade. .~
2 •
Infelizmente não possuímos a ilustração referente a este aparelho usado nas
experiências descritas.

48 49
Essa parte experimental foi feita em colaboração com nosso mestre
dr. Vital Brasil.
depois de alguns instantes, fenômenos de excitação, caracterizados pela agi-
tação desordenada da cabeça, movimentos de deglutição, batimento de O dr. Jesuino Maciel fez um seu empregado e um estudante de medi-
asas etc. Estes fenômenos duram alguns instantes, ao cabo dos quais o cina fumar a diamba. O primeiro sentiu leve tontura, ao passo que o segundo
animal cai e, no fim de 3 minutos, fica anestesiado, com a respiração muito caiu em sono profundo, tendo tido durante o mesmo sonhos eróticos. O
acelerada. Retirado da frente do aparelho inalador, o animal pouco a estudante era de constituição mais fraca do que o empregado.
pouco vai-se restabelecendo, podendo a prindpio andar, mas não podendo Essa observação foi comunicada pelo dr. Maciel à Sociedade de
voar. Depois de 15 minutos aparecem vômitos, que se prolongam: findos Medicina e Cirurgia de São Paulo, em 19 -6-1915.
estes, o animal se restabelece.
CONCLUSÕES
2~ experiência - Pombo nQ2 - O animal é colocado em uma carnpâ-
nula afunilada (h), onde o ar pode circular de mistura com o fumo. Os H) No Norte do Brasil cultiva-se a Cannabis sativa, conhecida em
mesmos fenômenos foram observados, com mais rapidez. diversas regiões, por diamba, liamba, maconha e moconha, com o fim de
ser fumada por indivíduos viciados, que procuram neste vício um estado
3~experiência - Cobaia nC?1 - Com cerca de 400 gramas. Colocada de embriaguez especial.
diante do aparelho inalador, durante 5 minutos apresentou sintomas 2~) Esse vício, extremamente nocivo, determina graves perturbações
semelhantes aos observados no pombo: período de excitação e período de saúde, que se traduzem ordinariamente por alucinações, podendo termi-
de sonolência e paralisia, com restabelecimento em 15 minutos, perrnane- nar por alterações mentais que levam às vezes ao crime ou ao suicídio.
cendo num estado de torpor que foi observado durante algumas horas. " 3~Essa espécie vegetal, com Seu uso nefasto, foi introduzida no País
pelos africanos.
4~ experiência - Cobaia nC?2 - ~m p,eso idêntico ao da primeira, 4~) A sua ação tóxica verifica-se por experiência em animais de labo-
foi colocada debaixo da campânula. Os mesmos sintomas foram observa- ratório, quando a estes é administrada de modo idêntico àquele pelo qual o
dos, notando-se no perfodo do restabelecimentO, exagero muito pronun- homem viciado o pratica. .
ciado de fenômenos reflexos.
5~ A água através da qual passa o fumo da diamba, não obstante a
5~ experiência - Cachorro - Um cachorro de 1.700 gramas recebeu cor escura adquirida pela lavagem do fumo, não revelou toxidade quer
o produto de combustão do contéudo de dois cachimbos, cerca de 4 gramas quando injetada subcutaneamente, quer por via venosa.
de vegetal, durando a inalação uns 10 minutos. Observamos o período de 6!1)Medidas enérgicas de profilaxia devem ser adotadas pelos poderes
excitação e a mesma sonolência e paralisia que fora notada nos animais competentes a fim de evitar as graves conseqüências da extensão desse
anteriores. perigoso vício.
O animal permaneceu sonolento e paralisado em decúbito lateral
por 8 minutos. Ao cabo desse tempo, levantou primeiro a cabeça, e depois " BIBLIOGRAFIA
de alguns minutos conseguiu colocar-se sobre as patas anteriores, tendo,
entretanto, os membros posteriores em estado de paralisia; depois de mais BRANDÃO, A. Tabagismo (Tese de doutoramento), Bahia, 12 de abril de
alguns minutos em que foi observado o movimento desordenado da cabe- 1902.
ça, como se o animal estivesse sob a ação do álcool, conseguiu pôr-se BRANDÃO, A. Viçosa de Alagoas, Recife, 1914, pág. 183.
sobre as quatro patas. \ COLLlN. Toxicologie végétale, pág. 144.
Chamado ou enxotado, movia-se com dificuldade, muito lentamente, CAMINHOÁ. Elementos de Botânica Geral e Médica.
descrevendo ziguezagues, como se observa 'nos bêbados. Dentro de duas DÓR IA, Rodrigues. Memórias apresentadas ao Segundo Congresso Cientí-
horas o animal estava restabelecido completamente. fico Pan-Americano, em Washington.
LANESSAN. Hist. Nat. Médicale - V. 1., pág. 1.032.
6~ experiência - O líquido de lavaqernfoi injetado naveia de diversos LISBOA, A. Discurso pronunciado por ocasião da instalação da Sociedade
coelhos em doses variáveis, desde 1 cc até 5 cc, não sendo observado sintoma de Agricultura Maranhense, em 24·2 -1918. . •
algum de envenenamento. Em injeção subcutânea na cobaia, também não MACIE L Comunicação à Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo,
determ inou fenômeno algum apreciável.· em 19·6-1915.

50 51
3. ASPECTOS DO MACONHISMO EM SERGIPE

Dr. Garcia Moreno 1

- Publicado originalmente pelo Departamento de Saúde


Pública de Sergipe, 1946.

- Republicado em Maconha: coletânea de trabalhos brasi-


leiros, Rio de Janeiro: Serviço Naciónal de Educação
Sanitária, Ministério da Saúde (2~ edição de 1958).

"

1. Diretor do Serviço de As~istência a Psicopatas de Sergipe.

53
Originária da Ásia, onde floresce espontaneamente, nas monta-
nhas além do lago Baikal, a maconha chegou ao Brasil no bojo dos navios
negreiros, como planta mágica, de gozo e de evasão, em meio à bagagem
cultural com que o africano saltou na colônia portuguesa. Quando outras
provas não restassem da origem africana do maconhismo brasileiro, a sino-
nímia da Cannabís satíva, no vocabulário popular nordestino, vale como
argumento incontestável, como verdadeiro registro civil do vício. Maconha
é variante de maconía e makíak, que Bentley encontrou na África ociden-
tal. Rohn aponta pango como voz angolense para traduzir cânhamo. Em
quimbundo, segundo Renato Mendonça, riamba e liamba são equivalentes
de cânhamo e de diamba. Cangonha é o mesmo que maconha, conforme
ouviu Serpa Pinto aos macololos. Pungo, tantas vezes pronunciado no Nor-
<, deste em lugar de pango, é o nome de uma das seis províncias do Congo,
na informação do velho Barleus.
Tantos nomes, de origem facilmente reconhecível, receberam na
expressão "fumo de Angola" tradução e conceito que não nos deixam
dúvida sobre a importação e aculturação do diambismo.
Jarbas Pernambucano surpreendeu, nos terreiros do Recife, a repulsa
dos babalorixás contra a afirmação de que maconha é vício de negro. A
expressão "fumo de caboclo", encontradiça em Pernambuco, registrada
Ror Dória e por mim ainda verificada, entre os maconheiros de Sergipe,
sugere a hipótese de que, como acontecia de referência aos astecas, exis-
tisse na população indígena do Brasil, o hábito original da maconha. ~
possível que sim. Mais provável, porém, é que tenha sucedido com a expres-
são "fumo de caboclo" um razoável fenômeno psicológico de projeção
defensiva. '-
Não somos, nós os brasileiros, "macaqu itos", na gíria pejorativa dos
nossos maiores compradores de bananas? Ante o sentido de inferiorização
social, que, inegavelmente, o vício traduz, os descendentes do negro
encontraram no ameríndio uma boa escapadela e uma excelente defesa
para os seus ancestrais.
Acho' que Jarbas, apelando para o fato de ser o índio ma is imitador
do que criador, está no caminho certo. O índio, que substituiu o uso de
SUas vinte e duas espécies de cau im pelo abuso da aguardente de cana, o
cauim-tatá, como chamou, é provável se tenha dado, com exagero, ao
maconhismo freqüente, e batizado, como seu, um vício estranho. Mas, foi
o negro africano o plantado r da maconha e o implantador do maconhismo
no Brasil. •

55
No Nordeste, nas terras de massapê, onde a monocultura açucare ira med Ali, necessitou cordas para a sua projetada frota de guerra, mandou
lançou suas raízes absorventes e exclusivas, criando entre os homens e as plantar cânhamo em seu país, obtendo para isso as sementes especiais
coisas, uma distância de extremos - negros e brancos, senhores e escravos, européias, especialmente ricas de fibra; contudo, evidenciou-se que as
casas grandes e senzalas -, a maconha se opôs, diametralmente, ao fundo. plantas dos novos cultivos, em. pouco tempo, perdiam por completo suas
Maconha para o negro escravo, tabaco para o senhor branco. qualidades como matéria-primapara a indústria têxtil e, em comoensação,
Gilberto Freire vai ao ponto de afirmar que a diamba assegurava a segregavam resina de efeitos fortemente embriagadores".
estabilidade dos senhores, nos perfodos de ociosidade, quando na época Tais modificações ocorrem, lembra Achiles Lisboa, em obediência à
da pejar esfriava o fogo dos engenhos. Enquanto o branco enchia os dias lei de fisiologia botânica, segundo a qual os sucos das plantas são tanto
vazios com os charutos cheirosos, o negro fumava para os sonhos e o topor mais elaborados e mais ativos quanto mais se desenvolvem eles em clima
da maconha, que o senhor deixava plantar e crescer, em meio aos canaviais. seco e quente. No caso particular do cânhamo, é o que acontece de par
Parece que os senhores das culturas de café ou da mineração, em São Paulo com a linhificação exagerada de suas fibras, incompatl'vel com a utilização,
e Minas, não tinham a mesma tolerância para o hábito eurotrslco de seus têxtil.
escravos, sujeitos a um regime de trabalho mais duro e contínuo. "Maconha As pesquisas de Dória apontaram que a maconha recruta, em Sergipe,
em pito faz negro sem-vergonha" é um provérbio colhido em Minas Gerais, os seus afeiçoados entre canoeiros, pescadores, estivadores, vagabundos e
sem circulação nos engenhos do Nordeste. desordeiros. Observação igual fez Lucena em Pernambuco, Mendonça na
O vício da maconha em Sergipe, hoje como ontem, anda espalhado Bahia, Iglesias e Lisboa no Maranhão. O uso do entorpecente, em Sergipe,
pelo Estado, apresentando-se com maior intensidade em zonas determina- /1'
como em outras regiões do País, faz-se por inalação. Não tenho notícia,
das. Rodrigues Dória, sergipano, por sinal de uma cidade celebrada no entre nós, de nenhum comedor de maconha. Ao tempo dos estudos de
folclore da planta, escreveu, a partir de observaçôes colhidas em sua terra, Dória, era mais freqüente, ao observador, a inalação por intermédio da
uma monografia, que se tornou clássica no assunto, levada ao Congresso "maricas", um cachimbo sui generis. A "maricas", feita com uma cabaça
Pan-Amerii::ano de Medicina, reunido em Washington (1915). Para respon- ou com uma garrafa, teria duas vantagens, no depoimento dos viciados:
der às dúvidas que se levantavam a respeito da classificação botânica da levaria a fumaça, evitando náuseas e vômitos, e produziria um gorgolejo
maconha, Dória cultivou a .planta com sementes obtidas no baixo São de grande valor humorfstico, por ocasião da embriaguez.
Francisco e conseguiu, com os recursos de sua ciência de professor de No Maranhão, a "maricas", também confeccionada com o fruto da
História Natural na Faculdade de Mediclna da Bahia, reconhecer, na Langenaria vulgaris, recebe o nome de "boi". Acho que o uso da "maricas"
maconha, os caracteres identificadores da Cannabis sativa. está, atualmente, em Sergipe, circunscrito aos viciados do baixo São Fran-
Vejamos a descrição de Rodrigues Dória: "A planta, da família das cisco - pescadores e canoeiros. Em Aracaju, onde o vício apresenta aspecto
canabiáceas, é herbácea, anual, atingindo em Sergipe um metro e meio mais grave, predomina, diria melhor, só é conhecido o uso da maconha,
de altura, dióica, com folhas inferiores opostas e alternas, as superiores, sob a forma de cigarro. Cigarros de maconha pura ou de mistura com
estipuladas, de limbo profundamente fendido, com cinco e sete lóbulos, fumo.
de bordas serrilhadas. A inflorescência feminina é em espigas compostas; Na classificação dos fumadores, há três tipos de cigarros, feitos
as flores São regulares, na áxila de uma bráctea persistente, que envolve o todos com folhas e sumidades floridas da maconha fêmea, após ligeira
fruto, o qual é um aquênio, amarelo escuro, com venulações claras. As trituração manual, e papel ordinário de embrulho. "Morrão", "baseado"
inflorescências masculinas são em cachos de cimos". Dória não deixa o "fininho" são os tipos de cigarro. O "rnorrão" pesa dois gramas e meio,
dúvidas de que a maconha é o mesmo que o cânhamo. o "baseado" um e setenta e o "fininho" um grama.
Idêntica é a conclusão de Planchon e Collin, quando afirmam que só , A maconha que chega a Aracaju, de contrabando, é cultivada nos
existe uma única espécie de cânhamo: Csnnebis $ativa L., Cannabis indica, municípios de Aquidabã e Propriá, em Sergipe, ou em Colégio, Penedo e
Cannabis erratica, Cannabis chinensis. Tudo cânhamo. A variação de porte Igreja Nova, no Estado de Alagoas. ~ vendida nos arredores do Mercado
da planta e de suas propriedades é conseqüência de clima e do modo de Municipal, por indivíduos viciados ou não. Presentemente, "em grosso",
cultura. um quilo de maconha custa sessenta cruzeiros, rendendo, "no varejo",
De quanto pode o clima, por determinismo écológico, modificar as perto de duzentos.
propriedades do cânhamo é um exemplo magnífico à observação de Gasti- Os "rnaloqueiros" ou "ratos cinzentos" constituem a réplica setgipana
nel, citado na monografia de Reiniger: "Quando o vice-rei do Egito, Meho- ~ dos "capitães de areia", da Bahia que Jorge Amado fixou nas páginas de

56 57
- Cacoré, caco ré, coisa e tá
um dos seus melhores livros. São adolescentes abandonados, delinqüentes tanto faz dá na cabeça como na cabeça dá,
quase todos, que moram debaixo das pontes do cais do Aracaju. Formam a erva só é boa
quando vem de Propriá,"
um bando, liderado por um malandro experiente da criminalidade, que Ihes
traça o programa da vida miserável, cheia de aventuras e incidentes policiais.
"Rato cinzento" que não fuma maconha, nasceu morto, dizem. E é verda- Há, entre viciados, aquele que celebra em versos suas preferências
de. Fumam a planta e sabem dela mil coisas: os efeitos, os nomes, as supers- pela maconha. O ganhador Enoque, segundo José Casans, é um deles:
tições, o folclore. Para eles, Cannabis sativa é maconha, diamba, liamba,
riamba, mariguana, rafi, fininho, baseado, morrão, cheio, entorpecente, "Eu sou Enoque afamado
erva, fumo brabo, gongo, malva, fêmea, maricas. porque não tem 'cirimonha'
O quadro sintomatológico da intoxicação é a "lembra". "Alombrado" em todo lugar que canto
é ficar na "lembra". E, uma vez na "lornbra", só há um jeito de sair: é comer minha cara é sem vergonha
muita "baga na", isto é, doces, mariolas, caldo de cana etc ... Um sujeito na deixei de beber cachaça
"lornbra" é capaz, de gastar todo o seu dinheiro para matar a fome canina. agora só tomo maconha
"A erva é mais carregada do que peru: "Às vezes faz coceiras terríveis".
Contudo, não há melhor remédio para dor de dentes. ~ preciso, porém, ajuê Marica, Marica diga ajuê
fumá-Ia sem a semente, "senão os dentes estouram". Nada como "queimar ajuê Marica, gonga",
um baseado", antes de qualquer "trabalho": "o corpo fica leve, a força
aumenta, correr é canja. Para os frouxos, porém, atrapalha: dão para rir, -,
Trovas recolhidas em Neópolis, ribeirinha do São Francisco, parecem
chorar e ficar com medo. Quando se faz qualquer intenção, antes de
queimar o cheio, ela se realiza. Boa ou má que seja". Há os que sabem que demonstrar que a poesia da maconha não foge a uma inspiração de base
a maconha tem pés machos e fêmeas. Que a "erva não vale nada", Daí, são alucinatória:
necessários certos cu idados na colheita da diamba. Colhê-Ia, assoviando, ou
na presença de mulher menstruada, troca o sexo da planta, a planta fêmea "Ajuê Marica, ajuê
"rnacheia" e perde as virtudes. 'diz Marica:
A 'maconha tem os seus trovadores. Nas rodas embriagadãs os desafios
- Eu vi uma cobra de oorau
poéticos são comuns. Nos trabalhos de Iglesias, há versos colhidos no vale
e duas salamanta forte
do Mearim. Alberto Deodato usa em um dos contos de canaviais, material pra pegá quatro guará
poético colhido em Sergipe. Na Cidade d~ Menores, de Aracaju, Manoel e vi cinco novia com medo de seis serpente
Ribeiro, a meu ped ido, fez colheita entre ex-maloqueiros de trovas da e vi .sete fera valente
maconha. O importante é que os versos apontam a cidade de Propriá, e vi oito em uma levada
margem do São Francisco, como a fonte fornecedora da melhor diamba e vi nove cobra assanhada
de Sergipe. .•. com dez carreira de dente",

"A Estrela O'Alva é bonita


quando vem rompendo a aurora Representativos do estro dos trovadores da maconha, no desafio,
passarinho canta e grita
cheios de associações por consonância e ricos de definições, como se fossem
soldado na gurita
uma pequena enciclopédia popular, são estes versos apanhados em Propriá:
Cobre a cabeça com o vêu
planeta corre no céu "Ajuê, Maricas! Quem quer bem pinica
a Estrela O'Alva 11bonita' Nasci pra ser dotô na fóia da tiririca
Caixão, calxão, barrica
diz seu colega, , .
Ajuê Marica
Nasci pra ser dotô na fôia da tiririca
- Eu me chamo Zê Ceguinho
não nego meu naturá '
mas a erva 'só é boa
quando vern de Propriá

58 59
Ajuê, Maricas! Conga, ponga, sapionga. Sem atingir
ã gravidade do delírio furioso, como o amok dos haxi-
Quatro coco é um ponche xianos malaios; ~blmla...apar.eÇfLna..J;riminalidade...no[des.tina cQUlo
Treis é um catolé ~homic(.Qlos. João Mendonça, daBahia, estuda um caso exemplar.
Quem tem seus 6ios bem vê
Nas investigações que fiz em Sergipe, não conheci caso algum de feitio tão
56 s'ingana porque qué
Mar icas, o que tu viste na feira? grave. O que é frenqüente é a polícia surpreender em furtos e roubos a
- Vi papai capionqa vendendo esteira. maloqueiros, sob intoxicação aguda pela maconha, "tuados". como dizem
- Na feira, Maricas, isto é asneira. na gíria policial. O sentimento de coragem e de exaltação f(sica fornecido
pelo tóxico explicã que os malandros recorram a dois ou três baseados,
Quem qué bem é maquerença antes.da.aventura. Ouvi a comissários que os chefes dos bandos de "ratos
Quem tem maleita tem frio
cinzentos" apelam para a diamba, como meio de eliminar o escrúpulo e a
Vaca gorda tem manteiga
Saco de couro é moc6 indecisão dos novatos, à prática criminal.
Abano de moça é leque Os efeitos euforísticos do cânhamo são conhecidos em todo o mun-
Pé de boi é mocotó do, desde tempos mui remotos. Parece que a primeira referência à Cannabis
setive, como planta de gozo, está-no Avesto, livro persa aparecido no século
Inchaço grande é postema VI antes de Cristo. Os devas e as asuras, conta a mitologia indiana, por
Pano quadrado é lenço
inspiração de Visnu, dissolveram no mar de leite a montanha Mandara,
Miolo de ovo é gema
Moça que dorme s6
-, para obtenção do Amrita, a bebida da felicidade. Quando Visnu, transfi-
Vive numa tentação - gurado numa tartaruga, conduzia às costas a montanha, perdera, pelas
Moça solteira é um cão fortes oscilações de Mandara, muitos pêlos, os quais transportados à
Pé de boi é mocot6 margem do mar de leite, se transmutaram em pés de cânhamo, "fonte da
felicidade", ou "excitador do riso".
Porco gordo é barrão
De outro lado, a palavra qunabu, genetriz de cannabis, é conhecida
A banha dele é toucinho
no vocabulário assírio há mais de oitocentos anos antes de nossa era. No
Fio torcido é cordão
Amarrado é n6 -rnundo oriental, principalmente entre os povos islâmicos, "o comedor de
Nó de garganta é gog6 erva", o "haxixã", vem de muito longe e até se perpetuou, desde o tempo
Macasado é rapadura das Cruzadas, numa história cheia de violências e rnortlcrníos, da qual a
Sebo de porco é gordura nossa palavra "assassino" é um resumo semântico.
Pé de boi é mocot6
A difusão dimanadora com que o haxixe se estendeu às gentes de
Tranca quebrada é casco
fé maometana encontra, no consenso dos investigadores, sua origem, na
Fumo picado é tabaco ausência de condenação expressa do grande profeta que, nos preceitos do
Uva esprimida é vinho Alcorão, esqueceu o bang ou não quis juntá-Io, aos rigores proibitivos
Quem risca pau é graminho com que amaldiçoou o álcool e o toucinho. O exegetas do grande livro,
Quem desbasta é enxó possivelmente bons comedores de erva, viram na omissão um beneplácito ...
O diabo é Caifaz
Homem pequeno é rapaz
e o haxixe tornou-se o vrcio por excelência dos seguidores de Mohomed.
Pé de boi é mocot6 No ocidente, o haxixe entrou, pelo menos no que se refere à França, por
intermédio de Somerat.
Me dero banho num tacho Foram, contudo, os estudos experimentais de Moreau de Tours
A parteira disse sorrindo: 'que, despertando a curiosidade mórbida de Theopile Gauthier e Baudelaire,
- Comadre este bicho é macho
concorreram para a divulgação do vicio canábico, principalmente, depois
- Maricas si o fio é macho
Banho sempre num tacho que se fundou :10 Hotel Pimodan, o Clube dos Haxixis. No México, a.
Maricas o nosso fio é macho marihuana tornou-se, por excelência, a toxicomania das massas populares.
E trouxe o nome de Patacho. De lá, o vício foi exportado para os Estados Unidos onde, nestes últimos
- Cacoré, cacoré, coisa e tá". dez anos, se tornou um problema de solução trabalhosa.

60 61
Os efeitos tóxicos da maconha resultam do princípio ativo elaborado período com a afirmação de que se sentem de corpo mais leve, mais mane-
pelo sistema glandular, existente nas sumidades floridas da planta. Da jável, capazes de grande esforço, de enormes carreiras sem fadiga, com
secreção origina-se uma resina, cujo ritmo de produção é regulado pelas impulsos a correr léguas e léguas. Ao sentimento de exaltação física
condições ecológicas e fisiológicas do vegetal. Quanto mais seca for a corresponde, objetivamente, um quadro hipercinético - saltos, bailados
atmosfera e mais alta a temperatura do ambiente onde vegeta a cennebis, etc ....
maior será a elaboração glandular da resina, que, mesmo em condições Já foi dito linhas atrás, que esse período inicial da embriaguez é quase
climáticas invariáveis, cresce em quantidade, nas proximidades da fecun· sempre aproveitado na prática criminal, porque, dizem os maloqueiros,
dação. A análise química da resina canábica, apurou a existência de um enquanto ele dura "todo muro é baixo e qualquer porta, fraca". A excita-
atdetdo-fenol (C2 H28 02), conhecido por "cenebinol", As experiências ção neuromuscular é acompanhada, freqüentemente, de uma alegria ruidosa
em animais deram a conhecer que o "cenebinol" provoca a mesma sinto- que explode em gargalhadas contínuas, sem provocação aparente ou pro-
matologia tóxica da resina bruta. Recentemente, em 1942, Roger Adams, ' vocada pelos motivos mais insignificantes. Quando a "maricas" é usada,
de Urbana, obteve dois equivalentes sintéticos do "csnebinot" o 1-hidroxi- o ruído que resulta do conflito entre a fumaça e a água tem um alto valor
3-n-am il-1-6,6,9-trimetril-7 ,8 ,9,1 O-tetrah idro-ê-d ibenzopirana e o 1-hidroxi- hilariante, como informa Dória.
3-n-hexil.a,6,9-trimetil-7 ,8,8, 1O-tetrahidro-6-dibenzopirana. A ação tóxica Confirmo a observação de Lucena ao se referir que os malandros
de tais equivalentes sintéticos é menos intensa do que a verificada com o usam a maconha para tornarem, sob seus efeitos, mais cheias de interesse
emprego do- "canabinol" natural. O quadro da intoxicação canábica tem cômico as correrias cinematográficas. Quanto não gostariam; se fizéssemos
<,
sido descrito na lenda, na literatura e na ciência. o mesmo, certos contadores de anedotas, insulsos e desajeitados? O quadro
Nas páginas das Mil e uma noites, a eQ1briaguez canábica está pintada alucinatório, sempre presente é, às vezes, polimorfo. Alucinações cenestési-
com clareza iniludível. No Conde de Monte Cristo, Dumas retrata a intoxi- cas, como crescimento desmedido de um membro, sentimento de flutuação
cação. Foi, porém, dos efeitos do cânhamo confeitado do Hotel Pimodan no espaço. Visões de mulheres nuas, na. mais provocante das atitudes
que resultaram as descrições mais brilhantesdo haxixismo agudo: as páginas eróticas. SeI de um alucinado do ouvido, cujas pseudopercepções eram
de Gauthier e 8audelaire. Sob o ângulo científico, foi Moreau, no seu Ou verdadeiramenteteTeologicas. Jamais conseguira ele roubar ou furtar, sob a
haschisch et de I'alienation mentale publicado em 1845, o primeiro a regis- ação da maconha. Quando tentava fazê-lo, vozes lhe falavam: "Não faça
trar, sistematicamente, debaixo de critério. experimental, as perturbações isso, roubar é feio". Ao período de excitação, de cores nitidamente manía-
psíquicas decorrentes da intox icação canábica. cas, sucede, na fase mais profunda da impregnação tóxica, a atitude de
O trabalho do grande psiquiatra francês despertou, a seu tempo, tão êxtase e de sonho, povoados de imagens agradáveis e inesquecíveis.
grande entusiasmo que Lasegue, ao comentá-Io nos Annales médico-psycho- - Brotteaux tem inteira razão, quando assinala cinco caracteres princi-
logiques, disse que um novo caminho se havia aberto aos passos da psiquia- pais na embriaguez canábica: 1) - enfraquecimento da vontade; 2) _
tria: o caminho da experimentação. ,.•..'
sentimento de desdobramento psicológico; 3) - libertação das tendências
No Brasil, a escola psiquiátrica do Recife, com Lucena, Di Lascio e subconscientes; 4) - grande sugestibilidade; 5) - lembrança da embriaguez.
René, levou a cabo uma interessante série de experiências. Lucena compa- Allentuck e Bowman acham que podemos comparar os efeitos agudos
ginou em trabalho esplêndido a descrição de sua auto-observação e a de da maconha, sob o ponto de vista meramente fisiológico, aos que se obser-
seus,companheiros. vam em conseqüência da intoxicação atropínica. Quanto à repercussão
Os casos, que me caíram sob os olhos, debaixo dos efeitos agudos da psfquica, os efeitos da cannabis seriam semelhantes aos do álcool. No estudo
maconha, recompõem, na sua generalidade, os traços das descrições de que fazem em 77 pacientes, sob os auspícios do Mayor's Committee on
autores, donos de abundante casuística, como Dana, Brotteaus, Lewin, Marihuana, observaram, como era de esperar, que os efeitos da planta são
Bowmanetc .... mais rápidos e precoces, quando usada por inalação, e surgem em tempo
Os quatro períodos sucessivos em que Dana dividiu a embriaguez equivalente à metade do que necessita a ingestão, para revelar os primeiros
canábica são tão comuns e conhecidos que constituem, por dizer-se, o sintomas tóxicos.
esquema que os "ratos cinzentos" mais inteligentes seguem ao descrever, Objetivamente, os embriagados pela maconha podem apreserltar:
com o. pinturesco de uma linguagem própria, os efeitos da maconha: 1) - congestões das conjuntivas oculares, dilatação pupilar e reação preguiçosa
excitação neuromuscular; 2) - instabilidade mental e alucinação; 3) - à luz, fotofobia, lacrimejamento, tremores do globo ocular; língua trêmula
êxtase; 4) - hipnose. Subjetivamente, os intoxicados traduzem o primeiro e seca, boca e garganta ressecadas, salivação diminuída, taquicardia e hiper-

62 63
•••
tensão; tremores das extremidades, rnioclonias, hiperreflexia, hipersensibi- tend(neos, dispnéia, taquicardia. Embora o apetite seja grande, a fraqueza
lidade ao tato, à pressão e à dor; fenômenos atáxicos. geral é a regra, por incapacidade assimiladora do organismo.
Referi, em outro lugar desta palestra, que os "ratos cinzentos" do As principais doenças mentais observadas, Kerin classifica da maneira
cais de Aracaju não esquecem de citar, como traço infalível da "lembra", seguinte: a) - eretismo cerebral; b) - melancolia subaguda; c) - esquizoi-
a fome insuportável e quase insaciável. Não constitui raridade, segundo pude dia; d) - demência precoce: e) - delírio alucinatório auditivo; f) - confu-
colher, ouvirem-se gritos - "tou cum fome!" - vindas de sob as pontes, são mental. A demência precoce é a psicose mais observada, acrescenta.
onde alguns maloqueiros se encontram "alornbrados", A fome é realmente, Acha, contudo que na maioria dos casos o haxixe tem papel adjuvante. Na
enorme e quase específica. Exige rica ração h idrocarbonada, de preferência. casuística citada, predominou a forma catatôniéa da demência precoce.
Marx foi o primeiro a verificar, no laboratório, aquilo que se supunha Hesnard faia em demência canábica, simples exagero, explica, da·
astenia psíquica do intoxicado crônico, acompanhada de decadência tísicá.
causa de fome: a hipoglicemia. No Nordeste, .0 caldo de cana sempre foi
usado, pelos viciados, para atenuar ou curar os efeitos da maconha. Um Num estudo inteligente sobre a síndrome catatônica das psicoses
canábicas agudas, Securas, psiquiatra grego, chama a atenção para o
exame das variadas fórmulas que servem aos preparados requintados do
parentesco próximo de conteúdo e de homogeneídade dá estrutura das
haxixe mostra a presença do açúcar, que deve ser mais que simples edulco-
esquizofrenias canábicas e das esquizofrenias endógenas. Procurando
rante, corrigirá, com certeza, a violência tóxica da planta. Ainda segundo
distinquir o que provém do haxixe, no determinismo dos acidentes psicôti-
Marx, a intoxicação canábica aumenta a concentração sanqürnea e a diurese. cos, do que poderia ser um surto agudo de estado esquizofrênico crônico,
.- Os estudos de Lucena, realizados, é verdade, em poucos casos, não de evolução paralela ao uso da planta; separando, com rigor, a possível
concluírám pela existência da hipoglicemia e da diurese exagerada. A ques- <,
intervenção de mecanismos esquizofrênicos laten.!!:.s,mobilizados para uma
tão, pois, precisa ser retomada. evolução processual, por influência do haxixe,$couras tem como certõ
Na análise, quase centenária, que Lasêgue fez sobre Du haschiçh et
I'alienation, há a afirmação de que para Moreau os' efeitos do cânhamo r que a intoxicação canábica, por sua ação diencefálica, pode determina
quadros esquizocatatônico~ita, a propósito, um caso de sua observação.
fornecem ao observador "a ciência de toda a loucura". Quem sentiu o Trata-se de um paciente em mutismo, na atitude de fumar o narguilé,
efeito do haxixe, está lá escrito, passou pela loucura: salvo a duração, nada dedos polegares na boca, em posição oriental de fumar. Se ao paciente era
há de mais em um do que na outra. mostrado um quepe de policial, ou se lhe fazia chegar aos ouvidos as
A referência clara à duração dos distúrbios mentais deixa ver que vibrações de um apito de guarda civil, surgiram reações violentas e angus-
Moreau falava dos efeitos agudos da intoxicação 'canábica. Psiquiatras, com tiosas manifestações do medo. Ao contrário, quando lhe davam a ver o
larga experiência clínica sobre a toxicomania, na (ndia, no Egito e na Tur- desenho esquemático do cachimbo de haxixe, contemplava-o com prazer
quia, atribuem-lhe responsabilidade etiológica, num grande número de indizível. O autor explica as duas reações opostas pelo mesmo mecanismo
quadros psicóticos ou de modificações graves do caráter. reflexológico: simples acondicionamento advindo de antigas e freqüentes
Krainik diz no seu livro que, entre 232 casos de alienação mental, perseguiç~s policiais, de um lado; de outro, os prazeres de intoxicações
internados em Bengala, 76 eram devidos ao haxixe e que de 248 alienados, passadas. _ _ •.••._
estudados no Cairo, 64 eram de etiologia canábica. Agora os efeitos transitórios do maconhismo agudo, não vi citados,
Fahredin Kerin, professor adjunto de psiquiatria na Faculdade de entre nós, casos de psicoses de longa duração filiadas à etiologia canábica.
Medicina de Istambul, estuda as alterações caracterológicas, pelo haxixismo Trabalhando em meio onde a maconha arregimenta número incontável de
crônico e os quadros psicóticos diretamente ligados ao haxixe. Aqueles viciados, apesar de, há mais de dois anos, pensar "maconhamente", quando
que ainda não chegaram à loucura, escreve o psiquiatra turco, apresentam examino meus pacientes, até agora não pude isolar um caso sequer, em que
alterações visíveis do caráter e da consciência. A afetividade perturba-se: a diamba 'pudesse ser indigitada como causa dos distúrbios men~~
sobrevém, nos intoxicados, desinteresse por si é pelos seus, ao lado de veraãde que são excepcionais os pacientes do-Hospital-Colôniã"Eronides
irritabilidade mórbida e exagero acentuado dos movimentos impulsivos. de Carvalho" que não sabem alguma coisa sobre a m~~haJM'ãS;isto em ,
Sob pretexto fútil, agridem as pessoas da farnília. Tornam-se ociosos e Sergipe faz parte do acervo cultural mais rudimentar( ~ como conhecer o
incapazes para o trabalho. Sofrem pesadelos e· sobressaltos durante o fumo e a cachaça. Também é verdade que, em grande número de casos,
sono. Têm freqüentes crises de choro e andam pelas ruas como se fossem ••í!s ifilforrnaçã.e.s.aoamnésicas pouco dizem da vida pré-psicótica dos doentes.
ébrios ou sonhadores fora do mundo. Fisicamente, a decadência é a mesma: A impressãoque, prêSeinêmente, possuõ-cll'>aspecto psiquiãtrico-clj-
olhar terno e sem brilho, pálida face, anemia grave. Exagero dos reflexos nico do maconhismo sergipense e, por analogia, do Nordeste, é que ele ainda

64 65
não pode entrar, facilmente, para a rubrica das psicosesheterotóxicas da
classificação brasileira. Não sei quantas razõesexistem para o fato.
Enquanto não se apurar ou dosar a riqueza da canabina brasileira,
julgo que é I(cito supor apenasque a razão esteja no baixo poder tóxico de
nossa Cannabis setive. Vale meditar que, ao lado dos fumadores e come-
dores de haxixe do Cairo ou de Istambul, os nossosmaloqueiros são no
vfcio, de uma sobriedadequasepuritana.
Aflrrna-se, por ag;a~e se não a maconha, menos tóxica, é o maco-
nhismo, menos grave, que nos está ajudando.
4. MACONHA (CANNABIS SA TlVA): MITO E REALIDA-
BIBLIOGRAFIA DE, FATOS E FANTASIA

ALLENTUCK, K. e BOWMAN, ·M. The psychiatric aspects of marihuana


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1924.
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DÓRIA, R. Os fumadores de maconha - Imprensa Oficial, Bahia 1936. Acadêmico Pereira Barreto, dos alunos da Escola Paulis-
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WALTON, P.R. Marihuana - J. B. Lippincot Co., New York, 1938.

66 67
,
-'.

A maconha tem sido tão discutida e debatida em nosso meio, com


.opiniões tão emocionais a respeito, que me sinto sem saber o qúe exata-
mente falar sobre esta planta. Mas procurarei dizer alguns aspectos, ainda
não "batidos", sobre a própria maconha e da farmacologia de seu princí-
pio ativo 0(-) /}9 -trans-tetrahidrocanabionol.

ASPECTOS HISTÓRICOS

"RUANO: Nam sei a diferença que ha entre o que chama o bangue,


e que se diz anfiam: porque pode ser q'-!é tudo seja hum, pois que voz vejo,
quando vituperais algum servo chamaislhe 'bangue' e outras vezes 'amfiam';
.., e por isso queria saber qual he cada hum e como se faz e pera que se usa
cada hum."
"ORTA: O 'amfiam' he o que chamamos opio; e delle vos direya
seu tempo; e agora vos satisfarey com dizervos que cousa he o 'bangue'
scilicet, a arvore e a semente."
"RUANO: Pois asi he, dizeyme como se faz este 'bangue', e pera que
o tomão, e que leva?"
"O RTA: Fazse do pó destas folhas pisadas, e ás vezes da semente; e
alguns ihe lanção areca verde, porque embebeda e faz estar fóra de si: e
pera o mesmo mesturão noz moscada e maça que tem o mesmo efeito de
embebedar; e outros lhe lanção cravo•.e outros canfora de Borneo, e outros
ambre e \. almisque, e alguns amfiam; e estes são os Mouros que muyto
podem; e o proveito que disto tirão he estar fóra de si, como enlevados.
sem nenhum cuidado e aprazimenteiros, e algun~ rir hum riso parvo; e já
. ouvi a muitas molheres que, quando hião ver olgum homem, pera estar
choquarerias e graciosas o tomavão. E o que nisto se conta pera que foy
inventado, he que os grandes capitães, antigamente acustumavão embe-
bedarse com vinho ou com este 'bangue', pera se esquecerem de seus
trabalhos e nam cuidarem e poderem dormir; porque estas pessoas as vigílias
as atormentavão. E o gram Soltão Badur dizia a Martim Affonso e Souse,
a quem elle muito grande bem queria a lhe descubria seus secretos, que
quando de noite queria yr a Portugal e ao Brasil, e á Turquia, e á Arabia, e
á Persia, não fazia mais que comer um pouco de 'bangue'; e este fazem
elles em letuario, com açucare e com as cousas acima ditas, a que chama"?>
maju."

69
Este diálogo, de Garcia da Orta", escrito após a descoberta do Brasil
.>.
causar qualquer excitação extraordinária dos vasos, ou qualquer suspensão
e reeditado em Portugal no século passado, ilustra alguns efeitos e também das secreções e sem haver o medo de reações perigosas e paral isia consecu-
as crendices sobre a maconha! tiva".
Na realidade, o uso milenar da maconha pelo homem passou por Em 1880,. G. Beard", um eminente neuropsiquiatra americano,
escreve em seu livro:
várias etapas, ao longo dos séculos, e de acordo com a "moda", preconcei-
"Outro remédio que talvez se torne, se já não o é, uma das principais
tos re'ligiosos e pol (ticos, foi considerado como útil do ponto de vista
divindades (divinities) da neurologia é a Cannabis indica. Este remédio tem
terapêutico ou "vício execrável". Dentro desta evolução histórica, surge a reputação de pouca confiabilidade e de imprevisibilidade, tanto de prepa-
nos nossos dias a tendência de considerar é: maconha ou os seus princípios ração como de ação. Esta má reputação está sendo felizmente abandonada.
no tratamento de várias afecções que afligem o homem. Antes de tecer Eu acho que para algumas condições a Cannabis indica é o mais confiável,
considerações sobre esta fase "moderna" da farmacologia desta planta, seria seguro e valioso dos remédios".
interessante uma volta ao passado, analisando o seu uso antigo. . Entretanto, o uso médico da maconha lentamente declinou no fim
A maconha foi usada como medicamento desde os mais remotos do século passado e no começo deste. A principal razão para o seu desuso
tempos. Parece certo que ela fazia parte entre os espécimes do herbário do médico, foi provavelmente, o não isolamento dos princípios ativos da
imperador chinês Nung há quase 5.000 anos2 e um tratado médico chinês maconha e o cônseqüente uso de preparações brutas (extratos), cuja varia-
de 2.000 anos atrás recomendava o uso da maconha como anestésico em bilidade química e deterioração com o tempo e luz faziam com que os
cirurgias; na medicina Ayuverdica da (ndia ela é recomendada como efeitos clínicos fossem imprevlsfveis. .
<,
hipnótico, analgésico e espasmolrtlco.t' A fama da maconha como medi- Ao lado desta razão de ordem técnica farmacêutica, surge uma
camento, nos meadosdo 29 milênio da era cristã, ganhou também o Oriente outra, de ordem legal e policial. Alguns países começam a relacionar o
Médio. Assim, talvez devido à proscrição do álcool pelo Alcorão, o uso da uso não-médico ("abuso") da maconha à degeneração psíquica, ao crime
maconha era muito difundido entre os muçulmanos, inclusive como medi- e à marginalização do indivíduo.
camento. Por exemplo, um manuscrito árabe escrito em 1946 diz: 3 E assim, quase que no mundo ocidental todo, a maconha, sem dúvida
"Idn al-Badri conta que o poeta Ali ben Makki visitou o epiléptico uma planta que contém princípios alucinogênicos, foi comparada e até
Zahir-ad-din Muhammed, filho do chefe do Califado de Baghdad, e deu ao equiparada às drogas opiácias que não são alucinogênicas mas que induzem
relutante Zahir-ad-din o hashish como medicação. Ele ficou cómpletamente 'ao sério problema médico de dependência físicã. Esta visão hecatômica dos
curado da epilepsia mas também não pôde mais deixar de tomar a droga." "terríveis" efeitos deletérios da maconha é ainda aceita por muitos autores.
No século passado, médicos ingleses servindo na [ndia, tomam conhe- 'p.or exemplo, no VII Congresso Latino-americano de Farrnacoloqie, reaIiZ~-
cimento da planta. O'Shaughnessey, em 18424, faz experimentações com a do em São Paulo em dezembro de 1978, um autor distribuiu um livro aos
planta e a prescreve como antiepiléptico e como espasmolítico. Reynolds ,
S participantes: Marihuana-yerba maldita, onde pode ler-se à pág. 1077:
em 1890, revê os estudos feitos com a maconha e conclui que ela é medica- "A" marihuana e o homossexualismó. Que tal uma combinação de
• mento útil para epilepsia, neuralgia e enxaqueca. homossexual e viciado em marihuana (marihuano?) algo terrrvell Verdade?
"Nos Estados Unidos a planta ganha também consideração como Indigno, sujo e baixo! Desafortu nadamente mu itoshomossexua is são gra ndes
medicamento. Ela figura em vários livros de terapêutica e é mencionada em consumidores de narcóticos e de marihuana. E sob a sua ação cometem os
revistas médicas e na própria farmacopéia americana. Assim, livros como mais atrozes atentados contra o indivlduo e a integridade de seu sexo, sem
Matéria médica para uso de estudantes (3!l edição E. Lundsay e Blackiston. que existam barreiras de idade, hora e lugar. A maconha com seus efeitos
Phíladelphia, 1868), Manual de matéria médica e terapêutica (Ed. Henry C. embriagantes e narcóticos os permite levar sua ação junto a adolescentes aos
Lea, Philadelphia, 1866), The Journal of ma teria medica (v. 13, 1874), e a quais incitam a fumar a planta e uma vez viciados na erva, os obrigam a ser
Farmacopéia americana, sob o título de Extrato purificado de Hemp, seus concubinos. O adolescente maconhado e estimulado ao homossexualis-
indicam a maconha como narcótico, antiespasmódico, antlepiléptlco etc. mo começa a se vestir escandalosamente e a usar roupas impróprias ao seu
O dr. Froonmuller, médico realmente entusiasta das propriedades sexo. "
hipnóticas da maconha após utilizá-Ia em mais de '1.000 pacientes, escreve ~Mas o progresso cientffico foi grande nas últimas décadas, e a maco-
no Journal of materia medica, vol 2, pág 474, 1860: nha mereceu muita atenção dequímicos, botânicos, farmacólogos e clínicos.
"De todos os anestésicos existentes, a maconha (ldican Hemp) é (Em 1964 foi isolado e identificado quimicamente o C9-tetra-hidrocanabi- I
aquele que produz um narcotismo mais próximo do sono natural, sem \ nol (/':,9 -THC), o principal (se não o único) princípio alucinogênico da .

71
70
planta. E de 1964 até hoje, mais de 2.000 trabalhos científicos sobre a podem passar a exercer tarefas que exigem estas funções psíquicas ínte-
química, farmacologia, metabolismo e efeitos clínicos de 6.9-THC foram gras (por exemplo, dirigir automóvel), ficando mais sujeitas a acidentes.
publicados. Por outro lado, várias dezenas de novas substâncias, os canabi-
nóides, foram também identificados na planta, entre elas o canabidiol
(CBDl, que seguramente não possui efeitos alucinogênicos, mas parece
dotado de ações terapêuticas.
Nos dias atuais, principalmente nos Estados Unidos e Canadá, uma • 250 MG PLACEBO A
grande celeuma paira sobre a chamada "descriminalização" da maconha. o 125 MACONHA B
O presidente Carter, dos Estados Unidos'' e P. Trudeau, primeiro-ministro ~ 120 r o " " A
do Canadã", mostraram-se recentemente a favor de tal medida. Por outro 6. 206.9 - THc
~ 110
lado, avolumam-se as evidências cIínicas de que princípios ativos da maco- ~
nha realmente possuem efeitos terapêuticos benéficos. cr
o
Q.. 100

--
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EFEITOS TÓXICOS DA MACONHA w
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o-
D~nto de-vista físico é quase certo que o uso da maconha, mesmo
« 90
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crônico, não causa grandes distúrbios. Parece que apenas dois efeitos estão .., ..J
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em-cnís"trãaos, acima de dúvidas. Assim, um efeito taquicardizantedigno w 80


de" nota ocorre tanto após fumar a própria planta como o seu princ(PIo
o
ativo, o t?-THC10. O efeito atinge um pico após-cerca de 5 mino é durã'de'
20 a 30 min.podendo a freqüência aumentar de até 40-60 batimentos.
z
70 l v t
ASPIRAÇÕES
A figura 1 mostra este efeito taquicardizante, em experiência feita 'I I I I i i i i

com voluntários sadios, na Escola Paulista de Mf.dicina. Conforme pode 5 10 15 MEDIDA N
40 50 607080 MIN
ser visto, 20 mg do 69-THC puro ou 125 mg de amostra de uma maconha 10 20

(B), quando aspirados produzem um grande aumento" da freqüência car-


díaca; já uma segunda amostra de maconha (A), mesmo na dose de 250 mg
produziu efeito também nítido, embora mais discreto. FIG.l - Efeitos da fumaça de placebo, de 2 amostras de maconha e
~O segundo efeito se refere à ação sobre a espermatogênese e osníveis de 69 - THC na freqüência cardíaca de voluntários.
de testosterona circulante. Para vários autores a taxa de testosterona pode
! cair de até 60%, com diminuição acentuada do número de espermatozói-
\ des no líquido seminaif(Tabela 1). Estas alterações que foram achadas no TABELAl -EFEITOS DA CANNABIS SATlVA E SEUS PRINC(PIOS
homem, foram confirmadas em pesquisas com camundongos, ratos e ATIVOS SOBRE ÓRGÃOS E HORMÓNIOS SEXUAIS DO
macacos Rhesus (Tabela 2). Entretanto, estes efeitos são reversíveis, HOMEM
voltando os valores ao normal após a interrupção do uso da planta.
Em relação aos efeitos psíquicos ou psicológicos, além dos processos,
de alucinação e porvezes delúios que ocorrem em certo número de pessoas, , Efeito Autores
(e que muitas vezes depende da quantidade de princípio ativo presente
na planta fumada e da sensibilidade do usuário), ocorre também uma perda Diminuição testosterona Kolodny e col., 1974 e 1976
\ das capacidades dediscriminação temporal e espacial. Estes efeitos aparecêm Não altera testosterona Mendeleson e col., 1974 e 1978
mesmo nos indivíduos que não apresentam alucinações. Este fato é impor- Diminuição espermatogênese Colodnv e col., 1974; Nahas, 1975;
tante, pois a pessoa não nota' que suas capacidades de discriminar tempo e Hembree, 1976
espaço são afetadas, dado &ue estes efeitos só se percebem com medidas Ginecomastia Harmon eAliapoulos, 1972
obletivas". Assim, estas pessoas julgando não estar sob influência da droga

72 73
~
TABELA 2 - EFEITOS DA CANNABIS € SEUS PRINC(PIOSSOBRE
ÓRGÃOS E HORMÓNIOS SEXUAIS DE ANIMAIS DE
LABORATÓR 10. 70

Efeito Espécie-Sexo Autores ~ 60


o
Z
Aumento estrógeno Rato M Maskarinec e col. i978
I
::J
List e col., 1977 ~ 50
Aumenta metab. testost. Rato M (I)

Dimin. testosterona Rato M ' Maskarinec e col., Symons, :E


w
o PLACEBO
1976 (I) 40 Á 15 MG ;:,.9-THC
Dimin. testosterona M.Rhesus Smith e col., 1976 2 • 125 MG MACONHA B
D imin. testosterona Camund. M Dalterio e col.t i977; Burs- :E
w
tein e col., 1978 ~ 30

Dimin. comporto copulatório Rato M Merari e col., 1973; Corcoran


e col., 1974 20 ASPIRAÇÃO
Dimin. espermatogênese Rato M Dixit e col., 1974
Dimin. desenv. vesic. semin. Rato M Dixit e col., 1974 t
Dimin. desenv. testículos Rato M Thomoson e col., 1973
-15 -10 O +5- +10 +20 +30 +50
Dimin. desenv. próstata Rato M Okey ê Truant, 1975; Collu
e col. 1975 MIN ANTES E APÓS ASPIRAÇÕES DA DROGA
Aumento do peso útero Camund F. Solomon e col., 1976
Atividade estrogêÍ1ica
própria Rato F Rawitch e col., 1977
FIG. 2 - Efeitos da aspiração de fumaça resultante da queima de placebo,
15 mg de 69 -THC e 125 mg de amostra de maconha, sobre a
A figura 2 mostra os efeitos de 15 mg de 69-THC e de 125 mg da capacidade de discriminação temporal de voluntários.
maconha B aspirados por voluntários, na Escola Paulista de Medicina. Fica
claro que, enquanto a aspiração de placebo não alterou a capacidade das verificar, ín loco, entre os portuários de Atenas, Grécia, o uso da Cannabis,
.pessoas calcularem o tempo de 1 minuto, sob a ação das drogas, houve social' e culturalmente aceito naquela população, nos fins de tarde em
grosseiros erros de cálculo. '- ~ reuniões sociais dos trabalhadores em alguns bares. Senhores já de certa
Aos efeitos acima descritos (taqu icardia, queda dos n(velsdif'teSto5tF idade, pais de família, reuniam-se após o trabalho diário e fumavam em
rona e espermatozóides e prejuízo das capacidades de dlscriminàção um cachimbo de batata, contendo a Cannabís, enquanto conversavam.
temporal e espacial) somam-se os já conhecidos efeitos psicológicos de Não notei nenhum comportamento anormal e anti-soclal; apenas, à medida
alteração do sensório, hilariedade, despersonalização, alucinações, sonolên- que iam fumando diminuíam gradativamente a conversação. Esta obser-
cia e apatia, e às vezes pânico por reações tipo dei (rios persecutórios ou por vação vem de encontro ao que já se sabe há muito tempo: dependendo
sensação de morte iminente. Felizmente as "más viagens" são pouco da cultura e dos hábitos sociais o uso da droga pode vir_arepresentar
freqüentes, ocorrendo numa pequena porcentagem de pessoas particular- um cõstume -aceitável. Outro exemplo trpico seria o uso dõ peylt (que
_mente sensrveis., Os outros efeitos, de duração de 2 a 4 horas, podem contém a droga alucinogênica rnescalina) pelos índios mescaleros ou
9
ocorrer em até 100% dos casos dependendo da dose de 6 - TH~ida \ por seguidores da Igreja Nativa Americana, em nossos d ias, para fins
ou aspirada •••Por outro lado, está agora cabalmente provado que nas doses / religiosos,
habituais a Cannabís não gera g.ependência tísica no homem fato também ~dito que estes. aspectos d~ ~e_m_co.osjder:ação_éJo_ se
\
comprovado em animais! YAlém do mais, tivemos a oportunidade de opinar sobre se a maconha deve ou não ser descriminalizada. Além dos

74 75
recentes vêm confirmando certas indicações terapêuticas para a Cennsbis,
efeitos farmacológicos citados, os aspectos socias e culturais precisam ser que se faziam no século passado e mesmo antes.17 Entre estes efeitos
levados em consideração. Parece-me falso, 'entretanto, colocar como arguo terapêuticos ressalta o antiemético em pacientes submetidos à terapia
mento nas discussões, afirmativas tais como: '.'0 álcool e o fumo são mê!!s anticâncer; ós autores São enfáticos ao afirmar que o H-THC parece 'ser
maléficos que a maconha", O tabaco, sem dúvida, prejudica o aparelho o mais eficiente antiemético nestas circunstâncias. I
circulatório e 'aumenta a probabllldade de ocorrência de câncer, Mas o fato Dentre as eventuais utilidades terapêuticas acima mencionadas,
.do fumo produzir estes efeitos significa que a maconha não os produz? daremos mais detalhes sobre o possível uso de derivados da rnacçnha
Ainda não existem estudos epidemiol6gicos sobre a maconha para permitir como agentes hipnóticos ou antiepilépticos, dado que estes trabalhos foram
tal afirmativa! ~ fácil entender que em sendo a maconha uma droga proibi- feitos na nossa Escola Paulista de Medicina. [Veja a tabela da pág. seg.].
da, e de dif(cil aquisição, muito dificilmente os pesquisadores conseguirão
fazer um estudo prospectivo ou troativo onde os indivíduos irão dizer que USO COMO SEDATIVO-HIPNÓTICO OU ANSIOLi'nco
fumam há tanto tempo ou irão fumar por tanto tempo a planta. Mas já se
sabe que a maconha tem um efeito taquicardizante. Além do mais, os Embora o efeito "calmante" da maconha tenha sido relatado desde
estudos básicos mostraram que a fumaça de maconha em animais, ou em há muito tempo, poucos estudos bem controlados existiam até recente-
culturas de fibroblastos de pulmão humano, tem uma capacidade igualou mente. Por outro lado, caso se confirmasse um efeito hipnótico ou ansiolí-
mesmo superior de produzir alterações mitóticas nas células epiteliais dos tico para derivados(s) dá maconha, isto poderia ser de grande vantagem na
pulmões. 12 13 Este fato não é mesmo de surpreender, dado que as folhas terapêutica, dado que os canabinóides são reconhecidamente pouco tóxicos,
de maconha são também recobertas, como as de tabaco, por uma camada -', sendo quase impossível uma intoxicação grave com os mesmos. Ou seja, os
de cera protetora onde são encontrados alcatrões e outras substâncias que riscos de intoxicações acldentaisou põ'rsuiêraioSeriam míriiiTiõS,quando
teriam ação cancerígena. comparados com os hipnóticos atualmente existentes. Os primeiros traba-
Por outro lado, não é também correta a comparação entre o álcool e a lhos clínicos controlados foram feitos com o bl- THC. Cousens de Di
maconha. O álcool é seguramente um dos problemas de sáude pública Masci018 usaram doses de 10 a 30 mg de droga e verificaram que os volun-
mental de maior magnitude em nosso meio dado- que em certas camadas tários levavam menos tempo para iniciar o .sono do que os que ingeriam
sócio-econômicas até 45% da população masculina adulta, que procura cápsulas de placebo; entretanto, os voluntários, como seria mesmo de se
tratamento em hospitais gerais, com variadas queixas, consome álcool dia- esperar, ao ingeri rem uma droga aluci nogên ica relatavam desorientação tem ..
riamente em níveis muito elevados. 14 15 16 Assim, mercê de um uso diário, • poral e alterações do psiquismo. Estudos mais ou menos semelhantes, e com
extenso e intenso, estimulado pela mais agressivd e despudorada propaganda, resultados que confirmaram os dados acima, foram feitos e com a própria
o álcool constitui-se em grave problema. E para dizermos que o álcool é maconha e o THC.19 20 Estes trabalhos também relatam os efeitos psíqui-
mais deletério que a maconha teria de existir, obviamente, um consumo cos indesejáveis que acompanharam a ação hipnótica procurada.
, A ação hipnótica do t:,,9 -THC, acompanhada do efeito psíquico
da mesma tão extenso e intenso, o que não é o caso. Além do mais, ao se
" secundário, levou pesquisadores do Departamento de Psicobiologia da
comparar maconha e álcool, sempre esta comparação é feita tomando-se o Escola Paulista de Mediciriô a estudarem uma outra substância encontrada
ébrio contumaz caído nas sarjetas, como o fumador esporádico de maconha na maconha, o canabldlol. I'\fossoseSiudos21 22 reveiaram que, de fato, o
que; digamos, nos fins de semana "puxa o seu fumo" em círculo de amigos. canebidiol não produz qualquer efeito psiquico no homem. Em outros
Portanto, com o que foi dito acima, não é certo afirmar que a ma~ estudos mostramos que o canabidiol diminui a atividade motora, rev'igora
nha é menos (ou mais) tóxica ou perigosa que o álcool (ou o fumo), pois o tempo de sono de barbiturato e, através de técnicas eletroencefalógráfi-
isto não tem fundamento científico no presente momento, e nada ajuda cas, aumenta o tempo de sono (diminuindo a fase de vigília) de animais de
na resolução do problema. laboratórios.23 24 25 26 Estes dados experimentais justificaram um ensaio
de canabidiol em seres humanos sadios. a não ser por queixa de insônia.
POSSIVEIS EFEITOS TERAP~UTICOS DA MACONHA Em um estudo com 17 voluntários, três doses de canabid iol (40,80 e 160
mg) foram comparadas com placebo e com um hipnótico padrão, o nitraze-
Finalmente, para completar o quadro confuso gerado pela multiplici- pan na dose de 5 mg. Os resultados mostraram que o canabidiol é um bom
dade de efeitos da maconha e de opiniões a respeito da planta, ultimamente age~ hipnótico para o homem.2 7 Atualmente, alguns laboratórios
tem-se verificado que os princípios ativos da Cannabis sativa podem ter farmacêuticos internacionais estão investigando canabinóides sintétidis.
utilidade terapêutica. Assim a Tabela 3 mostra que inúmeros trabalhos ;:o.,
77
76
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g g g 5l ~ ~ ~~ Além do produto "Abbott-41988"edeumoutro "Abbott-40147" que em
~ ~ ~ ~. ~ r testes animais demonstraram possuir efeito ansiolítico, à semelhança dos
~: S-~. ~ ~ benzodiazepínicos, o laboratório Ely Lilly sintetizou a Nabilone, o qual,
i ~r ~ I já testado em seres humanos, possui efeitos tipo hlpnôtíco-anslotrtlco+".
~ 8 ~
8 ~ USO COMO ANTIEPIL~PTICO
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m Conforme dito acima a maconha foi usada no passado como medica-
--' c ~ mento para controlar as crises epilépticas de seres humanos. Mais recente-
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óídes - .
experimentais
g O poderiam ter utilidade clínica em crianças epilépticas30 muitos trabalhos
~ experimentais apareceram mostrando a atividade de anticonvulsivante
~ experimental do /:),,9 - THC.31 32 33 Como já foi enfatizado, o eventual
);> aproveitamento terapêutico do 6.9-THC no tratamento da epilepsia seria
mm m o (")o I (") » OJ z z o z < ~
e prejudicado pelo seu efeito alucinogênico.
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-g. s -g, g- g- g- ~ §' ~~. ~. ~ ~'~. o Psicobiologia da ~scola P~ulista de M~ici,na, que o ~nabidiol ta~bér:n
~~ ê 5' 5' 5' g !'? [~ il ~ <il 5' ~ possuía efeito anticonvulsivante em anlmalS,34 35 assim esta substância
g'_. _.g' _.g' 3 ~~ ã c: il ê" ~ o tornou-se candidata a agente antiepiléptico no homem. Em rápida seqüên-
O) O) O) ~ 8 0)'....
o g.
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C") cia, estudos feitos em vários laboratórios confirmaram a eficiência do
ar 8 g o 5 0!:l. b canabidiol como anticonvulsivante, em várias espécies de animais de labo-
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<: . 3S 36 37 Consroe e Wo lkim 37 d emonstraram ainda
ratéono, ' que o cana bidi
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g~' lR b tem um índice de proteção comparável ao do fenobarbital e um perfil
~ ~ de ação anticonvulsivante em roedores semelhante ao da difenil-hidantoína.
!Il Além do mais, o canabidiol potencia a ação anticonvulsivante tanto do
~ fenobarbital como da difenil-hidantoína,37 38 39
~ Por outro lado, o canabidiol revelou ser droga praticamente sem
l:>. toxicidade. Injeções intraperitoniais de 50 mg/kg/dia por 90 dias em
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I" camundongos e ingestão oral de 5-20mg/kg/dia por 90d~as ou 50 mg/kg/
dia por 30 dias por ratos não produziram alterações anatomopatológicas
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Ql !(.Otôê :!. ~ 3 ~ tô c: ~ ~ g ~g l!l !li g C/) em órgãos, queda de peso ou sinais de intoxicação. Estas doses também
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.00tô ~ 00 !:i... ~cS ~ ~::::l ~ r (i; ~ c;:J canabidiol; assim, em estudo piloto. administração oral de 10 mg/dia por
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~ W ~ ~ ~ ~.~ totais de 200-400mg, e os exames neurológicos (inclusive EEG), clínico
: .U> _ •• ~ ~ (inclusive ECG) e laboratoriais (sangue e urina), também não revelaram
8 00 ~ 8 8 s I nenhum efeito tóxico.
41
• -
~ .~:- • •• Estes dados sobre o canabidiol nos levou a usar a droga pela primeira

78
l-
'
vez, em doentes epilépticos. Em associação com o Departamento"CIe Pro-

79
dutos Naturais da Universidade Hebraica de Jerusalém (que forneceu cerca O aspecto político salta também aos olhos, se acompanharmos as
de 250 g de canabidiol purificado), com. os Departamentos de Medicina e -"
campanhas para as eleições gerais, por exemplo no Canadá e Estados
de Neurologia da Escola Paulista de Medicina e o Departamento de Neuro- Unidos. Assim, o presidente Carter em 1977 enviou mensagem ao Congres-
logia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, 16 so, sqli~itando ªªboli~o das_sanções criminais federais por posse de
pacientes epilépticos foram selecionados.41 Eram casos de epilepsia Gra~ne pequenas quantidades de maconha para uso pessoal "cumprindo assim a
Mal, com foco temporal, todos refratários aos antiepilépticos conhecidos, promessa da campanha eleitoral de solicitar a descriminalização da maconha
e que vinham apresentando pelo menos uma crise convulsiva por semana. 'em nível naclo,!a[r74: E atualmente naquele país os Estados do Alaska,
Num sistema duplo cego (double-blind), metade dos doentes passaram a Califórnia, Colorado, Maine, Minesota, Nebraska, Nova York, Carolina do
receber, além dos medicamentos que já vinham tomando, duas cápsulas Norte, Ohio e Oregon já descriminalizaram a planta, sofrendo os que a
diárias (manhã e tarde) contendo glicose (grupo controle ou placebo). A possuem em até uma certa quantidade apenas uma multa, equivalente a
outra metade passou a receber 2 cápsulas diárias, mesma forma e cor que uma infração de tráfego. No Canadá, a "ascensão" da maconha a um status
o placebo, contendo canabidiol (dose diária 200 a 300 mg), também além político ficou clara em 1978. Por ocasião das eleições federais naquele ano,
dos medicamentos que vinham tomando. Ao fim de no máximo 4 meses de o Partido Conservador prometeu uma rápida reforma das leis sobre a rnaco-
tratamento, verificou-se que dos 8 pacientes do grupo placebo apenas um iiha~ essencialmente removendo os aspectos criminais ligados à simples
apresentou melhora enquanto que 7 dos 8 que receberam canabidiol apre- posse da droga e ao mesmo tempo mantendo as severas penalidades por
sentaram nítida melhora. Por outro lado, nenhum dos pacientes apresen- tráfico. ,E Pierre Trudeau, levando em conta o voto da convenção nacional
tou reações secundárias ou tóxicas.41 do Partido Liberal que pedia ao governo para remover do Código Penal a
/ ...••...

Esta primeira dernonstraçãõ d6efeito clínico do canabidiol em epi- condenação por posse da maconha, prometeu, caso seu governo fosse
lepsia humana embora ainda com número relativamente pequeno de reeleito, que removeria tal penalidade do C6digo.44
pacientes, vem demonstrar que da maconha pode-se obter substâncias Esses fatos mostram que muitas vezes o assunto maconha vem sendo
utilizado como bandeira em certas plataformas políticas, sem que os seus
úteis e terapêuticas, e que não possuem os efeitos indesejáveis de alteração
aspectos cientrficos ou médicos entrem no mérito das discussões. Por
psíquica. Por outro lado, estes dados estão em acordo com a recente
õutro lado, um Conselho de Peritos criado pelo governo britânico, em
observaçã042 de que fumar maconha poderia ser útil para epilépticos
1979, opinou que as restrições legais ao uso da Cannabis e de sua resina
q ua nd o em conjunção com o uso de a ntiepilépticos como d ifeni l-hiçlantoína
são ainda necessárias e que qualquer medida em contrário, mesmo as de
e fenobarbital.
descriminalização, segundo os padrões adotedos por alguns Estados ameri-
canos, não deveria ser tornada." 5 Ou seja, percebe-se que na Inglaterra o
ASPECTospoLi'ncos,SOCIAIS,RELlGIOSOS E ECONÔMICOS SOBRE governo, dando o beneftcío da dúvida sobre os efeitos farmacológicos da
A MACONHA: DESCRIMINALlZAR OU NÃO O USO DA DROGA? planta, designou uma Comissão de Peritos para emitir opinião a respeito.
Mas "10 mesmo tempo em que a Comissão emitia sua opinião, uma campa-
Sem sombra de dúvidas, o problema social, político e econômico nha pública liderada por entidades particulares lutava para legalizar o uso
representado pela Csnnsbl« é de tal ordem, que a parte científica ou farma- da maconha, sob a alegação de que o relatório do Conselho era "total-
'cológica está obscurecida/À importância da parte econômica pode ser mente inadequado,,45. ' .
facilmente deduzldãã'õSe saber que sementes de maconha, vendidas em Às implicações sociais e ideológicas que envolvem resoluções sobre
bonitos envelopes coloridos em floriculturas, fazem parte de um flores- maconha, e a grande dúvida que ainda existe sobre o que fazer com a
cente comércio em alguns países da Europa; ou ainda que na Colômbia, lanta, est~ Tuito bem postas no célebre relatório Le Dain, do governo,
.cujo governo acaba de oficializar o comércio da planta para o exterior, canadense.4~sta comissão de cinco membros, após muito estudo, não
cerca de 200.000 pessoas vivem legalmente desta atividade; ou ainda que o conseguib-cFíegar a um consenso e, assim, o relatório que recebeu o nome
comércio ilícito da Cannabis parece atingir só nos Estados Unidos a cifra do presidente da Comissão (dr. Gerald Le Dain), tem três recomendações:
3-4 bilhões de dólares anualmente. Conseqüentemente existem aquelêS a recomendação majoritária assinada por três membros (drs. Hemz Leh-
que afirmam ser a oposição à Jiberação do uso da maconha defendida, mann e J. Peter Stein, além do presidente do Comitê) e duas recomenda-
entre outros, por pessoas que usufruem deste 'negócio ilícito. Ou seja, não ções independentes assinadas individualmente por cada um dos dois outros
entram nas dicussões a respeito, os aspectos cienHficos sobre a planta. membros. ~6 A posição majoritária começa por analisar se a preocu~ação

80 81
social sobre o uso da Cannabis é bem fundamentada e, em sendo, qual o mesmo que "estigmatizar e punir a prostituta e não o seu ,freguês". E
política social deveria ser adotada. E para adotar esta política social, o recomenda que sejam mantidas ambas as leis, que prorbern aVosse e o
conceito de prejuízo ou perigo (harm) seria o critério mais útil a ser tráfico da maconhyE para aumentar a confusão o quinto m~bro da
encarado. E os três membros justificam a sua posição: ,missão, dra. Marie Andréa Bertrand, recomenda uma política da distri-
"Nós somos da opinião de que prejuízo (harm) é o mais útil critério buição legal da planta, devendo o governo "iniciar um programa para
para uma polrtica social. Achamos que os conceitos de personalidade e desenvolver métodos práticos para produção e comercialização da Canna-
( mudanças de personalidade, osquais não têm em si próprios nenhum critério
~cca~~~:
de valor, são bases ilusórias para a medida e avalição dos efeitos de drogas." relu assim--que, pe Io exposto acima,
,- nao é fá CI'1 ter-se uma oprruao
' .-
O parecer d~Tção mãforitária analisa em seguida os vários efeitos concreta sobre a maconha, pois múltiplos fatores extracienHficos estão
da Cannabis e conclui que existem razões naqueles que dizem que o uso em jogo. Conforme parece claro hoje em dia, o problema da maconha
não-médico de certas drogas pode afetar adversamente a motivação, a atitude transcendeu o simples aspecto farmacológico ou médico, para ganhar um
e a capacidade necessárias para manter as instituições presentes e a vida status de símbolo de contestação ou de lutas políticas.
política, econômica e social do país. E sendo este medo muito real, ele Finalmente, chego àquela parte que fatalmente exige uma definição.
deve ser considerado um fator de peso na elaboração de uma política social Nas várias palestras que tenho feito quase sempre sou solicitado: afinal você
sobre a droga. é a favor ou contra a descriminalização da maconha? ....
Por outro lado, a recomendação majoritária também analisa a posição Inicialmente gostaria de dizer que a atual lei brasileira não dando
dos que são contra a proibição.'Para estas pessoas o uso não-médico de /', opção ao jovem, pois ao ser apanhado com a planta - ou é "viciado" e
uma droga deve ser decisão inteiramente pessoal e privada, e que a lei 'Vai para tratamento, ou é traficante e vai para a cadeia -, é por demais
somente deveria se preocupar com os prejuízos e lesões que um indivíduo _absurda e precisaria ser mod ificada de maneira a considerar a figura do expe-
( poderia causar em outro, como conseqüência do uso da droga, e não pelo ',rímentador ocasional, que não é nem "viciado" e muito menos traficante.
\.próprio uso em si.1iegundo os propositores dà recomendação majoritária -. E, em relação à pergunta afirmo que sou.contra o uso da maconha
este é um ponto de vista clássico sobre as liberdades individuais e' que foi Ltenho esta opinião movido por convicçõ:S-- de ~-;de"';:;;-políticae soci;;í.
já analisado por John Stuart Mills em seu célebre "Ensaios sobre a liber- Acredito que em países subdesenvolvidos, corno é o caso do Brasil, os
dade". De acordo. com -este ponto de vista a liberdade não deveria ser jovens têm um grande papel a cumprir no sentido de modificar as estruturas
considerada como um princípio abstrato mas sim como um valor pragmá- arcaicas ultrapassadas. E o uso de drogas, como a maconha e outras podendo
tico e utilitário, pois ela é necessária para o desenvolvimento e o bem-estar •produzir sonolência, apatia, hilariedade, alterações do sensório etc., certa-
dos indivíduos na sociedade. Em última análise, os que lutam contra as mente irá afetar a capacidade de reagir e protestar. E parece que tem sido
atuais penalidades pela posse ou uso da maconha, se rebelam contra o tendência dos jovens, ao serem marginalizados das discussões e excluídos
fato de o governo poder decidir o que é "perigoso" ou não para o indivíduo das decisões, forçados portanto a assumirem a condição de alienados frente
(e conseqüentemente para a sociedade) tirando-lhe o direito da liberdade "" ao futuro, procurarem escapismo fácil ou o protesto inútil do uso das
de escolha. Ou seja, se ao poder cabe a decisão de proibir, decidindo o drogas. ~ muito interessanté a este respeito notar que o "uso problemático"
que pode ou não ser proibido, independente de provas verdadeiras sobre ) de drogas em certos países está associado muito claramente a problemas
as razões da proibição, a simples possibilidade de extensão da proibição, políticos, sociais ou econômicos. O negro americano era o grande usador
'para outras áreas, ou aspectos da vida comum, sem outras razões a não de drogas naquele país. A partir do momento em que ele adquiriu uma
(ser a vontade dos poderosos, torna o indivfduo presa do autoritarismo identidade, passou a orgulhar-se de seu passado africano e começou a lutar
\.do Estado. pelos seus direitos civis e o uso dedrogas caiu bruscamente. Exemplo típico
, E após ampla discussão sobre os efeitos da Cannabis, e análise desta mudança pode ser encontrado nos movimentos negros como ;'Pan-
destes pontos de conteúdo filosófico e ideológico e recomendação majori- teras Negras" ou do líder Malcom X,. que constantemente pregavam a
tária do relatório Le Dain foi a de que se deveria abolir a pena por posse necessidade do negro parar de usar droga para poder lutar melhor.47 Há
da maconha e manter as leis em relação ao tráfico. alguns anos, durante a campanha eleitoral para presidência dos Esta-
Por outro lado, o quarto membro da Comissão, dr. Jan L. Campbell, dos Unidos, grandes massas de jovens, muito deles hippies, que acamparam
não concorda com a decisão majoritária considerada moralmente repugnan- nos parques públicos de Chicago, em campanha de apoio a um dos cands
te punir o traficante da maconha e deixar impune o usuário, pois seria datos, praticamente não consumiram drogas em contraste marcante com
"

82 83
6 - BEARD, G. M. "A pratical treatise on nervous exhaustion" página
seus hábi~' s anteriores.48 Nos meses seguintes à revolução dos cravos em
148, 1890. Nova York, William WoOd and Co., in Carlson, E. T.
Portugalí c) uso de drogas caiu bruscamente para depois elevar-se novamen-
Cannabis indica in 19th century psychiatry. Amer. J. Psychiat. 131
te; houve um aumento grande do uso de drogas na Argentina nos últimos
páginas 1004-1007, 1974.
anos coincidente com a mudança do sistema polrtico daquele pafs: no
7 - CANO, PUERTA, G. in: Marihuana-yerba maldita. Editorial Univer-
Brasil também houve aumento de consumo nos meios universitários, após
sidad de Antioquia, Colômbia, 1967.
abrll de 1964 e depois novamente no penedo 1968-1970.49 Estes fatos
8 - MALlN, M. "Decriminslise pot". The U. S. Journal of Drug and
parecem revelar um aspecto importante: nos sistemas ou regimes de governo
Alcohol Dependence, 1 (n98), setembro, 1971.
onde o jovem é marginalizado e colocado na posição de um robô alienado,
9 - CARRUTHERS, B "Pot hot preelection issue", TheJournal, Addic-
sem possibilidades de participação nas decisões que inclusive se referem ao
tion Research Foundation, Ontario, April 1 st, 1978.
futuro de seu pafs e ao seu próprio, ele atira-se às drogas como fuga fácil
10 - CARLlNI, E. A. KARNIOL, I. G., RENAULT, P. F. e SCHUSTER,
à sua frustração, como forma ingênua e ineficiente de protesto. E gera-se
C.R. Effects of marihuana in laboratory animal and in mano Brit. J.
então o círculo vicioso: sob a ação das drogas que amortece a sensibilidade
Pharmacol. 50, páginas 299-309, 1974.
e lhe confere prazer, passa a não mais reagir à marginalização imposta,
11 - LEITE, J. R. e CARLlNI E. E. "Fsllure to obtain 'Cannabis direc-
caindo num comportamento voltado para si ou para nada, e, com isto, o
ted behevior' and abstinence syndrome in rets chronically treated
sistema que lhe impede o direito de manifestação e de participação nas
with Cannabis sativa extrects". Psychopharmacologia 36, páginas
decisões, se pergetua! E estes dados têm sido confirmados em pesquisas.
133-145,1974:
Assim, Messers
"

relata que usadores de maconha são mais pessimistas


12 - LEUCHTENBERGER, C. e LEUCHTENBERGER, R. Morphological
e crrticos da sociedade americana do que não-usadores; Knight e cOI.S,l em
and cytochemical effects of marihuana cigarette smoke on epithelioid
um extenso estudo com jovens americanos relatam que os usadores são
cells of lung explants from mice. Natcre (Lond). 234, páginas
socialmente não participantes apesar de sentirem insatisfação com as leis,
227-229,1971.
governo e costumes éticos, e concluem Que ouso' da maconha é acima de
13 - LEUCHTENBERGER, C. LEUCHTENBERGER, R. e SCHNEI-
tudo um problema sóclo-polftico: BlumS 2 observa que os usadores consi-
DER, A. Effects of marihuana anel. tobacco smoke on human lung
deravam os critérios polrtlcos vigentes no pafs como prejudiciais aos
physiology. Nature (ond.) 241, páginas 137-139,1973.
interesses nacionais. Preston'' 3 em seu estudo afirma que os usadores de
14 - MASUR, J.: O alcoolismo no hospital geral. Arq. Clin. Pinel. 5 (3),
maconha, ao contrário da imagem popular ( não são jovens alienados e
páginas 186-191, 1979.
estranhos; mas sim, que o uso da maconha reflete uma rejeição do sistema
15 - MASUR, J., LARANJEIRA, R., CLANGOLl NETO, D. e GODI-
social e das regras da sociedade e não, necessariamente, indica uma
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MEDICINA E CUL r.URA
Revista publicada pelo Centro Acadêmico Pereira Barreto, dos 11 - ARGUMENTOS LlBERTARIOS
alunos da Escola Paulista de Medicina.

Chiclete~Banana Angeli

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88
1. A GUERRA ÀS DROGAS e UMA GUERRA ETNOCIDA

"

Anthony Ríchard Henman1

- um estudo do uso da maconha entre os (ndios tenete-


hara do Maranhão
- Comunicação apresentada no 1Q Congresso da Interna-
cional Cannabis Alliance for Reform, Amsterdã, 1980.
- Publicado em Religião e Sociedade, novo 1983, nQ 10.
- Publicado em !'The Ecologist", Londres, vol, 10, n.
" 8/9, 1980.

{ . 1, Antropologia/Unicamp

91
''Não se tem observado no Brasil grande interesse em documentar o '\
efeito desorientador e contraproducente das campanhas d irigidas pelas
autoridades contra o uso de drogas. A abordagem oficial prima por seu
obscurantismo, uma autêntica paranóia cujas duas vertentes - a policiales-
ca e a sanitarista - são ambas igualmente desprovidas de um mínimo
entendimento dos complexos processos envolvidos na experiência de uma
~ alteração da percepção. Por esse motivo, não é de estranhar que as campa-
nhas oficiais procurem antes de mais nada ridicularizare 'infantilizar os
adeptos das drogas, tratando sua procura de novos estados de ânimo como
uma "fuga", desconhecendo e até ignorando o fato de que o uso de tais
~ substâncias se encontre necessariamente sujeito a controles de ordem
cultural. .o:::
Procura-se, dessa maneira, minimizar o sentido cognitivo que o cos-
tume de ingerir uma determinada droga podetêr para o seu usuário, reser-
vando-se para este o papel passivo de um "problema" a ser tratado pelos
especialistas do ramo. Entre os muitos perigos decorrentes dessa situação,
destaca-se o fato de o discurso oficial tornar-se totalmente auto-suficiente
e fechado em si mesmo, com a conseqüente impossibilidade de estabelecer
um elo de simpatia e entendimento entre as "autoridades competentes"
e as supostas "vítimas do ·flagelo". Na falta do diálogo entre usuários e
gentes repressores, cria-se um confronto entre dois universos culturais
que se assemelha a uma guerra de trincheiras, com longos períodos de
surdez e indiferença mútua, alternados com breves tiros de canhão, anun-
ciando uma feroz disputa pelo espaço intermediário onde efetivamente
são debatidos os discursos provenientes de ambos os lados.
-, O presente artigo trata de um desses momentos, quando se tornou
mais nítida e evidente e defasagem entre setores distintos da sociedade
brasileira, com a vantagem adicional de que o caso em questão, por uma
série de fatores conjunturais, acabou sendo relativamente bem documen-
tado.t,.tortura do (ndlo-Celestlno Guajajara, ocorrida durante a :'Qp.eração.
Mecoebe" empreendida por agentes da Polícia Federal nas áreas indígenas
do Maranhão em 1977, chegou a ser amplamente divulgada em •.agosto dõ
ano seguinte - quando o. seu depoimento e vários relatórios da Funai
referentes à posterior "Operação" de 1978 foram entregues à imprensa
e ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Com o meu interesse despertado por esse material, resolvi examinar
um pouco mais de perto seu contexto fazendo duas viagens às àre~s dos
índios Ienetebara J.QuJl.uajajar.a, como são conhecidos pela P<?p"u lação
circundante): uma, para fazer o contato e estabelecer amizades numa
" 93
fiquei sentado ... E num momento tiraram aquela camisa e passaram um
época do ano em que sabia não existirem plantações de maconha na região capuz na minha cara, al eu fiquei sem conhecer ninguém. Agora eu conhe-
(setembro/outubro de 1978), e a outra, já em pleno começo da safra cia aquelas pessoas, que eu já tinha conhecido, eu conhecia as falas deles
(fevereiro/março de 1979). À's observações de campo, acrescentei dados inclusive a fala do senhor coronel lá. Mas que coronel?, perguntamos.
históricos, e comparativos provenientes da reduzida, porém bem funda- Celestino respondeu: o coronel Perfetti, chefe dos Indlos. Então, eu lá,
mentada bibliografia sobre a macónha no Brasil, e - para melhor explicitar me fizeram uma porção de perguntas, ai' eu sempre dizendo que não, ai' de
o choque de culturas aqui relatado - decidi manter no texto trechos momento ele chegou, ai' disse: você se vira com os meninos, você conta o
significativos do depoimento de Celestino, resguardando assim a originali- que sabe ai' pros meninos ... " (Cimi 50: 5-6).
dade de Sua expressão. A primeira parte do depoimento de Celestino revela, de forma ine-
~uma modesta contribuição à etnografia do Maranhão, quívoca, que o então delegado da Funai no Maranhão, ceioArmando Perfetti,
espero que o presente trabalho sirva também para alertar a opinião pública estava presente, pelo menos no início do interrogatório policial a que o
sobre os efeitos freqüentem ente infelizes das campanhas contra o uso de índio foi submetido. Ao fazer essa intervenção, o coronel contrariava clara-
drogas, e demonstrar que tais campanhas - longe de serem moralmente mente a posição oficial da Funai com relação ao uso da maconha entre os
inexpugnáveis - inspiram-se numa clara vontade etnocida por parte da indígenas Tenetehara, posição que reconhecia o importante papel que a
nossa civilização, que busca denegrir e suprimir aspectos ~considerados planta cumpre nos seus costumes tradicionais, sendo por essa razão prote-
"indesejáveis" na cultura dos remanescentes indl'genas"no Brasil. Por certo gida pelo artigo 47 do Estatuto do (ndio, que reza:
não são os índios os únicos a sofrerem este tipo de interferência. Processo "É assegurado o 'respeito ao patrimônio cultural das comunidades
similar é observado nas campanhas contra o uso de drogas entre muitos ind(genas, seus valores art/sticos e meios de expressão". (Lei 6.001 de
outros segmentos da sociedade, especialmente aqueles cuja aparência e 19.12.73).
comportamento divergem significativamente das normas aceitas pela ma ioria O próprio presidente da Funai na época, gen. Ismarth de Araújo
da população. 'Considerando que o processo de criminalização j~ atingiu Oliveira, já havia dado a conhecer a linha oficial:
não só o usoãa maconha no Maranhão, mas também o consumo tradicio- "O consumo de plantas tóxicas pelos (ndios não tem a conotação
nal da coca no noroeste amazonense e o da oasca no Acre, é de se esperar negativa que tem entre os civilizados ... Proibi-to seria interferir na cultura
um agravamento do conflito em torno dessa substância, e a reprodução, tribel, o que ... teria conseqüências altamente negativas nas relações entre
em escala nacional, do triste espetáculo da repressão ao uso de drogas nas indios, Funai e até com civilizados ... " (Beltrão, 1977 p.227).
principais cidades do País. Invertendo a lógica da guerra de trincheiras, é Para os índios continuarem desfrutando livremente de seu stetus
hora de escutar a mensagem lmplícita na prática indígena de que as plantas privilegiado perante a lei, colocava-se apenas uma condição: eles não
psicotrópicas não são maléficas em si, mas que o seu aproveitamento deveriam participar da produção de maconha para o comércio clandestino.
adequado depende de uma precisa contextualização cultural. Se não somos Foi encomendado um estudo para determinar a quantidade exata de
capazes de entender essa simples verdade, e a partir dela, repensar a polrtica maconha de que necessitariam para consumo próprio. Este estudo, embora'
adotada com relação ao uso e ao abuso de drogas, que autoridade moral .... nunca tenha chegado a ser feito, supostamente restringiria o uso da erva
teremos para continuar maltratando, e encarcerando amplos setores da maldita a contextos mais aceitáveis para as autoridades, contextos descritos
população em nome da saúde pública? em termos de "ritos religiosos", "cerimônias e festas" e "rituais místicos"
"Sim é o seguinte, chefe. No dia 19 de maio do ano passado numas (FSP 19.07.73; CB 26.07.73; ESP 18.10.78, 22.06.79, 05.08.79).
10 horas da manhã, a Poltcie veio atrás de mim na aldeia Coquinho. Eu Inevitavelmente, o liberalismo da Funai frente a essa questão foi
estava cortando arroz na roça, num roçado ... A l ele disse: nós vamos até duramente aiacado não só por figuras como o gen. Antônio Bandeira,
Grajaú, o coronel tá pra Grajaú. Aí, quando nós chegamos em Grajaú, ' chefe do Departamento de Polícia Federal (DPF), mas também pelo
arrodeamos a sede do Batalhão e entremos lá pre dentro, lá onde tava as establíshment de Saúde Pública, incluindo o eminente farmacólogo e
polícias lá. Al eles disseram pra mim: rapaz nós vamos ali conversar com membro do Conselho Federal de Entorpecentes, dr. José Elias Murad,
o coronel, se o coronel está aí. Quando eu vi, foi gente diferente. Chegou que prontificou-se a denunciar o fato de que "até entre os índios existem
um soldado por nome André, me procurou. Você é que é o Celestino? Eu sérios problemas de abuso de drogas." (Murad, 1977, p. 118).
'respondi é ele mesmo: Você está preso. E me algemou logo e outro correu Fica então patente que a ênfase dada aos aspectos supostamente
e passou uma camisa na minha cara al eu entrei.' Me levaram para dentro. "místicos" do uso da maconha entre os Tenetehara (aliás inexistenfes,
Lá fique} sentado numa sala. Lá me botaram em riba de um banco lá
95
94
como veremos a seguir) tem muito menos a ver com a percepção dos os índios que o boom da maconha acabaria antes mesmo de realmente
próprios índios sobre o efeito dessa substância do que com a tentativa começar. (Gomes, 1977, p. 248).
do governo de distorcer o costume indígena como uma inofensiva aberra- As campanhas do DPF no interior do Maranhão coincidiram também
ção cultural, um traço idiossincrático sem nenhuma vinculação com a com um período de repetidas invasões do território ind ígena, empreendidas
temática de "loucura e morte", associada ao uso da mesma droga no por fazendeiros e pequenos posseiros, que vinham sendo expulsos das terras
contexto urbano .. Â" lógica subjacente a essa classificação serve principál:\ circundantes por grandes projetos agropecuários. Durante essa fase, porém,
mente para reafirmar estereótipos já bem arraigados entre a população - o DPF permaneceu praticamente alheio ao problema, fugindo do seu dever
a imagem do índio inocente, quase infantil, colocada em contraposição à constitucional de velar pela integridade dos bens da União. Sua indiferença
do "viciado" violento e desesperado das grandes cidades - e, apesar de à problemática da invasão das terras indígenas se explica não só pelas
uma tolerância aPãrente; não demonstra respeito algum ao considerável pressões políticas movidas por grupos ligados ao governo, como também
enten<!.imento das propriedades da planta evidenciado pelos T enetehara. pelo profundo racismo e antipatia de que os índios eram alvo, decorrentes
"Aí ele saiu, foi embora, eu fiquei lá, eles fazendo muita pergunta, das campanhas contra a maconha.
eles me botando choque pelas pernas, amarrando fio elétrico nos meus Durante a "Operação Maconha" de 1978, os agentes federais utiliza-
dedos, botando aquele choque de momento eu ia pro céu e voltava. Então ram expressões como "sacana", "desgraçado", "filho da puta", "seu rnerda",
é melhor vocês me matarem, eu dizendo para eles. (E eles respondiam): Ó referindo-se aos índios. Essas ofensas não apenas eram comunicadas a
seu sacana você tem que dizer, você sabe, né? Deram palmada com a pal- terceiros, mas também dirigidas pessoalmente aos índios. O relatório do
matória nas costas ... " (Cimi 50, p.6). sertanista Elomar Gerhardt, que registrou essas injúrias e as freqüentes
~ público e notório que o Departamento de Polícia Federal tem agressões Hsicas ocorridas na ocasião, também contém a seguinte frase,
lançado mão com bastante freqüência da tortura como forma de interroga- ""- bastante significativa, proferida por um dos agentes que participou da
ção em investigações sobre tóxicos, pelo menos desde o fim da década de "Operação": "Mas o quê esses índios vão querer com esse horror de terras?"
60, quando práticas desse tipo foram adotadas em grande escala na luta (Cimi, 50, p. 21).
contra a "subversão". Tais abusos, ainda que comentados à boca pequena Em novembro de 1976 os Tenetehara do Posto Indígena Angico
entre amplos setores da população, raramente chegaram a ser divulgados Torto demonstraram que a paciência tem limites. Percebendo que o apoio
pela grande imprensa, mesmo quando denúncias sobre a tortura de presos da Polícia Federal Ihes seria negado indefinidamente, resolveram recuperar
poHticos começavam a ganhar um certo espaço nas manchetes. Inclusive, o território usupardo ~a região denominada Marajá, onde mil colonos
c;Lurantea f~~ n.!9ra di!....
C!t-nsuraprévia, ~ma ordem datada de 9 de j~ estavam em vias de consolidar um pequeno povoado. Ao queimar as casas
~e 1973 chegou a proibir especificamente a publicação de qualqu~ dos invasores, chamaram a atenção da imprensa nacional, e um jornalista
referente ao uso de violência por parte de órgãos de segurança em casos- de O Estado de São Paulo chegou à área para entrevistar os rndios e brancos
envolvendo- entorpecentes. (J8 Especial "Os Documentos da CensuraU)- envolvidos no conflito. O fazendeiro Raimundo Barroso foi citado por
18.06.78.) - diversas fontes como responsável pela introdução de grandes plantações de
Não foi por mera coincidência que essa proibição acabou sendo <,
maconha dentro da área indígena, artifício que lhe pemitiria desfrutar de
promulgada justamente naquele momento, quando uma crescente demanda
total imunidade legal, caso as plantações fossem "descobertas" pelas autori-
pela maconha nas cidades vinha encorajando muitos pequenos produtores
dades. De qualquer forma, essa possiblidade parecia bastante remota, visto
a aumentar sua produção bem além do padrão tradicional de auto-suficiên-
que as autoridades tinham pouco interesse em apurar casos dessa natureza.
cia. As primeiras operações policiais nas áreas indígenas do Maranhão
O próprio Barroso declarou ao jornalista, sem nenhum constrangimento,
começaram durante a safra de 1973, sendo autorizadas pelo delegado da
que contava com o apoio da Polícia Federal (ESP 15.01.76).
Funai em São Luís, em aberta discordância com a linha oficial de seus
\ Com base nessa afirmação - e em muitas outras que me foram confi-
superiores em Brasflia (Beltrão, 1977, pp. 224-227). Já em 1975, a quase denciadas por (ndios e "civilizados" nos municípios de Barra do Corda e
totalidade dos Tenetehara - um grupo com mais de 4.300 membros, distri-
Graj aú - não seria precipitado supor que o mesmo tipo de arranjo é bastante
bufdos em cinco reservas principais, ocupando uma área total em torno de comum no Maranhão. Este fato explicaria a falta de iniciativa da Polícia
um milhão e meio de hectares - havia sentido na pele os resultados das Federal em estender suas operações às áreas controladas pela oligarquia
investidas repressivas da Polfcia Federal. Os primeiros relatos sobre os latifundiária e por outros grupos ligados ao aparelho de poder, ao mesmo
pavorosos espancamentos sofridos nas mãos dos agentes federais provoca- tempo em que deixaria patente os motivos da repressão ao uso da maconha
ram um rápido declínio na produção para a venda, ficando evidente para
/.'

96 97
" "viciado"
-
.uso de drogas no BrasU! O emprego de termos chavão como "tóxico" e "
não SÓ evidência uma lamentável falta de critério no que se
entre os Tenetehara. Por um lado, esses índios são os únicos cidadãos brasi-
Irefere à grande variedade de drogas e formas de uso existentes no país,
leiros que não fazem segredo do uso da planta. Por outro, seu sistema de
mas também traz à tona uma atitude, ao mesmo tempo moralista e etno-
produção - ao mesmo tempo tenazmente independente e de escala bastante
cêntrica, de repúdio ao consumo de qualquer substância não incluída no
limitada - jamais será acessível ao 'tipo de monopolização característico
1"-' - - trio culturalmente aceito, que inclui o álcool, o tabaco e as bebidas à base
do comércio em grande escala no mercado n~ro.~á nos anos 50 era perfei-
de cafeína (café, chá, mate e guaraná). O caso da màconha é particularmente
amente evidente a natureza corrupta do OOmércio ilfcito no interior
ilustrativo dessa incapacidade de assimilar o "outro", pois, apesar de uma
nordestino. Um prefeito alagoano chegou a fazer o seguinte desabafo:"A
longa trajetória histórica e de uma difusão extraordinariamente ampla no
maconha tem dado é tylUito dinheiro para a polícia, essa é a verdade".
Brasil, continua sendo um assunto tabu na grande maioria das discussões
!Araújo, 1961 ,~p~).l:sses fatos é que explicariam a preocupação quã;
políticas - inclusive, e especialmente, em determinados setores de esquer-
obsessiva da Polfcia Federal em provar que os Tenetehara se dedicam a
da~ O próprio ato de acender um basead-o rarissimamenteeencarado cõm'
plantar maconha em grandes áreas, obsessão manifesta pelo constante
exagero que caracteriza seus informes sobre a questão.
rEi'ã1 naturalidade, até mesmo na companhia de outros usuários.
O que indica essa angústia, essa impossibilidade de incorporar o ato
Apesar de repetidas referências às "vastas plantações" e numerosas
de fumãr'maco-"ha ao comportamento socialmente aceito, mesmo àquele
"máquinas para prensageme embalagem" supostamente existentes nas
das sÜbcul~s contestatórias da nossa sociedade? Serâ'unicarnente resul-
áreas indígenas (Beltrão, 1977 p, 225), o único testemunho independente
tado do status ilegal da planta, da possibilidade, sempre presente, da
de uma operação do DPF - o do indigenista Elomar Gerhardt (em Cimi,
implacável repressão polícial? Será, como sugerem os punks paulistanos
50, pp 12-30) levanta sérias dúvidas a respeito da veracidade das estimativas <, (a maioria deles maconheiros de fato, porém não "assumidos") que o
feitas pelos agentes federais sobre o volume de maconha produzido pelos
costume mantém uma vinculação já cristalizada com certas atitudes
Tenetehara. Num determinado momento, o comandante da "Operação
consideradas libertárias no final da década de 60? Ou será um fator decor-
Maconha" de 1978, bastante irritado, chegou a ameaçar o indigenista de
rente de um enquadramento ideológico mais amplo, no qual o fenômeno
fazer "graves denúncias", caso ele não concordasse em assinar alguns
do uso da maconha se vê constantemente tendencioso, de inspiração
autos de apreensão e incineração de maconha, que exageravam enorme-
psicomecânica, um discurso que cria um sentimento de quase vergonha
mente a quantidade encontrada dentro das áreas indígenas. Depois que o
até nq,usuário mais inveterado?_ . _ _ '-"\
erro de avaliação lhe foi apontado o comandante esclareceu que aqueles
Basta estudar a coletânea sobre a questão publicada pelo Ministério
dados serviriam para fins "puramente estatísticos". Assim, o fato de que a
da Saúde (1958) para entender como historicamente esse discurso ganhou )
descoberta de menos de cem plantas poderia ter sido utilizada para criar
primazia, partindo do velho racismo nordestino de um Rodrigues Dória
uma suposta apreensão de 1.300 quilos provoca uma certa descrença nas
(1915) até chegar a teoria epidemiol6gica dos anos 50, made in USA e
outras características da Polícia Federal, especialmente naquelas referentes
eproduzida pela ONU nos seus acordos internacionais Comparando estas
aos totais de maconha apreendidos no Maranhão em 1978 (205 toneladas)
I~turas com Schmidt (1976), Bussel (1978 ou co qualquer uma das
e 1979 (367 toneladas). .
"Quando foi sete horas da noite, era escuro, eles me levaram em um inúmeras séries de reportagens publicadas pela grande imprensa nos últimos
campo com capuz na cara ... ! Você tem que contar aqui. Ou você conta anos, entende-se por que no plano teórico, quase nada de fundamental foi
ou você morre. Ar me algemaram, fiquei agarrado, meu braço num galho alterado no último quartel do século. As observações mistificadoras de
de pau. AI' eles metendo o couro, dois soldados em cima dos meus pés pra Pinho (1975, p, 299) de que "as psicoses observadas em usuários de maco-
gente não estribuchar. Aí eles me bateram muito, me deram pancada r:a nha comportem uma fisionomia schizofreniforme, nunca antes apresentada
barriga, no estômago, por as costas. Uns chegavam e me chutavam assim em nossa casufstica, e outras síndromes de reação ex6gena •.. ", por
aqui por riba dos rins que eu ficava sem fôlego. Foi quando eu pedi a arrn,.a exemplo, poderiam ter sido escritas há 20 ou 30 anos.
de um rapaz, é melhor vocês me darem uma arma de vocês que eu mesmo .cabe, sem dúvida nenhuma, às ciências sociais uma boa parte da res-
quero me matar com minhas mãos que tanto eu sofre, sofrer não sei qual ponsabilidade por tal situação. Fora os trabalhos de Wagley e Galvão
motivo que estou sofrendo, eu dizendo pra ele... " (Cimi, 50, p. 6). (1949, pp.4 1-42), Araújo (1961, pp.316-322) e Hutchlnson (1975), nenhum
A ocorrência dessa absurda violência por parte da repressão policial autor tem-se dedicado à questão do uso tradicional da maconha no Brasil
é resultado obviamente da cobertura e da justificativa dadas por uma com um mínimo de objetividade e compreens~, no contl!)ttcrtifõaií~
cuidadosamente orquestrada campanha de deslnforrnaçâo pública sobre o ---'s""ê~mdesmerecer a perspectiva de Velho (1978) sobre a manipulação social

98· 99
p. 175). {Já em outubro de 1830, o uso da maconha para fumar era tão
do "drogado" como categoria de acusação, não se percebe na literatura
mp-lãi'Tíe'ntedifundido na cidade do Rio de Janeiro que a Câmara Munici-
nenhum questionamento a fundo da continuada vigência do modelo do
uso da maconha como doença epidêmica - defendido, entre outros, pelo pal se viu obrigada a ceder a pressões racistas - segundo um ditado popular
professor Murad (1977) - mesmo frente à evidente incapacidade de tal da época: "Maconha em pito faz negro sem vergonha" (Pinho, 1975, p, 294)
modelo oferecer alguma "solução". Enquanto não se admitir que só _ proibindo a venda e a importação da erva, assim como "o uso do pito do
haverá Solução se a própria coiocação do "problema" for alterada, é de pango e sua presença em estabelecimentos públicos" (Dória, 1915, em Min.
se esperar imobilismo ainda maior e um crescente esvaziamento da questão Saúde, 1958, p.7). O pito em questão era um cachimbo ou "msrice" que
das drogas. Questão, aliás, já suficientemente batida para dispensar mais filtrava a fumaça através da água contida numa cabaça ou garrafa. De
comentários, pelo menos até sua completa reformulação . . . - inspiração originalmente árabe, tinha atravessado o continente africano e
Capuz na cara, não tinha jeito de olhar, fazendo muitas perguntas, chegado ao Brasil em parceria com a maconha, perdurando como elemento
eles me passando aquele negócio, eu estava de bermudas. Eles me passando característico do uso tradicional da planta até anos bem recentes.
aquele neg6cio que dá choque, que vai comendo a gente, beliscando. '-- Por outro lado, o fato de a rainha Carlota Joaquina referir-se à erva
Passaram onde? Passaram aqui na minha perna. Choque eles me passaram pelo nome de "diamba do Amazonas" sugere que uma boa parte da maco-
duas vezes. Lá assim que cheguei e lá no campo quando eles me levaram. nha então encontrada no Rio de Janeiro provinha do Norte do País. Junta-
E isso alto na tua barriga, o que é? Isto foi pancada que a poltcis me deu. mente com a região às margens do baixo São Francisco, nos atuais EStados
Pancada, tõ doente que eu não posso nem trabalhar pra mim .•. Sinto de Alagoas e Sergipe, o Maranhão seria, sem dúvida, um dos principais
aquela dor quando eu como às vezes muito, passo a comer mais um pouco, centros de dispersão do uso dessa planta no Brasil. ~ de se suspeitar uma
<,
vem aquela dor de barriga, fica, cresce, incha, é assim né: Sinto dores refe~nciã à- maconha (mais conhecida dos portugueses de então como
aqui assim. Nas costas também? Aqui em ribQ dos rins. Que eles me deram cânhamo, uma variedade da mesma espécie Cannabís setivsr; utilizada na
muito, me baterám muito. Cada um homão daquele, senhor. Não sei como Europa para produzir fibra numa carta dirigida a Lisboa em 1784 pelo
eles não me mataram. (Cimi, 50, pp.8-10). governador do Maranhão e Grão-Pará, José Teles da Silva, "que nessa
A incompreensão de Celestino das torturas que sofreu se deve ao ocasião remetia uma planta, que era semelhante à malva, de que as nações
fato de que o uso da maconha tem sido encarado pelo povo maranhense, do Norte, e principalmente os hamburgueses, se serviam para cordagens,
ao longo da história, como uma coisa normal, e - por que não dizer? - 'a qual mandando preparar achou ser muito útil, o que melhor em Portugal
até mesmo saudável. Parece que a planta foi, introduzida nessa parte das se poderia verificar pelas amostras que mandava ... Dizia também que no
Américas por escravos de origem angolana, e tanto o nome local (diamba) caso de ser útil à fábrica de cordoaria, se fizesse interesse e fosse de bom
como o termo comum "em outras regiões do Brasil (maconha) têm sua uso, poderia carregar um navio da sobredita planta." (Marques, 1970,
origem na língua quimbundo da África central. Aliás, uma expressão p.517l· _ "
aparentemente corriqueira em Alagoas, fumo de Angola, deixa perfeitamen- Negros angolanos só- começaram a chegar ao Maranhao em grandes
te evidente a fonte da introdução dessa planta no Brasil. A mitologia popu- levas na segunda metade do século XVIII, quando a mão-de-obra escrava
lar supõe que as sementes chegaram ao Novo Mundo escondidas no interior foi requisitada para trabalhar nas plantações de algodão. Durante a primeira
de pequenas bonecas de pano, e que o uso da erva se difundiu no período metade do século XIX, os índios Tenetehara tiveram repetidos contatos
colonial no contexto dos quilombos nordestinos, onde foi adotado por com negros foragidos na área do baixo Pindaré (Gomes 1977: 70, 90,108),
negros nagôs que não a teriam conhecido em sua terra de origem (Carneiro, e é bem provável que o uso da maconha também tenha sido introduzido
1966, p.18; Hutchinson 1975). por essa via. Sua rápida aceitação na região não é, aliás, o único exemplo
de assimilação da maconha por parte das comunidades irÍd(genas. Dória
Provas documentais da existência de maconha rio Brasil só datam,
(1915) cita o caso de grupos não identificados no baixo São Francisco;
porém, do início no século XIX, sendo de qualquer forma, bem anteriores
Tastevin (1923) fala do uso da planta entre os Mura do baixo Madeira; e

---
às evidências citadas em outros países da América, como México, Cuba,
Pereira (1954) e Wassén (1976: 171) descrevem sua introdução entre os
Colômbia e Jamaica ...Ilronicamente, a primeira referência segura sobreo
Saterê-Mawé do Amazonas. Mas entre os Tenetehara é que ela certamente
uso da planta provém da Corte portuguesa instalada no Rio de Janeiro
foi adotada com mais entusiasmo, recebendo o nome depetem-ahê - que
durante as guerras napoleônicas. Sabe-se" que a rainha Carlota Joaquina tem os significados de "fumo bravo" e "tabaco silvestre" - e adquirindo,
utilizava com freqüência um chá preparado de "diamba do Amazonas" ao longo de mais de um século e meio de uso, um caráter mítico repetido
preparado por seu escravo Felisbino (Cintra, 1934; Hutchinson, 1975, -,
101
100
UNICAMP
--_ ..•.
por vários dos meus informantes: "Nos tempos dos antigos, antes de se esse respeito, e provavelmente cerca de 25 % dos homens adultos ainda
fixar num lugar para fazer roça e plantar tabaco, os nossos avós s6 fumavam plantam maconha e a usam regularmente. Mesmo em outras áreas, onde a
petem-ahê ... " erva é fumada pela grande maioria dos homens e rapazes adolescentes,
"Eu acompanhei a polícia até a aldeia. Lá os índios quiseram se existem numerosos casos de indivíduos que nunca chegam a usá-Ia. Esse
revoltar contra mim. Os índios queriam bater, me cutelar, muits coisa ..• comportamento é respeitado, mesmo sendo objeto de ocasionais gozações,
Se revoltaram contra eu. Diz que era eu que andava indicando aonde tinha e certamente uma "cabeça leve" não implica nenhuma exclusão dos não-
maconha viu, sem ser. AI viemos embora. Lá eles não arrumaram nada. fumantes nas ocasiões em que se consome a maconha.
Viemos embora chegamos em Grajaú eu fui livre num dia de terça-feira, O contexto em que a maconha é mais consumida ocorre durante a
quatro horas da tarde. Eles falaram também. A pollcia disse para mim, o realização de trabalhos que exigem esforços físicos. Ãeredita-se que a
que esteve escrevendo, na máquina batendo, ele disse para mim: Oi você planta tem efeito estimulante, ajudando na execução das tarefas pesadas
não vá dizer nada na aldeia, você não vá dizer pra ninguém que você apa- associadas às derrubadas e plantações. Os Indios concordam que a maco-
nhou da mão da polícia. Mas quem sente deve dizer ... Eu vou dizer para nha "te dá ânimo de trabalhar" (Wagley e Galvão, 1949, p, 42), e sua
o senhor como eu estava lá. Estava com o capuz assim, aqui assim aqui principal queixa depois da "Operação Maconha" de. 1978 foi a seguinte:
eu, quando queria qritsr: Oh, senhores não façam mais isso comigo, e eles "Karaiw (branco), como é que nós vamos botar roça? Tu sabe mle..ops
chegando e epertsndo, dizendo não grita seu safado, não grire, não grire, sóbota roça fumando maconha" (Cimi, 50, p.30). Aõ mesmo tempo, não
eles botando as mãos na minha cara e tapando a minha boca, enforcando a slifia justo inferir dessa declaração que os Tenetehara tenharn.de.fatc.alçuma
minha güela de tanto sofrer, que eu tinha sofrido, eles dizendo pra mim ependência psíquica da maconha. A.época de fazer a roça coincide com o
que iam me jogar de dentro de avião do céu pra baixo, ia morrer assim. 1im da safra, e logo depois - na segunda metade do ano - o rápido êsgota- )
Iam me levar para Minas Gerais quebrar pedra lá, sem ganhar um tostão. mento dos estoques leva muitos homens a passar vários meses sem consumir
Desse jeito que a polícia fez comigo ..• De momento chegou aquela cora- maconha nenhuma. A imprevidência que caracteriza sua relação com 'as
gem em mim, parece que Deus disse ao meu coração: Fale, fale que você coisas materiais em geral se faz também claramente presente no tocante
não deve. Num momento fiquei numa altura do chão, criei coragem tão à ~aconha. Fumam quantidades impressionantes quando a erva está d ispo-
grande ... " vel, e raramente guardam pequenas reservas para depois. __
Entre as muitas explicações pela atroz tortura que Celestino sofreu a •f O segundo contexto do uso da maconha entre ãs" Tenetehara são as
principal seria dada, sem dúvida, por sua firme recusa em "cantar" para os reuniões noturnas, durante as quais os índios se juntam para discutir
seus algozes. De acordo com as regras de conduta Tenetehara, é uma questões referentes à vida da comunidade, dando espaço para os velhos
questão de honra negar qualquer participação em atividades que possam recitarem mitos e fazerem discursos políticos e os jovens contarem piadas
causar ofensa a terceiros, especialmente se as supostas vítimas de tal e aventuras sexuais. Enormes quantidades de maconha (digamos, 25 gramas
ofensa são as mesmas que tentam forçar os rndios a admitir a sua culpa. por pessoa numa só noitada) são consumidas nessas ocasiões, com a erva
Comparem-se as palavras do Celestina quando sujeito às sevícias policiais: sendo enrolada em grandés charutos cênicos, feitos com papel fino de
". embalagem, ou, mais raramente, com a casca interna da árvore tawari
"Ele sabe que ele tem a roça de maconha, eles dizendo lá pra mim.
A polícia dizendo. Então rapaz eu não tenho esse négocio ..• " (Caourareri tauary Berg.). Os baseados são feitos cada um por um indivíduo,
com a sua confirmação descontraída, quando entrevistado por um funcio- retomando a este depois de oferecidos aos demais presentes. Não circulam,
nário amistoso da Funai: porém, numa roda disciplinada como costuma acontecer em nossa cultura;
Vo~ já vendeu alguma vez maconha? "Já sim senhor. Mas pouca, em geral se vêem vários girando anarquicamente, com cada fumante tomando
assim, de dois quilos; eu já vendi mesmo. Então desde esse tempo que eles uma baforada - ou diversas, de acordo com a sua vontade - de cada.
vem dizendo que eu trabalho com isto .. ." . baseado que lhe vem às mãos. Em suma, o aspecto ritualístico desses
Como resultado das operações policiais dos últimos anos, não é 'encontros é pouco desenvolvido, sendo bem menos elaborado nos gestos
-fácil conseguir que os Tenetehara falem abertamente a estranhos sobre o e nas expressões do que o da roda de guaraná-e-tabaco entre os Saterê-Mawé,
uso que dão à maconha. No caso das minhas visitas à região em 1978-79, de coca-e-tabaco entre osváriosgrupos Tukano, ou até mesmo do chimarrão
foram necessárias duas viagens e a disposição de compartilhar de um bom entre índios e brancos no suI do Brasil. _.
número de baseados para estabelecer um rnrnlrno de confiança e convencê- Portanto, falar de "rituais rnrsticos" no uso tenetehara da maconha
los de que eu não trabalhava para a "Federal". Algumas das reservas Tene- SÓ podeser um equívoco devido á falta de observação. O fato se tonia
teharas - a de Bacurizinho, por exemplo - se tornaram quase herméticas a "
---
102 103
desfruta de uma ampla rede de comunicações informais com outros usuá-
ri~s, o que-permite a criação e a definição do estado de consciência que se
ainda mais evidente quando se considera a ausência da maconha no xama- procura mediante o consumo de drogas. No caso tenetehara, é evidente
nismo desse g-upo indígena, em que o estado de transe - uma autêntica que a sobrevivência de "Ioas" adquiridas da população envolvente indica
narcose, com o pajé cardo duro no chão por um período de 10 a 20 minu- também uma certa convergência da sua percepção do efeito da maconha
tos - é atingido unicamente pelo uso do tabaco, sendo a fumaça engolida com as atitudes aceitas pelos camponeses maranhenses em geral. Na ver-
para o estômago, acompanhada de violentos tragos e gesticulações. A dade, a rede informal dos usuários tradicionais de maconha no Brasil não
maconha também está ausente dos principais ritos de passagem tenetehara, pode sequer ser circunscrita a um determinado Estado. É notável o fato de.
como a célebre "festa da moça", através da qual a adolescente é reintegra- que a primeira das "toes" citadas acima já foi encontrada por diversos
da à sociedade depois de sua primeira menstruação. Na verdade, os poucos autores (começando com D6ria, 1915) em distintas épocas pelo Nordeste
elementos propriamente ritualizados no uso da maconha entre esses (ndios inteiro, e a terceira também foi escutada por Monteiro (1966) entre cabo-
denotam uma clara influência da população circundante, e seriam melhor clos do Amazonas, que apenas 'modificaram a "diembe" pelo nome local
considerados como sobrevivências do padrão nordestino descrito por "dirijo". A estas evidências de um contato razoavelmente estreito entre os
autores como Iglesias (1958) e Dias (1974) no Maranhão, e Dória (1915), Tenetehara e outros usuários nãOfind (genas da maconha, dever-se-ia ad icio-
Araújo (1961) e Duarte (1974) em Alagoas. Ainda que falte entre os nar o uso, bastante arraigado entre os índios, da expressão (de novo em
índios o elemento material do "pito" ou da "merlce", sobrevivem interpe- português) "blcudo" para descrever o tipo de concentração e sensibilização
lações (em português) do tipo "xinga a bicha", às quais deve-se responder sensoriais resultantes de uma 'boa fumarada, uso que vai diretamente ao
com as "toes" estabelecidas pela tradição, conhecidas pelos (ndios apenas encontro da tese de Becker sobre a definição cu Itural do efeito da droga.
nas suas versões mais resumidas: ,"' Poderíamos, então, supor que o complexo da maconha entre os Tenetehara
nada mais é que uma reprodução periférica da cu Itura trad icional nordestina?
6 diamba, sarabamba! Pessoalmente, considero perigoso aceitar tal passividade por parte
Quando eu fumo a aiamba
dos Indios, e dois elementos em particular parecem indicar uma clara espe-
Fico com a cabeça tonta
cificidade indígena no aproveitamento dessa planta. Uma é a emergência
E com as minhas pernas zamba
da expressão hê'mongatú, considerada por todas as autoridades lingüísticas
como "gíria", ou seja, elemento não integrante do vocabulário clássico
(os índios sempre faziam questão de escorregar no chão ao recitar esta
última linha, ironizando o suposto efeito da erva - efeito, aliás, não reco- tenetehara. Ainda que seu sentido seja apenas "numa boa" ou "tubo bem"
nhecido por eles, a não ser depois de doses hornéricas] , (normalmente conjugado com o verbo estar), é de se notar que a expressão
originalmente foi utilizada com exclusividade para referir-se ao estado de
e também: ânimo decorrente do uso da maconha, e mesmo hoje, seu emprego em
Quando não é tia Chica outros contextos seria considerado duplamente neológico. A etimologia do
Então é tia Rosa termo é obscura - os-fndios afirmam que "não tem outro sentido, só quer
Quanto mais véia mais sebosa dizer tudo bem" - mas com certeza o uso de uma palavra específica indica
Quanto mais nova mais cherosa não só a existência atual de uma categoria especial para descrever o efeito
da maconha, mas também - o que é muito mais significativo - a criação
ou ainda: dessa categoria inédita em algum momento do passado. Ao nomear esse
novo estado de consciência, deu-se uma precisa contextualização cultural
Diamba é coisa excelente do efeito da droga, contextualização que foi bem além da importação do
Remédio de dor de dente termo português bicudo, ou mesmo do reconhecimento Iingüístico da
Assim como Deus não mente planta em "Si, o que significou sua' equiparação à categoria do fumo já
Diamba não mata a gente conhecido (peten = "tabaco",petem-ahê = "tabaco bravo, forte ou silves-
tre").
kkeL (~977) tem chamado a atenção para o fato de que~epto Outro elemento que indica que a maconha adquiriu um caráter
de drogas ilícitas normalmente não dispõe de muita informação científica especificamente tenetehara não compartilhado por outros grupos ~ciais,
sobre os efeitos das substâncias que ingere, mas que em compensação, é a sua assimilação à extensa lista de plantas utilizadas por estes (ndios

104
105
para favorecer a caça. Considera-se que o poder mágico da fumaça da noll do que do elemento CBO (Canabidiol), que provoca uma certa sono-
màconha pode ser aproveitado para "chamar" ou "encantar" animais, parti- ~ lência.
cularmente pássaros e roedores como. a paca, que seriam ávidos consumido- I <, -A'S plantas geralmente são secadas inteiras, penduradas de cabeça
res de suas sementes. Mesmo outros bichos são considerados presas mais para baixo sob um-ªQrigo. Com alguma freqüência, como resultado desse
.fáceis dos rndlos que tenham fumado maconha, já que a sensibilidade tJ;ata~, a maconha é consumida ainda verde,;'A pressa para usufruir da
resultante permite ao caçador aproximar-se a uma menor distância sem safra é respÕnsável por essa prática, já que os-rridios - e outros eventuais
espantar o animal.
Tàmbém no plano propriamente agronômico, a maconha tem-se
inserido nas práticas tenetehara com relativa facilidade, complicado
I"'I \ consumidores - reconhecem que se obtém uma melhor qualidade de
I fumo se a planta chegar a ser curtida depois de seca ..9s sistemas de curtição
incluem desde uma simples pinha dentro de um recinto fe.chado para favo-
apenas pela necessidade de esconder as plantas das freqüentes operações' recer a fermentação orgânica, até as famosas "mutucas"de bambu ou de
policiais. Pequenas cestas, contendo uma mistura de terra preta e areia - \ cabeça, contendo o material vegetal amassado no interior, que s~ col?ca,
e umas cinco a dez sementes de maconha -, são prep~radas com uma 1 das no teto ou debaixo da terra durante dois meses. Ois~in~ue-se Im~dlata-
folha de babaçu, e guardadas perto da casa para protege-Ias dos ataques \ mente um fumo bem curtido pela cor parda e pela eusencia do cheiro de
de roedores e ,formigas cortadeiras. Quando as plantinhas atingem altura (\ clorofila, característica da maconha em estado verd~~ Vários nomes locais
de aproximadamente 20 cm são transferidas para a roça, sendo distribuídas \ Ldescrevem as tonalidades desta cor mais escura - "manga rosa" tem traços
irregularmente e em pequenas concentrações, o que as torna, às vezes, de avermelhados, "cabeça-de-negro" puxa mais para o preto _ ou indicam a
dif(c!' ide.nti!i~ação no meio da folhage~ mais densa da mandioca. Cada qualidade do produto _ "rabo-de-raposa" seria uma inflorescênc~a bem
gruPlnho individual de plantas tem sua origem na cesta usada como semen- "desenvolvida, maior que "camarão", que por sua vez é prefenvel ao
teira, e individualmente acaba contendo alguns exemplares fracos, que são "pêlo-de-macaco", expressão usada para designar um fumo de segunda,
arrancados para não prejudicar as duas ou três plantas principais. Estas, ao composto principalmente de folhas e não de inflorescêneias.
atingirem um metro de altura, sofrem uma capação na extremidade supe- Celestino; você tem notrcia de outro índio que sofreu assim? "Sei
rio r, prática que supostamente evita que elas se tornem rnaehas, além de do nome dele". Como é? "Djelme" Mora aonde o Ojalma? "Ele mora no
favorecer o desenvolvimento das florações laterais. - r Bacuri sobrinho do senhor Alderico ..• LA no Grajaú tem um localzinho
A prática de capação denota uma clara influéncia da população dos índios de nome Morro Branco, senhor Mourão é que foi buscar ele lá.
envolvente, já que esses cuidados não são dispensados aos pés de tabaco, Quando ele chegou botaram dentro desse quarto onde fiquei também. En-
inserindo-sé no contexto das arraigadas crenças populares nordestinas tão chegou lá, viu que ninguém ligou, quando ele conheceu que era poltcie,
sobre a sexualidade da maconha. Evita-se .que as mulheres se aproximem ' aí tentou escapulir. Ele correu, foi besteira, fizeram fogo nele pra matar ele
das plantas, especialmente na época da 'capação, para não favorecer o de- ou pra adoecer, foi como cercaram ele, enganchou a perna no arame. Aí o
senvolvimento de exemplares machos, de escasso rend imento. Além disso, I índio caiu, al eles trouxeram ele, ele sofreu do mesmo tanto d'eu pois os pés
o próprio consumo da maconha é, em geral, restrito aos homens, e apenas dele estava todo inchado .•. " Tem mais alguma coisa a dizer? O que você
as mulheres de status elevado - avós e pós-menstruantes - se dão a liber- ,'acha o que você espera da Funai? "Espero da Funai que a Funai dê um jeito
dade de pedir aos homens maconha para o seu uso pessoal. Para as crianças sobr; este caso meu; Olhe chefe eu vou lhe dizer porque sou uma pessoa
e mulher~s ma~s jovens, a prinoipal função da plan~a é medicinal, sendo que não gosto de andar dizendo certas a: isas. Qua~o eu digo uma. coisa é
usada em infusões para o tratamento de febres e gastrltes. porque eu sinto. Nem a vida do Coronel nao paga a pIsa que eu pegueI, e nem
Nos primeiros meses da safra (dezembro a fevereiro), o~ a riqueza do Coronel, riqueza dele, não porque não paga mesmo. Porque ele
fumam exclusivamente as folhas da planta, que vão sendo retiradas de \. diz que é chefe dos índios a ao mesmo instante ele não é, ele é contra os /n-
acordo com.a necessidade, e sec~d~s rapidamente ao sol. Este f~mo é muito \ dios, isso aI' eu digo, posso até dizer pra ele, e/.ete pode r;:an~ar. me matar.
verde, relativamente fraco, e Irrita bastante a garganta, razao pela qual Se tem lei para matar o índio, se não tem, então. .. [Cimi, pp. 9-10).
espera-se ansiosàmente a chegada das primeiras plantas ã completa maturi- Celestino teve a sorte de contar sua história a um interlocutor simpa-
dade em março. Nos três meses seguintes ás plantas são colhidas inteiras, tizante dos (ndlos José PorUrio Fontenele de Carvalho. Ao .assurnlr a
assim que os "pêl~s" Ipistllosl nas flores femininaspassam de. amarelo-claro ) chefia da Ajudân~ia de Barra do Corda n~ começo de, ~978, Carvalho
a um marrom meioressecado, ponto no qual a planta efetivamente pára ficou profundamente chocado ao descobnr que a p~atlca de to~u.ra
de desenvolver-se. ~ tambémnesse momento que a-planta contém um teor fora autorizada por seu superior, cel. Armando Perfetti - um ex-oficial
mais alto do princípio psico-dinâmico tJ -THC (delta 9-Tetra-hidrocanabi- •

106 107
da Polícia Militar sem nenhuma experiência de trabalho com índios, oficiais (ESP, 10.10.78). Uma semana mais tarde, o próprio Celestino
e cuja nomeação como delegado da 6~ Delegacia Regional da Funai chegou a Brasília e, na companhia de vários chefes teneteharas, repetiu
fora resultado de favor político a nível estadual. Era de se esperar como suas denúncias ao então presidente da Funai, gen. Ismarth de Araújo Oli-
conseqüência das iÍldagações um caso exemplar de idealismo lutando contra veira. Celestino também foi recebido pela cúpula do Cimi e concedeu
o nepotismo e a corrupção. Mas atenção! O desenrolar da história demons- algumas entrevistas a jornais (ESP, 18.10.78). Sua intervenção sustou a
tra claramente como interesses escuses e obscuras maquinações conseguem punição a Carvalho e aos outros indigenistas, mas mesmo assim o delegado
perverter o curso nonnal da justiça, cada vez que se trata do temível Perfetti continuou no cargo, só sendo demitido um ano mais tarde, quando
assunto das drogas. foram comprovados sua anuência e seu direto envolvimento em vários
O testemunho de Celestino foi gravado no final de fevereiro de 1978. casos de invasão e usurpação de terras nas reservas indígenas. Como era de
Em maio do mesmo ano, sr. Mourão, chefe do Posto Indígena Bacurizinho, se esperar, as investigações realizadas pelo delegado de Ordem Polítlca e
finalmente concordou em fazer uma declaração sobre o seu envolvimento Social do DPF para apurar as denúncias de tortura também decidiram -
no caso do índio Djalma Guajajara: "... com relação a maus tratos aos após um ano de demorados inquéritos - pela "improcedência da denúncia",
índios, tenho a informar que cheguei a presenciar, quando o índio Djalma devido ao fato de que Celestino estava encapuzado na ocasião, ficando
Guajajara estava sendo interrogado dentro do acampamento do BEC em portanto impossibilitado de identificar seus torturadores (ESP, 22.06.79).
Grajaú, o dr. Nazareno (segundo ele identificava-se) aplicou-lhe dois tapas, ~ ditícil acreditar que o caso de Celestino Guajajara tenha sido
com as mãos abertas, nos ouvidos do índio Djalma Guajajara. Como não apenas um acidente histórico, um acontecimento limitado a uma determi-
aprovava as atitudes agressivas contra o índio, retirei-me do local não -,
nada época, quando o emprego da tortura ainda continuava em voga nos
sabendo o que ocorreu depois. Explico ainda que a pessoa que se dizia órgãos policiais. Reportagens esporádicas do interior do Maranhão descre-
chamar dr. Nazareno dizia-se pertencer à Polrcia Federal e chefiava, a equipe vem a repetição, a cada ano, das tr istemente célebres "Operações Maconha ",
em operação em Grajaú" [Cirni, 50, p.II). uma rotina no calendário da Polícia Federal no período de abril a julho.
Teria sido suficiente perguntar ao próprio Djalma sobre as torturas Pior ainda, a violência física contra indígenas e outros pequenos produtores
que sofreu, mas aparentemente o sr. Mourão não fez isso, nem se preocupou da região já deixou de ser notrcia, e faltam funcionãrlos da estatura e da
em apurar qualquer informação sobre o assunto até ser interrogado, quase coragem de um Porfirio Carvalho para denunciar os abusos praticados em
um ano depois, por Porfírio Carvalho. Já por essa época, Carvalho tivera a nome da repressão às drogas. Ex iste uma clara lógica neste cenário de
.oportunidade de sentir na pele as pressões -a as arbitrariedades da Polícia , • indiferença, pois a politização da questão das drogas avança inexoravel-
Federal, ao tentar sem êxito convencer o comandante da "Operação Maco- mente com a contratação dos agentes dos extintos Dops para as delegacias
nha" de 1978 dos efeitos nefastos de sua atuação sobre as conturbadas estaduais de entorpecentes, e com a monopolização da repressão política
relações inter-étnicas na região. A documentação de Carvalho, juntamente nas mãos da mesma Polícia Federal, que tanto se tem distinguido na luta
com o depoimento de Celestinoe b relatório do indigenista Elomar Gerhardt por controlar o tráfico. Que este controle tem-se colocado às ordens das.
denunciando a atuação dos agentes federais dentro das áreas indígenas, foi grandes máfias lnternacionais - como no caso da corrupção comprovada
enviada primeiro à delegacia em São Luís e depois à sede da Funai em Bra- do Superintendente Regional do DPF no Amazonas, Ivo Americano - ou
sília. A Polícia Federal passou então a hostilizar os funcionários da Funai que o excesso de zelo repressivo continua dando margem à tortura com
em Barra do Corda, tentando em repetidas ocasiões provar que eram eles pancadas e choques elétricos (conforme foi denunciado pelo cantor portu-
os grandes traficantes que se beneficiavam da produção de maconha dos guês Sergio Godinho em dezembro de 1982, no Rio de Janeiro), nada disso
índios. O próprio cel. Armando Perfetti reagiu às acusações de tolerar a' parece alterar a lógica cega da campanha de vitimização dos usuários de
tortura de Indios com a fria declaração de que não conhecia nenhum indi- drogas, ássim como não tem levado a nenhum questionamento fundamental
víduo chamado Celestino Guajajara. Seu nome finalmente ganhou as man- da forma pela qual a nossa sociedade encara a questão do abuso de tais
chetes quando insinuou que as acusações que lhe eram feitas partiam de substâncias. -
traficantes de maconha atuantes no interior do Maranhão (Ema, 24.00.78). o fundo, não se procura solucionar um problema de saúde pública, '\
A própria comissão de inquérito da Funai - obviamente pressionada e sim assegurar a representação de uma "verdade" cientrfica, monolítica e
pela PoHcia Federal em Brasília -concluiu clnicamentepela improcedência intolerante, que ao mesmo tempo reflete e justifica o autoritarismo da
das acusaçôes contra as autoridades, isentando de culpa o delegado Perfetti estrutura política no plano maior. Numa época em que o presidente dos
punindo Carvalho e outros dois indigenistas pela divulgação de documentos Estados Unidos dedica grande parte de sua visita ao Brasil a insistir na

108 1@9
IGL~SIAS, Francisco de Assis - "Sobre o vicio da diamba", in Ministério
necessidadede uma guerra sem quartel às drogas, numa década em que a
de Saúde, 1958 pp. 15-24.
infiltração de agentes da Drugs Enforcement Administration (DEA)
MARQUES, César Augusto - Dicionário histórico-geográfico da Provfncia
norte-americana continua subvertendo os aparelhos estatais em toda a
do Maranhão, Rio de Janeiro, Fon-Fon e Seleta, 1970.
América Latina, não é de se esperar muito respeito ao direito anacrônico
MINIST~RIO de Saúde - Maconha, cotetãnee de trabalhos brasileiros,
dos rndios de continuarem desfrutando do seu patrimônio cultural. Afinal
Rio de Janeiro, Edição do Ministério de Saúde, 1958.
de contas, na her6ica luta contra a "erva assassina",pequenos detalhes
MONTEI RO, Mario Ypiranga - "Folclore da maconha", Rio de Janeiro,
como os direitos humanos de um grupo de (ndios podem ser pisoteados
Revista Brasileira de Folclore 6, 1966 (16) pp. 285-300.
sem preocupação alguma. ~ um desserviço que rendemos a nós mesmos MURAD, José Elias - "O abuso de drogas e suaextensão no meio estudan-
pois, ao rotular os (ndios Tenetehara como meros "maconheiros", perde-
til no Brasil", Belém do Pará, in Boletim de Policia Cientifica I 1977
mos a oportunidade de aprender uma lição .sobre o uso adequado desta (2) pp.85-123.
planta, de inestimável vjl~r para a nossacivilização. 'PERNAMBUcb, Jarbas- "A maconha em Pernembuco", in Gilberto Freyre
(ed.) Novos estudos afro-brasileiros 1937 vol. 2 pp, 185-191, Rio de
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110 111
AP~NDICE

" (coce) e a maconha, se dirige aos não-(ndios que estão usando os grupos
Apenas terminada a versão brasileira deste artigo - e enfrentadas as ind(genas na comercialização das drogas" - afirmou o coronel Leal.
primeiras críticas de colegas que consideravam sua ternãtica "ultrapassada", Disse ele ainda que, na campanha de fiscalização contra a comerciali-
e "de interesse meramente histórico" - recebi uma inesperada confirma- zação das drogas plantadas pelos Indios, a Funai "conta com total apoio da
ção da atualidade e mesmo da urgência de um debate cient(fico em torno polícia Federal. Não podemos reprimir os (ndios, pois o uso de alguns
das questões aqui levantadas. Refiro-me a uma nefasta reportagem publica- alucinógenos é cultural. O importante agora é coibir e mesmo perseguir os
da n'O Estado de S. Paulo (06.05.83): brancós que se aproveitam deste traço cutturet".
Para o coronel Leal, o difícil nessa operação é determinar o limite das
CADEIA PARA rNDIOS QUE USAM TÓXICO plantações para as comunidades, evitando-se o comércio. Entre as comuni-
Da sucursal de dades indígenas que fazem uso de drogas encontram-se os Guajajara, no
BRASfuA Maranhão, os Macu, Tucuna e Tucano, no Amazonas, e o presidente da
Funai reconhece o fato de que estes grupos ind(genas usam alucinógenos
Os fndios que usarem ou traficarem drogas poderão, "em princ/pio", "apenas em rituais': A Funai, informou o coronel Leal, jA encaminhou
ser responsabiliza dos penalmente, ou seja, presos, segundo decisão tomada amostras das ervas utilizadas pelos fndios para a Central de Medicamentos
ontem pelo Conselho Federal de Entorpecentes (Confen), depois de uma a fim de que sejam feitos estudos sobre o uso medicinal dessas ervas.
palestra e discussões com o presidente da Funai, coronel Paulo Leal. Aos
juízes, no entanto, será recomendada a aplicação atenuada das penas pre- r•.-, Finalmente, O Estado de S. Paulo (10.05.83) se viu na obrigação de
vistas na lei antitóxicos, de acordo com o que prevê o Estatuto do f'ndio, corrigir sua versão original, mediante uma diminuta nota:
inclusive o cumprimento da pena em regime de semiliberdade, em estabele-
cimento da Funai. • , FUNAI NÃO PUNE TÓXICO
Esta decisão deve-se ao aumento significativo do cultivo, uso eco-
mercialização de maconha por (ndlos, principalmente no Maranhão, em o presidente do Conselho Federal de E.ntorpecentes, Arthur Castilho,
comunidades onde o uso desta droga não fazia parte de suas culturas, tendo negou ontem em Brasüia, que o órgão tenha determinado a repressão ao
sido introduzida por civilizados. Os fndios têm tido um tratamento especial consumo de maconha nas comunidades ind(genas: "Em nenhum momento
em relação ao problema, o que tem estimulado traficantes a Ihes propor- afirmou-se que a Fumii iria punir (ndios por isso, mesmo porque a compe-
cionar sementes e recursos para plantio, voltando às tribos após a colheita tência para a repressão aos tóxicos é da Polícia Federal e, segundo estudos
e comprando toda a produção para venda. na Fundação, a maconha não faz parte da cultura indígena".
As informações foram dadas ontem à tarde pelo presidente do Con-
fen, Arthur Castilho, ressalvando que "dentro do aspecto cultura i, o consu- Quais são as principais dúvidas suscitadas por uma leitura atenta
mo de determinadas substâncias utilizadas em rituais, geralmente de cunho destes textos? Além das referências de praxe aos "rituais", místicos ou
religioso, mtstico, não é um fator de'desagregação da comunidade': Obser- não, que estariam orientando o uso de drogas entre as populações indígenas
vou, no entanto, que este consumo eventualmente deve ocorrer dentro de do Par s, observa-se, em primeiro lugar, uma clara d iscordância entre o
rituais e ocasiões espectticss, de acordo com determinadas regras culturais presidente da Funai e o presidente do Confen sobre o status cultural do
prôpries de cada comunidade em que se evita, inclusive, a utilização por uso da maconha ente os índios do Maranhão. Se o primeiro considera
parte das crianças. que "não podemos reprimir os índios, pois o uso de alguns alucinógenos é
Um dia depois, a Folha de S. Paulo (07.05.83) publicou o seguinte cultural" (note-se-de passagem que nenhuma das duas plantas citadas, nem
maconha nem coca, é propriamente um "alucinógeno") esta posição se
desmentido:
vê abertamente contestada pelo presidente do Confen, com base em dados
FUNAI NÃO REPRIMIRÁ OS rNDIOS POR. USO DE DROGAS apresentados pela própria Funai: " ... segundo estudos da Fundação, a
maconha não faz parte da cultura indígena".
BRASILtA - O presidente da Funai, coronel Paulo Moreira Leal, Será que os presidentes dos dois órgãos federais envolvidos nessa
garantiu ontem que a ação repressiva contra o uso de alucin6genos não será questão não puderam chegar, mesmo após longas discussões a portas fecha-
estendida aos índios. "A operação contra as drogas entre elas o epadu
."
113
112
por isso, mesmo porque a competência para a repressão aos tóxicos é da
das, a um acordo sobre a interpretação dos dados etnográficos? Não é
polícia Federal ... " .
possível que a confusão em torno desta interpretação se deva, antes de Ao analisar os discursos das diferentes autoridades envolvidas, che-
mais nada, a uma certa confusão também no próprio levantamento dos ,ga-se à impressão de que em breve veremos multiplicarem-se os casos de
dados em questão? Enfim, cabe à comunidade científica questionar a abusos, espancamentos e torturas aos índios que utilizam maconha, coca,
objetividade e competência dos citados "estudos da Fundação", especial- ou qualquer outra subst~eFlsiderada "alucinSgena'.:.,":t6>.<ica:':"
mente se tais estudos, ao serem examinados em detalhe, nada descrevem ~nto!pecente"J Sem dúvida, espera-se em círculos oficiais que os resulta-
além de vagos, indefinidos e mistificantes "rituais" e "regras culturais". dos dessas campanhas acabem confirmando a tese da "não indianidade" do
Como já demonstrei no texto principal deste trabalho, é muito difrcil consumo das drogas vegetais, e que efetivamente o uso de tais substâncias
definir exatamente o que é "ritual" ou "regra" no uso Tenetehara da deixe de fazer parte da cultura indígena. Ao desenvolver uma política
maconha. Se ritual é observar uma certa concentração no ato de fumar, dessa natureza, o Estado brasileiro dá renovadas provas de sua clara vocação
uma reciprocidade nas trocas de baseado com parentes e afins, de um tipo de etnocida - agora, porém, justificada perante a opinião pública em termos
comportamento padronizado nos gestos e nas expressões - os Tenetehara de guerra contra as drogas. O resultado de tal obscurantismo será o empo-
praticam "rituais" ao consumir a maconha. Agora, se ao invés do caráter brecimento não só da cultura indígena, mas da cultura brasileira como um
difuso, ambíguo e espontâneo das práticas Tenetehara se vê, nas palavras todo, privado do exemplo de uma relação sadia com a flora psicotrópica
do presidente do Confen, "regras culturais" que evitam "a utilização por do País.
parte das crianças", é c;!ese colocar uma interrogação fundamental.
De acordo com a minha experiência entre os Tenetehara, os meninos ,."

começam a puxar fumo na mesma idade em que se iniciam no uso do tabaco


também. Isso ocorre, em geral, na fase pós-infantil mas pré-adolescente, ou
seja, entre os seis e os dez anos. O pouco acesso desses meninos à maconha
- eu não diria que eles fumam o dia todo, nem mesmo todo dia'- não é
determinado por moralismos paternos, mas pelo simples fato de não dispo-
rem de plantações próprias, e de serem os últimos na hierarquia masculina
que prevalece na roda dos fumantes. Por esta razão, é justamente o pai, ou
possivelmente um "padrinho" in loco parentis, que pode inverter a hierar-
quia e oferecer o baseado a seu filho, antes de passá-to aos outros homens
adultos. Sem dúvida esta atitude paterna, determinada por um real respeito
entre as gerações, assim como pela falta de autoritarismo no processo edu-
cativo, terá pouca acolhida entre os pais "civilizados", acostumados a tratar
o assunto através do medo e da negação.
Por outro lado, é de se indagar também a origem e a veracidade da
informação sobre o "aumento significátivo do cultivo, uso e comercializa-
ção de maconha por índios, principalmente do Maranhão, em comunidades
onde o uso dessa planta não fazia parte de suas culturas." Não é possível
que esta constatação se inspire em novas manobras por parte de certos
elementos na Polícia Federal, interessados tanto em aumentar o raio e a
impunidade de sua atuação, como em desviar as atenções de sua evidente
Incapacidade de atuar contra os grandes traficantes no Maranhão? Com o
"total apoio" da Polícia Federal citado pelo presidente da Funai, pode-se
contar com uma crescente atividade repressiva nas áreas indígenas, impres-
são confirmada por uma leitura atenta das sinistras palavras do presidente
do Confen: "Em nenhum momento afirmou-se que a Funai iria punir (ndios
"

115
114
2. A MACONHA NA HISTORIA DO BRASIL

Luiz Mott1

- Texto inédito.

1. Departamento de antropologia, Universidade Federal da Bahia - Maio, 1984

117
A maconha é um mito que precisamos acabar com ele.
(dr. Antonio Machado Lobo, Alagoas, 1954)

A origem do uso da maconha se confunde com os próprios primór- \


dios da Civilização: trata-se de um dos vegetais que mais cedo foram
domesticados pelo homem (Weintraub, 1983, p.17l.t Supõe-se que o
Cânhamo seja nativoda Ás~_ Cefl1!]J, posto que ainda hoje nasce esponta-
neamente nas encostas do Himalaia, embora não se esclareceu com exatidão
sua procedência. ~ usado na fabricação de tecidos desde há mais de 6.200
anos na China, como remédio desde o ano 2.700 a.C. Heródoto descreveu
-:-:, seu emprego em rituais entre os escitas das margens do mar Negro., Teria
sido uma infusão desta erva a bebida que Helena de Tr6ia deu para Telêma-
co na casa de Menelau a fim de ajudá-to a esquecer seus infortúnios. Sua
chegada à Africa do Norte data dos primeiros séculos da era cristã (Arnao,
1980, pp.33-34).

---
A história de sua presença no Brasil ainda não foi satisfatoriamente
esclarecida. Para D. Parreiras, o canabismo fbi introduzido no Brasil pelo
negro escravo, com o que concordam. E. Cardoso, J. Mendonça, R. Dória,
'

J. Lucena, G. Moreno, C. Farias, todos participantes da Coletânea de Trs-


• balhos Brasileiros sobre a Maconha, publícada pelo Ministério da Educação
e Saúde, em 1958, "todos bons conhecedores do assunto" (A maconha,
1958 p.. 333). Mais recentemente' Arnao também afirma que como substân-
cia psicotrópica, foram os africanos que introduziram o cânhamo no
Brasil (1980, p. 34). Weintraub não se define sobre a questão (1983, p.31).
Segundo Pio Correa, citado por P. Rosado, da África a maconha foi intro-
duzida pelos escravos em nosso país, a partir de 1549, trazendo as sementes
do "fumo de Angola" em bonecas de pano amarradas na ponte das tangas
(A maconha, 1958, E. 115). Explicação plausível, porém, falta-lhe evid§.D-
cias documentais.! Heitor Peres, conwo, -inteligentemente, problema1lza \
êstã asserção:
, --"Quase todos os investigadores dizem que a diamba é de
~ africana, trazida que foi pelos negros do Congo à época da esera-
vatura. ~ afirmativa difícil de ser amparada ou contestada". (A maconha,
1958,p.79)
Somente a paleobotânica poderia esclarecer-nos se a maconha
brasileira, que é chamada por Weintraub de Cannabis americana, subespécie
da Cannabís sativa indica, se de fato é uma adaptação alienígena ou também
nativa de nossa terra. Na falta desta solução, e à sua espera, tentaremos
~\
1.19
avançar a discussão sobre as origens da maconha no Brasil, escorando-nos ;.::,
ps(quico, mas que em fortes doses se torna violento veneno, podendo levar
em certas evidêlncias etnohlstôricas e etnolinqürsticas a fim de reforçar a a uma intoxicação grave, o nicotismo. ,; empregado como inseticida a
hipótese de influência africana no tráfico, plantio, cultivo, consumo e solução aquosa da nicotina". A "erva santa" não é tão santa quanto ima-
difusão do pito de pango nas terras brasi@~s. ginavam seus primeiros consumidores: os milhões de vicioclosque morreram
Comecemos pela tlP0logia. em decorrência de câncer de pulmão, ou de .garganta, causados pelo taba-
Felizmentte dispomos de minuciosas descrições a respeito da botâ- gismo, fazem do tabaco um grave problema de saúde pública, dar a proibição
nica dos selvag~s (habitantes dãSSelvasLdas Américas na época do primei. de sua propaganda nos países mais civilizados - alguns deles, também
ro contato com os europeus, oescdções que não fazem nenlü:ima menção destacando-se entre os principais exportadores de tão deletério alcalóide.
à presença e uso da diamba pelos nossos abor(genes2• Vários autores'qui-
nhentistas e seiíscentistas referem-se miudamente a respeito de outra erva EIS O RELATO DO PADRE ANTONIL:
que da América se espalhou pelo mundo todo, e que faz mais mal e muito
mais vítima do que a maldita maconha: falamos do tabaco, este sim, nativo "Se o açúcar do Brasil o tem dado a conhecer a todos os reinos e
da América (Central e do Sul), da tamrlia das solanáceas, conhecida entre províncias da Europa, o tabaco o tem feito muito mais afamoclo em todas
os Tupinambá pelo nome depetum (ou petume), referida em 1577 por Léry3 as quatro partes do mundo, nas quais hoje tanto se deseja, e com tantas
e descrita inteligentemente por Gabriel Soares de Sousa em 1587 com as diligências e por qualquer via se procura. Os que são demasiadamente atei-
seguintes palavras: .çoados ao tabaco o chamam a erva santa: nem há eprteto, que lhe não
"O peturne é a erva que em Portugal chamam santa, onde há muito -, dêem para defender o excesso digno de repreensão e de nota. Homens há
dela pelas hortas e quintais, pelas grandes mostras que tem dado da sua que parece não podem viver sem este quinto elemento, cachimbando a
virtude, com a qual se tem feito curas estranhas, pelo que não diremos 'qualquer hora em casa e nos caminhos, mascando as suas folhas, usando
desta erva se não o que é notório de todos, como é matarem com o.seu em torcidas e enchendo os narizes deste pó. E esta demasia se vê não
sumo, os vermes que se criam em feridas e chagas de gente descuidada, somente nos rnarftirnos e nos trabalhadores de qualquer casta, forros e
com a qual se curam também as chagas e feridas das vacas e das éguas sem escravos, os quais estão persuadidos que só com tabaco há de ter alento
outra coisa, e com o sumo desta erva lhe encouram. e vigor, mas também em muitas pessoas nobres e ociosas, nos soldedos
A folha desta erva, como é seca e curada, é muito estimada dos índios dentro do corpo da guarda e em não poucos eclesiásticos, c1éricos e reliqio-
e mamelucos e dos portugueses, que bebem o fumo dela, ajuntando muitas • sos, na opinião dos quais toda essa demasia se defende, ainda quando se
folhas destas torcidas umas às outras, e metidas num canudo de folha de vê manifestadamente que se não usa por mezinha (remédio), mas por dar
palma, e põe-se-lhe o fogo por uma banda, e como faz brasa, metem esse gosto a um excessivo e mal habituedo prurito (sensação). Eu, que de
canudo pela outra banda na boca, e sorvem-lhe o fumo para dentro, até nenhum modo uso dele, ouvi dizer que o fumo do cachimbo, bebido pela
que lhe sai pelas ventas fora. Todo homem que se toma do vinho, bebe manhã em jejum moderadamente, desseca as umidades do estômago,
muito deste fumo, e dizem que lhe faz esmoer o vinho. Afirmam os (ndios ajuda para a digestão e não menos para a evacuação ord inária, alivia ao
que, quando andam pelo mato e Ihes falta o mantimento, matam a fome e peito que padece de tluxão asmática e diminui a dor insuportável dos
a sede com este fumo, pelo que o trazem sempre consigo e não há dúvida dentes."s
senão que este fumo tem virtude contra a asma, e os que são doentes dela, Mercadoria tão desejada, logo o rei regula seu comércio, exigindo
se acham bem com ele, cuja natureza é muito quente";" registro, guias e o pagamento de taxas a quantos queriam transportá-Io
Tão minucioso e "etnoqráfico", Gabriel Soares de Sousa jamais para a Europa e África, punindo com o degredo de 5 anos para Angola
teria' descuidado em descrever a "erva maldita" caso existisse nas roças os contraventores. Não obstante Antonil diz que muitos preferiam o risco
dos nativos. . do contrabando. A semelhança da história do tabaco - despertando paixão
Nos ínrclos do século XV" I, o padre Antónil, doutor. Reitor do nos seus consumidores, reunindo propriedades curativas as mais diversas,
Colégio dos Jesuítas da Bahia, revela-nos o quanto o vrcio do tabaco sendo objeto de astucioso contrabando - com a atual história do "fumo",
inéendiou o mundo todo, chegando inclusive à corte de Càtarina de Médi· justifica mais esta transcrição do erudito e arguto [esurta:
eis através do diplomata Jean Nicot - donde o nome da alcalóide do tabaco, "A maior prova do grande valor e lucro que dá o tabaco, é o perderem
a nicotina .. Esta substância, segundo o Patit Larousse, "tem a propriedade muitos, por ambição, o temor das penas, arriscando-se a elas com desprezo
de produzir uma ligeira euforia, atenuante da fome e do cansaço, excitante ,
••.. do perigo de se verem compreendidos nas mesmas misérias a que outros se

120 121
reduziram por serem tão confiados. E para isso parece que não há indústria Ainda hoje, tanto pajés «;Iuanto pais e mães de santo, tanto na urnban-
de que se não use para embarcar o tabaco e tirar das embarcações às escon- da quanto no calundu, candomblé, xangõ, catimbó, macumba etc., "be-
didas. Uns mandaram o tabaco dentro de peças de artilharia, outros dentro bem" quantidades enormes de baforadas de charuto, cigarro ou cachim-
das caixas e fechos do açúcar, muito bem encouradas. Serviram-se outros bo, defumando igualmente seus fiéis com a mesma fumaça "sagrada".
de barris de farinha da terra, dos de breu e dos de melado, cobrindo com a Apesar de rara, ainda atualmente há terreiros que além da erva santa,
superffcle mentirosa o que ia dentro em folhas de flandres. Outros vale- também incluem a erva maldita em seus rituais: um nosso informante,
ram-se de caixas de roupas, fabricadas a dois sobrados, para dar lugar a H. B. H., 27 anos, baiano, cadastrador qa quase totalidade das casas de
esconderijos, de frasqueiras que estão ã vista, pondo entre os frascos de culto afro de Salvador, encontrou um Exu no bairro de Pero Vaz que,
vinhos outros também de tabaco. Quanto foi e vai cada ano nas obras quando incorporado, só sossegava depois de fumar um "forte baseado"
mortas e nos forros das câmaras e das varandas das naus? E não faltou de maconha. Vários autores mais antigos confirmam a presença de diamba
quem lhe desse lugar até dentro de umas imagens ocas de santos ... Nunca nos cultos afro-brasileiros, assunto que voltaremos a tratar e que constitui
acabaríamos se quiséssemos relatar as invenções que sugeriu a cautela mais uma evidência da possível e provável origem africana da marijuana
ambiciosa, porém sempre arriscada e muitas vezes descoberta, com sucesso
em terras americanas.
infeliz. O que claramente prova 'a estimação, o apetite e a esperança do Deixemos o tabaco para os "tabacófilos,,9 e voltemos à etnohist6ria
lucro, que ainda entre riscos, acompanha o tabaco". (p. 253). do "fumo", Em que medida a lingüfstica poderia nos auxiliar nesta explo-
A semelhança da descrição de Antonil para o contrabando do tabaco ração sobre a origem da maconha?1Não deixa de ser uma pista assaz inte-
nos primórdios dos setecentos, com os disfarces, camuflagens e esconderi- <, reSsãnte a enorme quantidade de nomes de origem inquestionavelmente
jos documentados no Museu de Criminologia Nina Rodrigues, de Salvador, africana usados como sinônimo da Cannabis sativa. Eis urna lista certamente
para o contrabando e tráfico da maconha, obriga-nos a mais uma vez incompleta destes africanismos registrados nos dicionários e escritos sobre
enfatizar o quão criativo é o engenho humano para burlar legislações e
o cânhamo no Brasil:1 o
barreiras policiais tolhedoras do livre comércio e consumo - ontem do
tabaco, hoje da maconha. Atualmente, a "erva santa" nacional não mais
carece de tantos disfarces: somente o Tabaco da Virgínia, manufaturado Aliamba,
pela Phillips Morris, Kent, Pall-Mall etc., é que entra clandestinamente em 80n9O,
nosso território .. O Padre Antonil certamente acharia graça destes viciados Cagonha,
brasileiros, que, em vez do Petume bras/fico, preferem a Nicotina tabacum Diamba,
varo virginienses "made in USA" ... Ganja,
Nos primórdios da Colonlz ação, tudo faz crer que o "petume" con- Gongo,
sistia na principal "droga" conhecida em nossa terra." Seu efeito era tão Liamba,
extraordinário quanto o das duas dezenas de diferentes qualidades de Maconha,
" Marigonga,
cauim conhecidas por nossos silvícolas. Quando a Inquisição mandou
seus terríveis visitadores à Bahia, no pia 13 de janeiro de 1592 apareceu Maruamba,
à Mesa do Santo Offcio o mameluco Gonçalo Fernandes, lavrador no Namba,
Recõncavo, dizendo que pelas bandas de Jaguaripe, em 1586, diversos Pango,
índios e negros fugiram de seus senhores para cultuar um ídolo de pedra Riamba.
nas matas adjacentes, cujas cerimônias começavam sempre com os fiéis
,~
I
,~ o próprio Rodrigues Dória, um dos precursores mais brilhantes dos
"defumando-se com fumos de erva santa e bebiam o dito fumo até que
estudos sobre a Cannabis no Brasil, quemconclu i: "A denom inação 'fumo-
caiam bêbados com ele dizendo que com aquele fumo Ihes entrava o espíri-
to da Santidade,"? Outro confessante, este mameluco de Pernambuco, 46 de-angola' é para alguns autores a prova evidente de que o vício do rnaco-
anos, chamado Domingos Fernandes entre os cristãos, e Tornacaúna entre nhismo foi trazido pelos negros importados da África como escravos. Na
os índios, revelou que "bebia com os gentios o seu fumo, que em Portugal verdade, Benthley adianta que esta planta é igualmente conhecida sob o
chamam erva santa, e bebia com eles os seus vinhos e bailava e cantava com nome de liamba na África Ocidental, onde é empregada para fins íntoxi-
eles. Chamavam ao fumo 'sagrado' ,,8. • <,
,,=. cantes sob os nomes de maconia e mskieks:' 11 •

123
122
•..
A própria maneira, outrora a mais comum, de se fumar a maconha _ Referências ulteriores do consumo de maruamba nos cultos afro-bra-
através de um cachimbo feito de coco 'Ou cabaça com água12 obrigando sileiros (seja de preto velho, seja de caboclo), são dados por respeitados
a fumaça a se resfriar antes de -chegar à boca do consumidor, parece ser estudiosos do assunto. Em 1906, o dr. Pires de Almeida, no seu livro A
igualmente prática africana. !:o famoso narguilé, palavra e objeto de libertinagem no Rio de Janeiro, informava: "Homens e mulheres de toda
origem persa, que se difundiu por toda a África, a começar pelos bérberes casta, completamente nus (sic), aflufam aos candomblés e no meio de
danças convulsionadas, e aos vapores de pango, faziam comemorações às
quando de sua islamização. No Maranhão a ma rica usada pelos maconheiros
almas".17 Athur Ramos registra, para a dé~da de 30, o uso da maconha
para esfriar a fumaça conservou o nome africano: cabaça ou grogoió.1 3
O dr. Pedro Rosado diz ter encontrado na década de 40, no Pará, apenas nos candomblés e catimbós do Recife18; Jarbas Pernambuco confirma seu
um pernambucano que se utilizava do narguilé para fumar diamba: "Expli-
uso nos catimbós e caboclos' 9; Jayme de Altavilla e Câmara Cascudo chegam
a postu lar que nalgumas áreas os nordestinos chamam a Cannabis de macum-
cou-nos que adquirira este hábito entre africanos residentes em Pernam-
bucov.!" ba, confundindo-se num só termo bundo, a religião e o próprio 'fumo,20;
Gilberto Freyre (que confessa ter fumado "por experiência cigarros de
Conforme já antecipamos, nas casas e terreiros de culto de origem
~nha, tendo a impressão de um fim de festa, um cansaço estranho, mas
africana, a maconha amiúde esteve presente, constatação que reforça a
não desagradável,21, da m~ma for~ssocia as tradições religiosas e a
hipótese de tratar-se de ·um elemento cultural trazido pelos negróides. Por diamba como os elementos culturais negros que "vêm resistindo mais
mais exótico que possa parecer, a referência mais antiga até agora conhecida profundamente no Brasil à desafricanização.',22 Aliás, Edison Carneiro
sobre o provável uso da maconha em casas de culto no Brasil, leva-nos não
ao Nordeste açucareiro, mas a Itapecerica da Serra, na Capitania de São -, defende que no próprio Ouilombo de Palmares aganja tinha seus adeptos:
"Nos momentos de tristeza, de banzo, de saudade da África, os negros
Paulo (a 34 Km da Paulicéia Desvairada). Foi em dezembro de 1777 que tinham ali à mão a liamba, de cuja inflorescência retiravam a maconha que
se enviou à Inquisição de Lisboa a denúncia de que a parda Brígida Maria pitavam por um canudo de taquari atravessando uma cabaça de água onde
e seu arnásio, Roque, natural de Angola, f~iam danças chamadas "caíun- o fumo se esfriava. Os holandeses diziam que esses cachimbos eram feitos
dus", tangendo viola e pandeiro, "fazendo muitos trejeitos e mudanças, com os cocos das palmeiras. Era o fumo de Angola, a planta que dava
dando a cheirar a todos os circunstantes certo ingrediente que tinham em sonhos maravilhosos ...••. 23 .
uma folha de flandres e que ficavam absortos e fora de si, e ensinava Brígi- Não deixa de ser intrigante o silêncio dos viajantes e naturalistas que
da que as almas dos mortos se introduziam nos vivos. Dizia mais que o visitaram o hinterland brasileiro a respeito do cânhamo. O próprio Martius,
"calundu" era o melhor modo de dar graça!>a Deus, e convidava a todas em sua majestosa Flora Brasiliensis (20.773 páginas, 3.811 gravuras, mais
as pessoas da fazenda para vir ao "calundu" e se alguma se escusava, lhe de 8.000 espécies descritasll, quando trata da Cannabis sativa, diz que seu
dava a cheirar e lhe chegava aos narizes uma erva com a qual ficavam "habitat" é a (ndia Oriental, causando "grata dei iria" em seus consumidores,
absortos e fora de si e esquecidos das obrigações de católicos e entravam apesar de acusá-Ia de ser causadora na Argélia e entre os árabes, de doenças
na mesma dança .. :,ts Hsicas e mentais. Nenhuma referência ao seu consumo no Brasil (Vol, IV,
A presença do calunduzeiro nativo de Angola (terra de muita maco- " 1<:1parte, p.211). Saint-Hilaire. tão minucioso em tudo observar, tam-
nha), o hábito de também se consumir diamba em forma de pó torrado bém ignora a "erva do' diabo". Em nossas leituras de Barleus, Gardner,
(rapé), e o registro de sua presença posterior em casas de cultos afro-brasi- Luckock, Goster, Spix & Martius, nada encontramos sobre o pango. Ou
leiros, todos esses elementos perm item-nos conjecturar que o "ingrediente" não existia maconha nos muitos lugares percorridos por estes viajantes e
cheirado pelos macumbeiros de Itapecerica tem toda a probabilidade de ser naturalistas, ou seu cultivo já era bastante escondido. Da mesma forma,
o fumo de An!!ola. Somente a Cannabis era a erva capaz no Brasil dos ' Gilberto Freyre ao estudar centenas e centenas de anúncios relativos à
fins do século XVIII de levar os circunstantes, mediante inalação, a ficarem fuga, venda e aluguel de escravos em Pernambuco e no Rio de Janeiro
"absortos e fora de si". O simples rapé de tabaco não produziria efeitos (Corte), estranhou a ausência de dados sobre o maconhismo: "Não encontro
tão cabaHsticos. referências diretas à maconha ou diamba, sendo provável, como já insinuei,
Alguns poucos anos mais tarde após esse episódio,o ilustrado profes- que entre os cachimbeiros e bebedores de fumo, houvesse os viciados no
sor de Letras Clássicas, Luis dos. Santos Vilhena, reforça nossa ilação, uso puro, ou misturado, do entorpecente africano. Pelo menos é o que
garantindo que "a experiência tem mostrado serem o terreno e o clima de contam negros velhos: que às vezes se misturava maconha ao tabaco. 091 ne-
S. Paulo propnssimos para a plantação do cânhamo".16 gros touxeram a maconha para o Brasil e aqu i cultivaram como planta meio
"
124 125
mística, para ser fumada nos candomblés e xangôs, pelos babalorixás, e corriqueiro não s6 no Brasil hodierno, como também nos países de I(ngua
pelos seus filhos. Também como p@nta afrodis(aca".)A Seguir, mestre inglesa: aqui chamam-na de 'fumo', 'erva', 'chá', os ingleses e anglofones
Gilberto especula livremente: "Parece, entretanto, que a maconha, tão apelidam-na de grass, isto é, grama, capim. Seria um artiffcio maroto para
terrível na África e no Oriente, nos seus efeitos sobre o viciado, a ponto de camuflar a erva nefanda? Pode ser. Outro detalhe interessante no relato
derivar-se de um dos seus nomes orientais a palavra assassino, perdeu no de Burton: por volta de 1868, em Minas, o preço de um 'punhado' de
Brasil a sua intensa malignidade asiática e mesmo africana, a sua aguda maconha custava até um mil réis. Nesta mesma época, com 1$000 podia-se
capacidade de excitar no viciado o gosto de matar. Talvez isto venha se comprar 5 kg de carne de boi, de boa qualidade. Se 'punhado' fol a tradução
verificando por lhe vir faltando no solo ou na terra brasileira os elementos de handful, isto é, 'mancheia', podemos extrapelar e inferir que o preço
essenciais àquela malignidade intensa. Quase tudo tende no Brasil a suavi- do pango permaneceu aproxidamente o- mesmo dos tempos do Império
zar-se em meios-termos: as plantas venenosas, as doenças malignas, as até nossos dias, pois, atualmente, uma mão não muito cheia de maconha
teorias, as idéias, as paixões, os pecados e as virtudes. Paixões e virtudes custa por volta de Cr$ 20.000,00 - ou seja, o equivalente a 5 kg de carne

"
aqui raramente são intensas e profundas. A maconha parece ter se acomo-
dado a essa tendência brasileira, a que só falta um nome que a caracterize
e um sociólogo que a descreva, para tornar-se verdadeira lei de sociologia
regional".24 .
Apesar da omissão na literatura dos séculos passados de referência ao
) bovina de primeira. Burton acrescenta a Serra Leoa como mais uma região
no continente africano onde se consumia a cagonha, qualificando-a de
"veneno". Na qualidade de emissário do Trono Britânico, vistoriando um
empreendimento aurífero de Sua Majestade, nada mais coerente que se
opusesse a todos os "venenos" que afastassem os "dissolutos" mineradores
canabismo, encontramos um interessante e minucioso relato de um viajante
que não deixa dúvida a respeito do consumo da riamba no Brasil nos ." negros do trabalho sistemático nas profundezas da terra. Ainda hoje em
dia nas Gerais há um ditado que reforça nossa asserção: "Maconha em
meados do século XIX. Trata-se do ~~ard ~rto.!1 Cl~1-18~1, pito, faz negro sem vergonha".27 A descrição que Burton faz da "embria-
ç,ônsul de Londres no Brasil entre 1865-1868, o qual percorreu mais de guez canábica" numa página célebre e lúbrica de As mil e uma noites está
quatro mil quilômetros pelo interior de Minas Gerais, deixando-nos suas longe da bonomia destes neqrosde Minas, giboiando ao sol na doce lombra
impressões na obra Viagens aos planaltos do Brasil. Foi R. Burton o maior decorrente da pinga e do pango'- .
orientalista de seu tempo, falando nada menos que 40 Iínguas diferentes]- Essa dobradinha - aguardente e pito -- por pouco não levava à fogueira
Escreveu diversos livros de viagens, traduziu do árabe As mil e uma noites e da Inquisição a um jovem português, episódio também ocorrido nas Minas
é considerado como um dos pioneiros do estudo e defesa dos direitos do e conservado inédito nos arquivos secretos do Santo Offcio, atualmente
homossexuais.25 ~Quando visitou as instalações da mina de Morro Velho, ao na Torre do Tombo de Lisboa. Salvo erro, esta é a mais antiga referência
descrever os hábitos dos negros locais, assim se expressou: ,,~ difícil na história do Brasil, conhecida até então, a respeito do consumo do
corrigir a tendência extrema dos africanos pelos licores destilados. Os negros "pito" em DOSsa~O episódio ocorreu em 1749, quatro anos antes dê "\
de Minas Gerais se deliciam também com o pango, aqui chamado "artri", osueco Linneus ter batizado a "erva dos sonhos" com o nome como até \
a bem conhecida Bhang (Cannabis sativa) da lndla e da Costa Leste e Oeste hoje é conhecida, Cennebis satlva, L. Aos 21.3.1749 comparece perante
da África. São capazes de pagar prontamente até 1$000 por um punhado o comissário do Santo Ofício da Vila de N. Senhora da Conceição (Mariana)
desse veneno". Noutro trecho acrescenta: "No domingo, após a missa, os o músico Antonio do Cahno, natural da Ilha Terceira (Açores) acusando-se
vadios e dissolutos guardarão o dia santo à moda africana: deitados ao sol, de que indo tocar na festa de São José dos Pardos, em Congonhas do Cam-
fumando e se possível bebendo e fumando cânhamo, como os selvagens da po, "estava chumbado de aguardente e de pitar e se deitou na cama com
Serra Leone".2 6 - - _ ~
vários rapazes músicos, por muitas vezes, e com eles estava com brincos
"- Alguns comentários ao texto do ilustre viajante: apesar da palavra desonestos, fazendo pulsões com as mãos e outras vezes por entre as pernas
"ariri" ser catalogada no dicionário Aurélio como proveniente do tupi des-ditos rapazes, e que foi no pecado de sodornia agente e paciente com
'ati-ri', planta da famnia das palmeiras (Desplothemium.campestrel, cujas o pardo Valentim Pereira, com um moleque cujo nome ignora, com o
folhas são usadas no fabrico de vassouras e trançados - também chamada mulato João Antunes ... e com outros mais". Escorando-se na embriaguez,
de pissand6, imburi, guriri-dq-campo, não resta amenor dúvida que o conclui o músico-gay: "Todas as vezes isto sucedeu estando esquentado
'ariri' fumado pelos negros de Morro Velho era o mesmo pango, que o com aguardente e com pitar, mas arrependido, promete se emendar do
próprio filólogo britânico identificou como Cannabis sativa da rndia. dito vício e não tornará a beber aguardente nem usar do pito".28 Malgrado
Apelidar a maconha com o nome de outras plantas é costume ainda não referir-se nominalmente à Cannabis, tudo nos leva à conclusão de que
'-
126 127
o "vício" além da cachaça lnclura o pitq de pango e não meramente o anqola, Em Portugalcontemporâneo, o consumo maior é do haxixe, contra-
tabaco, posto que o "réu" não poderia acusar o tabaco de levá-Io a ficar bandeado do Marrocos, via Algarve. A maconha, embora preferida (sobretu-
chumbado e cometer "aquelas fatalidades", segundo sua própria expressão. do pelos milhares de jovens que fizeram a, guerra colonial em Angola e
Neste caso, Gilberto Freyre concorda não só com o açoriano sodomita, Moçamblque), por ser mais volumosa que a "droga" marroquina e seu
mas com o depoimento de inúmeros consumidores de maconha que revelam' transporte mais policiado - posto que é trazida via - TAP, geralmente
ficar com o erotismo incrementado após fumarem a erva. Aliás, esta não é de Luanda, tem consumo inferior. De acordo com o dicionário Moraes,
a única vez que o consumo de aliamba - planta dióica, coincidentemente, em Portugal chamam ao cânhamo de 'stceneve ou alcanavy, que segundo
isto é, cada pé apresenta apenas flores de um sexo - é associada à prática o Elucidárío das palavras e termos e frases que em Portugal antigamente
da homossexualidade: segundo reportagem da revista Fatos e Fotos, de 4 se usavam (1789-1799), da autoria de frei Santa Rosa de Vitermo, veio tal
de maio de 1981, um famoso urologista gaúcho afirmava que 90% das palavra do árabe ai cannebe, e dar o latim Cannabis, o francês chanvre, o
mulheres que já tiveram experiência homossexual, enveredaram-se no português cênnemo e o antigo alcaneve, o italiano canape. Como desde o
homoerotismo porque suas relações com os homens eram insatisfatórias, século VIII, com a invasão da Penfnsula Ibérica pelos mouros, Portugal
devendo-se grande parte desta insatisfação ao fato de seus parceiros consu- entra em contato com a cultura do norte da África, e a partir de 1415,
mirem maconha. "A( o homossexualismo surge como a melhor opção ... "
dominadores de Ceuta, certamente que o haxixe e o kif deviam desde esta
Noutras épocas, a mesma maconha foi acusada de ser difundida no~rasil época ter penetrado na Europa, donde o arabismo alcanay para nomear
por agentes da CIA e associada noutro contexto à subversão comunista!. .. 29
esta erva tão amada pelos norte-africanos. No Brasil, além do citado maco-
O episódio acima relatado - do maconheiro-gay residente nas Gerais
" nheiro-gay do século XVIII, a mais famosa personalidade européia a
nos meados dos setecentos, leva-nos a outra constatação importante para a
consumir maconha em nosso passado foi nada menos do que sua alteza
história da maconha no Brasil: apesar de provir da África não apenas as
real, d. Carlota Joaquina de Bourbon, esposa de d. João VI, rainha de
sementes, mas também todo o complexo cultural do canabismo, seu consu-
Portugal e do Brasil, mãe de nosso d. Pedro I e avó do 11. Revela Assis
mo expandiu-se pelas demais etnias da Terra dos Papagaios. Houve quem
Cintra, no seu livro Escândalos deCarlota Joaquina, que sentindo a desa-
interpretasse o maconhismo como uma espécie de "vendeta africana": "A
raça outrora cativa trouxera bem guardado consigo, para ulterior vingança, fortunada rainha que a morte se aproximava, teria dito a seu criado, o
o algoz que deveria mais tarde escravizar a raça opressora: a maconha!,,30 preto Felisbino: ''Traga-me aquele pacotinho de fibras de diamba do Ama-
Curioso o depoimento unânime dos rnaconheiros intelectuais contemporâ- zonas, com que despedi para o inferno tantos inimigos. Feito pelo crioulo
neos: longe de escravizar, a maconha representou em suas vidas a liberdade o chá, aoqual foi adicionado arsênico, Carlota Joaquina ao sentir os primei-
e abertura para ver a essência de uma série de fenômenos ffsicos e sociais, ros efeitos do veneno, sem dor nenhuma, tirou a gu itarra e cantou". 3 3 Se
que estavam como que escondidos no tempo que eram "caretas". "A tàl episódio foi verdadeiro, ocorreu em Lisboa no ano de 1830 - O que
maconha liberta e solta a gente", nos dizia um jovem consumidor baiano, comprova que a maconha brasileira já nesta época era enviada para a
A.a.S. Europa. Aliás, A. Henman cita em seu trabalho outra evidência de que já
,. A expansão da Cannabis atingiu áreas as mais recônditas de nosso no século XVIII se enviara Cannabis sativa do Brasil para o Reino: em carta
território. Em seu brilhante estudo sobre o maconhismo e sua repressão de 1784, o governador do Maranhão e Grão-Pará, José Teles da Silva que
policial entre os (ndios Tenetehara do Maranhão, Anthony Henman cita, "nessa ocasião remetia uma planta, que era semelhante ã malva, de que as
além dos Guajajara, outras etnias ind(genas bastante isoladas que também nações do Norte e principalmente os hamburgueses se serviam para corda-
consomem de longa data a'petem-ahê ("fumo-bravo"): os Mura do Baixo- gens, a qual mandando preparar achou ser muito útil o que melhor em
Madeira, os Saterê-Mawê do Amazonas.31 Em várias partes do fa(s chamam \ Portugal se poderia verificar pelas mostras que mandava ... Dizia também
à marigonga de "fumo-de-caboclo": segundo .Jarbas Pernambuco, citado que, no caso de ser útil ã fabrica de cordoaria, se fizesse interesse e fosse
anteriormente, alguns babalorixás pernambucanos afirmavam categorica- de bom uso, poderia carregar um navio da sobredita planta".34 Poucos anos
mente que "cachimbo é ciência de (ndio, Preto não queima fumo de depo is, qu ando o pernarnbucano Anton io de MoraesSi Iva,o célebre "Monij$"
caboclo, não senhor". 32 ' escrevia seu dicionário (1789), no verbete cânhamo refere-se exclusivamente
Além dos índios,' também os brancos assimilaram o costume de pitar a seu uso Como mat~ria-prima têxtil: "Cânhamo ou canhanamo, planta
maconha. Se gostaram tanto do tabaco amerrndio, não há por que evitar têxtil da famrlla das cannabineas. Os fios extrafdos desta planta, espécie
igualmente o tascrnio das viagens (lombra) e o poder curativo do fumo-de- 'ele linho grosso, de que fazem filásticas para cordoalha e lençarias grossas".

128 129
Nossa história registra outro episódio de canabismo envolvendo um cologia da USP, que os senhores de engenho toleravam quando não incenti-
~
branco, neste caso um francês. O episódio foi registrado por Assis Iglésias vavam, o plantio da ganja no Nordeste, em pequenas clareiras escondidas
no seu artigo "Sobre o vício da diãmba". s s .Este caso teria acontecido em no meio dos canaviais, enquanto os fazendeiros do Sudeste não toleravam
Codó, cidade situada à margem esquerda do rio Itapicuru, entre Caxias e o consumo da maconha por seus cativos3? Não encontrei nenhum docu-
Coroatá, província do Maranhão, na fazenda do dr. Torquato Mendes mento relativo ao plantioou consumo do fumo-de-angola nas fazendas,
Viana, no ano de 1870. Diz o filho do citado fazendeiro que um francês brasileiras de antigamente. O certo é que desde 4 de outubro de 1830, a
jovem fora contratado como gerente de fazenda, e após a guerra de 1870, Câmara Municipal do Rio de Janeiro, no parágrafo 79da postura que regu-
desempenhando esse mister com muito zelo, competência e absoluta lamenta a venda de gêneros e remédios pelos boticários, estabelecia que:
honestidade. Era exemplar no seu trato manso com a escrava ria, meticuloso ,,~ proibida a venda e o uso do pito de pango, bem como a conservação
na contabilidade, equilibrado em tudo. "Tendo entretanto conhecido a dele-em casas públicas. Os contraventores serão multados, a saber: o vende-
diamba, de que os pretos africanos faziam usoàs ocultas, começou a fumá-Ia, 'dor em 20$000 e os escravos e mais pessoas, que dele usarem, em três I
de princípio em cabaça e depois em cigarros. A mudança de sua conduta ,dias de cadeia".38 Observe-se a coincidência: a primeira lei mundial contrv
foi logo sensrvel. As cartas que dirigia da fazenda ao dr. Mendes Vlana e a maconha é promulgada no mesmo ano da mGrté'"'da maiS famosa maro-
que eram sempre muito minuciosas, a respeito do movimento da mesma, 'nheira de nossa histórla: nossa ex-rainha d. Carlota JoaqüTiíaaeBourl:5õn:- ..
começaram a causar estranheza, pela desconexidade que Ihes notava. Com ( Dez anos após, 1840, é fundado em Paris Le Club des HaschiSchins, reunin-
a leitura de tais disparates, resolveu então o dr. Mendes Viana visitar a 1 do literatos da grandeza de Teophile Gauthier e Charles Baudelalre.consu-
fazenda. Imagine-se que, ao entrar no vasto pátio que lhe ficava em frente, "
I...!!!.idorese propagand~stas da Cannab}!:.3~-Cinco anos-dePois, em 1845, o
dá com o francês inteiramente nu, perfilado, mandando avançar colunas dr. Jean Jaoques Moreau de Tours publicava o famigerado Du haschich
imaginárias, em tom de comando ... Agràvando-se-Ihe o dei (rio, decidiu et le I'aliénation mentale, o primeiro estudo experimental sobre a-intoxica-
o fazendeiro faze-Io partir para a capital, na esperança de que ele melhoraria ção canáblca, provocando o comentário entusiasmado do cientista Lasegue:
em S. Luís ... Tempos depois recebeu o dr. Mendes Viana uma carta sua "Um novo caminho se havia aberto aos passos da psiquiatria: o caminho
datada já da França. Estava bom, inteiramente bom, e aludia com acentuada da experimentação". Moreau defendia que '''quem sentiu o efeito do haxixe,
mágoa, às loucuras que por aqu i praticara. Acrescentava que os duros traba- passou pela loucuraf,,4o Ciência e repressão a partir dar caminharão sempre
lhos a que a bordo o tinham submetido, lhe restitu rram a razão", Caso de mãos dadas: novasdisclpllnas serão criadas para dar subsídios científicos
fantástico, comentários edificantes, terá mesmo existido o tal francês? à guerra contra a maconha - a medicina legal, a medicina forense, a far-
Caso o anônimo francês em sua terra natal desejasse continuar consu- maco!9..giapolicial etc. '
mindo maconha, bastaria dirijir-se à Pharmacie Or. Grimault &Cie., Peris.. Os três diasde prisão para os infratores em 1830 foram elevados em
onde encontraria, já embalados em fino papel de seda, numa rica caixinha 1976 para 6 anos de cadeia (Lei Antit6xico n9 6.368), e rebaixados
no mais puro estilo ert-nouveeu, as miraculosas Cigarettes Indiennes atualmente para dois anos de detenção. Estigmatizada, alvo do mais severo
(Cannabis indica), vendidas na França e anunciadas em português, no ., preconceito e dlscrlrnlnação, a maconha ganha nos nossos dias nova atenção:
Almanach Parisiense (1905) para que os consumidores brasileiros as é tema de músicas (ainda proibidas pela censura), tema de teses, filmes,
encomendassem. Suas propriedades vinham detalhadas no anúncio: "A inspiração de artistas, assunto de livros e artigos. Diversos candidatos e
dificuldade em respirar, a roncadura, os flatos, a respiração sibilante polrticos brasileiros contemporâneos lnclufrarn a defesa da descriminaliza-
acabam quase logo; produz-se uma expectoração abundantrssima quase ção da Cannabis rios seus programas; [urzes se recusam a condenar consu-
sempre em pouco tempo e torna-se mais fácil a respiração, mais branda ~ midores flagrados com baseados. Artistas famosos estão no rol dos que
tosse e um dormir reparatório. Afasta todos os sintomas assustadores que defendem o seu uso, tanto aqui, como no exterior.
se tenham manifestado". E em letras negritas enfatizava o Almanach . Estigmatizada e vilipendiada por uns, louvada e defendida por outros,
Parisiense: "Contra Asthama, Catarrhos e Insomnia".36 a maconha atravessa nossa hist6ria malgrado as toneladas e toneladas,
Não deixa de ser curiosa a publicação desse anúncio em 1905, ofere- milhões e milhões de pés que foram arrancados e queimados pelos órgãos
cendo também ao público brasileiro os Cigarros tndios made in France. de repressão. Apesar de intensa discriminação ("maconheiro" para muitos
Pode .ser que a matéria-prima viesse do Maranhão ... é sinônimo de ladrão, assaltante perigoso, estuprador) e malgrado s.perse-
Tal anúncio suscita outra questão: o problema da repressão ao uso guição policial, tudo faz crer que melhores dias virão para os ... apreciadores
da Cannabis sativa no Brasil. Diz o dr. Weintraub, professor de psicofarma- da maconha - aliás, como já ocorre nalguns países e em mu itos Estados
-,
.130 131
da América do Norte. A campanha pela descriminalização da Cannabis
sativa ganha dia-a-..2ia mais adeptos e terrel}Q.Lloesde 1982, qua~ nus, sem carregar pertence algum, sem conhecimento prévio de que estavam
divulga-çãOêriíSão Paulõao "Manifesto pela descriminalização da maco- sendo transportados para o Novo Mundo. Assim sendo, seria praticamente
nha", que a história do "fumo" toma novos rumos em nosso País. Sua impossível que aquelas pobres criaturas nuas e mortas de medo e de fome
última conquista é alvissareira e prenúncia de vitória próxinfa. Eis na cuidassem em trazer consigo sementes do fumo-de-angola a fim de plantarem
. (nteqra o texto da Moção pela descriminalização da Cannabis sativa aprova- no além-mar. A menos que algum branco maconheiro (luso ou batavo), ou
da por unanimidade na última reunião da Associação Brasileira de Antro- algum negro livre a tivesse trazido em suas bagagens logo no primeiro sécu-
pologia, Brasflia, 18·4-1984, moção que temos a honra de ser o autor: lo, tudo nos leva a conjecturar que somente mais tarde, quando os libertos.
e mulatos do Brasil retornaram ã África, é que trouxeram não apenas o
"lQ) Considerando que o uso da Cannabis sativa é prática tradicional dendê, o sabão e a palha da costa, os famosos panos da Mina, mas também
em diversos segmentos da sociedade brasileira, tanto entre populações a semente da maconha. Apesar do encanto plástico e força pol rtlca da cena
indígenas, quanto a zona rural e urbana; imaginável dos negros quinhentistas trazendo escondida na bainha das
29t Considerando que as pesquisas científicas tanto nacionais, quanto tangas, ou dentro de bonecas, patuás ou fetiches, a semente da erva bend ita
internacionais, relativas ao uso da Cannabis sativa não comprovam que seu que os fazia esquecer as amarguras da escravidão e a saudade da terra dos
uso implique dependência nem provoque obrigatoriamente danos sociais; . ancestrais, não obstante, nada garante que de fato tal ocorreu em 1549.
3~ Considerando que a experiência de outros países que adotaram 2. LUGON, C. A República Comunista-Cristã dos Guaranis, 1610-1768,
polrtica liberal quanto ao uso da Cannabis sativa revelam menos prejuízos Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1976, p.123. Diz este autor que foram os
-, jesuítas os introdutores do cânhamo entre os guaranis dos Sete Povos.
), sociais e pessoais do que nos países onde seu uso constitui crime. I
3. L~RY Jean de. Jornal de bord en Ia terre de Brésil, 1557. Ed. Paris,
A Associação Brasileira de Antropologia decide: Paris, 1957, pp. 290·291. "vous ne verriez guere les Brésiliens san qu'ils
aient chacun un cornet de cette herbe pendu au cou, et à chaque minute,

I 1Q) Promover a criação de um' gru~o de trabalho éspecífico que en vous parlant, cela her sert de contenance et its en hument Ia fumée.
reúna pesquisadores interessados em discutir e divulgar trabalhos sobre o L 'Odeus n'est deplaisante."
uso da Cannabis sativa em diferentes segmentos da sociedade brasileira; 4. SOUSA, Gabriel Gonçalves de. Tratado descritivo do Brasil, 1587. Brasi-
29) Encaminhar ofício aos órgãos encarregados da repressãoao uso liana, Cia. Ed. Nacional, S. Paulo, 197'1, página 206.'
da Cannabis sativa no Brasil, incluindo cópia desta moção, pleiteando a 5. ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil, 1711 Cia. Ed.
imediata descrlmlnetlzacãode seu uso". Nacional, S. Paulo, S/D pp, 237247.
\ 6. História geral da medicina brasileira, Hucitec, S. Paulo, 1977 p.l36 diz
que, além da diamba, a jurema (Pithecolobium tortum) também era usada
~- NOTAS E BIBLIOGRAFIA
\

\ Setembro, 1984
tradicionalmente no Brasil antigo como alucinógeno. Vários trabalhos mais
recentes sugerem que este uso sobrevive de forma sem i-encoberta entre
diversos grupos il1d(genas do Nordeste, notavelmente os Pankaruru de
1. A maconha, ColetOnea de tlabalhos brasileiros. Diversos autores, Minis-· Pernambuco.
tério da Educação e Saúde, Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpe- 7. Primeira visitação do santo ottcio às partes do Brasil, Confissões da
centes, Rio de Janeiro, 1958 (Coordenação de R. Cordeiro de Farias). A Bahia, 1591-1592, F. Briguiet Eds., R. Janeiro, 1935, p.87.
data 29 de março de 1549 é sugerida por A. P. Leonardo Pereira, como 8. Idem, ibidem, pp. 169-171. Cf. CALASAN, José. A santidade de Jagua-
sendo o marco do início da entrada da maconha no Brasil, por ser desta ripe, Artes Gráficas, Bahia, 1952.
ocasião o alvará de d. João 111 autorizando a cada engenho de açúcar com- '9. Outra pista de pesquisa, agora para os lingü(stas-historiadores: os sobre-
prar até 1.200 escravos de origem africana (1958, p. 50). Obviamente nomes judeus (?) Tabacov, Tabacow e Tabacof (este último, o nome de
que esta data é apenas uma ilação. No cáso de ser comprovado que a Can- famflia de meu atual reitor na UFBA), identificariam famflias voltadas para
nabis foi de fato importada via África, certamente só o foi após uma o comércio e/ou beneficiamento do tabaco? Por que sua concentração na
centena de anos do tráfico negreiro, pois nos primeiros decênios do século Europa Oriental?
XVI, os escravos eram presos e transportados geralmente completamente 10. Alguns destes termos podem tanto ser de origem africana como de

"
132
133
outras rafzes lingüfsticas, como é o termo bangue, que o dicionário Aurélio no do Nefando, fI. 89, Confissão de Antonio do Carmo, Vila Rica, 21-3-1749
assinala como provindo do sãnscrito (banga), sinônimo de cânhamo, e que ao Comissário do Santo Ofício Felix Simões de Páscoa.
certamente teve sua terminação africanizada, sendo aqui conhecido tam- 29. ROD R IGUES, Carlos, "Altos sonhos, xará" ,Jornal Lampião da Esquina,
janeiro 1980, p.3. '
bém como bango.
11. DÓRIA, Rodrigues. Os fumadores de maconha, efeitos e malesdo vício. 30. A maconha, op. clt., p.12.
Memória apresentada no 29 Congresso Cientrfico Pan-Americano, Washing- 31. HENMAN, Anthony Richard. "A Guerra às drogas é uma guerra etno-
cida: Um estudo do uso da maconha entre os (ndios Tenetehara do Mara-
ton, Dez. 1915.
12. Na obra A maconha (cit.) o leitor pode encontrar inúmeros desenhos nhão". Comunicação apresentada no I Congresso da Internacional Cannabis
de cachimbos d'água dos fumadores de maconha; na 2~ Edição aparecem Alliance for Reform, Amsterdã, fevereiro 1980. Publicado in Religião e
Sociedade. .
diversas fotos de fumadores de diamba em pleno uso do narguilé; Alceu
Maynard de Araújo, (Medicina rústica, Brasiliana, vol, 300, Cia. Ed. Nacio- 32. PERNAMBUCO, J. op.cit. p.189.
nal, S. Paulo, 1959, pp.257-262) diz ter produzido para programa de 33. Apud Heitor Péres, A maconha, op.cit., p.82.
televisão um documentário sonoro em 16 mm de 100 pés, sobre a maconha, 34. Apud HENMAN, A. R. op.cit. in õtcionârio Histórico-Geográfico da
apresentado pela TV em 10-8-1953. Existirá ainda tão precioso filme? província do Mar8nhão, Ed. Fon-Fon & Seleta, Rio de Janeiro, 1970.
13. A maconha, 1958, p.62.
35. A maconha, op.cit., p.17.
14. Idem, ibidem, p.109. 36. Apud Vida Natural, alio I, n92 Global-Ground, S. Paulo, s/d, p.16.
15. Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Lisboa), Inquisição de Lisboa, 37. Weintraub, op.cit. pp.25-26.
" 38. Esta lei encontra-se divulgada em diversos autores. Utilizei como fonte
Caderno do Promotor n9130, S. Paulo, 18-12-1777, denúncia ao Comissá-
rio Lourenço J. Queiros. • o Jornal O Estado de S Paulo de 28/6/1970.
16. VILHENA, Luis dos Santos. A Bahia no século, XVIII. ED. ltapuã, 39. Weintraub, op.cit., transcreve trechos literários destes autores referen-
Salvador: 1969, vol, 111, p.773. tes às suas experiências no Clube dos Fumadores de Haxixe, cf. pp. 22-24.
17. PIRES DE ALMEIDA, J. R. Homossexualismo. A libertinagem no Rio Na coletânea várias vezes citada, A maconha, há transcrição de inúmeras
de Jenelro, Rio de Janeiro: Laemmert e C. Eds, 1906, p.69. poesias e loas tendo a maconha como tema folclórico.
18. RAMOS, Arthur. "As práticas de feitiçaria entre os negros e mestiços 40. Nesse mesmo ano (1845), Alexandre Dumas, no seu O Conde de Mon-
brasileiros", Arquivo de medicina legal e kientiticeçõo, ano V, n9 11, te Cristo, descrevia também os efeitos da maconha.
março 1935, p.35. BIBLIOGRAFIA,
19. PERNAMBUCO, Jarbas. "A Maconha em Pernambuco". Novos estu-
dos afro-brasileiros. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1937, p.191. ARNAO, 'Giancarlo. A Erva Proibida, Ed. Brasiliense, S. Paulo, 1980.
20. CASCUDO, Câmara. "Notas sobre o Catimb6". Novos estudos afro- BONTEMPO, Márcio. Estudos atuais sobre os efeitos da Cannabissativa
(maconha), Ground/Global, Rio de Janeiro, 1980.
brasileiros, p.75. " . WEINTRAUB, Mauro. Sonhos e sombras:a realidade da maconha: Editora
21. PERNAMBUCO, Jarbas. op. cito p.189. - -
'22. FREYRE, Gilberto, Sobredos e mocambos. Lisboa: Ed. Livros do Haper e Row do Brasil, S. Paulo, 1983.
Brasil, s/d, 29tomo, p.651.
23. CARNEI RO, Edison. O Quilombo de Palmares. Rio de Janeiro: Ed.
Civilização Brasileira, 1966,..Q.18.
~FREYRE, Gilberto. O escravõ nos a~cios de jornais brasileiros do
:si,culoXIX S. Paulo: Cia Ed. Nacional, Brasiliana Vol. 370, 1979, pp.39-40.
25. LAURlTSEN, J. 8rTrrorstad, D. ]:tJe-Eãrfy Homosexua~
ment (1864-1935). N. York: Times Change Press, 1974, pp.76-80.
26: BURTON, Richard. Viagensaos planaltos do Brasil (1868). S. Paulo:
Cia. Ed. Nacional, Brasiliana n9197, 1941, pp. 379/438.
27. A Maconha, op.cit. p204.
28. Arquivo Nacional da Torre do Tombo,lnquisição de Lisboa, 209 Cader-

134 135
3. ALGUNS ASPECTOS SÓCIO-JURfOICOS OAMACONHA

A/berto Zacharias Toron 1

- Texto inédito

1. Advogado criminal, membro do Departamento de Pesquisas e Estudos da


OAB - SP.
137
Juiz de Direito: - Devo adverti-I o que se o senhor não disser a verdade,
estará sujeito às penas de 2 a 6 anos pelo crime de falso
testemunho e, ainda poderá ser expulso do país.
O senhor vai dizer a verdade?

Testemunha:' - Si, senõr.

Juiz: - O senhor fuma maconha?

Testemunha: - Jo, no senõr!

Juiz: - E o acusado, fuma?


À.,

Testemunha: Por 10 menos jo nunca fume con ele .


Esto es... ni con ele ni con ninguém (risadas)

A eprgrafe deste ensaio não é um diálogo de ficção. Ao contrário, é o


extrato de uma inquirição feita pelo juiz à testemunha que se sucedeu
numa audiência criminal. '
Afastando os retratos folclóricos, que geralmente circundam o uso
c!.edrogas, i!!J.çlaJmente convém, para um estudo da~ conseqüências sócio-
ju~!dicas, explicitar alguns aspectos da lei de tóxicos vigente no Pats,

~\
De acordo com o artigo 16 da Lei 6.368 de 21 de outubro de 1976
"adquirir, guardar ou trazer consigo, para uso próprio substância entorpe-
cente ou que determine dependência ffsica ou psíquica, sem eutorização
ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar" importará,
como sanção, na combinação de penas que variam (segundo o critério do
juiz) de 6 (seis) meses a 2(dois) anos de detenção e pagamento de 20
(vinte) a 50 (cinqüenta) dias-multa.2
Dessa forma, o crime é adquirir, guardar ou trazer consigo a substân-
cia entorpecente. Se, porém, o sujeito estiver "usando", por exemplo, a
maconha, a' jurisprudência (decisões proferidas em 2ª instância, pelos
)
tribunais) fá frisou que "não se apena a conduta de usar" - ou "0 ato
pretérito da utilização do tóxico". 3

2. O dia-multa sa-á fixado pelo juiz entre o mlnfmo de Cz$ 25. e o máximo de
Cz$ 250. e de acordo com a Lei (estes valores sâ'o corrig(veis monetariamente, vide
art. 38, Lei 6.368/761.
-, 3. Tóxicos, de Vicente Grecco Filho, páginas 111/120, ~ ed., Sanfiva, 1982.

139
Parece contraditório, pois a lei não punindo o "uso" em si, por que prevê as mesmas penas para quem, por exemplo, tem a droga em depósito
pretende punir o porte? ou fornece-a, ainda que gratuitamente, planta ou semeia, induz ou instiga e,
Explica essa contradição o jurista Vicente Grecco Filho pelo fato de por fim, incentiva outrem a usar drogas.
que "a lei não pune o vrclo em si mesmo, ... , mas pune o perigo social - Nesse passo, cumpre ressaltar a ação do Poder Judlclério que, evitan-
que representa a detenção ilegal do tóxico": 4 do criar situações de extrema injustiça, vem fazendo interpretações da lei
Todavia, embora fumar maconha não constitua crime - porquanto de modo a efetivar uma aplicação mais serena da mesma em face dos casos
ação não prevista em lei (a trpíca), há julgadores que entendem que quem concretos.
fuma, necessariamente porta e, conseqüentemente, incorre nas penalidades Exemplificativamente, é a situação daquele indivíduo que planta, no
da lei.
interior de sua residência, um ou dois pés de maconha, para uso próprio e,
Em sendo o acusado (usuário) primário e de bons antecedentes o juiz apesar da expressa tipificação legal do artigo 12, tem sua conduta desclassi-
haverá de fixar a pena no seu mrnlmo legal, 6 meses de detenção, e certa- ficada para o artigo 16, isto é, recebe as mesmas sanções que um usuário.
mente lhe concederá o sursls, isto é, a suspensão condicional da pena. Se o Idem para aquele que, por exemplo, numa reunião entre amigos,
acusado, após exame pericial-psiquiátrico, for considerado dependente, também usuários, oferece maconha a estes que prontamente aceitam e a
ficará isento de pena e deverá ser submetido a tratamento médico em local usam.
apropriado. Quando, porém, for verificado a desnecessidade da internação, Nos dois exemplos, cornrnais freqüência no primeiro, o Tribunal de
o tratamento poderá ocorrer em regime extra-hospitalar. Não é demais Justiça do Estado de São Paulo tem evitado dispensar tratamento idêntico
observar que o Estado não possui estabelecimentos adequados para o trata-
mento de dependentes, o que torna a recuperação mera ficção. -, a indivíduos que praticam ações bastante diferenciadas daquela representa-
da pelo vendedor de drogas.
A lei antitóxicos visa, assim, tutelar a saúde pública dado que,
a
segundo a doutrina tradicional sobre matéria, "a deteriorização causada AS LEIS SOBRE DROGAS NO TEMPO
pela droga não se limita àquele que a ingere, mas põe em risco a própria
integridade social". 5
o tratamento legal dispensado às drogas variou no tempo. O já men-
Nessa linha de raciodnio, é evidente que o traficante de drogas, cionado prof. Vicente Grecco Filho encontra nas Ordenações Filipinas
exercendo uma atividade mais lesiva à "integridade social", é apenedo de uma proibição remota ao tráfico e uso de drogas. Dispunha o artigo 89
o
uma forma bem mais severa que usuário. Enquanto este está sujeito a penas daquele diploma: "Que ninguém tenha em casa rosalgar, nem a venda, nem
que variam de 6 meses a 2 anos de detensão, aquele está sujeito apenas outro material venenoso". Rosalgar, cujo significado etimológico é pó de
que oscilam entre o mínimo de 3 anos até o máximo de 15 anos de reclusão, caverna, designa, como bem disserta o promotor de Justiça Sérgio de Oli-
além de uma pena pecuniária que parte de um rnrnimo de 50 diesrnutta veira. Médice (Tóxicos, p. 27, ed. Juvoli, 1982), sulfurato de arsênio, ou
e pode alcançar, no seu limite, o valor de 360 dias-multa. arsên'ico vermelho. .
Na prática judiciâria, quando o condenado é primário e sem ante- Por seu turno, o Código Penal da República, de 1890, proclamavaa
cedentes criminais, os juízes têm fixado a pena corporal para o traficante proibição do comércio de "coisas venenosas". Note-se que tanto neste
no seu mínimo legal, isto é, três anos de reclusão. Tal implica que o bene- diploma quanto nas Ordenações não havia menção expressa à maconha.
frcio do sursls, que só pode ser concebido par~ o condenado a pena de a~ PO'steriormente, já sob a inspiração da Convenção de Haia, 1912:""
2 anos de reclusão, não alcança este infrator. Até mesmo a concessão da temos o Decreto nQ 4.294, de 1921, que punia tão-somente o comércio
prisão albergue domiciliar vem sendo reiteradamente negada a traficantes de substância de "qualidaçle entorpecente". O uso não era proibido.
I primários e de bons antecedentes, que tenham sido condenados a pena -----rm-1932, com o advento do Decreto nQ 20.93r,estabelece-se a
. mínima, sob o argumento de que são indivíduos extremamente perigosos. pehalização também para o usuário de substância "tóxico-entorpecente",
l Sucede que todo esse rigor no trato com o traficante não se limita porém, diferenciando-o do traficante.
àqueles que exercem o comércio da droqa, A lei brasileira, no art[go 12, Nesses "vaivéns" merece destaque ainda o Dec. - Lei 891/38, que fala
em toxicomania como doença compulsória e trata de internação civil e
interdição dos toxicômanos. Após, com a vigência do Código Penal de 1940,
• 4. Ob. cit., página 111, Vide ainda Revista de Jurisprud/}ncia do Tribunal de
Justiça, n9574, p.345 e 78, p.412. temos que, no artigo 281, apenava-se apenas a conduta de traficar, ma~ não
5, Tóxico, ob. cit., p.79. o uso.
~
140 141
Em 1968, por meio do Dec .. Lei 385, já sob o regime militar, é que prazer - e este direito do indivíduo é inalienável - sem causar dano a sua
houve uma ruptura na tradição jurídica brasileira quando o legislador revo- saúde e, menos ainda, à coletividade.
gando o art. 281 do Código Penal equiparou traficante e usuário, atribuin- Admitindo que existe um largo número de usuários que faz uso da
do-lhes penas idênticas. No entanto, o eminente prof. Dirceu de Meflo, maconha socialmente, isto é, numa praia, festa ou outro momento de lazer,
hoje desembargador, disserta que os tribunais não aplicaram tranqüilamente e que não podem ser tachados de viciados ou dependentes, não há sentido
o dispositivo. lógico em manter-se a proibição do porte para uso próprio.
Por derradeiro, antecedendo a lei vigente tivemos em 29 de outubro ~ que nesse caso o uso da droga se assemelha ao do sujeito que
de 1971, a edição da malsinada Lei 5.726 que, além de continuar manten- lança mão de um uísque, cerveja ou caipirinha. Não sendo reiterado e
do a equiparação entre traficante e usuário, trouxe profundas alterações nem exagerado, o uso da maconha não é nocivo na maior parte dos casos.
na conceituação dos delitos, no rito processual e no sistema de tratamento Ora, deixando de ver esse tipo de usuário como sujeito anômalo ou
e recuperação dos dependentes. de comportamento desviante, justamente porque é pessoa integrada à
A grande crítica que se estabeleceu em torno da lei de 1971 foi, sociedade, a pena que segundo o ex-secretário da Justiça e depois Seguran-
entre outras, ao fato de permitir o oferecimento de denúncia sem a exis- ça Pública "sempre teve o caráter predominante de castigo; como uma
tência de um laudo toxicológico, que positiva a materialidade do delito. finalidade de reconciliação com a ordem e a paz,,6 perde o seu sentido.
isto é, a existência, ou não, de substância entorpecente capaz de causar Evidentemente "que existem usuários de maconha dependentes da
dependência ffsica ou psíquica. droga, embora exista discussão sobre o caráter da dependência: física ou
Nesse contexto, o advento da Lei 6.368, de 1976, representou um psicológica. Isto, todavia, não é problema de polícia e sim de médico. Não
grande avanço. Seja, em primeiro lugar, porque voltou a distinguir as figuras
~ problema de ordem pública e, sim, de saúde pública.
do traficante e do usuário, seja porque reclama a existência de um laudo, Não é aceitável, por nenhum tipo de argumento, que uma pessoa
ainda que provisório, para o oferecimento de peça que inicia a ação.penal.
tida como 'dependente deva passar por todos os ultrajes e maus tratos a
Em segundo lugar, a atual lei passou pelo crivo do Congresso Nacio- que são submetidos por parte da polícia os transgressores das leis penais.
nal, que, embora à época cerceado, pôde aperfeiçoar a norma penal. Por outro lado, a questão dos tóxicos tratada a nível de polícia vem

I
A PENALIZAÇÃO DO USUÁRIO COMO FATOR DE
MARGINALlZAÇÃO SO~IAL
-
Estranha a forma
---- -- - -
que a sociedade encontra para
---
tratar aquilo que
ensejando um número crescente de notícias sobre toda sorte de abusos, e
mais que isto, de corrupção.
• --Nâ
- - -
periferia de Sãõ" Pa-;;lo o sujeito que for surpreendido com
droga é severamente castigado desde o trajeto para a delegacia até o final
do indiciamento. No jardins a coisa é diferente, o espaço que se cria para
D
define como doença: impõe a pena privativa da liberdade como remédio. uma ne9ociação do tipo "abafar a situação" diferencia o tratamento
L- Gostaria. 'inicialmente, de sustentar a desnecessidade da estigmatlzã- d~E. efetivamente, os acertos acontecem. ---- -
ção da conduta do porte de droga, para uso próprio, como criminosa, <, Quando ocorre a formalização do flagrante, e o subseqüente ofere-
partindo de dados empíricos advindos 'da experiência na advocacia crimi- cimento da denúncia, peça processual que é oferecida pelo promotor de
nal.
Justiça, que inaugura o processo criminal, tem-se o início de uma verda-
Com efeito, a maioria dos casos com os quais me deparei no exer- deira via crucis onde ocorre a batalha pela absolvição.
cício da profissão envolviam menores de 21 anos e estudantes. Surpreen- Em boa parte dos casos a absolvição acontece por insuficiência de
didos, numa festa ou praia, num jardim ou apartamento, foram, com provas. Isto depois de a defesa oferecer uma versão, às vezes até mirabolan-
var.iações adiante explicadas, submetidos a todos os "comemorativos" te, que não permita a conclusão lógica de que 9 acusado seja infrator da
impostos pelos policiais - do mesmo modo que são os estupradores, lei.
homicidas, latrocidas etc. . Mesmo que absolvido, as marcas do processo penal não se apagam - e
Aí começa o trauma. Pega-se alguém que estude, trabalha, namora aqui não me refiro somente às psicológicas: penso mais ainda na dificul-
e vive, enfim, integrado ã sociedade, para num momento transformá-Io
num criminoso. Veja-se que o sujeito que estava numa festa ou praia,
gozando seu lazer, quando usa a maconha não o faz com consciência da 6. . PIMENTEL, Manoal Pedro. O crime e a pena na atualidade, página 132, eQ.
antijuridiéidade de seu comportamento, longe disso, busca alcançar um rev. Tribunais, 1983.

142 143
dade de se encontrar emprego público, de se integrar à sociedade local, Novamente uma questão social foi tratada como caso de polrcia, O
conforme o tipo de cidade. etc. .
debate suscitado pela candidata, que tinha contornos cientfficos, foi
página de polrcia quando o encarnlnhamento correto seria a discussão em
A DESCRIMINALIZACÃO DA MACONHA outro nível. '
Parece que se olvidou que a Constituição Federal assegura o direito
1. O significado da palavra descriminalização é o de excluir a crimi- de os cidadãos, dentro dos mecanismos [urfd icos adequados, se organizarem
nalidade ou antijuridicidade de um determinado ato. No caso, o que se para pleitear o que consideram justo e, mais que isto, de externar o pen-
pretende é não mais tornar alvo de sanção penal o ato de portar para uso ...•
samento sem censura .
próprio a maconha. Quando a Espanha, a França e Itália, a Holanda e alguns Estados
'Convém, desde logo, explicitar que quando se fala ou propugna pela americanos adotam uma pol (tica pragmática em relação às drogas leves,
descriminalização de uma determinada droga não se está pretendendo, de permitindo o uso, mas investindo na prevenção, o Brasil permanece com
forma nenhuma, o incentivo ao uso desta substância. uma polítlca criminal de punição sem atentar para diferenciações de drogas
O ponto de partida da proposta de descriminalização é a observação "' e espécies-deusuários.
de que o consumo da maconha não deve ser objeto de tratamento policial, No passado, quando vigia o artigo 281 do Código Penal, entendia a
quer para o usuário com problemas de saúde quer para o usuário sadio. Já jurisprudência, como assinala o prof. Paulo Sérgio Leite Fernandes no
seu Tóxicos 7, que o "uso de pequena quantidade de maconha não consti-
incentivar tem por propósito alastrar o uso, fazer propaganda do uso.
, tui crime".
Advirta-se que não se quer com a descriminalização do porte da maconha " Assim, entendemos que a descriminalização do uso da maconha viria,
e, tampouco a proposta favorece, a disseminação do uso.
por um lado, ser fator de integração do usuário na sociedade, que passaria
Em verdade, quando se reclamà a descriminalização do aborto, por
a serencarado de outra maneira e, por outro, acabaria definitivamente co~
exemplo, o que se quer é permitir que milhares de mulheres tenham acesso
o estigma diabólico da droga que deve, definitivamente, ser encarada cien-
aos beneffclos da medicina, tanto em termos de assepsia quanto em termos
!.!!icamente. . - - - -
de tecnologia. Em nenhum momento se fala em incentivo ao aborto - até
E já que estamos em época de reformulação do Código Penal, não
porque a mulher sabe dos maleffcios que o ato lhe causa. Ademais, investe-se há momento mais oportuno que este para suscitar o debate sobre as drogas,
concomitantemente na propaganda de meios anticoncepcionais, o que até porque, de acordo com a nova parte geral do Código Penal, as penas
comprova a inconveniência de abortar. '
privativas de liberdade que não excedam a 6 meses de detenção podem ser
No caso da maconha também não é desejável a proliferação indiscri-
convertidas em penas pecuniárias.
minada do uso. Aliás, como já frisou o ilustre professor E. Carlini, da Escola
Paulista de Medicina, o uso crônico e reiterado da maconha pode causar
redução do lfquldo espermático e, para quem sofre de problemas cardíacos »;
pode levar a complicações. " - _ Dezembro, 1984
O que s~e, analogicament,e, é que paralelamente a uma pro-
.posta de esclarecimentos permanente à população sobre as conseqüências
do uso da maconha não incida a lei penal sobre os usuários que, ou fazem
um uso não problemático da maconha ou, no caso contrário, merecem
apenas tratamento médico.
Recentemente, nas eleições para a Çâmara Municipal, a então candi-
data Caterina Koltai, por levar adiante a campanha pela descriminalização
da maconha, nos termos em que se descreve aqui, foi enquadrada como
incursa no artigo 12, parágrafo 29, inciso '" da lei de tóxicos, que prevê
penas de 3 a 15 anos para quem "contribui de qualquer forma para incen-
tivar ou difundir o uso indevido ou tráfico Ilfcito de substância entorpe-
cente ou que determine dependência ffsica ou psrquica", 7. P. 32, Ed. Sugestões Literárias, 1!led.• 1972.
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I.INTRODUÇÃO

o hábito de fumar maconha veio para o Brasil com os escravos, e no


presente século já tinha uma certa difusão em zonas rurais e em setores
urbanos marginalizados. A ideologia corrente a partir dos anos 40 associava
maconha à marginalidade, imputando a essa erva o poder de induzir ao
crime, estimulando a loucura, a agressividade e a perversão. O fato é que na
década de 60, quando o costume de fumar diamba se ampliou entre a
classe média, o preconceito em relação à erva já era forte e generalizado.
Ela era enquadrada na categoria de "drogas", que levavam a juventude à
autodestruição física, além da perda dos valores morais tradicionais (crrtíca
conservadora), e da alienação (crttlca da esquerda).
Uma severa lei antitóxicos não tardou a vir. Sob a ditadura militar.
a repressão policial tinha mais uma desculpa para exercer sua arbitrarieda-
de, num momento em que o consumo se difundia cada vez mais. Paralela-
mente, setores da própria polícia se associavam aos traficantes, partilhando
lucros.zf orrnava-se o esquema da "ilegalidade legal", no qual uma transação,
tornada ilegal, não deixa de existir, mas passa a envolver somas de dinheiro
muito maiores, fornecendo lucros imensos não só aos traficantes envolvi-
dos, mas também a setores da polícia que se associam aos traficantes, sem
que esses, no entanto, percam seu poder de deter possíveis consumidores
Lou traficantes.' Esse esquema não se aplica só ao caso da maconha ou de
outras drogas, mas também ao aborto, ao contrabando, à prostituição, ao
jogo de bicho etc.
A campanha de combate às drogas se estendeu às escolas de maneira
maniqueísta, e por isso pouco efetiva. O jovem assistia a palestras onde
era ensinado que fumar maconha levava perdição; quando finalmente
â

sua curiosidade suplantou o medo que nele fora infundido, e ele fumou
um baseado, viu que o monstro que fora pintado inexistia, e que o ritual
ra simples como beber uma pinga. IAs campanhas antitóxicos são inefe-
tivas porque o seu discurso se fundamenta em falso preconceito. Uma
campanha de esclarecimento dos reais perigos das drogas deve partir de
quem tem experiência no consumo normal e moderado de drogas (e não
Ó dos casos extremos).
O crescente consumo de maconha e a crescente repressão policial
têm resultado em milhares de inquéritos a cada ano (em 1982, 4.238
pessoas foram indiciadas, 2.431 por tráfico, 1.807 por consumo), e um

149
o Repórter partiu então para uma pesquisa de campo, culminando
número maior de prisões para averiguação, além das extorsões e agressões numa extensa reportagem no seu número de dezembro. Localizaram áreas
de praxe. Uma legislação, cuja finalidade é defender os cidadãos, submete de plantio no Maranhão, Pernambuco e Bahia, apesar de o mercado do Sul
os usuários a condenações que arrumam suas vidas muito mais do que o do País ser abastecido pela maconha paraguaia. No interior pernambucano,
uso da maconha em si. fotografaram plantações numa região onde o jererê era a segunda fonte de
renda, com financiamentos até do Banco do Brasil. No Maranhão, maior
11.O NOVO DISCURSO DA IMPRENSA NANICA produtor e exportador do País (via Guianas), investigaram os hábitos de
plantio entre os (ndios, a atitude amb(gua da poltcía, e a queda na qualida-
~ natural que surgissem manifestações populares criticando a repres- de dos fumos tendo em vista maiores lucros.
são ao uso da maconha, a partir da abertura polrtica que se deu no Pafs No número seguinte, o Repôrter defendia a "Iiberalização parcial" da
após 1978. Com anjstia aos exilados políticos, vieram as novas preocupa- maconha, como forma de esclarecer melhor a juventude sobre o que repre-
ções dos movimentos civis europeus: ecologia, pacifismo, feminismo, senta a diamba, permitindo um melhor controle dessa droga, a exemplo do
liberdade sexual, direito ao aborto,liberação da maconha. que acontece com o álcool. E entrevistam várias personalidades, entre juris-
Dentre a imprensa nanica que se firmava, o jornal Repórter, com seu tas, deputados e estudantes, a maior parte dos quais favorável a que "o uso
sensacionalismo honesto, aprofundava a discussão sobre a maconha, pes- da maconha deixe de ser crime". Realizavam assim o primeiro passo na
quisando a sua produção, acompanhando a diminuição da repressão que luta pela descriminalização, que é a formação da opinião pública, não só
se deu até 1980, e expondo pela primeira vez, publicamente, posições através de informações, mas também da divulgação de opiniões favoráveis
favoráveis à descriminalização. Em seu número de maio de 79, o Repórter de personalidades conhecidas.
sugeria que exportar a erva maldita era o grande negócio para combater A discussão mais aprofundada nessa reportagem foi investigar quais
a inflação e saldar a d (vida externa. Isso se baseava na decisão da Associação interesses econômicos são contrariados pela possrvel legalização. Segundo
Nacional de Instituições Financeiras da Colômbia, que conseguira em uns, são os interesses das indústrias de tabaco que impedem a legalização.
1975 liberar parcialmente o uso da maconha, como forma de estimular Mas seriam essas multinacionais as que passariam a distribuir o fumo, e a
sua produção e exportação para os Estados Unidos, onde cada vez mais bandidagem que controla o tráfico teria de passar para outro campo
Estados liberavam o uso da erva, sob o governo Carter (diga-se de passagem marginal de ação, como o assalto. Além dos traficantes, a polrcla deixaria
que bastaram dois anos de tolerância na Califórnia para que o mercado de obter seus lucros com a clandestinidade, e são esses portanto os que
interno americano se tornasse auto-suficiente, destruindo essa rica fonte mais se interessam pela clandestinidade do comércio da maconha.
de exportação da Colômbia e da Jarnaica).' Tomamos essa série de reportagens como exemplo de uma tendência

IU~If)JrllHI
de opinião que surgia na imprensa alternativa (O Inimigo do Rei, Lampião,
Movimento e Coo-Jornal assumiam posições semelhantes), refletindo uma
parcela da opinião pública, principalmente a mais jovem. Mas os meios de
•• de 1m - _ •. ",,",_ 11_ Cri,. AUTONOMO WIIOEPlNOENTI
comunicação de massa, ligados em sua maior parte aos grupos conservado-
res no poder, continuavam sua campanha contra a erva maldita, em meio
às campanhas de combate às drogas. Cabe mencionar uma extensa reporta-
gem no Jornal da Tarde em março de 1980, no qual se investigou o tráfico
de drogas nas escolas.
Os fatos são inequívocos: calculou-se que 10% dos estudantes da rede
de ensino do Estado de São Paulo já experimentaram drogras, principalmen-
te maconha, .anfetamina, soruferos e calmantes, o que interfere em seu
rendimento escolar. Fotografaram a ação de um traficante de porta de
colégio, e contaram a tragédia de quatro meninas que aos 13 anos já se prosti-
tutrarn pelo vrcío da maconha, que começou quando o doceiro da escola
Ihes passou "balinhas de maconha". A história em quadrinhos que reconta
esse clássico mito moderno é antológica em sua atmosfera dram~ica e

150 151
jornal da tarde repulsante. Uma reportagem feita em colaboração com a polícia, com
forte clima emocional, ressaltando o elo maconha-criminalidade, e sugerindo
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No" fADO Df. S. PAUL
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para o combate ao tráfico um melhor aparelhamento da pol ícia, um pro-
grama educacional para professores, e a formação de uma "polícia escolar"
uniformizada e desarmada. (Aliás, esse Programa de Prevenção ao Uso de
T6xicos nas Escolas funcionou de 1980 até 83, 'quando foi desativado
pelo novo secretário da Educação como medida destinada a "evitar a malver-
sação do dinheiro público".)

11I.JOLERANCIA POLICIAL & PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES

A abertura política parece ter trazido uma maior tolerância da polfcla


em relação aos maconheiros, tanto que o Repórter anunciava em julho de
1980: "Fumar maconha está deixando de ser crime". Como aponta Chico
Jr. em seu recente livro Drogas (Codecri, 1983), enquanto o consumo do
jererê aumentava em 1978-79 (triplicou em relação a 77, segundo a Polícia
Federal), o número de processos e condenação diminuía. No entanto, estes
vóltaram a subir a partir de 1980, coincidindo com o ressurgimento dos
atentados paramilitares: Podemos dizer que, se em 1980 a descrirninalização
da maconha amadurecia, de lá para cá a tolerância estagnou.
( ~ ••.O relativo aumento da tolerância com respeitó às drogas teve seu
auge com a absolvição de um jovem pelo porte de uma trouxinha de
maconha, por parte do juiz carioca Álvaro Mayrink da Costa, em agosto
, de 1980. Ele se justificou dizendo que "a maconha já faz parte dos usos
costumes da sociedade de hoje: 80% dos jovens entre 19 a 23 anos já
a experimentaram. Considerar como crime esta prát,i,ca atenta contra os
direitos humanos e as garantias individuais. ~ uma herança nefasta do
Estado totalitário". Com isso, abriu-se a~perspettivá "para a mudança da
~ Jtfrisprudência com 'respeito à absolvição daqueles que fossem apanhados
com pouca quantidade de maconha, o que até hoje não aconteceu efeti-
vamente. Mayrink da Costa propôs a necessidade de descriminalizar o
artigo 16 da lei antltôxicos, que pune aqueles que trazem maconha consigo,
para uso pr6prio. "Pela repetição dos fatos", diz ele, "senti que chegara o
momento histórico de enfrentar essa realidade: fumar maconha deixou de
ser crime. Cada geração tem a sua verdade, e essa é uma verdade da nossa
geração."
, A primeira manifestação pública pela descriminalização da maconha
se deu na forma de um debate na Fac. de Filosofia da USP, em junho de
1980. Cerca de 350 pessoas discutiram e ouviram o deputado estadual
João Batista Breda (que com o juiz Mayrink da Costa elaboraria um projeto
de lei pela descrimlnalização, que não deu em nada), o músico Jorge
Mautner, o poeta Jamil Hacldad, entre outros, colocarem que o uso da
maconha deveria deixar de ser considerado crime. A discussão foi fragmen~
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153
tada, em acordo com o espírito da diamba, e culminou com a formação estava sendo colocada, como pôde ser visto na SBPC de 1981, quando
de um grupo que se prôpos a levar adiante as discussões, na sede do Repór- num ato público homossexual, um homem empunhando um cartaz pró-
ter. A proposta era formar uma espécie de comissão de defesa do fumante Cannabis discursou sob calorosos aplausos.
da maconha, que denunciasse a violência e a prisão de fumantes, organizasse ~ a partir de 1980 também que surgem os primeiros livros especifi-
debates amplos, e arrolasse personalidades que defendessem publicamente camente sobre a maconha, sem o preconceito tradicional em relação ao
a liberação da maconha. Esses planos foram suspensos com a onda de seu uso. Márcio Bontempo vendeu bastante com seu manual seco Estudos
atentados às bancas de jornais, contra a imprensa nanica, que se deu na atuais sobre os efeitos da Cannabis sativa, sendo seguido pela tradução de
segunda metade de 1980. um livro mais detalhado de Giancarlo Arnao: A erva proibida.
No entanto, a discussão sobre as drogas se ampliava, e a liberação da
maconha começou a ser debatida e defendida um pouco mais amplamente, IV. AS ELEiÇÕES REACENDEM A DISCUSSÃO
em faculdades, escolas e grupos de bairro. Isso, paralelamente às "campa- No período 1980·8', ocorre um aumento da repressão e o País
nhas de esclarecimento" ligadas à visão policial e aos colóquios sobre os vive momentos delicados que culminam com o desastrado atentado no
aspectos médicos das drogas, que sempre existiram. No Rio, em outubro Rio Centro. A discussão sobre a descrlrninalização arrefece, ressurgindo
de 80, foi organizado um simpósio psiquiátrico na UFRJ, na qual psiquia- em 82, com a euforia das eleições .
. tras como Portela Nunes e o antropólogo Gilberto Velho levantaram Surge o primeiro esboço para constituir um "Movimento pela Des-
argumentos médicos, éticos e sociais em favor da legalização do consumo criminalização da Maconha", a partir de um grupo formado basicamente
da maconha, publicados no Jornal Brasileiro de Psiquiatria. Em São Paulo, de estudantes da USP e da PUC-SP, com o apoio de entidades como o
as transcrições do debate da Fac. Filosofia eram vendidas, incluindo um Movimento Negro Unificado. Organizam como forma de lançar o movi-
panorama da situação em outros países, devido aos contatos feitos com a mento a tradicional fórmula do debate, que se realizou em setembro de
"Campanha de Legalização da Cannabis" (LCC) da Inglaterra. . 1982. Ao lado de uma forte receptividade por parte de usuários e de
~ interessante mencionar os caminhos de luta pela legalização que pessoas contrárias ao autoritarismo, encontraram um repúdio iguálmente
existiram na Inglaterra, no fim da década de 70. De um lado, a LCC forte por parte dos setores conservadores. Um popular programa diário
procurava influenciar a opinião pública editando panfletos que defendiam de rádio que aborda casos policiais emitia ataques diários à organização
a legalização, .fazendo levantamentos das detenções por causa da Cannabis, do debate, ironizando-a como loucura e exigindo a intervenção policial.
estudando as formas econômico·legais de empreender uma legalização A ação desta se deu de forma sutil desligando a força elétrica do salão
etc. Estavam associados ao Release, que era uma assistência jurídica aos Beta, na PUC, onde se deu o debate, que contava com cerca de 150 parti-
presos por maconha (um "SOS-Maconheiro"). De outro lado, atuavam os cipantes.
Smokey Bears, que realizavam anualmente um piquenique onde todos. Os políticos presentes eram o deputado Breda, e a candidata a verea-
fumavam em praça pública, sofrendo a repressão policial e obtendo muita dora Caterina Koltai, ambos do PT. Pelo PMDB, o debate recebeu apoio
propaganda para a causa. Estas reuniões culminaram em imensos atos da futura deputada federal, Ruth Escobar. A exposlção dos debatedores
(com até 6.000 pessoas) que passerern a transcorrer pacificamente. Na " foi muito rica, o que não se deu nas discussões posteriores. O psicofarma-
Itália, por outro lado, a descriminalização foi conseguida a partir da ação c610g0 Elisaldo Carlini se mostrou ser um dos poucos capazes de sintetizar
do Partido Radical, e em outros países, essa luta se liga aos movimentos a visão a favor da descriminalização da maconha com a preocupação
ecológicos. Cabe mencionar também a realização, em fevereiro de 1980, em relação ao dano social das drogas. O interesse existente em perpetuar
de uma conferência internacional pela legalização da maconha ("ICAR"), e consolidar um mercado paralelo e semilegal da droga, conforme o modelo
em Amsterdã. , boliviano e colombiano, foi exposto pelo antropólogo Anthony Henman,
No Rio, estudantes de Ciências Socias da UFRJ editavam o Patuá, e diversos aspectos psicológicos foram levantados por Maria Rita' Kehl.
que não só discutia a descriminalização, corno.também transava a maconha O advogado Alberto Toron colocou publicamente sua adesão ao movimen-
de maneira artrstica e lúdica, A cada número, a revista oferecia um brinde to, e sua disposição em participar de uma assessoria jurídica aos presos
(uma sedinha, um pilão, uma baga), fazendo propaganda do colírio "Ban- por porte da maconha.
deyrola". Circulava também o Panflema, "um jornal da massa", e o Ato do . Foi lançado o Manifesto pela Descriminalização,. aprovado por
Vapor ("Koyza louca; Ma ou boa conha? Boa ma conha!"), além de outros todos os presentes (salvo os observadores da polícia), e com a idéia de dar
livretos de poesia diâmbica como o Bagana's. Na Bahia, a liberação também um caráter nacional ao movimento: •.

154 155
""

"Considerando que: as eleições, ela foi indiciada, acusada de ter defendido o uso da maconha,
pela frase"Desobedeça à ordem dos que querem regulamentar o seu
- o uso da maconha é um costume que se acha atualmente ampla-
mente difundido em ,todas as camadas sociais do País, prazer: lute pela descriminalização da maconha, porque '0 mal é o que
sai da boca do homem' ". Algumas semanas após a apreensão do panfleto,
- a legislação antitóxicos (Lei n9 6.368 do Código Penal, out.
ela lançaria a carta-programa "Obedeça", na qual escreve ironicamente:
1976) enquadra a maconha como entorpecente causador de dependência,
"Obedeça a ordem daqueles que regulamentam o seu prazer: embriague-se
cujo uso incorre em pena de até 2 anos de reclusão.
à vo~ade, tome todos os remédios da praça, e consuma sem susto todos
- esta lei permite às autoridades policiais exercerem o abuso do
poder, em geral extorquindo ou agredindo o usuário. os enlatados danificados, porque se são permitidos é porque nunca fazem
mal. Não lute pela descriminalização da maconha, já que sua proibição
- essa repressão ao uso da maconha, tanto policial quanto cultural
'legal foi antecedida de profundos estudos cientfficos e fruto de um amplo
(ideológico), tem acarretado problemas psicológicos, familiares e sociais
ao fumante de maconha. debate nacional". .
Após dois anos desse processo absurdo, que pretendia negar o direito
- a maconha não causa dependência física, não é um vício, e estu-
dos científicos mostram que o uso da maconha não leva necessariamente a uma opinião polftica, e sob a ameaça de uma pena de 3 a 10 anos de
a danos à saúde. reclusão, ela seria finalmente absolvida em setembro de 84, quando o
promotor substituto retirou a acusação alegando que não havia provas de
- existe um forte preconceito em relação ao 'maconheiro', que é
considerado um perigo para a sociedade. que ela agira com intenção, e o juiz a absolveu com base no artigo 153
da Constituição que .garante a liberdade de pensamento. Paralelamente,
~ todo indivíduo deveria dispor dOesua própria liberdaçJe da forma ',.
que bem entender (sem prejudicar o outro). o candidato a deputado estadual pelo PTB de Santa Catarina, Beaeó
- os altos lucros provenientes do tráfico da maconha 'estão intima- Vieira, respondeu processo semelhante com base na Lei de Imprensa, por
mente ligados com sua proibição ... ter defendido a legalização da maconha, sendo absolvido em meados de
Defendemos: 84. ~ bom ressaltar que nenhum partido político tem discutido progra-
- a reformulação da atual legislação sobre tóxicos. maticamente a questão da maconha; nem mesmo o PT, no momento de
- a descriminalização da maconha, ou seja, que o porte não seja um defender a posição de sua candidata ameaçada.
~ em 1982 que surge a discussão da überação da Cannabis na imprensa
crime, e que o uso da maconha deixe de ser assunto da área policial.
- que o plantio doméstico para consumo próprio seja dissociado tradicional. O Jornal do Brasil divulga o ato público dos estudantes paulis-
legalmente do tráfico, e que seja permitido. tas, e em agosto a Folha de S. Paulo, numa série de reportagens em tom
Propomos: policialesco, entrevista várias personalidades defensoras da liberação. Na
- a criação de uma assessoria jUrl'dica para a defesa do usuário deti- rádio Excelsior de São Paulo, um programa gravado por estudantes leva
do, agredido ou extorquido pelo porte de maconha. ao ar uma discussão centrada em torno das opiniões do deputado Breda,
- a formação de uma comissão científica de estudos interdiscipli- em que se coloca abertamente a descriminalização.
, '
nares sobre a Cannabis. '- Nas praias, em shows, em praças, em bares, o uso da maconha
tende a ser tolerado, e no carnaval de Olinda o bloco "Segura a Coisa"
- o lançamento do Movimento pela Descriminalização da Maco-
nha ... " __ desfila anualmente com. seu "baseadão" de um metro. Mas a repressão
continua, com espancamentos e extorsões, dentro da orientação geral na
Paralelamente, alguns candidatos às eleições colocam explicitamente
, polícia para que "os jovens detidos nas ruas por fumar maconha não sejam
a defesa da descriminalização do uso da maconha. Na Bahia, o músico
Galvão, candidato a deputado federal pelo·PMDB, fez sua campanha com autuados se não forem traficantes".
impressos semelhantes ao invólucro das sedas Colomi,e defendia a libera-
ção conforme o refrão de sua música: "Você pode fumar baseado, baseado
em que você pode fazer quase tudo ... " L'\J\~rJA )A 'I ERP-A F SA Dei
"T')OCl vJ U
- ''10 S"
Em São Paulo, Caterina Koltai defendia a descriminalização em sua A r I'<'?-I {)\'\A N\-\l()\~ll) 5A-~ ') PRt ~ .
carta-programa libertária "Desobedeça". No entanto, o TRE, acatando IlhJ/Ii'A r J • (
requerimento do delegado de Tóxicos e Entorpecentes, proibiu a circulação
do panfleto, atendendo à pressão de vários programas de rádio. Logo após •
" 157
156
v. SOS-MACONHEIRO E O 1QSCEM

Em 1983, pode-se dizer que haviam dois grupos trabalhando pela


descriminalização da maconha, estudantes de São Paulo e do Rio.
Na Paulicéia, o grupo que redigiu o manifesto já vinha realizando
.dlscussões sobre" como levar adiante um movimento pela descriminalizaçã~.
z
» \SJ A maior dessas discussões tivera a participação de1 00 pessoas, e foi nela
que se propôs dividir o movimento em três: a assessoria jurídica seria a

>n. ~

~
comissão mais urgente, na medida que era importante divulgar o telefone
de um corpo de advogados que defendessem sistematicamente os presos
por porte de maconha, dentro dos parâmetros da lei; a comissão cíentrfica
divulgaria textos sobre a questão da maconha, e realizaria pesquisas de
Q
I---(
;:o
fV1~ caráter social; e o movimento pela descriminalização propriamente dito,
que realizaria festas e eventos, lançaria plásticos e botões em nome da cam-
panha, e divulgaria sua mensagem em ocasiões públicas, com a finalidade
rn
H
-/zO ~~'-fn~ ---
de despertar a opinião pública.
Decidiu-se então centrar esforços par-a criã; c;- SOS-Maconheiro.
Conseguiu-se um telefone provisório de centro acadêmico, e um punhado
de estagiários trabalhando com um advogado. Em junho realizou-se na Fac.
D>C
IU)I--; ~,~.~ .' de Direito da USP um debate lançando a assessotia, no qual se discutiu os
aspectos jurídicos e econômicos ligados à diamb~entre as discussões que

>-
foram feitas, foi debatida qual a melhor r~cação para o movimento: a
C>z
(J)r~ legalização da maconha, até mesmo, do seu plantio e comércio, associada
a um planejamento de sua distribuição, que retirasse da máfia da droga os
..-O ~ ):> .H~C>
"'-"', altos lucros e impedisse sua capitalização por multinacionais ("Fumobrás"?);

nS~:g
a descriminalização, que seria uma mudança na lei de forma que o porteda
r- O ~ maconha deixasse de ser crime, proposta essa que contém a dificuldade
o---
Cj)
Prny
(f)cnC
O

n~ !!o-Xl A
jurídica do tráfico continuar sendo ilegal; ou a tolerância, que consiste
numa ordem para não mais considerar o porte da maconha um crime, sem
no entanto modificar a lei.
A "Assessoria Jurídica aos Presos por Porte de Maconha" sobrevi",
~---i:Z
:::r:::JcI ~ nn veu por pouco tempo, mas seus participantes continuam a atender pessoal-
mente os presos por porte do fumo. Dentre seus objetivos, constava
também "fazer um levantamento e documentação dos casos de detenção,
»09
z>~ =OC-i extorsão e abuso de poder, além de orientar o usuário sobre seus direitos
, e sobre as complicações e sutilezas legais decorrentes de uma detenção".

~zo
(J)-I:c
>V'lmC) Além desse grupo paulista, alguns outros advogados trabalhavam juridica-
mente com processados por porte de drogas, como o ex-defensor público,
e deputado estadual pelo PT carioca, Lizt Vieira, que também defendeu a
descriminalização em sua campanha política.
n
o m'lf) ~ A assessoria jurídiéa lançou também um interessante documento,
"0 que (não) fazer", no' qual orientam o fumante no caso de ser flagrado
pela polícia." No caso de flagrantes, a melhor atitude é sempre aquela de
A

159
explicar à autoridade que a droga não é sua, ou que se trata de um evento
isolado e único ... " Explicam que não leva a nada admitir em desafio
orgulhoso que você "fuma mesmo!", e recomendam uma atitude educada.
Não aconselham ao interrogado guardar silêncio absoluto, pois é ao
delegado que compete arbitrar a fiança, e esclarecem que não há problemas
em assinar papéis como "Nota de culpa" ou "Auto de flagrante", pois
asslná-los não significa assumir a culpa.
No Rio de Janeiro, paralelamente, o grupo "Maria Sabina" (nome de
uma feiticeira mexicana) preparava o que viria a ser o maior evento diâmbi-
co do Brasil. Fo i o "1 Q Simpósio Carioca de Estudos sobre a Maconha",
realizado em novembro de 83 no Inst. de Filosofia e C. Sociais da UFRJ.
Foram cinco dias de debates, com uma média de mais de 300 participantes
por dia. Na primeira noite, "Criminalidade e Ação Policial", Mayrink da
Costa explicou a sugestão de alguns juristas conservadores para modificar
a legislação introduzindo o perdão judicial, onde o juiz tem autonomia
para perdoar o condenado se este for réu primário, mantendo o véu da
;,., hipocrisia. Lizt Vieira relacionou a criminalização do uso da maconha com
jogos potrticos, e Michel Misse fez uma abordagem sociológica. No segundo
debate, "O Uso nas Sociedades Não Ocidentais"; foi abordado como a
experiência rnfstica da Cannabis é encarada em diferentes religiões, e a
antropóloga lvone Maggie abordou o caso da repressão na umbanda. No
terceiro dia, "Economia, Classes Sociais e Consumo de Maconha", Chico
Junior analisou o funcionamento do meréado das drogas, e Gilberto Velho
•, apresentóu aspectos culturais, analisando por exemplo a quebra do com-
portamento "normal" devido ao uso da erva. Na quarta noite, "Maconha:
Loucura e Razão", foi discutido o uso do jererê entre os (ndios, em meio
a rituais e como instrumento de educação. No último debate, "Movimen-
tos de Descriminalização", os juristas Técio Lins e Silva e Nilo Batista
analisaram a atual legislação, seus furos e saídas para salvaguardar filhos
de gente rica, a repressão geral ao prazer etc., e Luis Carlos Maciel inter-

f,....
[ -e
'"
pretou o efeito de cada tipo de droga como instauradora de novos estados
de consciência. A repercussão dos debates mostrou a importância da
questão da maconha, e a transcrição do simpósio foi publicada pela ed.
~ Brasiliense, no livro Maconha em Debate.
Entre as últimas manifestações a favor da liberação está a moção

C ;:·inCll\
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aprovada pela Associação Brasileira de Antropologia, pleiteando a imediata
descriminalização do uso da Cannabis sativa, que foi divulgada na univer-
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Pode-se esperar uma liberalização com a nova onda democrática? Na

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Argentina, logo após a posse do novo presidente no final de 83, centenas
de jovens foram violentamente reprimidos em um ato público pela libera-
ção da marijuana, que contou com a presença da própria. E no ~io, na
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passeata pró-Diretas realizada em março, o Maria Sabina distribuía milha-

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res de cópias do "Manifesto da Maconha:': " ... A praia sujou geral. Além consideraram que uma quantidade menor do que um grama é insuficiente
do esgoto, povoou-se de soldadinhos grotescos travestidos de banhistas. para causar dependência. Juízes de primeira instância já haviam feito isso,
Por uma baga, um fino, um simples baseadinho, é bofetão-camburão- mas, partindo da mais alta corte estadual, firmou-se a jurisprudência, o
delegacia. Sem papo". Uma semana depois, um cartaz com os dizeres que significa que outros réus poderão ser absolvidos ao portar pequenas
"A seca acabou, chega de palha!" anunciava uma festa em comemoração quantidades de maconha, após a publicação do acórdão no Diário Oficial
ao fim da entressafra da maconha. E surgem bandas de rock. com nomes de Justiça, o que já foi feito nesse caso. A mesma decisão de absolvição
lissérgicos: "THC", "Seda Pura", "Liberais Sem Destino", enquanto o foi tomada um mês depois, no caso de um presidiário em cuja cela foi
coelho Bigorrilho torna-se furo jornatrstlco por ser viciado em folhas encontrada uma pequena quantidade de maconha. Esses fatos porém não
de maconha ... vinculam necessariamente os promotores e os juízes de primeira instância,
denotam apenas um entendimento entre eles: o porte de pequenas quan-
VI. A REFORMA DA LEI tidades de maconha em São Paulo ainda pode levar à prisão, mas agora
também pode não levar.
Com a "Nova República" de fato começaram a soprar ventos de A questão da maconha e das drogas em geral começa a ser colocada
tolerância, a partir da nomeação, em junho de 1985, de 22 novos membros em um nrvel mínimo de bom senso. ~ preciso unir a descriminalização do
do Conselho Federal de Entorpecentes (Confen), presididos por Técio uso com o combate sensato ao seu abuso. Uma legislação democrática será
Lins e Silva. Esse órgão foi criado após a promulgação da Lei Antitóxicos aquela que reflita os anseios da sociedade. Como coloca Lins e Silva,
de 1976, mas somente agora o Confen se propõe estudar a situação do uso de "se a família brasileira achar que seus filhos devem passar seis meses na
entorpecentes no Brasil, seus efeitos e as formas mais apropriadas de cadeia por fumar maconha, assim será à lei". Mas e se ela não achar? Apro-
tratamento ao usuário, tendo em vista a reformulação da lei. Esse louvável veitando, o clima de discussão instaurado oficialmente pelo Confen, é
projeto sofreu protestos imediatos da parte, do farmacólogo mineiro fundamental difundir o ponto de vista tolerante e não preconceituoso,
José Elias Murad, conhecido defensor da repressão total ao uso de drogas, se se qu iser que o "rn ito da maconha" seja aos poucos esclarecido e dis-
que declarou que o novo conselho "quer legalizar ou liberar o uso da sipado.

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maconha". Lins e Silva retrucou que Murad "está procurando confundir
a sociedade nessa discussão", apelando para o mesmo preconceito popular * * *
utilizado por exemplo na campanha para é!. prefeitura de São Paulo ("não
votem em um maconheiro!"), Lins e Silva defende que o usuário de Está colocado, 'assim, um exemplo minúsculo de movimento social,
qualquer droga não seja punido com a prisão, mas sim com uma multa, que se caracteriza por ser um confronto ideológico de costumes entre a
acompanhada de atendimento médico e psicológico se houver depen-. juventude e uma sociedade conservadora, entre uma atitude antiautoritária
dência. Espera-se que uma caracterização mais realista seja dada à figura e outra policialesca. A tendência a uma maior tolerância em relação ao
do "traficante", que não deveria ser confundido juridicamente com o uso da maconha existe, e o papel dos movimentos de jovens é acelerar
usuário que redistribui pequenas quantidades de maconha ou outra droga esse e outros processos de direitos civis, desmascarando as estruturas
a um amigo, como ocorreu no recente episódio de uso de heroína por de "ilegalidade legal".
dois membros de um conjunto de rock paulistano. Pode haver um crime sem vítima?
Um debate promovido pelo jornal O Globo (25/8) antecipou o
consenso que se forma a respeito da necessidade de reforma da lei. Os
participantes criticaram a atitude autoritária de se tirar a liberdade de Novembro, 1985
um jovem por ter experimentado drogas, ,enfatizando que os grandes
traficantes raramente são presos. Um dos próprios autores da Lei Anti-
tóxicos, o advogado Paulo Ladeira, sugeriu uma reformulação na legislação,
sugerindo a introdução do perdão [udicial na lei. .
Um fato novo passou a contribuir para essas discussões: em setembro
os desembargadores da Seção Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo
absolveram um estudante da acusação de porte de maconha, porque

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